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https://books.google.com
Jom I

Discont?
1375
.00 27
.
Augusto deMundanias
.

OBRAS

DE

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO.


BRITISH

MUSEUM
TRADUCE TO
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METAMORP

OVIDIO
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BORDALLU
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GUGLIELMI INV. COELHO
BRITISH
18 JY63
AS METAMORPHOSES

DE

PUBLIO OVIDIO NASÃO .

PORMA

EM QUINZE LIVROS ,
VERTIDO EM PORTUGUEZ
POR

Antonio Feliciano de Castilho,

NA ARCADIA DE ROMA

MEMNIDE EGINENSE,
Da Academia Real das Sciencias de Lisboa, do Conservatorio Real da mesma Ci-
dade , do Instituto Histórico de París , da Academia Real das Sciencias , e Bellas
Lettras de Rouen , da das Sciencias e Artes dos Ardentes de Viterbo , e de outras
Corporações litterarias nacionaes e estrangeiras , da Antiga e Muito Nobre Ordem
da Torre Espada , do Valor, Lealdade, e Mérito.

TOMO I.

LISBOA
Na Imprensa Nacional .

1841 .
N.B. O Prólogo e Notas , fórão impressus na Imprensa Nacional ;.
e o texto na do Gratis.
BRITISH
L LA
LE EX LME
AO IL A
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D D

Gultor
ento
е ornam
singular

das Letras Patrias e Estrangeiras.

emTributo
da

SUMIRAÇÃO ERESPEITO

4.7
..de.
C
BRITISH
PRÓLOGO.

J
Á alguem disse, que fazer e calar , havia de ser o tim-
bre de todos os cultores das Boas Artes. Essa regra seguirão
geralmente os Antigos : creárão óbras, e'deixárão aos séculos ,
que depois viessem, o cuidado de as louvar, explicar, e deſſen-
der, se cumprisse. A Illíada, a Eneida , e as Metamorphoses,
cujos prólogos, e nótas , abarrotarião hoje duas náos grossas,
sahírão das mãos de seus Autores, sem commentário, nem preâm-
bulo. Tambem n'isto, como em tantas outras cousas, tinhão
razão os Antigos, porque, supposto, por algumas vias. póssa
convir a hum escriptor o dar razão de si, e de seu escripto,
sempre comtudo he innegavel, que n'esse humanar-se, e des-
cer á familiaridade de toda a gente, como que desautorisa , e,
em grande parte, annulla, o seu proprio personagem poetico .
Quando de hum grande Varão só nos ficárão os seus versos,
cria-se, e ama-se, huma illusão maravilhosamente favoravel á
sua glória ; porque, toda a vileza, e mesquinhez, da prósa, que
era a parte miseravel, e caduca, por onde se apparentava. com
o pó, com o vulgo, e com a vida , desapparece ; e só fica, para
nos representar o seu nome, a parte nobilissima, ethérea, im-
mortal, do seu sujeito, o genio : assim, quando Vénus houve de
convertera Enéas em semideos, ¿ que fez a corrente do Numício ?

Quicquid in Enea fuerat mortale, repurgat,


Et respergit aquis : pars optima restitit illi.

Tudo quanto he mortal extrahe de Enéas,


E co'a pura corrente o volve puro :
A parte só que he óptima lhe deixa.

He o engenho, como as formosas, e os potentados ; não se


ha de amostrar senão á sua hora, e a seu geito, e nunca de todo :
X PRÓLOGO.
se os servidores se costumarem a ver o rei nos lances, em que
não passa de homem, como elles ; se os namorados espreitarem
sua dama entre a alcôva, e o toucador ; e se o poeta, a quèm,
se ha de crer, que tudo cahe de cima inspirado, expuzer aos
curiosos o seu laborioso tear de Penélope ; ¡ adeos rei ! adeos
dama ! adeos poeta !
¿ Porque logo vai aqui hum prólogo ? porque duas razões m'o
consentem, e outras duas m'o aconselhão . A primeira ; porque
essa pragmática, posta aos grandes autores, não tem , por isso
mesmo, que ver comigo : a segunda ; porque em ról d'autores se
não comprehendem traductores : a terceira ; porque eu e meus
leitores, somos amigos , e entre amigos , nada he mais suave ,
que o praticar e a quarta ; porque me importa dar alguma conta
do presente trabalho . O que d'esta vez farei , por comprazer aos
inimigos de preàmbulos , será evitar prolixidades .
Encómios, do meu Autor, e do meu original , pedia o cere.
monial, que fossem a primeira cousa, a que fizessemos aqui
praça ; que são esses, por pósse vélha, o pendão , e primeiro
andor, de taes procissões . Mas, pregoar que Ovidio foi , por-
ventura, o mais cabal poeta da Antiguidade ; e o Poema das
Metamorphoses, o mais admiravel dos seus Poemas ; seria repe-
tir, o que todos os lidos sabem , o que nenhum ignorante deixa-
ria já de ouvir, e o que de nenhum parvo foi ainda contesta-
do : passemos portanto ao segundo capitulo.
Nos tristes, e já agora para mim bem saudosos, annos de
1831 , e 1832 , vivia eu, (havia já então cinco) com o que mais
amava n'este Mundo , sumido , e quasi embrenhado , nas raizes
da Serra do Caramulo . Essas horas, que eu hoje com bem
gosto acceitára, e comprára, todas, boas e más , se o tempo res
tituisse, ou vendesse , o que huma vez nos levou , parecião-me
então longas, e aborridas ; porque o horisonte da vida , lá para
a parte da esperança , era todo cerrado, ou tormentoso ; e a
paz, que disfructavamos, incerta, e custosamente mantida a
trôco de esquivar o mundo, e de ser por elle esquecidos . Tam-
bem os meditativos passeios pelo êrmo , a conversação da natu-
reza silvestre, o commércio dos livros, os serões e cantilénas
aldeas, chegão a final a enfadar que restava ? Os contos, e
tróvas, do serão, estavão sabidos ; as tradicções dos vélhos , de-
coradas ; as campas da Igreja, as pédras da tôrre, os carvalhos
da Sérra, contados ; contados os passos para a hórta, para a
fonte, para as ruinas da Igrêja vélha, para a arremessada ponte
de pão do Alfusqueiro, ¡ tão romântico ! para cada cabêço, ou
pédra, ou sombra, ou capellinha, branca , e solitária, onde se
PRÓLOGO. XI
ía repousar, e scismar os livros mesmos, bem que esfolheados ,
em tão bom remanso, tão sem glosadores, nem interruptores,
em pequena bibliotheca, toda por fóra vestida de limões bem
córados, e rósas bem fragrantes, por entre verdura bem espêssa
e bem amada de andorinhas ; os livros, similhantes a amigos
desconfiados, ou retrahidos, não nos davão então , o que, eu sei,
que elles encérrão, que hè o contentamento da alma ; ¿ e ras-
treais o porquê ? Pela mesma causa, porque de si dizia Cicero,
que, se lhe dérão faculdade para ir peregrinar pelas estrellas,
e fartar-se das maravilhas celestes, com a cláusula de não con-
tar depois a seus amigos, o que por lá houvesse visto , faculdade
tal, a não acceitára . A leitura, accendia, necessariamente , a
emulação , e sêde de fama , que nem aos mínimos escrevedores
fallece nunca ; e eu, tinha para mim, que já ahi, entre esses
cançados bens, se me havia de acabar a vida , como em huma
légua de circuito se me tinha acabado o Mundo . Tediosa , e
impolida cousa he fallar homem de si mesmo ; mas, que m'o
relévem, por esta vez ; que assim me são estas tristes memó-
rias deliciosissimas.
Por necessidade de desenfado, e pelo natural pendor do
costume vélho, versejava eu pois ; e tanto mais copiosamente ,
quanto, por entender, que nunca esses vérsos, nem eu, sahiria-
mos dos arredores d'aquella abençoada residencia , de S. Ma-
méde da Castanheira do Vouga ; e não tendo por isso , que os
acear, e arrebicar, para ólhos estranhos ; com todos elles , como
quer que viessem, me dava por contente. Versejava, e poetava,
(que muitas vezes ambas essas cousas erão) como as urzes flo-
rejavão pelas encóstas bravas do monte ; muitos d'esses fructos
silvestres, tambem já morrêrão ; muitos porêm, os conservei , e
guardo ; e, melhor amadurecidos do tempo, os irei (se a vida
para tanto der licença) offerecendo ao Público ; e para mim
tenho, que alguns d'estes meus regalos serranos , m'os ha de
elle acceitar de boa mente .
Depressa canção ânimos quebrados de desalento : acaba-
vão-se as horas , em que a phantasia, ou o coração , destillavão ,
espontâneamente, em métros faceis, e desambiciosos , os seus
devaneios, penas , ou affectos ; assim como as árvores dos bálsa-
mos os escorrem, não, quando se lhes pédem, senão quando
querem, ou Deos o quer por ellas : acabavão-se, digo , essas
horas, que, por affortunadas, são sempre as mais curtas ; e so-
bravão innumeraveis, e infinitas, que o enojo levaria de conta-
do, se por qualquer via lh'as não disputassemos huma, a huma,
como o pastor espavorido disputa ao lobo as rêzes do seu pro-
XII PRÓLOGO.
prio rebanho. Para lucrar para nós boa parte d'essas horas,
dei em trasladar para portuguez o meu Ovidio . Era o Dester-
rado do Ponto, quem nos vinha confortar no destêrro, supprir ヽ
com a sua imaginação as mínguas da nossa , e com os prestígios
de hum mundo, e tempo, fabulosos , consolar-nos das amarguras
verdadeiras da nossa idade . A minha traducção dos seus Amo-
res, que tambem algum dia verá a luz, e esta, que hoje offe-
reço, das suas Metamorphoses, nenhuma outra origem tiverão ,
nem podérão ter.
A 9 de Setembro de 1833 , pela vólta da meia noute , em
huma chóça de côlmo juncto á eira do Passal, por debaixo de
huma Nogueira grande, que ainda lá vivirá , lhe puz com gran-
de alegria o derradeiro verso : com a lanterna, que nos alu-
miou esse bom serão, fizemos vólta para casa, que já toda dor-
mia, e dormimos huma regalada noute . Agora, já o Compa-
nheiro d'aquelles meus ócios, tão cheios , tão estudiosos, tão
agradaveis, me espéra n'outra parte, onde eu sei , que , como
bom irmão, me deseja ; e o eu sabel-o de fé, me restituio co-
ragem para levar por diante , e desajudado d'elle, a carga da
vida, por este valle de contínuas subversões, e transformações,
qual a qual mais dolorosa.
Quasi preenchi portanto para com este Poema , sem 0
cuidar, o Horaciano Preceito , que, para aperfeiçoamento das
óbras, determina, se não publiquem, antes de por cima lhes
resvalarem nove annos ; já lá vão oito (¡ e bem carregados de
despojos meus de todo o género ! ) desde o poetico serão por
debaixo da minha Nogueira . Faltando só, que por este largo
período, limada, e brunida, a relimasse, e rebrunisse, por dez
vezes ; Perfectum decies non revocavit ad unguem ; apenas
agora, huma só o pude fazer. O que deixo apontado ácerca
da história d'esta minha versão, explica, e defende, o amor ,
que, não dissimúlo, lhe tenho ; e de que , porventura , alguma
vez poderei dar móstras. Esta óbra de Ovidio, para todos agra-
davel, ficou sendo para mim alguma cousa mais, do que hum
livro ; he huma relíquia, de pessoa, e tempo , de que, em cem
annos, me não esquecêra hum dia.
Não desbaratarei agora papel , em explanar, e miudear,
as regras da arte de traduzir, segundo a eu entendo : o como
a eu entendo, bem declarado vai , aos que desejarem de o sa-
ber, no modo, como a pratico : hum tratado d'este género ,
não seria fóra de propósito, em tempo, em que tudo se traduz ;
mas em tempo, como este, em que todos traduzem, inteiramente
ficaria escusado ; demais, o que n'elle viria pedindo, seria tan-
PRÓLOGO. XIII
to, que os néscios, que têem o traduzir pelo debique mais co-
mesinho, de quantos ha, por nenhum caso me perdoarião o
desenganal-os ; e , por derradeiro, matéria era essa mui larga,
para se encolher, e encaixar, em hum, ou dous parágraphos
de prefacção : assim, limitar-me-hei , por esta parte, em dizer,
que he a presente traducção , a mais rigorosamente fiel , que do
latim-latim , para portuguez-portuguez , e de versos-versos 9
para versos, tambem versos, se podia fazer ; chegando o escrú-
pulo ao ponto, de, até em nomes proprios de cães, se conser-
varem as quantidades sillábicas do original ; salvo nos rarissi-
mos casos, em que o uso geral, e constante, dos autores, as
havia já adulterado em nossa lingua, como Sémele, que nin-
guem cá reconhece, senão por Seméle ; ou nos casos, muito
mais raros ainda, em que alguma attendivel razão , de equívo-
co, ou cacophonía reprehensivel, aconselhava o desvio, por
acautelar o ridiculo ; assim, por exemplo, ao manjar dos Deo-
ses, vai o nome de ambrosía, emvez de ambrósia, etc.
Hum, apparente, defeito, que muitos leitores taxarão n'este
Poema, (assim como em quasi todos os antigos) he a escusavel
escuridade, que provêm, de, muitas vezes, se não designarem
os personagens pelos seus nomes proprios , mas pelos possessivos
de seus pais, avós, e mais remotos ascendentes ; pelos de suas
terras, ou rios ; e , alguma vez, pelos de suas façanhas, ou al-
gumas outras circumstancias pessoaes : d'onde resulta , haver
Deos, ou Heróe , que, sendo hum, e o mesmo, para os que lhe
bem sabem da vida, mas, apparecendo a revézes sob diversos
apellidos, se representa diverso, aos que não o conhecem ; em-
baraçando-se, por esta maneira, ou, pelo menos , pegando-se , o
fio do narrar, que suavemente se ía dobando . Este antigo cos-
tume, mui conforme com o espirito, indubitavelmente, aristo-
crático, d'esses tempos, e sem nenhum inconveniente para en-
tão, pois que todas estas histórias, e fábulas, que hoje temos
nos diccionarios, como em museus , andavão vivas, e correntes,
na noticia de todos , requer hoje ao traductor summo tento, e
discrição, no seu uso ; pois que a primeira obrigação, de quem
escreve , he fazer-se entender ; e dos leitores , não se ha de exi-
gir, nem esperar mais, do que elles têem, ou pódem ter. En-
tendi portanto, que era dever meu, fazer o mesmo , que o meu
Autor, sem nenhuma falta, haveria feito , se em meu logar,
tempo, houvéra escripto . Traduzi-o , quanto soube, litteralmente,
n'essa maneira de particularisar os sujeitos, ou terras ; mas,
em todos os lances , em que se me antolhou, que hum curioso
de me leitura poderia ficar embaraçado , ora ladeei, e me
XIV PRÓLOGO.
desviei, sem fugir, ora accrescentei huma pennada, que desfizesse
a dúvida. A quem me houvesse de taxar isto por infidelidade,
responderia, que a maior , e peior, de todas as infidelidades, he
a fidelidade servil ; he deixar inintelligivel, o que o autor ha-
via querido fazer, e havia feito , para se entender ; he roubar-
lhe suas graças, e galas, que , em deixando de ser percebidas,
logo deixão de ser taes. Finalmente , não são as palavras, as
que se hão de verter, mas os pensamentos, conceitos, e affectos :
apenas todas estas cousas déstes pontualissimamente, desempe-
nhastes-vos do vosso dever de intérprete. O vosso Autor só pro-
curou, e escolheo vocábulos , e frases, em sua lingua, para
lograr esse fim ; se outro tanto fizéstes na vossa, e outro tanto
conseguistes, fizéstes tanto, e tão bem, senão melhor , e muito
mais façanha , do que elle.
Em todo o demais , não houve eu por lícito discrepar hum
ápice. Encontrei muito luxo, que importaria podar ; e abstive-
me : algumas vezes vi rareiras desaproveitadas , onde me não hou-
véra sido muito difficil semear mais poesia ; e tambem me
abstive dei com muita formosa desnudez , que, em óbra mi-
nha, houvéra vestido, ou, quando menos, vellado ; e deixei-as ;
tendo para mim, como já para si tivéra o religioso, e missio-
nário, Almêno , que em óbras de tal vulto , e antiguidade, não
era permittido fazer taes reformações ; ou tudo d'ellas se ha
de dar, ou nada : a operação de Orígenes, feita por hum en-
genho em si proprio , bem he para ser louvada ; mas igual am-
putação, feita ao vélho Saturno por seu Filho , degenéra em
sacrilega barbaría : quem desterrou nunca dos jardins as an-
tigas, e despidas, estátuas, das Vénus, das Náiades, dos Bac-
chos, dos Hércules, ou dos Athletas ? ¿ ou quem lhes poz já-
mais cendal de folhas, que logo o não soubesse derrotado pela
primeira mão, que passou ? . Demais , estas nudezes das Meta-
morphoses, com serem muitas vezes completas, respírão sempre,
se me não engano , e talvez só á conta da sua antiguidade em
relação a nós, hum não sei que.... não de pureza , mas de
desimpureza, que, facilmente, lhes grangêa vénia isto , pelo
menos, sinto eu, em minha consciencia, que na maior parte das
novellas, que se hoje costumão , e se traduzem, e se lêem, e se
recommendão, sem dizer porventura tanto, todavia se exprime ,
e significa, muito mais , e muito mais empapado de tentação,
do que no proprio trêcho didáctico do fim do livro 3.º da Arte
d'Amar; na digressão erótica do livro 4.° do Poema de Lucre-
cio; nos epigrammas de Catullo, e Marcial ; no Burro Aureo de
Apuleio ; no Centão nupcial de Ausónio ; ou no Satyricon de
PRÓLOGO. XV
Petrónio ; ou no Daphnis e Chloe de Longo. Autores ha, d'es-
tes a la moda, que não quero aqui nomear, cujos heróes, e he-
roinas, com todo o seu trajar, são , a respeito da Sálmace e
Hermaphrodito, da Vénus e do Marte, d'este Poema, o que
he huma meretriz coberta de enfeites , en comparação de hum
infantinho nu, que, mui beijado, e rebeijado, passa dos braços
de sua mãi aos de todas as matronas , e donzellas, circumstan-
tes . Tirai-me diante as protérvas , e desaforadas , obscenidades ,
ouvidas, ou vistas, declamadas, ou pantomimadas, em hum
theatro essas misérias, não descontadas por algum grande ras-
go de hum mérito incontestavel, seria absurdo o querer compa-
ral-as com algumas desenvolturas de hum Poema de quasi dous
mil annos, e, por tantas outras razões, venerando . No livro ,
lê, quem quer, e lê, o que quer : o máo, se o ha , não cahe
sobre o leitor, como bombarda ; ou, se como bombarda vem ,'
pelos ares se lhe vê luzir o rastilho , e se lhe sente o zunido,
ha sempre tempo de desviar, e escapar ; quem por esses passos
se entranha, ou sabe, que n'elles não corre perigo, ou, mui de
propósito o procura ; e , para quem, de propósito, procura o pe-
rigo, não he só nos livros, nem he nos livros, que se elle en-
contra ; no theatro , não he assim ; ahi, vos espérão , embosca-
dos, á falsa fé ; ahi, contra a vossa vontade, e sem o terdes
previsto, fazem chover sobre vós os fructos pestilenciaes da
árvore da sciencia do bem e do mal ; ahi, a virgem he obriga-
da a apprender ; e, se , por ainda virgem até no ânimo , não
entende a lição , que o poeta devasso, entre o vinho e o fumo,
preparou para as suas contubernaes, os risos, os ólhos, os ap-
pláusos, de espectadores ainda mais grosseiros que esse poeta,
lh'a explicão, lh'a commentão, è, constrangendo-a, porventura,
a córar, a denuncíão, como sabedora , do que, huma hora an-
tes, não haveria podido adivinhar. Mas este thêma , aliás pon-
deroso, e fecundo, não he para aqui.
A ultima confissão , que deixo feita, he irrefragavel abôno,
do quanto diligenciei manter intacto o meu vóto de profissão,
de traductor leal. O livro ahi está ; e elle que o próve : averi-
guai-o com o latim ; que não ha mais dizer. Em gosto levava
eu, e por isso mesmo, reimprimil-o aqui, apparelhado, e con-
frontado, com a traducção ; e, porque outras razões em contrá-
rio m'o prohibírão, contentar-me-hei com apontar aos curiosos,
se os houver, que desejem fazer tal acareação , que a edicção ,
a que geralmente me encostei , foi a de Borchardo Cnipíngio ;
que, dentre muitos, e muito antigos códices das óbras de Ovi-
dio, accuradamente comparados, soube escolher, e quasi sempre
XVI PRÓLOGO.
com acêrto, a sua lição, que appresentou castigada, e, quanto
possivel , limpa de êrros typographicos : quando porêm aconte
cer, que entre esse têxto , e o que eu digo, se não encontre
conformidade ; entre as variantes das nótas acharão, o que eu 1
preferí : e a razão , porque o preferí, os poetas , e familiarisa-
dos com este Poeta, facilmente a afinarão . A isto, peço eu,
que se attenda muito, se, lá para o diante, e depois de minha
morte, julgarem conveniente reimprimir esta versão , com o
têxto em correspondencia ; o que , segundo o latim vai desappa-
recendo, nunca terá de acontecer.
A linguagem consagrei particularmente hum grande esmê-
ro ; e tanto maior , quanto mais desamparada , mendiga , e es-
farrapadinha , a vemos hoje correr por toda a parte , á vergo-
nha , ou sem vergonha , de seus naturaes. Grande sandice , e
míngua , seria , se , trasladando hum monumento clássico , e
latino , o convertesse na mascavada aravía , e babel , dos tra-
duzidores de novellas francezas, e outros quejandos ; os quaes,
parte por culposa ignorancia das riquezas do nosso idioma , e
parte por se inculcarem , lidos , e sabidos , em francezías , de
que , porventura , pouco mais saberão , nem por êrro acertão
jámais de escrever frase, que em ouvido portuguez não destôe ,
e o não martirise. Bem hajão os pouquissimos , que ainda não
perdêrão as barbas de vergonha , e dizem , batendo rijo com a
mão no peito, onde sentem hum coração ; - portuguez sou, de
portuguez me préso ; — bem hajão elles , que em seus escriptos
ressuscitão , e enriquecem , e vingão , a lingua , de Camões
e Ferreira , Sousa e Mendes Pinto , Vieira e Manoel Bernar-
des : as suas obras são protéstos , (já póde ser que inuțeis por
agora) contra a péste d'esses malhadeiros gloriosos , a que cha-
mamos gallicistas ; prostitutos propagadores de huma praga lit-
terária , como de huma praga fisica o são as mulheres de máo
viver. Essas óbras , sobrenadarão , como arca , n'este Dilúvio,
de madraços , e parvoices ; e , quando a maior fôrça d'elle
houver passado , d'ellas sahirá a repovoação dos vocábulos , e
frases , e música , dos portuguezes , para a terra , que portu-
gueza , ¡ e tão portugueza ! fôra sempre ; e esse tempo ha de
chegar ; porque , para derrotar a óbra de dez mil néscios , pó-
de , muitas vezes , bastar a penna de hum só autor , de génio
e fecundidade , profundo e brilhante , sabedor e creador : por-
que hum tal homem , he sempre popular ; méstre , a quem to-
dos escutão ; exemplar , com que todos forcêjão de conformar-
se : e esse homem , cuja vida Deos dilate , bem sabemos todos
ks , que já nasceo , e nasceo gigante.
PRÓLOGO. XVII
Aqui rirão , a bom rir , os que da coutada d'esta lingua
têem de véras feito , o que , em outro sentido , se dizia , roupa
de francezes ; e , entrincheirados no escantilhão do diccionario
do nosso Filinto , já agora por elles concluido , e autorisado ,
repetirão , mui anchos , para comsigo , como aphorismo , e
evangelho seu , aquelle rifão dos nossos maiores , que , antes
caranguejo mouro , que portuguez de ouro : pois , que o digão "
e rião muito embora : se , o que assim escrevem , lhes rende ;
he aproveitar o lanço , e fazer veniága , emquanto pela praya
anda alarvía de cafres , a escambar o seu ouro por cascaveis
e avellorios : mas deixemol-os ; assim elles nos fizessem outro
tanto ; e fallemos , do que nos importa.
Foi o meu empenho , (outrem dirá , se o consegui) dar
esta óbra em tão pura , castiça , e corrente , linguagem ; que ,
se do seu nativo latim houvesse , aqui , ou acolá , de desdizer,
na geralidade comtudo se lhe aproximasse. Os que sabem a
fundo como o latim , e o portuguez , são dous instrumentos ,
ambos mui cabaes, 'em melodías, e harmonías, e mui copiosa-
mente registrados , serviçaes , e obsequiosos, não ignórão, que,
pôsto muito se parêção entre si á primeira vista , singularmen-
te différem todavia , não só no modo de soar , senão tambem ,
no de ser tangidos : pelo que , a sólfa do pensamento , ou affé-
cto , composta para hum d'elles , algum tanto se esquiva a ser
trasladada para o outro ; e nem de todo se lá mette , sem al-
guma québra. He logo mistér , que , onde se não póde , ou se
não sabe , dar , inteira , e pontual , correspondencia , se des-
conte , e escurêça , a falta do nosso idioma , com outras rique-
zas , que elle mesmo para isso nos subministra ; assim que en-
tre o traductor, e o autor , se dá huma contínua lucta ; (quan-
do do autor he o traductor digno , o que nem sempre aconte-
ce). Tem por si o autor a vantagem , de haver escolhido , e
preparado , o terreiro , que lhe convinha ; de ter n'elle appa-
recido primeiro , a grangear favor ; e , de ter sido ahi provo-
cado pelo seu antagonista : a primeira d'estas tres circumstan-
cias , lhe confére melhoría pessoal ; as duas ultimas , favor
dos espectadores juizes ; que , se a elle lhe não accrescenta a
coragem , indubitavelmente a diminue á parte adversa : póde
logo esta, com bom direito, para igualar tantas desigualdades,
soccorrer-se a muitos géneros de indústria , (sancadilhas , ou
trêtas, lhes chamão os luctadores) entre as quaes tem o primei-
ro, e melhor logar, a de metter de repente todo o cabedal das
proprias fôrças , logo depois que as alheias nos vergárão , afim
de tambem , alguma vez , as assoberbarmos : quem, o que per-
XVIII PRÓLOGO .
de em hum momento , o resarce logo no seguinte , senão he
vencedor , tambem , á fé , que não he vencido . Mas , para es
ta esgrima de Anthêo com Hércules , para das quédas tirar ac
crescentamentos de brios , ¿ quão grandes cabedaes , e mórga->
dos, de pátria linguagem, não he preciso possuir, e ter a mão ?
E, se isto he , para verter em portuguez o semiportuguez do
latim, que não será já, para investir com o francez, idioma,
que por todo o seu feitio , geitos , e manhas , e trajes , resis-
te , estrebucha , e d'entre as mais fortes , e adestradas mãos
escapa sempre , como hum Prothêo ? E comtudo , ¡ louvar a
Deos ! que qualquer pobrête vos dá hoje em Setembro , nos
prélos de Lisboa , a novella , que dos de Paris sahio escorren-
do nos fins de Julho . E assim se nos vai , de főz em fóra , a
lingua e não ha huma voz de legislador , representante do
povo portuguez , que portugueza sôe , a pedir remédio para tá-
manho estrago , em cousa de tanta monta , é tão nossa , e a
mais nossa , de quantas ha ; ¡ como se , depois da religião , e
dos bons costumes , e do socêgo publico , e da fama dos parti-
culares , não houvéra mais nada , contra que fosse crime o at-
tentar pela imprensa ! ¿ ¡ oh ! quando sobejará hum pouco de
policia , para chegar á republica litterária , que tão anárquica
vai , assolando os presentes , e ameaçando os vindouros ?! Es-
ta he a segunda denunciação , que de tamanha miséria faço :
se alguem sabe de impedimento , por onde tal consórcio da li-
Berdade com o juizo se não possa fazer ; sob pena de excomu-
nhão, o declare ; mas, sob a mesma pena, o não impéção ma-
liciosamente . Retrocedamos.
Persuadido , e convencido pois da obrigação , que a todo
6 traductor incumbe , de saber , quanto possivel , e empregar ,
opulentamente, na sua traducção, a lingua vernácula , diligen-
ciei , quanto em mim foi , satisfazel-a : tambem aqui as expli-
cacoes tinião de ser largas , e poderião aproveitar : mas , te-
mos ainda fitiito onde ir ; e as jornadas pelas regiões da typo-
graphia são caras , e não conduzem do Perú ; e todo o viajar
de poeta , he peregrinar de romeiro , com grande cabedal de
Cantigas , devoções , e conchas , que , em terras de brancos ,
não são dinheiro , como he b zimbo na Cafraría. Resúmamos-
nos portanto . Foi , n'esta parfe , o meu difficil empenho´, con-
ciliar figua portugueża , de lei , e bons quilátes , com summa
clareza , &é elegancia , quer de estilo , quer de versificação .
Tres censuras me virão de tres espécies de críticos. Dirão
franchiôtés , que não he o livro , como os elles costumão ,
que não faz por não tir esmaltado de certos dizeres francezés ,
PRÓLOGO. XIX
que são os unicos apresentaveis hoje em companhia de bom tom,
de gentes de espirito , e de pessoas como he preciso. Dirão mo-
dernistas , que não achão graça a vocábulos affonsinhos , res-
suscitados , e mettidos de gôrra com os dos nossos contemporâ-
neos. Finalmente, quinhentistas, rançosos, dirão , que em seus
clássicos , e diccionarios, não encontrão muitos dos termos, que
por aqui a cada passo lhes surdem debaixo dos pés , como co-
gumellos depois de noute de chuva. Aos tarellos , só respondo,
que ¡ oxalá ! essa pécha a ponhão elles sempre , a quanto eu
escrever. Aos modernistas enjoadiços , que , onde tão sobêjo ,
e tão consentido , anda o uso de bárbaros neologismos , e est
trangeirices semsabores , não se deve estranhar , que hum ami-
go de sua lingua , forcêje por lhe restituir parte dos havêres ,
com que se já vio tão abastada ; e que , só por descuido de
seus administradores , e feitores , andavão perdidos ; que , já
que a escusadas novidades se tem a porta aberta , dêem por
ella entrada a alguma pouca antigualha , que não merecia de
ter morrido ; mas que , pois desapparecera , e agora volta ,
tambem como novidade , quando por mais não seja , a pódem
admittir que isto mesmo fizerão , com prudente sobriedade ,
muitos dos mais extremados autores ; taes como dous, que hou+
ve , muito estimados , em huma terra , chamada Roma , hum ,
por nome Virgilio, outro, Horácio ; o qual tambem disse , mui-
las palavrus devem renascer, que já erão finadas : e, por derra-
deiro , que tão parco me portei no exercicio d'esta prerogati
va , concedivel a todo o escriptor sisudo , e de consciencia
que, se algumas raras vezes me valí de palavras passadas, foi,
quando entendi, que erão necessárias, ou, pelo menos, uteis ;
por bellas, ou por expressivas, dignas de ressurreição ; o que,
nem a todos os archaísmos , acontece e nunca as puz , senão
em logar , e de modo , que o contexto do período lhes decla-
rasse , á justa , ou proximamente , a significação . Aos contrá-
rios d'estes , aos quinhentistas mofinos , tacanhos , e apoquen-
tados , responderei , que , pôsto haja thesouros nos seus divros ,
em nenhuma parte dos Evangelhos está escripto , que d'elles
para cá se acabasse a faculdade de augmentar, e dilatar a lin-
gua que esse privilégio exclusivo, dado aos mortos, he a mais
absurda injúria contra os vivos ; que já o seu Horácio, ha des-
oito centos de annos , o prégava , quando dizia —¿ que licença
outorgará a mossa gente a Sicilio, e Plauto, que a négue a Fir-
gilio , e Vario? Se eu posso grangear para este idióma algumas
poneas ulfáius , ¿por que m'o hão de ter a mal , quando as nos-
gos vélios, Catão, e E’muio, additárão a linguagem pátria com
XX PRÓLOGO.
huma quantia de expressões novas ? lícito foi, elicito será sem-
pre , continúa o mesmo poeta , bater d'esta moeda litterária ,
comtanto que moderno seja o cunho , que se lhe grave. A
esta concessão de Horácio, só poria eu huma restricção ; e he,
que tal direito de cunhar moeda , não compéte , senão aos que
possuem metal fino, de que a fação ; e este metal fino, não he,
nem póde ser , outro , mais do que o estudo , e conhecimento
dos bons autores , e índole da lingua , que se pretende opulen-
tar. Que hum paralvilho , d'esses , que nem lêrão , nem sabem
ler , mas querem ser lidos ; não pago de nos eivar dos seus
francezórios , se mettesse , de mais a mais , a sacar Minervas
do seu cérebro vasio , caso seria esse , para até as estátuas dos
santos , que soffrem tudo , e não riem nunca " se virem abaixo
com riso.
Tudo , o que innovei , e tudo , o que renovei , em lingua-
gem , ahi está , e ahi fica ; de tudo poderia dar satisfação , se
tivesse paciencia para notas á Filinta ; mas, como essa me fal-
ta , os meus atrevimentos , que se defendão por si . Se alguns
pegarem, e , levados a melhores escriptos, ganharem autorida-
de, e crédito, será esse hum bom serviço : se não forem ávan-
te , passarão por velleidades ; e serão mais alguns bons desêjos
malogrados ; que isso teve sempre comsigo o mundo, nem todas
as flores arribão a fructo.
Quanto ao systema , que adoptei , de Orthographia , os in-
telligentes da matéria , facilmente , descobrirão as razões , em
que se elle funda ; para os outros , todas as explicações serião
escusadas.
Quanto aos accentos , vão , talvez , prodigalisados : mas 9
como elles a nada prejudicão , e a muitas pessoas , indoutas ,
ou estrangeiras , pódem , frequentes vezes , livrar de cahir em
syllabadas , melhor he , que d'elles se accuse sobêjo , do que
míngua.
A pontuação, que ahi vai, taxal-a-hão alguns de minucio-
sa : eu, não a appresento , como exemplar , mas como proposi-
ção. O meu intuito , n'esta parte , foi ajudar , a intelligencia ,
e a declamação : a toda a pontuação grammatical, (que já não
seria pouca) accresceo, toda, a que eu chamarei recitativa : se
a idéa parecer bem aos juizes competentes , certo he , que pe-
gará a móda , mais cedo , ou mais tarde ; se descontentar , he
hum livro mal pontuado ; por onde não virá nenhum mal ao
mundo. Mas , porque esta matéria , com parecer cifrar-se toda
em pontinhos, não deixa de ter, lá por dentro, sua substancia,
e os desattentos , sentenceando-a á revelía , a poderião vir a
PRÓLOGO. XXI
sentencear mal ; bom será , que não vá , desapercebida de al-
guns apontamentos , para sua defeza ; que prudente aviso he ,
em quem ha de sahir a pelêjar , levar já nos arções , de pre-
venção , algumas gôtas do bálsamo de Ferrabraz , se o tem ,
em que se póssa fiar.
Pela pontuação grammatical , que responda a Grammati-
ca ; e torne por sua honra : se ouvir chamar-lhe preluxa , re-
dargúa , que mais preluxa podéra ainda ser , se , por exemplo,
para seguir á risca o rigor de suas regras , se houvéra sempre
pôsto huma virgula , logo immediatamente antes de qualquer
relativo ; o que , suppôsto o usárão muitos , algumas vezes se
evitou aqui , por contemporisar com melindrosos ; v. g. a pagi-
na 124 , verso terceiro , ―- Nem céde , ao que separa as Ursas
ambas ― - onde o stricto grammatical requeria, — Nem cede ao ,
que separa as Ursas ambas . —E , a final , clame , desaffogada-
mente , que , sendo , ella Grammatica , o alicérse de toda a
Rhétorica , e Lógica , a primária condição de todo o discurso ,
e a indispensavel argamassa de todo edificio de sciencia, nada
ha mais miseravel, e insolente ao mesmo tempo, do que o des-
prêso, em que hoje, commummente , a têem ; que, a cada pas-
so , a esfólão , e desconjuntão , escrevendo , imprimindo , oran-
do , legislando , e governando : e , que , pois imprensas , par-
lamentos , e secretarias , se não pódem recambiar para a escó-
la , bom he , que ao menos pelos signaes , e compassos da pon-
tuação , se acostumem os ólhos , dos que a não sabem , a ir ,
pouco e pouco , reconhecendo-a , e aprendendo-a isto diga el-
la , e muito mais , a que me eu não afouto ; que eu justificarei
ess'outra pontuação , a que , pouco ha , chamei recitativa.
Nada havia , em verdade , mais fastidioso , que a pauta-
da , e ronceira , cantiléna , com que se costumavão declamar
entre nós os versos ; era huma espécie de cantochão lúgubre ;
quasi tão adormentador , como o dos italianos . O mesmo ía ,
pouco mais ou menos , por todas as outras linguas. Cada Poe-
sia , tinha a sua lamúria nacional ; e , o que peior era , huma
só lamúria para todos os diversos géneros de Poesia . Esta mó-
da , tão prejudicial aos effeitos , que devião ser tão variados ,
como os pensamentos , e affectos , fôra , provavelmente , come-
çada pelos proprios poetas , que no exprimir o bem medido de
seus versos, presumião dar d'elles mais alta, e vantajosa, opi-
nião dos poetas , passava aos ledôres , se arraigava no povo ;
e, a pouco andar , confirmada pelo uso , devia parecer , não
Bó boa, senão natural, e, como quer que fosse, conforme com
a índole da lingua, ou d'ella nascida . Os versos mais bem fei-
XXII PRÓLOGO.
tos , mais flexiveis em si mesmos , sahião como inteiriços , on
inteiriçados ; e os conceitos , por elles desigualmente reparti-
dos , procedião sem differença , quanto ao movimento , sempre
de choto , e sempre hirtos. Era isto hum peccado contra natu-
reza ; tinha de passar , logo que ella se tornasse hum objecto
de estudo , e culto ; e a verdade , huma precisão , e hum de-
ver : tinha de passar , como as anquinhas , os pós , os signaes ,
e as unluras : e já , de feito , passou em algumas partes . Se
ainda hum declamador italiano vos psalmêa hum madrigal ; o
comediante , e o litterato , francez , vos convérsão , e pálrão ,
a tragédia ; pondo tanta indústria em disfarçar toda a contex-
tura métrica , trocando as guardas ás páuzas , e escurecendo
os consoantes , quanta já Racine , ou Boileau , porião no en-
casar as rimas , e no talhar os hemistychios . Mas , porque o
fugir de hum vício , muitas vezés , conduz ao contrário , a tan-
to ponto subio , ou desceo , entre elles , este acintoso desman-
cho , que bem se lhes póde perguntar , porque razão metrefi-
cão : se o rythmo , o número , e as artificiosas correspondencias
das finaes, tanto se hão de esconder , que desapparêção , e não
dessemêlhem da prósa , ¿ para que he , emvez da prósa , que
tão facil, e caudal , se arreméça, escrever por humas medidas
apertadas , que sempre , aqui , ou acolá , tólhem , necessaria-
mente , a nativa feição dos pensamentos ? Que se condemne a
declamação antiga , bem está ; n'ella , os versos andavão com
a ridícula gravidade de hum congresso de mandarins ; fronte
alta , passos contados , ademães uniformes , e sabidos ; mas ,
condemne-se tambem huma declamação, em que os versos , co-
mo hum borborinho de canalha em arraial de Espirito Santo ,
´se confundem , se empúrrão , se azôinão , se perdem , ninguem
os reconhece , nem os saúda , nem os festeja , nem os detem
para os contemplar ; porque tudo no seu exterior , e modos ,
he commum , he plebêo , e he raso . Entre a rudeza villă , e a
fútil magestade chineza , ha hum meio ; e n'esse , como o sai-
bão tomar , consiste necessariamente , o bello . Hão de os ver-
sos em sua recitação assemelhar-se aos pantomímos de ambos
' os sexos sobre o tablado ; cada hum , ha de fazer os movimen-
tos conforme o seu papel, faceis, e graciosos, diversos dos de seus
visinhos , mas , afinados com elles , e , sem esforço , nem appa-
rencia de cálculo , calculadissimos desfollando hum malme-,
passée mollemente
como pastorinha , que vai pensativa ,
quer , pela beira de hum regato ; outro , corra , e salte , ccomo
sáfyro ; este, se requebre , como Nympha , que dansa , e quer,
que sua formosura e enfeites sejão admirados ; aquelle , se pre-
PRÓLOGO. XXIII
cipite , e bravêje , como rival , que se vai após a vingança
quaes , arremédem o ruidoso tropel das Naiades caçadoras ;
qual , a valente gravidade de Pallas ; aqui , os brincos folga-
zões da infancia ; álem , o barafustar dos remórsos ; mais lon-
ge , o somno pacífico do ancião , ou a solemne immobilidade
do cadáver ; e então a declamação , tornada perfeita arte , e
sacando de dentro da Poesia huma poesia nova, nos arrastará,
como hum feitiço irresistivel . Ora entendendo a possibilidade
e a necessidade, d'isto ; e desejando, por minha parte, concor-
rer para a destruição da nossa tradicional , e monótona, lamú-
ria métrica , he que me pareceo accrescentar a pontuação da
syntaxe , com outra , que , partindo , por todas as junctas dos
pensamentos , as frases , e obrigando o leitor a essas páuzas ,
todas significativas, e uteis, lhe furtassem o tempo de ir infal-
Jivelmente bater com humas notas mais agudas em certas syl-
labas contadas. Os versos , que assim lhes dou ahi pontuados ,
assás têem de devida música em si mesmos , para ficarem ver-
sos , e se reconhecerem apezar de não medidos. Entretanto ,
repito, isto não he mais, que huma proposição ; ou antes huma
experiencia se como experiencia não surtir effeito , claro he
que , tambem como proposição , será engeitada se porêm se
reconhecer , como espéro , que assim se entende , e se lè , me-
lhor ; não farão pequeno beneficio ás letras pátrias, os que ado-
plarem o alvitre , e o seguirem , até que apparêça hum novo
e mais cabal , systema de pontuação.
A metreficação, pois que n'ella locámos, não passará sem
advertencia. Traduzir poeta, como Ovidio, que he, todo elle,
hum favo , em versos , como os de Filinio , nos quaes , appli-
cando-lhes , o que de outros dizia hum antigo , se não acha
hum , em que se não descalavre huma náu da India de Portu-
gal , ou huma maona de Florença , se chocarem com elles , me
pareceo, que de todas as infidelidades possiveis seria a maior,
e a mais escandalosa . He a música do rythmo huma parte da
Poesia , e tanto he obrigação sua a lisonja des ouvidos , como
o apascentamento da imaginação . Metreficar pois , só para o's
ólhos , com regrinhas desiguaes , e , deixar os ouvidos , ou em
jejum , ou amargurados , que ainda he peior , he sincar no
ba ba do officio ; he resvalar para baixo de prosador ; he pä-
rodiar , mascarar , e esfarrapar 9 o autor , de que se pretende
dar idea ; he perpetrar hum maleficio litterário , que doutos ,
e indoutos , hão de , indispensavelmente , condemnar ; e o des-
prêso , o esquecimento , e as tendas , punir. ¡ Livrar de verte-
dores , ou invertedores, de raça de Medusa que tudo , on-
200
XXIV PRÓLOGO.
de puzérão os olhos, o matão, e petreficão. Este, que he hun
dos maiores perigos , que n'huma traducção fidellissima se pó-
dem correr, foi , por isso mesmo, hum dos meus principaes cui-
dados centenares de versos houve , (não me corro de confes-
sal-o) centenares de versos , a fio , que fiz , e refiz huma , e
muitas vezes ; com que suei , e perdi noutes, (¡ bem perdidas, e
reperdidas ! ) antes que acertasse em os afinar pela melodía do
têxto latino . A liberdade , com que tantas vezes tenho, em pró-
logos de outras minhas óbras , disciplinado a minha musa , al-
guma licença me ha de agora deixar, para dizer virtudes, que
menos o são do seu talento , que da sua paciencia , e perseve-
rança . Para aquelles , outra vez , apéllo , que a fundo sabem
o latim , e o portuguez ; que digão elles , se , attentas as diffe-
renças de melodía das duas linguas , resultado , em grande
parte , dos hypérbatos , e ellipses , muito mais atrevidos , entre
os antigos , do que entre nós , se , attenta a muito maior mar-
gem, que ao poetar concedião a amplidão , e ensanchas do he-
xâmetro, do que a pouquidade, e apêrto, do hendecasyllabo, o
ficar traductor portuguez hum furo abaixo de autor latino quan-
to á harmonía , não he já , por boas contas , excedel-o em mé-
rito de difficuldade vencida ; e , se , em alguns passos , ponde-
radas sempre as mesmas difficuldades , a minha traducção não
órça pelo original . O que , pelo menos " me concederão , dous ,
ou tres , e ainda , porventura , quatro homens em Portugal ,
3k
he , que , pelo que respeita a harmonía imitativa , lances ha ,
em que o pequeno portuguez surtio mais , do que o grande ro-
mano se demando este louvor , he , só , porque a maior parte
d'elle , se m'o concedem , tem de recahir sobre esta formosa
lingua , que fallámos , e que podemos ainda fallar , e tão des-
presada corre de ignorantes , quanto sempre em honra foi tida
pelos doutos.
Alguns versos me cahírão de menos apuro mechânico, que,
por poucos , me teria sido facil reformar ; mas , de propósito ,
os deixo, onde estão ; por ser a Poesia, como a Pintura, que, 4
para realce dos claros, precisa de entremetter, a espaços, seus
escuros. N'este particular , mais nada accrescentarei ; pela
mesma razão , porque ja calei sobre a orthographia : para os
entendedores , supérfluas são as explicações ; para os outros ,
perdidas.
Até aqui hei dado conta succinta do meu trabalho. Se me
alguem requeresse , porque razão , contra o meu costume , lhe
não puz huma só pécha ; responder-lhe-hia , que bem tenho eu
por cousa de fé , que as ha de ahi haver ; ¡ e oxalá não sejão
PRÓLOGO. XXV
ellas tão poucas , ou tão pequenas ! mas que , se eu as tivesse
reconhecido , melhor houvéra feito , do que denuncial-as ; hou-
véra emendado : pois que, para a perfeição, nenhum sacrifício
poupei por esta vez ; nem de tempo , nem de trabalho , nem
de lucros ; nem , sequer , de saude ; e para a minha conscien-
cia tenho , que de todas as traducções , que d'este Poema vi
até hoje , nenhuma excede , nem iguala , a minha , em pontua-
lidade , e constante esforço , para dar o Autor retratado pelo
natural.
Das francezas , a de F. Desaintange he admiravel na ele-
gancia , mas livre : a dos Massac , pai , e filho , Raimundo , e
Carlos, tambem em verso , dedicada a Henrique 4.º , e impres-
sa em 1617 , com ser mais chegada ao texto , faz o effeito de
ainda mais affastada d'elle , pelo duro , e inculto , do estilo.
As em prósa , já não era preciso outro achaque , para as affas-
tarmos da competencia : a de N. Renouard , he fria ; a de Ba-
nier , recommendavel por seus preciosos commentários , ri-
queza , e luxo , de edição , he deselegante , apezar de exacta :
a do pseudo-Malfilâtre , feita sobre o texto do P. Jouvency ,
álem de castrada , he despresivel pela ignorancia do latim , e
nenhuma consciencia : a de Villenave , só rica pelo papel , e
estampas , parece óbra de rapaz de escóla , pouco versado ain-
da na latinidade , destituido de engenho , mas com boas dispo-
sições para charlatão. De duas italianas , ambas em outava ri-
ma ; a primeira , e em tudo primeira , que he a do Anguilla-
ra , he huma paráphrase , copiosissima , mas formosissima , de
grande invenção , graça , conceito , e estilo poetico : a de Fa-
bio Marêti , (que faz parte da versão italiana do Corpus Poe-
tarum Latinorum) he estirada , e prosáica. Das castelhanas ,
a do Licenciado Viana , em tercêtos , e outavas , he insulsa ,
derramada , infiel , sem estilo , sem cadencia , sem apuro de
rima , gallêga , na cara , nos movimentos , e até nos óssos ; a
de Antonio Peres Sigler em verso sôlto , e outava rima , he
humas vezes infiel , por diminuta , outras por paraphrástica , e
sempre insípida , frígida, e desafinada : a Bibliotheca Lusitana
menciona, Fábulas de Ovidio, traduzidas em outavas , e silvas
castelhanas, em estilo jocoso, por hum poeta nosso, por nome,
Jorge da Câmara ; inédito , que , diz , existia na bibliotheca
do Ex.m mo Marquez de Abrantes , e que eu não pude haver á
mão. Em portuguez , temos tres traducções em verso , mas to-
das incompletas ; a de Bocage , que só verteo algumas poucas
fábulas , de que logo fallaremos ; a de Frei José do Coração
de Jesus, que chegou, sem interrupção, até o verso 60% do Li-
XXVI PRÓLOGO .
Fro Quarto ; e a do P. Francisco José Freire , que , de todo
o Poema , só omittio , o que teve por mais livre. Ambos estes
religiosos , hum missionário , e de brancânes , o outro congre-
gado do Oratorio , e ambos metamorphoseados em poetas ,
primeiro, sob o nome de Almêno, (creio que Sadino) o segun-
ido, de Cândido Lusitano, não será fóra de propósito fazer aqui
-alguma justiça ; e principiemos pelo Cândido , por seguir o
costume dos tribunaes , que he deixarem para ultimo padecen-
te o mais culpado dos corréos.
A sua traducção das Metamorphoses, assim como a de al-
gumas outras óbras de Ovidio , tudo em verso sôlto, se conser-
-va manuscripta, e, porventura, authographa, na Livraría Pú-
blica da Cidade de Evora : á officiosa amizade do Sr. Rivara,
Dignissimo Bibliothecário d'essa Livraría , devo eu o possuir
huma cópia de tal inédito . Todo o seu merecimento se reduz
a huma linguagem mais pura , do que rica , e a hum sufficien-
te conhecimento do latim. Era Cândido Lusitano hum homem
sabedor , e trabalhador incançavel ; mas não hum poeta : al-
gum serviço fez ás pátrias letras ', para o tempo , em que vi-
veo ; mas , restituir-lhe a fama , de que então gosou , ' não se-
ria mais facil empreza , do que achar na excellente hospedaria
de M.me Delmastro a cella , onde elle dormio ; tudo o tempo
virou de avesso ; e das cousas , que ficarão soterradas nas rui-
nas " não são certamente as suas Óbras , as que mais falta cá
nós fazem o seu estilo he prosáico , e diffuso , ainda que na-
tural , e corrente ; e a sua metreficação , nem má , nem boa ,
que vem a ser a peior , de quantas se pódem fazer ; são ver-
sos, que parecem estar todos dormitando no limbo, e dão von-
tade de se lhes tocar a trombeta da ressurreição . Em todos os t
seus Quinze Livros nada absolutamente se me deparou , que
para a minha traducção se podesse aproveitar.´´
¡ Com Almêno , me valha Deos ! que não sei , como com
elle me hei de tomar ! O seu livrinho , anão , e éthico , he ,
para muita gente, hum livro de pêso, e veneração ; e deve ter
innumeraveis pregoeiros, pôstoque, provavelmente , ainda nin-
guem o lesse : por isto quero eu mal áquelle honrado Vélho ,
meu méstre , Antonio Ribeiro dos Santos , que tanto se deixou
cegar da amizade , que lhe professava , que no prólogo , que
The ajunctou , o poz , quando menos , par a par com o Sulmo-
nense : ¡he possivel , que o Traductor , não sem mérito , das
Ódes de Horacio ; o Latinista, profundo ; o Namorado da Lin-
gua portugueza, e tão seu correspondido, e mimoso ; o Poeta,
não creador , nem arrojado , masi brando , manso , cadente , e
PRÓLOGO. XXVII
tão claró ; hé possivel , que n'aquelle mesmo prólogo , que tão
suavemente escrevia , e , com o seu poetico nome , havia de
assignar , dissesse , perante o Mundo , as mais flagrantes injú-
rias contra Ovidio , que por taes se devem tomar , todos os re-
tumbantes encómios accumulados sobre Almêno ' pois eis-ahi ,
( tanto val a mentira em boca de hum homem de crédito !)
eis-ahi , o unico princípio da extraordinaria nomeada , de que
se tem gozado este livrinho ; o mais doudo , demente , e insí-
pido , de quantos , até hoje , hão visto a luz da estampa : crua
parecerá a expressão , ¿ mas, se nem cá, na Republica das Le-
tras, se ousar, huma vez, a dizer verdade, onde será já, que
a possamos encontrar ? He, repito, o mais despresivel objecto,
que jamais existio , de fama , d'aquella fama , a que eu não
sei chamar , senão pânica , e de que tantes exemplos cá temos
visto podia Almêno ser falto das galas do dizer , e do talen-
to de versejar agradavelmente ; que já , com mais galanteria ,
que absoluta justiça , tinha dito o nosso 'D. Francisco Manoel ,
que frade bom poeta , nunca o tinha visto : mas , o de que por
modo nenhum devia carecer , (afim de se escusar por traduzir
hum tal Poema , elle missionário , elle homem morto , ' amor-
talhado, e enterrado no êrmo , e traduzil-o , sem lhe cobrir ne-
nhuma das nudezes com a sua veneravel capa) o que era rigo-
roso dever seu possuir , e em gráo imminente , era o conheci-
mento do latim , e o conhecimento do portuguez . Mas o latim,
frequentes vezes lhe acontece o desentendel-o ; a medição do
hexâmetro , ignora-a redondamente , estropeando a cada passo
as quantidades dos nomes proprios ; e quanto ao portuguez ,
atropella as mais communs regras da sua construcção , e col-
locação , do que resulta huma tal escuridade , que nem sempre
com o proprio original diante dos ólhos se aclara : nem por
acaso , atina com o estilo poetico , parando sempre em charro ,
e enxacôco e o número , ou rythmo , que he huma das prin-
cipaes obrigações até da prósa , fallar-lhe-hieis arábigo , se em
tal lhe fallasseis . Abrí-o á sórte , e lêde-o ; que eu vos fio ,
topareis logo em verso , que não parêça , senão feito por paró-
dia , ou escárneo de entrado ; versos são , como os , de que di-
zia Gôngora , que antes queria ver-se com hum touro solto no
campo , do que ver , de palanque , hum só de taes versos sôl-
tos . Em summa , que do volume de Almêno , podemos , sem
escrúpulo , assentar , em que pêz ao seu eruditissimo Editor ,
que não só , não he bom por nenhum respeito , senão que he o
péssimo, que em tal género se podia fazer : he sandice de vin-
te quatro quilátes ; he monstro de musêu litterário , para o qual,
XXVII PRÓLOGO.
ainda não houve Linneo, que inventasse nome . Nem hum ver-
so , nem meio verso , de todo elle , me foi tambem possivel
adoptar ; ¿ e quereis saber, o porque ? Porque da láia, dos que
elle , com tanta fadiga , compunha , os faria eu , ou qualquer ,
com tanta velocidade , que o traduzir assim todos os Poetas la-
tinos , á larga caberia n'huma curta vida , com tanto que hou-
vesse tachygrapho , capaz de seguir tal chôto de Pégaso : e ,
para que se não julgue isto em mim fanfarrice , ahi vai , de
improviso , a continuação do Livro Quarto , desde verso 602 ,
onde elle parou ; confrontai-a com o que precéde , e, se enten-
deis de lavor poetico , confessareis , que lhe não faço injúria.
A correspondencia na minha traducção começa na pagina 206,
no undécimo verso . -

Mas a ambos comtudo grande o néto


Consolo da mudada fôra fórma :
A quem a debellada honrava India.
A quem com seus a Acháia postos templos
Celebra . Só da mesma Abanciáde
Origem produzido resta Acrísio,
Que dos muros affaste da Cidade
Argólica ; e levou contra o Deos armas ;
E geração não julga ser de Jove.
Nem porque ser julgaya Persêo raça
De Jove ; o qual da Aurea Dánae chuva
Concebeo . Porêm logo a Acrisio (tanta
Da verdade a presença) ter violado
Tanto o Deos, como pêza ter o néto
Desconhecido . Já no Céo hum pôsto
Está e o outro do vipéreo espólios
Monstro trazendo o ar carpia de azas
Tenro, que assás rangião . Como sobre
Lybicas vencedor areas penda,
Da cabeça sanguíneas gorgonéa
Gôtas cahírão, que o chão logo excéptas ,
Em vários dragos animou. De cóbras
Portanto he região infésta aquella .
D'alli pelos discórdes ventos sendo
Pelo immenso levado ; a esta banda
Se leva, e áquella , a exemplo de huma nuvem
Aquosa e do alto ar despresa as terras
Seductas, e por cima vai voando
De toda a bolla. Tres vio vezes Arctos
PRÓLOGO. XXIX
Geladas, braços tres de Caranguejo.
Muitas vezes roubado sob occasos
Foi ; muitas vezes foi roubado a Órtus,
E já cahindo o dia , receando
A noute, confiar-se nos suspende
Reinos de Atlante em globo Hespério ; pouso
Pede pequeno até que fogos chame
Lúcifer já da aurora, e aurora currus
Diurnos . Este tal Japecionídas
Atlante com grão corpo vence a todos.
A terra estava ultima sob este
Rei, e o mar que do sol os resfolgantes
Molha cavallos, e os cançados eixos
Recebe. Mil a este erravão gados
Pelas hervas e armentos outros tantos,
E nenhumas o chão lá visinhanças
Opprimem. Folhas áureas encobrião
Ramos nitentes de ouro radiante,
De ouro pômos . » Se glória, Persêo diz-lhe,
» A ti toca de raça grande ; Jove
» Auctor me foi da raça . Ou se és das cousas
» Admirador admirarás as nossas.
"" Hospício, e peço réquie. " De vetusta
Sorte lembra-se aquelle. (Thémis déra
Parnaséa a tal sorte) » Tempo, Atlante,
» Virá, que a tua do ouro despojada
29 Seja Arvore e este titulo , hum de Jove
" Nado da prêsa , tenha. » Aquella cousa
Temendo com muralhas cérca duras
Os pomares, Atlante : e ao drago os déra
Vasto, que os guarde ; e de seus fins a todos
Os externos affasta : tambem disse
A este, " Longe vai para que longe
" A glória, das que mentes cousas, longe
" A.ti Jove não seja. " E força juncta
A ameaças, e expellir das portas tenta
O marralheiro, o qual com brandos bravas
Ditos cousas mistura : em forças menos
(Quem por quanto igualar podesse as fôrças
De Atlante ?) " Já que com as nossas graças
» Te fazes parvo, toma, diz, presente . »
E pela léva banda de Medusa,
Retroverso elle mesmo, rôstos mostra
XXX PRÓLOGO ...
Squallentes . , Atlante faz-se monte
Quanto he já barba e côma vão-se em bósques ;
Hombros, mãos são cabêços ; o que d'antes
Foi cachimónia agora he cocoruto ;
Ossos fazem-se lapis : então áueto
Ás partes todas para immenso cresce,
(Assim Deoses mandastes) e o Céo todo
Com tantos astros pouza n'elle. Ventos
Hippotádes no cárcere fechára
Eterno . E no Ceo alto era nascido.
O illustrissimo Lúcifer das obras
Exhortador. Com as resumptas pennas
De ambas as partes liga es pés, e se arma
Com a lança torta ; e os ares derretidos
Fende saracoteando os calcanhares .

O restante, que o faça, quem estiver doudo.


Venhamos a Bocage : este sim ; que era digno de traduzir
Ovídio. O seu, e meu, amigo , mórgado de Assentís, me tem
affirmado , que Bocage não sabia o latim ; que, por conve-
niencias das frases patentes, rastejava, e desencantava, o sen-
tido do autor . ¡ Ha mais galhardo talento, e peregrino adivi-
nhar ! O mais, de seu o tinha elle ; ¡ e com que abundan-
cia ! Estilo térso, e nobre ; linguagem pura, e clara ; dicção
concisa, e ornada ; versificação deliciosa , como nenhuma , nem
antes , nem depois d'elle, ainda entre nós appareceo : tencio-
nára, segundo podemos conjecturar, naturalisar portuguez ao
Poeta romano, por tantos respeitos sen parente , e amigo : al-
guns passos deo n'esta diligencia, ¡ e ainda mal , que fôrão tão
poucos e, se lhe houvéra chegado a vida, ou, na que teve,
The não houvérão sobrado trabalhos, e preguiça, desconcertos ,
miséria, e desamparo, particularmente de homens allumiados,
nenhuma dúvida ha , que as Metamorphoses romanas, já ha
muito tempo , se podérão dizer nossas . As fábulas, que tradu-
zio, não era possivel, a quemquer que fosse, dar-nod-as, nem
mais fieis, nem mais elegantes . Tomei-me, pauzadamente, o
pulso a mim mesmo, e, reconhecendo, que para o igualar , me
fallecião , innegavelmente, as forças ; assentei em tomar d'elle ,
quanto era feito, e , dando hum documento, não duvidoso , de
sincera humildade, encorporal-o na minha óbra ; e assim o fiz :
não foi comtudo a reverencia do seu nome tão poderosa, para
comigo, que, onde entendi carecer de emenda , l'a não desse :
e não fôrão essas correcções poucas, nem muitas vezes, de leve
PRÓLOGO. XXXI
momento. Em as nofas encontrará o leitor curioso , (¡ e oxala,
que já pelo texto o não tenha sentido ! ) quaes são as partes de
cada Livro, que a Bocage pertencem, e igualmente o rol das
emendações, por que passou.
Por aqui se podia cerrar o prólogo : porque, do que mais
urgia declarar, ácerca do meu trabalho , deixo dada razão :
mas bem será, que antes de nos despedirmos, a dê tambem ,
do que, talvez , por boas contas, devêra ter occupado o primeiro
legar ; se nas obras escriptas não costumasse, como no Evange-
tho, ser o ultimo logar, o primeiro ; fallo da conveniencia mo-
ral, e litterária, d'esta publicação .
Muitos, vendo-me sahir em 1841 com huma óbra d'estas
nas mãos , pararão, a olhar com estranheza ; alguns , com lásti-
ma ; bastantes , com riso ; talvez não raros , com despeito ; e
pouquissimos com affecto, pelo custo, que houve, em lh'a tra↓
zer cá : perguntar-me-hão , se não sei , que já o Mundo vélho
se acabou ; que os Gigantes, na sua segunda escalada, despo- .
voárão o Olympo ; que de Grécias , e Romas, de que só, por
ultimo, as linguas sobrevivião, nem já as linguas sobrevivem ;
que a terra baptisada renunciou todas as óbras , vaidades,
pompas de sua infancia ; que a philosophia as sepultou, e lhes
fechou com sete sêllos o sepulchro ; que se encarnou na espécie
humana, e deo á luz , de hum só parto, éstas duas gémeas, a
quem já ninguem usurpará as coruas, a Liberdade política, e
a Liberdade litterária. [
Tudo isso sei, e tudo isso sabia, quando me preparei pata
sahir ; e comtudo me não arrependo , de o haver feito. Das
razões, em que me estribo , não darei, senão huma leve móstra,
segundo a brevidade do tempo me constrange a apertar o pas-
so ; porêm, tenho , que bastará para resalva , quando' para lou-
vor não possa chegar .
Ainda as pazes solemnes se não pregoárão no Mundo lit-
terário ; mas , a grande guerra entre Clássicos, e Românticos,
acabou só algum guerrilheiro , ou bandoleiro, queima, de lon-
ge a longe, huma escórva , de que já ninguem faz caso. ¡ Feito
he do grande pendão do SENATUS POPULUSQUE ROMANUS !
já não volverá a correr, triumphalmente, o órbe ; porque a
sua hora bateo ; a Cruz, o prostrou ; huma géração forte lhe
passou por cima, rindo ; sob os pés o dilaceron, e desfez ; e a
Religião, é a irréligião, igualmente applaudírão : até aqui são
feitos os destinos dos vencidos, estão, irrevogavelmente, mar-
cados . ¿ Mas os dos vencedores ? Algum dia tambem o serão ;
porêm não hoje . Milhões de mãos estão lidando na erecção de
XXXII PRÓLOGO .
hum pasmoso edifício, que se o trabalho não parar, por confu-
são de linguas, subirá cada vez mais pelas nuvens a dentro ;
¿ mas, quem possue, ou quem vio, a traça, e plano , de tal
óbra ? Ninguem ; porque a traça, e plano, de tal óbra, estão
lá muito em cima, nas mãos de Deos . Cada artífice cuida ir,
For onde quer ; trabalhar, como lhe parece ; fazer, ou desfazer,
segundo lhe apraz ; cada hum tem a direita no seu mistér, e
na esquerda a espada contra os seus visinhos ; cada hum, mo-
têja, de quanto os outros fabrícão ; e à confusa fábrica médra
de contínuo, porque a Providencia, que anda ahi como archi-
tecto, os pôz a todos, sem no elles saberem, em os diversos pós-
tos, e pelo facil, e pelo escabroso, e pelo escuro, e pelo claro,
os influe a todos, para o complemento de seus fins. Quem pre-
tendesse julgar o futuro igual ao presente, pretenderia, segundo to-
das as histórias, huma mentira ; segundo a religião, huma im-
piedade ; segundo a philosophia, hum absurdo porque o espi-.
rito humano nem pára, nem permanéce ; e, porque a moral, e
a felicidade, que em parte he seu resultado, moral, e felici-
dade, duas urgentes precisões do Mundo, não estão na actual
litteratura, como a alma com o seu corpo deve estar. A pro-
blema anda reduzida toda a crença ; todas as virtudes estão em
disputa ; todos os sophismas, acceitos por tráfego intellectual ;
todo o terror saudavel, enfraquecido ; toda a esperança valente,
aposentada, e envergonhada ; todos os esconderijos da conscien-
cia, devassados ; pédem-se á história todas as atrocidades, que
ella encerra ; e á phantasia, todas, as que ella póde criar ; e,
afformoseadas com o máximo luxo do talento , pelas imprensas
e pelos theatros se trazem aos ólhos, e ouvidos das turbas ; ao
princípio atterradas, depois attrahidas, depois ávidas, depois
ébrias, e depois tambem frenéticas, depravadas, e criminosas ;
já, porque se lhes deo a entender, (notai) que os crimes, e os
grandes crimes, não erão excepções rarissimas, mas usuaes, e
como que autorisados por sua propria multiplicidade ; já, porque
(notai tambem) em comparação com essas monstruosidades de
alardo, a maior parte, do que mal fazemos, nos deve ficar pa-
recendo peccadilhos, bem levemente perdoaveis ; já , porque
(notai sempre) a cada crime, que nos dissérão , ou nos mostrá-
rão, veio annexa, quando não a apotheóse, pelo menos , a
desculpa, ou a explicação, do que o produzíra ; e já emfim,
porque (notai, e tremei) isso tem os espectáculos cruéis, que
nos transtornão os affectos piedosos ; o cheiro do sangue em-
briaga ; as primeiras punhaladas dão ância para as segundas :
pelo homicídio chegou Néro ao matricídio. A propósito dos
PRÓLOGO. XXXIII
bárbaros espectáculos, que tanto barbarisárão Roma, a vélha,
(¡ terrivel lição da experiencia ! de que nós outros não cura-
mos) transcreverei hum notavel caso, referido por Santo Agos-
tinho ; e no qual aquelle honrado francez , do bom tempo , o
méstre Rollin, recommenda á Mocidade pôr os ólhos com toda
attenção : he mais que bastante, para não darmos por perdido
o pouco tempo, que nos levará o relatal-o. -99 Alipio, mancêbo
de nobre geração, e paisano do mesmo Santo, por haver nas-
cido em Tagaste, cidade de Africa, na provincia, que chama-
mos Argel, tinha-se ido a Roma ao estudo do Direito. Ahi
encontra hum dia na rua com amigos, e condiscipulos seus,
que se íão a. ver os Ludos dos Gladiadores no Amphitheatro ;
desafião-no a accompanhal-os, escusa-se ; insistem , defende-se ;
teimão, e, averiguando, que por suas razões o não poderão
demover do horror, e aversão , que sempre a taes Jógos tivéra,
com a licença, que entre amigos se não estranha, o levárão
comsigo forçadamente . Que monta isso, " lhes dizia por si o
coutado, " mas que me arrasteis lá o corpo, sempre a alma, e
ólhos , ficarão meus ; ninguem póde obrigar-me a ver ; assisti-
rei, como se não assistíra. » Chegão, e achão todo o Amphi-
theatro, fóra de si , e transportado n'aquelle bárbaro regalo.
Fechou logo os ólhos Alipio , e prohibio á sua alma o commu-
nicar em tão espantoso furor. Dita fôra , se tambem os ouvidos os
podesse ter cerrado : vemlh'os ferir hum grito levantado por todo
opovo ; erão vivas pelo golpe mortal, que hum dos Gladiadores
acabava de receber . Triumpha no mancêbo a curiosidade ;
suppõe, que nada o renderá ; abre os ólhos , e, por elles, recebe,
a súbitas, no ânimo tamanho bóte, como em seu corpo rece-
bêra o moribundo. Tanto que vio correr o sangue , já , emvez
de arredar a vista, como presumíra, ahi a pregou com soffre-
guidão ; e inebriando-se, sem saber, d'aquelle deshumano gôs-
to, parecia sorver a tragos a crueza, a inhumanidade, o furor ;
que assim se sentia alheado de si mesmo. Em summa , sahio
outro, do que entrára ; e com tal sêde de espectáculos similhan-
tes, que nada mais lhe lembrava e já, d'ahi por diante, era
elle o primeiro, que desafiava para taes féstas os camaradas. »
¿¡ Quantos outros exemplos , e mais notórios , do que este ,
e muito mais geraes, se não poderão adduzir para confirmação
d'esta, tão importante, quão desattendida, verdade ?! —Que a
crueldade he doença, pegadiça por enxêrto da propria maté-
ria, e monstro, que de seus mesmos excrementos se nutre, e
céva ; e fogo, que, quanto. mais devorou, mais força e fúria
ganha, para devorar. A história dos costumes de todas as
3
XXXIV PRÓLOGO.
gentes, onde prevaleceo o uso da escravaría, sobrára para de
monstração . Rollin acautéla os mancêbos contra estes peri-
gos, mui communs, mui certos, e mui terriveis ; aos pais , è
mais, acautelaria eu antes, pois que são elles, os que n'isto,
como em muitas outras cousas, têem de supprir a deficiencia
das leis, emendar os desconcêrtos dos costumes, e melhorar,
por seus filhos, o futuro da Espécie Humana . Mas o adro, ou
terreirinho, de hum Poema, não he campo , onde se acuda a
ouvir missões : e demais , como o thêma ahi fica, o desenvolvi-
mento, qualquer meão juizo lh'o fará .
Dizia eu , que a Litteratura , tal como hoje revôa estron-
dosamente em róda de nós, contradictoria, e repugnante comsi-
go mesma ; insufficiente para huma fé , qualquer que ella seja ;
e para a moral, ou nulla, ou desastrosa ; se não devia de con-
siderar como huma Litteratura estavel . Se o despoetico fatalis-
mo , comprehendendo n'eile todas as suas consequencias , mo-
raes , e litterárias , foi a principal doença , que matou a escó-
la clássica ; o indifferentismo , e o paradóxo , com as suas con-
`quencias, moraes, e litterárias, ainda muito mais graves, ma-
tará tambem a presente escóla , ou seita , ou seitas , ou anar-
chía , que , ao certo , não atino , como lhe chame ; e , o que
tem de se lhe seguir , não o saberemos nós ; que não são novi-
dades, essas, de que se cure no Mundo, onde então estaremos.
Filhos do passado , sentenceámos o passado : pais do porvir , o
porvir nos sentenceará , a nós. E , assim como de tantas famas
pretéritas , só poucas , ( ¡ mercê do génio incontestavel , que as
produzíra ! ) lográrão, que o presente lhes abrisse passagem pa-
ra as deixar ir, illésas, até o fim do Mundo , assim, poucas das
retumbantes nomeadas , que hoje nos aturdem , serão conserva-
das pelo século , de que este século houver sido despojo : pou-
cas digo , não , porque não pullulem , e abundem , relevantes
talentos n'esta Idade , mas , por isso mesmo ; porque , a abun-
dancia dos concorrentes produzirá maior sobriedade na conces-
são de taes isenções ; e da profusão das riquezas nascerá a pro-
digalidade , que as desaprecie. ¿ Se tudo isto não he evidente ,
quem , pelo menos , lhe negará a probabilidade ?
Ora pois , ha de ser esta probabilidade , e quasi certeza ,
para todos, os que a bem ponderarem, a principal razão , por-
que o Poeta da Roma de Augusto , sem ter renegado, ao entrar
na terra moderna portugueza , nenhuma de suas crenças , cos-
tumes , e hábitos , antigos , passará , immune , e venerado ,
por entre a turba dos escriptores , e ledores ; Ave , CÆSAR !
MORITURI TE SALUTANT.
PRÓLOGO. XXXV
Demais, por hum de dous motivos se lêem , e se venerão,
os autores : a huns , porque nos allumião , sobre o que se deve
fazer ; a outros , porque , sobre o que se fez , se foi , ou se te-
ve , nos instruem. Huns , e outros , são méstres ; huns , e ou-
tros , satisfazem necessidades do nosso espirito : quanto mais
me affirmardes , ( e n'isso venho eu comvosco) ter-se acabado
o Mundo vélho, d'onde Ovidio vem, tão carregado de suas re-
líquias ; quanto mais me encarecerdes , que não podemos tor-
nar para lá , tanto mais , por isso mesmo , encareceis a estas
relíquias a sua valía. Bem perdidas são as raças de mastodon-
tes , e outras alimárias , antediluvianas ; e , por isso mesmo
que não são , mas fôrão , não dá a Terra ouro , e diamantes ,
que mais se festêjem , do que os seus esqueletos : o Musêu ,
que os recebe , se convérte em thesouro ; e o Cuvier , que os
recompõe , e completa , he havido , no tácito respeito das cons-
ciencias , por mais que homem , por hum semideos , que fami-
liarmente conversa com o Criador, e com as criaturas ; e, atan-
do o espedaçado fio dos tempos , restitue ao Mundo a sua per-
dida história. Mas , objectarão alguns , não são estas antigua-
lhas, greco-romanas, as que hoje valem, e se procurão no mer-
cado intellectual ; mas sim , as da Idade média ; e isto , 1.º,
porque as da Idade média, com estarem mais proximas, estão,
por óra , menos averiguadas ; e ainda se não reduzirão , como
as romanas é gregas notícias , a dissertações , tratados , e léxi-
cons amplissimos ; ainda não tivérão seus , Grévio , Gronovio ,
Heinsio , Pitisco , Rosin , Winckelmann , Maffeo , Montfaucon,
Banier , Muratori , Donato , Kirchmann , Goltzio , Orsini ,
Mont-Josieu , Orsato , Peutinger , Panciroli , Corradini , Baif,
Fabretti , Bianchini , Roberto Estevão , Neuport , etc .: 2.º,
porque a Cavallaria com a sua profissão, de fé para com Deos ;
lealdade para com os homens ; amor, galanteria, e protecção,
para com as mulheres ; vem, muito mais do que o Paganismo,
com as opiniões , e costumes , do nosso tempo : e 3.º, porque ,
por esta mesma segunda razão , e , por serem as superstições ,
e barbaria da Idade Média , muito mais fecundas em terror ,
de necessidade havião de prevalecer , como prevalecerão , para
móda. Não dirão, que enfraqueço, ou dissimulo, os argumen-
tos contrários. Mas são elles porventura invenciveis ? Exami-
nai-m'os de perto.
O primeiro, terá grande força por parte dos autores, mas
nenhuma por parte dos leitores, que são o, infinitamente, maior
número : para hum escriptor, que , entre os do seu paiz, quer,
póde , e deve , primar , facilmente concórdo , em que o explo-
3*
XXXVI PRÓLOGO.
rar minas virgens lhe ha de ser muito mais agradavel trabalho,
do que lançar mão de riquezas , já por outros amontoadas .
ર Mas d'esses , verdadeiros criadores da história íntima de sua
Pátria , e lidos por todos , quantas dúzias me apontareis ? Te-
ve a Inglaterra hum Walter Scott ; poderá ter a França hum
Victor Hugo ; começou , e ha de chegar a ter Portugal hum
Herculano quanto ao restante dos escriptores , e escrevinha-
dores , e a todo o commum do Público , especialmente entre
nós, tão novo lhes he, o que nos livros dos Gronovios está ave-
riguado , como , o que ainda nas chrónicas fradescas , e cartó-
rios do Reino , jaz , escondido : tão nova lhes será , e , por is- ·
so , tão gostosa , a descripção da Cêa de Trimalcião , miudea-
da por Petrónio , como a de hum jantar de Homens d'Armas
á róda da Caldeira , e á sombra do Pendão, do Rico-Homem
Egas Moniz ; tão insólita , e divertida cousa a relação , que
Apuleio lhes fará , das pósses , e malefícios , das Feiticeiras
da Thessália , como a lenda das diabruras do Santo Frei Gil.
O segundo argumento , que vérsa sobre a maior analogia , que
dizem ter com este Mundo da Liberdade o mundo feudal , por
ser christão , cavalleiro , e namorado ; por negação se contra-
ría , porque , se bem se lançarem as contas , achar-se-ha , que
não temos nós , ainda hoje , menos d'aquelles remotissimos Pa-
gãos , do que d'estes Christãos apartados : romana he a raiz
das nossas leis ; romano o princípio de bom número de nossos
costumes ; romana , e romanissima , huma boa parte dos acci-
dentaes do nosso culto ; romanas muitas das nossas superstições,
e até romana a nossa lingua , em palavras , em figuras , e tró-
pos , em allusões , e reminiscencias , em rifões , e anexins , e
até pela diuturnidade do trato , com que ainda ha dous dias
frequentavamos esses

Romanos , rerum dominos , gentemque togatam ;

romanas, e romanissimas , ficárão as feições de nossas virtudes, e


o caracter guerreiro , e vagabundo , de nossa glória : mas esta
confrontação, facillima de fazer por qualquer estudioso, e no fim
da qual sahiria evidencia para todos os ânimos, pediria tômos,
e não posso aqui fazer mais , do que indical-a. Ao ultimo ar-
gumento , que estriba na móda , e em não ser o romanismo
tão accommodado , nem tão accommodavel , ás impressões for-
tes , e terriveis , que ella requer ; em prompto lhe está a res-
posta ; e duas em logar de huma : se a Litteratura chamada
romântica he tão móda, que já tem inçado tudo, como d'antes
PRÓLOGO. XXXVII
9 fazia a chamada clássica ; segue-se , que mais effeito deve
hoje produzir hum grande poeta clássico , como aquelle , que ,
para regalo , vem trazer ao banquête , não os fructos da esta-
ção presente, que todos têem diante de si ; mas hum , saboroso ,
e perfeitamente conservado, de outra quadra ; e quanto ao ter-
ror , offerecendo elle n'este mesmo fructo doçura a palladares ,
requeimados de drógas , e espécias , mal póde temer , não ser
bemvindo.
He o caracter d'este Poema trágico : rara de suas Fábulas
se não remata em desastre : vão por elle crimes , e dos mais
horrendos ; e , sem embargo , não péza , nem amargura , nem
corrompe e porque ? porque os affectos depravados , de que
brótão as más óbras , ainda no tempo de Ovidio se não disse-
cavão desde a cútis, até á medulla vião-se os flagícios, vião-
se os seus autores commettendo-os , mas ainda , por hum re-
quinte de anályse , de que o Diabo fez presente á nossa Ida-
de , sob o nome de Philosophia , se não tinhão desencantado ,
ou inventado as internas luctas moraes do bom com o máo prin-
cípio , do sophisma contra a Lógica , e do interesse individual
contra o interesse , e razão commum ; ainda então cada atten-
tado não tinha senão o seu proprio nome , emquanto hoje o
adultério , o roubo , o homicídio , têem , para apparecerem
decentemente, e até para brilharem em público, sua capa mui
bordada , sua máscara mui attractiva , sua voz de falsête mui
sonóra : o homicídio sustenta, não ser menos que honrado brío ,
pundonor, desaggravo, estima propria ; o adultério se defende ,
como amor imperioso , e philosophia profunda ; o roubo , ou
como systema , que não reconhece o absurdo princípio da pro-
priedade , ou como justiça , que aspira a emendar desigualda-
des da fortuna , ou como direito , devido á superioridade de
hum talento industrioso , ou de hum arrojo atrevido . ( *) Os

(*) Nos Salteadores de Schiller, (para não citar mais , do que hum exem-
plo, e esse sacado de hum dos mais probos, e amados homens de Allemanha)
ha 2 de feito , as apologias d'estes , e similhantes , horrores : os resultados de
taes apologias , por tal génio executadas , todos os sabem ; hum grande nú-
mero de honéstos mancêbos allemães , filhos de honradas famílias , sahindo
do theatro, rompêrão com a Sociedade, na qual, por huma consequencia mui
lógica, do que se lhes acabava de provar, não havia vínculo algum, que não
fosse artificial, nada respeitado, que não fosse vão ; e se fizérão salteadores.
Porém muito melhor, e em muito menos palavras, do que o eu fiz no texto , o
incluio o meu amigo , Sr. Monteiro Teixeira , em dous unicos versos da sua
magistral e inexcedivel epistola franceza sobre
} a Emancipação das Mulheres ---
On prête de beaux noms à la scélératesse :
Le meurtre e'est du cœur , le vol c'est de l'adresse !
XXXVIII PRÓLOGO .
malvados de Ovidio contentão-se , com fazerem o mal , ou añ
tes, perpétrão-no obrigados de sua fatalidade, e sem d'ahi ha
verem contentamento ; mas não discutem , não prégão , não
transfórmão esse mesmo mal em bem ; e os seus maleficios fi-
cão na memória para excitar a aversão , e não no entendimen-
to de interessados, como exemplos, como doutrinas, como thé-
ses.
A Poesia clássica , abstrahindo hum pouco da sensualida-
de em amor , que já em outra parte d'este Prólogo confessei ,
e reprehendi, tem certa innocencia, e boa fé infantil , que me-
lhor se sente , do que se define : hum livro d'estes entre os de
Hugo, Balzac, George Sand, Dumas, Soulié , Paulo de Kock,
e Pigault Lebrun, elc . , etc. , etc., parece huma creancinha mui
alegre , e desmaliciosa , n'hum alcouce , onde , á luz de huma
candêa fumesa , danção , e cantão , meretrizes , e ladrões , dis-
farçados em fidalgas, e cavalheiros, em noule ébria de Carna-
val : á fé , que todas estas personagens , se por acaso o perce-
berem , mofarão de sua desambiciosa candura , mas ninguem ,
que não for dos seus , os imitará .
Basta por parte da questão de opportunidade , ou in-
opportunidade , moral , de sahir este Livro em nossos dias :
mas , por parte da opportunidade litterária , que tambem po-
deria ser impugnada , alguma cousa he necessario , que se pre-
pondére .
PRIMEIRA PEDRA DE ESCANDALO.FUNDO MYTHOLOGI-
co.Se autoridades fossem bons argumentos , citára eu a de
Goethe , que ninguem me refusaria . Pretendia Goethe , que
para as artes do desenho , (nas quaes , até certo ponto , não se
póde deixar de comprehender a Poesia) era a Mythología con-
veniente , e necessaria ; e o querel-a desterrar d'ellas , barba-
rismo opinião , em que , talvez , ha mais fundo , do que , á
primeira vista , parece para a corroborar , bastaria a simples
lição das obras, do que bem se póde chamar, coriphéo do con-
trário partido , o Genio do Christianismo , e os Martyres , de
Chateaubriand ; nas quaes , máo grado á indústria , com que o
autor procurou , constantemente , attenuar as formosuras my-
thológicas , o bom effeito , que ellas produzem , até retratadas
por sua penna , a ninguem deixa de ser sensivel. Mas , ommit-
tindo os argumentos de autoridade, que, por mui faceis de re-
convir , são naturalmente caducos , e , demais , se não accom-
módão com a índole da liberdade litterária , que hoje reina ;
observemos unicamente , que não he do acreditar-se , ou não
se acreditar , que resulta o interesse , où desinteresse , artísti
PRÓLOGO. XXXIX
eo, e poético, de huma óbra. As nebulosas divindades dos An-
tigos Póvos do Norte , os feitiços , e superstições , dos Africa-
nos , a extravagante , incorrecta , e disforme , idolatría índica
e chineza , as destemperadas crenças , e ritos , de alguns selva-
gens da América, e até, dentro no Christianismo, as abusões,
tradicções, e práticas sacro-ímpias , de nossos avós, são cousas,
que, bem executadas pelo talento, sem convencerem a ninguem,
a ninguem deixão entretanto de agradar : porque , para isso ,
tem a necessaria condição de verdade ; não verdade philosóphi-
ça , mas verdade histórica : e a notícia de tudo , o que em
qualquer tempo , ou logar , pertenceo ao homem , o senhoreou ,
e o regeo ; já não póde deixar de importar aos homens illus-
trados , e tanto mais , quanto mais illustrados elles forem. Ac-
cresce, que na Mythologia clássica , vista , (como só a podemos
hoje ver) atravéz dos Génios antigos, de Estatuários, e Poetas,
ha huma tal formosura , nobreza , e dignidade , fórmas , como
na arte dizem , tão puras, e desenho tão correcto, que as obras
de Homéro , Virgilio , e Ovidio , não ficão sendo menos para
estudo, e imitação, que os mármores millenários, do Laocoon-
te , da Vénus , e do Apollo.
SEGUNDA PEDRA DE ESCANDALO . - METAMORPHOSES .
A idéa de Metamorphose , póde , á primeira vista , parecer ex-
travagante , e desnatural ; mas , não he preciso pensar muito ,
para entender , o como ella agrada a todos , e em todos os pó-
vos tem sido parte , assim dos contos populares , como das
crenças religiosas ; porque a idea de transformação he , a que
mais constante , e até demasiadamente , se repete , e renova ,
em quantos objectos a Natureza produz. As transformações são
quasi o unico objecto de todas as penas , e prazêres , da vida ,
de todas as saudades , de todas as esperanças , de todos os ter-
rores. Mas, insistir-se-ha, que he, pelo menos, monótoro, que
em hum ramal de centenares de aventuras , que abrange desde
o princípio do Mundo até o tempo do Poeta , não haja huma ,
que assim não desfeche : eis-ahi , precisamente , a principal ex-
cellencia d'este Poema , e o maior documento da engenhosa fe-
cundidade de Ovidio, que no mesmo, contínuamente repetido ,
soube contínuamente transformar-se ; e , com huma admiravel
felicidade , variou com cousas , sobre curiosas , e instructivas ,
amênas , e amenissimas , todos os intervallos de catastrophe a
catastrophe : todos os mêdos havei , se quizérdes , menos o de 1
monotonía , na conversação de tal Autor.-
TERCEIRA PÉDRA DE ESCANDALO . CARENCIA DE UNI-
DADE . - He falsa , alem de pueril , esta accusação. A unida.
XL PRÓLOGO .
de d'este Poema , ou o vínculo de interesse , que o enfeixa to-
do , existia para os seus contemporâneos , e , muito mais sen-
sivelmente , existe para nós : era hum , para os seus contempo-
râneos, este Poema ; porque a sua razão de unidade era a ter-
ra da Grécia , e o céo mythológico ; por onde , com poucas , e
pequenas, excepções, voltêão estes enxâmes de assumptos, todos
irmãos , por hum certo reflexo , que a todos os colóra . Para
nós porêm , que os vemos cá de longe , e de outro ponto , até ,
o que ahi ha de asiático , de africano , e de romano , se nos
não representa despegado do fundo grego ; tudo, como religioso ,
e como antigo , tem huma certa germanidade , mui perfeita ,
hum commum interesse , e huma identidade de lustre , que he
devida á igualdade do verniz poetico, de que nem nas mínimas
partes houve descuido .
QUARTA PEDRA DE ESCANDALO.FALTA DE ENRÊDO.-
Para tempo, essencialmente, novelleiro, e dramático , não dissi-
mularei , que he esta huma falta ; mas a simplicidade dos An-
tigos , até na Tragédia , na Comédia , e na Épopéa , era com-
pensada com o esmerado primor , e acabamento , com que tra-
tavão a todas e cada huma das partes. Carecemos nós hoje de
enrêdos , longos , e mui tramados ; e muitas óbras correm , em
que nenhum outro mérito se encontrará, senão esse : mas entre
os Gregos , a cuja escóla pertence Ovidio , a arte não tinha
ainda por objecto a pintura do labyrintho social ; no pintar o
homem , e caracterisar suas paixões a grandes rasgos , se limi-
tava o seu mistér : a casa , que entre os modernos he hum as-
sumpto inexgotavel de estudo , porque, além de conter os desti-
nos da familia , he tambem o foco , aonde os estranhos se vem
reunir , attrahidos pelo estrondo das féstas , pela liberdade do
amor , e pelas relações mútuas de mil interesses , a casa , não
era mais , que hum abrigo , para o leito , para o bêrço , e pa
ra os havêres de cada hum , e huma semiclausura para as mn-
lheres ; e d'aqui devia provir , se me não engano , a maiorra-
ridade das tramas e maranhas , o menos aprêço , que se lhes
dava , e a pequenez , e miséria , que os Escriptores parecião
achar em entreter o Público , e a Posteridade com taes rela-
ções : com huma comparação aclararei , se pósso , o meu pen-
samento ; a Esculptura , nos representará o antigo ; e a Pintu-
tura , o moderno : o painel e a estátua , vos offerecem , igual-
mente , o homem ; e , pela sua posição , e phisionomía , vos in-
dicão o estado do seu moral ; mas a estátua ,, he solitária ; em-
quanto a figura pintada , conserva relações com muitas outras
figuras , que , supprindo á sua expressão , determinão o seu va-
PRÓLOGO. XLI
lor ; mas , por isso mesmo , que o mármore solitário , e desaju-
dado , tem de dizer tudo só por si , he , que a sua perfeição
se torna muito mais necessária ; e, se a possue, sobreléva , in-
comparavelmente, em mérito ás prestigiosas producções do pin-
cel : o éstro antigo era pois Phídias , e Praxíteles ; e a habili-
dade de bom número de nossos novelleiros , não só não passa
de pinturas , senão que , muitas vezes , mal chega a fazer , o
que os nossos vélhos , por escárneo , chamavão ricos feitios.
¿ Onde está ahi o bárbaro, que dê cóstas á Vénus de Médicis,
sob pretexto, de que por ella se não exprime huma acção com-
pleta , com enlace , incidentes , contradicções , perplexidades ,
e , a final , hum desfêcho ? A tal bárbaro , se o ha , já d'aqui
damos , e outorgamos , hum salvo-conducto para desprezar as
Metamorphoses , assim como a Eneida , e a Illíada . Porêm ,
mais longe me deixei eu levar na defensa, do que havia de mis-
tér ; porque , de tal falta de acção , que , ainda assim , não se-
ria hum peccado , (como acabamos de ver) não he o nosso
Poema réo , se o bem julgarmos : segui-o , e encontrareis , a
cada passo , narrações , não ambiciosamente complicadas , mas
com sufficiente quantia de acontecimentos variados , para pode-
rem dar gôsto, a quem o não tiver já apodrecido com as novellas .
QUINTA PEDRA DE ESCANDALO . TIBIEZA DE AFFECTOS.
- Esta criminação , a hei de eu negar , e confessar ; e , con-
fessando-a , defendel-a , e louval-a . Hei de negar , que , abso-
lutamente , sejão frouxos , os affectos , e paixões , que Ovidio
présta ás suas personagens ; as quaes, por via de régra , appa-
recem mui bem affinadas com os lances de suas respectivas for-
tunas : vêde-me Prógne Terêo e Philoméla ; vêde Medéa ; vê-
de Myrrha ; vêde Prócris e Céphalo ; e dizei-me , que lhes
falta vêde Dríope ; e mostrai-me , entre os vossos , painel tão
delicado , e vistoso , sobre que hajão cahido mais lagrimas :
vêde Seix e Alcyone , só , talvez , inferior ao Quarto Livro
da Eneida ; e que a Baroneza de Staël citava , como o mais
apaixonado trêcho , que dos Antigos nos ficára ; ¿ mas , para
que he escolher ? Vêde tudo ; que tudo vereis repassado de sen-
sibilidade . Agora sim , hei de confessar , que , se procurão em
Ovidio estas profundissimas paixões dos dramas cirúrgicos , e
novellas anatómicas , com que por ahi se remóça tanto vélho ,
e , o que alguma cousa peior he , se envelhéce tanto rapaz ,
em balde procurarão ; não as ha n'elle porque ainda , em seu
tempo , não era inventada a sublime arte de estender o ânimo
do Leitor sobre huma idéa , como sobre hum pôtro de marti-
Fio ; dar-lhe tratos ; e queimal-o a fogo lento em seu tempo ,
XLII PRÓLOGO .
as artes , oh ! admiravel rudeza do século de Augusto ! ¡ oh !
rusticidade maravilhosa da idade de Péricles ! as artes , em
seu tempo , ainda se julgavão nascidas , e criadas , para ani-
mar , e consolar , a Terra ; ainda se tinhão por flôres , que o
Céo desabrochava no génio , fadadas , primeiro , a encantar os
sentidos ; depois , a ser fructos , que alimentassem a razão , e
a virtude ; ainda ignoravão , que muito mais alta era a sua
verdadeira missão , e , que hum dia viria , em que os seus
maiores trophéos consistirião no entristecer , atterrar , e des-
animar , a Espécie Humana.
De mui diversa maneira estudavão os Antigos o coração ,
do que os Modernos o estudão : o homem então era huma es-
pécie de templo , como o de I'sis , onde havia penetraes ínti-
mos, defezos a todos os ólhos profanos, defezos até aos desejos
da curiosidade ; a consciencia do homem de hoje , he huma
praça , allumiada de bom sol , com mil caminhos francos de
toda a parte , e por onde toda a canalha de escrevinhadores ,
e após elles toda a canalha de ledores , póde passear , e trope-
liar , á sua vontade : havia n'aquillo acanhamento , póde ser
que sobêjo ; mas ha n'isto , desaforo , innegavelmente , insoffri-
vel. No meio d'estes dous extremos , estava o bom , o honesto ,
o vantajoso , para os costumes , e para as artes : e esse meio ;
criára-o o Christianismo , criando a consciencia , ou , por me-
lhor dizer, desenvolvendo-a , e aperfeiçoando-a : a anályse mo-
ral derivou-se pois do Christianismo , e foi excellente , como a
sua origem ; mas a Philosophia terréstre passou adiante. Não
houve fibra do coração, que não quizesse descoser com o escal-
pélo ; não houve lágrima , ainda escondida nos ólhos , que se
não submettesse a todos os reagentes , para a decompôr , e
analysar ; não houve , emfim , gôsto , ou pena , a cujas raizes
se não procurassem as fibras capillares por entre as vilezas da
materialidade, do vício, e do egoismo : d'este systema genera-
lisado, nasceo hum fantasma de Sciencia moral ; desencantou-
se por elle o Mundo , depois de ter sido calumniado : hum
grande thesouro de realidades , e illusões , mas illusões , tão
reaes, quanto ao produzir bons effeitos, como as mesmas reali-
dades , foi desbaratado : é , em cada familia , evangelisada pe-
los romances, e convertida á fé da incredulidade ; todas as pri-
zões , afóra as dos interesses corporaes , e immediatos , se des-
atárão os filhos , não acreditão na probidade dos pais , na
virtude das mãis ; as mulheres , na dignidade dos maridos ; os
espôsos , na fidelidade íntima de suas companheiras : a amiza-
de , he huma hipocrisia calculada ; a innocencia , huma más-
PRÓLOGO. XLIII
cara ; o amor pátrio, huma rêde, etc .. étc . , etc. ¿ Haverá n'is-
to exageração ? Quanto á intensão da cousa , affirmamos , que
a não ha ; só a haveria, quanto á extensão , se não confessasse-
mos, por honra da Humanidade, que este crescente cataclysmo
ainda não submergio tudo, e graças a Deos, ainda não chegá-
mos ao ponto de sobrenadar nas aguas do Dilúvio huma só fa-
milia : mas deixai fazer aos novelleiros , e dramaturgos , que
isso poderá bem chegar ; e , se chegasse, e elles sobrevivessem ,
chorarião , como Alexandre , por não haver mais Mundo , pa-
ra vencerem . N'este meu guerreal-os, parecerei já demasiado ; '
mas tenho filhos , e dias ha , que principío a cuidar , se não
tomaria o Diabo carne humana , para engendrar esta raça de
incendiários, e empeçonhadores , de profissão ! Os assentos dos
Thronos são altos ; não chegão lá vozes : deixem áo menos gri-
tar estas verdades pelas ruas ; para que sôem pelas casas ; e
os pais , que de suas portas a dentro são reis , estremêção , e
ponhão a bom recado os seus mais sérios interesses. ¡ Que im-
porta, que a lei, sob a alcunha de liberdade, permitta a qual-
quer mentecapto o despejar nas correntes fertilisadoras da Im-
prensa , quantos barris de solimão , e arsénico , nos vem d'essa
França , com mui pomposos , e invernisados rótulos ! ¡ que im-
porta , que o permitta a lei , se o pai de familias , mais pró-
vido , e mais humano , do que ella , prohibir aos seus o apro-
ximar-se de taes correntes avenenadas ! Mas , tornando ao ca-
minho direito , onde largámos o nosso Ovidio , digo , que , se ,
o que lhe reprehendem, he a falta , do que hoje ha de sobêjo,
e com mistura de fictício , no conhecimento do homem íntimo ;
tal censura , antes he hum verdadeiro louvor , e muito inveja-
vel. Biblis e Myrrha são incestuosas , que não ha mais dizer ;
Bíblis com o irmão , e Myrrha com o proprio pai : nada d'isto
dissimula Ovidio ; não ommitte os combates da virtude com a
paixão , confessa a victória d'esta ultima ; se victória se póde
chamar , o que arruina , e perde , ao vencedor : porêm , o que
nem Myrrha nem Bíblis fazem, he analysar, por huma parte,
a paixão em todas suas circumstancias ; por outra parte , a
virtude , o dever , as leis , e a natureza : sujeitando todas estas
venerandas cousas á sentença do proprio, e apaixonado, juiso ;
não ousão , nem sabem , elevar a hypothese a these , como ho-
je sabe , e ousa , qualquer estudantinho autor. Ovídio , o pa-
gão , o licencioso , o méstre da arte de seduzir as mulheres ,
sob o nome de Arte de Amar; tremeria de hum tal pensamen-
to , se pelo ânimo lhe houvéra roçado . Mas , não haverá em
Ovidio alguma verdadeira falta de affectos ? em Ovidio , não ;
XLIV PRÓLOGO.
mas em seu tempo , sim. Tudo , o que a Natureza podia dar ,
o tem elle ; mas, o que he fructo da consciencia , aperfeiçoada
pelo Christianismo , isso , não o tem ; porque o não podia ter ,
emquanto não existia. O Christianismo , semeando no desprezo
da vida as esperanças de huma vida melhor , tornou a alma
humana mais recolhida , e grave : esta , encerrada em seu edi-
ficio de barro , como em huma clausura , pendeo , necessaria-
mente , a fronte sobre si mesma ; e chorou , e suspirou , e en-
terneceo-se ; e a sua ternura , não podendo fartar-se com a in-
finidade do Céo longinquo , abraçou-se tambem á Natureza ,
como a huma irmã ; e ao passado , como a huma víctima pre-
ciosa , immolada , e cahida , debaixo dos pés do seu Senhor :
tudo , para a alma christã , foi santificado pelo amor e poeti-
sado por esta santificação ; similhante á religiosa , com o rôsto
pensativo encostado á janella de grades do seu mosteirinho á
borda do mar, virgem, ella conversou amores com o seu desti-
no , e sympathias ineffaveis com toda a criação ; o dia e a
noute , o mar e os montes , a verdura das sélvas , o escalvado
das penedías , e a nudez dormente do areal , a ave passando ,
o navio sumindo-se ao longe , o cicear da viração , o vagir da
criança , o hálito de huma flôr , distante , tudo se lhe tornou
matéria de reparo ; com tudo intimou relações ; de tudo expri-
mio prazeres , huns alegres , outros tristes , mas todos bons ,
todos preciosos, na mudez da sua solidão : isto não tinhão, por-
que o não podião ter , os Pagãos ; dos quaes , se exceptuarmos
Virgilio e Propércio , nenhum , nem por instincto , adivinhou
o estilo christão . Por esta parte , céde a Poesia clássica , á
moderna : servindo-me , em contrário sentido , da comparação,
que , pouco ha , fiz , da Esculptura com a Pintura , o Chris-
tianismo , que he a Pintura , grande vantagem leva á Escul-
ptura, que he o clássico : (note-se bem, que eu fallo do Chris-
tianismo , e não do Philosophismo , que após elle se seguio ) .
Os Poemas dos Gregos , e Romanos , em geral , representão-
nos figuras bellas, em posturas verdadeiras, e expressivas ; mas
desacompanhadas, como estátuas : os nossos, assemêlhão-se an-
tes á óbra do pintor , aonde a terra e o céo , o vegetativo e o
bruto , o próximo e o remoto , tudo está em harmonía com a
figura humana ; e este systema moderno agrada mais , porque
introduz no Universo huma espécie de unidade.
Mas razão he , que trunquemos por aqui a controvérsia .
Dando-vos eu Ovidio , o melhor que pude, e soube, entendo ,
para mim, ter feito hum bom serviço . Offereço ao maior nú-
mero de Leitores hum passatempo, que para todos os Séculos ,
PRÓLOGO. XLV
e Póvos, o tem sido ; porque as Metamorphoses, são as Mil e
uma noutes da Antiguidade ; só com a differença, que Antonio
Galland, compilou os Contos Arabes ; e Ovidio, compilou, e
criou ; (até que ponto , huma , e outra cousa, não he possivel
hoje determinal-o) : Antonio Galland , traduzio ; Ovidio com-
poz : Antonio Galland , só deo lindas patranhas para crianças
de todas as idades, ( e crianças somos todos nós n'essa parte) ;
Ovidio, recheou a amenidade de suas fábulas, de muita histó-
ria, muita engenhosa allegoría das verdades naturaes, e muita
lição moral de aproveitamento : o francez, cançou, redundou,
repetio, e poucas paciencias o levão ao fim de huma assentada ;
o Romano, pôstoque mais circunscripto , pelo titulo mesmo de
sua óbra, por tal arte soube variar os effeitos , que se leva de
hum fôlego, sem extravio momentâneo da attenção : finalmente,
o francez, foi prosador, muitas vezes, sem arte ; emquanto o
nosso Autor, he sempre, maravilhosamente poeta, assim na
invenção, como na disposição, como no estilo, como no métro :
e, sem embargo, Ovidio, florecêra mais de mil e quinhentos
anños antes de Galland.
Quanto aos Mancêbos , que , em tão grande número , e
com tão esperançosos princípios , hoje , entre nós , se applicão
á Litteratura, por certissimo tenho , que não desagradeção o
meu trabalho, que á utilidade sua, principalmente, desejei en-
caminhar para elles, futuros esteios, e brazões, de nossa Lin-
gua, vingadores de nossos bons costumes, e restauradores, se
ainda he possivel , do nosso bom nome ; para elles, principal-
mente, me tenho dilatado n'esta amigavel conversação ; e para
elles, mais attento aos seus, que aos meus interesses, accres-
centei o texto com as largas nótas, em que , antecipando com
a minha a sua experiencia, lhes aponto lealmente, o que tenho
por máo, e bom, em cada hum dos Livros.
Querem, Lamartine , e Victor Hugo, que n'esta Idade
dos grandes interesses politicos, quando, dizem elles, todos os
homens andão na fáina da manobra, o poeta se esqueça do
seu mistér , e vá, chamado , ou não chamado, ajudal-os na dif-
ficil mareação : he crueldade ; e he absurdo mal vai ao
Estado , e mal vai ao Culto , onde os ministros do Culto se im-
plicão nas temporalidades do Estado ; e as Letras são huma
Jeligião : huma religião santa , e necessaria : os que n'ella pro-
féssão, obrigão-se , por vótos muito estreitos , a servir sempre
aos seus similhantes, mas só no tocante aos interesses de hum
mundo superior ; evangelisando a razão ; apostolando o culto
do bello, e da virtude, que não he, senão o bello reduzido &
XLVI PRÓLOGO .
acção ; perseguindo, e anathematisando, os vícios, que nos con-
duzem aos crimes, a ignorancia, e os erros, de que os vícios
são consequencia : não invejemos a ninguem os officios de fa-
zer as leis, de fazer a política, de fazer as revoluções, de fa-
zer todas essas cousas, que, se, por vãs, se não desfazem logo,
novas módas as transfórmão, novos interesses as supplantão, e
o tempo, sem nenhuma outra razão mais do que ser o tempo,
as dissipa, e esquece. Trabalhemos com afan de consciencia,
nas unicas óbras humanas , que podem ser perduraveis ; e ,
quando, Mancêbos Estudiosos, os potentes do século, não ini-
ciados no vosso mistér, vos desprezem, consolai-vos d'essa hon-
ra ; prezai-vos da vossa obscuridade no presente, pensando no
porvir, onde reinareis, quando d'elles, nem já os nomes rema-
necerem. Por esta reflexão me pareceo acabar, pois que trato
com a Mocidade pátria, para muita parte da qual já agora
tenho voltado o meu affecto, as minhas esperanças, e já tam-
bem a minha gratidão, pela valentia, com que ahi os vejo
metter hombros á formação das nossas boas lettras, e á suspi-
rada restauração da nossa formosa Lingua. Quanto a mim,
pôstoque o mínimo, de quantos n'este empenho suamos sangue
e agua, embora se forcejaria por me fazer apostatar do pro-
fessado culto ; eu os ajudarei , com o trabalho, em quanto po-
dér ; com o discurso , e doutrina, até onde me chegarem ; e
com os applausos, por cada novo laurél, com que a Pátria,
por suas mãos, se alaviar.

Lisboa 10 de Setembro de 1841.

Antonio Feliciano de Castilho.

18 JY 63
noscon
os vicios
os de fa
es, de fa
zem logo,
plantão, e
o tempo,
nsciencia,
veis; e,
não ini-
' essa hon-
nsando no
mes rema
que tralo
já agora
ejá tam-
i os rejo
ea suspi
Da mim,
os sangue
ar dopro
quanto po
garem ; e
a Pátria,

ilho.
as

METAMORPHOSES

De

PUBLIO OVIDIO NASÃO ,

POEMA

em

Quinze Livros,
Orba parente suo quicunque volumina tangis,
His saltem vestrá detur in urbe locus.
Quoque magis faveas , non sunt hæc edita ab illo ,
Sed quasi de Domini funere rapta sui.
Quicquid in his igitur vitii rude carmen habebit ,
Emendaturus , si licuisset , erat..
OVID. TRIST. LIB. 1. ELEG. 6.
BRITISH

MUSEUM
AS

METAMORPHOSES .

LIVRO PRIMEIRO.
BRITISH

MU
S JAL
LE
5

ARGUMENTO.

Determinado em cantar , quantas Transforina-


ções desde o começo do mundo houvera até o seu
tempo , começa o Poeta invocando os Deoses , au-
tores de taes prodigios . Pagina 11.- Encéta o Poê-
ma com a descripção do Cháos ; de que se extrahe e
fórma o Universo. Pag . 11. - Huma Potencia Supe-
rior estrema os Elementos , e compõe o mundo em
A
fórma esférica ; ordena o Mar , as Fontes , os La-
gos , e os Rios , os Valles , e os Campos , as Monta-
nhas, e os Bosques . Zônas celestes e terrestres . Sí-
tio , e natureza do Ar . Névoas , Nuvens , e Ventos ,
Trovões , e Raios . Aos Elementos sobrepõe-se o
E'ther. O Ceo se povôa de Astros , e Constellações :
o Mar , o Ar , e a Terra de diversos animaes . Pag.
12. - Creação do Homem ; varias hypotheses ácer-
ca da sua origem . Pag . 15.- As quatro Idades do
Mundo : de Ouro ; de Prata ; de Bronze ; e de Fer-
ro. Pag. 16 - N'esta , a perversidade , que senho-
rêa toda a Terra , vai commetter tambem o Ceo :
os Gigantes pertendem leval-o ; Jupiter os derri-
ba , e esmaga. A Terra ensopada no sangue d'es-
tes Gigantes , filhos seus , cria Homens : Segunda
6

Raça , que não desdiz da sua origem . Pag. 19. →→


Jupiter , descoroçoado com os crimes do Mundo ,
convoca os Deoses ; communica-lhes o presuppos-
to , em que está , de acabar com a Humanida
de ; e para lhes provar , quanto he justa a senten .
ça , conta , o que passou com o malvado Lycaon ;
a quem transformou em lobo . Os Deoses assentem.
Pag. 20. Manda o Diluvio. Pag. 26. - Deuca .
lião , e Pyrrha sua Mulher, unicos escapos á mor-
te , e n'hum barquinho aportados no Parnaso ,
recebem do Oráculo de Thémis preceito de reno-
var a Especie Humana. Deucalião , e Pyrrha atirão
pedras para traz das costas , que se transformão em
varões , e mulheres : Terceira Raça de Homens.
Pag. 29. A Terra, pela combinação da humida-
de com o calor , reproduz espontaneamente as ou
tras Especies Animaes , creando ao mesmo tempo
alguns Monstros novos. Pag. 35.- Hum d'estes
Monstros he a Serpente Pythôn . Apollo a mata ;
em memoria do que se instituem os Jogos Pythios.
Os vencedores n'estes Jogos não se coroão de Lou-
ro , por ainda tal arvore não existir : propõe-se
o Poeta contar a sua origem, e a rasão porque A pol-
lo a adoptou , preferindo-a a todas as outras arvo-
res. Pag. 36.- Fabula de Apollo e Daphne ; nar-
ração , en que se entra muito naturalmente , pela
desavença de rivalidades de gloria entre Cupido e
Apollo , depois da morte de Pythôn . Transformadu
Daphne em Loureiro, os Rios se ajuntão , a dar 03
sentimentos ao Rio Penêo seu Pai ; falta porêm o
I'nacho. Pag. 37. Este Rio está chorando a au-
sencia de sua Filha l'o , de quem nenhumas novas
póde haver. Jupiter namorado d'ella , e tendo- a en-
ganado , a transformára em Novilha, para assim a
esquivar a ciumes de Juno : Juno, desconfiada , lh'a
requer, e a dá a guardar a Argos . Mercurio, manda-
do por Jupiter , e disfarçado em pastor , consegue
adormentar a Argos palrando , e entrando , na his-
toria da Nympha Syrins , baldadamente requestada
de Pan , e convertida ao cabo em canavial : origem
da flauta. Mercurio dególa a Argos : Juno the ar-
ranca os cem olhos , e os engasta na cauda do Pa-
vào , ave , que lhe he consagrada ; e encarrega a
Erinnys de perseguir a sua rival aborrecida : foge
esta por toda a terra até as ribas do Nilo . Conse
gue Jupiter da Esposa o perdão para a triste des - ´.
terrada, que, restituida á sua figura primitiva , fica
sendo adorada dos Egypcios . Pag. 45. - Igual
honra obtem E'papho , fructo do seu commercio
com Jupiter. Disputa, e altercação em pontos de no-
breza entre E'papho , e Phaetonte , filho do Sol, e
de Clymene mulher de Mérope : Phaetonte, affron-
8
tado de que se lhe conteste a sua filiação divina
queixa-se á Mãi ; a qual depois de lh'a afiançar
por hum juramento , lhe aconselha , para maior cer
teza , ir perguntal -o ao mesmo Apollo ; para cujo
Palacio Phaetonte se parte logo. Pag. 53,

DESCRIPÇÕES PRINCIPAES.

Paginas.
Cháos . 11.

Zonas. 14.
Ventos. 14.
Homem . ... 15.

Idades : Aurea ; Argentea ; E'nea ; Férrea ... 16 .


Via Láctea , onde morão os Deoses Princi-
paes.. 20 .
Nóto ( Vento ) .....
.. 26.
Diluvio .... 26.

Tritão , e a sua buzína.. " 30.


Transformação espontânea do lôdo em ani-
maes depois das chêas do Nilo...... 35.
Daphne ; seu génio , seu theor de vida ...... 38.
Carreira de Daphne ... 40.
A lebre accossada do galgo.. 42.
Tempe , e Morada do Rio Penêo . 44.
. 9

Paginas
Argos.. 47 .

Syrins ; sua formosura , condição , e exer-


cicios ... 50.
18 JY63 .
METAMORPHOGES .

LIVRO I.

Forga-me E'stro a cantar mudadas fórmas


Em novos corpos. Numes, que as mudastes,
Na Empresa me ajudai . Trazei meu Canto
Desde a origem do Mundo aos nossos tempos.

NTES do Mar, da Terra , e Ceo, que os cobre,


Hum só aspecto a Natureza tinha.
Este era o Cháos ; massa indigesta , rude ,
12
Só pêso inerte , e em confusão discorde
Sementes mil de mil contrárias cousas .
Inda a hum O'rbe hui Sol não dava o dia :
Nem Lua incerta variava as noutes :
Não pendias , ó Terra , d'entre os ares
Na gravidade tua equilibrada :
Nem por extensas margens Amphitrite
Os espumosos braços dilatava.

Are Pélago e Terra estavão mixtos ;


As Aguas erão pois impermeaveis ,
Os Ares negros , movediça a Terra ;
Nada em seu proprio sêr permanecia :
Isto áquillo se oppunha ; que n'hum todo
Pugnavão frio e quente , húmido e secco ,
Molle e duro , o que he leve , e o que he pesado.

Hum Deos , outra mais alta Natureza ,


A' contínua discórdia emfim põe termo.
A Terra extrahe dos Ceos , o Mar da Terra ;
E ao Ar fluido, e raro abstrahe o espesso .
Tanto que a Mão Divina escolhe , arranca
Deste horror , deste acervo os Elementos ;
Bem que os desparta por diversos postos ,
Faz , que eterna harmonía a todos ligue.
Subito ao cume do convexo espaço
15
O Fogo se remonta ardente , e leve :
Na levidade , no logar lhe fica
Proximo logo o Ar ; ' mais densa que ambos
A Terra puxa os elementos graves ;
E do seu proprio pêso he comprimida .
O salitroso humor circumfluente
A possue , a rodêa , a lambe , e aperta .

Assim depois que o Deos , qualquer que fosse ,


O grão corpo dispoz , quiz dividil- o ;
E membros lhe ordenou. Para que a Terra
Não fosse desigual em parte alguma ,
Por todas a compoz na fórma de órbe .

Ao Mar então mandou , que se esparzisse ,


Que ao sôpro inchasse dos forçosos Ventos ,
E orgulhoso abrangesse as louras prayas.
A' móle orbicular deo fontes , lagos ;
Rios deo a fugir por margens curvas :
Rios , que a mesma terra em parte absorve
No vário , longo transito ; que em parte
Rompem ao mar , e soltos lá no espaço
De aguas mais livres , e extensão mais ampla ,
Em vez das margens , assaltêam prayas .
O Universal Factor tambem disséra :
" Descei , ó Valles , estendei-vos , Campos ,
14
" Surgi , Montanhas , enramai- vos , Selvas .

Como o Ceo repartido á dextra parte


Tem duas zonas , á sinistra duas ,
E huma no centro , mais fogosa que ellas ;
Assim do Deos o próvido cuidado
Poz iguaes divisões no térreo glôbo ;
Tantas como as dos Ceos o cingem plagas
Aquella , que das mais está no meio ,
Em calores inhóspitos se abrasa ,
Alta neve enregéla , e cobre duas ;
Outras duas porêm , que em meio d'estas
O Nume situou , são moderadas ,
Mixto o frio e calor. Fica imminente

A's zonas o Ar ; que em pêso ao fogo excede


Quanto em leveza o mar excede á terra.

Deos ordenou, que as Névoas , e que as Nuvene


Errassem no inconstante aéreo seio ;
Que os Ventos o habitassem , productores
D'arripiados , importunos frios ,
E os Raios , os Trovões , que o mundo aterrão .
Mas o Supremo Autor não deo nos ares
Arbitrario poder aos duros Ventos .
E inda assim , dominando oppostos climas ,
Mal póde o mundo contrastar-lhe as furias ;
¡Tal ferve entre os Irmãos a desavença !
Euro foi sibilar ao Ceo da Aurora ,
Aos Reinos Nabathêos , á Pérsia , aos cumes
Que o raio da manhã primeiro alcança.
O Véspero , essas plagas , que se amórnão
Com Phebo occidental , estão visinhas
Ao Zéphyro amoroso. O fero Bóreas
Da Scythia féra , e dos Triões se apossa .
As Regiões oppostas humedece
Austro chuvoso com assíduas nuvens.
O Nume sobrepoz aos Elementos
O líquido , e sem pêso , E'ther brilhante
Que nada envolve das terrenas fézes.

Logo que tudo com limites certos:


Foi pela Eterna
1 Dextra assignalado ,
As Estrellas que oppressas , que abafadas
Houve em si longamente a massa escura ,
A arder por todo o Ceo principiárão.
E porque não ficasse no Universo
Alguma região deshabitada,,.
Astros , e Deoses tem o ethéreo assento :
O Mar aos peixes nítidos he dado ,
Aves ao Ar , quadrupedes á Terra.

Em tanta multidão faltava hum Ente


16
De pura , de sublime intelligencia ,
Que dominasse em tudo. Eis nasce o homem.
Ou tu , Supremo Artífice , e Princípio
De mais perfeito mundo , o procreaste ,
Pura extracção de Divinal Semente ;
Ou a Terra inda nova , inda de fresco
Separada dos Ceos , lhes tinha o gérme ;
E tu , filho de Jápeto , amassando-a
Com aguas fluviaes , copiaste n'ella
Os Entes Immortaes , que regem tudo.
As outras Creaturas debruçadas
Olhando a terra estão : porêm ao Homem
O Factor concedeo sublime rosto ;
Erguido para o Ceo , lhe deo , que olhasse.
A terra pois , tão rude , e informe d'antes ,
Presentou finalmente , assim mudada ,
As humanas , incógnitas figuras .

Foi a primeira Idade a Idade d'Ouro .


Sem nenhum vingador , sem lei nenhuma
Culto á fé , e á justiça então se dava .
Ignoravão-se então castigo e medo.
Ameaças terriveis não se lião
No bronze abertas ; súpplice catérva
A' face do Juiz não palpitava :
Todos vivião sem Juiz , sem damno.
17
2
Inda nos pátrios montes decepado
A's ondas não baixava o pinho ingente ,
Para depois ir ver hum mundo estranho ;
De mais clima , que o seu , ninguem sabia.
Inda altos fóssos não cingião muros :
As tubas , os clarins não resoavão ;
Nem armas , nem exércitos havia :
Sem elles , os mortaes de paz segura
Em ócios innocentes se gosavão.
O ferro sulcador não a rompia ,
E dava tudo a voluntaria Terra .
Contente , do que brota sem cultura ,
Colhia a gente o montanhez morango ,
Crespos medronhos , e as cerejas bravas ,
A amora occulta na espinhosa silva ,
E as ponteagudas , luzidías glandes ,
Que da arvore de Jupiter cahião . 4
X
Erão todas as quadras Primavera .
Mansos Favonios com subtil bafėjo ,
Com tépidos suspiros amimavão 41
As flores , sem cultura então nascidas .
Vião -se enlourecer , curvar-se as mésses
Nos campos virgens d'aratórias lidas ;
Em rios ir correndo o leite , o néctar ;
E da verde azinheira estar cahindo
O flavo mel em pegajósas gotas .
Liv. 1 . b
18
Depois que , dado ao Tártaro Saturno ,
Ficou a Jove universal imperio :
Veio outra Idade ; se inferior á de Ouro ,
Superior á de Bronze , a Idade Argentea.
Jove contrahe a Primavera antiga :
Verões , Invernos , desiguaes Outonos ,
Curta , e branda Estação , que anime as flores ,
O anno repartem , variando os tempos .
O Ar então começou a escandecer-se ;
E ao som dos ventos a enrijar-se a neve.
Os humanos então principiárão
Guarídas a buscar : forão guarídas
A gruta , a moita espessa , a choça humilde
Presto engenháda de cortiça , e ramas.
Pela primeira vez o grão de Céres
Se esparzío , se escondeo nos longos sulcos ;
E opprimidos do jugo os bois gemêrão .

A's duas succedeste ,. Aénea Prole ,


De génio mais feroz , mais prompto á guerra ;

Mas não ímpia . ¡ Eis a ultima , a de Ferro !


Todo o horror , todo o mal rebentão d'ella :
Subito fogem Fé , Pudor , Verdade :

Occupão-lhe o logar mentira , astúcia ,


A insultuosa força , a vil perfídia ,
Da posse , e do podêr o amor infando .
19
Vélas o navegante aos ventos sólta ,
Aos ventos inda então mal conhecidos :
Longamente nas serras arraigado
O lenho já commette ignótas vagas.
A terra , que até-li de todos fôra ,
Como os ares , e o sol , por cauto dono
Ja se abalisa com limite extenso .
Não se lhe pedem só devidos fructos ,
Uteis searas ; vai-se-lhe ás entranhas :
Cavão-lhe , o que sumio na Stygia sombra ;
Cavão riquezas , incentivo a males.
Ja se desencantára o ferro infenso ,
E o ouro inda peiór : eis surge a Guerra ,
Que , de ambos ajudada , espalha horrores ,
Vibrando as armas na sanguínea dextra.
Fervem os roubos : o hóspede seguro
Do hóspede não está , do genro o sôgro :
A concórdia entre irmãos tambem he rara.
Tentão morte recíproca os espósos :
As madrastas crueis dispõem venenos :
Conta os dias paternos filho ingrato .
Jaz vencida a Piedade ; e sahe do mundo ,
Do mundo ensanguentado , a pura Astréa ;
Depois que os outros Deoses o abandonão.

Para não ser mais livre o Ceo , que a Terra,


b *
20 .
He fama , que Gigantes o assaltárão ,
A etherea monarchía ambicionando ,
Pondo até as estrellas monte ein monte.
Porêm Jove , com o raio estorroando
O Olympo , e sob o Olympo o O'ssa , o Pélion ,
Sobre o tropel sacrílego os derriba .
Esmagados com o pêso os féros corpos ,
Diz-se , que a Terra , a Mãi , no muito sangue
Dos filhos ensopada , o fez vivente .
Homens d'elle creou , porque a memoria
Da progénie feroz permanecesse .
A nova geração tambem foi dura ;
Dos Numes foi tambem despresadora ,
Dada a violencias , da matança amiga ,
Provando as obras , que a gerára o sangue.

Satúrnio vio dos Ceos estas maldades .


Gemeo : e recordando hum ímpio caso ,
Inda não divulgado , inda recente ,
O atroz festim da Lycaònia meza ,
Iras concebe o Deos dignas de Jove ;
E o Concelho Immortal convoca á pressa ;
Que á pressa congregado acóde ao mando.
Ha nos Ceos huma rua , alta , e patente ;
A summa candidez a faz notavel ;
Láctea Via se chama . Esta , a que sóbem
21

Os graves Cortezãos do grão Tonante ,


Quando a Palacio vão : de hum lado , e d'outro
Dos Deoses Principaes os átrios brilhão ,
Abertas sempre as frequentadas portas ;
Deoses Menores n'outros sítios morão ,
E os Potentes Celícolas Supremos
No tôpo os seus Penátes collocárão .
Este , a caber na voz audácia tanta ,
Palatíno dos Ceos o appellidára.
Em marmoreo salão juntos os Deoses ,
Todos , depois de Jupiter , se assentão ,
Que em logar sobranceiro , e sobreposta
A fulminante mão no ebúrneo sceptro ,
Por tres , e quatro vezes meneando
Espantosas melénas , com que abala
A Terra , o Mar , e os Ceos , taes vozes sólta
Com féra indignação . » Maior cuidado
" O mundo me não deo n'aquella idade ,
" Em que a turba de anguípedes Gigantes
" Tomar-me os Ceos lidou com braços cento :
" Que , posto que era horrendo esse inimigo ,
" De huma só raça infréne então com tudo ,
„ E de huma origem só pendia a guerra .
" Eis-me n'hum tempo agora , em que" he forçoso
" Fazer tremenda , universal justiça ,
" Perder a humana estirpe ; em tudo , em tudo ,
22

" Quanto abraça Nerêo circumsonante .


" Subterrâneas , tristissimas Correntes
" Correntes , que lambeis o Stygio Bosque ,
» Até juro por vós , que ao mal infando
„ Mil remedios , em vão , tentei primeiro .
" Mas incuravel chaga exige o ferro ::
"Cortada cumpre ser ; porque não lavre ,
" Porque não fique o são tambem corrupto .
" Ha lá por baixo , e os amo , os Semideoses ;
"" Campestres Numes ha , Faunos , e Nymphas ;
99 Sátyros , e os Montícolas Silvânes :
" Se inda honral-os no Ceo não nos aprouve ,
" Nas dadas terras , em seguro habitem :
"i¡ Mas podereis pensar , que estão seguros ,
" O' Deoses , quando a mim, que empunho o raio,
" A mim , que vos dou leis , tramou ciladas
99 Lycaôn , o afamado em tyrania ? „

N'esta interrogação freme o Congresso :


Querem todos o Réo da enorme audácia ;
Em vinganças fervendo o pedem todos .
Assim , quando ímpia mão queria extincto
De Roma o nome no Cesáreo sangue ,
Pelo terror da subita ruina
Attónita ficou a Espécie Humana' ;
Todo o mundo tremeo de horrorisado.
28
Augusto , então dos teus não menos grata
A ternura te foi , que a Jove aquella .

Depois , que ao grão susurro impoz silencio


Co'a mão , e a voz , emmudecêrão todos .
Suffocado o furor no acatamento ,
O Monarcha dos Ceos assim proségue .

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" Cuidado vos não dê a acção nefanda :

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„ O sacrílego autor já foi punido.
" Direi primeiro o crime , e logo a pena .
» Do corrompido século as infâmias
" Subírão-me ȧ notícia : desejoso
" De achar falso , o que ouvi , baixei do Olympo ;
» Ę a terra discorri com face humana.
» Relevára occupar moroso espaço
" Na feia narração , do que hei sabido ,
" De horrores , que encontrei por toda a parte :
Era a verdade emfim maior que a fama.
" Passado havendo o Ménalo , horroroso
"Covil de bravas féras , o Cylleno ,
" E o frígido Lycêo , que os pinhos c'roão :
" Do Arcádico Tyrano os lares busco :
" Entro os Paços inhóspitos ; já quando
"" Negrejava o crepúsculo da noute :

" Dou mostras , de que hum Deos era chegado ;


E votos pios me dirige o povo.
24
" Das preces Lycaon se ri primeiro ;
" Depois diz : -Şaberei , com prova inteira ,
" Se he Deos, ou se he mortal. - Dispõe matar-me,
" Quando os olhos tiver do somno oppressos :
" Da verdade lhe agrada esta experiencia .
E inda não pago d'isto , a espada infame
„ Vibra contra a cervíz de hum desgraçado ,
"Que dos Molóssos em refens houvera :

" Aos semi-vivos , palpitantes membros


" Parte amolléce com ferventes aguas ,
" Em sotopostas brazas tósta parte :
" Ja nas mezas os põe : mas de repente
" Co'a dextra vingadora o raio agito ;
" Sobre o cruel Senhor derribo os tectos ,
" Os tectos , e os Penátes dignos d'elle,
" Para o silencio agreste , agrestes sombras
" Foge rápidamente espavorido ;
» E querendo fallar , úiva o perverso .
"Colhem do coração braveza os dentes ;
" Com matador costume os volve aos gados :
" Inda sangue lhe apraz , com sangue folga;
" A veste em pello , as mãos em pés se mudão ,
" He lobo , e do que foi , signaes conserva ;
" As mesmas cans , a mesma catadura ,
" E os mesmos olhos a luzir de raiva .
" Ja huma habitação calio por terra ;
25

" Mas digna de cahir não he só huma ;


" Erínnys senhorêa o mundo todo.
" Parece , que os humanos protestárão
" Ter por unico emprêgo o dar-se aos crimes.
" A pena , que merecem , todos sintão .
" Está dada a Sentença . » E fica mudo.

O Decreto de Jove alguns applaudem ,


E a ira horrenda estímulos aggregão :
O mais da turba unânime confirma.

Dóe a todos porêm o inmenso estrago ;


Da triste humanidade o fim lhes péza .
Perguntão . " ¡ Qual será da terra a face ,
" Qual fórma a sua , dos mortaes vasia ?
"¿ Quem ha de ás Aras ministrar o incenso ?
" ; A devastar a abominosa gente ,
" Fará , que as féras dos desertos sáião ? "
D'esta arte os Deoses o vindouro inquírem .
" Não temais , lhes responde o Rei Superno ;
» Esse cuidado he meu ; dispuz ja tudo . »
E melhor geração , do que a primeira ,
Com portentosa origem lhes promette .

Ia ja desparzir por toda a terra


O Nume vingador milhões de raios ;
Eis teme , que a voraz , terrivel châma
26.

Com ímpeto crescida , accenda o E'ther


E lá se abraze do Universo o eixo .
A' memoria lhe vem , que leo nos fados ,
Que inda a Terra , inda o Mar , inda as Estrellas
Serião de alto incendio accomettidos,
E a máchina do Mundo arruinada .

Depondo as armas , que os Cyclópes forjão ,


De outra pena se apraz : com outros males
Quer punir os mortaes ; quer suffocal-os
Co'as sôltas aguas , derretendo 'as nuvens
Por todo o pólo em rapidos chuveiros.
Na gruta Eólia subito aferrólha
Aquilão rugidor , e os mais , que espancão
Altas procéllas , grávidos vapores .
O Nóto desencerra ; e voa o Nóto ,
Longas as pennas mádidas , envolta
Em densa escuridão a atroz carranca :
Pesão-lhe as barbas com pejadas nuvens ;
Escorre-lhe a meléna encanecida ;
Pousão-lhe as névoas na cabeça horrenda ;
" Co'as azas e co'o manto orvalha os ares .
?
Tanto que espreme as ondeantes nuvens ,
Hum ríspido fragor no Ceo retumba ;
E o Ceo rebenta em hòrrida torrente.
I'ris , a Nuncia da Satúrnia Juno ,
27
Trajando roupas de matíz lustroso ,
Embebe as aguas , e alimenta as nuvens .
Morrem nas louras , trémulas searas
Ao cultor lacrimoso as esperanças :
Hum momento destróe de hum anno a lida.
Para o furor de Jove os Ceos não bastão :
O azul Irmão co'as ondas o auxilía :
Este os Rios convoca ; e mal que os Paços
Entrão do iroso , undívago Tyrano :
" Não careço , lhes diz , para comvosco
" De longa exhortação , Fieis Ministros .
" Ide , inchai , derramai-vos pelas terras ;
" Vazem-se de repente as urnas vossas ;
Rompa-se o dique ás prófugas correntes ;
" Sólte-se o freio ás aguas : assim cumpre. "
Ordena : partem , correm vão-se ás fontes ;
"
E as bocas , d'onde sabem , lhes desapertão :
Volvem depois ao mar desenfreados .
Neptuno vibra o Cérulo Tridente ;
Fere a terra com elle ; e treme a terra ;
E ás aguas co'o tremor franquêa o seio.
Com brava furia trasbordando os rios

Pelos campos se alastrão : ja derribão ,


Ja comsigo arrebatão plantas , gados ,
Gentes , habitações , e os Lares santos .
Se ha , por dita , edificio , que não cáia ,
28
Se algum resiste ao pavoroso estrago ,
A torrente voraz lhe cobre os tectos.
Tremendo as torres ameação quéda ,
Rôtas , cavadas pelo embate undoso .
Ja se confunde o pélago co'a terra :
Ja tudo he mar ; ao mar já faltam prayas .
Qual sobe resfolgando alpestre outeiro ;
Qual vaguêa medroso em curvo barco ;
E , onde lavrárão bois , trabalhão remos.
Sobre as perdidas , afogadas mésses
Vai navegando aquelle , ou sobre os cimos
Das submersas aldeas : este apanha
Um peixe enleyado em píncaros de ulmeiro .
Ferrão-se acaso as ancoras ganchosas
Nos prados , que sob agua inda verdêjão :
Roção , rompem vinhaes as curvas quilhas .
Na rélva , que os rebanhos tosquiávão ,
Pousa do Equóreo Vate o gado informe :
Assombrão-se as Nereidas de avistarem
Debaixo da agua bosques , edificios .
Por entre as selvas os Delphins voltêão ,
Co'as negras trombas pelos troncos batem ,
E o carvalho a vergar no encontro empurrão.
O lobo vai nadando entre as ovelhas :
Em meio da torrente impetuosa
Bóião fulvos leões , manchados tigres.
29

Não vale aos javalís a força enorme ;


A summa rapidez não vale aos cérvos.
Buscada longamente , e em vão buscada ,
Pelas aéreas aves sendo a terra ,
Onde repousem do contínuo vôo ,
Canção-se emfim , despenhão-se nas aguas.
Ja com soberbos torreões de espuma
Cobre o pégo arrogante as árduas serras ;
Fervem de em torno aos mais fragosos picos
As ondas, que jamais ali fervêrão ;
Assaltando os misérrimos viventes
No vão refúgio , quasi tudo absorvem ;
E aquelles , que da furia se lhe esquivão ,
Em comprido jejum ralados morrem .

A Phócida , que os A'tticos separa


Dos afamados campos da Béócia ,
E terra píngue foi , quando foi terra ,
He ja de aguas envôltas lago immenso.
Ali de cumes dous montanha ingente ,
Tendo a ramosa fronte além das nuvens ,
E arremetendo aos Ceos , se diz Parnaso.
N'ella Deucalião , porque dos mares
Jazia tudo o mais emfim coberto
N'ella Deucalião tinha aportado
Em pequeño baixel co'a.terna esposa ,
30
Forçados pelos ímpetos das aguas.
Desembarcando os dous , off recem logo
Interno culto aos Numes da montanha ,
A's Nymphas de Corycio , a Thémis sacra ,
De quem ali o Oráculo se ouvia.
Nenhum dos homens excedêra áquelle

No amor ao justo , no temor aos Deoses ;


Luzião na Consorte iguaes virtudes.
Jove , que o mundo vê todo innundado ,
Vivos , de tantos mil , só hum , só huma ,
Ambos tão pios , tão amaveis ambos ,
C'os sôltos Aquilões dispersa as nuvens ,
As pesadas carrancas dos chuveiros ;
E a Terra mostra aos Ceos , e os Ceos á Terra.
Nem do Pélago a furia permanece :
Com o ferro de tres pontas mal que o toca ,
As ondas lhe amacía o Deos das ondas ;
E chamando Tritão , que levantado
Sobre a agua está , cobertos de brilhante
Púrpura natural seus rijos hombros ,
O búzio roncador , lhe diz , que assopre ;
Que no usado signal ordene aos rios ,
E ao trasbordado mar , que retrocêdão.
Da sonorosa , e cóncava buzína

Lança mão de repente o Grão Mancebo ;


Da buzína , que em circulos , em rôscas
31
Da ponta para cima se dilata ;
Que , tanto que no seio acolhe os ares ,
De hum , e de outro Hemisphério atrôa as prayas.
Eis aos lábios a concha o Deos applica
Por entre negras barbas orvalhosas ;
Inchão-lhe as faces ao robusto assopro :
E aguas da terra , e mar , que o som lhe escutão,
Subito , a seu pesar , vem recuando :
Este ja prayas tem ; tem leito os rios ;
E murmúrão pacíficos , e tardos.
Os outeiros assomão : surge o sólo.
Os campos crescem , decrescendo as ondas.

Depois de longo espaço , os arvoredos ,


Os arvoredos nús se vão mostrando :
Dos despojados troncos pendem limos.

Emfim renasce o Mundo. Vendo o triste ,


O bom Deucalião vasia a terra ,
E alto silencio derramado em tudo ,
A Pyrrha , diz , chorando : " O' doce Espôsa ,
" Doce Irmãa e hoje a unica de tantas
" Habitantes do Mundo , e que ligada
" Pelo amor , pelo sangue , estás comigo ,
" E ao presente inda mais pelo infortúnio :
" Do Nascente ao Poente em toda a Terra

" Só habitamos nós , só nós vivemos :


32
" Tudo o mais pelas ondas foi tragado ,
„ E cuido , que não tens inda segura
» Tua existencia tu , nem eu a minha :
" Estas nuvens , que observo , inda meaterrão .
"¡ Ah! triste ! que farias, se arrancada
" Ao fado universal, sem mim , te visses !
" Onde , fria de susto , onde leváras
" A planta vacillante ! ¡ e quem seria
" Tua consolação na dôr , no pranto !
„ Crê , minha Amada , que, se o Mar sanhudo
» Te escondesse nas sôfregas entranhas,
. ‫ מ‬Te houvera de seguir o afflicto espôso :
" Sócio te fôra em vida , e sócio em morte.
"¡ Oh ! Não ter eu de hum Pai herdado a industria !
" ¡ Renovaria agora a humanidade ,
» Alma infundindo na formada terra !
" Todo o Género Humano em nós se inclúe :

" Isto aos Fados apraz , apraz aos Deoses.


" ¡ Ficámos para exemplo, de que o mundo
" Morada de homens foi! » Disse ; e choravão.
Depois, tornando em si , resolvem ambos.
Recorrer aos Oráculos Sagrados ,
Da Deosa Thémis invocar o auxílio.
Não tardão ; vão-se á margem do Cephíso ,
Inda revolto sim , mas ja com margens ;
E apenas pelas frontes , pelas vestes
Os líbádos licores desparzírão '
Para o Templo da Deosa os passos torcem.
Manchava tôrpe musgo a frente , os tectos
Da estància veneravel ; e jazião
Sem Ministro , sem luz sem culto as aras.
Como os sacros degráos tocado houvessem ,
Sobre a mádida térra os dous se prostrão ,
E dão nas pedras ósculo medroso :
Orão depois assim : " Se justas préces
" Tornão benignos os irados Numes ,
99 Se a cólera dos Ceos com ais se adóça ,
" Dize-nos , Deosa , dize-nos , de que arte
" Podemos restaurar a espécie humana ;
" E soccorre piedosa o triste Mundo . "
Movendo-se a Deidade , assim lhes falla :
" Do meu Templo sahí cobrindo as frontes ,
" Soltai as vestiduras , que vos cingem ,
» E para traz depois lança os óssos
" Da vossa Grande Mãi . » Tendo ficado
Attónitos os dous espaço grande ,
Pyrrha , primeiro emfim rompe o silencio :
Da Divindade as leis cumprir não ousa ;
E com trémula voz perdão lhe róga ; を
Porque teme , espalhando os óssos frios ,
Aos Mânes maternaes fazer injúria.
Depois d'isto repetem , pesão , notão
Liv. 1 . C
34
As palavras do Oráculo sombrío ;
Té que Deucalião , o venerando
Filho de Promethêo , com brandas vozes
Serena a cara Espôsa , e diz : „ Se acaso
" Não revolvo illusões no pensamento ,
„ O Oráculo da Deosa he justo , he pio :
" Não nos ordena o mal , não quer hum crime.
" A Grande Mãi , que ouviste , a Mãi de todos ,
" He a Terra ; a meu ver , são d'ella os óssos
" As pedras ; e essas , diz , que atraz lancemos."
Bem que esta intelligencia agrade a Pyrrha ,
Esperanças com dúvidas se envolvem
E ambos das Ordens Santas desconfião .
i Mas que mal faz tentar ? Descem do Templo :
Cobrem a fronte , as túnicas descingem ;
E logo , para traz as pedras lanção.
Eis , (¡ quem te dera credito , ó Portento ,
Se annosa tradição não te abonasse ! )
Eis que as pedras de subito começão
A despir-se do frio , e da rigesa ,
E despindo a rigesa , a transformar-se ;
Crescendo vão : mais branda natureza
Lhes entra ; e , se perfeito o vulto humano
Logo alli se não vê , se vê comtudo
Em grosseiros signaes a semelhança :
Quaes mármores apenas desbastados ,
35
Estátuas , em comêço , informes , rudes.
Partes , que erão terrenas 9 e succosas 2
Nas carnes e no sangue se convertem ;
O que tem solidez , e o que não dobra ,
Muda-se em óssos ; e o que d'antes n'ellas
Veia se nóшueou , conserva o nome .

N'hum breve espaço emfim , ¡ mercê dos Deoses !


As que arroja o varão , varões se tornão ;
E as que sólta a mulher , mulheres ficão .
Por isto somos fortes , somos duros ,
Aptos a emprêsas , proprios a trabalhos ;
E em nosse esforço , na constancia nossa ,
Claramente se vê , que origem temos .

Os outros Animaes na fórma varios ,


A terra os produzio , sendo escaldado
Pelos raios do Sol o humor antigo .
Os encharcados , os lodosos campos
Com o activo calor se entumecêrão ;
E os , no sólo vivaz enclausurados ,
Almos princípios seminaes dos sêres ,
Qual no ventre da mãi se nutre o féto ,
Lá se forão nutrindo ; co'a demora ,
Crescendo ; no crescer , tomando aspectos .
Tal , depois de espraiado , quando volta
O grão septémfluo Nilo ao prisco leito 9
36
Co'a etherea flamma se afoguêa o lodo ;
E por entre os torrões , quando os revolve ,
De animaes o cultor acha milhares ;
Alguns inda a nascer , formados parte ,
E parte os membros seus inda imperfeitos ;
E vê-se muitas vezes , que de hum corpo
Metade vive ja , metade he terra.
Humidade e calor engendrão tudo "
Se mutuamente se tempérão ambos.
Bem que da agua contrario o fogo seja ,
Sahe do húmido vapor , quanto se gera ;
E a discorde concórdia he fonte ás vidas.
Por tanto , a fértil Mãi , a extensa Terra
Do recente Diluvio. repassada ,
E pelo aéreo lume escandecida ,
Innúmeras espécies foi brotando.
Deo ser a algumas co'a figura antiga ;
N'outras emfim, criou não vistos monstros ,

Tu foste , a seu pezar , tu foste hum d'elles ,


Descommunal Pythôn , Serpente ignota ,
Da nova gente assombro. ¡Assim do monte
Cobrias co'o volume enorme espaço !
O Deos, que o arco empunha , e só nas côrças ,
Só nas velozes , montanhezes cabras
O empregára até-lí , foi , quem , vibrando
37

Séta apoz séta , exhausta quasi a aljava ,


E ja co'a férrea mésse opresso o monstro ,
Pelas negras , innúmeras feridas
Lhe fez lançar co'a peste a vida infecta :
E , porque o tempo não gastasse a fama ,
Jógos criou com públicos certâmes ,
Da vencida Pythôn chamados Pythios .
O vencedor no césto , ou na carreira ,
Ou no côche fugaz , de verde enzinho
Recebia por prémio honrosa c'rôa .
Não havia inda o louro ; e o proprio Phébo
A' gentil fronte de espaçósas tranças
Grinalda em qualquer arvore colhia.
Do Louro , que hoje traz , direi a origem .

Foi dos amores seus o amor primeiro


A Filha do Penêo , a ingénua Daphne ;
De Cupido coléricas vinganças ,
Não cegueiras da Sorte , o produzirão.
Da recente façanha inda soberbo
Encontra o Délio Deos ao Deos Menino
De arquinho em punho , a retesar-lhe a corda :
39 i Desenvolta criança , que te metes
" Com fortes armas , tu ? Armas , como éssas ,
" Só a mim ficão bem ; a mim , que posso
„ Féras , contrarios derribar com os tiros ;
38
" Que debellei Pythôn ; Pythôn , que tantas
" Geiras com o ventre immundo assoberbava.
" Sétas deixa , contenta-te com o facho ,
" Vai com o facho accender não sei que amores:
" Não queiras aspirar aos meus triumphos. 22
" Phébo , lhe volve o filho de Dyóne ,
99 Teu arco fere a tudo , e o meu te fere ;
" D'essas féras ao Nume , que as debella ,
" Menos vai , que da tua á minha gloria. "
Disse : e , fendendo o ar co'as ageis plumas ,
No alto pousou do umbrífero Parnaso.
Extrahe da plena aljava duas sétas ,
Diversas no lavor , no effeito oppostas ;

Esta amores produz , aquélla os banne ;


A primeira , fulgente , he de ouro , e aguda ;
Baça , e romba , a segunda he chumbo inerte :
Com esta , fere o Deos o seio á Nympha ;
Co'a outra , a Apollo os íntimos do peito.
¡ Eil-o ama! ¡ eil-a de amante odêa o nome !
Só folga extraviar-se em labyrinthos
De selvatico horror , trajar á custa
Das féras , que prostrou ; rival em tudo
Da virginal Diana , até , como ella ,
Só preso de hum listão , deixava errante
O cabello em vistoso desalinho.
Mil a pertendem , mil : tem ódio a todos.
39
Intaeta , impaciente de consorte ,
Corre , sósinha , os bosques inaccessos ."
Sem curar de hymenĉo , de amor , de núpcias.
Quantas vezes seu Pai lhe repetia :
" Deves-me hum genro , ó Filha. " Quantas vezes ,
" Filha , deves-me netos . " The tornava !
Mas ella , como crime detestando
Conjugaes uniões , » Meu Pai , " dizia ,
Toda accesa em rubor no lindo aspecto ,
E á paterna cervíz lançando os braços ,
" Permitte , caro Pai , á cara filha
"» Poder gozar perpétua virgindade :
" Diana de seu Pai obteve o mesmo. 19

O Velho condescende . ¡ Emvão ! que , ó Daphne ,


Resiste aos rógos teus o teu semblante :
Não he , qual te apraz ser , quem he tão linda,

Em vago , inquiéto amor fervendo Apollo ,


Vio Daphne ; suspirou-a para espôsa :
Suspirou ; e de obtel-a entrou na esp'rança .
¡Tanto ao seu Nume o Oráculo mentia !
Qual hum ceifado chão se larga ás châmas ;
Qual se abrasa hum vallado , onde , a descuido ,
O archote do viandante ou roça , ou fica ,
Ao romper da manhã tornado inutil ;
Taes no peito do Nume incendios lavrão :
40
Arde ; e esperanças vans o ardor the nutrem.
Vê-lhe os cabellos , desornados , sôltos
Pela ebúrnea cervíz : " Que fôra , exclama ,
" Se os quizesse adornar ! " Nota em seus ólhos
Fulgor suave , que envergonha os astros ;
Admira a curta boca , onde os dezêjos
Pédem mais que admirar ; seus dedos louva ;
Louva o curto da mão , a alvura , a fórma
Dos braços quasi inteiros descobertos ;
E julga mais formoso o mais occulto.

Aterrada com a furia dos louvores


Fóge a Nympha mais rapida que as auras ;
Nem pára aos do Amador queixumes ternos,
" Detem-te , ó do Penêo formosa Filha :
" Inimigo não sou : detem-te ; espera ,
" O ' Nympha do Penêo : qual vais , taes fogem
" A " côrça do leão , do lobo a ovelha ,
" Da aguia a pomba medrosa : ¡ essas , que fujão !
" Razão têm ; seus contrarios as perseguem :
" A ti , segue- te amor . ¡ Oh Ceos ! ¡ não temes
" Ferir em dura quéda o brando rosto ,
"6Os não culpados pés rasgar de espinhos ?
" ¿ Queres ter dôres , porque eu tenha as culpas ?
"¡Vê , porque ásperos sítios te arremessas !
" Ja não digo , ó cruel , que me não fujas ,
" Só te digo, e te peço , e te conjuro ,
"Que , antes de me fugir , quem sou , conheças :
" Não sou montez boçal , pastor inculto ; ` ..
» Manada aqui não vês , não vês rebanho .
" ¡ Mal presumes tu , louca , o de quem foges !
>>Por isso foges : Ténedos , e Claros ,
" Pátara , e Delphos por domínios tenho :

" He Jupiter meu Pai : sou eu , que exponho ,


" O que he , foi , ou será: por mim , se ajustão.
" Dos canticos aos sons os sons das cordas :
Nunca frécha , que eu lance , errou seu alvo :
" ¡ Ai ! mais certa que a minha ha outra ; ha outra,
" Que n'este peito illeso entrou profunda !
" O invento de curar a mim se deve ,
" Por Nume Valedor me acclama o orbe ,
" Das plantas o poder na mente abranjo :
"¡ Mas ah ! chaga de Amor não curão plantas ;
» Minha Arte vale aos mais , e não me vale ! ”

Mais ia por diante : a Nympha vôa ,


Deixando o Nume áquem , e em meio as frases.
N'isto mesmo encantava : o vento ás sôltas

A discompunha ; as roupas rebatidas


Pela aérea torrente lhe ondulavão
Com vibrado estridor ; co'as auras leves
Longas zunião para traz as tranças.
42
Dava ás graças realce a propria fuga .

Mais afagos perder , não quer , não soffre


O Nume juvenil , ja rédeas larga
Aos ímpetos de amor ; ja precipita
Com toda a furia o despedido alcance.
Quando em rasa campína o cão da Gállia
Descobre a lebre ; partem , demandando
Elle a prêsa , ella a vida ; elle parece
Ir sobre ella cahir , ja crê ferral-a ,
Ja com o longo focinho os pés lhe roça ;
Ella vai sem saber , se ja foi presa ,
Ja , ja dentes sentio , ja dentes frustra :
Taes á Virgem , e ao Deos prestavão azas
Esp'rança , temor ; porêm mais leve
Era aquelle , a que Amor junctava as suas.
Trégua não dá , nem fólga á fugitiva ,
Sobre a espalda lhe vai , ja seus cabellos
Co'o perturbado anhélito bafêja .
Eis , sem fôrça a infeliz amarelece ,
Do cançasso da fuga extenuada ;
E , á veia do Penêo lançando os olhos ,
" Se ha nos Rios poder , se Nume ha n'elles ,
" Vale-me , exclama , ó Pai , vale-me , ó Terra ,
" Onde agradei de mais ; abre-te , ou muda
» Esta fórma gentil , meu damno agora. »
43
N'ísto, hum grave torpor lhe tolhe os membros :
Fina entrecasca involve-lhe as entranhas ,
Vai-se a coma em folhage , em rama os braços ;
Prende tarda raiz tão leves plantas ;
O rosto se destróe mudado em cópa :
Nada tem , do que teve , além do lustre.

Phébo a adora inda assim ; as mãos lhe lança ;


E no tronco recente , enclausurado ,
Da ingrata o coração pulava ainda.
Como que abrace o corpo , abraça os ramos ;
Beijos no lenho dá , que treme aos beijos.
" Ja que ser minha Espôsa não podéste ,
"Minha Arvore serás , lhe brada o Nume.
"Sempre de tuas folhas , sempre , 6 Louro ,
" Fronte , lyra , e carcaz trarei c'roados.
" Com os Lácios Capitaës , por entre applausos ,
» Subirás em triumpho ao Capitólio.
" De Augusto ante os umbraes fiel vigía
" Velarás seu Carvalho a hum lado , e a outro,
" E assim , como de eterna mocidade
" Me orna intonso cabello , em ti verdêje
" De perpétua folhage honroso viço. »
Calou-se : o Louro annue co'os frescos ramos ;
E em vez da antiga fronte agita o cume.

Surge na Hemónia hum plácido arvorêdo ,


44
De altas matas asperrimas cercado ;
Tempe o chamão . Penêo por lá devolve
Desde as abas do Pindo as ondas crêspas :
No despênho precípite , e espumoso
Nevoeiros produz , que , em nuvens sôltos ,
Vão borrifando as arvores por cima ;
Com o som turvo importuna ao longe os échos .
Eis do Grão Rio os Paços , a Vivenda ,
Os Sacros Penetraes ; alli , sentado
Em gruta de penhascos , promulgava
A's ondas suas leis , e ás Nymphas d'ellas .
Da maravilha á nova , antes de todos ,
Da visinhança os Rios concorrêrão ;
Incertos , se com o Pai se congratulem ,
Se o devão consolar : o Sperchio chega ,
O Sperchio , entre choupaes viçoso rio ,
O revôlto Enipêo , serêno Amphriso ན་ ་
E'as , o velho Apídano moroso ;
E apoz estes , os mais , que , enfastiados
De longo e longo errar , emfim se abismão.
Por fózes , que em seu ímpeto rompêrão ,
No largo Oceano : o I'nacho só falta .

Nas fundas lapas I'nacho escondido


Altea com seu pranto as aguas suas :
l'o , a filha gentil , perdida chora :
45
Não sabe, se está viva , ou se entre os Månes ;
Mas, porque a não encontra em parte alguma ,
Em nenhuma do głôbo a julga o triste ;
E o peiór se lhe antólha ao pensamento .

Volver do pátrio rio a víra Jove :


" Virgem , digna de Jupiter , guardada
Para felicitar , lhe disse o Nume ,
No thálamo suave hum ente humano ;
"Procura as sombras dos fechados bosques ;
"(E aos bosques lhe apontou) a calma apérta ;
" Dos ceos está no cume o sol fervendo :
" Se temes ir sósinha , aonde ha féras ,
" De hum Deos acompanhada , irás segura ;
"Não de hum Deos inf'rior , porêm d'aquelle ,
"Que o sceptro universal na mão sustenta ,
"E o raio irresistivel arremessa.
" Não , não fujas de mim (que ella fugia).

Ja de Lérna as pastagens , e os frondosos


Arvorêdos Lircêos I'o passára.
Eis , em néyoas o Deos sumindo a terra ,
Lhe prende os passos ; e o pudor The usurpa.

Juno os olhos em tanto aos campos volve :


E estranha , em claro, dia , hayer tal névoa ,
46
Névoa tão densa , como os véos nocturnos :
Que das aguas não sahe , nem sahe das terras.
Olha em torno de si , não vê o Esposo ;
E suspeitosa , pelo haver colhido ,
Ja vezes cento , em amorosos furtos ,
Não o achando nos Ceos , « Ou eu me engano ,
Ou lá me aggravão , " diz . E , deslizada
Da etherea habitação , parou na terra ;
Onde o sombrío horror desfez n'hum ponto.
Mas o Consorte presentio-lhe a vinda :
E em candida novilha , por cautella ,
De I'nacho a próle transformado havia ;
Que depois de novilha inda he formosa.
Satúrnia , a seu pezar , lhe dá louvores :
Pergunta , de quem he , d'onde viera ,
Pergunta , a que manada emfim pertence ;
De estar longe do caso indícios dando.
Que a terra a produzio , responde Jove ,
Mentindo , por fugir se inquira o dôno .
N'isto Satúrnia em dádiva Ih'a pede.
O Amante , i que fará ? cruel , se entrega
Os seus amores ; se os não dá , suspeito .
O que pêjo aconselha , amor impugna ;
Vencido pelo amor seria o pêjo :
Porêm 9 se á sua Irma , se á sua Espôsa

Negar huma novilha , hum dom tão leve ,


AG
Póde , talvez , não parecer novilha .

Já na posse da adúltera , não despe


A Deosa todavia o seu receio ;
Teme a Jove ; e do aggravo está mordida .
Argos , o filho de Aristor , lhe occorre ;
E quer , que lh'a vigie ; e d'elle a fia .
De Argos cinge a cabeça hum cento de ólhos ;
O'lhos , que , dous a dous , o somno altérnão ;
Desvelados os mais na prêsa cuidão.
Em quaesquer posições attento a guarda :
Volta-lhe as costas , e tem l'o á vista.
Permitte-lhe pascer , em quanto he dia ;
Em trasmontando o Sol , vai ferrolhal-a ;
E hum laço injusto lhe tornêa o cóllo .
Rijas folhas de agreste medronheiro ,
Hervançaes desabridos , amargosos
Morde , rumina a triste . Em vez de leito ,
Dão-lhe nem sempre de herva o chão forrado ,
Matão-lhe as sêdes em corrente impura.

Súpplices braços estender quizera


Para o seu guardador ; ¿mas , que he dos braços?
Intenta dar hum ái ; solta hum mugído:
Treme do som ; da sua voz se espanta.

Hum dia ás margens vai , onde brincava ,


48

A's margens paternaes : vê na agua as pontas


E , medrosa de si , foge do rio .
I'nacho ignora , as ( Naiades mal cuidão ,
Quão pertencente lhe hes, gentil Novilha !
Eil-a os segue ; ás Irmãs , ao Pai , que a admirão,
Não só deixa , que a toquem ; mas se off rece ,
O Velho hervas lhe colhe , e chega aos beiços ;
Ella lhe lambe as mãos ; as mãos The beija :
Terno pranto lhe corre : e , se podéra ,
Soccorro a desditosa invocaria ;
Seu nome , os fados seus articulára .
Mas com letras emfim suprindo vozes ,
Servindo-se do pé , na area exprime
O triste anúncio da mudada fórma .
" ¡Oh Pai desventurado ! " I'nacho exclama ,
Abraçando a cervíz , pegado ás pontas
Da alva bezêrra , da chorosa Filha ,
" Oh Pai desventurado ! " (elle repete) ;
59 i E's tu , Filha infeliz , tu , procurada
" Tantas vezes por mim , e em tantas partes ?
¡Antes , que ver te assim , nunca eu te víra !
"Menor seria então minha amargura .

" ¡ Ah malfadada ! Responder não sabes ,


" Altos suspiros sós do น peitos arrancas !
» Mugir á minha yoz he quanto pódes .
" ¡ E cus que outr'ora , estes fados não prevendo ,
• " O tóro nupcial te apercebia !
» Duas ¡ bem lédas ! esperanças tive ;
" Primeira , o genro foi ; segunda , os nétos ;
"9 Espôso , e filhos nas manadas brutas ,
"Querido meu Penhor , terás agora.
" Nem posso tanto mal findar co'a vida :
Empéce-me o ser Deos ; aferrolhadas ,
" Defesas para mim da morte as portas ,
" Se estende minha dôr á eternidade . "
O oculoso Pastor , que lhe ouve as mágoas ,
Ao lamentavel Pai remove a Filha ;
E vai apascental- a em outros campos :
De alto monte , assentado , a vê , e a tudo.

Que ella sinta , porêm , tão duros males ,


Não póde o Rei dos Ceos soffrer mais tempo.
Chamando o Filho , que de Máia houvéra ,
Lhe ordena , lhe commette a morte de Argos.
Mercúrio logo aos pés segura as azas ,
Toma a vara somnífera , o Galéro ;
E , ataviado assim , desfecha ás terras .
Galéro alli depõe , depõe talares ,
Sómente o Caducêo na mão conserva ;

Com elle , qual pastor , se vai tangendo


Caprina grei , que ao seu chegar , por dita ,
Desguardada apanhára em campo escuso ;
Liv . 1.
50
E de canóra flauta os sons diffunde.
Da nova , dôce musica tentado ,
Argos ao Nume diz : » Quem quer que sejas ,
» Bem podéras aqui , n'este penbasco ,
" Ao pé de mim desfadigar-te hum pouco ;
" Pasto , não no ha melhor para o rebanho ,
" Nem para hum guardador mais bellas sombras , "
O Deos se assenta : em práticas prolixas
Consome o dia : adormentar procura
Com a avena os cem lumnes veladores ;
Porêm repugna o Monstro aos molles somnos ;
E , bem que os acolheu parte dos ólhos ,
Parte d'elles vigía. Emfim , porque era
Da flauta a invenção recente ainda ,
A Mercúrio o Pastor pergunta , o como
Se inventára ; ao que o Deos d'esta arte acode :
"Nos frescos montes A'rcades , grão fama
" Teve entre as Hamadryades Nonácrias
" A Naiade Syríns , Syríns a esquiva .
" Quanto seguir de Sátyros protérvos
"Não burlou¡Que de audácias namoradas
" Dos mais Numes do campo , e das florestas !
" Honrava nos costumes , no exercicio ,

" E na flor virginal a Ortygia Deosa.


" Em trajo venatório era Diana :
" A similhança os ólhos enganára ,
51
" Se arços diversos não tivessem ambas ',
99 Syríns , hum de marfim, Latónia , hum de ouro ;
"E assim mesmo enganava. Ella , deixando
"O sombrio Lycêo , de Pan foi vista ,
" De Pan c'roado do pinheiro agudo ;
"E o Deos fallou -lhe assim .... » Narrar faltava ,
O que lhe disse o Deos ; que accesas préces
A Nympha repulsára ; e qual fugíra ,
Por ásperos desvios não trilhados ,
Com elle sempre após , até a margem
Do serêno Ladôn ; que alli parando ,
Pelo estôrvo das ondas , deprecára
A's líquidas Irmãs , que a transformassem :
Faltava referir , que , em vez da Amada ,
Crendo que ja nas mãos a tinha presa ,
Pan , sómente abraçou palústres canas ,
Que , em quanto suspirava , os ares n'ellas
Fizerão ténue som , quasi queixume ;
Que na arte nova , que na vóz suave
Enlevando-se todo , o Deos disséra :
" Taes collóquios sequer , terei , comtigo : »
Que ás canas desiguaes com cêra unidas
Déra seu nome a Nympha. Ia Cyllénio
Proseguir ; eis que vê do somno oppressos
Os olhos todos : subito emmudéce ;
Roça- os co'a vara , e lhes carréga o somno.
* *
52
Rapido , logo , alçando o ferro curvo ,
No vacillante cóllo o gólpe acérta :
Do penhasco o derriba envôlto em sangue :
O sangue em borbotões macúla o monte..

¡ Argos , jazes emfim ! De todo extincta


A claridade está de tantos lumes ;
Sombra eterna te occupa os olhos cento.
Satúrnia lh'os extrahe , na cauda os crava
Da Ave sua , e com elles a abrilhanta .

Mas fréme a Deosa ; não retarda as iras :


Da Argólica rival aos ólhos , e alma
Expõe a véxadora , horrenda Erínnys .
Seus cruéis aguilhões lhe enterra a Fúria ;
Por todo o mundo a prófuga perségue .
Nilo , ao trabalho immenso , á espavorida
Carreira universal tu só restavas .
Tanto , que imprime o pé na margem tua ,
Sobre os joelhos cahe : e , aos Ceos erguendo ,
O que erguer só lhe he dado , os ólhos tristes ,
Com prantos , e mugídos luctuosos ,
Parece , que se está queixando a Jove ;
E que dos males seus o fim lhe implóra.
Elle , o cóllo abraçando á Sacra Espôsa ,
Lhe roga , que remate a pena acérba.
53
" Perde o temor , lhe diz , crê , que incentivo.
" I'o não mais será de teus desgôstos. 99
E o Protesto formal co'a Styge abona..
Apenas se embrandéce ao rogo a Deosa ,
Torna a formosa Nympha ao gésto antigo ;
Torna a ser , de repente , o que era d'antes :

Desaparece o pello , vão-se as pontas ,


O órbe , a fórma ocular se lhe restringem
Abrevia-se a bôca , os hombros volvem
Volve o braço redondo , a mão mimosa ,
Desfeito o casco negro em claras unhas :
Ja sómente em dous pés está sustida ;
Da Novilha , não tem senão a alvura.

Receando mugir , fallar não ousa ,


E a desusada vóz ensáia a medo .
Celeberrima Deosa agora a honrão
A ras , e incensos dos Egypcios Póvos.
D'ella , e do Grande Jupiter ser próle ,
E'papho se acredita ; e nas Cidades ,
Juncto aos templos da Mãi , lhe sagrão templos.

Sócio lhe foi na idade , e génio altivo


Filho do Sol , Phaetonte : o Ináchio Jóven ,
Que o vê jactar-se de Phebêa estirpe ,
Crer- se-lhe igual , e blazonar grandezas ,
Muito , ó louco , lhe diz , na Mãi confias !
2j
54

" ¡ Imaginário Pai te influe soberbas ! "


Córa o moço : a vergonha enfrèa as iras .
D'alli se vai ligeiro á Mai Clyméne :
D'esse E'papho arrogante expõe - lhe o insulto .
" E , porque mais te dôa , agora sabe ,
» Lhe diz , que Eu , Eu d'intrépidos o exemplo ,
" Eu , o feroz Phaetonte , o ouvi callado !
» Por corrido me dou , que injúrias d'estas
" Se podessem dizer , não refutar- se .
" Mas , se he verdade , que celeste origem
" Teu filho tem , demonstra-me a verdade ;
" Revindica-me o Ceo. " N'isto , se abraça
Ao cóllo maternal , e assim proségue :
‫ وو‬Por tua cara vida , pelos dias

" De teu Espôso Mérope , das bellas


" Minhas Irmãs pelas felises bôdas ,
" De meu Progenitor signaes te implóro. "

Clyméne , quer do filho o rogo a mova ,


Quer doída do aleive , alçando os braços ,
Pondo os ólhos no Sol , " Por este , exclama ,
" Luzeiro eterno' , que nos vê , nos ouve ,

" Do Sol , que olhando estás , hés próle , ó Filho :


» Juro ; hés próle do Sol , que abrange o Mundo .
" Se minto , aos ólhos meus seus raios furte ;
" Não mais lhe eu veja a luz , se o Filho engano.
55

" Se os paternos Penátes vêr desejas ,


"Muito não tens que andar ; co'a patria nossa
" Confinão ; d'além surge . A ousares tanto ,
" Parte ja ; vai tu mesmo interrogal- o . "

Com as frazes , que lhe ouvio, Phaetonte exulta.


Todo elle agora he céos . Ja da Ethiopia
Transpõe o pátrio reino ; áquem ja deixa
Os Indos , que afoguêa o Sol a prumo :
Ja demanda , ja vê , não longe , os Paços ,
D'onde , ao sabir do Pai , renasce o Dia.

FIM

DO LIVRO PRIMEIRO .
18 JY63
AS

METAMORPHOSES .

LIVRO SEGUNDO .
BRITISH

MUSEUM
59

ARGUMENTO .

Phaetonte , bem recebido do Pai , que jura anë


huir-lhe a qualquer, rogo , pede-lhe licença para
reger hum dia o Carro da Luz . Descripção do des-
concerto d'esta jornada aérea , em que Phaetonte
he arrebatado a talante dos Cavallos Solares. In-

cêndio universal. Jupiter, para o atalhar, fulmina


a Phaetonte ; o qual , despedaçado o Carro , dis-
persos os Cavallos , là vai cahir na corrente do
Erydano. As Náiades d'este Rio o enterrão na
sua margem. Pag. 65. Clyméne , correndo o

Mundo em procura do Filho , dá com o Sepulchro :


com as Filhas o chora. Estas se convertem em chou-
pos ; e as lagrimas dos choupos em alambres. Pag.
82.Cisne, parente materno, amigo de Phaeton .
te , e hum dos actores d'esta scêna de prantos , he
convertido em ave do seu nome . Pag . 84. — Affli-
cto Apollo com a morte do Filho , e despeitoso
contra Jupiter, recusa tornar a alumiar o Mundo :
mas os Deoses , e o proprio Jupiter , o exórão ; e
cede. Pag. 85. - Examina Jupiter , se o incêndio
não faria algum estrago no Ceo ; e , achando-o
em bom estado , baixa a fazer o mesmo exame
60
na terra ; e particularmente na sua Arcádia : abi
encontra a Nympha Calisto. Fabula de Calisto ;
expulsa do Côro de Diana , por se achar pejada
de Jupiter ; e convertida em ursa , por ciume de
Juno. Pag. 86. - Arcas , filho de Calisto e Jupiter,
topando com a Mãi na caça , está a ponto de lhe
atirar ; Jupiter os arrebata ao Ceo ; e os muda em
astros , visinhos hum do outro. Juno , ainda mais
indignada com este derradeiro ultrage , alcança
das Divindades Marinhas a promessa de não con-
sentirem jamais , que taes Astros se banhem no mar :
é faz volta para o Ceo , tirada pelos seus Pavões,
recém-pintados pela morte de Argos , (como dito
é no Livro 1. ) e tão recém- pintados , adverte o
Poeta, quanto era recente a mudança , que o côr-
vo fizera de cor branca para negra : o que serve de
transição para a história de Corónis . Pag. 91 .
Tendo esta Nympha amada de Apollo , e ja pejada
d'elle , tido depois huns tratos illícitos ; o Côrvo ,
ave d'aquelle Deos , e d'elle posto por vigía ao
comportamento de Corónis , parte a denuncial-a
ao seu Senhor : a Gralha , com quem se encontra
no caminho , procura desmaginal- o do propósito ,
que oleva, mostrando-lhe os perigos do denunciar,
pela sua propria história ; a qual foi, que, tendo Pal-
las entregado a Pandróse , Hérse, e Aglauro, Filhas
61
de elrei Cecrope, hum cêsto, em que ía encerrado o
infante semidragão Erichtónio , com recomenda-
ção de o não abrirem , e tendo Aglauro cedido a
tentações de curiosa , a Gralha , testemunha d'esta
infidelidade , a foi delatar á sua. Deosa Pallas ;
cm paga do que , foi expulsa da sua tutella , e
substituida do môcho. Proségue , contando-lhe de
mais alto a sua história ; e como de Princeza ,
fugindo á perseguição de Neptuno, se mudára em
gralha por mercê de Pallas, protectora da virgin-
dade , que desde essa hora a ficára tendo por sua
Ave. Depois, para depremir o Môcho , que juncto á
Deosa The succedeo no officio , relata o caso ver-
gonhoso de Nyctímene , metamorphoseada n'este
passaro agoureiro. O Côrvo , mal agradecido aos
conselhos , e contos da Gralha , segue no intento ; e
revéla a Apollo a traição de Corónis. Apollo a
mata ; saca-lhe do ventre o seu Filho, (Esculapio)
que dá a criar a Chiron ; e ao Côrvo , o troca de
branco em preto . Pag. 94. — A Profetisa Ocyroe ,
filha de Chiron , entrando na gruta do Pai , va-
ticína os futuros do Menino Esculápio , e a morte
Jo Centauro ; e presente a sua propria transforma-
ção , que se realisa , antes de acabado o vaticínio ,
-
convertendo-se ella mesma em égua . Pag. 99. —
Chirôn, inconsolavel na perda da Filha , recorre
6.2
ao Oráculo de Delphos, mas nada obtem , porque
Apollo se acha ausente. Anda este Deos a guar
dar manadas. Mercúrio lhe furta humas vaccas ;
recommenda ao couteiro Batto, que guarde segredo
do furto ; o que este promette . Mercúrio , para o
experimentar, volta disfarçado ; e peitando-o, para
que lhe denuncie, para onde forão as furtadas, elle
lho descobre. Mercúrio , por castigo , o converte
em pedra de tóque. Pag . 101. - Partido d'alli Mer-
cúrio, vê do alto, dos ares a Hérse , huma das tres
filhas de Cécrope, e d'ella se namóra . Pede a Aglau-
ro , sua Irmã, que lhe patrocine os amores ; o que
Aglauro promette , conchavando-se com elle em
boa paga , que lhe dará , de ouro. Pallas , ja ini-
miga de Aglauro , pela deslealdade , com que de-
vassára o depósito , por esta derradeira vilanía se
determina em castigal-a ; e manda a Invéja apos
sar-se d'ella. Não póde ja Aglauro levar á pacien+
cia a felicidade , de que sua Irmã se está logran
do , amada de Mercúrio : ante elle se atravessa
á porta da câmara para lhe embargar o passo : o
Deos a converte em pedra , depois do que, volta ao
Ceo. Pag. 103 - Jupiter então o manda a Sidôn ,
com a incumbencia de lançar para a praya a ma▾
nada , que anda no monte : o mesmo Jupiter se
mistura entre ella , transformado em Touro ; e rou
63
ba Europa , com quem lá se vai atravessando o
mar. Pag. 110.

DESCRIPÇÕES PRINCIPAES.

Paginas.
Palácio , e Côrte do Sol...
.... 65.
Estrada celeste do Sol do Nascente ao Occaso 69.
Carro do Sol ..... 71.

Aurora , e Madrugada.. 71.
Ceo Astronómico ..... 69 .

Desórdem da Viagem aérea de Phaetonte.. 76.


76 .
Incêndio geral da Natureza . ....
O Carro despedaçado . Precipício de Phaetonte 81 .
Calisto , seu trajar , seu theôr de vida ...... 87.
Diana , e as suas Nymphas n'hum bósque ,
e á beira de hum rio , para se banharem ... 89.
Mercúrio compondo-se, e requebrando-se nos
ares , para agradar a Hérse .... .... 104.
A Invéja , sua Caverna , sua Viagem , seus
effeitos em Aglauro. 106.
O Touro de Európa... 111 .
METAMORPHOSES .

LIVRO I.
1

MP sublimes columnas alteado


Surge o Paço do Sol ; clarêa ao longe
Cosido de ouro , e ignígero pyrépo :
Liv. 2.
66
De brunido marfim por cima alvêja :
Argenteas portas bífores lhe esplendem :
Da matéria á riqueza excede a obra .
Com primorosa indústria alli Vulcano
Os mares entalhou , cingindo as terras ,
Das terras o órbe inteiro , e o ceo por cima,
Poz no fúlgido mar cerúleos Deoses ;
O canóro Tritão , Protheo mudavel ,
Egeôn entre os braços opprimindo
Dórso enorme de undívagas balêas ;
Dóris , e as Filhas ; a nadarem humas ,
Sentadas n'hum penhasco outras seccando
A trança verde em ócio , alguma ufana
Sobre ufano delphim retalha as ondas :
Rôstos iguaes não têm , não têm diversos ;
Quaes são proprios de irmãs , taes são seus rostos .
Deo á térrea extensão profusamente
Homens , cidades , arvorêdos , féras ,
Rios , Nymphas , e rústicas Deidades :
Terra , e mar coroou co'a luminosa
Perspectiva dos ceos ; na dextra porta
Signos seis coruscando , e seis na esquerda.

Por árdua( , e longa encósta aqui chegara


O Filho de Clyméne : entrado aos Paços
Do contestado Pai , d'elle á presença
67
Rápido corre , e a grão distância pára ;
Mais de perto o esplendor o cegaria .

Em radioso throno esmeraldino


Se assenta Apollo em púrpuras trajado ,
Tendo de hum lado , e d'outro a Côrte sua ;
Os Séculos anciãos , os tardos Annos ,
Os Mezes desiguaes , os léves Dias ,
E as Horas , que dispoz a iguaes distâncias :
Ria-se a engrinaldada Primavera ; <
Suava o Estío nú , que espigas c'rôão ;
Môsto escorria recendendo o Outôno ;
Hirtas as cans , o Inverno tiritava.

Do meio o Sol co'os ólhos , que vêm tudo ,


Na Sala o Môço descobrio , pasmado
Da nunca vista scêna . » ¿ A que vieste ,
„ Que procuras , lhe diz , no pátrio Alcáçar ,
" O' Phaetontè , ó meu Filho , ó Glória minha ? ”
99 Luz do immenso Universo , o Môço acóde ,
" Phebo , Pai ; se este nome me permittes ,
" Se Clyméne em ficções não sóme hum crime ,
" Penhores péço ao Pai , que o Filho abonem :
„ A incerteza , em que vivo , aqui se acabe . 22
Calou-se. O Genitor depõe da fronte
Radiosa C'rôa ; ordena-lhe acercar-se ;
68
E , depois de abraçal-o , " Nem Phaetonte
" Merece , elle lhe diz , que hum Pai o negue ;
» Nem Clyméne mentio. Se prova queres ,
" Pede-me qualquer dom ; convenho em tudo .
" Sê de minhas promessas testemunha ,
" Lago , por quem jurar costumão Deoses ,
» Lago incógnito a mim. " Findára apenas ;
Eis que lhe pede o Carro , e o jus hum dia
De reger seus alípedes Cavallos.
Arrependeo-se o Pai de haver jurado :
Tres , quatro vezes meneando a fronte ,
Diz : ¡ Por teu rogo temerário o sinto ,
"Temerário fallei ! ¡Prouvéra aos Fados ,
" Que eu podesse negar-te o promettido !
" Tudo o mais , com prazer t'o concedêra ;
" Tudo , só isto não , confesso , ó Filho.
" Mas dissuadir-te he lícito : Phaetonte ,
" P'rigoso he teu desêjo ; offício pedes
" A'rduo , immenso , maior que as fôrças tuas
" Aos tenros annos teus imprópria carga :
" Hés mortal , e immortal o que desejas.
" Aspiras nésciamente , ao que inda a Names
" Concedido não he : deixa-os embora
" Blasonar , presumir de ardor , de astúcia :
" Nenhum , a não ser Eu , se firmaria
» Na ignífera Carroça : o Proprio , o Grande
69

" Senhor do vasto Olympo , o que arremessa


« Da troadora mão fulmíneos lumes ,
" Nem esse o ethéreo Côche encaminhára :
"¿i E que ha maior que Jupiter ? Phaetonte ,
" Logo no seu comêço a aérea estrada
„ Tão árdua vai , tão íngreme , que os Brutos ,
99 Bem que frescos da noute a custo a sobem :
" Pelo meio dos Ceos , tal se arremessa
" Sobre alta profundez , que o Mar , e as Terras ,
" Quando os ólho de lá , terror me infundem ,
99 E o coração no peito se me aperta :

" Vai por último tão precipitada ,


" Tanto ha mistér firmeza , que entre as ondas
» Lá em baixo Thétis a tremer me aguarda .
"¡ E os turbilhões , o vórtice , em que gira
Contínuo o Ceo , que em si , como torrente ,
» Milhões , e milhões de astros arrebata ,
" E em torneante círculo endoudece !

» Forcêjo eu contra : ao ímpeto , que os leva ,


„ Não sem afan resisto ; e audaz , e ardente
» A geral rotação contrário sulco .
» Crê-te no Carro : ¡ que farás ? ¿ como has de
" Co'os pólos investir , que te não sôrvão
" Do eixo seu na túrbida vertigem ?
" ¡ Imaginas por lá talvez florestas ,
" Cidades de Immortaes , opímos Templos !
70

" Vai-se atravez de p'rigos , e de monstros :


" Ja te dou , que do rumo não desvaires ;
"Tens de passar com tudo pela fronte
" Do cornígero Touro , pelo Arco
" Do Thessalio Frécheiro , pelas garras

" Do raivoso Leão , pelos terriveis


" Braços do Scorpião , que ao largo abrangem ,
" Pelos do Cancro , que diverso os curva.
Nem cuides tu ser facil o governo
" De meus corséis indómitos , que exhalão
" O fogo do interior por bôca , e ventas :
" Huma vez , que os anime o ardor brioso ,
» Mal os pósso eu domar ; desdênhão rédeas.
» Não me faças , meu filho , autor , sem culpa ,
" Do mais funéstó dom ; teus rógos muda ;
» Muda-os , em quanto he lícito : ¡ desejas
„ Provar , que eu sou teu Pai ? meu susto o próva :
" Observa o meu semblante ; ¡ Ah ! se os teus olhos
" Podessem ler cá dentro os meus cuidados ! ..
" Filho , a todo o Universo estende a vista ;
‫ وو‬Róga-me algum dos bens tão ricos , tantos ,

" Do Ceo , da Terra , e Mar ; nenhum te nego :


" Só péço huma excepção , no que seria
"Mais castigo , do que honra : ¡ o meu Phaetonte
Hum supplício por dádiva me implora !
" ¡¡ Insensato , que amor , que abraço he este !?
71

" Pela Styge votei ; ver- me-has , socéga ,


" Tua escolha cumprir ; mas sabio escólhe. "

Baldando exhortações , brandura , rógos


Insiste o Môço audaz no audaz projecto :
Arde ja por voar no excelso Côche .
Por mais tempo detel-o o Pai não póde :
E ao Côche o leva , fábrica alterosa ,
Vasta , immensa ; obra , e dom do Grão Ferreiro.
De ouro he seu eixo , de ouro a lança , deSouro
Chapeadas por cima as vastas ródas ,
Com mil do centro ao áro argenteos raios.
Chrysolithos , matiz de pedraría
São recâmo aos esplèndidos jaêzes ,
Que em chuveiros de luz , a luz scintillão.

Contemplava o magnânimo Phaetonte


A obra divinal , de assombro immovel ;
Quando a Aurora , a gentil madrugadora ,
Do rútilo Oriente abrio risonha
Co'a mão de neve as portas purpurínas ,
O átrio espaçoso de alastradas rosas.
O tropel das estrellas vai fugindo
Da Estrella da Manhã , que última , e bella'
Deixa ao dia nascente o ceo ja livre .
Ao ver terras , e mundo afogueados',
72
E a lua desmayada , ou quasi extincta ,
Ja , miserando l'ai , Titão dá ordem
A's Horas leves , que os Frisões enfreiem .
Partem ; sóltão das altas manjadouras ,
Refeitos de ambrosía , os emproados
Ignívomos Quadrúpedes ; e présto
Co'os tintinantes freios os embridão.
Aqui o Pai com provido cuidado
Ungio de hum licor sacro o rôsto ao Filho ,
Porque a rábida châma o não crestasse.
Poc-lhe na fronte a c'rôa radiosa ;
E do peito solícito arrancando
Novos suspiros , de seu mal preságio ,
" Filho , diz , filho meu , se ao menos pódes
" Inda hum conselho ouvir , do açoute abslem-tex
" Rédea sempre , e firmeza : de si mesmos
" São ágeis , são frenéticos ; se ha custo ,
" He no suster-lhe os insoffrides vôos.
" Não te namore a estrada , que atravessa
" Direita os cinco círculos ; vai outra ,
" Que oblíqua se desdobra em largo giro ,
" Que abrange zônas tres de marco a marco ,
" Que foge ao póló austral , que foge ao pólo ,
" Onde sobre aquilões impéra a Ursa :
" Por esta só , por esta enfia a róta ::
" As rodadas do Carro a estão mostrando.
78

Para aquécer igual o ceo , e a terra,


" Não vás rasteiro á terrà , ao ceo não vôes ;
" Terra , ou ceos têm de arder, se ao perto os ólhas :
" Vai pelo meio , e correrás seguro.
" Não declines , rodando á dextra parte ,
"Sobre a enroscada Sérpe ; á esquerda , he p'rigo
" Cahir no baixo Altar ; escapa entre ambos.
" Fio á Fortuna o mais ; ella te ampare ;
" Melhor , do que tu mesmo , a ti provêja.´
» Em quanto fallo aqui , lá róça a Noute
„ Húmidas azas na baliza Hesperia ,
" Não ha mais que tardar , ja nos aguardão ;
" As trevas ja lá vão ; ja brilha a Aurora ;
"¡ Rédeas na mão ! partir ! Mas, Filho , ó Filho ,
‫ןי‬
"Se hés dócil , por piedade os meus conselhos
" Ao meu Carro antepoe : por ora he tempo ;
" Inda estás em chão firme ; inda imprudente
" Não vais no Carro , teu funésto enlêvo ;
» A' terra eu vou dar luz ; tranquillo a goza. »

Salta o Môço á Carroça , que mal sente


O pêso juvenil : de pé , vaidoso ,
Fólga empunhando as concedidas rédeas ,
E graças rende ao Pai , que as não recebe .
"
Mas ja Philégon , Pyróis , Eóo , Ethonte ,
A'geis frisões do Sol , rinchando , rapão ,
74
Pulsão co'as patas sôfregas as portas :
Eis Thétis , sem prever do neto os fados,
De par em par lh'as abre , e lhes põe franca
Toda a amplidão dos Ceos ; co'a estrada investem ;
Rasgão as névoas ; pelos ares trótão ,
Deixando-vos áquem no aládo vôo ,
Euros , que ao seu sahir tambem sahistes.

Porêm leve era o pêso ; era diverso


D'aquelle , que os Frisões tirárão sempre.
Quaes sem lastro bastante os curvos lenbos
São das ferventes ondas sacudidos ,
Tal , co'a levêza insólita pulando ,
Parece , que vazio o Carro foge.
Eis a Quadríga rápida percebe ,
Que os passos lhe não rege a mão de hum Nume;
Eis salta impetuosa , e deixa o trilho ,
E bate o campo azul por nova estrada .
Treme Phaetonte ; como as rédeas torça ,

Qual seja a estrada , attónito não sabe ;


E inda sabendo , não domára os Brutos.
Pela primeira vez se escandecêrão
Os gélidos Triões co'a etherea flamma ;
E banhar-se no pégo em vão tentárão.
Do pólo glacial visinha a Sérpe ,
D'antes molle de frio , e não terrivel ,
75
Ganhou no estranho ardor braveza estranha.
Diz-se , ó Boótes , que a tremer fugiste ,
Bem que hés tardío , e te remora o Plaustro .
Vê jazer muito ao longe o mar , e as terras ;
O mísero Phaetonte empallidece ;
E súbito pavor lhe agita os membros :
Seus olhos em luz tanta encontrão noute.

¡ Triste ! quiséra ja não ter tocado


O côche de seu Pai ; ja se arrepende
De conhecer quem he , de haver podido
O effeito conseguir do rogo incauto :
Ja quiséra , que o mundo o appellidasse
De Mérope , de humano , obscura próle.
Tal se deixa levar , qual náo batida
Dos furacões austraes , quando o piloto
Cede ás ondas vencido o léme inutil ,
E ás promessas , e aos Numes a abandona .

¿ Que fará ? vastos Ceos atraz lhe ficão :


Ceos mais vastos ante elle se desdobrão :
Huns , e outros co'a mente absôrta méde :
O'lhos volve ao nascente , em vão saudoso ;
O'lhos no occaso poe , que em vão suspira.
Pasma inerte : das mãos esmorecidas
Nem sólta as rédeas , nem retel- as póde ;
Nem sabe o nome aos Brutos . Estremece
Das que vê pelos Ceos enormes féras .
76
Co'a cáuda o Scorpião , co'os braços curvos
De dous signos o espaço horrendo alastra :
Vendo-o negra suar lethal peçônha ,
Rodar em modo hostil a aguda cáuda ,
Fugir deixa das mãos sem tino as rédeas :
Sentindo-as sobre o dórso , os corséis partem ;
Livres transvôão regiões ignotas ,
Co'o ímpeto por lei , por nórte o espaço ;
Co'as estrellas mais altas abalrôão ;

Atropellão co'o Carro estradas virgens :


Ora ao éther remontão , ora descem
Quasi á terra por íngremes abismos.
Admira a Lua , que o fraterno Côche
Rode abaixo do seu. Nuvens , e nuvens
Crestadas fumão. Ja nas eminencias
Lavra incêndio geral. Fendem-se as terras ,
Exhausto o interno humor. Branquêjão pastos :
Ardem co'a folha as arvores : as mésses
Seccão; dão alimento ao proprio damno.
Pouco digo : cidades populosas
Ardem co'os muros seus ; provincias , reinos
Torna incêndio voraz em mar de cinzas.
As florestas co'os montes se afoguêão :
Arde o Cílico Tauro , o A'thos , o Ida ,
Tão aquoso até-li , quão sêcco agora ,
O virgíneo Helicôn , Tmólo , e Qéta,
77
O Hémo , a que inda então do E'ágrio Vate
Não tinha dado a morté infâmia , e nome ;
Dúplice labaréda abraza o E'tna ;
Ardem do alto Parnaso ambos os cumes ;
Cyntho , E'ryx , O'thryx , Rhodope , fadado
A despir d'esta vez nivoso manto ,
Mímas , Díndyma , Mycale , Cithéron ,
Esse , afamado , ó Bacho , em pompas tuas.
Nem frio á Scythia val ; negrêja , estala
O Cáucaso ferino , o Pindo , o O'ssa ,
E o maior que O'ssa , e Pindo, o Olympo immenso :
Nubífero Apenníno , aérios Alpes ,
Todos consome a furial torrente.

Só fógos por todo o órbe descortina


Phaetonte ; e do ar candente o ardor o affronta,
· Auras , como as de tórrida fornalha ,
Ferventes sorve ; sente o Côche em braza ;
Cobrem -no cinzas ; cercão-no centêlhas ;
Cálido fumo o afóga , o desespera .
De horrenda cerração fechado em tôrno ,
Onde esteja , onde vá , não vê , não sabe ;
Vaga , correndo , á discrição dos Brutos .
Crê-se , que , á têz o sangue então puxado ,
Os póvos da Ethiopia ennegrecêrão :
De então , exhausto o humor , jaz secca a Líbya.
78
Nymphas de lagos , fontes , desgrenhadas
Carpírão-se no pó : desaparece
No meio da Béócia a aquosa Dirce ;
Argos perde Amymóne ; Ephyre as ondas
Da chorosa Piréne em vão procura.
Os Rios mais distantes não escapão :
No meio da torrente o Tánais fuma ,
O ancião Penĉo , o arrebatado Isméno ,
Theutrânteo Cáico , Phocido Erymantho ,
O Xantho , inda fadado a incêndios novos ,
Louro Lycórmas , plácido Meandro ,
O brincão dos fluentes labyrinthos ,
Mygdónio Mélas , e Tenário Eurótas :
O Euphrátes Babylónio , o Oronte ardêrão ,
Thermodonte veloz , o Istro , o Phásis ,
O Sperchio , Gange , Alphêo : corre no Téjo , ..
Seu ouro derretido em vez das aguas.

. Cisnes , cantores das Méónias ribas ,


Lá dentro em seu Caystro abafão mudos.
Fugio medroso o Nilo aos fins do glôbo ;
E a cabeça escondeo , que inda hoje occulta ;
Vio-se pó , onde vagas trovejárão ,
Profundos valles sete as sete bôcas.

Não tiverão mais dita os dous da Thrácia ,


Hébro , e Strymôn , ou ja na Hesperia o Rheno ,
Rhodano , Pado , e aquelle , a quem Destinos
79%
Fadárão todo o O'rbe , o Tybre , Grande.
Fende-se a terra em boqueirões profundos ,
No Tártaro reluz o incendioso
Clarão terrestre ; o Rei do Averno , e a Esposa
Co'o reverbero estranho amarelle cem .

Mingua o mar , jaz arệa o que era oceano ,


Montes , e montes de marinho império ,
Pela primeira vez , mostrão seus cumes ,
Em multidão co'as Cyclades contend m .,
Ao imo fundo os peixes se mergulhão :
Não ha ver na amplidão do êrmo undoso ,
Aes ares retouçando hum só golfinho ,
Os bojudos cadáveres das phócas
Resupínos sómente andão boyando.
Diz - se até , que Nerêo , Dóris , e as Filhas
Lá nas tépidas lapas se escondião.
Por tres vezes raivando ousou Neptuno
Os braços lançar fóra , e por tres vezes
Não pôde comportar o ardor aéreo,

Mas a Terra , essa Deosa , a Mai de tudo ,


Por ter por fóra o mar , por dentro as fontes
As fontes , que ás entranhas lhe volvêrão ,

Ousa mais ; té ao cóllo altea o rosto ,
O dadivoso rosto esmorecido ; R
Co'a mão voltada ao ceo resguarda a fronte,
80.
E pávida , e convulsa , e descahida
Do alto , do usual , seu proprio assento ,
Das sêccas fauces tal queixume arranca .
"¿ Se t'o assim merecí , se assim te aprouve ,
» Que fazem raios teus , que não me acabão ?
» Se hei de em fogo ter fim , teu fogo imploro ,
"Jove , o nome do autor console o damno .
" ¡ Vê , vê , que esforços o fallar me custa ! „
2
O'vapor a afogava. » Ardem-me as grenhas :
" Fumo , cinzas me afogão , me sepultão :
"¿Da alma fertilidade o prémio he este ?
"¿ Estes do meu servir , ó Ceos , os fructos ?
" Para isto o anno todo ando soffrendo ,
Que os instrumentos rústicos me rasguem ?
" ¡ Para isto a animaes produzo o pasto ,
Aos humanos a mésse , a Vós o incenso ?
99 ¿Jove , e , se en te offendi , que te offenderão

" As ondas , teu Irmão ? ¿ Porque decresce


" O Oceano, que era seu por lei da Sorte ,
" E do E'ther cada vez se vê mais longe ?
" Se do Irmão , se de mim não tens piedade ,
» Tem-na ja dos teus Ceos . Volve aos dous pólos
" A vista ja lá anda o fumo em ambos.
" Deixa-os comer do fogo , e saberemos ,
"Que estampído os Alcáçares dos Numes
"Ao desabar pelo Universo echôão.
81
"Vacilla ja de afflicto o proprio Atlante ;
» Mal soffre ja no hombro a Esphéra em braza.
Se findão Terra , Mar , Etherea Côrte ,
" No horror vamos cahir do antigo Cháos .
" Ah ! se inda ha que livrar , do incêndio o livra ;
" Ao Grão Todo do Mundo attende , ó Jove . "
Diz , e não póde mais ; sóme , affrontada ,
O aspecto dentro em si , nos invisiveis
Antros visinhos da Tartárea noute .

Mas o Padre , tomando a testemunhas


Todos os immortaes , e , mais que todos ,
Ao proprio Concessor do côche infausto ;
E achando ser unânime sentença ,
Que , se Jove o não salva , acaba o Mundo ;
Sóbe ao alto da Etherea Cidadella ,
Lá , d'onde pelo O'rbe espalha as nuvens ,
D'onde acorda os trovões , dardêja os raios :
Mas nem vio nuvens, com que invôlva o órbe ,
Nem chuveiros achou : trôa , e , librando
Na Dextra erguida o raio , ao vão Cocheiro
O desfére , e do carro o expulsa morto .
¡ Assim co'o Sacro Fogo o fogo abafa !
Espantão-se os Frisões , atraz resaltão ;
Sacodem jugos , despedação rédeas :
Jazem freios aqui , sem lança o eixo
fiv. 2. f
82
Além , mais longe , despartidas ródas :
Por toda a parte esplèndidas relíquias .
Phaetonte , ardendo a grenha ás labarédas ,
Vem de rondão pelo ar : no acceso , e longo
Rasto , que deixa , faz lembrar estrella ,
Como as que em limpo ceo de estiva noute
Se figurão cahir , bem que não cáião.
Longe do chão natal , na quéda o toma
O caudaloso Erydano , e nas ondas
O rôsto abrazeado lhe mergulha.
As Náiades Hespérias o enterrárão ,
Inda fumando da trisulca châma.
E esta inscripção no túmulo lhe abrírão :

99 Aqui pousa Phaetonte , o audaz Cocheiro ,

" Que no Carro do Pai foi Nume hum dia ,


" Não se aguentou nos Ceos , mas sobranceiro
" Se lhes mostrou na insólita ousadia. "

O misérrimo Pai , sumido em lucto ,


Deixou , se a fama he certa , hum dia em trévas
De Sol valendo ao O'rbe o horror do incêndio.

Mas Clymene , depois que delirada


Soltou a tanto mal condignas queixas ,
Deo a correr , com o seio macerado ,
83
Frenética , sem tino , o mundo inteiro :
Vai buscando ao princípio os mortos membros ,
Depois , óssos sequer ; co'os frios óssos
Lá foi emfim topar na estranha riba.
Alli se atira á terra , alaga em pranto
O nome , que no mármore solétra ,
E co'o peito despido o aquéce , o afaga,
Não menos as Helíades tributão
Vas oblações de pranto á morte acérbą ; .
Maltratão co'as mãos cândidas os seios ,
Chamão de noute , e dia o desditoso ,
Surdo a seus ais , a seus extremos frio ;
E sobre a campa aos gritos se revolvem .
Quatro vezes seu disco enchêra a lua :
No sólito alarído estando as tristes ,
Phaetusa , das Irmãs a menos jóven ,
l'a atirar-se á terra , os pés não move.
Parte a valer-lhe a cândida Lampécie
Eis súbita raiz a prende ao sólo.
Terceira , vai cabellos arrancar- se ,
Arranca folhas. Huma se lamenta ,
Que em tronco infórme as côxas se lhe tornão ;
Outra , em ramos altissimos os braços .
Em quanto mutuamente horror , e assombro
Infundem , sentem ; rápida trepando
A cortiça invasora abraça os ventres ,
f *
3-4
Engóle seios , hombros , mãos ; só tinhão
Livres as bôcas , com que à Mãi clamavão :
¿ Ah que podia a Mãi ? corria douda
Para aqui , para alli , áquella , a esta ,
Beijos dando , e colhendo , em quanto pôde :
Mas ao materno amor , não bastão beijos ;
A' força quer dos troncos arrancal-as ;
Os ramos quebra : ¡ Oh Ceos ! sanguíneas gôttas
Vertem , quaes f'ridas , os quebrados ramos .
" ¡ Piedade , ó Mãi ! as desditosas gritão ,
" i¡ Piedade ! ¡ os nossos córpos dilaceras !
" ¡ Adeos ! Adeos ! .... » As últimas palavras ,
Casca invejosa lh'as fechou nos lábios :
Inda assim , depois de arvores derramão
Lagrimas , que , do sol endurecidas ,
Alambres são : a lúcida torrente
As sente em si cahir , e ás Lácias noivas
N'elles manda depois vistoso ornato .

Presente foi ao caso o jóven Cisne ,


O filho de Sthenélo , que a Phaetonte
Pelo materno sangue era ligado ,
E inda mais pelo amor. Deixado o throno,
D'onde á Ligúria Gente , e grão Cidades
Monarcha dava leis , saudoso enchia
• De lamentos as ribas verdejantes ,
85

A corrente do Erydano , a floresta


Co'as Irmãs augmentada : eis lhe começão
A adelgaçar-se a voz , em pennas alvas
A converter-se a côma , a alçar- se o cóllo ,
E a ligar prisão molle os rubros dêdos ;
O corpo se lhe empluma , avulta hum bico
Largo , e rombo , onde teve a rósea bôca.
Ja he ave ; e inda Cisne se nomêa.
A's alturas do ceo não vai seu vôo ;
Do injusto raio atroz inda lembrado ,
Não se fia de Jove ; acóde aos charcos , '
E á branda fresquidão dos vastos lagos ;
E , do fogo inimigo , ama a vivenda
Dos , contrarios ao fogo , undosos rios.

De Phaetonte o Grão Pai no emtanto sóme


Em véos de lucto a pállida presença ;
E , qual negrêja ém túrbidos eclipses ,
Quer mal ao dia , odêa -se a si mesmo.
Ja sobre a dôr a cólera lhe accresce ,
Ja não quer mais servir. » Assás , diz elle ,
" Desde a origem do Tempo hei trabalhado ;
" Ja basta de lidar , sem fim , sem prémio ;
» Governe , quem quizer , o côche ao dia ;
" Se não ha quem , se nenhum Deos o póde ,
» Tente-o Elle ; que o tente, a ver, se, em quanto
8.6
" A custo aprende a inanejar as rédeas ,
" O raio infésto aos pais fica em descanço .
"Quando os Frisões ignípedes o arrastem ,
» Verá, se he justa a morte, ao que os não doma . "
Fallando o Nume assim , do Nume em tôrno
A turba dos Celícolas o implora ,
Que em trévas não mergulhe a Natureza.
Jove mesmo do raio se desculpa ,
Unindo em régio tom a ameaça ao rogo.
Phebo , vencido emfim , juncta a Quadríga ,
Que inda de espavorida andava errando ,
Dispersa , transmontada ; punge , açouta ,
Cança os Brutos ; sobre elles desafoga ;
E , exprobrando-os , lhe imputa o morto Filho .

O Omnipotente Padre em tôrno explora ,


Se do celeste Reino ao muro immenso ,
O fogo não damnou : vê tudo firme .
Ao órbe , ás fundações da humana gente
Volve logo o cuidado : a Arcádia sua ,
Mais do que as outras terras , o desvela ;
Baixou lá . Dá co'as fontes inda sêccas ;
Os rios de correr inda medrosos ;
Súbito lhe restaura rios , fontes :
Arrelva campos : arvores enfólha ;
E ordena aos bosques nus , que reverdêção.
87

Como assim divagava affervorado ,9


Acertou de encontrar Nonacriense
Gentil donzella ; e repentino incêndio
Pelas medullas íntimas lhe lavra.
Não era , das que a la no fuso torcem ;
Nem , das que o dia em pentear-se empregão :
N'hum cinto afivelado apanha as roupas ;
Com branca fita seu cabello aperta ;
Nem cogita de mais , nem mais precisa.
Nunca depõe das mãos ou arco , ou dardo ;
A Diana pertence , he flor do rancho ;
Nenhuma entrou no Ménalo frondoso
Tão cara á sua Deosa : i Mas valias
Têm fraca duração ! Ja mais de meia
Corrido tinha o Sol a usada via ,
Quando ella entrou por selva espêssa , escura ,
Desde a infancia do mundo immúne a ferro :

Sólta . do hombro a aljava , o arco estende :


Relvosa cama a acolhe , e pousa a fronte
No pintado carcaz . Jove , que a avista ,
Tão cançada , tão só , tão sem defeza :
" D'este furto de amor não sabe a Espôsa ,
" Em si diz : ¡ e que o saiba , importão tanio
» Leves enfados , que termina hum beijo ? 99

Toma as feições , o trajo de Diana ,


88
" Eió Virgem , diz , ó Sócia de meus Córos ,
" Em que outeiros caçaste ? » Ergue-se a Nympha
Do hervoso encosto , e lhe responde , " ¡ Oh ! salve,
" Nume , que , em meu conceito , a Jove excedes ;
" Embora me ouça Jove. ,, Rindo , a escuta ,
Não disfarçando o júbilo , o ditoso
Preferido a si mesmo : encéta , amiuda
Beijos e beijos na estranhada bôca ;
Não levão ja theôr dos da amizade ,
Nem , dos que virgens para virgens usão.
Ella ía responder -lhe , em quaes florestas...
Mas insólito abraço a voz lhe enlêa ,
E criminosa acção desfaz o engano.
A triste , sim repugna , oppõe-se , estorva ;
Visse-a Juno , talvez se abrandaria :
Quanto póde muller , estorva , oppõe-se ,
Mas pertence a victória ao sexo fraco ?
i Póde haver contra Jupiter victória ?
O amante vencedor remonta ao pólo :
A amada vergonhosa , maldizendo
Do arvorêdo traidor cúmplices sombras ,
Tanto á pressa as fugio , que ía esquecendo
Nas hervas o carcaz , o arco entre as ramas.

Eis seguida das Sócias apparece ,


Léda , e soberba co'o ferino espólio ,
89

Pisando o umbroso Menalo , Dictynna :


Vê-a , e , vendo-a , a chamou ; chamada , foge
A Nympha , que vêr Jove inda presume .
Porêm , reconhecendo as Companheiras ,
Ja sem mêdo a traições , ás mais se agréga.
i Ai , quando em brênbas d'alma anda o remorso ,
Mal se encobrem no rôsto assômos d'elle !

De olhos fitos no chão, não vai, como antes,


Ao lado da Immortal , do Côro á frente :
Vai calada ; e nas faces incendidas
Vão do léso pudor não dúbias próvas .
Se Diana , qual he , não fora virgem ,
Lería em mil signaes patente a culpa ;
Mas as Nymphas, he voz , que a suspeitárão .

Enchêra nona lua o disco argenteo :


Moída de caçar por sol de estío ,
Entrou a Deosa em gélida espessura ,
Onde ía com fresquissimo murmúrio
Por sobre fina arêa movediça
Escorregando hum rio preguiçoso.
Louvou d'aquelles êrmos o aprazivel ,
E co'o pé , a tentar , libou-lhe as aguas ; "
As aguas , como as sombras , a contentão.
» Eia , diz , somos sós , e o sítio he proprio ,
" Banhemo-nos . » A Arcádica donzella
90
Córou : todas as mais se vão despindo ;
Ella só se detem ; demóras traça ;
Fica-se ao ver-lhe o enleyo , a chusma alegre
A acommette , a rodêa , a despe á fôrça .
E o gentil corpo nu revéla o crime.
Co'as melindrosas mãos , em vão tentava ,
Curva , attónita , a ré tapar da culpa
Ante ólhos virginaes o claro indício .
» Foge , Cynthia lhe brada em tom sevéro ,
" Para longe de nós , indigna , foge.
» Não nos profanes as sagradas lymphas. "
Diz, e expulsa-a. Do grão Tonante a Esposa
Tinha , de ha muito , a fraude presentido ;
E aguardava a punil-a ensêjo idóneo .
Nada agora a retem : por mór tormento ,
Sabe até , que a rival ja teve hum filho ;
Arcas , seu nome. Em tal painel cravando
O'lhos , e pensamento : » ¡ Em tanta injúria ,
„ Inda esta injúria nova me faltava !
" Sobre adúltera , hes mãi : c'rôas-me a affronta 9
Dando no parto infame as próvas d'ella .
" Do meu Jove o desdouro , e o meu publícas.
» Mas não irás impúne : a fórma perde :
" Troquem-se em feridade esses encantos ,
» Enlêvo teu , do meu Consórte enlêvo . "
Diz : nas cômas da fronte as mãos lhe enréda ;
91

Furiosa sobre os peitos a derriba .


Supplicante alça a Nympha os braços débeis ;
Eis que os braços pelludos lhe negrêjão ;
Médrão-lhe as curvas mãos em garras curvas ;
Ja tem nas mãos , e pés igual emprego.
Bôca tão doce a Jove se escancara ;

E , porque em brando orar o não commôva ,


Perdida a humana voz , do peito arranca
Rouco , tremendo , atroador rugído .
He ursa ; do que foi , só resta a mente ,
Com que da antiga dôr contínuo geme.
As mãos , taes como as tem , levanta aos astros ;
E , a ter voz , chamaria a Jove ingrato.
¡ Que de vezes , com mêdo aos bosques êrmos ,
Veio errar ante os Paços , que habitára ,
Por campos, que inda ha pouco erão seus campos !
¡ Que vezes , pelas fragas acossada
Dos latidos dos cães , a caçadora
Caçadores fugio ! Se avista féras ,
Esquecida do que he , parte a sumir-se ;
Ursa , treme de vêr no monte os ursos ;
De lobo he filha , e os lobos a apavórão.

Arcas , em quem tres lustros ja florecem ,


Da Lycaónia mãi não sabe os fados :
Mas hum dia , que as matas do Erymantho ,
92
Cubiçoso de caça , rodeava
De astutos laços , de traidoras rêdes ,
Co'a transformada mãi foi dar no bosque .
Ella , apenas o vê , parou suspensa ;
Pasmada o olha , o mede ; ; he elle ? he outrem ?
Recúa o Môço audaz , espavorido
Do fito olhar materno ; e , ao ver-lhe hum geito
De querer mais e mais avisinhar-se ,
Co'a mão cega de fúria , eis vai brandir-lhe
N'hum dardo a morte : o Omnipotente o véda ;
Arranca os dous , e o crime. Arrebatados
Nas azas de hum tufão , da terra vôão ;
E vão luzir no ceo visinhos Astros .

t
Arde Juno ; lá desce á branca Thétis ,
E ao velho Padre Oceano , àltas Deidades ,
Que até nos Immortaes respeito infundem .
Perguntão-lhe , a que vem : » Numes , responde ,
" Com razão de aqui ver-me estais suspensos ;
" A mim , dos Ceos Rainha , em vossos Mares ;
" Mas outra occupa os Ceos : vereis , se minto ,
" Quando , fechada a noute , áquella parte ,
" No mais alto do espaço refulgirem
" Em meu desdouro incógnitas estrellas ;
» A'quella parte , além , onde se encrava
" O çixo polar no círculo mais breve.
93
"¿ Que humano tremerá de offender Juno ,
"Se nas penas , que eu dou , se lucra tanto ?
" ¡ Que prodigios os meus ! ¡ que alta potencia !
"¡ Roubo-lhe a humanidade , he feita Nume !
"¿ Que falta mais para humilhar a Espôsa ?
» Torne-a do sêr ferino á face antiga 2
" Como de Phoronèo ja ſez co'a neta .
" Não sei , porque a meu thálamo a não chama ;
" Não repudía a Juno , e para sôgro
" Não toma a Lycaôn . Mas vós , ó Numes ,
" Se esta offensa vos dóe , pois me criastes ,
" No que podeis , vingai-me ; exclusos ardão
" Sempre os Septentriões do mar cerúleo :
99 Repulsai astros vis , que pelo estupro

» Ganhárão jus aos Ceos ; nunca se banhe


„ Essa odiosa rival no Sacro Pégo . 99

Annúem. Para o Ceo trótão co'a Deosa


Os pintados pavões ; que tão recentes
São inda em seu matiz , co'a morte de Argos ,
Quão recentes , mudada a antiga alvura ,
Tinhas , côrvo loquaz , as plumas negras .

Porque ora sabereis , que em tempo antigo


Argentea fôra esta ave , como as pombas
Alvas , sem mancha ; como os gansos níveos ,
9%
Os destinados com o grasnar esperto
A ser do Capitólio os salvadores ;
Tal , que emfim nem cedia ao namorado
Dos mansos rios , ao canóro Cisne. 0
Mas , por fallar de mais , tornou-se preto .

Corónis de Larissa era tão bella ,


Que entre as bellas da Hemónia igual não tinha :
Delícias foi de Apollo , em quanto , ou casta
Se manteve , ou no crime a não tomárão.
Mas o Corvo Phebêo , seu guarda esperto ,
Descobre na infiel traição furtiva ; 21

E arde por delatal-a ante o seu Nume :


O inflexivel espia , eis parte , eis vôa

Em procura do Deos. A' fôrça de azas


A palreira da gralha o segue , o alcança ,
Mui curiosa do que vai de novo.
Ouvindo-lhe as tenções : » Amigo Côrvo ,
39 Lhe diz , errado vais , toma bem tento
"Nos prognósticos meus : qual fui , pondéra ;
" E repara , qual sou. D'esta mudança
" Foi sobêja lealdade a causadora .
t'o quero , havia occulto
contar -t'o
" Pallas , contar-
" De áttico vime em bem tapada cêsta
" Ericthónio , o sem mãi , Vulcânea próle .
" Deo a cêsta a guardar a tres donzellas ,
9.5%

"Filhas do duplex Cécrope ; mas logo


" Com tal , que nunca dentro espreitarião.
" Eu , nas ramadas de folhudo ulmeiro ,
" Curiosa de observar tres curiosas ,
" De atalaia me ponho. Hérse , e Pandróse ,
" Mui leaes o depósito vigião ;
" Mas Aglauro ? os escrúpulos motêja ;
"Sólta os nós , abre a cêsta. E eis dentro avistão
" Hum menino , hum dragão . Não mais aguardo :
» Parto a narral-o á Deosa ; ; e que hei lucrado ?
" Do amparo de Minerva o ser expulsa ,
" ¡ Bella glória ! e ver hoje em meu offício
" O horrendo môcho , hum pássaro dé trévas :
" Colhei nos damnos meus o exemplo vosso ;
99 Dos p'rigos do fallar , tremei , ó aves.

" E ólha tu , que , se eu tive aquelle emprêgo ,


" Não lh'o fôra eu pedir , fui procurada ;
99 Pergunta-lh'o , e verás , se t'o ella néga ;
, Mas está contra mim. Quero narrar-te .
" A minha história toda : eu era a filha
" Do Illustre Coronêo , reinante em Phócis
» Verdades são , que todo o mundo sabe .
29 Era Princeza , e tive altos Senhores ,

"" i O'lha quem aqui está ! por pertendentes.


" Perdeo-me o ser mui bella , porque andando
" Co'o frouxo passo , que inda tenho agora ,
96*
A espacear-me hum dia pela praya ,
» Vio-me , inflammou-se ao ver-me o Deos dos mares.
" Rogou : mas conhecendo , que perdia
" O seu tempo em rogar , depõe branduras ,
"E segue-me, disposto a usar da força ;
"Corrí : da beiramar na area assente ,
» Inda eu fui bem ; mas o areal contiguo
„ Fôfo , picado , levadío , immenso

" Quebra-me as fôrças , o valor me géla .


" Entro a invocar a hum tempo homens, e Deoses ;
" Não tive auxílio humano ; a Deosa Virgem ,
" De huma virgem doída , então me acode.
» Nos braços , que êrgo aos ceos , negrêjão plumas ;
" Quero o manto arrojar , só plumas palpo ;
" Sinto-lhes a raiz lavrar na cútis ;
" Querendo o peito nu ferir co'as palmas ,
» Nem peito nu achei , nem palmas tinha ;
» Corro , e já não me estorva a arĉa sôlta ,
" Por cima lhe resvalo ; áuras me elevão.
99
» Mudada , no que sou , parto voando ;
" E pura , e Sócia de Minerva fico .
" i¡ Mas que monta ! Do emprêgo eis me privada ,
99
"¡ E por quem ? por Nyctímene , a perversa ,
"A tôrpe , a incestuosa , a que , se he ave ,
¡¡ E pois ignoras
" A seus crimes o deve. ii
" Cousa , que he tão fallada em toda Lesbos!!
97
"¡ ¡ Que Nyctímene , accesa em châmas ímpias
De abominoso amor enxovalhára
"O leito de seu pai !? sim , que hoje he ave ,.
» Mas , inda ave , como he , seu crime a rala ;
„ Odêa , evita a luz , não quer , que a vejão ;
"Co'o véo das trevas a vergonha encobre :
" Bem lhe cumprem seu gosto as outras aves ,
" Que em parte alguma do ar a não consentem . ""
" i¡ E por tal me chamaste ! » exclama o Côrvo ,
Interrompendo -a , » nas más horas fiques ,
" Vă prophetiza de fataes agouros ;
" O que me has dilatado , em mal te venha. "
Diz : proségue o seu vôo ; e pinta a Phebo ,
Qual vio Corónis co'o mancêbo hemónio .
Da amante ouvindo o crime , a láurea c'rôa
Da fronte ao Nume cahe ; turba-se , enfia ;
Da mão lhe escorre o plectro : arrebatado
De céga fúria , suas armas toma ,
Sem mais pensar , atéza o arco , aponta

Ao peito , que a seu peito unio mil vezes ;


Retine o tiro , a séta silva , e rasga-o.
Sobresaltada do imprevisto gólpe
Sólta a mísera hum ai : descrava o ferro ;
Retinge rôxo sangue os alvos membros :
"¡ Ah! Phebo , Phebo , exclama , atalhas duas
" N'huma existencia ! " E dizer mais não pôde ,
Liv . 2. D
98
Que em rubros borbotões lhe escoa a vida.
Da alma apagada o frio abrange o corpo.

Do castigo cruel ja se arrepende


O Amante ; arrepender porêm vem tarde.
Quer-se mal a si mesmo , e porque ouvíra ,
E porque se irritou : maldiz o núncio ,
Revelador de hum crime , e origem de outro :
Detesta o arco , e as mãos , as mãos , e as sétas .
Cerra os membros gentís desfallecidos
Ao terno coração : com tardo auxílio
Tenta a morte vencer ; pertenta , e balda ,
Quantos lhe occorrem , médicos segredos.
Apenas conheceo , que em vão teimava ,
E , adereçada a pira , os membros mortos
Vio próximos a arder , altos gemidos ,
Que a rôstos immortaes não cabem chóros ,
Do fundo coração perdido arranca ;
Muge , qual muge a vacca espavorida ,
Que ha visto baquear-se , ao trús do malho ,
Co'a fronte esmigalhada , o bezerrinho ,
Do primeiro amor seu recente fructo.
Depois , que o seio frio ungio de arômas ,
¡ Triste , e inutil fragrancia ! e delirado
Lhe deo o ultimo abraço , e em tanto extremo
De rigor fez extremos de ternura ;
99

Doeo-lhe , horrorizou-lhe o pensamento


Cuidar , que a próle , a porção d'elle , châmas
Lh'a volverião cinza ; ao ventre , á pira
O filho rouba ; ao antro do bifórme
Chiron o leva , é lh'o commette alumno :
E tornando-se ao côrvo , que aguardava
Da não falsa denúncia a recompensa ,
Do número o riscou das brancas aves.

O semífero Velho emtanto fólga


De manter , de velar divina estirpe ,
E tem por prémio á, lida a glória d'ella.
A' cova eis entra a Filha do Centauro ,
*
Coberta os hombros co'as lustrosas cômas :
Porque na beira de veloz corrente
Chariclo a déra á luz , Chariclo a Nympha ,
Poz-lhe Ocyroe por nome. A douta Ocyroe ,
Não paga de aprender paternas artes ,
Do Destino os arcânos predizia .
Infuso ja no peito o Deos lhe ferve ;
Fatídico furor lhe exalta a mente ;
Préga os olhos no infante ; " ¡ Oh ! cresce , exclama ,
" Saude , esp'rança , e glória do Universo !
" De innúmeros mortaes prevêjo os corpos
" Salvos por ti : ¡ prevêjo mais ; prevėjo ,
" Que has de até revocar ja sôltas almas !
100
" Dos Numes a despeito hum dia ousando-o ,
"¡ Ah ! perderás co'a vida o privilégio ,
"Do avíto raio súbito ferido .
" De Nume em corpo exangue te convertes , "
" De cadáver em Deos ; ¡ prodígio ! espanto !
" ¡ Vezes duas teu Fado as leis revoga !
99 і E tu , querido Pai , tu , que á nascença
" Recebeste em partilha a eternidade ,
" Por poderes morrer , que não darías ,
" Quando , pela alta f'rida entrado o sangue
"De venenosa sérpe , exp'rimentares
" Os tormentos do inferno em cada membro !

"¡ De Immortal em mortal mudão-te'os Deoses ;


" Teu fio escuro as Tres Irmãs lá quebrão !,99

Inda restava parte ao vaticínio :


Do centro arranca hum ai , rebenta em chôro ,
E grita : " ¡ Ai dor ! meus fados se anticipão !
" ¡ Não pósso mais , não pósso ; a voz me embargão !
" As artes , que aprendi , não valem tanto ,
" Como a vingança, que de hum Deos me atrahem :
" ¡Antes meus ólhos no porvir não lessem !
" Ja me creio ir perdendo o aspecto humano ;
" Ja pastagem me apraz ; ja sinto impulsos
" De saltar , de correr por esses campos ;
„ Ja me assemêlho ao Pai no corpo equíno :
101
"¡ Porêm toda ! ¡ ¡ porque , se elle he bifórme ?! "
Ja d'estas queixas as finaes palavras
Mal se entendem ; os sons , que se lhes seguem ,
Humanos ja não são , nem de égua ainda ;
Parecem de relincho huns arremêdos ;
Pouco depois , são claros os relinchos.
Para hum pasto relvoso os braços move :
Unem-se os dêdos ; as polidas unhas
Tornão-se em casco duro ; arca -se o cóllo ;
Rasga-se a bôca ; do comprido manto
Parte espaçosa se diffunde em cáuda ;
Da maneira , que vaga lhe pendia
A'dextra parte a côma , a crina pende :
E co'a fórma , e co'a voz demuda o nome.

O Philyreio Heróe , perdendo a filha ,


Se desentranha em chôro ; e , inutilmente ,
Nume de Delphos , teu favor implora.
Nem tu do excelso Jupiter decretos
Podias revogar ; nem , que o podéras ,
Te achavas então lá : por campos de E'lis ,
E por Messénios valles discorrias .
Era , quando pastor trajavas pelles ;
Quando na esquerda mão descostumada
Te pesava hum zambujo ; e frauta agreste
De sete canas te occupava a dextra .
102
Conta-se , que , enlevado em teus amores ,
E na avêna , que as mágoas te ameigava ,
Das vaccas tuas te esqueceste hum dia :
Sôltas de guardador , de pasto em pasto
Errando , fôrão dar aos Pylios campos :
Lá , da Atlàntica Máia o filho astuto
Vio-as , furtou-as , e as sumio n'huns bosques.
Ninguem de tal deo fé ; inais do que hum vélho ,
Conhecido , e apodado entre os visinhos
Com a alcunha de Batto , grão couteiro
Das reaes matas , dos reaes pastíos ,
E grão coudel das éguas generosas
Do opulento Nelêo. Teme-se o Nume ,
Chama-o co'a mão , e diz-lhe em tom de amigo :
" Desconhecido , tu , quemquer que sejas ,
" Se te alguem perguntar por estas vaccas ,
" Dize-lhe , que as não viste ; e , em recompensa ,
" Has de ficar com esta , a flôr do armento. "
Deo-lh'a : o outro , acceitando-a , assim lhe torna ;
" Pódes ir descançado : era mais facil ,
" Que este seixo o dissesse. " E aponta hum seixo.
Finge ausentar-se o Deos ; mas torna logo ,
Mudando voz , e aspecto ; e diz : » Se has visto
" Passar por cá , bom rústico , humas vaccas ,
» Vale-me , que as perdi ; descóbre o furto ;
» Huma haverás , e hum touro , em recompensa . "
103
Vendo prémio dobrado o bom do vélho ,
" Devem de estar , lhe diz , n'aquelle valle. "
N'aquelle valle estavão. Ri Mercúrio :
E, ¡ A min mesmo , traidor , me denuncías !
"¡ Denuncías-me a mim ! " brada ; e converte
O peito do perjuro em dura pedra :
De tóque a chamão ; do que foi lembrada ,
Enganosos metaes agora accusa ;
E conserva , sem culpa , a antiga infâmia.

Na dextra o Caducêo , nos pés as plumas


O Deos remonta ao ar ; transvôa os campos
Munychios , o chão grato á grão Minerva ,
E as do culto Lycêo folhudas matas.

Segundo a antiga usança , era esse o día ,


Em que íão , turba alegre , ás castas Môças
Ao Templo fésto da virgínea Pallas ,
Com seus dons á cabeça em flóreas cêstas .
Ao vêl-as , ja na vólta , o Nume aládo
Da recta aérea via afasta o rumo ;

E em giro circular lhes sobrepáira :


Qual milhano veloz , que enxerga entranhas ,
Mas vê medroso a chusma dos ministros ,
Que estão cercando a víctima ; não foge ,
Não se aparta , esvoaça-se , rodêa ,
104
Doudo , sôfrego em torno á láuta esp'rança ,
Tal sobre os muros átticos Cyllénio
A'gil baixando vem de giro em giro .
Quanto offusca áurea Lua á clara Vénus ,
E a estrella da manhã da noute aos astros
Tanto mais bella do que as Sócias vinha
Hérse , a glória da festa , a flôr das virgens .

Pasma de Jove o Filho ao vêr-lhe as graças :

Nos ares , onde as azas equilíbra ,


Arde , qual arde o chumbo arremessado
Por funda balear , que vôa , silva ,
Na carreira se abraza , e vai nas nuvens.
Súbito fogo achar , que em si não teve.
Ja desváira da róta começada ;

Ja aos Ceos , que fendeo , prefere as terras.


Confiado em seu rôsto , em seus encantos ,
Disfarces não empréga , e só procura '
Compôr com arte a natural belleza .
Ageita a côma ; a chlâmyde concerta ,
Que lhe penda, com garbo , e todo amostre
O ouro das franjas , a vistosa barra ;
Estuda , que engraçada a mão lhe adorne
Vara , que o somno atráhe , e afasta o somno ;
E nos cândidos pés lhe resplandèção
Os velozes , alígeros Talares .
105
Dos Paços no interior tres leitos jazem
De alvo marfim , mosqueada tartaruga :
Dorme Pandróse á dextra , á esquerda Aglauro ;
Tu , Hérse , amor do Deos , o centro occupas .
Vinha entrando no tácito aposento
O Divino Amador : Aglauro véla ;
Presente-o , resoluta lhe demanda ,
Quem he , • que busca alli : » Sou » lhe responde
De Pléione , e de Atlante o Neto illustre ,
" O Núncio de meu Pai ; meu Pai , he Jove.
" O fim , que me aqui traz , não t'o disfarço :
» Sè tu leal á irmã ; tu , sê contente ,
" Que hum dia filhos meus te chamem tia :
" Hérse venho buscar ; protége o Amante. »

Disse Aglauro o medío co'o ar , co'os ólhos,


Com que á loura Minerva ha pouco havia
Profanado o depósito secreto :
Ao pedido favor põe prêço enorme ,
E , em quanto não pagar , lhe diz , se ausente.
Lançou-lhe a Márcia Deosa olhar terrível ;
E tal suspiro deo , que o peito forte ,
E a E'gide sobre elle , arfárão junctos :
$
Lembra-lhe , que foi essa a temerária ,
Que ousou pôr ínpias mãos em seus mistérios "
Que descobrio , que olhou , rompendo o ajuste ,
106
A , nascida sem mãi , vulcânea próle .
Hoje , novas razões ao ódio accrescem :
Tudo , tudo á malvada está sorrindo ;
Vai por sórdida acção tornar-se em dôbro
Grata á formosa Irmã , querida ao Nume ,
E farta do metal , que avára exige.
Parte , corre da Inveja ao lar soturno ,
Ao lar , que escorre em pútrido veneno .

He a Estância da Invéja em gruta enorme ,


Lá n'huns profundos valles escondida ,
Aonde o sol não vai , nem vai favónio.
Reina alli rigoroso , eterno frio ;
De húmidas , grossas névoas sempre abunda.

Chegára ao sítio infésto a Deosa invicta :


Ante a morada atroz suspende o passo ,
Que não lhe he dado penetrar lá dentro ;
Fere a porta co'a lança ; abrio-se a porta.
Vê-a ao fundo a comer vipéreas carnes ,
De seus tartáreos vicios alimento :
Vê-a , e 9 para a não ver , desvía os ólhos .
Deixando em meio as sérpes , que tragava ,

Se ergue a custo da terra o monstro feio :


Com tardo passo vem , e ao ver Tritónia ,
Formosa nas feições , gentil nas armas ,
107
Gemeo : ao seu gemido a encara a Deosa .

Da morte a pallidez lhe está no aspecto ,


Magreza , e corrupção nos membros todos :
O'lha sempre > ao revez : ferrugem tôrpe
Nos asquerosos dentes lhe negrêja :
Vê-se o fél verdejar no peito immundo ;
Espumoso veneno a lingua vérte :
Longe o riso lhe está dos negros lábios ;
Só, se nos mais ha pranto , ha n'ella riso :
Não goza de repouso hum só momento ;
Os cuidados , que a róem , não soffrem somnos :
Mirra-se de pezar , ao ver nos homens
Qualquer bem ; rala , e rala-se a maldita ;
He verdugo de si , ódio de todos .

Apezar da aversão , que infunde o Monstro ,


A Deosa estas palavras lhe dirige :
" Das tres Irmãs , por Cécrope geradas ,
" Convem , que em teu veneno infectes huma ;
" Aglauro , o nome seu. " Mais não profere ,
Firma a lança no chão , repelle-o , vôa .
Co'os ólhos vêsgos a seguio a Invéja ,
Dentro em si murmurou , doeo-lhe n'alma
Cuidar , que a Deosa logrará seu gosto.
Toma entretanto o báculo torcido
108
Todo enleyado de espinhosos cardos ;
De átras nuvens se cobre ; eil -a em caminho.
Nos campos , que atravessa , as flores murchão;
Definha , amarellêja , e morre a grama ;
As familias , os povos , as Cidades
Ao hálito infernal se contaminão .
Ja descobre , ja vê Tritónios muros
Em artes , em riqueza , em paz florentes ;
E , porque tudo ri , lhe acode o choro.
Entra no quarto da Cecrópia filha ;
E cumpre na infeliz a lei sevéra :
Ja denegrida mão lhe encosta ao peito ,
E o peito se enche de pungentes farpas ;
Ja lhe inspira o lethífero veneno ,
Veneno que os pulmões repassa , filtra ,
E vai na côr do pêz tingir os óssos :
E , porqué em largo espaço o mal não vague ,
Põe-lhe aos ólhos a irmã , feliz , e espôsa ,
Põe-lhe aos ólhos o Deos , gentil , e amante ;
E tudo pinta em grande á mente escura .

No emtanto occulta dôr irrita Aglauro ;


Morde-lhe o coração , que ancêa , geme
O longo dia inteiro , inteira a noute.
Qual aos raios do sol se gasta o gêlo ,
Em lenta febre a mísera se gasta ;
109
Da irmã, contente , e alegre a imagem feia
A mirra , como o fogo ás plantas verdes ,
Que sem luz , sem fragor se vão finando .
Mil vezes quiz morrer , só por não vêl-a :

Mil , ao rígido Pai narrar a offensa .


Determinou-se emfim ; vai resoluta ,
Para excluir o Deos , sentar-se á porta.
Não na abrandão palavras de brandura ,
Nem lisonja subtíl , nem rogo ardente.
"¿ Que porfias ? desiste ; » Aglauro exclama ,
"" Não me ausento d'aqui , sem que te ausentes. »
» Venho na condição , tornou Cyllénio ,
"Venho na condição . " Da vara ao tóque
De par em par as portas se escancárão .
Quer-se a invejosa erguer , mas sente as curvas
Com desusado pêso adormecidas :
Lida por levantar o tronco ao menos ,
Ja se os joelhos rígidos não dobrão ;
Frio , mais que mortal , se estende ás unhas ;
Tornão-se exangues , pallidas as veias :
Como , incuravel mal , serpêa o cancro ,
E do ja corrompido ao são progride ,
Assim lhe côa , lhe entorpece os órgãos
E os aéreos canaes lhe embarga o gêlo ;
Nem pretendeo fallar , nem , se o tentasse ,
Passagem tinha a voz : o cóllo he pedra ,
110 1
Pedra os lábios , a lingua , a face , o rôsto :
Inda ha pouco mulher , estátua agora ,
Mostra , sentada , a posição , que teve ;
Mostra na côr do seixo a mente escura.
A' blasfêma impiedade imposta a pena ,
Deixando os muros , que afamaste , ó Pallas ,
O Atlancíade ovante ao ar se torna .

O Pai , que o vê nos Ceos , á parte o chama ,


E, sem lhe declarar o amor, que o punge ,
"Vai , Ministro fiel dos meus decretos ,
" Vai , Filho meu , co'a sólita presteza ;
" Desce á terra , lhe diz , d'onde se avista
" Tua Mãi reluzindo á sestra parte ,
" E que os seus naturaes Sidôn nomêão ;
" O armentío real , que ao longe a relva
" No monte anda a pascer, dirige á praya. »

Disse e ja da montanha o gado expulso


Caminha á fresca praya , onde costuma
A do potente Rei mimosa Filha
Espairecer , folgar co'as Tyrias virgens.
A magestade e amor não bem se ajustão ;
Jamais o mesmo peito os accommóda .
Do sceptro a gravidade emfim depondo ,
O Pai , e o Rei dos Deoses , Jove , aquelle ,
111
Que armada tem do raio a sacra dextra ,
E que ao mínimo ácêno abala o mundo ,
Veste forma taurina , entre as manadas
Muge , e pisa formoso as brandas hervas.
He côr do gêlo , que nem pés calcárão ,
Nem co'as azas desfez o sul chuvoso ;
Ergue a cervíz carnuda ; entre as espáluas
Graciosa lhe pende , e bambalêa
A cândida barbella ; as breves pontas
De industriosa mão lavor parecem ;
Ganhão no lustre á pérola mais pura :
Não tem pesado sênho , olhar terrivel ;
Antes benigna paz lhe alegra a fronte .

A Filha de Agenor admira o Touro ,


Estranha ser tão bello , e ser tão manso :
Ao princípio , inda assim , teme tocar-lhe ;
Vai-se , depois , avisinhando a elle ;
E as flôres , que apanhou , lhe applica aos beiços.
Não cabe em si de gôsto o lédo Amante ;
Em quanto a maior bem chegar não póde ,
Amoroso lhe beija as mãos de neve ;
Mal se contém , que não se arroje a tudo.
Eil-o ja pela relva salta , e brinca ;
Ja põe na fulva arêa o níveo lado ;
A' virgem pouco a pouco o mêdo extingue ;
112
E agora ofrece brandamente o peito ,
Só para que lh'o afague a mão formosa ,
Agora as pontas , que a real donzella
De recentes boninas lhe engrinalda.

Ella emfim , que não sabe , a que se atreve ,


Ousa nas alvas cóstas assentar-se.

De espaço á beiramar descendo o Nume ,


Põe mentiroso pé n'agua primeira ;
Vai depois mais ávante ; emfim nadando
Leva a prêsa gentil por entre as ondas.
Ella , de ólhos na praya , ella medrosa
Segura buma das mãos n'buma das pontas ,
Sobre o dórso agitado a outra encosta :
Enfuna o vento as susurrantes véstes.

FIM
18 JY63
DO LIVRO SEGUNDO .
AS

METAMORPHOSES.

LIVRO TERCEIRO .
IS
BRI H
115

ARGUMENTO.

Levada Europa para Créta por Jupiter , que al-

li se lhe descobre na sua fórma natural , elrei Agc-


nor , pai d'esta princeza , ignorando o que foi d'el-
la , envia seu filho Cadmo a correr mundo , em
procura da Irmã ; condemnando -o de antemão a
destêrro perpétuo , se lh'a não trouxer . Cadino
perde as passadas , que dá n'esta investigação ; e ,
não podendo voltar nunca mais á patria , consul-
ta o Oráculo de Apollo , para saber onde deve ir
estabelecer -se : o Oráculo lhe ordena edificar a ci-
dade de Thébas . Chegado o Principe ao sítio desi-
gnado , quer , por via de sacrificios , aparelhar -se
para a fundação : 'os que vão buscar a agua para
as libações , encontrão na, gruta da fonte hum fa-
çanhoso Dragão , pertencente a Marte , que des-
tróça grande quantia da gente de Cadmo . Cadmo
⚫ mata ; e detendo -se a contemplar o monstruoso
do cadáver , ouve huma voz prophetizar -lhe , que
hum dia elle mesmo se transformará em serpent ?.
Enterrando , por órdem de Pallas , sua protecto-
ra , os dentes do Bruto, d'elles vê rebentar outros
tantos soldados , que se entrematão ; escapandə
h
116
cinco , de quem se ajuda na edificação da Cidade.
Pag . 121 - Cadmo , primeiro rei da sua Thébas ,
genro de Marte e Vénus, e cercado de copiosa des-
cendencia , cabalmente houvéra sido feliz , a não
occorrer a desgraça de seu néto Actéôn . Fábula
de Actéôn , convertido por Diana em veado , ein
pena de a ter visto nua no banho , e logo de seus
proprios cães atassalhado. Pag. 128 - Esta tra-
gédia de Actéôn regala os ódios , que Juno tem
jurado a toda a familia de Europa , pela infi-
delidade , que Jupiter com ella lhe fizera. A'
sêde de vingança em Juno , accrescêrão ja novos
motivos . Seméle , filha de Cadmo , he amada por
Jupiter , e d'elle se acha pejada : vóta perdêl-a ,
apparece-lhe na figura de Béroe, sua ama , e lhe acon-
selha pedir a Jupiter , se lhe apresente huma vez
com toda à magestade , com que se costuma unir
a Juno . Seméle assim o faz ; em consequencia do
que , perece abrazada . Pag. 134 - Jupiter lhe
saca do ventre o féto , e o encerra na sua propria
côxa para perfazer os mezes da prenhez. Nasce a
seu tempo hum menino, que he Baccho: a tia Ino ,
irma de Seméle , lhe administra os primeiros offi-
cios, de que hum recém nascido carece ; e as Nym-
phas de Nysa o aleitão , e crião . Pag. 137 - Du-
rante a infancia de Baccho, seu Pai Jupiter, n'hum
117
dia de bom humor , tem com Juno huma teimosa
porfía sobre a intensão comparativa dos deleites
amorosos nos dous séxos : Jupiter contende con-
tra a opinião de Juno , que são as fémeas , quem
mais goza . Para decidir a dúvida , louvão -se na
sentença , que dér Tirésias , homem n'esse tem-
po , mas que ja tambem havia sido mulher. Tiré-
sias desempata a favor de Jupiter : Juno se espinha ,
é o céga. Jupiter, para o consolar, lhe outorga dom
de prophecia . Pag . 137. - Os vaticínios de Tiré-
sias lhe grangêão logo nomeada por toda a Grécia :
a primeira , que a veracidade lhes experimenta ,
he a Nympha Liríope , que , havendo sido viola-
da pelo Rio Cephíso , e dado á luz o formoso
Narciso, consultą o adivinho , para saber , se o filho
tem de chegar a vélho : se não se conhecer

responde elle. Estas palavras , parecendo a todos


inintelligiveis , sahem confirmadas pelo andar do
tempo. Amor mal correspondido de E'cho a Nar-
ciso ; precedido de huma breve notícia a respeito
d'esta Nympha , a quem Juno tirára a falla , dei-
xando-lhe só a faculdade de repetir os ultimos sons,
que ouvisse. Narciso se apaixona depois pela sua
propria imagem ; desespera-se cabindo na conta do
engano , e he convertido em flor do seu nome .
Pag. 139. -- O cumprimento do prognóstico ácer-
118
ca de Narciso , carêa ao seu autor summa ve-
neração entre os póvos da Grécia ; Penthêo , filho
de Agáve , irmã de Seméle , e por tanto primo de
Baccho , Penthêo, afamado na impiedade, he o uni-
co , que desprésa , e injuría o Propheta , que , em
vingança, lhe prediz hum fim desastrado , ao qual
chegará por não reconhecer a Baccho por Deos ,
quando se lhe este como tal apresentar. Baccho.
apparece com effeito : todo o povo Thebano o adóra ;
Penthêo os incrépa , e manda trazer presa á sua
presença a nova Divindade , que dá por embustei-
ra . Pag. 147. - Os para este fim deputados , não
havendo podido encontrar com Baccho , lhe trazem
hum dos da sua comitiva. Este , sem se torvar na

presença do Monarcha enfurecido , lhe declara quem


he, e a sua história desempachadamente. Fábula de
Baccho transfigurado em menino ; e dos marinhei-
ros , mudados , por vingança de Baccho , em gol-
finhos : dá remate ao conto , confessando-se parti-
dario , e cultor do novo Deos . Penthêo o manda
encarcerar, para ser metido a tormentos, e morto ;
inas o prêso , que , debaixo do nome de Acétes ,

era nada menos, que Baccho em pessoa, desappa-.


rece da prisão por modo prodigioso . Pag. 151 .
ElRei , assomado , e cégo de cólera , corre para o
monte Cithéron para colher as Bacchantes nas O'r-
119

gias. He por ellas espedaçado ; sendo a que o en-


céta a sua propria mãi , Agáve ; a quein logo de
após se seguem suas tias , Autónoe , mai do morto
Actéôn , e Ino, que , allucinadas por Baccho, sup-
poem ver n'elle hum javalí. Este exemplo do poder,
e vinganças de Baccho , faz receber as suas festas
geralmente pelas Thebanas. Pag. 158 .

DESCRIPÇÕES PRINCIPAES.

Paginas
Sélva , caverna , e fonte da Serpente de Marte. 123
A Serpente , e assolação por ella feita nos
123
Tyrios....
combatida , e morta por Cadmo ... 124
Soldados nascidos dos dentes serpentinos ; e
127
sua mútua destruição....
O valle de Gargáphia : gruta , fonte , e ba-
nho de Diana ...... 129

Actéôn perseguido, e despedaçado dos mastins . 132


... 139
Narciso , sua formosura , e isenção ....
E'cho ... · 140

Fonte de Narciso.... 142


...
Narciso namorado da sua imagem .... 143

Acétes , sua pobreza , seu mistér de piloto... 151


Sedição contra Acétes na sua galé..... 153
Penthêo dilacerado das Bacchantes....... 158
METAMORPHOGD8 .

LIVRO III.

204081 05 adques
a nos campos Dictêos , despida a fórma
Do Touro enganador, brilhava o Nume :
Quando o Pai, que da filha ignora os fados,
Buscal-a ordena a Cadmo ; e , não a achando ,
122

Por castigo lhe impõe destêrro eterno ,


Unidos n'huma acção piedade e crime .

Perlustrado , vamente , o glôbo inteiro ,


¿ E quem descobrirá de Jove os furtos ?
O Agenóreo Mancebo , que estremece
Da paterna vingança , a Patria evita ;
Busca submisso o Oráculo de Phebo ,
E inquire , em que paiz lhe he dado assento.

— " Vacca illesa de jugo , e curvo arado


» Toparás , que êrmos páramos vaguêa :
" Segue- a afouto ; e , mal pouse em chão rélvado ,
" Muros traça ; e Béócios os nomêa , » —

Descia apenas da Castália gruta ;


Vê sem pastor vagando mollemente
Novilha de cervíz ignóta ao jugo .
Segue-a , pisa-lhe o rasto a passo e passo ,
E adora taciturno ao Deos , que o manda .
Ja do Cephíso os váos transposto havia ,
E atraz deixado os campos de Panópe :
Eis pára o animal , eis que soberbo
Ergue ao ar a cornígera carranca ,
De atroador mugido enchendo os valles ;
Lança hum olhar aos Sócios , que a seguião ,
123

E logo sobre a rélva estira os membros.


Dá graças Cadmo ; beija a terra estranha ;
Montes , campos incógnitos saúda.
Sacrificar a Jove determina ,
E , para as libações , manda aos ministros
Ir buscar agua pura a fontes vivas.

Negreja annosa mata , onde o machado


Jamais entrou : lá se abre huma caverna
De vimes e de arbustos enriçada .
Formão-lhe o arco humilde huns seixos tôscos ,
E em copiosas aguas sempre abunda.
N'ella móra Dragão sagrado a Marte ,
A'urea e cristada a fronte , os ólhos lume ,
Túmido o corpo de lethal veneno ,
Tríplice a lingua , os dentes em tres ordens .
N'este arvorêdo os Tyrios emissarios
Entrão com pé sinistro : mal que a urna
Descendo ás aguas retumbou pelo antro ,
Eis do fundo do longo esconderijo
Ergue o dragão cerúleo a fronte enorme ,
E horrendos silvos sólta : ao vêl-o , e ouvil -o ,
Fóge o sangue ; das mãos as urnas cahem ;
Subitânea tremura os acommette .
Vêl-o em volúveis vóltas desconcentra
Os escamosos círculos ; e a pulos
124
Coleando avança : mais de meio erguido
Domina toda a sélva ; em corpulencia ,

Nem cede , ao que separa as Ursas ambas.


Emquanto , ou para a briga os Tyrios se armão ,
Ou se dispõem á fuga , ou fuga , e briga
Lhes impede o pavor , co'a turba invéste ;
Huns , nos dentes os leva ; outros , nas roscas
Entalados arrastra ; estes derriba
Co'o bafo immundo , aquelles co'a peçonha .

Ja o Sol a pino as sombras encolhia ;


Da tardança dos seus Cadmo se espanta ,
E a procural-os parte : hirsuta pelle
De vencido leão lhe cobre o corpo ;

Por armas leva hum dardo , a vasta lança ,


E o brio , em peito heróe , melhor que as armas .
Mal põe no bosque a planta , avista os mortos ;
O enorme vencedor sobre elles pousa ;
Lambe-lhe as f'ridas co'a sanguínea farpa.
" Companheiros fieis , por mim vingados ,
" Ou seguidos por mim sereis . " Exclama.
Rocha , que iguala as mós , toma na dextra ,
Balança-a , dá-lhe impulso igual ao pêso ,
Fal-a voar troando : ao rude embate
Torreadas muralhas tremerião ,
A Sérpe fica illesa , que a escamosa
125
Loríga natural , e o couro negro
Repercutem o tiro : igual ventura
Contra o dardo comtudo a não deffende ;
Pelo meio da espinha dobradiça
Varou , lá jaz na entranha o ferro inteiro,
Furioso co'a dôr retorce o monstro
A fronte sobre o dórso', ólha a ferida ,
Na hástea , em si . cravada , enterra os dentes ;
Para aqui , para alli revolve , alarga ,
Até que a arranca emfim ; mas fica o ferro.
Co'a ferida recente a fúria innata
Cresce , requinta agora : inchão-lhe o cóllo
Túmidas vêas ; de espumosa baba
Alvêja a larga , a pestilente bôca ;
Das escamas roçado o chão resôa :
O bafo escuro das Tartáreas fáuces
Infecta as áuras , contamina as plantas :
Ora espiral se aperta em órbe immenso ;
Ora arvorado mastro imita a prumo;
Ora nos vastos ímpetos semêlha
Rio feroz co'as chêas engrossado ;
Rompe , alvoróta as arvores passando.
Retrocéde alguns passos o Agenóreo :
Co'o leonino espólio na sinistra , ‹
Lhe apara a fúria , oppõe-lhe a lança em riste.
Bravêja o drago afouto : no impassivel
126
Férro os dentes amóla , e mórde o gume.
Ja do padár pungido está correndo
Sangue empéstado , que rocía as hervas ;
Mas he leve a ferida , porque o monstro
Sente o pico , e retrahe-se , o damno encéta ,
Surge atraz , nem dá tempo , a que entre o golpe .
O Agenóride então dobrando esforço ,
Ja mergulhado na guéla o ferro ,
Segue-o , leva-o de encontro , até que obstandɔ
No caminho hum carvalho , cóllo , e tronco
Do mesmo lanço alli deixou pregados ;
Dobra-se a arvore ao pêso , e geme aos gólpes ,
Com que a cauda indignada açouta o tronco,

Emquanto do vencido a enormidade


Contempla o Vencedor , voz repentina
Soou ; d'onde partio , não ha sabêl -o ;
Mas ouvio-se : » Huma sérpe ólhas , ó Cadino,
Sérpe serás tu mesmo. " — Ao tôrvo annúncio
De gélido pavor arripiado ,
Sem voz , sem tino , e côr ficou grão tempo.
Mas do heróe a Suprema Protectora
Pallas , baixa , e lhe ordena , que semêe ,
Lavrada a terra , os dentes serpentinos ,
Novo incremento da Nação futura .
Obedece ara o sólo , enterra os dentes .
127
Logo , ¡ incrivel prodígio ! os torrões bólem ,
Pelos sulcos despontão , fulgem , médrão
Férros de enfileirada lançaría ;
Crescem hastas , co'as hastas vem cimeiras ,
Que , multicôres , trémulas , emsombrão
Móbiles morreões ; ja surdem , hombros ,
Peitos , e braços , carregados de armas.
Sahio , brilha madura á flor da terra
Vasta seara de escudada tropa .

Taes , quando em festival Ausónia scena


Para em torno a vestir ' se elevão pannos ,
Pintados n'elles ao princípio rostos
Assomão , vem depois surgindo o resto ,
Té que na extrema barra os pés se avistão .

Cadmo , assustado dos contrários novos,


I'a as armas tomar : " Não tomes armas ! "
Lhe diz hum , dos que a terra produzíra ,
" Não te intrometas em civís combates !
Diz , e n'outro terrígena visinho
▲ espada ensópa ; sobre o morto hum dardo
De longe o prostra morto ; o que o brandíra ,
Cahe tambem logo g e no final arranco

Expira as áuras , que inspirára apenas.


Tal por todo o esquadrão bravêja o ódio ,
Assim victória , e morte , irmãs , e unidas ,
128
As hóstes fraternaes rarêão , prostrão.

Da soldadesca efémera sobravão


Cinco , e não mais : o resto alastra , ou morto ,
Ou moribundo , a mai lavada em sangue .
Echiôn foi dos cinco . A' voz de Pallas ,
Este , as armas depondo , implora , e ofrece
Aos quatro irmãos a paz ; e a paz , se firma:
Do sidónio estrangeiro estes os sócios
Na fundação de seus fadados muros.

Thebas existe emfim : ja pódes , Cadmo ,


Ser julgado feliz pelo destêrro .
Genro de Marte e Cypria , a tanta glória
Junctas inda esplendor de descendencia ;
Tantos filhos , e filhas , tantos netos ,
Enlêvos teus , e em ja florente idade.
Mas ; aguardar o dia derradeiro !
Que , emquanto se não fecha a sepultura ,
O nome de feliz vai sempre em risco .
Cadmo , Cadmo ! com júbilos tão longos
Tambem por fim te veio horrendo lucto :
Viste de hum neto a perda , estranhas pontas
¡ Oh supplício inaudito ! unil-o aos brutos ;
Viste fartos seus cães no sangue d'elle.
Se comtudo o successo examinarmos ,
129
O crime não foi seu , foi da ventura ;
Nem crime póde haver , onde ha só êrro.

Ja regado co'o sangue de mil féras


I'a purpureo o monte : o dia em meio
As sombras encurtava , e o sol no auge
Tinha o sepulchro e o bêrço a iguaes distâncias .
Com socegada voz o Hyâncio môço
Das brénhas chama os sócios caçadores :
" Companheiros , lhes diz , armas , e rêdes
Gotêjão farto sangue ; assaz caçámos.
" Amanhã , quando a Aurora em róseo côche
" Reconduzir a luz , proseguiremos .
" O meiodia agora os campos fende :
" Cessai por hoje ; as rêdes se recôlhão. "
Obedecem suspendem -se os trabalhos ,

Ha hum valle , Gargáphia o nomeárão ,


De pinhos , de cipréste abastecido ,
E recreio usual da Virgem Délia.
Lá , bem no fundo , hum antro se entremostra ,
Selvatico , e formoso : os seus primôres
D'arte não são , mas brincos , com que imita
A mestra Natureza esforços d'arte.
Ella ideou , fez-lhe ella este arco airoso
De vivos pómes , de topháceos leves ;
Liv. 3. i
130
Ella lhe abrio á dextra essa fontinha ,
Que , brilhante , e sonóra , está formando
Entre esprayada rélva humilde lago .
Alli folgava a Deosa das florestas ,
Encalmada da caça , entrar co'as Nymphas ,
A se orvalhar co'as aguas deleitosas.
Entrou pois n'este dia : aljava , e arco ,
A' sua pagem d'armas os devolve :
O manto , que ella arroja , huma lhe apara ;
Duas os pés dos vínculos lhe sóltão.
Crócale , a filha do sonóro Isméno ,
E a mais habilidosa em todo o rancho ,
As cômas lhe ata sem curar das suas .
Urnas enchendo á fonte Hyale , Néphele ,
Psécas , Rhânis , e Phíale lhe vertem
Clara torrente sobre os membros alvos .

Emquanto assim Titânia se recrêa ,


Anda na ignóta sélva errando á tôa ,
Feriado tambem de montarías ,
De Cadmo o néto ; e , por desastre , acerta
De entrar ao sacro asilo. Ao verem homem

Na fresca , húmida gruta , as Nymphas nuas


Férem- se o peito , assombrão de alarídos
Todo o arvorêdo , e apinhão-se co'a Deosa
A resguardar co'os seus o corpo d'ella :
131
Mas da Deosa inda o rosto as sobrepuja ;
Rôsto de virgem descomposta , e vista ,
Acceso , ou , como nuvem , que o sol tinge
Fronteiro , ou , como o teu , purpúrea Aurora .
Bem que entre o Côro occulta , apenas ousa
Estar de lado para traz olhando ,
Não vê· á mão as suspiradas sétas ;
Só vê agua , com agua atira ao jóven ,
Face , e cômas lhe alaga ; e assim profére
Confuso annúncio de futuro.damno :
" Vai , se pódes , contar , qual me aqui viste . "
Mais não diz : ja de cervo vividouro
Pontas pullullão na ensopada tésta ,
Recresce o cóllo , orêlhas se lhe agução ,
Mãos , pés , braços , e pernas se transtórnão ;
Todo se envolve em maculosa fêlpa ,
E entra o pavor no coração mudado .
Foge o Autoneio heróe ; correndo , pasma
Da ligeireza insólita : divisa ,
Ao passar perto d'agua , a córnea fronte :
I'a gritar ¡ ai triste ! " a voz lhe falta ;
Pôde apenas gemer : manão-lhe ao longo
Do semblante não seu lagrimas suas :
De tudo , que ja foi , só resta a mente ,
¿ Que fará ? ¡ voltar deve aos régios paços ?
i Entre as matas sumir-se ? ¡ Extremos ambos !
i *
132
Hum , lh'o véda o temor , outro , a vergonha.
Emquanto assim vacilla , os cães o avistão :
Ladrando dá signal primeiro aos outros
Melampo , e logo Ichnóbate , o previsto ,
Filho de Esparta aquelle , este de Créta .
Após elles , velozes como o vento.
Rúem todos os mais precipitados.
Dorcêo , Pâmphago , Oríbaso , da Arcádia ;
Nebróphono valente ; o carrancudo
Théron ; Lélape ; o rápido Pterélas ;
Agre de astuto fáro ; Hylêo raivoso ,
De infésto javalí recémferido ;
Próle de lobo , Nape ; de rebanhos'
Guarda , Peméne ; Harpya , com dous filhos ;
Sicyónio Ladón de ilhaes estreitos ;
Drómas , Cánace , Sticte , e Tigre , e Alce ;
Leucôn de branco pêllo , A'sbolo escuro ;
Lacôn membrudo ; corredor Aéllo ;
Thóo ; com Cyprio , a leve irmã Lycisca ;
Háspalo , de alva estrella em fronte negra ;
Láchne felpuda ; Melanêo ; e os , filhos
De genitor Dictêo , de mãi Lacónia ,
Labro , Agriodo , Ililactôr de voz aguda :
E os mais , que referir seria enfado.
Com a avidez da presa partem , trétão
Por penhas , rochas , lapas inaccessas :
23
Ja , por onde o caminho he mais fragoso ,
Ja , por onde o não ha . Lá vai , lá foge
Perseguido , o que ha pouco perseguia ;
Sitios , onde venceo , lá deixa em fuga ;
Acóssão-no , os que á voz lhe obedecião.
Desejava gritar : " Sou eu , deixai-me ,
» Sou Actéôn , fugi , sou đônò vosso. ”
Falta ao desejo a lingua : estruge os ares
Confusão de ladrídos ; Melanchétes
Lhe encéta o dórso co'os fulmíneos dentes ,
Logo depois Therídamas ; na espádua
Eis o aferra Oresítropho ; valeo-lhes ,
Tendo sahido após , seguir o atalho..
Todos tres o retêm , dão tempo aos outros ,
Que cheguem , que o misérrimo lacérém
Ja fallece logar para feridas :
Elle géme , elle huns sons piedosos lança ,
Que , se de homem não são , não são de cérvo ;
Elle , aquelles outeiros conhecidos
Com queixumes tristissimos quebranta .
De joêlhos cahindo, em actó humilde,
Como quem pede amparo , emtorno gira ,
Emvez de braços , consternados ólhos .
Os sócios co'os apupos do costume
Mais açulão a cáfila bravía ;
Com a vista Actéôn procurão ! néscios !
134
Néscios bradão por elle em vã pɔrfía.
Quantas vezes seu nome o triste escuta ,
Tantas revíra a lânguida cabeça :
Ouve-os queixar-se , de que ausente , ocioso ,
Gozar não venha da of'recida prêsa.

¡ Ausente ! ¡ ah , pelo estar que não daria !


¡ Que não daria , por poder , como antes ,
Ver , não sentir , de seus mastins a audácia !
Rodêão-no , esmordação-no , retalhão
Sob o falso veado o antigo dono.
Diz-se , que só depois , que em tanta angústia
O espirito rendeo , ficou sedado .
Da armígera Latónia o cru despeito.

Discrépão sobre o caso os sentimentos :


Huns , a estranhão de nímia crueldade ,
Das virgens digna Deosa a acclamão outros;
E todos em razões seus dictos fundão .
Só de Jove a Consórte se não toma

Com arguir , ou louvar ; harto deleite


Lhe he ver tal lucto na Agenórea estirpe ;
Pois co'a Tyria rival lhe odêa a raça.
Accresce ao ódio antigo injúria nova ;
Seméle , está de Jupiter pejada :
Sabe-o ; e desata em cólera taes vozes :
" ¿ ¡ Que hão valido até hoje os meus enfados ?!
135
" Buscal-a irei ; e , ou ficará perdida ,
" Ou eu não serei Juno , a excelsa , a digna
" Do gemmífero sceptro , a Irmã , e a Espôsa
" De Jove : ¡ sua Irmã sou eu por certo !
" Mas.... ¡ ¡ se, quanto ella ha feito, não passasse
" De hum transvío fugaz , injúria leve ,
" Que não irrogue ao thálamo desdouro ?!
» Não ; concebeo : ¡ inda isto me faltava !
» Patente o crime traz ; lógra hum indulto ,
29 Meu só , e huma só vez de mim logrado ;
"Ser por Jupiter mai presume , e espéra ;
"¡ Tanto a céga , ¡ insensata ! a formosura !
" Mas farei , que a vaidade a precipite.
" Eu não seja Satúrnia , se na Styge ,
» Jove mesmo , o seu Jove , a não despenha. »

Cala ; surge do throno : em loura nuvem


Se envolve , e de Seméle ao átrio desce :
Nem seu aéreo invólucro dissipa ,
Emquanto dentro se não muda em vélha ,
Toda că , tez rugosa , as costas curvas ,
Frouxos os passos , trémulos os membros ,
E vélha até na voz : é Béroe , Béroe ,
A do Epidauro , a ama de Seméle.

Travada entre ellas prática , passou-se


136
De discurso em discurso , até que veio
A se fallar de Jove : então suspira ,
» ¡ E, oxalá , diz , que o nosso Amante o seja !
" Mas... quem sabe ! eu , de tudo desconfio ;
"¡¿Quantos não ha , que Deoses se têm feito ,
" Para zombar da honra !? Filha , filha ,
" O dizer -Eu sou Jove - he cousa facil :
"¿ Se o he , porque o não próva , e não te ofrece
" De seu divino amor seguro abôno ?
" Quão grande, e qual nos Ceos se abraça a Juno,
» Tal , e tão grande a teus abraços venba ;
„ E mostre , antes do affecto , a magestade. »

Assim pois doutrinada , a não cuidosa


Filha de Cadmo , a Jupiter supplíca
Hum dom , sem dizer qual . » Escolhe , e falla ;
"Responde o Deos , não soffrerás repulsa.
" Para maior certeza , aqui te invóco ,
» Divindade fatal do Stygio Lago ,
" Temor dos Immortaes , Nume dos Numes. "
Contente co'o seu mal , forte em seu damno ,
Seméle , a quem o amor vai dar a morte ,
" Qual te recebe entre seus braços Juno ,
" Lhe diz , quando o prazer vos chama ao tóro ,
" Tal te goze eu tambem. " Tapar-lhe os lábios
Quiz o Deos ; fei já tarde : ouvio-se o rogo,
137

Géme , pois he ja agora impracticavel


Não ter ella escolhido , elle jurado .
Tristissimo portanto aos ceos remonta :
Juncta as nuvens , que a ácênos lhe obedecem ,
Ventos , trovões , relâmpagos , chuveiros ,
E o raio emfim , o raio inevitavel .
Mas , quanto póde , apouca as proprias fôrças ;
O corisco não quer , com que assolára
A Typhêo centimâno : outro ha mais leve ,
Que em menos feridade , em menos ira ,
Em menor fogo os Cyclopes temperão ;
Chamão-lhe os Deoses - Secundários Tiros.
Tomou-o , e da Agenórea aos lares baixa.
Do Rei do Olympo ao túrbido apparato
Céde o corpo mortal da semventura ,
Co'o dóte conjugal tornado cinzas.
Féto immaturo do materno ventre
Se extrahe ; na pátria côxa , se devemos
Na fama acreditar , seu Pai o insére ;
E alli da gravidez preenche as luas.
Ino , irmã de Seméle , ás escondidas ,
Deo-lhe os cuidados das primeiras faxas.
Logo as Nymphas Nyseides o occultárão ,
E o nutrírão com leite em suas grutas.

Ao tempo , que no mundo estés successos


138
Vão por lei do Destino , e em paz segura
Do binascido Baccho a infancia médra ;
Contão , que Jove hum dia , ébrio de néctar ,
Desapressado dos reaes cuidados ,
Co'a sua Juno ociosa gracejava ,
E assim disséra : " ¡ A' fé , que a mór delícia ,
" Em transpórtes de amor , a haveis 'vós outras ,
" Que não nós ! " Néga a Deosa ; ambos ateimão ;
Querem ambos por árbitro a Tiresias ,
N'hum e n'outro prazer exp'rimentado :
Fôra o caso ; que hum dia , em verde moita
Duas serpes topando , entrelaçados
Em mútuo gôzo os córpos disconformes ,,
Rijo bordão lhes assentára ; e logo
¡ Que espanto ! de varão tornado em fémea ,
Por espaço o ficou de outonos sete .
Volve a vêl-as no oitavo ; e diz : "Se he santo
" O effeito de ferir-vos , que transmuda
" O sexo , a quem vos fére , a acção renovo . "
Eis as fére 9 eis reverte ao sêr antigo ,

Juiz Tiresias na questão jocosa ,


Şentenceou por Jove . Além do justo ,
E mais , do que a matéria o requeria ,
Se diz , tomára Juno o caso a peito ,
Dando em pena ao juiz cegueira eterna.
139
Mas o Supremo Padre (óbras de hum Nume ,
Nenhum outro as desmancha) emvez dos ólhos ,
Deo-lhe a sciencia , que o porvir descérra ;
Indulto honroso , que o seu mal console.

Ja célebre he seu nome em toda a Grécia ,


E os póvos , como Oráculo , o consultão.
A primeira , que amarga experiencia
Fez dos agouros, seus , foi a formosa ,
Filha do mar , Liríope : innocente
Deixára-se enredar pelo Cephíso ;
Desvairada co'os giros da torrente
Cahíra-lhe nas mãos , e em sua gruta
A's violencias de amor cedeo forçada.
¡Tal mãi , tal filho ! tão formoso a lume
Vem o seu , que já nymphas enamóra.
Chama-o Narciso . O Vate , consultado ,
Se o menino encheria idade annosa ,
" Se não se conhecer, » á mãi responde ,
Vå pareceo grão tempo a prophecia :
O successo , a estranheza da loucura ,
E o género da morte , a comprovárão,

Conta hum anno o Cephísio após tres lustros ;


Adolescencia e infancia amostra unidas .
Mancêbos mil , mil bellas o requestão;
140
Mas tal vai de altivez co'a formosura ,
Que nenhum , que nenhuma obtem logral-o.
No monte o víra , os trépidos veados
Lésto andar contra as rêdes acossando ,
E'cho , a Nympha loquaz , à que não póde
Fallar primeiro , nem calar-se ouvindo :
Inda então era corpo " e não , como hoje ,
Simples , aérea voz ; da voz comtudo
Tinha , qual tem , restricta faculdade ,
Só de expressões finaes compondo as suas .
Déra-lh'o Juno em pena ; que , podendo
Apanhar co'o seu Jupiter mil vezes
Outras Nymphas no monte , esta palrando
A entretinha , a dar tempo que fugissem .
Mal que advertio na astúcia , a Deosa irada ,
" Pouco , lhe diz , te servirás da lingua ,
" Com que ousaste enganar-me. " Effeito prompto
A ameaça confirmou. E'cho entretanto ;
Sempre á caça de sons , repete- os logo ,
E impaciente no fim redobra as frases.

Esta pois , desde a hora, em que lh'o as brenhas


Deparárão, tão lindo , e tão fragueiro ,
Namorada the segue a furto os passos :
E , como , se do fogo se avisinha ,
Prompta sulfúrea téda assume o fogo ,
141

Assim , quanto mais proxima o rastêa ,


Mais se inflamma , e se perde. ¡ Oh , que de vezes
Não traçou acercar-se-lhe maviosa ,
Meiga implorar mercê ! i Mas como ? ¡ ai triste !
i Como se o romper fallas lhe he vedado !
Resta-lhe hum bem , só hum , que anciosa espéra,
Escutar , repetir do amado as vózes ,
Junctando á frase alheia o tom do affecto .
Dos sócios seus na caça extraviado
Narciso brada : " ¡ Olá ! ninguein me escuta ? "
" Escuta , lhe responde a amante Nympha .
Elle pasma : em redor estira os olhos ; a
E , não vendo ninguem : » Vem cá , » lhe grita ;
Convite igual ao seu da parte d'ella.
Volta-se , nada vê : » ¡ Porque me foges ? »
Clama ; " ¿ Porque me foges ? » lhe respondem .
Da mútua voz deluso , insiste ainda :
" Junctemo-nos aqui . " Frase mais doce ,
Nem lh'a espéra , nem quer ; delira , e logo ,
" Junctemo- nos aqui , » vozêa , em ancias
De o pôr por obra ; da espessura rompe ,
Vem de braços abertos , anhelando ,
Tão suspirado objecto , alfim colhêl-o .
Elle fóge ; fugindo illude o abraço ,
E » Antes, diz , morrerei , que amor nos una. "
Ella , immovel , co'a vista o vai seguindo ,
142
E , ao que ouvio , só responde , " Amor nos una . »

Corrida do desprèso , entre as florestas


A amavel solitária se homisía ,
Escondendo o rubor entre as ramadas ;
E desde então só vive em grutas êrmas.
Inda comtudo lá lhe está lavrando

O amor , e mais acceso co'a repulsa .


Cuidados veladores a attenúão ;
Mirra-se mais e mais de dia em dia ;
Todo o corpóreo humor se the evapóra ;
Restão-lhe óssos , e voz : a voz , conserva -a ;
Os óssos , diz- se , em pédras se mudárão.
Por isso está nos bosques invisivel ,
Em nenhum monte a vem , ouvem -na em todos ;
De viva , afóra o som , não tem mais nada .

Assim , ja d'esta Nympha , e d'outras muitas ,


Oréades , e Dryades , não menos,
Que de amores virís , zombado havia ,
Mas houve d'essas victimas alguma ,

Que, pondo as mãos, bradou : » Qual amo, ó Deoses,


» Ame ; e os prémios, que dá, seus prémios sejão. ”
A's justas préces annuio Rhamnusia .

Sem limos , toda espléndida , manava


143
Fonte argentea , onde nunca os pegureiros ,
Nunca do monte as cabras repastadas ,
Nem outra qualquer grei , jamais descêrão ;
Ave alguma o cristal lhe não turbára ,
Nem féra , nem caduca arbórea rama .
Com seu frescor emtôrno se lhe alastra

Molle tapête hervoso , e a cingem bósques ,


Do lago contra os sóes perenne escudo.
Da belleza do sítio , e do saudoso
Murmúrio captivado , aqui chegava ,
Da calma , e do caçar oppresso , o jóven.
Deitou-se , e , onde cuidou matar a sêde ,
Outra mais forte achou . Como bebia ,
Vio-se n'agua ; enlevou-se em tantas graças :
Julga corpo , o que he sombra , a sombra adora ;
Immovel , fito , como pário busto ,
Pela pasmada sombra está pasmado :
Debruçado , contempla aquelles ólhos ,
Astros seus ; alvas mãos dignas de Baccho ;
Madeixas , que ás de Apollo em nada invejão ;
Faces imberbes , cóllo ebúrneo , bôca
Linda , estreita , no lírio a côr das rosas :
Admira tudo emfim , que admirão n'elle .
Louco por si , recebe os seus louvores ;
Arde , inflamma ; requesta , he requestado.
¡ Que beijos vãos nas aguas mentirosas !
144
¡ Que abraços dentro n'ellas mallogrados !
N'aquillo , que está vendo , não atina ;
Mas de amor o consume o que está vendo .
O êrro , que lh'os seduz , lhe incita os olhos.
i Néscio ! deixa essa imagem fugitiva ;
Nenhuma parte encerra , o que procuras ;
Sáhe, perderás n'hum ponto o objecto, que amas :
Nada tem de seu proprio , he teu reflexo ;
Comtigo vem , comtigo está , comtigo ,
Se te podesses ir , tambem se iria.
Emvão ; sustento , e somno , esqueceo tudo..
Estirado na relva opáca , e fria
Não se farta de olhar seu falso enlêvo ,
E pelos ólhos seus de amor se fina .

Levantando -se hum pouco , e alçando os braços


Aos bosques do arredor : " ¡ Ai ! disse , ó Bósques
"¿ Houve jamais tão barbaros amores ?
" Vós sabeis de bastantes , vós lhes destes
" N'esta tácita sombra amigo amparo ,

" Vós contaes longos séculos ; ¡ ah ! Bósques !


f
" ¿ ¡ Houve nunca infeliz , que assim morresse !!
"¡ Vêjo, amo; e não encontro, o que amo, e vêjo :
" Tanto , onde entrou paixão , reinaes delírios !
"¡ Por cúmulo de dôr , quem nos aparta ,
" Não he profuso mar , caminhos longos ,
145
" Ou fechada muralha , ou crêspas serras ;
"" Mas pobre fonte apenas ! Elle mesmo ,

" Quer vir, quer dar-se a mim ; surge a beijar-me


" Todas as vezes , que a beijal- o eu desço ;
" Quasi , quasi , que os lábios se nos tocão ;
" Hum nada a amor estorva . Oh ! sahe da fonte ,
" Quemquer que sejas , singular menino ;
" Não zombes d'este ardor mais longo tempo .
"¿ Tu, porque has de esquivar-me ? a idade minha ,
" A minha formosura , o não merecem :

" ¡ Oh que não ! Que até Nymphas me requébrão.


" ¡ Não sei , que esp'rança meiga me está dando ,
" Esse aspecto benigno ! quando os braços
" Te lanço , tu m'os lanças ; ris , se eu rio ;
" Chóro , vejo-te em lagrimas ; teus olhos
" Sempre á frase dos meus fiéis respondem .
E , a crer da linda bôca os movimentos ,
"" Diriges-me expressões , que ouvir não pósso.

‫ זי‬Deoses ! ¡ Que horrivel luz ! Sou elle eu mesmo.



" ¡ Este , o semblante meu ! Por mim me abrazo ,
" E o fogo , em que me abrazo , eu proprio ateio .
" i¿ Que farei ? ¿ supplicar ? ¡ ser supplicado ?
" ¡ Como ! ¡ se , o que desejo , está comigo !
" ¡ Por muito possuir nada possuo !
" ¡ Não poder eu soltar- me de mim mesmo ! ..
fio. 3. j
146
"¡ O' de hum estranho amor desejo estranho !
" ¡ Amar , e querer longe o objecto amado !
" Ja , ja sinto , que a dor me exháure as fôrças ;
" Ja tốco a méta ; em minha aurora expiro.
" Não me custa por mim , que atalho angústias ,
" Quizéra sim mais vida ao bem , que adoro :
" Assim n'huma só alma os dous morremos . "
Diz : e torna em delírio ao seu retrato .

Eis que ferventes lagrimas perturbão


Do lago o espêlho , e em círculos desfeita
A lustrosa visão lhe vai fugindo .
Então elle : " i¡ Onde vais ? detem -te , fica ;
" De amor não fujas , barbaro , consente ,
"" Que , sequer , veja , o que abraçar não pósso ;
"» A' funesta paixão dá pasto ao menos . "

Afflicto de alto abaixo arranca as véstes ,


E fére o peito nú co'as mãos de jaspe :
No peito , assim ferido , hum ténue rôxo
Se accendeo ; tal costuma apresentar-se
Pomo cândido , em parte , em parte rubro :
Taes em cacho immaturo purpurêa
Alvos bagos o sol . Notando n'agua ,
Novamente espelhada , o mesmo damno ,
Não pôde mais ; bem como ao leve fogo
Loura cêra se funde ; e ao sol temp'rado
147

De geósa manhã se esfaz o aljôfar ,


Do terno , occulto incêndio devorado
Narciso se desgasta , se attenúa :
A mixta côr da púrpura e da neve
Ja se esvahio ; sumírão-se com ella
Fôrças , vigor , encanto , o proprio corpo ,
De Echo inda ha pouco enleyo . Esta comtudo ,
Bem que não lhe ha passado a injúria acerba ,
De amor vendo a catástrophe , carpio-a .
Quantas vezes o jóven miserando
Soltára hum ái , com áis lhe respondêra.
Quantas vezes co'as mãos feria os braços ,
Déra iguaes sons de lá : foi de Narciso
A derradeira frase , olhando o lago ,
"¡ Ai , môço amado emvão ! " Foi na floresta
Queixume igual a frase derradeira :
" Adeos » disse o mancêbo , " Adeos »` a Nympha .
Após isto , entre a grâma a lassa fronte
O mísero sumio , cerrando a morte
O'lhos não fartos de gozar seu dôno ,
Que inda o lá fôrão remirar na Styge .
Suas irmãs , as Náias , o chorárão ;
E , cortando as madeixas , lh'as pozérão
Em tributo de dôr : chorárão Drías ;
E Echo seus chóros repetiò chorando .
Ja fachos , pira , e féretro dispunhão ;
j *
148
Quando , em logar do corpo , achão no sítio
Huma flor , cróceo o ôlho , as folhas alvas .

Grão fama déra ao Vate este successo

Pelos póvos da Acháia : o Echiónio , o ímpio ,


De Numes zombador , Penthêo só ousa
Rir d'elle , e dos prophéticos annúncios ;
E da escura cegueira o mal lhe exprobra.
Meneando a cabeça encanecida ,
" Quão feliz eras tu , responde o Vélho ,
" Se da luz , como eu fui , privado fosses ,
" Para não veres Bácchicos Mistérios .
" Porque hum dia virá , que não vem longe ,
" Em que Líbero , o filho de Seméle ,
" Tem de entrar novo Nume em teus dominios .
" E , se de honral-o em templos desdenhares ,
" Dilacerado , è esparso , has de co'o sangue
" Enxovalhar os troncos d'esses bosques ,
" E a que te déra o ser 9 e as irmãs d'ella .
‫ ן¡ יי‬E esse dia ha de vir ! pois sei , que ao Nume
"
» Desdenbarás dar honra. Então , mas tarde ,

» Te queixarás , que o cégo ao longe via . "

O filho de Echiôn o atalha , o expulsa ;


Mas sahío certo o annúncio. ¡ Eis apparece
O Deos Baccho ! Eis os campos se alvorótão
149
Com festivaes reboantes alaridas .

De toda a parte o povo accorre em chusmas :


Homens , dônas , donzellas , vulgo , nobres ,
Tudo aflue aos ignótos sacrifícios .
ii Anguígenas Heróes , Mavórcia Gente ,
" Que insânia , que furor ?! " Penthêo vozêa :
" i i Tanto a ensombrar -vos o juizo valem
" Dous côncavos metaes entrebatidos
" Com restrugente estrépito , humas curvas ,
" Córneas flautas , huns mágicos embustes ,
" Que , aos que nem ja terrífica trombêta ,
» Nem férreos esquadrões amedrontárão ,
" Femíneas vozes , córos desenvóltos ,
» E’bria fúria , e vãos tympanos os venção ?!
" ¡ ¡Não cabe, que eu me espante de assim ver- vos,
" A vós , Anciãos , que arando tantos mares ,
" Cá viestes fundar em nova Tyro

" Com tanto esforço os prófugos Penátes ?!


" ¡ ¡ Ja soffreis , que sem armas vos conquistem ?!
" ¿ ¡ Vós , fortes , vós , como eu , na flôr dos annos,
» Mancebos , a quem lança , emvez de thyrsos ,
"" Capacête convinha , em vez de c'rôas ,

" Não cabe , que de vós com dôr me espante ?!


» Lembre-vos , eu vos péço , a vossa origem .
" D'esse dragão , que , só , deo morte a tantos ,
" Os brios imitai : vêde-o , que expira
150
» Defendendo o seu lago , e escura fonte ;
» Vencei vós defendendo a avíta glória :
Elle , heróes derribou ; vencei covardes ;
" Salvai-nos de desdouro a pátria fama.
" Se era fado , que Thebas não durasse ,
" Melhor de heróes , e aríetes cahíra
" Derrocada ; assolasse-a o ferro , o fogo ;

" Desgraçados , sem culpa , aos 'males nossos


" Nós dariamos lagrimas sem pêjo ,
Sorte de queixas sim, de véos não digna.
" ¿ ¡Eir-se-ha Thebas ás mãos de inerme infante,
Que, ás armas , aos corséis , á guerra estranho

" Só se compraz com púrpuras , com véstes


" Aurimescladas, co'a cheirosa côma
" Vertendo mirrha , e com grinaldas futeis ?!
" Vou ja , ja , vós sómente abandonai-m'o ,
" Forçal-o a confessar , por que artefícios
" Assumio pai divino , e sacras honras.
" Ja Acrísio d'este Nume aventureiro
" Escarneceo , fechou-lhe as portas de Argos ,
99 і і E eu , e Thebas , ante elle tremeremos ?!
" Guardas , correi , voai , trazei -m'o prêso . "

Diz : sem fructo, Athamante , e Cadmo, e todos


O arguem de ímpio, em no atalhar se empenhão ;
Mais se enfuréce , quanto mais o avisão ;
151
Quanto mais lh'as retêm , mais sólta as fúrias .
Assim , menos fogoso , emquanto livre ,
Rio caudal , se obstáculos o estorvão ,
Rompe espumoso , e fervido retroa.

Tintos no proprio sangue os guardas volvem ,


E a Penthêo , que por Baccho lhes pergunta ,
Que o não vírão , respondem : " Mas comtudo
" Este apanhámos nós , " ajunctão elles ,
» Sectário , e servidor das órgias festas. "
E lh'o entregão , co'as mãos atraz ligadas ,
Thyrreno de nação , de ha muito adscripto
Aos cultos bacchanaes : ólhos de fogo
Lhe vibra ElRei , e , posto lhe dê ancias
Retardar o supplício , " O' destinado
» A ser com tua morte exemplo aos outros ; »
Diz elle , " eia , declara-nos teu nome ,
» Teus pais , a tua patria , e porque segues
» Essas superstições , e ritos novos. "

Baldo a mêdos o Prêso lhe responde :


" Acétes sou ; Méónia , a minha patria ;
" Meus pais , da humilde plebe : nem lavouras ,
» Nem armento , ou lanígero rebanho
" Meu pai testou ; tão pobrè , como o filho ,
99 Huma cana , huns anzoes , e a paciencia
152
" Erão todo o seu bem ; mais nada tinha.
" Na mesma occupação me foi criando :
" Filho , aqui tens , dizia , a tua herança ;
» E he , quanto o ceo me deo . - Por sua morte
" Nada cá me deixou , afóra as aguas ;

» He , quanto pósso intitular paterno .


" Por não levar pregado a vida inteira
" Sobre os mesmos penhascos , dei - me todo
" A aprender bem a menear hum leme ,
" Distinguir astros , cabra olénia , signo
» Portachuva , Ursas , Hyades , Taygéte ,
" Os varios rumos , d'onde os ventos cursão ,
" Os portos bons, e tudo mais , que he util ,
" Que hum bom piloto nas derrótas saiba .

" Indo huma vez a Délos , costeamos


" Naxos ; á dextra remo , alcanço o pôrto ,
" E salto á praya . Ao cabo d'essa noute ,
» Vindo a arraiada a apavonar as nuvens 9
" Alevanto-me ; aos náutas determino ,
" Que se renove a aguada , e lhes aponto
" Caminho , que os depara a fontes frescas .
" Subo-me n'hum outeiro , esploro os ventos
" Pelo caríz do ceo ; apupo aos homens ,
» Que fação vólta ; e torno-me ao navio ;
" Préstes - me respondeo primeiro Opheltes ,
153
" Que ja vinha na praya , encaminhando
Pela dextra hum menino , em tanto extremo
» De donoso , e gentil , que mais dá visos
» De tenra virgenzinha : hum descampado
» Lh'o déra ás mãos , e boa prêsa o julga .
" O innocentinho vem como tomado
» De vinho , e somno ; as pernas se lhe trocão ,
" Mal o póde seguir. Fiz meu reparo
» N'aquelle trajo , e andar , n'aquelle rôsto !
" E disse aos companheiros :: -Meus Amigos ,
" Qual Deos he, não sei eu ; que he Deos, he certo.
" Qualquer que sejas , teu favor nos valha ,
" Sê-nos propício nos trabalhos nossos,
» Concede a graça tua a todos estes : -
99 - Não cances a pedir-lhe a nossa graça ;
" Dictys acode ; era esse o marinheiro

» Mais léstes em trepar do mastro ao cume,


» E escorregar de lá pegado á corda ;
99 Lybis , o mesmo diz ; Melantho, o mesmo,
" Hum ruivo , que da prôa era vigía ;
» Alcimedonte , o mesmo ; o que esforçava ,
" E regía com brados os remeiros ,
" Epopêo , igualmente ; e os mais com elles :
" Que assim andavão sôfregos , e cégos
" Co'o lanço de tão rara veniága.
" Quem a todos se oppõe , sou eu , lhes disse ;
154
" Não consinto , que tão divina carga
» Viole a embarcação : nem creio , que haja ,
" Quem aqui me contraste a autoridade. ---
" Disse e de feito ao portaló me atranco.
» Lycabas , da companha o mais ardido ,
» Homem , que , expulso de cidade thusca ,
» Por homicídio atroz ía a degrêdo ,
" Tal se enraivou , que as fáuces co'o robusto
» Punho me rompe , e ao mar me atiraria ,
" Se , inda que tonto , me não pego a hum cabo.
" Toda a caterva ré comprova o feito.

" Baccho então , pois o era , figurando


" Accordar ao motim , ja descerrado
i
" Dos vapores do vinho, -¿¡O que he, que eu vejo ?!
" ¡Estes gritos , que são !? ¿ Vós , Marinheiros ,
" Não me direis , quem me aqui trouxe ? ou como ?
-
" E onde quereis levar-me ? -Oh ! não te assustes →→
" Diz da prôa o vigia ; -- he declarar-nos ,

" Onde pretendes ir , que lá te pomos.-


- - A Naxos , torna Baccho , a Naxos vamos ?
" De lá sou , lá prometto agasalhar- vos.—

"Pelo Mar , e por todos os mais Numes ,


" Os pérfidos, jurando-lh'o , me ordenão,
" Que ao pintado baixél desfira os pannos :
" Naxos ficava á dextra ; e , como á dextra
155
" Eu mareasse o rumo , - ii Tu que fazes ?!
" Grita Opheltes , que insânia te domina ?! -
" Todo o homem teme o p'rigo ; e eu via-os todos
" Contra mim : a mór parte me acenava ,
" Que revirasse à esquerda ; outros no ouvido
" M'o vinhão segredar. Confuso pasmo ,
" E digo : -Quem quizér , que tome o leme.-
" E por mão lhes larguei o mando , e o crime :
" Todos susurrão , todos me invectivão :
" Ethalião d'entre elles , -¡ Imaginas
" Encerrada em ti só toda a sciencia ?
" Diz , sobe ao meu logar , e singra ávante
» Deixada Naxos pela ré. O Nume ,
" Zombando , e , como quem por fim chegára
" A cahir na manobra , poz - se á pôpa ,
" Debruçado sobre a agua : e em voz de chôro
" Dizia : R Não são essas , marinheiros ,

" As prayas , que eu pedi ; nem vosso ajus .


" Assim foi : ¡ ¡ que fiz eu para castigo ?!
"¡¡ Que glória póde haver em me enganarem ,
" Tantos a mim, huns homens a hum menino ?! -
" Eu , de o ver , eu , de ouvil-o , consternado ,
" Me debulhava em lagrimas : os impios
" Rião do nosso chôro , e sempre avante
" De vóga feita as vagas retalhavão .
" Rei , na tua presença agora o juro
156
" Por este mesmo Deos , nem outro pósso
" Mais presente invocar , juro , te digo,
" Ser tão verdade , o que has de ouvir-me , quanto
" Excede toda a fé : pára o navio ,
" Qual no estaleiro , immovel entre as ondas .
" Os remeiros attónitos açoutão ,
" Vamente , o pégo : as vélas se desfraldão ,
» Todas em cheio : o vento , que as enfuna ,
" Não mostra mais poder , que os remos lassos .
" Por elles trepão heras serpeando ,
" Que os tolhem ; ja se alastrão , ja verdêjão
" Nas velas , ja co'o pêso dos corymbos
" As derribão . De cachos coroado ,
" O Deos agita ufano , hástea enramada
"De retrémulos pâmpanos , em meio
" De equipagem fantástica de tigres ,
" Linces sanhudos , mosqueadas onças .
» Os náutas , ou de mêdo , ou por loucura ,
» Tentão fugir desordenadamente .
» Médon entrou de súbito espalmado
" A ladear-se de negras barbatanas ,
" A requebrar a espinha : ¡ Homem ! The grita
" Lycabas , ¡ ¡ em que monstro te devolves ?! -
» E , emquanto grita , a bôca se lhe rasga ,
" O nariz se lhe achata , a dura pelle
" De embréchadas escamas se lhe encostra.
157
" Lida desentalar -se d'entre huns remos
, Lybis , acóde ás mãos , as mãos lhe mínguão ,
„ Nem ja mãos tem , tem barbatanas . Outro ,
» Vai marinhar pela torcida enxárcia
" Não vê braços , o tronco mutilado
" Retorce , pula , atira-se ao profundo ,
" E lá da cáuda a meia lua agita .
" Saltão de toda a parte huns após outros ;
" Enchem borrifos o ar , escuma o pégo ;
" Vão de mergulho agora , agora assomão ,
" A' maneira de côro enlação danças ,
" Protervos se menêão , se rebolcão "
" Rojão sorvido mar das largas ventas .

" De vinte , tantos vinhamos no lenho ,


» Restava eu só , tão trémulo de mêdo ,
" Tão frio de terror , que apenas pôde
" Com vozes taes o Nume serenar- me :
99- Despe o receio , e para Naxos vóga. -

» Lá fomos ; lá lhe erijo , e accendo altares :


" Professei o seu culto ; e inda hoje o sirvo. "

Aqui Penthêo ; " Assás te hemos ouvido :


"¡ Traçavas com rodeios estirados
" Dar-nos mate ao furor ? Guardas levai-o

" D'ante os meus ólhos súbito , que o metão


158
" A crus tormentos ; n'elles finde , estale
" A alma raivando para a stygia noute. "
Eis em prisão segura o Thusco Acétes .
Mas emquanto o supplício se apparelha ,
Se afia o ferro , se exaspéra o fogo ,
Corre fama , que o cárcere se abríra
Sem braço humano ; e que os grilhões do Prêso
De seus pulsos , por si , se deslisárão .

Inda teima o Tyrano , e ja não manda ,


Porêm corre em pessoa , onde as Bacchantes ,
No Cytheron, ás festas deputado ,
Cantares , e celêuma aos ceos erguião.
Qual da tuba ao rebate audaz ginête
Anhella relinchando o márcio jogo :
Das longas , ululadas vozerías
Penthêo ferido , em cólera recresce.

Cêrca de meia encósta ha no Cytheron


Huma abra escalvada entre arvorêdos ,

Vasto pláino , onde o olhar se espraya á larga ;


Alli era chegado ; e já co'a vista
Devassava profano as sacras pompas ,
Quando primeira o nota , arde primeira
Em céga fúria , e co'o primeiro thyrso
Lhe faz tiro , lhe acerta , a propria , aquella ,
159
Que o sêr lhe déra, a mãi : " ¡ Sus, sus ! proclama,
"¡ A elle ! ¡ a elle ! ao javalí mais bruto,
" Que ha talado a campanha ! irmãs , sêde ora
" Ambas comigo : e o prostrarei , que a tanto
" Seu ruim Fado em minhas mãos o ha posto. "
Eis que todo o tropel rue tumultuando :
Mil contra hum só frenéticas se atirão ;
Rugem , cércão-no , acóção-no , ja todo ,
Todo mêdos , das roncas ja descido
A confissões de crime , aos áis , e a rógos :
" Irmã de minha mãi , vale-me , Autónoe ;
» Môvão-te os mânes de Actéôn , teu filho. "
¿ii¡ Mas, que he ora Actéôn ?! entende-o ella ?!
Por só resposta á súpplica , lhe tronca
De hum gólpe a dextra , que demanda amparo ;
Ino , a esquerda lhe leva : o semventura
Quer á mãi dirigir na angústia os braços ,
E ja braços não tem , que á mãi dirija.
» Mãi , diz , ó mãi , contempla ! ” Agave ulula
A tal vista ; o pescoço lhe sacóde ,
Faz-lhe esvoaçar a grenha , até, que á fôrça
Arrancada a cabeça , ovante a arvóra
Na ensanguentada mão : " ¡ Victor triunfo!
" Sócias , da grão façanha a glória he minha ! »
Nunca mais presto de arvore no outôno
Mal presas folhas n'hum tufão voárão ,
160
Que os membros do infeliz em mãos tão féras.

Do exemplo escarmentadas as Thebanas


Os novos ritos sem demora abração ,
Erguem aras a Baccho , e dão- lhe incenso.

FIM

DO LIVRO TERCEIRO.

13JY63
AS.

METAMORPHOSES.

LIVRO QUARTO .
BRITIS

MUSTURL
163

ARGUMENTO .

Abraçado está das Thebanas o culto de Baccho.


Sós as filhas de Mineo o refusão, e de descrentes, que
são, em o novo Deos, fechadas em casa profanão
com trabalho o dia , que o Pontífice, por público
pregão, mandára guardar para as suas festas . Para
matar o tempo , e tornar o lavor menos dessabo-
roso, entre o fiar e tecer se vão humas a outras, e
a revézes , contando várias histórias . Pagina 171. '
-A primeira aponta as fábulas , e transformações ,
de Dercéte em peixe ; de Semíramis, filha de Der- `
céte, em pomba ; de Náis em peixe. Pag. 174.-
Mas prefere historiar a trágica desaventura de Py-
ramo e Thisbe . Pag. 174. - Amores , e cruento
fim d'aquelles dous Babilónios , com cujo sangue
as amóras , até alli brancas , se tingírão de preto .
Pag. 174. - Leucónoe conta os galanteios do Sol ,
começando pelo adultério de Marte e Venus . O
Sol , ou Apollo , que percebe este crime , o dela-
ta a Vulcano ; o qual , apanhando n'huma rêde a
espôsa infiel com o amante abraçada, os expõe aos
escárneos dos mais Deoses . Pag. 182. Venus ,
para se vingar de Apollo , lhe inspira vehementis-`
k *
164

sima paixão para com Leucóthoe , filha de Eury-


nome , e O'rchamo , rei da Arábia . Apollo entra

na câmara da princeza sob a imagem da mãi ;


manda saír as áias , descobre-se no seu natural , e
d'ella abusa. Clycie , que ja tambem de Apollo
fora conversada , abrazada em ciumes a denuncía
a O'rchamo , que de assomado , que he , enterra a
filha viva : do seu sepulchro nasce, mercê de Apol-.
lo , a arvore do incenso . Despeitoso o Deos não
faz mais caso de Clycie , a qual pezarosa 2 e tão.

sentida , que fica , perde o gôsto ao viver , e pos-


ta ao desamparo se converte em planta ; cuja flor
segue ainda o giro do seu astro de levante a poen-
te. Pag. 183. - Alcíthoe , por derradeiro , indica
as conversões de Daphnis em seixo ; de Scython
em homem , e mulher ; de Celmo em diamante ;
da chuva em Curétas ; de Cróco , e Smílace em
flores . Pag. 186. - E desfecha na metamorphose
da Náiade Sálmace , e do jóven Hermaphrodíto
em hum corpo unico , e ambisexuo ; e da sua fon-
te, que o mesmo faz, por secreta virtude , aos que
n'ella se banhão. Pag. 187. - Indo por diante o
profano, e acintoso trabalho das filhas de Mineo ,
cahe na casa, e n'ellas , a mais apparatosa vingan-
ça de Baccho ; e lá se yão transfiguradas em mor-
cêgos. Pag. 194. CHEAP Esta derradeira mostra , e do-
165
cumento da veracidade , e posses do novo Deos
cabalmente lhe arraigão a religião nos moradores
da cidade. Ino, irmã de Semele, toda presumpço-
sa com a divindade do Sobrinho , a quem por suas
mãos pensára recém nascido, he a principal pregoei-
ra das suas maravilhas. He esta Inò a unica das
princezas , filhas de Cadmo , que ainda não teve
desgraça alguma pessoal ; porque, Seméle fôra ful-
minada ; Autónoe perdèra Acteon ; e Agáve matá-
ra o filho Penthêo. Juno , que , pelas rasões ja sa-
bidas , não descança , emquanto n'esta casa hou-
vér alguem feliz , determina despenhar Ino do pín-
caro das felicidades em abismos de desventura ; bai-
xa ao Inferno, declara ás Furias, como ha dispos
to perder toda a familia de Cadmo , e implora o
seu ministério para fazer , que Athamante, espôso
de Ino, se arroje ao mais negro de todos os crimes.
Tisíphone , por obedecêl-a , vai-se ao palacio de
Athamante, no coração lhe im bébe huma serpen-
te, outra no de Ino ; e os abebéra de seus influxos.

O principe allucinado perségue a espôsa , e os fi-


lhos , cuidando serem leões : arranca dos braços da
mãi, e esmaga, o menino Learcho. Ino foge em
delírio bacchico, levando ao cóllo o outro seu filho,
Melicérto , com quem de bum rochêdo se precipi-
ta no mar. Venus, sógra de Cadmo , consternada
166
com este caso de sua néta Ino , e de Melicérto ,
seu bisnéto , alcança de Neptuno , que a ambos os
receba por Deidades Marinhas ; a mãi , com o no-
me de Leucóthea , e o filho , de Palemo. As The-
banas , que seguírão Ino até o rochêdo , por entre
as fúrias de suas lamentações, accusão Juno de bar-
baría : Juno as converte , humas em aves , outras
em estátuas de pedra. Pag . 195. — Cadmo , des-
gostoso de huma cidade, onde o Destino nunca se
fartou de o perseguir , desampara Thebas , e che-
ga com sua espôsa Hermíone á Illyria ; onde ,
cumprindo-se a prophecia , que lhe havia sido fei-
ta pela voz desconhecida depois da morte do dra-
gão de Marte , se demuda em dragão , assim co-
mo sua mulher . Pag . 203. Cadmo' , e Hermío-
ne, mas que hajão perdido o ser humano , têm o
grande consolo de ver seu néto Baccho conquis-
tador da India, e adorado pela Achaia . Ainda ba
ahi comtudo hum incrédulo, que o menoscaba, ten-
do aliás com elle origem commum : este he Acrí-
sio , Rei de Argos, néto de Jupiter, de quem Bac-
cho he filho por outra linha de descendencia. Nem
he muito , diz o Poeta , (para tecer a transição)
que Acrísio contestasse a Baccho a geração divi-
na , quando a denegava igualmente a Persêu , fi-
lho de sua filha Dánae, a quem Jupiter, sob appa-
167
rencia de chuva de ouro , seduzíra : entretanto che-
ga a se arrepender de ter ultrajado a Baccho ; as-
sim como , de não haver reconhecido a seu néto ,
quando vê o primeiro recebido nos Ceos , o segun-
do viajando maravilhosamente pelos ares. Aqui dá
princípio a longa, e prodigiosa história de Persêu .
Persêu vôa com pés alados , levando na mão a ca-
beça, que decepou á Górgona Medusa : o sangue,
que d'esta cabeça gotêja sobre a Líbya , produz
as serpentes, que por lá abundão. Pag. 206.- Ao
cerrar da noute · desce Persêu ao reino de Atlan-
te na Hesperia. Atlante , filho de Jápeto , e Gi-
gante da mais descommunal estatura , recusa ao
heróe o agasalho, que este lhe pede para huma nou-
te , porque hum Oráculo lhe ha predicto , que os
fructos de ouro do seu vergél lhe têm de ser rou-
bados por hum filho de Jupiter. Persêu, mostran-
do-lhe a cabeça de Medusa , o converte no monte,
´que , ainda hoje , com o mesmo nome de Atlante,
sustenta os Ceos . Pag. 207. - Na madrugada se-
guinte continuando o Heróe a sua viagem , avista
nas costas da Ethiópia, prêsa a hum rochêdo, pa-
ra ser devorada de hum monstro marinho, a Prin-
.
ceza Andrómeda, filha de Cephêo e Cassíope ; sup-
plício , a que esta Princeza está condemnada por
hum Oráculo , para aplacar as Nereidas irritadas
168

contra sua mãi , que se lhes confrontára em for


mosura. Persêu a obtem dos Pais para mulher ,
obrigando-se a livral-a do monstro : combate-o ,
mata-o. E, tendo após isto posto a cabeça de Me ,
dusa sobre huma cama de plantas marinhas, estas
se petrificão , vindo a ser a origem dos coraes .
Pag. 209. Feitos sacrificios em acção de graças
pela victória , parte com sua Esposa Andrómeda
para os Paços de El-Rei , seu sôgro , onde com
toda a pompa se celebrão as bôdas , com assisten-
cia da Côrte e Grandes. Entre os cópos , ao cabo
do festim , Perseu, perguntando-lhe hum dos con-
vivas , como conseguíra degolar a Medusa , conta
a astúcia, com que tendo empalmado o unico ôlho,
por onde miravão alternativamente as duas gémeas,
filhas de Phórco, e guardas do encêrro , em que
Medusa , sua irmã , vivia , podéra , a seu salvo ,
entrar n'aquelle espantoso logar , aoude déra com
ella adormecida, e adormecidas igualmente as ser-
pentes , que tinha por cabello ; que então lhe cor-
tára o pescoço , procedendo do jôrro do sangue o
cavallo Pégaso e Crisáuro . Pag. 215. - Interrompi-
do aqui por hun dos convidados , curioso de saber a
rasão, porque ella tinha serpentes por cabellos, o he-
róe o satisfaz logo com dizer-lhe , que fôra aquelle
hum prodigio de Minerva, para se desaffrontar da
169
profanação, que ella, e Neptuno havião feito ao seu
Templo ; e que o mesmo caso explica o ornato
serpentino , de que Pallas traz arrodellado o pei-
to na guerrą. Pag. 217.

DESCRIPÇÕES PRINCIPAES.

Paginas.
Festas com seu hymno a Baccho.... 172
Desesperação de Thisbe sobre o cadáver de
Pyramo . ... 180
Clycie quitada de Apollo, e deixando- se finar
ao desamparo .. .. 185
Lago de Sálmace... 188

A Nympha Sálmace, sua belleza, seu viver.. 188


Hermaphrodito banhando-se no Lago de Sál-
mace... 192
Inferno... 196
Tisíphone , sua comitiva , e seus maleficios
no Palacio de Athamante..... ... 198
Despenhadeiro á borda do mar. 201
Andrómeda presa ao rochêdo , para ser tra-
gada do monstro marinho ..... ... 210
Combate de Perseu com o monstro marinho ,
e morte d'este..... • 213
Festa de noivado no Palacio de Cephêo..... 215 .
HETAMORPHOGES .

LIVRO IV.

as inda Alcíthoe , de Minêo progénie ,


M Com temerário entôno impugna as órgyas,
Provir Baccho de Jove , o toma a riso ;
172
E nas irmãs tem sócias da impiedade .

Mandára deitar bando o Sacerdote ,


Que senhoras , e servas , feriando
Lavores seus , ás festas concorressem ,
Envôlto o peito em nébrides felpudas ,
Desennastrada a côma , engrinaldadas
De ramas , e nas mãos folhudos thyrsos ;
Vaticinando cólera , e vinganças
Do Nume offèso , se diverso obrassem.
De toda a parte as dônas , e as donzellas
Se trajão , se apressurão : quêdos ficão
Tear, cêsto , e tarefas começadas,
Entre nuvens de incenso altêão hymnos ,
Em que ao Deos com mil títulos ufanão :
Brómio , Lyêo , Ignígeno , Bimadre ,
Binascido , Nysêo , Thyóneo intonso ,
Lenêo , cultor dos folgasões licores ,
Padre Elelêo , Nyctélio , Evan , Iáccho ,
E os mais nomes
, que , ó Líbero , costumão
Dar- te profusamente os Gregos Póvos .
Sim , tu gozas perenne mocidade ;
Tu vens sempre menino ; tu resplendes
Lá nos ceos formosissimo ; hes na face
Virgem mui bella em destoucando as pontas.
Tu , vencedor pelas Nações da Aurora ,
173
Penetraste até onde o extremo Ganges
Marca a fronteira aos descorados Indos .
Tu , pavor de sacrílegos , immolas
Penthêos , e bipenníferos Lycurgos ;
Tu , submerges no mar Tyrrhênos ímpios :
Tu , domador de indómitas bravezas ,
Levas-te em carro de vistosos lynces ,
Dóceis ao tóque das bordadas rédeas.
As Bacchantes , e os Sátyros te seguem ;
Segue-te o velho bêbado , aos balouços
No derreado asninho , a abordoar- se
Na cana , arrimo incerto aos membros tontos.
Por onde quer que vas , lá se alevanta
Grita de môços , grita de mulheres ,
Palmadas em troantes atambores ;
Tintinão sinos ; longas flautas silvão.
Brando , e applacado assistas , te conjura
O côro das Isménides , que ás festas ,
Em Thebas publicadas , concorrêrão.
Sós , dentro em casa , de Minêo as filhas
Profanão co'o trabalho o sacro dia :

Huma carpêa lans , outra no fuso


Vai rodopiando o estâme ; estoutra tece ;
E as servas com tarefas affervórão.

Huma d'entre as irmas , puxando o fio ,


174
Disse ás mais : " Nós agora , emquanto as outras
" Se andão por lá , detidas em chyméras ,
» Nós , a quem Pallas , melhor Deosa , occupa ,
" Fallemos , que o fallar encurta as horas ,
" E ao longo trabalhar dá certo alívio .
" Deve ir correndo a róda , e cada huma ,
" Chegando a sua vez , contar seu conto . "
Apraz : mandão-lhe as mais , que principíe .
Ella , que muitas sabe , entra em consultas , t
Sobre que história narre : ora lhe acóde
A tua , ó Babilónica Dercéte ,
De quem hão por mui certo os Palestínos ,
Que os lagos moras convertida em peixe :
Ora lhe lembra de Dercéte a filha ,
Que ao fim da vida , em pomba transformada
Foi habitar nas branqueadas torres :
Vem -lhe á memoria Náis , aquella Nympha ,
Que demudava , por conjúros , e hervas ,
Os corpos juvenís em peixes mudos ;
Emquanto sorte igual não teve em prémio :
Tambem lhe occorre essa arvore , que o fructo
Deo branco , e preto o dá , tingida em sangue ;
Esta , por não vulgar , mais a contenta.
Assim pois começou, fiando sempre. >>

» Pyramo , singular entre os mancêbos ,


175
" E Thisbe , superior em formosura
"A todas as donzellas do Oriente .
Tinhão contíguas as moradas suas ,
" Lá , onde he fama , que de ingentes muros
" Semíramis cingio alta Cidade.
" A amor a visinhança abrio caminho ;
" N'elles foi com a idade amor crescendo ;
" E unir-se em dôce nó votárão ambos ;
" O'que injustos os pais não permittírão.
» Em vivo , igual desejo os dous ardendo ,
" Que isto os pais evitar-lhes não poderão ,
" Sem confidente algum , só por acênos ,
" Por signaes , se entendião , se affagavão :
" Quando amor se recata , he mais activo.
" Parede , que os dous lares dividia ,
"9 Rasgada estava de huma ténue fenda
"Desde o tempo , em que forão fabricados :
" Ninguem tinha notado este defeito ;
" ¿ Mas que não sente amor , que não descobre !?
" Vós , Amantes fieis , vós o notastes ;
" E d'elle se valeo sagaz ternura,
» Sohião por alli passar sem mêdo
" Brandas finezas em murmúrio brando :
" De huma parte o Mancebo , e Thisbe de outra,
"Prestando , unicamente , e recebendo
" Seu hálito amoroso , assim carpião :
176
" Invejosa parede , a dous amantes
» Porque, porque te oppões ? ¡ Ah ! que importava,
" Que perfeita união nos consentisses !
" ¡ Ou , se isto he muito , ao menos franqueasses
" Aos ósculos de amor logar bastante !
" Mas. , não somos ingratos , confessamos ,
" Que os nossos corações a ti só devem
» Doce conversação , que os desafoga. » →→→

" Separados , assim , e emvão , dizião.


" Dando hum saudoso adeos , ja quasi á noute,
" Ao partir , cada qual suave beijo
" Na parede insensivel empregava ,
" Nem que o terno penhor chegar podesse ,
" Aonde o dirigia o pensamento .
» Hum dia , quando , rôto o véo nocturno ,
"Tinha ante os lumes da serena Aurora
" Desmaiado nos Ceos a luz dos astros , 臭
" E Phebo com seu raio ía seccando
"Sobre as hervas subtís o frio orvalho ,
"Ao logar do costume os dous volverão.
99 Depois de mutuamente se queixarem

" Da pesada oppressão , que os constrangia ,


» Com mais cautella ainda , em tom mais baixo
" Concertão entre si , que , em vindo a noute ,
» Havião de illudir os pais , e os sérvos,
177
" De seus lares fugindo , e da cidade ;
" Que , por não se perderem , vagueando
" Pelo campo espaçoso , ao pé da antiga
" Sepultura de Nino ambos parassem
" Postos á sombra de árvore frondosa :
" Esta árvore , que alli ao ar se erguia ,
‫ وو‬Carregada de fructos côr de neve ,
" Então da côr da neve até maduros ,
" Era a grata amoreira ; amêna fonte
„ Fervendo juncto d'ella o chão regava .
" Quadrou o ajuste : e , nas cerúleas ondas
" Cahindo tardo o sol para os amantes ,
„ E , d'onde o sol cahio , surgindo a noute ,
" Achada occasião , por entre as sombras
" Thisbe astuta das portas volve a chave ,
„ Engana os seus , e sahe . Cobrindo o rôsto ,
" Caminha para o túmuló de Nino :
„ Chega , e debaixo da árvore se assenta :
" Dava amor ousadia á linda môça.´
" Eis que feroz leôa , ensanguentada
" De recente matança a boca enorme ,
" Assoma, e vem depôr na fonte a sêde :
" Porque o pleno luar cobria o campo ,
" A vê , ao longe , a babilónia Thisbe ;
» E com tímidos pés em gruta umbrosa
" Vai sumir-se correndo , e palpitando ;
Liv . 4. เ
178
" E na carreira o véo lhe cabe por terra.
99 Depois que o tôrvo bruto a sède ardente

" Nas aguas apagou , tornando aos bosques ,


" O sôlto véo sem Thisbe acaso encontra ,
" E no sanguíneo dente o despedaça .
» Pyramo , que do lar sahio mais tarde ,
" Que vê no erguido pó signal de féra ,
" E de féra no chão pégádas nota ,
„ Descórando , estreméce , e , tinto em sangue ,.
99 Acha o cahido véo : -- ¡ N'huma só noute ,
» Diz elle , dous amantes se perdêrão !
" Perdeo-se a bella , a triste , a desgraçada ,
" Que de longa existencia era tão digna !
" Eu tive toda a culpa ; eu , miseranda ,
" Eu fui , quem te matou ; fui , quem te disse ,
" Que , de noute , que , só , te aventurasses
" A tão êrmo logar , tão pavoroso ;
" E , para te acodir , não vim primeiro.
" Lacerai-me este corpo abominavel ,
" Devorai-me estas barbaras entranhas ,
" O'leões , que jazeis por essas cóvas .
» Mas chamar pela morte he só dos fracos. ---

"" Ja da terra levanta o véo de Thisbe ,


" E , com elle nas mãos , demanda as sombras
» Da amoreira , logar do terno ajuste.
179

" Cobrindo-o lá de lagrimas , e beijos ,


" O meu sangue , The diz , tambem te régue ;
" Recebe , ó triste véo , tambem meu sangue.—
" E , súbito despindo o ferro agudo ,
" Que ao lado lhe pendia , em si o embébe :
" Da ferida mortal o extrahe , o arranca ,
"E de cósias no chão depois baquêa.
" Pelos arcs com ímpeto repuxa
" O sangue em purpurantes espadànas ;
„ Tal de hum pleno aqueducto o plúmbeo cano ,
" Rôto do tempo , contra o ceo dardėja
"De aguas sonóras remessada lança.
" Da ramosa amoreira os alvos fructos ,
" Pela rubra corrente rociados ,
" Em triste , negra còr a antiga mudão ;
" E do sangue a raiz humedecida
" Logo ás amoras purpurèa o sumɔ.

" Inda não livre do primeiro susto ,


" Volta a gentil donzella ao fatal sítio ,
‫ وو‬Porque a não ache em falta o caro amante .
" Co'os ólhos , e co'o ânimo o procura ,
" Desejosa de expôr-lhe o grave risco ,
" De que pode escapar-se : reconhece
" O pôsto , e n'elle a árvore : com tudo....
»
" ¡ Mudada no exterior a estranha agora !
180

" Duvída , se he a mesma . Emquanto hesita ,


" Vê torcer-se , arquejar na terra hum corpo ,
" Na terra , que de sangue está manchada ;
" Recúa de terror : pállido o rôsto ,
" Como estátua de buxo , absorta , muda ,
"" Arripia-se , e fréme á similhança

" Do rouco mar , se as virações o encréspão .


" Mas depois , que , attentando , emfim conhece
" A porção da sua alma , os seus amores ,
" Rompe em chóros , em áis ; maltrata o peito ,
"O peito encantador , que o não merece ;
" Arranca delirante as louras tranças :
" Entre os braços aperta o corpo amado ,
" Vérte amargosas lagrimas no gólpe ,
" Correndo misturados sangue e pranto :
"Piedosos beijos dá no rosto frio ;
" Clama : O Pyramo ! ¡ ó Ceos ! ¡ ¡ que duro caso
„ Te arrebata de mim !! ¡ Pyramo , escuta ,
" Responde-me , querido ; a tua amadá ,

" A tua fiel Thisbe he , quem te chama ! -


" O.semblante abatido ergue da terra ,
" Ouvindo proferir da amada o nome ,
" O malfadado môço , eis abre os ólhos ,
" Ja do pêso da morte enfraquecidos ,
" Valve-os a Thisbe , e para sempre os cerra.
" Vè a infeliz seu véo : do amante ao lado
181
" Vè a ebúrnea bainha estar sem ferro :
- i Tua mão , teu amor te hão dado a morte !

" Eu tambem tenho mãos , exclama a triste ,


" Eu tambem tenho amor capaz de extremos ,
" Que esforço me dará para seguir-te :
" Sim , eu te seguirei , serei chamada
" Da tua desventura a causa , a sócia.
99 Separar-nos a morte só podia ;

" ¡Mas não ! nem póde a morte separar-nos !


" O' vós , dai terno ouvido ás préces de ambos ,
Míseros pais de míseros amantes ,
" Que une por lei do Fado amor e a morte ;
" Deixai , que o mesmo túmulo os encerre.
» E tu , árvore , tu , que estás cobrindo
» Agora hum só cadáver miserando ,
" Logo dous cobrirás , signaes conserva
" Da tragédia , que vês , e por teus fructos
" Diffunde sempre a côr de lucto , e mágoa ,
" Monumento fatal do negro caso.—

" Cala-se ; encósta o peito á férrea ponta


" Do sangue do infeliz tépida ainda ,
" E traspassa-se , e cahe . Das préces tristes
" Comtudo os Ceos , e os Pais se enternecêrão.
" Nos ramos da frondífera amoreira ,
" Quando maduro está , negrêja o fructo ;
132
„ E a lacrimosa , paternal piedade
" Guardou n'huma só urna as cinzas de ambos. "

Disse. Pouco depois entrou Leucónoe


A contar d'esta sorte , e as mais a ouvil-a :
" Este Sol mesmo , por quem tudo aquéce ,
" Ja tambem se abrazou de Amor ao facho ;
" Ora vamos do Sol contar amores.

" Foi elle , ( ou , se o não foi , todos o cuidão)


" Quem primeiro observou (porque este Nume
" He sempre , o que primeiro observa as cousas)
" De Cypria e Marte o adúltero commércio.
" Anojou-se do achado : e foi contal- o
" ¿ A quem ? De Juno ao filho , ao proprio espôso ,
» Explicando-lhe o caso , e o modo , e o sítio .
" Como houve a nova o mísero Vulcano ,
" Cabio-lhe aos pés o coração , cabio-lhe
„ Da mão pasmada a óbra , que forjava :
" Tornando logo em si , de arames lima
" Taes laços , fios , contrafios , rêdes ,
" Que não ha hi dos ólhos enxergal-os :
" D'este meu linho a mais delgada febra
» Tão delgada não he , nem sei de aranha , I
" Que fizesse jamais tão fina têa.
" Em tão sensivel máchina os concerta ,
183
" Que o mínimo balanço , ou tóque , ou sôpro
" Fará , que tudo a súbitas desfeche :
99 i E onde iria dispôl-a ? Emtôrno ao leito.
" Mal que n'elle o traidor e a espôsa entrárão ,
» Vêl-os no impuro abraço ambos captivos .
" Eis de repente o côxo Deos de Lemnos
" A abrir de par em par , quasi em triumpho ,
" Aos Numes todos as ebúrneas portas.
" ¡ Jaz á vergonha exposto o par ligado !
" Dos Immortaes algum , dos menos sérios ,
" Não deixou de invejar igual vergonha.
» Lavrou geral o riso ; e largo tempo
» Não houve outra conversa em todo o Olympo.

Cytherea , que a injúria não deslembra ,


" Em se vingar do delator pôz fito .
" Se em mistérios de amor lhe ha feito aggravo ,
" Em mistérios de amor vai ser punido.
" ¡ ¡ Pobre , mísero Sol , que te ora valem
" Formosura , esplendor , supremo fogo !?
99 Tu abrazas o órbe , e amor te abraza :
" Devendo tudo vêr , só vês Leucóthoe ;
" O'lhos , que são do Mundo , os gastas n'ella :
" Ora mais cêdo no Oriente assomas ,
» Ora desces mais tarde ao mar do occaso ;
" Do invérno os dias pela ver prolongas ;
184 "
„ Dão - te a miude os eclipses ; são assûmos ,
" Que o ânimo torvado á face envia :
" De teu pallor a gente anda pasmada :
" A visinha da terra , opposta lua ,
" Não he, não, quem te assombra ; anda -te dentro
" Terno mal , que desbóta , e murcha as côres.
" Só em Leucóthoe o coração te falla.
'i Adeos memórias meigas da , tão linda ,
" Mai de Circe ! adeos Clímene ! adeos Rhode !
" ¡ E tu , Clycie , mais terna que ditosa ,
" Que , inda trahida , por gozal -o ancêas !
" ¡ De vós , de todas , triumphou Leucóthoe !
" Filha Leucóthoe foi da por extremo

" Formosissima Eurynome , consórte


" De elrei O'rchamo , o septimo no throno
" Do antigo Bélo na cheirosa Arabia .
" Cresceo a filha , e tal sahio , tão bella ,
" Que excedeo tanto á mãi , quanto ella a todas.

" Pastão Frisões do Sol na extrema Hespéria ;


" Lá lhes cresce , em vez de hervas , a ambrosía ,
99 Em que do afan diurno os vinga a noute.

" Noute era ; e ja por lá pascião soltos :


" A aproveitar as remansadas horas ,
" De Eurynome , da mãi , tomando a fórma ,
" Na cubiçada alcôva o Deos penetra :
185
" Preside a servas doze atarefadaş ,
" Emtôrno a vivas lâmpadas , Leucóthoe 9
" Gira-lhe em ténue fio o fuso leve :
" Beijou-a ; e logo ás fàmulas , - Vós outras ,
" Ausentai-vos , lhes diz , temos segredos ;
" Deixai a mãi co'a filha.- Obedecêrão.
" Mal foi a sós na câmara co'a virgem ,
99 -- Sou , diz , quem tudo vê , quem faz ver tudo,

" O ôlho da esphéra , o medidor do anno ;


" E agora escravo teu . Treme a donzella ;
" Róca, e fuso lhe cabe das mãos convulsas ;
" E graças lhe requinta o casto mêdo .
" Eis que ao seu natural revérte o Nume ,
" E esplèndido reluz : tão repentina
„ Visão deslumbra a attónita princeza ;
" Mas tal brilho a conquista , e lá succumbe
" A's violencias de amor , sem áis , sem queixas .

» Clycie , que ja do Sol gozára extremos ,


" Arde em vivo ciume ; de raivosa
" Contra a rival feliz , divulga o feito ;
" E , inda não paga d'isso , ao pai a accusa.
" O pai , feroz , ás súpplicas da filha
" Não cede , não lhe escuta os juramentos ,
" Com que ao Sol ergue as mãos, e, — Aquelle, grita,
" Aquelle me ha forçado . Enterra-a viva ;
186

" E alto montão The sobrimpõe de arêa.


" Co'os raios seus o Hyperióneo filho
" O fende , porque a mísera levante
" A soterrada fronte. ¡ ¡ A fronte !? ¡ ai d'ella !
" Jaz do pêso esmagada , o corpo exangue !
99 ¡ Pobre Nympha ! ¡ está morta ! He voz, que Phebo,
92 Depois do incêndio do infeliz Phaetonte ,
Nunca tamanha dôr sentio , como esta.
" Inda lidou por embeber co'os raios
» Dôce calor vital aos membros frios :
» Mas Destinos lhe hão baldo o pio empenho .
" O corpo , e o sítio de cheiroso néctar
"" Lhe asperge ; em voz sentida , após mil queixas ,
-66
Subirás para o ceo comtudo ! -exclama .
" O cadáver gentil nectarisado
" Se desfaz , se dilúe , se côa á terra :
" Pelos torrões balsâmicos se gérão ,
" Se espalhão , pouco e pouco , altas raizes ;
Fende o outeiro huina plúmula viçosa ;
Huma hástea cresce : he a árvore do incenso .

" Pôstoque de desculpa em Clycie valhão


" Os zêlos á denúncia , amor aos zêlos ,
" Não houve mais com Phebo sanear-se :

" Desde esse triste prazo o Nume a foge ,


99 Nem ja trato de amor volveo a unil-os .
187
Gastada da paixão , como demente ,
" Se consome ; o ver Nymphas a exaspéra :
" Por terra , escabellada , atura exposta
" A's inclemencias do ar , a noute , o dia.
" Dias nove , sóm nte orvalho e chôro
"Forão sua bebida , os seus manjares.
"Do sítio , da postura se não tira ;
" O'lhos só move por seguir seu Nume ,
" Que lá vai , pelos ceos , tão longe d'ella !
» E , por nunca o perder , devolve o rôsto.
" Seus membros , diz-se , á terra se aferrárão ;
" A pallidez escura lhe desbóta
" Parte da côr antiga em herva exangue ,
39 Parte he rubra ; o semblante desparéce
N'huma flôr ás violas similhante .
" Clycie he planta ; mas , planta, e firme ao sólo,
Busca o seu astro , o seu amor conserva. "

A' grata narração maravilhosa


Assim pôz fim Leucónoe . Algumas zombão ,
De quem se fia em tal ; outras contendem ,
Que os verdadeiros Deoses pódem tudo ;
Não pondo n'este rol comtudo a Baccho..

De Alcíthoe chega a vez : calárão todas ;


E ella diz , sem dar trégua á lançadeira ,
188
Que agil passa , e repassa o tezo ordume ;
» Não quero referir , por mui notorios ,
" Amores d'esse Dáphnis , pastor de Ida ,
" Mudado por zelosa Nympha em seixo ;
" ¡ Que tanto em peito amante os zêlos pódem !
" Menos direi do mui famoso Scython
" Que " alterado o theôr da natureza ,
" Soube, o que he ser mulher, e o que he ser homem.
" Deixemo-nos de Celmo , ora diamante ,
" Aio fiel de Jupiter menino ;
" Da pluviosa origem dos Curétas ;
" De Smílace e de Cróco hoje florinhas.
» Dir-vos-hei cousa , que , por nova , agrade.

" Dir-vos-hei , d'onde a Sálmace proveio


" A rara , a vergonhosa propriedade ,
" Que em suas aguas lânguidas encerra ,
» De afeminar varões , assim que as tocão :
" O effeito he mui sabido , a causa ignóta .

" De Mercúrio houve hun filho a Idália Deosa.


" Da sua infancia os próvidos cuidados
" Nas grutas do Ida as Náiades tivérão .
" Ja no aspecto infantil feições transluzem
" Do grão Progenitor , da Mãi divina ;
" E de ambos tira o nome o filho de ambos.
189
" Mal tres lustros findára , eil-o se ausenta ,
" Eil-o deserta o Ida , os pátrios montes ;
" Ver correntes lhe apraz , ver sítios novos ;
" Suave distracção lhe adoça a lida .
" Corre da Lycia as ínclitas cidades ;
" E da Cária visinha aos campos chega..
" Lá se lhe ofrece hum lago , em cujo fundo
99 Das aguas atravéz se espraya a vista :
» Não lhe vegetão juncos aguçados ,
» Estéril murraçal , palustres canas ;
" He todo hum cristal puro , e só lhe vição
"Vivo céspede e relva emtôrno ás margens .
" Nympha alli vive á caça não affeita ,
" Nem déstra no correr , nem déstra em arco ;
A unica das Náiades , que os Córos
" Jamais seguíra da veloz Diana .
" He fama , que as Irmãs , para incital- a ,
„ Mil vezes , convidando -a , lhe dissérão :
99- Sálmace, empunha o dardo, ou toma a aljava,
" Alterna o ócio teu co'as nossas lidas.
" Debalde : ella recusa aljava , e dardo ;
" E ás lidas das irmãs prefere o ócio.
" Ora banha na fonte os membros lindos ,
" Ora co'os dentes do cytório buxo
" Corre , alisa , compõe , divide as tranças ,
„ E , olhando o aquoso espêlho , estuda enfeites ;
190
" Ja , de roupas diáfanas vestida ,
‫ وو‬Pousa em molle rélvado , ou folhas brandas ;

" Ja na várzea espairéce , e colhe flores.


" Flores colhia pela várzea ao tempo ,
e
" Que acertou de avistal-o , r visto apenas ,
» Rendida delirou , morreo por elle.
" Bemque terna impaciencia a alvoroçasse 9
" Não se move , não vai , sem que primeiro
" O ornato esmere " as vestes reconsulte ,

" Componha o gésto , e se repute amavel :


" Então chega , e lhe diz : Bem vindo sejas ,
‫ وو‬Mancebo, a quem de hum Deos compete o nome ;

" Ou , se hes Deos , Deos de amor : mas, se hes humano,


" ¡ Feliz pai, feliz mãi , que o ser te dérào !
" ¡ Feliz o Irmão, e a Irmă , se alguma houveste !
99 i E feliz a mulher , que ao peito amigo
" Te amimou , te nutrio , te trouxe infante !
" ¡ Mas , se tens huma esposa , ou se a teus olhos
" De teu fáusto consórcio alguma he digna
" Ditosa vezes cem , ditosa espôsa !
" Ah ! se a tens, se hes captivo em laços de outra ,
„ Dá-me, a furto, o prazer, que a amor he prémio :
" Se a não tens , seja-a eu , comigo aperta
» De immortal união perpétuos laços .

» Disse ; e calou-se a Nympha ; o môço córa ::


191
"" Córa : o que seja amor , não sabe ainda :

" ¡ Mas que bem , que lhe fica o róseo pêjo !


„ Tal reluz côr purpúrea em pingue fructa ,
" Que de huma árvore ao sol debruça as ramas ;
" Tal o tinto marfim ; tal he teu lume ,
" Roxo atravéz do alvor , lá quando , ó Lua,
" Emvão por soccorrer-te os bronzes sôão.
" A ' Nympha , que sem fim lhe pede , ao menos ,
99 Beijos , beijos de irmã , que delirante
Ja quer lançar-lhe as mãos , cingil- o ao peito ,

" Ja quer...- Largas-me ? ou fujo ? o moço grita ,


" E deixo , por deixar-te , o sítio amêno ? ! ---

" Temeo Sálmace as véras da ameaça :


" -Fica-te, hóspede, em paz ; deixar- te- hei livre .
» Diz ; vólta o passo , e finge ; que se ausenta ;
" Não sem olhar após de instante a instante.
" Some-se em densa balsa : e lá , com mêdo ,
" Que a fronte a denuncie , ajoelha em terra .
» Elle emtanto , (he menino , e não he visto)
" Vaga aqui , vaga alli no prado hervoso .
" Ja co'o bico do pé nas aguas brinca
" Ja inteiro o mergulha ; apraz-lhe o fresco
" Temperado licor : não mais espera ;
" Rouba á véste macía o tenro corpo.

" De olhos fitos no amado , a Nympha occulta


192
» Jaz immovel , absôrta , devorando
" Com ígneos lumes as despidas fórmas ;
Tal fere em vivo espêlho hum sol de estío .
" Conter mais longamente os seus ardores ,
" Seus gostos differir , ja não se atreve ;
» Do mancêbo os abraços lhe esvoação
" No doudo coração , na mente douda .
" Eil-o salta , exultando ; eil-o co'as palmas
" Bate o corpo ; eis veloz se atira ao lago :
" Lá revolve , nadando , alternos braços ;
" D'entre as aguas reluz , qual dentro em vidro
" Cândida estátua ebúrnea , ou lírio branco .
"" - He meu! venci ! triumpho! -exclama a Nympha:

" Roupas despede , e se arremessa ás aguas.


.‫ و»و‬Segue, apanha o rebelde , e o tem seguro.

" Toma-lhe á força refusados beijos ,


" Trava das lindas mãos , que lhe resistein , 1
" E ao peito , que arfa embalde , e se debate ,
» Ao.peito, e ao mais, e a tudo estende . as suas :::
" Ja de hum , ja de outro lado o abrange, o cinge,
" Se confunde com elle , e assim se aperta
" Co'o reluctante ingrato , emvão forçoso ,
" Como empolgada sérpe em garras de aguia ,
" Que , em que pende da intrépida inimiga ,
" O cóllo , os pés lhe enleya ; as régias azas
" Cola revoluvel colla alfim lh'as tolhe ;
198
"Ou tal se engóle tronco entre héras crêspas ;
" Ou tal no pégo hum pólypo verias
» Co'os naturaes harpéos circumferrantes
" Seu contrário agarrar , eonter , cobril-o..
» Teima , e não cede , de Mercúrio o filho ;
" Deleites querella ancêa , elle os repugna ::
" Mas nem por isso a Náiade fraquêa :
"Corpo a corpo abraçado , estreito , unido ,
39 Mas que lides , lhe diz , hes meú , não foges.
" Deidades , permitti-o , e nunca , nunca !

„ Eu d'elle , elle de mim soltar-se póssa.

" Houve Nume , que ouvio seu rogo ardente :


"Junctão-se os dous n'bum corpo, as faces n'huma
99 Quaes surgem de hum só tronco, e enlação cópas,
" Os ramos naturaes e o novo enxêrto ,
" Taes , depois que os unio tenaz abraço ,
„ Ja dous não são , e he dúplice a figura : va
" De homem, nem de mulher lhe quadra o nome ;
" Confunde-se co'os dous , différé de ambos.
7
" Ao ver , que de varão , qual fora ao Lago , i
" O Lago em parte o muda em séxo opposto ,
" E sentindo abrandar- se os membros fortes,
" Com voz não ja viril , as mãos alçando ,
"Hermaphrodito exclama : - Ao vosso filio ,
Liv. 4.
194

" Ao que tem de ambos vós figura e nome , 10c


" Dai Venus , dai Mercúrio , o que vos péde : 0

» Varão , que entrar no pégo , aqui se afrouxe ; } .


» Aqui , ao sexo antigo ajuncte o novo.
" Movido á voz do filho o Parceleste. baista

" A's supplicas lhe annue , confirmato voto , #t


" E de occulta virtude a fontecembébem. " १८
oftstida , via comida oqton a
Cessárão de contar , Seinda o trabalho ,
Insulto a Baccho e acinte ao fésto dial rt
Se affervorava mais entre as Mineidas, old

Rompem súbito estrépito atabales


Raucitroantes , curvicórneas gaitas , dovoll a
Metaes de retintínulos repiques oben zeer domlu
Tudo invisi vel de açafrões de mirrhas32399.
Nádão no ar suavissimas fragrancias.colar a
Eis quem lhe dará fé ! o alvor das teas Va
Que se entra à esverdear : os largos pannose
Em guisa de héra a frondejar-se os fiosyou "; e
Não tapados ainda , a alar-se em videsbaulu ›') a
Estâmes , que das rócas vêm sahindo ,
Vêm sahindo em festões de frescas parras ; A«
E das lustrosas púrpuras , luzentes; un ogad Oe
Cachos se entufão de formosas uvase of mus CR

Era ao cabo do dia a hora incertage sov mode


Que nem de trevas , nem de luz , tem nome , ”
195
Do dia e noute mal distinctas ráías
Como encontrada de bum tufão retréme po
Do fundamento ao tecto a estância toda ; '>
Resinosos archótes võão , zunem; bobro . a )
Retinge as casas crepitante incêndio ; jewna Mb !
Correm fantasinas de ululantes férasad of a
Pelos altos desvãos cegos de fumo lenti e
Vão-se as ímpias irmãs , dispersas , loucas , 17-
Contra o fogo e clarão buscando asilo do ;*
N'esté anciar pelas trevas , se lhe estendem 4
Membranas em seus corpos apoucados , J
E penhugem subtil seus braços véste. 19
subcode
O como sahem da figura antiga ,po Sally 9)M
Não lh'o deixa saber a escuridade 薯 0 e acode
Vôão , não que as sustentem plumas lèves Ae
Sim transparentes azas , fallar tentão zuq olanņu
Sahe-lhes pequena voz , conforme ao corpo ;ionle
Ténué chiada ó seu queixume exprimero o uo ) ju
Por tectos , não por bósques , se accommodão :
Inimigas da luz nas sombras girão : , 7
Do Véspero lhes veió o lácio nome . N. ) . V
tesovca (lindre ogvik ob zelog it A
Ja Baccho era afamado em toda Thébasin yoʻl

Ino , irmã de Semele , em toda a partemanant enfi


Do novo Nume o grão poder pregôajo : o ciala”
De irmãs tantas , só esta inda não teve 1.51 da d
m *
196
Desgosto algum por si , por ellas muitos.
Juno , que a vê tão cheia de vanglória
Co'os filhos seus , co'o tóro de Athamante ,
Co'a deidade do Alumno , mais não soffre ,.....!
E diz comsigo : " ¡ E como ! ¡ pois o fructo
" De huma vil concubina alcançaria 7
" Transformar , submergir Méónios náutas !
" Pôr mais a lacerar seus proprios filhos !
" ¡ Cobrir Mineidas tres de novas azas !
"¿ ¡ E Juno ha de , tão só , poder carpir-se !!
99 ¿ii¡ Inulta ? ! ¡ Inulta ! ¡ ¡ A lagrimas estéreisaif
"
" Se reduz pois o meu poder ?! Não ; Baccho "
» Me ensina , o que bei de obrar ; doutrinas boas,
" Boas são , mas que sejão de inimigo ::
" A morte de Penthêo bem claro próva , ^..
" Quanto póssa o furor : porque não ha de m'k
" Ino imitar domésticos exemplos ? sale d
" ¿ Como as loucas irmãs , tornar-se louca ? »

Vai , tácita , e declive , ao fundo Averno


Via , obumbrada de funéreos teixos ;
Alli paúes da Styge exhalão névoas ;
Por alli vão descendo en chusma as sombras
Dos recémmortos , que lográrão cóva :breni
Pállida cerração , medonha , horrenda
Senhorêa esses páramos sem termo :
197
N'elles os Mânes ao chegar se esváírão ,
Sem atinar caminho , que os depare
A' cidade Avernal , ou lhes descubra
Do negro Dite o pavoroso alcáçar .
Vasta a Cidade , Capital do Inferno ,
Chama estradas a si de toda a parte' ;

Por toda a parte abertas portas lhe entrão :


t
Sorvedouro sem fim , que do Universo
Engóle as almas , como o Oceano os rios.
Por mais povo que acceite , he sempre á larga ;
Cresce o número , o espaço existe o mesmo.

Incorpóreas , exangues sombras vagão ; en En


Quaes a Praça frequentão , quaes os Paçoso
Do subterrâneo Príncipe , quaes outras
Inda vão proseguindo , em falsa cópial, a neol
Dôces empregos da primeira vidal s 52962 (2Ar
1. 3

Juno (¡ tanto o furor e o ódio a cégão !) ½ 6


Não duvída ir-se allig deixado ó Olympo.us a
Entra ao pêso gemeo da sacra planta amate .

O limiar Tartáreo ; alça as tres frontes ,


E tres ladrídos Cérbero trovêja. 5 ho
Da Noute ás Filhas , implacaveis Numes ,
A Deosa brada : estavão-se n'essa hora
Do cárcere ante as portas diamantinas
Sentadas , penteando as átras cóbras.
198
Apenas atravéz da escuridade
Distinguirão ser Juno , as tres se erguêrão :
(Diz-se este sítio o Pouso Scelerado )
Alli Tícyo , abarcando geiras noved oll
Dá o peito aberto a lacerar a abútres ; t
Tântalo , á tua sêde as aguas fogem stoned)
Burlão-te a foune os sobranceiros fructos
Ora da mó vais , Sisypho , no alcance , bo
Ora a carregas , donde sempre tomba , an alls
Rúe , róla , jaz ; Ixion na róda leve.ge
De si foge , traz si contínuo vôa ;
Pena de ousarem degolar seus primos ,
Enchem Danáides nunca fartas urnas.
cadro zen S
Com sobresênho os míra Juno a todos ,... 5M
Maiormente a Ixion. Mas d'ellé arranca

O olhar , e o torna a Sisypho : " ¡ Só este ,


" Este só padecer castigo eterno ! mur ) an
Diz ella , Eem paços ricos ufanar-seb obli
" Seu irmão Athamante , o audaz , que tanto ,
» Como a indigna consórte , me desdoura ! " O
A's Deidades da Noute então declara ent
O ódio , a causa da hvinda , o seu projecto, T
Era o projectoi seu , que se extinguisse !
De Cadmo a régia casa , e que Athamante of
Furioso se arrojasse a crimes negros.org
199
Para das Infernaes obter o auxílio, que en
Rógos , promessas , magestade empenha . so

Disséra : eis que Tisíphone , abanando , G


As desgrenhadas cans , do rosto arredaqovle
O estôrvo das serpentes , e assim falla I enter i
" Não he mister cançares- te em rodeiosljq s'e??
"
» Dá por feito , o que ordenas ; desamparas en l
" O desamavel Reino , aos Ceos remonta.led÷3
Volta Juno contente ; Iris Thaumância ne reán k
Ante o celeste umbral de orvalho a lustra se ; - L
> C1 24.69 dem i shyperd

A hedionda Tisíphone já lançaomlarem surl]


Mão do cruento archote , envérga o manto , 201
Escarlata de sangue , qué gotêja ; il obojiyat » ([
Aperta o cinto de enroscada Sérpe ;, sobrinary V
Do Averno sahe . Compõem-lhe A comitiva , O
Lucto , Mêdo , Terror , trépida Insânia. oi !
Mal que do E'ólio aos Paços se avisinbasio's
Tremem umbraes , portões amárellecem , 'j
Vai-se o sol . De terror entrado o esposo , it
A esposa espavorida , a taes prodígios do m
T
Fugir tração: ¡ ai de Ino ! ai de Athamante !
Que á sahida os embarga a infausta Erynnis ;
E a passagem lhes tranca , distendidos
De par em par os braços pavorosos ,
200
De vipéreas manilhas carregados..7
Sacóde a grênha , as cobras abaladas
Resoão ; parte , assentão-lhe nos hombros ,
Parte , da fronte se debruça aos peitos :
Sílvão , peçonha cospem , co'as farpadas
Linguas lampêjão. Duas d'ellas prestobo
Co'a pestilente dextra a Fúria arranca ,
E as arremessa aos dous : ambos n'hum ponto
Rebolear-se no âmago as sentírão ,
Ambos se infectão dos tartáreos bafos. 0 1 …. *.
Jaz sem feridaso corpo , a mente as soffre. $
Trouxera mais comsigo a Deshumana
Hum monstruoso líquido , composto bolond
Das espumas , que baba o Cão Trifáuce ,
De tóxico de Echidna , de delírios 5
Vagabundos , de cégos desatinos ,
Crime , pranto , furor , tenções de morte ; vi
Tudo pisado a hum tempo , e de mistura
Com fresco sangue , em caldeirão de bronze ,
Por sua mão , no Inferno o cosinhára ,
Com hástea verde de mortal cicutane
Bem mexido ao ferver. No peito de ambos ,
Emquanto arquêjão pávidos , embórca
Tão furial pestilencia. Enfórna châmas
Té as entranhas do ânimo . Soberba 247
De haver cumprido o encargo , aos vácuos reinos
201
Do Grão Dite reverte o Monstro ovante , 1
Onde à cóbra da cinta emfim desata . ? : en . T 1
(
No meio do palacio eis furibundo
Entra aos gritos o E'ólide : " Aqui todos , led
» Aqui , monteiros meus , esta dó bósque
" Interna parte , m'a tomai de rêdes ;
» Huma leda , e dous cachorros filhos !!
Clama , e corre insensato após da espôsagin
Em quem tresvio leôa : ao cóllo d'ella
Lhe ía o filhinho', o seu gentil Leaṛcho , 110
A rir-se-lhe , a estender-lhe alvos bracinhos ,
A querer-se ir ao pai : arranca-o , róda-o" (av
Duas , tres vezes pelo ar , qual funda ;;
Feroz o solta , e n'hum penêdo o esmaga..
A mãi então , frenética , da
da mágoal
mágoa s in 5 m
Pungida , ou que o veneno a vá minando ,
Ulula , corre , insana , desgrenhada ;
Leva nos braços nus , cerrado ao peito , '!
Seu outro filho , o tenro Melicérto ; o .. P
E vai bradando : " ¡ O ' Baccho ! Evohe ! Baccho ! »'
Sorrio Juno a tal nome , " Embora logres
" Taes mimos , disse , " do teu caro Alumno ",

Surge hum penhasco ás aguas sobranceiro ;


Das ondas o vaivem por baixo o mina ,
202
Vasto pego co'a abóbada protége , mod
i Tanto a fronte escabrosa invéste os mares !
Ino , pois the ala fôrças o delírio ,
Lá vinga ; e , sem temor , co'a linda carga
Salta ao profundo , ¡ abisma-se ! co'o baque , z
As aguas alvejando espadanárão. 100 *

Mas Venus, consternada do infortúnio , sti


Que ¡ tão sem culpa ! á sua néta veio , }
Desta arte ameiga o Tio : " Equóreo Nume ,
" O' Neptuno , ó Senhor , cujo alto Império
" Pouco cede ao dos Ceos , se implóro muito ,
" Pensa, que he pelos meus, que o muito imploro.
" D'esses , que rolar vês no Iónio immenso "
"Tem compaixão ; por Numes os recebe :
" Bem deve d'este Mar contar co'a graça , ...

" Quem, ja foi n'elle espuma , e d'elle ha nome. ”


Annue Neptuno lá súpplica : ja de ambos
Extrahe , quanto he mortal ; ja lles imprime 2. 7
Tremenda magestade , e', demudados ,..
Palémon chama ao filho , á mãi Leucóthea , cv2
4
As áias , que no alcance fadigoso . Pothole
Da Rainha hão corrido, os seus vestígios
Lá vào ja pela encósta rastreando :
Elles as guião resfolgando ao cume ,
205

E alli , na orla do profundo abismo ,voor rod !


Cessão. Dão por sem dúvida , que he mortal >>
Ferve alarído unânime : lastimão early son'Ɑ
Do vélho Cadmo a extincta descendencia im A
O seio, as vestes , * os cabellos rompers Q
Harto blasfemão do rigor de Juno,habi) cb qd, 2
Dos zêlos seus , do seu tão cru, vingar-se. on o '
Não lhes reléva a Deosa audácia tanta :
"Vós mesmas , » disse então , " sêde vós mesmas ,
" Da minha tyrania exemplos novos.go
Seguio-se o effeito ao dicto : a mais sentida
Co'os tristes fados de Ino , » Hei de eu seguil-a , n
Bradou ; quiz dar-se ao mar , ficou-se immovel ,
Pegada á rocha. O peito , como d'antes ,
Outra quer lacerar , seus braços , hirtos donor à m
Ja da vontade ao mando se não dómão: gita
E'sta as mãos estendia ao largo pégo give us
E estátua ao largo pégo as mãos estende : c
Para arrancar a côma , aquella a dextra.
Levanta ; ¡ dextra , e coma , as víras pédra !
Cada qual , como estava , eterno fica. othe
Só parte d'ellas se transforma em aves ,
Que , inda hoje , d'esse n pélago habitantes ,
Róção co'o vôo a superfície ás aguas.en on all

Inda ignorando, que entre equóreos Numes A


204
Lhe fora acceita a filha , acceito o néto ,
O filho de Agenor , Cadmo , vencido
D'este ultimo desastre , que dá mate
Aos mil desastres seus , e dos , sem conto
Que ha passado , maléficos portentos ,
Sabe da Cidade , que erigido havia ;
Como se os Fados d'ella , e não seus Fados ,
O perseguissem lá. Depois de largós
Terrenos vaguear , parou na Illyria
Co'a prófuga consórte. Alli , gravados
Da desgraça , e da idade , a estrella adversa
Memorando dos seus , e discorrendo
Nos curtidos trabalhos , Cadmo exclama :
" ¡ Ah ! sagrada , talvez , era a Serpente ,
" Que no bósque matei , quando expellido
" De Sidónia me vi por lei paterna !
"‫ ¡וי‬Sacro seria o Monstro , em cujos dentes
" Pela terra espalhei semente infensa !
" Pois , se dos Numes o furor se apura
" Tanto e tanto em vingal-o, implóro aos Numes,
"Que em comprida serpente me transformem . "

4
Disse : e , como serpente , eis que se alonga ;'
Eis na cútis nascer vê dura escama ,
Cerúleas nódoas variar-lhe o corpo :
Na terra cahe de peitos ; mañso e manso
205
Os membros se confundem , que o sustinhão , JA
E en boliçosa cáuda se afeiçôão.
Restão-lhe braços ; braços , que lhe restão , 0
Estende o malfadado , e diz , banhando
De lagrimas a face , humana ainda :
" Vem , dôce , vem , misérrima consórte , get a
" Emquanto ainda em mim de mim vês parte ,
" Emquanto não sou todo enorme sérpet
» A mão , enquanto he mão , recebe , aperta . »9

Queria proseguir ; mas de improviso


A lingua se lhe fende , eil- o com duas ;
Fallecem-lhe as palavras : quantas vezes
Se intenta deplorar , tantas sibЛla ;
Só lhe deixa esta voz a natureza.
Co'a mão ferindo o peito a esposa clama :
" ¡ Cadmo ! espera , infeliz , despe esse monstro !
" ¡ Que he isto! Que hedos hombros! que he dos braços !
*u
" As mãos , os pés , e a côr , eo rosto , e tudo ? ! ´ ;
"¿ Porque , Poder do Ceo , porque , Destinos , ‚ ˆ
" Me não mudais tambem na fórma horrenda !? »
Diz ; elle da consorte as faces lambe ,
E o , que ainda conhece , amado peito ;
O cóllo , que lhe foi , que * lhe he tão caro ,
Cinge com inimo , e , como póde , abraça . A
Com tal ver os da régia comitiva .
206
Aterrados estão ; mas brandamente ordnas 20
Suas cristadas cóllas meneando ,
Os lúbricos dragões vão affagal-os , vi sakosteud
Que súbito são dous : e , serpeando torn of sinstel
Ambos a par em revoluveis giros , envystal
Se escondem pela proxima floresta. ; " cob , moV e
25 omnispuid e-
Dos homens todavia inda não fogem perd
Não tem dente mordaz , não tem veneno , At
Não fazem damno algum ; do que ja forão ,
Os benignos dragões inda se lembrão. 9)

Pôstoque hajão perdido a humanidade , ha


Grande consolação lhes deo comtudo shorei od
Verem seu néto vencedor das Indias , ob all of
Nas Indias adorado , e em toda a AchaiaДui o'
iu C 1
Hum só mortal incredulo o deshonra , s
Tendo aliás com elle a mesma origem , ¿l, re
Acrísio , de Argos Rei , de Abante prólegaɔ'l
He esse o temerário , o que lhe fechand en of ee
Seus estados , com armas o perségue , 6h ollo : u:(I
E por filho de Jove o não reputa、 zinis sup , o d
21
¡ Mas , que muito ! a Perseu contésta o mesmo ;
A seu néto Persêu , filho de Dánae , no 590ijk
Seduzida por Jove em áurea chuva, 20 av lut 200
207
Porêm ( tanto a verdade he poderosa !) 4 ad
Da affronta feita a Baccho , e feita ao néto.
Chegou por fim a arrepender-se Acrísio.
Ja dos dous o primeiro he Deos ; e o outro
Levando o espólio do vipéreo Monstro ,
E equilibrado em azas estridentes ,
Prêsas aos leves pés , vaguêa os ares. 1

Sobre as crestantes líbycas arêąs this 2014 ( 61


Pendendo o Vencedor , cahírão n'ellas e
Da Gorgónea cervíz sanguíneas gotas ,
E bebendo-as o sólo as fez serpentes ;

Desde então de serpentes Líbya abunda. • 209

Logo agitado por discórdes ventos !! .


Para aqui' , para alli , qual gira a nuvem , cele
Domina o Moço errante ao longe as terras ,
E sobre o vasto Globo anda voando. 33-09)
As Ursas Boreaes vio ja tres vezes , va ob 17.
E ja tres vežės vio do Cancro os braços. 4

Mil ao occaso foi , mil ao nascente ,


Pela aérea violencia despedidosh ege
Emfim , proximo á noute é receando $ 5.1 C
Persêu frar-se d'ella , o vôo abatebo l.30 i'œ
Na Hesperia Região , reinos de Atlante.
O Heróe pede ao Monarcha hum breve azilo,
Té que Phosphoro esperte a luz da Aurora
208
E a Aurora o carro de ouro ao Sol prepare.

Superior na estatura aos homens todos


Era Atlante , de Jápeto progénie ;
Deo leis na terra extrema , e leis nos mares ,
Onde os lassos frisões mergulha Phebo .
Alli manadas mil do Rei Gigante ,
Mil rebanhos alli pascendo erravão :
E ao seu não affrontava estranho império.
Tinha hum vergel com árvore lustrosa ,
As folhas erão de ouro , e de ouro os ramos ,
A'ureos os pômos , que pendião d'elles .
» Grão Rei , Persêu lhe diz , se amas a glória
" De alta estirpe , o meu ser provém de Jove ;
"E , se hes admirador de acções famosas
" Hão de maravilhar-te as acções minhas ;
" Rógo-te a graça de nocturno hospício. ". " 2
Mas de Oráculo antigo o Rei se leinbra , #
Que a Themis no Parnaso ouvíra outrora : 5 .

- " Roubarão de tua árvore brilhante Ju


" Inda algum dia , Atlante , os fructos d'ouro :
» Tóca a filho de Jove esse alto Jouro. ".
431
Receoso do furto, havia Atlante
Torneado o pomar com rijos muros ,
209

E horroroso Dragão lhe poz de véla.


A forasteiro algum nos seus dominios
Guarida não concede , expulsa a todos ;
E a este diz tambem : » Vai para longe ',
" Se não queres de ti ver longe a glória
" Dos mentirosos feitos ; se não queres
" Longe, mais longe ainda, o Pai, que ostentas. „
E , ajunctando a violencia ás ameaças ,
Repellir tenta para além das pórtas
Persêu , que lhe resiste , e ja mistura
Co'os termos brandos expressões mais fortes';
Nas forças inferior se reconhece ;
¿ Quem podia igualar de Atlante as forças ?
" Ja que a minha amizade em pouco estimas ," ?
Diz o affrontado Heróe , » meus dons recebe. "
N'isto , co'a mão sinistra , e desviando
Primeiro os ólhos para a parte adversa ,
Lhe mostra de Medusa a face horrenda.

¡ Eis , feito o enorme Atlante hum monte enorme !


Barbas , melênas , se lhe tornão selvas ;
São recôstos da sérra as mãos , e os braços ;
O que ja foi cabeça , agora he cume;
Dos óssos os penêdos se formárão.
Para todas as partes se dilata ;
Crescendo mais , e mais , altura , immensa
Toma emfim, Vós , ó Numes , o ordenastes ,
Liv. 4. n
210
Todo o pêso dos Ceos descança n'elle.

Em seu Cárcere eterno aferrolhára


E'olo os Ventos , ao luzir da Estrella ,
Que traz o dia , que ao trabalho chama.
Calça as azas Persêu , recinge o alfange 2
O curvo alfange , ao lado ; e novamente
Retalha em vôo leve o aéreo vácuo .
Innúmeros atraz deixados póvos
Sob o rumo sublime , e aos lados ambos ,
Da Cephéa Ethiópia emfim dá vista .
Alli então a Andrómeda innocente
De Ammon injusto Oráculo mandava
Que da vaidosa mai pagasse o crime .

O Bisnéto de Abante ao pôr os olhos


Na víctima , co'os braços melindrosos
Amarrados a asperrimos rochêdos ,
Se lhe não visse a trança entregue ás áuras ,
E lagrimas ferver na face ingénua ,
Por óbra de alvo jaspe a tomaria .
Attónito da estranha formosura ,
E inda mais , do que attónito , encantado ,?
Quasi esquece no ar mover as plumas ;
Bebe , sem no cuidar , secréto incêndio .
Mal que pousou na praya em frente d'ella ,
211

" O' tu , lhe diz , não digna d'estes laços ,


" Mas só , dos que ata Amor aos seus mimosos ,
" ¡ Teu nome ? ¡ a tua pátria ? ¡ a causa d'isto ? »
Perturbada , e suspensa , ella a princípio
Não responde ao Varão modesta , e virgem ';
E , se as férreas prisões lh'o não tolhessem ,
Co'as mãos o rosto acceso esconderia ;
Cobre as faces de chôro , he , quanto póde.
Depois de instancias muitas , receando
Dar no silencio indícios de culpada ,
Expõe-lhe o nome , a pátria , e lhe refére
O da formosa Mãi funésto orgulho .

Inda bem não findava , eis do profundo


Remuge hum rouco estrondo , eis surde, ao largo,
Monstro , que vasto mar co'o peito abarca ,
Co'a fronte erguida sobreléva as ondas ,
E contra a cósta remessado invéste .

A Virgem , vendo-o vir , " ¡ Socorro ! " a gritos


" ¡ Socorro ! " clama. Accórre o Pai ancioso ,
A Mai sem tino ; desgraçados ambos ,
Mas ella com mais culpa desgraçada .
Não têm , não vêm trazer-lhe , algum soccorro ,
Mas pranto , a fados taes devida of'renda ,
E desesp rado horror . Ambos co'a triste
Prêsa filha se abração , se consternão .
11 *
212
O Estrangeiro então diz : » Para lamentos
" Póde haver tempo longo ; hum curto prazo
" Só ha para a salvar : se Eu , para Espôsa ,
" Vol- a pedisse aqui , Eu , Régia Próle
" De Jove , e da que Jove em chuva de ouro
" Na tôrre tornou mãi ; Eu , cujo braço
» Prostrou , sem vida , a Górgona vipérea ;
" Eu, que ouso alçar-me aos ceos com vôos livres ;
" Persêu , emfim , se a disputasse Espôsa ;
" Certo, que a mil rivaes me preferíreis :
» Mas tento , se me os Numes ajudarem ,
" Junctar a tantos dótes o mais digno ;
" O merecer Andrómeda ; eis o pacto :
" Se o meu valor a livra , he minha Esposa . "
Apraz o ajuste : ¡ e a quem descontentára ?
Os Pais, até com súpplicas lh'o firmão ,
E lhe of'recem , por cima , o reino em dóte.

N'isto , qual vóga com sonóra prôa


Lenho , impellido de suados remos ,
Tal o Monstro co'o peito as vagas rasga
Direito ás rochas , de que dista apenas ,

Quanto a funda balear co'o tiro alcança.


Na terra os pés com força repellindo ,
Foge o Mancebo , e se remonta ás nuvens .
A' sombra , que de lá no pégo estampa ,
213

A Féra , esbravejando , se arremessa .


Mas , como Aguia Real , que em raso avista
Lívida escâmea sérpe ao sol jazendo ,
Detraz a invéste , e , por vedar , que os dentes
Lhe revire , á cervíz lhe aferra as garras ;
Baixa dos ceos o Voador , de chófre ,
Contra o dórso ferino ; inteiro o curvo
Ferro lhe ensópa na direita espádua.
Ruge , e trovêja o Monstro co'a ferida ;
Ora se atira aos ares , ora ao fundo
Mergulha , ora se volve , e se revolve ,
Qual bruto javalí n'hum cêrco estreito
De ladradores cães desatinado.
O Argivo Heróe , voando sempre , illude
A boca enorme , que o perségue sempre ,
E , voando , retalha ás cutiladas ,
Quanto á flor d'agua assoma , agora o dórso
De conchas encrustadó , agora os lados ,
Agora , aonde a cauda se adelgaça ,
E acaba em peixe. A Féra ja vomíta
A hum tempo ondas de mar , e ondas de sangue.
Persêu , que d'estes sórdidos borrifos
Humedecidos os talares sente
Teme arriscar-se mais : nota hum penhasco ,
Que aos mares sobresahe , quando quietos ;
Quando agitadas , cobre se ; faz d'elle
214
Contrapé ; no penêdo mais visinho
Aferra a esquerda , e co'a direita armada ,
Debruçando-se , eis , tres , eis , quatro vezes
As entranhas lhe passa , e lhe repassa.

Com palmas , e clamores repentinos ,


Retumba a praya , os altos ceos se estrugem .
Exultão , vêm saudar seu bravo Genro ,
Por Salvador da sua estirpe o tratão
Cassiope e Cephêo. Sôlta dos ferros
A Virgem , da facção motivo , e prémio ,
Ao seu Libertador corre a dar graças .

Lava Persêu no mar as mãos ovantes ;


E, por temer , que o chão , co'a rija arêa ,
Lhe estrague a da Phorcynide Medusa
Anguícoma cabêça , huma de folhas
Fôfa cama lhe aprésta , e de hásteas molles
De submarinhas plantas. ¡ Ver as hásteas ,
Porque recentes são , porque inda vivem ,
Vel-as , pelo esponjoso da medulla
A abeberar-se do espantoso influxo ,
Do Monstro ao tóque a súbito enrijar-se !
Cóbrão dureza igual ramada e folhas.
Em muitas hásteas mais sendo tentado

Pelas Nymphas do Oceano este prodígio ,


215

Gostosas vírão sempre o mesmo em todas :


Extrabem-lhe a semente , ao pégo a lanção ;
D'onde os coraes nascendo , conservárão
Natureza confórme á sua origem .
O contacto do ar livre os enduréce ,
São vimes dentro n'agua , e fóra pédras.

De céspede aras tres ergue a tres Numes.


O Heróe : para Mercúrio , á séstra parte ;
A' dextra , para ti , Guerreira Virgem ;
Dos Numes ao Senhor consagra o centro...
i
Immola ao Nume Alípede hum Novilho ;
Huma Vacca a Minerva ; a Jove hum Touro.

Deixa a praya ; e do Sôgro aos Régios Paços ,


Sem mais dáte acceitar , conduz a Esposa .
Seus fachos Hymenĉo , e Amor appressão...
Fartão-se os fógos de subtís perfumes ;
Pendem flóreos festões dos tectos ricos.
Sôa a cythara , a flauta , a lyra , o canto ,
Com que o prazer geral se exprime , e accende.
Os amplos átrios , os salões garrídos ,
Se abrem de par em par , e ás láutas bôdas ,
Todos , do Estado os Príncipes concorrem.

Quando , ao fim do banquête , começavão :.


216
A diffundir-se os ânimos , co'os brindes
Do generoso , do encendido baccho ;
Perguntou-lhes Persêu pelos costumes ,
E Gentes d'estas partes tão remotas .
Lyncíde o satisfaz : Gentes , costumes ,
Lhe expõe depois do que , » Peço - te agora ,
" Fortissimo Persêu , " lhe diz , " nos contes ,

" Com que esforço, ou de que arte, huma tal Fúria ,


" De serpentes trunfada , a escabeçaste ?" &

O Argólico lhe narra , o como havia ,


Lá juncto ás fraldas do nivoso Atlante ,
Hum valle , enclausurado em fortes muros ;-
Que velavão no ingresso duas Gémeas ,
Filhas de Phórco , e dônas de hum só ôlho ,
Que no mútuo mirar mútuo servia :
Que elle huma vez , com mui sagaz astúcia ,
Lh'o apanhára , no lance , em que huma d'ellas
O estava dando á Irma ; que assim , mui livre ,
Podéra entrar ao valle ; e , caminhando
Por transviadas sendas , por verédas
Muito escusas , por fragas horrorosas ,
E amotinados bosques , emfim déra
Na pousada da Górgona ; topando
Até lá , pelos campos , e caminhos ,
Com mil , a cada passo , homens , e féras ,
217
Petrificados , só de ver Medush :
Mas , que elle , a bom livrar , lográra vêl- a ;
A propria , não , mas sua horrenda imagem ,
Repercutida no metal do escudo ,
Que a sinistra embraçava. Que sentindo-as ,
Todas , em fundo somno , as cóbras , e ella ,
Lhe cerceara o cóllo ; e que do jôrro
Do sangue impuro , rebentado bavia ,
Com outro Irmão , o alígero Cavallo.
Proségue , relatando os féros riscos ,
A que o pozéra o seu viajar tão longo ;
Que de terras sem conto , e mar sem termo
Lá de cima enxergára ; e que de estrellas ,
No atravessar dos ceos , roçou co’as azas.

Calou-se e inda os Convivas o escutavão.


Eis , que rompe o silencio hum dos Magnátes:
E , sendo tres as Phórcydes , lhe inquire ,
Porque razão , das tres , não mais , do que huma,
Tal côma houvéra , de dragões mesclada.
" Bem perguntas : " o hóspede lhe volve :
" Saberás pois a causa : esta de todas
» Fôra a mais requestada , a mais formosa ,
"E o principal seu dóte era o cabello ;
" Isto , o sei eu de alguns , que lh'o inda vírão :
" Dizem , que o Rei do Mar d'ella gozára ,
218
" De Minerva no Templo ; a tanto insulto ,
" Revíra a Deosa o rôsto ; os ólhos tapa 1
99 Co'a E'gide sagrada : e , não soffrendo ,

"Que a abominosa acção ficasse impune ,


" Parte lhe fez da trança em feios dragos. L

" Desde então , por memória , e para espanto


" Dos contrários na guerra , a Deosa Armada

" Traz de iguaes sérpes recamado o peito , "

18JY63
FIM

DO LIVRO QUARTO .

7
AS

METAMORPHOSES .

LIVRO QUINTO .
MUS
221

ARGUMENTO .

Emquanto nos Paços de Elrei Cephêo se estão


celebrando as bôdas de Persêu e Andrómeda , en-
tra Phinêu , tio paterno da Princeza , que , segui-
do de hum bando da sua parcialidade , a vem re-
vendicar : esposa , segundo lhe fora contractada .
Sólta rédeas á vingança contra o Heróe, e contra
o proprio Irmão ; por onde se atêa em Palacio , hu-
ma furiosa briga . Foge o Monarcha ; Persêu se fi-
ca só em meio de innumeraveis inimigos : Pallas,
Irma , e Protectora sua , lhe assiste . Forte com es-
te auxílio faz galbardías , e extremos de valor. Não
podendo porêm bastar com as armas contra a mul-
tidão , que de instante a instante recresce , desco-
bre a cabeça de Medusa , e petrifica a todos os
adversários , e ao seu chefe o cobarde Phinêu . Pa-

gina 229. Salvo d'esta pressa , faz volta para


Argos, sua pátria, acompanhado da Espôsa . Acha
seu avô Acrísio desthronizado por bum irmão, cha-
mado Préto , que então occupava aquelle govêr-
no: petrifica o uzurpador , e vinga generosamente
a Acrísio , de quem aliás tinha recebido não leve of
fensa. Pag. 242. - Assim vôa o Semideos de trium-
1202

pho em triumpho . Polydectes, reisinho de Seriphe ,


desvenerando-lhe os prodígios, o assoalha por méro
embusteiro, e embaídôr ; mas não tarda em haver a
mesma paga, que Préto , e Phinêu . Pag. 242.-
Em Seriphe , theatro d'esta derradeira vingança ,
Pallas, que até ahi acompanhára o seu Guerreiro ,
o deixa finalmente ; e abala n'humȧ nuvem pe-
los ares. Apórta no Ilélicon ; e péde ás Musas, Ibe
amostrem a Fonte Caballína, em que tanto se fal-
la; e cuja recente origem se attribue a huma pa-
tada do Pégaso . Esta sua curiosidade , não he ( se-
gundo ella diz) fóra de razão , pois que ella mes-
ma fôra testemunha da formação d'aquelle Caval-
lo, producto do sangue de Medusa . As Musas lhe li-
beralisão cortezia , e gazalhado : dão-lhe a ver a Fon-
te, e todo o demais da sua vivenda campestre, com
que a Deosa parece transportada em suaves invé-
jas , louvando a amenidade daquella solidão , co-
ino tão accommodada a todo o bom estudo. Huma
das nove lhe torna, que , em verdade , tem razão
de gabar as occupações , e sítio , em que vivem ;
c, que oxalá as não tornem para o futuro a distur
bar da paz , de que se alli gozão ; conta , a este
propósito , o desacato , que Pyrenêo lhes intentá
ra ; e o como fôra bem punilo. Pag. 243. + Inda
fallava a Musa, quando sa hum bando de pêgas,
223
que, lá dos cumes das árvores, saúdão a Companhia.
Maravilhadissima fica a Deosa com huma tal novi-
dade : a Musa, que o percebe, lhe conta d'aquellas
aves a seguinte história . Nove Donzellas havia , filhas
de Píero e Evippe, que, vaidosas com ser nove, da
Thessália , sua pátria , se vierão ao Hélicon , sa-
car insolentemente as Musas a terreiro , assim de
poesia, como de musica . Eleitas árbitras as Nym-
phas, a Piéride, que, em nome das mais, proposé-
rà o certame, ronca hum sacrílego poema em des-
honra dos Deoses . Calliope começa logo hum lon-
go canto ; cujo são assumpto Céres e o Rapto de
Proserpina . Pag. 245. - Saíra hum dia dos Infer-
nos Plutão , para explorar , se os terremotos , cau-
sados na Sicília por Tiphêo , Gigante , que sob
ella jaz , não haverião algures damnado a ter-
ra ; por onde seja para temer , que não haja , al-
gum dia , a luz diurna de romper até os Mânes .
Cupido , por amoestações, e rógos, de Venus , có-
The essa conjunctura para o ferir, e de feito o abra-
sa pela Virgem Prosérpina , filha de Céres e Ju-
piter. Plutão a rouba da margem do Lago Pérgo ,
e galópa com ella no seu Côche para o Infernos .
Pag. 248. - Diante se lhes atravessa a Nympha
Cyane, ideando embargar o roubo . Plutão rasga a
terra , e desapparece com a sua prêsa . Cyane , de
224
pena , se desfaz em agua no meio do seu lago. Pag
252.- Céres , na maior consternação com a falta
da Filha, entra, por toda a parte, de dia e noute ,
a procural-a. No seu correr , pára á porta de hu-
ma choupana , a pedir agua ; a vélha , dôna d'el
la , lhe offerece para beber huma confeição dôce ,
que a Deosa traga com soffreguidão. Hum cacho-
píto, de ruim condição, que isso vê, tem o despêjo de
a escarnecer; em castige he transformado em ós-

ga. Pag. 253. — Após largo perigrinar , baldas, e-


perdidas as esperanças , retorna a Deosa para a
Sicilia. Ja não existe a Nympha Cyane , que, só,
a podera informar do acontecido : mas no seu la-
go se depara a Céres hum claro e bom indício da
verdade ; he o cinto de Proserpina , que , tendo-
The caído , quando por alli passou, bóya ainda ao
de cima da agua. Desesperada contra aquelle paiz,
condemna-o á esterilidade. Sentida Arethusa da

desgraça de huma terra, aonde posto não tenha a


sua Fonte, tem entretanto estabelecido, como ella
diz , os Penátes da sua corrente , apresenta-se pe-
rante Céres , e lhe afiança , que nenhuma parte
houvera a terra em sua injúria : que Proserpina ,
arrebatada a seu máu grado , he Esposa do Mos
narcha dos Infernos , o que ella , Arethusa , sabe,
por da sua corrente subterrânea a ter lá visto : e ,
225
como esta corrente he, em verdade, singular, pro-
mette contar-lhe a sua propria história , quando,
chegar á Ortygia, para onde ora caminha a toda
pressa , e quando a vir mais desassombrada . Pag.
255. — Céres, como ouve aquella nova, vôa no seu
carro aos Ceos , e se apresenta a Jupiter , reque
rendo reparação da injúria, que Plutão, a ambos
lhes fez na pessoa de sua Filha . Consente Jupiter,
em que Proserpina volte dos Infernos ao Mundo,

sob condição, de não ter lá gostado cousa alguma ;


cláusula essa dos Fados, em que lhe não he dado dis-
pensar. Mas Proserpina, ¡i em maltinhaja comido
sete bagos de roma ; e d'isso havia testemunha , que
era Ascálapho, filho de Orfne, Nympha do Ache
ronte. Ascálapho accusa este facto contra o jejum
da Rainha ; que, em vingança, o convérte em mô>
cho. Pag. 258. D'esta metamorphose passa por
huma transição feitiça , mas engenhosa , a fallar
das tres Filhas do Achelôo , companheiras, que
havião sido , de Proserpina , e transformadas em
Serêas, depois do seu rapto. Pag. 260.Jupiter,
não podendo restituir a Filha a Céres, determina,
por equidade , que passará cada anno seis mezes
no. Inferno com o Marido , e seis no Mundo com
a Mai. Pag. 261. - Céres , ja mais contente, pé-
de a Arethusa o cumprimento *da sua promessa.
Liv. 5 .
226
Fábula de Alphêo e Arethusa , contada por ella
mesma. Pag. 261. Acabada está narração, Cé
rés apparelha o seu carro, tirado por dous dragões,
eu'elle chega a Athenas : dá-o de presente a Tri-
ptólemo J entregando-lhe ao mesmo tempo grãos
de semente, e recommendando-lhe, que vá espalhar
pelo mundo a agricultura. Obedece Triptólemo,
Chegado á Scythia , apresenta- se a elRei Lynco ,
e lhe declara o humanissimo empenho , que alli o
leva, Lynco determina matalo , para tomar a si
a glória de introductor de tal beneficio. Céres
o transforma em lynce, e , salvando a Triptólemo,
The ordena proseguir viagem. Pág. 266 Rema-
tado assim o Canto de Callíope, continúa a nar-
ração, que a Musa vinha fazendo a Pallas , do seu
desafio com as Pierides . Fôrão estas declaradas
vencidas pelas Nymphas , árbitras do pleito. Ale-
vantão-se contra a sentença, injurião, e affrontão
aspsuas Vencedoras , as quaès , por ja não poder
soffrelias, as convertem em pêgás ; que são as mes-
mas, que apparecem no bosque, e tanta suspensão
causárão em Pallas. Pag. 267. ten oboloq bu

DESCRIPÇÕES PRINCIPAES.
a moj omo?
Paginas.
Combate de Perseu com innumeraveis Conju-
rados na Sala da Bôda.. ju 229
227
Paginas.
Amenidades do Hélicon... 248

A Sicilia, sepulchro do Gigante Tiphêo ..... 248


Lago de Pérgo, e Proserpina apanhando flô-
res na sua margem. 251

Rapto de Proserpina . .. 251

Arethusa , sua formosura , seu génio, suas oc-


cupações.. · • 262

Gracioso Rio Alphèo. ... 262


Arethusa banhando-se... 263

sua corrida , fugindo do Alphêo ... 263


seus sustos , escondida na névoa ; e
impaciencia do Alphêo, procurando- a..... 264
Ju não koystubes ovog ob od
9 wordt ofre&
vonegs
adme.I

SAID 9 ozioni oji ob H


2

METAHORPHOGEO.

LIVRO V.
T

ssim á Noiva, ao Sôgro, aos Convidados


Entretinha, narrando, o Heróe Daneio.
Eis , ruidoso alvoroço atroa os A'trios:
230
Não he de pôvo conjugal descante ;
Senão feroz rebate. O festim lédo ,
Degenerado em trépido tumulto ,
Lembra o mar , que os tufões colherão liso ,
E , dos tufões entrado , estoura , espuma.

Phinêu , da sedição terrivel Cabo ,


Floreando na dextra ameaçadora
Hasta de rijo freixo e bronzeo guine ,
" Eis-me : venho vingar da Esposa o roubo , "
Vozêa , » d'esta vez , nem pés com azas ,
" Nem Jove feito em ouro , hão de valer-te. "
E ja brandia a lança ; " ;¡ Irmão ! ¡ que insania ! "
Brada Cephêo " ¡ que horror ! ¡ que atrocidade !
"¿
i Dos serviços , que ha feito , o prémio he esse ?
" Esse o dom por tal vida a nós salvada ?
" Sim , perdes na Princeza a noiva tua ;
rsêu ? Pe
Persêu
" i¡ Mas , roubou-t'a Pe rgunta aos factos ,
Pergunta
Quem foi, que t'a roubou : foi das Nereidas
"O implacavel rigor ; do Líbyo Jove
" Foi o preceito , o Oráculo funésto ;
" Foi o Monstro do mar , que estas entranhas ,
" Entranhas paternaes , vinha a tragar - me.
" Foi-te roubada Andrómeda ; mas foi-o ,
» Quando o seu cru destino a pôz a pique
De inevitavel , de affrontoso transe :
231

" Se ja não hes tão bárbaro , que d'isso, A


" E do meu lucto , bum júbilo aguardayas. £iil
"¡ Não basta', que a teus olhos a prendessem ! C
"¿i Que , sendo Tio , e Noivo , a não livrasses ? O
"¿ ¡ Inda te affrontás, de que alguem lhe acuda ?!
" ¿ ¡ Quitar-lhe o prémio vens ?! ¡ Se grande ojulgas ,
" Porque o não ías desprender das rochas ?
» Agora , ao que lá foi , que esta velhice 1
» Me livrou da misérrima orfandade , elgtis
" O ajuste meu , seus méritos a entregão ; K

" Não no prefiro a ti , prefiro á morte. "erminol


5.bal o pek
Phinêu , mudo , co'os ólhos devorando solid
Ja o Irmão , ja Persêu , nuta perplexo
Não sabe , a qual dos dous primeiro invista :
Mas logo , pondo na basta á fúria toda ,...¿
Contra Perseu a expéde : o cégo tiro.dioloo 10
Cravou no tóro, O Heróe, precipitado a s
Dos coxins salta , e a mesma lança , ao dôno 10k
Recambiada , lhe rasgára o seio, ver ochdan old
Se por detraz do altar não se occultára :
Valeo o altar (¡ que horror !) de escudo ao ímpio :
O golpe lá colheo na fronte a Rhéto.
Rhéto cahe ; mal do ôsso extirpa o ferro , brok
Co'o sangue, estrebucbando , asperge as mesas. !
Todos áquella vista ardem de raiva;
23
:2
Armas todos agitão : » Morte ao noivo in a s
Resôa , " e morte ao rei . » Mas ja n'essa hora
O Monarcha , invocando a testemunhas d
O Jus , e a Fé , e os Deoses da Hospedagem , ”
Como era vinda a seu malgrado a rixa , 4
A tumultuária Estancia abandonára .

Perseu ficára só : mas baixou Pallas ,


Co'a E'gide sagrada a ser-lhe escudo , F t.
E a lhe influir no árduo lance brios
Contra tantos , tão féros adversários . on cal
Athis , o Indio , entre elles se contava :
Limníace , do Ganges filha , (crê-se) den
Do Ganges o pario nas vítreas lapas ;
Seis annos sobre dez vigor lhe infundem.ous?
Ja formoso de si , realces novos Legalest
Dá co'o bello trajar aos dótes bellos ; ** ' i
Traz barra de ouro em chlamyde purpúrea , cal
Colar de ouro , áurea c'rôa , em que apertados I
Lhe exhalão myrrha os nítidos cabellos.
Mui déstro no acertar de longe hum dardo ,
Do arco no ¿ brandir mais déstro ainda. Bo
Brandil-o vai: o Heróe , que a tempo o nota ,
Leva da ara hum tição , com ellé , ao rôsto
Lhé desanda , e confunde-lh'o co'os óssos.:
Vendo-o cabecear n'hum mar de sangue ,
233
Acóde o Assyrio Lycabas , o amigo ,
O sócio , o que de amor lhe deo mais próvas ;
Chora-lhe o acerbo fim , toma-lhe o arco-
" A mim , Persêu , a mim , comigo. hestudo
» Vem, » diz, » que pouco tempo ha de alegrar-te
" A morte de hum mocinho ; indigna morte , i A
" Que , emvez de glória , te cobrio de infamia. „
Inda bem não ha dicto , e vôa a séta ;o obojda
Persèu a esquiva ; que no vão das roupas
Lá lhe ferrou , lá pende. Ao tiro baldo em no
Préstes o Acrisioníade responde
Co'o , bem provado em sangue de Medusa
Curvo Alfange ; nos peitos lh'o mergulha.
O'lhos , ja turvos co'a perpétua noute , o jad
Lycabas volve , a procurar seu Athis ;
Cáhe sobre elle : he feliz ; partírão junctos ! «
De Methíon o filho , Egipcio Phórbas , (
E o Líbyo Amphimedonte , ávidos ambos
De brigar , ambos junctos escorregão
No sangue , em que fluctúa o pavimento :
Vão para erguer-se , o arcado ferro o atalha ;
Rompe, a Phórbas, o cóllo , ao sócio , as costas.
Mas , não assim , de perto , o Acrísio Néto , A
Nem quer levar á espada a Eritho , próle
De Actor ; possante he esse , e as armas suas ,
Férrea , larga bipenne ; alça , ás mãos ambas ,
234
De sobre a mesa a amplissima cratera , os...
Carga enorme , aggravada, com rélêvos ,, into
E atira-lh'a eil-o em terra ; ondas purpúreas
A golfar , e co'a nuca o chão malhando, 1 !
Passa ávante ; derriba , huns após outros , A
A Polydémon , e A'baris , do tronco
De Semiramis , esse , este , Caucásio ; M
A Lycéto Sperchiónide ; com Phlégias , ante
E'lyce hirsuto , e Clyto , e tantos outros ,
Que ja montões de agonisantes pisa.
$
J
Phinêu, que o ja recêa haver de perto , #
Então , de largo , lhe desfecha hum dardo ; A
Erra o ponto , Idas fére : Idas , que inérte EC
Fôra atélli neutrál , o encara torvo : doved
" Pois que a tomar partido alfim me arrastão ,
" Phinêu , apprende , que inimigo has feito ;"
" O golpe teu » lhe diz » com este o pago. "
Descrava o dardo , quer vibral -o , as fôrças ,
Fallecem-lhe ; baquêa-se . Hum fendente
De Clymene , a seus pés despenha Odítes,
O immediato ao Rei na autoridade.
A Protenor , Hypsêu , a Hypsêu , Lyncíde
Estira . Anda por entre o borborinho
O Vélho Emathiôn , cultor do justo ,
Temente aos Deoses ; incapaz , por annos
2
285
De pelejar com armas , com discursos .
Inda batalha acérrimo , e t não cessaing othe
De maldiçoar as armas sceleradas :
O Altar co'as mãos trementes abraçava ,
Quando , hum revéz de Chrómis , lhe despede sh
A cabeça cortada acima da Aral: vnde
Inda , lá mesmo , a lingua moribundas on
Murmúra execrações , até que a vida si
Nas sacras châmas se lhe esvae de todo.
Ammon , e Bróteas , gémeos , invenciveis
No cesto , (mas do cesto espadas zombão) balla
Rúem , ceifados por Phinêu . Como elles , 7
Rúe Ampyco , de Céres Sacerdote , am (
Mesmo coroado co'os listões de neve.

E tu , tambem , Japétide , tu , feito y todĭ


Menos de Marte aos lances , que ás formosas i '}
Artes da paz , a cítharas , a versos ,
Tu , viéras Cantor , chamado á Bôda : all 0
Péttalo , que de longe o vio , pasmado , »
Em pé , sem abrir mão do plectro imbelle , A
"Aos Mânes do O'rco , " lhe bradou por mófa ,
» Vai de teu canto divertir co'o resto . 19
E a fonte esquerda lhe varou com hum bote : ./
Cahe ; mas , inda cahido , ás cordas brandas t
Branda harmonía extrahe co'os frouxos dêdos ;
Sólta a alma entre lúgubre toada.
236

Vinga-o Lycórmas ; leva , féro , a tranca


Da dextra pórta ; ao inatador a estála
Sobre a cervíz ; e deo com elle em terra
Como touro immolado em sacrificio ..
J'a o Cinyphio Pélate da esquerda 1
Roubar segunda tranca ; mas , na empresa ,
Co'o ferro o apanha Córytho Marmácio ,
E a mão lhe préga ao lenho ; Abante , o lado
Lhe rasga ; morre , mas não cahe ; pendente
Da mão cravada , fica. A terra médem
Melanêo , que do Heróe seguia as partes ,
E Dórylas , nos campos Nasamónios
O mais rico de terra , extensa , e fertil ;
Nas vrilhas , mortal sítio , obliquamente ›
Lhe entrou vibrado ferro ; o autor do golpe
Foi Halcyonêo da Bactria , o qual lhe disse
Como o vio nos arrancos do trespasso
O'lhos a pôr em alvo , » Ahi estás cobrindo ,
" De terra tanta , a só , que ficou tua,"
E lhe deo cóstas. Mas , de Abante o Néto
A lança quente do cadáver saca ,
E , vingador , lh'a atira ; essa , rompendo
Atravéz dos narizes , tão profunda
Mergulhou pelo cóllo , que metade
Ao rostó sobresahe , metade á nuca .
Emquanto assim Fortuna o favonêa ,
237
Mata a Clânis , e a Clyciò ; ambos nascidos
De huma só mãi , diversas mortes levão :
Hasta librada pelo braço invicto
Passa as coxas a Clycio , o outro , engóle
Dardo , em que os dentes moribundo ferra.
Tomba o Mendésio Celadon , succumbe
Astrêo , de måi assíría , e pai não certo .
Peréce Ethiôn , ja célebre Prophéta
Porêm fallido agora ; o Régio Págem
Thoácte , e o parricída infame , Agyrtes.

Contínuo vence o Heróe : porém contínua


Cópia maior o cerca ; e ja sem conto
As armas são , contra elle affervoradas.
De toda a parte exércitos recrescem
Da Facção , que nem méritos , nem pactos ,
Recompensas , nem fé , por jus admitte .
Persêu , e a boa causa , outros não acha ,
Mais que o piedoso Sôgro , emvão piedoso ,
A nova Espôsa , è a Mãi , que afflicta a ségue.
¡¡ Ah ! que pódem os tres ?! Chorar , carpir- se ,
Encher de alto alarído os Régios Paços :
Mas das armas o estrepito , os clamores
Do combate , e o aiár dos moribundos ,
Encóbrem seu chorar , seus áis , seus gritos.
Em torrentes de sangue os , ja violados ,
258
Penátes , vai tingindo a Márcia , Deosa 73 1
Que a pendencia feroz renova , *inflamma.
Phinêu , e mil com elle o Heróe rodêão : H
Tiros , mais bastos que invernal granizo , (
Por hum , por outro lado , ouvidos , ólhos ,
Lhe azôinào , lhe deslumbrão , lhe endoudécem .
Contra vasta columna o dórso arrima ,

E , ja sequér nas costas escudado ,


Faz brava frente ás ondas da batalha.

Apertão-no , Molpêo do Epíro , á sestra ,


O Arábio Ethémon , á direita : crua
Tigre , faminta , que mugir presente
Duas manadas em diversos valles ,
Na escolha pende a palpitar por ambas ;
A que parte primeiro descarrégue , f I
Persêu vacilla de Molpêo comtudo
Se livra , que , na côxa acutilado ,
Fugio ; não vai sobre elle , que nem tempo
Ethémon lhe concéde , antes , furioso ,
Ao alto esgrime , por ferir-lhe o cóllo . M
Mas a espada , que céga os ares corta ,
Vem da columna resvalando ao longo ,
Na baze assenta , estála , e a resaltante
Lâmina aguda na garganta o colhe.
Não de morte ferido , o temerário
Ja tréme , ja levanta as mãos inérmes;
1239
¡ Emvão ! emvão ! Persê , inexoravel , peling ofse
Co'o Cyllénio Terçado o avia aos mortos..
110 $1
Sentindo que ao V valor excéde a turba ,
" Pois que alfim me obrigaes » exclama »he força,
" Que na minha Inimiga auxílio busque. S M
"Se ahi tenho alguem por mim, que arréde os olhos . »
Diz ; érgue, ostenta , o rosto de Medusa !,
" Vai , co'os prodígios teus , pôr mêdo a outros ;
" Pouco tememos nós teus vãos prodígios, no >
Diz Thescelo ; dizendo , enrista a lança ; Ancylk
Eil-o , de lança em punho , estátua fria. A

Ampix , rija estocada apparelhavaos šili ugno.ī


Ao brioso Lyncíde , a mão lhe géla , M
Nem para traz ja vai, nem surge ávante.
Mas Nylêo , que , impostor , por filho illustre A
Do septêmvago Nilo se jactava ,
Nileo , que em seu escudo as sete fózes
1
Com prata e ouro tauxiado bavia , 10
Diz : Repara , ó Persêu , na origem minha ;
" E , por consolação , que aos Mânes leves ,
" Lembre-te o Heróe , que terminou teus dias. Y
Cessou-lhe em meio a frase derradeira, HIM,
Fica- lhe aberta a boca , a lingua he muda. )
E'rix então : Não são Gorgóneas forçass
" He vossa cobardia , a que vos tolher
240
" Segui-me , destruâmol-o , calquemos
» Hum vil , que a ataques mágicos recorre.
I'a para investil-o , a terra o prende ;
De marmoreo guerreiro he viva imagem.
Justo foi n'esses todos o castigo ,
Mas , em favor do Heróe , co'os mais de envólta
Combatia Acontêo , que , vendo a Fúria ,

Parou co'os mais petreficado , immóto.


Astyage , que o tôma inda por vivo
??
Com longa espada invéste-o , e tine a espada.
I
Como Astyage pasma , a essencia muda ,
E inda o rosto de pédra exprime o pasmo.
Longo fôra contar de tanto , e tanto ,
Nome de escura plébe : inda restavão
Duzentos do destroço , eis que duzentas
Novas estátuas o Palácio avérgão .

Ja lhe pêza a Phinêu da guerra injusta ;


Mas , que prol ? ¿ que remedio ? inda o rodêa

Trópa , e ¡ quão ampla ! em marciaes posturas


São , todos , são dos seus ; pelos seus nomes.
1
Os chama , os appellida , auxílio implóra. 4
¡ Mudez ! Mal póde crêl-o ; ao tacto acode ,
O que a vista inculcou , compróva o tacto.
i Tudo he mármore ! ¡ e mármore ! Recúa ,
E , espavorido o soberbão semblante ,
241
E postas as mãos súpplices , torcidas
Para a parte do Herée , que olhar não ousa ,
» Venceste-me , ó Persêu , venceste , " exclama .
" Remove os teus lethaes encantamentos ;
" D'essa , quemquer que seja , atroz Medusa
" Some. o Rôsto fatal : se te fiz guerra ,

" Não foi por ódio a ti , por ancia ao Throno ,


" Foi , só , foi por manter de espôso os fóros .
" Teu Mérito , deo força á Causa tua ;
» Mais antigo porêm nieu jus nascera .
" Não , não me corro de ceder-te a Palma ,
" Fortissimo Persêu ; só péço a vida ;
» Péço-te a vida , e tudo o mais te rendo. "

Ao Rogador , que de encaral-o tréme ,


Elle então : " Quanto cabe em pósses minhas
" Vilissimo Phinêu , (desterra sustos)
" Préstes aqui me tens para outorgar- t'o ;
" Dom, para hum tal cobarde , insigne, immenso :
" Serás sempre , eu t'o abono , immúne a ferro.
" Farei mais ; por te dar perpetuidade ,
» Estátua erguida a ti serás tu proprio :
" Do Régio Sôgro ficarás nos Paços ;
" Porque nunca , revendo a imagem tua ,
» Nas saudades do Espôso a Espôsa esfrie. "
Diz : e o braço alongando áquella parte ,
Liv. 5 . P
242

Em que o trépido réo tem fito adrêde


O fugidío olhar , súbito , a vista
Lhe assalta co'a Phorcynida Carranca :
Pela desvêr o mísero forcêja
Quer o cóllo voltar , jaz hirto o cóllo ;
Jaz dos ólhos o humor coalhado em pédra :
He mármore ; inda mármore comtudo
Conserva no semblante o mêdo , as préces ,
A humildade no gésto , as mãos alçadas.

Triumphante o Abancíade , co'a Esposa .


Volta de Argos natal aos Pátrios Muros.
Lá , Préto , Irmão de Acrísio , então reinava
Do expulso Irmão sobre o usurpado Sólio.
De Acrísio , seu Avô , deslembra offensas ,
E só vê o desastre , o Heróe Guerreiro .
Protestou de o vingar : invade a Préto ,
Co'o Monstro . Serpentígero na dextra . 1
Contra os influxos da visão terrivel ,
Nem fortes Cidadellas conquistadas ,
Nem possantes. Exércitos valêrão ...

De triumpho em triumpho assim voava


O afamado Persêu . Mas próvas tantas
De infortunio , e valor , inda não bastão
A te mover , 6 duro Polydéctes ,
243
Vaidoso Rei da ilhêta de Seriphe.
Votaste-lhe ódio eterno , acérbo , injusto ;
Contra elle a teu furor não pões limites :
Zombas-lhe do renome , e dás por conto
O grão boato de prostrar Medusa.
" Se he verdadeiro , ou não , vêl-o-has agora.
"Fechai os ólhos , Vós. " Assim dizendo ,
Saca aos ares Persêu Gorgóneo Vulto :
E eis feito o contumaz exangue seixo.

Do Aurigénito Irmão téqui na guarda


Sócia Pallas corrèo : mas em Seriphe
O larga , em nuvem côncava se parte ,
Deixando Cythno , e Gyaro , á direita ;
Enfia o vôo , que antolhou mais curto ,
Por sobre o mar , na direcção de Thébas ;
De lá se expéde ao Hélicon Virgíneo ;
Desce : e ás Doutas Irmãs d'esta arte falla :
" ¡ Ouvi , que o Meduseo Cavallo aéreo
" Rompêra , a golpes do ferrenho casco ,
" N'esta vossa Montanha , amêna Fonte !
" Ancia de a ver , me traz. Brotar do sangue
" O Pégaso , vi Eu ; mas , para assombros
" Não vem menos cabal este prodígio . 99
" Qualquer que seja a causa , " acóde . Urânia ,
" A' nossa habitação sempre hes bem -vinda..
P *
244
" Quanto á Fonte porêm , foi certa a fama ;
" O Pégaso a rompeo. " E a guia á Fonte.
Pasma a Deidade , longo prazo , absôrta ,
Que hum pé rasgasse tão caudal Nascente :
Corre depois co'a vista espairecida
As sacras , umbrosissimas floréstas ,
As grutas frescas , o matiz donoso
Das boninas na terra alcatifada .
" ¡ Sejão-vos parabens d'estes regalos ! "
Diz ella ; " dou-vos Eu por mui felizes ,
" Que haveis estudos taes , em sítios d'estes . ”
" O ' Tritónia , " responde huma das Musas :
" Tu , que , se o teu valor não te envidára
" Mais altas glórias , entre Nós serias ,
" Razão tens de os louvar , estudo , e sítio .
" Dôce he nosso viver , se o não turbarem :
" Mas , ( ¡ onde ha contra os máos seguro asilo !)
59 Virgíneos corações assusta hum nada .

» Inda ver Pyrenêo se me afigura ;


» Inda em mim não tornei : contar-t'o devo .

" Conquistára o feroz co'as Thrácias hóstes


" Os Dáulios , os Phocêos : toda essa terra
" Lhe soffria o tyranno , o férreo jugo.
" Ao Templo nosso , no Parnásio Sêrro ,
» Indo Nós huma vez , acerta o I'mpio
245
De nos ver ao passar ; com falso culto
" Se vem a Nós : - Mnemónides Deidades , -
» Nos diz , (o Enganador nos conhecia)
99- · Detende-vos , sequer ; e em minha estancia ,
» Emquanto dura a chuva , entrai , vos péço , –
99 ( Rijo ía o temporal) -ja por choupanas ,
" Menores que esta , se albergárão Numes . ---
» Moveo-nos o máo tempo , e o bom convite.
" Acceitamos : e ás Régias Antesalas
99 Seguimos o traidor . Parára a chuva ;

" Aquilão succedêra aos rijos A'ustros ;


» I'a limpando o ceo : partir dispomos ;
" Eil-o , as pórtas nos fecha , e ja se aprésta
» A usar comnosco de brutal violencia .
» De azas , por lhe escapar , nos revestimos :
E abrimos vôo ao ceo. Burlado , e . louco ,
"9 Do Palacio ao pináculo se assôma ;
" Cubiça de voar em nosso alcance ;
99- i Pelos ceos me fugís , por lá vos sigo !
" Clama insensato : e da medonha altura
» Arranca hum salto : de rondão revolto
" Pelos ares mergulha , e face em terra
" Da , estoura : entre os óssos dispartidos ,
" Do seu sangue n'hum mar , lá jaz , lá morre . "

Iuda a Musa fallava : eis que resôão


246
Revoadas no ar ; e logo , vozes
De saudação nos píncaros da sélva :
E'rgue os olhos de Jupiter a Filha
A procurar , d'onde estas frases cáião ;
Que de humanas dão ar : mas não vê homem ;
Aves só vê. São essas , nove pègas ,
Que , pousadas nos ramos , se lastimão
Co'a voz sagaz , com que arremédão tudo . ན

A Musa , que no enleyo lhe repara ,


» São , " lhe diz , " esses pássaros tão novos ,
" Que , inda muito não ha , que erão donzellas :
» N'hum certâme poetico vencidas
" Dérão , no que teus olhos estão vendo.

" Piero , em Pellêos campos abastado ,


" Foi seu pai ; sua mãi , Péónia Evippe :
" Vezes nove invocando a grão Lucina ,
99
» Evippe de hymenêo deo nove fructos :
" Fez-lhes vanglória o número ; correrão ,
" De cidade em cidade , Hemónia , Acháia ;
" Chegão cá e d'esta arte nos provócão :
-Findai , findai , Thespíades , que he tempo ,
" Vans melodías , seducção de nescios .
" Se tanto presumís , cantai comnosco :
" Na doçura da voz , no esmero da arte ,
247

" Não nos ganhais ; sois nove , e nove somos.


" Hypocréne , e Aganípe , a ser vencidas ,
" Cedel-as-heis a Nés ; se obtendes Palina ,
" Ficão domínio vosso os largos campos
" Da Emathia , aos cumes dos Péónios gêlos :
" Pódem servir-nos dé árbitras as Nymphas.-
" Se a contenda era affronta , a mór affronta
" Nos pareceo fugirmos da contenda...
" Juramentadas pelos Sacros Rios ,
" De manter seu direito ás partes ambas ,
" Tômão assento no rochêdo as Nymphas ;
99 Compõe-se o Tribunal . Sahe de repente ,

» A que em nome das mais propoz a lide ;


" Sem aguardar sorteio , encéta o Canto. }
" A Guerra dos Celícolas relata :
» Mente elogios aos crueis Gigantes ;
" Dos Altos Numes attenúa os Feitos .
" Diz , que Tiphêo , da baixa terra erguido ,
" Pôz do Ceo perturbado em fuga os Numes ;
" Que só fôrão parar lá , onde abrigo
» Lhes deo septêmfluo Nilo , Egípcia terra ;
" Que , até lá , triumphante, os perseguíra ..
" Terrígeno Tiphêo ; de quem medrosos ,
Em falsas fórmas se agachárão todos .
99- Jove mesmo , disse ella , - o proprio Jove
» Fez-se 'carneiro , de hum rebanho guia ;
248
" Inda Líbya lhe adora as curvas pontas :
" Délio foi côrvo : o filho de Seméle

" Capro foi ; huma gata a Irmã de Phebo ;


" Juno , cândida vacca ; Venus , peixe ;
" I'bis o caducífero Mercúrio. -
" E da cíthara ao som deo fim seu canto.

"" Seguio-se a nossa vez ; mas... temo, ó Deosa,

" Que te falte vagar para escutar-nos. "


"¡ Oh! nem vagar, nem gosto , ” acóde Pallas ;
"Segue-se o Canto vosso ; anhélo ouvil-o . "
E tôma , entre Ellas , na viçosa rélva
Facil assento do arvorêdo á sombra.

" Calliope , " a Méónia continúa ,


" Por todas Nós se encarregou do pleito :
Surge , de héras c'roada , esparsa a côma ;
" Das maviosas , das gementes córdas
» Extrahe dôce prelúdio : e canta á Lyra.

99 -----Quem primeiro estreou na terra virgem

" O arado creador , primeiro aos Póvos


" Deo macío sustento em áureas mésses ,
" E em meditadas Leis Costumes , Pátria ,
" Céres foi : tudo he dádiva de Céres .
" Quanto Ella he digna de formosos cantos ,
" Possaes vós , Cantos meus , ser dignos d'Ella.
249
Dos abismos do mar circumsonante
" Surge a Trinacria vasta ; a cujo pêso
" O colossal Tiphêo jaz sotoposto.
» Ao que tanto dos ceos contou co'a pósse ,
" Nas entranhas da terra alli o affrontão
" De bastas sérras horrorosas massas .
"A miude barafusta , e luta erguer-se ;
» Mas , sobre a dextra mão lhe está pesando
" O Itálico Pelóro , o grão Pachyno
" Na esquerda , o Lilibêo lhe opprime as pernas ,
" O E'tna lhe afunda a túrbida cabeça ; 1
" O E'tna , por onde as fáuces do raivoso
99 Rójão trovões e fumo , incêndio e lava.

" Cança co'a bruta carga o corpo bruto ;


» Sacudir-vos então de si forcêja ,
" Altas cidades , torreados montes :
" Retrémne a terra ; enfia o Rei das Sombras ;
" Que ja , por boqueirões , se o sólo os rasga ,
» Présume entrar-lhe a luz, turbar-lhe os Mortos.

" Com esta apprehensão , monta a rolante ,


" A'tra Quadriga sua , e sahe do Averno ;
,, Estuda , em derredor lustrando a Ilha ,
" Dos fundamentos d'ella o estado , a força.
" Vê tudo firme ; despedio cuidados :
" E deo a espairecer por breve espaço
250
" Ao tão fresco , e tão claro , e tão risonho
" Ar da supérna vida . Eis que. Erycina
" Do seu Monte , onde então se reclinava ,
" O avista ao longe , o reconhecé ; exulta ,
» Corre , e diz , abraçando o Filho alado : **
"-Filho , meu Braço , meu Poder , meu tudo ,
» Amor, tôma os farpões, que a ninguem poupão,
" Fére o Nume , ja , ja , fére -me o Nume ,
» A quem Terceiro Império as Sórtes dérão.
» Tu domas os do Ceo , té mesmo a Jove ;
" Os do Mar, e o que os rége , a Ti se humilhão :
" Privilégios , que ao Mar , que ao Ceo, negamos ,
" ¡ Dal-os-hemos ao O'rco ! Ah ! ¡ porque tardas
„ Em dilatar teu nome , e nosso Império ?
"¡ Perder , perder hum têrço do Universo !
" ¡ Que digo ! O proprio Ceo, tão nosso hum tempo,
" Ja ¡ oh vergonha ! ¡ oh dôr ! nos vai fugindo ;
" Vê Pallas , vê Diana , a Caçadora ;
" i¿ Fazem conta de mim ? Pois , não he tudo :
" Que de Céres a Filha , a exemplo d'Ellas ,
99
» Ficará virgem , se lh'o Nós soffrermos .
» Se inda te importa , ó Filho , o nosso Reino ,
" E desejos da Mãi comtigo valem ,
" Vôa , fére , une a Deosa ao Tio Nume .

" Disséra : abre Cupido o cóldre cheio ,


251

» E extrahe , de mil farpões , o que Ella escolhe ,


" O , que, em certeiro, e agudo , aos mais excéde.
" O arco invencivel no joelho acurva ,
" Põe alvo em Dite , o coração lhe rasga .

» Jaz , não distante de Enna, hum Lago fundo :


" Pérgo he seu nome ; a gorgear-lhe as margens
" Não tem mais cisnes lúcido Caystro ;
" C'rôa as aguas selvática espessura ,
" Que debruça , que alonga , que entretéce
" Vasto , frondoso véo , que os sóes não, rompem.
» Entórnão dôce fresco as ramas verdes ;
" Pulão do húmido chão variadas flores ;
» Reina, odóra , e contínua , a primavera .
» Lá se andava Proserpina folgando :
" Colhendo aqui bum lírio , alem violêtas ,
" Co'as Sócias apostada , a qual mais breve
(i Doces cuidados de innocentes annos ! )
" (¡
" Cêsto , e regaço , os encherá de flôres .
" Eis , (rapidez de amor excéde a todas)
" A vê , a adora , a rouba , o Rei do Averno.
" Toda mêdos e assombro , a semventura
" Por sua Măi, por suas Sócias grita ;
" Porêm mais pela Mai , que pelas Sócias.
" Nas âncias da afflicção lacéra as véstes ;
" As boninas , no gréinio enthesouradas ,
252
" Cahem-lhe aos pés , desparzem-se na terra :
" i¡ Vêde agora a infantil simplicidade !
" O perder flôres taes lhe ha dado pena ..

" O Roubador , affervorando a fuga ,


" Brada a cada Frisão pelo seu nome ,
" Co'as rédeas negras lhes açouta os cóllos ;
" Atravessão , trotando , os fundos lagos ,
" Os Palícios marnéis , que estão , ferventes ,
" Sulfúrea exhalação mandando aos ares ,
" E o sítio , onde seus muros erigírão ,
" Entre dous pórtos desiguaes, os Bácchios,
" Oriunda gente da bimar Corintho.

» Mette o mar , entre Cyane , e Arethusa ,


„ Huma abra pela terra , onde vivia ,
" Das Nymphas da Sicília a mais famosa ,
99 Cyane , a propria , que deo nome ao lago.

» Essa , á passagem do troante Côche ,


" Meia surge do pégo , e , conhecendo ?
" Roubada e roubador , - Detem- te , exclama ,
99- A'vante não ireis : máo grado a Céres ,
" Não serás Genro seu. Para pedida ,
" Que não para roubada , era essa Virgem .
" Se cabe exemplo humilde em grandes cousas ,
" Citar-vos pósso o meu ; que fui de Anápis
253
" O enlêvo , o encanto , o ídolo , a cegueira :
" Sim , veio a me alcançar por sua espôsa ,
" Mas , a poder de súpplicas , de vótos ;
" Não , como essa , aterrada , espavorida. -
" Diz : e, os braços abrindo, oppõe-se aos Brutos.
"Ja não tem mão na cólera o Satúrnio ,
" Incitando os terriveis Corredores ,
» Prompto arremessa co'o possante Braço
„ A's entranhas do pégo o Sceptro Augusto.
" Rasgada a terra ao golpe , abre ampla estrada
"A's Regiões da Morte , e sórve o Côche
" Pelo átro boqueirão redemoinhado.

" Mas Cyane , chorando amargamente


" Da Deosa o rapto , a affronta do seu Lago ,
" Curte em silencio dolorosa f'rida :

" Toda se gasta em lagrimas teimosas ;


" Toda se esvae , desfeita n'estas aguas ,
" N'estas, de que, inda ha pouco , era alto Nume.
" Víreis , ir-se-lhe o corpo embrandecendo ,
" Os óssos , ja tornando-se flexiveis ,
" Unhas , molles ; primeiro , se derréte ,
" O que he mais ténue ; cérulos cabellos ,
" Dêdos , mãos , braços , pés ; porque a mudança
" Do menos grosso em lympha era mais fácil.
» Seguem-se hombros , espaldas , peitos , lados ,
254
" A fugir em torrente ; emfim , nas vêas
" Ao sangue dessorado agua succede :

" Nada lhe resta , que apanhar- se póɛsa.:

" Não cessava no entanto afflicta Céres


" De correr terra e mar , buscando a Filha :
" No mesino desatino a recontravão ,
" Ao fim da noute, a Aurora, a Hespéria Estrella ,
" Ao desfazer da luz ; com dous pinheiros ,
"Apertados nas mãos , e accesos no E'tna
" A' hora do crepúsculo , perlustra ,
» Sonda , interróga as trevas orvalhosas.
" Larga-os , como percebe esvaír de astros
" Ante o arreból diurno ; e em novas àncias ,
25 Vai, vem, dos ceos do Eóo, aos ceos do Occaso ..

» Déra-lhe sêde a asperrima fadiga , 1


" E não tinha parado em fonte alguma :
» Vê choupaninha , que recóbrem côlmos ;
" Bate á pórta ; huma vélha acóde a abrir- lb'a ,
"Que , ao pôr ólhos em hóspeda tão guapa ,
" E sabendo , o que a traz , corre aguçosa ,
» E lhe appresenta , em púcaro de barro ,
" Por agua hum doce líquido succoso ,
" Em que ferveo , polenta : não de esmêro
" O brinde foi ; mas , dava-lhe , o que tinha,
255
" Como tal o recebe , e , como néctar ,
" A'vida o leva á bôca 9 o sórve a tragos
" A Deosa sem parar : hum cachopinho ;
" De condição protérva , e lingua préstes ,
" Vendo tal , sahe da chóça , encara n'ella ,
" Dispara em riso , e soffrega lhe chama.
" Ao gôsto do beber deo mate a ira ;
" Alça a Deidade o vaso , e , quanto ha n'elle ,. "
" No petulante o embórca . Eis - lhe no rosto
" As alvas manchas da farinha impressas :
" Fazem- se os braços pérnas : todo o corpo
" Se tresfigura ; ja lhe accresce cáuda ;
99 E , para que offender não possa tanto ,
" Céde em tamanho á propria lagartixa.
" Corre açodada a vélha após do monstro ,
" Absôrta , aos áis , em pranto debulbada ;
" Quer-lhe, ao menos, tocar : i; baldado empenho !
» Sumio-se n'huma tóca , e desparéce .
" Inda comtudo existe ; inda hoje guarda
» Signaes das gôtas na estrellada pélle :
» D'onde nome lhe ha dado a Ausónia Gente .

Longo fora apontar , que terras , que ondas


» Céres peregrinou d'essa hora ávante :
,, Findava o órbe , e não findava a busca.
" Volve á Sicânia , a escudrinhar de novo ;
256

" Torna a Cyane : ¡ oh ! Cyane , vio tudo ;


" E tudo , quanto vio , narrar podéra ;
" Porêm, Cyane, he Lago ; e hum lago, he mudo .
" Claros indicios do successo infando ,
" Todavia lh'os deo ; porque á flor d'agua
" Lhe mostrou aboiando o proprio cinto ,
" ( ¡ Ai ! ¡ quão lembrado dos maternos ólhos ! )
" O cinto , o mesmo , que ao transpôr do pégo,
" Proserpina , alheada , alli perdêra .
" Com ver tal prenda , a Mãi , qual se do rapto
" Só lhe então rebentasse a crua nova ,
99 Desgrenha, dilacera , as tranças nuas ;

" Novamente co ' as mãos contunde o peito :


" Qual terra lh'a detem , não sabe ainda ;
" Como a detem alguma , incrépa a todas :
" Chama-as ingratas , de seus dons indignas ;
" A Trinácria mormente , a vil Trinacria ,
" Onde co'as móstras do seu damno encontra.
" Quebra, os arados com feroz despeito ; o.
" Lavradores , e bois , entrega á morte ;
" E , os gérmes viciando , ordena aos campos ,
" Que a emprestada semente ás fouces néguem .
"¡Adeos , fertilidade , adeos , searas
» D'este sólo , afamado em toda a parte !
" Vós murchais , vós morreis , surgindo apenas ;
" Agora o Sol vos daina , agora as chuvas ;
257
99 Ligão-se 9 em vossa perda , o vento os astros ;

" Cobrem as leivas pássaros damninhos :


" Abrolhos , joió , e grama , afógão tudo .

" Eis que a Sócia de Alphêo se érgue das ondas :


" Do semblante os cabellos orvalhosos
" Para os lados arreda ; e assim lhe falla :
" Mãi da Virgem buscada em todo o mundo ,
„ Mãi das mésses , dê fim teu grão trabalho :
" Contra a terra fiel não mais bravêjes ;
" Não te vem d'ella o mal : forçadamente
" A esbulhárão de hum bem , que he mágoa de ambas .
" Não cuides, que estes rógos, m'os inflúa
29 Int'resse , ou pátrio amor ; n'estas paragens ,
" Sou forasteira , e hóspeda : Sicília ,
" Entretanto a prefiro ao mais d'esse órbe :
„ Aqui puż minha séde , e meus Penátes ;
" O' tu , das Immortaes a mais benigna ,
„ Minha vivenda , o meu retiro poupa .
" Quanto ao motivo , que atravéz das vagas
» De mar tão ampló , me conduz tão longe ,
" A demandar a Ortygia , hora opportuna
» Virá de t'o eú narrar , quando mais livre
" De cuidados te vir , mais léda em rôsto .
" Só te agora direi , que peregrino
" Pelas entranhas lôbregas da terra ,
Liv. 5 .
q
258
» Tanto , que só aqui resurjo a fronte ,
" Por consolar co'a vista das estrellas
" Meus olhos , ja de as vêr descostumados .
» Saberás pois , que ao transpassar da Styge ,
" Lá vi tua Proserpina ; tristeza ,
‫ وو‬Não t'o nego , inda a mostra , e nem de todo
" O terror lhe passou : mas , he Rainha ;
" He Maioral d'aquelle Mundo opáčo ;
" He do Tartáreo Rei possante Espôsa .

" Confusa , do que ouvio , ficou de pédra


" Por largo prazo a Mãi : lutárão luta

» Invisivel , acerba , a dôr e o pasmo ;


» Venceo ao pasmo a dôr. No ethéreo Côche
» Disfére vôo ás regiões do E'ther ;
» Apresenta -se a Jove : as nuvens d'alma
"" Nas despeitosas faces lhe ressumbrão :
" E em desprêzo o cabello ondêa esparso.
.Por meu , • e por teu sangue , orar te venho ,
" O ' Jupiter , -lhe diz ; -se a mai não vale ,
" Valba a Filha ante o Pai ; ¡ oh ! não na engeites,
" Não lhe négues favor , só por ser minha.
" Ja , finalmente , a achei ; se por ventura
" Certeza de a perder se diz achal- a ,
" Ou se achal-a se diz o saber d'ella :

" Ja perdôo a traição , relevo o rapto ,


259

» Desculpo tudo emfim , mas , que a reponha.


„ Sim , reponha-a ; que á Filha do Tonante
99 (A'minha não direi , pois não he minha) ·
» Mal cabe ser de hum Roubador Consórte .
"Jove a interrompe : --- De Ambos Nós he Filha ;
E mútua protecção devemos -lhe Ambos :
» Porêm , se o proprio nome ás cousas dermos ,
" ¿i Que fica a injúria ? Amor. Tal Genro, ó Diva,
" (A consentil-o tu) não nos desdoura :
" Inda sem outros titulos , sobrára
" O ser de Jove Irmão ; porêm , tem outros :
" Só eu , nas pósses , no domínio , o vençó ;
"E o vencel-o , inda assim , pendeo da Sórte .
"Mas , se tens tanto a peito o seu divórcio ,
„ Embora á luz Proserpina retorne ,
" Como ja não tomasse , (he lei das Parcas ,
" E das Parcas as leis não quebra Jove)
" Depois que entrou no Avérno , algum sustento,

» Dá Céres por seguro obter a Filha :


"Ruins Fados se oppoem ; que he ja quebrado
" O jejum da Donzella . Errando á tòa
" Pelos Jardins do Principe dos Mânes ,
" Colheo roma córada em ramo curvo :
" E sob a loura casca huns sete bagos
" Extrahio , mastigou: Sómente a víra
11
q *
260
99 Ascálapho , que dizem filho de Orfne
,
„ Das Avernaes não muito ignóta Nympha ,
" Que , do seu Acheronte concebido ,
" O déra á feia luz nas lapas negras .
" Vio-a Ascálapho , e , o visto revelando ,
99 Impedio-lhe inhumano a vólta ao Mundo .
" Consternada do E'rebo a Rainha ,
" N'huma ave odiosa o delator convérte ,
" Com só lançar -lhe Phlegethônteas lymphas :
" Vêl -o , em grande cabeça abre ólhos grandes ,
" Bico alonga , nos pés recurva as unhas ,
" Arquêa os braços em ronceiras azas ,
" Véste o corpo não seu de escuras pennas ;
" ¡ Ave hedionda ! que annuncía os luctos ,
" Inérte Môcho emfim , de agouro aos homens.

" Por justo pôde haver-se este castigo :


" i Mas a Vós , do Achelôo ingénua Próle ,

" Bellas Virgens , a Vós , quem vos ha feito
" Os pés , os vôos , a plumagem , de aves ,
" E as gentís faces vos deixou de humanas ?
" і Quem do infortúnio vosso , almas Serêas.
" Me atinará razão , que á lyra entôe ?
" ¡ Seria , que a do roubo hora minguada
» Vos achou de Proserpina entre as Sócias ,
" A' colheita das flôres , na tão verde
261
» Mansão da Primavera ! i Oh ! sim , que as mesmas,
" Quaes lhe foreis télli , fieis nos gostos ,
» Nos trabalhos fieis tambem ficastes.

» Depois de emvão catado o térreo glôbo


"A' vossa diligencia o mar faltava.
» Azas , para o remar , ligeiras azas
" Cubiçastes então : mui faceis Numes.
" O ouvirão , que surtio a ponto o rôgo.
" De improviso emplumadas lourejastes.
" Comtudo , porque á vossa melodía ,
" Dos ouvidos enlèvo , e ás frases dôces
" Não faltasse na lingua hum meio idóneo ,
» Conservastes o rôsto , a voz de humanas.
1
» Entre o Tartáreo Irmão e a Irmã chorosa
99 Jupiter por igual reparte o anno :

» Em mundos dous Proserpina Deidade


" Seis mezes vem á Luz , vai seis ás Trévas ;
» Tanto tempo he da Mãi , como he do Espôso :
" De ânimo , e rôsto , de repente muda ;
» Lá , té mesmo a Plutão parece triste ;
» Dourão-lhe a face júbilos , mal sobe ;
" Qual sol , que hum'hora desparece em nuvens ,
" Outr❜hora as rasga , e triumphal resplende..

" Flava Céres , que alfim tem recobrado


262

" Seu querido penhor , mais léda em rôsto ,


Volve , ó branda Arethusa , á margem tua :
" Quer-te as razões ouvir , porque viajas ,
"E , d'onde te provêm, que hes sacra Fonte.

" D'entre as ondas , que súbito emmudecem ,


» E'rgue a Nympha a cabeça, e, co'as mãos alvas
" A verde trança mádida espremendo ,
*
"Conta do Rio Alphêo velhos amores.
" Fui eu Nympha , sempar entre as da Acháia,
" Ja no atinar co'a veação nos bosques ,
" Ja no dispôr , no apparelhar das rêdes :
„ Nunca aspirei a gabos de formosa ,
" Aos de valente , sim ; mas , tive-os todos .
" Andárão d'esta vez lindeza e força
" Irmanadas na fama. Era-me enfado
" Ouvir , contínuo , festejar meu rosto :
" E até , de agreste , em pêjo me encendia
" Por dótes , de que as mais folgar costumão :
" No agradar a qualquer tinha desdouro .

" Da Stymphália florésta , ( ¡ inda me lembra ! )


" Fatigada , voltava hum certo dia ;
» Grande era a calma , é a lida m'a dobrára :
„ Dou n'huma veia d'agua ; agua tão mansa ,
" Que não ha hi notar-lhe hum só remoinho ,
263.

" Sentir murmúrio , ou perceber , se corre ,


"E tão clara , que o álveo espacioso
" Deixa contar seus mínimos seixinhos :
" De brancos salgueiraes , e densos choupos ,
" Que nutre a fresquidão , cabia á farta ,
" Graciosa sombra nas declives margens.
" Eu , que ao rio desci , co'o pé curioso ,
» Muito de leve , o encéto ; eis mais afouta ,
"O afundo , até a curva , e , namorada ,
" Cada vez mais , de tão gentil regalo ,
" Desaperlo-me ; as roupas , pouco e pouco ,
" Penduro de hum salgueiro ao curvo ramo
» É nua salto ao rio de mergulho .
" Por modos mil os braços revolvendo ,
" Nado em mil posições no aquoso vidro.
" ¡ Hum , não sei que susurro , eis sabe do fundo !
» Tremo , e juncto da margem mais visinha

"Tômo súbito pé. i Para onde foges ,


" Arethusa ? diz , rouco , sob as aguas ,
» O Alphêo ý —¿Para onde foges , Arethusa ?.
" Fujo , mesmo assim nua ; a opposta riba
" Co'as véstes me ficára : em mais incêndios

" Férve o Deos , com mais ância me perségue ;


" Despida vou , mais préstes lhe pareço .
" Eu tímida , elle féro , ambos voamos ,
" Qual ante açôr pombinha espavorida ,
264
" Qual sobre alva pombinha açôr cruento.
" Ainda até Orchómeno , e Psophíde ,
"Sacro Cylléne, Ménalo brenhoso ,
" E gélido Erimantho, e campos de E'lis
» Sustive a fuga , e porfiei-lhe a palma :
" ¡ Ah ! ¡ ¡ contra hum Rio a longo curso affeito
„ Eu , Nimpha , eu , menos forte , o que podia ?!
» Ja , deitar muito ávante , era impossivel ;
» Inda corri comtudo extensos pláinos ,
" Vinguei montes enleados de espessura ,
» Róchas galguei , transpuz despenhadeiros ,
" E , por onde os não ha , rompi caminhos :
" Dava o sol por detraz , vi , se he , que o mêdo
" M'a não fazia ver , sombra gigante
» Preceder-me ; sentia , espavorida ,
Rápido som de pés , e hum bafo , ardente ,
" Crébro assoprar-me do cabello as fitas .
" Extenuada da fuga¡ Auxílio ! -clamo
-Diana , ¡ auxílio ! agarrão-me ; soccorre ,
" Quem ja foi Pagem tua , a quem ja deste
» A honra de levar-te Aljava e Arco.-

" Commoveo-se a Immortal ; das nuvens grossas


" Logo huna rasga , e m'a distende emtôrno.
» Desesperado , o Alphêo me anda buscando
» Dentro , e de róda do negrume espêsso ;
265
" Vezes duas , me cérca , sem cuidal-o ;
" Vezes duas , o écho amotinando ,
99 Ai Arethusa ! ¡ Amostra-te , Arethusa ! -
" ¡ Pensa , qual me eu veria , em tanto apêrto !
99 i Vês tu medrosa , imbelle cordeirinha ,
"¿
" Que do redil fechado está sentindo ,
» Pela alta noute , os lobos bramidores
59 Farejal-a por fóra da estacada ?
99¿ Concébes o pavor da lébre occulta
» Em sua mouta , ao ver luzir os dentes
» De inféstos cães , que nem bolir se atréve ?
" Tal me eu sentia : o Nume , impaciente ,
" Não vendo para alem pisada alguma ,
Insiste , gira , lustra o sítio , a nuvem .
„ Frio suor me alaga , me dimana
" Dos membros todos em cerúleas bagas ;
» Por onde inovo hum pé , derivo hum lago ;
" O cabello me orvalha ; em menos tempo ,
" Do que eu ponho em contar-t'o , convertida
" Me achei , dó que antes era , em frescas aguas.
" ¡i Mas, quem póde enganar de amor o instinéto !?
"Conheceo , logo , as aguas adoradas
"O pobre Rio amante , e , desvestindo
"A viril fórma , que por mim tomára ,
" Ancioso de ajunctar-se á veia minha ,
" Volve ao sêr natural de undosa veia .
966
» Délia não me abandona , eis , me abre a terra ;
» Por cujos antros tétricos me engólfo ,
„ E , occulta , fujo , até chegar á Ortygia.
" Esta Ilha , por sacra á minha Deósa
" Grata ao meu coração , foi , quem primeira
»Me fez reparecer á luz celeste .

"Findára a Nympha : a creadora Deosa


" Junge ao Côche os Dragões , enfrêa-os , vôa ,
" Por entre terra e ceo , via de Athenas ;
" Lá, no alto da Tritónia cidadella ,
" Larga o Côche a Triptólemo , lhe entrega:
" A'ureos grãos , e lhe ordena disparzil-os ,
"Parte , pelos , de fresco desmoutados ,
" Rudes chãos de arrotéa , e parte , aos sólos ,
" De cuidadoso alqueive embrandecidos.

" Ja tinha o joven Principe transposto


"Os ceos de Europa , e de Asia ; as rédeas bate
" Contra a Scythia , onde então reinava Linco.
" Entra no Paço , e , perguntado , o como ,
" Por onde , e com que fim chegado houvesse ,
" Nome , e Pátria qual fosse , A pátria minha ,
" A decantada Athenas ; o meu nome ,
" Triptólemo ; não vim per mar , nem terra ,
"Ares patentes minha estrada fôrão :
267
" Venho trazer-vos dádivas de Céres ,
" Grãos , que , nos largos campos diffundidos , ' i
" Vos dem grato alimento em pingues mésses.

" De tanta glória o bárbaro invejoso ,


" Ja na pérfida mente engenha astúcia ,
" Com que do beneficio autor se acclame.
Hospéda-o : mal que ao somno entregue o colhe,
"Despe o ferro , alça o braço , a morte infame
" Ja na fulgente lâmina lampêja ;
" Céres a ponto acode , o troca em lynce ;
99 E ao áttico Mancebo , escapo á morte ,
" Em seus Dragões partir de novo ordena.-.

"" Aqui pôz têrmo , e corôa , ao sábio Canto


" A nossa Maioral : surgem as Nymphas ,
/ " E a Nós , ás Filhas do Hélicon , proclamão ?
" Com unísona voz , devida a Palma.
" Raiva , esbravêja , a turba das vencidas ;
„ Calúmnias , maldições , injúrias férvem .
" Pois que emfim, diz Callíope , - não basta
" Ao louco , ao pertinaz , ao ímpio orgulho ,
" Provocar , merecer , hum só castigo ,
" E da primeira affronta affrontas nascem ,
29 Represada impaciencia arrombe os diques ;
" Punamos ; dê-se á ira inteira rédea.-
268
" Riem , mófão da ameaça : mas , querendo
" Proseguir na blasfêma vozería ,
" Lançar-nos tumultuando as mãos protérvas ,
" Vírão pennas das unhas pullular-lhes ,
" Seus braços emplumar-se ; cada huma
"Nota os lábios das mais crescer em bico ,
E todas aves , de não vista espécie ,
" Ir contra a sélva endereçando os passos :
" Co'as mãos os seios flagellar pretendem ;
" Nos agitados braços se equilibrão ,
" Pendem no ar, são Pêgas ; são dos bosques
" Enfadonho motim ; do sêr antigo
"A va loquacidade inda conservão ;
" Dá-lhes gôsto o palrar , contínuo pálrão .

FIM

DO LIVRO QUINTO.

18 JY 63

Lasing
NOTAS .
BRITISH

MUSHUM
HOTAS.

SOBRE O LIVRO PRIMEIRO.

(PAGINA 11. )

o mais dos Leitores, talvez pareça este Livro o menos


poetico, e divertido , de todos os quinze. Por si dirão os igno-
rantes , e incuriosos , que não têem que ver com as phisicas
dos modernos , quanto mais com as dos antigos ; e não poucos
dos sabedores , e naturalistas , acudirão , que de philosophias
vas , de systemas refutados , tambem elles não têem que tra
tar. Não ha que responder aos primeiros ; mas aos segundos ,
e a todos os mais, alguma cousa, cabe, que se diga em defen-
sa d'esta importantissima parte.
Tão incommensuravel fábrica de Poema , todo antigo , no
exterior , e no interior , desde os fundamentos , até o fastígio ,
não podia , nem havia de ter outro introito , ainda conceden-
do , que outro lhe houvesse o Autor podido dar. Propuzéra-se
elle, fazer-nos viajar a travéz de todas as maravilhosas monta-
nhas dos séculos, desde a Origem do Mundo até á sua Idade ;
¿ que podia logo , que mais acertado fosse , do que extremar
d'entre a variedade dos systemas, philosophicos ácerca da for-
mação do Universo , theatro 'immenso do seu immenso drama ,
o que mais provavel , ou mais certo , lhe parecia ? Antes de
desenrolar a longa , e tão ricamente bordada , têa de todos os
successos , do Mundo visivel , e do Mundo invisivel , da Terra ,
do Mar , dos Ceos , e dos Infernos , da materia bruta , da ve
getativa , da animal , dos Homens , e dos Deoses ; antes , em
summa , de nos introduzir á poetica historia das acções , dos
costumes , e das crenças, entendeo, que nos havia de instruir
1 *
272 NOTAS.
no primeiro, e mais alto , ponto de doutrina ; qual era o prin-
cipio , e razão , não só do nosso sêr , mas de todo o sêr, exis-
tente , e possivel e isso fez , com a méstria do seu copioso
saber, e incomparavel engenho . Senão subio mais alto nas ver-
dades , chegou ao cume ultimo , das que então havia , ou se
julgavão taes ; e os " entre quem , e para quem , escreveo ,2 re-
ceberão d'elle , em formosos versos didácticos , a máxima li-
ção, a que, por então , se podia arribar . O primeiro lanço d'es-
te Livro, encerra (se he lícito dizêl-o) os mais completos Gene-
sís pagãos , de que existe memoria : esta só consideração do
tempo , e logar , em que o Autor vivia , tempo , e logar , pa-
ra onde o Leitor se deve , logo de principio , transferir , nu
despegado, e até esquecido do presente , a fim de poder gosar,
a pleno , das delicias do perigrinar pelo Mundo vélho ; esta
só consideração , repito , metamorphosêa , aos ólhos das pes-
soas de entendimento , huma , á primeira vista , charnéca de
estéril , e espinhosa versaría, em deleitoso vergél de ricos fru-
ctos.
Já por aqui podéramos parar , se nos contentáramos com
a defensa : porêm, mais havemos de querer para o nosso Poeta,
do que indulgencia ; louvores e sympathia , são fóros seus 9
que , pois em quasi dous mil annos , e tantas revoluções , não
cahírão, já não he possivel deixarem-se perder. Digo pois, que,
' ainda que se queira contemplar esta Cosmogonía , e Theogo-
nía , Ovidianas , cá de longe , de cá , d'esta crista alterosissi-
ma do nosso Século , nem por isso deixa de ser hum documen-
to valiosissimo para a historia da alma humana : ¿ ¡ onde tanto
se procurão , se guardão , e se venérão , com respeito quasi re-
ligioso , os óssos das antigas, e perdidas, raças de animaes, co-
mo se hão de despresar, como se hão de desvenerar, as idéas
fósseis , as sciencias mortas , e soterradas , os fragmentos , que
se nos depárão , das almas , que já n'este Mundo fôrão , o que
nós hoje somos n'elle ?! Na ignorancia primitiva assenta esta ,
sempre crescente , e já indestructivel , Babel das Sciencias ,
com que nos arrojamos , cada vez mais , para o infinito. Dos
erros , começando pelos mais grosseiros , se lhe compuzérão os
primeiros lanços de suas immensas escadarías ; os segundos, de
possibilidades ; os terceiros , de probabilidades ; os quartos ,
de observações ; os seguintes , de demonstrações : mas , para
que não despresemos a matéria dos primeiros , boa liga d'ella ,
se bem observarmos , se mistura ainda com o alto degráo , em
que já pousamos ; e nem d'ella será, por ventura , isento o re-
mate de tal Fábrica , se já he , que Fábrica tal póde algum dia
NOTAS . 273
ter remate . Mas outra razão accresce ainda , e de mais grave
momento , que torna de summo interesse este trêcho , de mais
de quatrocentos versos no original : aqui se encontrão , em ma-
ravilhosa quantía , fragmentos , do maior vulto , do Livro de
Moisés , do Livro inspirado , do Livro anterior a Homéro , do
mais antigo Livro , emfim , que no Mundo permanece ; e estes
fragmentos hebrêos , posto que entre si ligados com o massame
romano , mythologico , e poetico , são ainda taes , que não ha
ahi ólhos , que , ao primeiro relance , os desconheção . Em
huma Obra separada, que para o diante publicarei , com o ti-
tulo de Estudos sobre as Metamorphoses de Ovidio — haverei
logar de apontal-os. Porque mãos vierão elles passados para
chegar das do Prophéta do Sinái , do Historiador , do Legisla-
dor de Deos , e do meio de hum Povo pequeno , despresado ,
e esquecido n'hum recanto do órbe , até o seio da rainha , e
desdenhosa Roma , até ás mãos profanas d'hum Poeta munda-
no , legislador , sim , e historiador , mas , historiador de fábu-
las , mas , legislador de amores , e prazeres ? Eis-ahi , o que
não ha hoje saber , nem ao menos presumir mas , como quer
que seja , apparece evidente , que a romana crença , bem co-
mo , mais ou menos , as de todos os outros Póvos antigos , ou
modernos , de que ha memoria , ou notícia , sempre , por qual-
quer via , humana , ou sobrenatural , por estudo , por tradic-
ção , ou por hum género de inspiração , cujo segrêdo , só o
Autor , e Sabedor de todos os segredos o conhece , em muitos
pontos combinou com a revelada doutrina dos Hebrêos ; e esta
geral , universal , e tão palpavel , concordancia de todas com
ella , não he hum dos mínimos abônos de sua veracidade.
A formação do Mundo , dos Animaes , do Homem ; ás
differentes Idades primitivas ; aos Gigantes ; e finalmente ao
Diluvio ; quando o ânimo do Leitor já se sentia confrangido, e
cançado, com tão longa série de cousas graves, ou desastrosas ;
quando , olhando para o espaço caminhado , não via após si
senão cháos , depois êrmo , logo grandes revoluções nos desti-
nos humanos, segundo cháos, moral, e segundo êrmo, pela as-
solação das aguas ; quando a Terra , devastada , se desatava em
nova, fertilidade , mas não produzia , senão humanos apenas
humanos , formados de pédras , e animaes ferozes , e mons-
truosos , tróca de repente o Poeta as mãos na Lyra , e , para
nos distrahir , e consolar , nos accorda os corações para a pri-
meira fésta do amor , sob o céo risonho da Grécia , na viçosa ,
na renascente infancia da Natureza . Tres são as scenas d'este
género , a que ahi nos faz assistir ; Apollo e Dáphne , l'o e
274 NOTAS .
Jupiter, Pan e Syrins : foi consagrar a tres dos máximos Deoses
as primícias da paixão suprema ; foi ( se o pósso dizer) hum ,
como divinisar, desde logo , o amor ; que certamente, no con-
ceito do Méstre da Arte de Amar , não só devia prevalecer a
Jupiter, senão tambem ser superior ao proprio Deos da Poesia.
Das tres Náiades assim amadas , a primeira , resiste , foge , e
se transfórma em louro ; bem era , que , tratando de criar ár-
vores, fosse esta a primeira, em que Ovidio pensasse : não era
possivel dar-lhe mais nobre origem ; ¡ huma formosura ! huma
Nympha huma virgem ! e em pontos de honra tão melindro-
sa, que antes quiz perder-se , do que perdêl-a ! Por isso tam-
bem , o amante burlado , abraçando-a já tronco , emvez de
vociferar vinganças, e despeitos, a continúa de requebrar, sem
esperanças ; vóta amal-a sempre, e lhe augura as maiores hon-
ras. Jupiter , sim se gosa de l'o ; mas , porque erão adúlteros
esses amores, cruamente os vêm a pagar, tanto elle, como el-
la. Syrins , finalmente , esquiva a sua virgindade ás persegui-
ções de Pan ; e , bem que , para o conseguir , se demude em
canavial , (escolha muito acertada para huma Nympha aquáti-
ca) tambem a sua castidade não fica sem recompensa , pois que
tambem o seu despresado Amante continúa de querer-lhe ; e
d'ella se origina o gracioso invento da fráuta pastoril.
D'estes tres resumos se infére, como , apezar da, sobeja-
mente provada, desenvoltura do Autor em outras Obras , e da
conta , em que temos os costumes do seu Século , e do azo , e
largas , que para isso dava a popular Religião , sempre a mo-
déstia virginal tinha seu preço ; pois que os proprios, que por
amor d'ella perdião , não deixavão de a venerar . Entretanto ,
não espére o Leitor , que eu procure desentranhar assim de
cada huma das Fábulas d'este Poema huma moralidade , ou al-
legoría , em que o Autor não cuidou , que , muitas vezes , lá
não está, e de que nenhuma necessidade ha em Poesia ; a qual,
se entreteve honestamente os ânimos , já se desempenhou do
seu encargo.
Dous quadros sobresahem , por formosos , aos de todo es-
te Livro ; hum , descriptivo , outro , narrativo e descriptivo : 0
primeiro, he o Dilúvio, desde pagina 26 até pagina 35 : o se-
gundo , a fábula de l'o , desde pagina 44 até pagina 53.
Não he razão , que d'esta Nota me despéça , antes de li-
quidar , com Ovidio , e Bocage , as minhas contas métricas ;
são as unicas possiveis entre Poetas.
Contêm este primeiro Livro , no original , 779 versos , e
na traducção 1 :095 ; isto he , tem a traducção mais 316 ver-
NOTAS. 275
sos, do que o original. Verteo Bocage, d'este primeiro Livro,
dous lanços ; a saber : desde o verso 5 do original até o verso
437 ; e desde o verso 583 até o verso 747. O primeiro lanço,
que comprehende 433 versos, traduzio-o em 636 ; e o segundo, *
que he de 164 versos , em 216. Corre a primeira parte da sua
traducção desde pagina 11 ,

Antes do Mar , da Terra , e Céo , que os cobre ,

até pagina 36 ,
N'outras emfim criou não vistos monstros ;

E a segunda , desde pagina 44 ,

Nas fundas lapas I'nacho escondido ,


até pagina 53 ,

Aras , e incensos dos Egypcios Póvos ;

isto he, 855 versos portuguezes , por 597 latinos, ou 216 ver-
sos mais , do que no original ; d'estes 855 portuguezes foi-me
indispensavel , ou conveniente , supprimir , substituir , alterar ,
ou emendar, 187 : ficão portanto pertencendo a Bocage, de to-
do este Livro , 668 versos ; isto he , hum pouco mais de seis
décimos.

SOBRE O LIVRO SEGUNDO .

‫يا‬ (PAGINA 65. )

Em duas partes podemos dividir este Livro : a primeira ,


que abrange no original 327 versos , e corre na nossa traduc-
ção até pagina 82 , lhe serve , por sua importancia , como de
lastro ; encerra ella a Fábula de Phaetonte , e o subsequente
incêndio, que assolou o Mundo ; o Diluvio de fogo, depois do
Dilúvio de agua. Não nos deteremos agora a excavar na bis-
276 NOTAS.
toria profana as origens da Fábula de Phaetonte ; origens es-
sas sempre arbitrárias , nunca demonstradas , e rara vez pro-
vaveis ; tão pouco apuraremos argúcias, para irmanar Phaeton-
te com o Diabo, (posto que o nome de Phaetonte derivado do
grego Phaetein , brilhar , mui bem se corresponda com o de
Lucifer) a sua temerária ambição , com o levantamento do Ar-
chanjo ; e este ponto da crença greco-romana, com huma das
fundamentaes tradicções religiosas dos Hebrêos ; nem finalmente
nos desentranharemos em moralidades, mui faceis, mui óbvias,
e muito escusadas , com que alguns , dos que se dão por auto-
res , e não passão de vendedores de papel e tinta , convertêrão
a formosa narração poetica em estirados sermões , em tratados
prolixos dos deveres dos príncipes , e dos súbditos : he , e isso
nos basta, huma formosa Fábula , em que a poezia, corre , co-
mo o sol , pelas alturas do Céo , sem , como Phaetonte , se
despenhar. Ahi brilhão , de envôlta com as mais garridas , e
louças pinturas , criadas pela imaginação , os conhecimentos
exactos da Geographia celeste , e da Astronomia . Muita vez se
ha dito , que não são os Poetas para os estudos sérios , nem os
Mathematicos para o commércio das graças : ¿ mas , se a Na-
tureza pôz , em verdade , hum tal marco entre os domínios do
ameno e do sólido , e se essa extrema, a não costumão de ne-
nhuma das partes devassar, quanta glória não cabe logo a Ovi-
dio , que , sobre ser de todos os Antigos o mais rico em do-
nosas phantasías , o mais arguto, o mais engenhoso, o mais va-
riado, e o mais agradavel, igualmente se mostra, e muito me-
lhor n'este Poema , do que em todos os outros , sem exceptuar
os Fastos , o mais profundo , e geral sabedor d'entre todos os
da Antiguidade , assim em Historia , Costumes , e Origens ,
como em Geographia, em Phisica , em Historia natural, e em
Mathematica ? Podendo-se , com afouteza , dizer , que difficil
mente se nomeará ramo dos humanos conhecimentos , que en-
xertado em seu fecundo engenho não florisse , e fructificasse .
Hum commentário , que n'este sentido se houvesse de fazer ás
Metamorphoses , seria nada menos , que huma Encyclopédia .
Pelo que toca ao geral incêndio ; não se póde este , como
objecto de arte , confrontar , nem de longe , com o Dilúvio ;
e, se exceptuarmos aqui a magnífica prosopopéa da Deosa da
Terra , ou Cybéle , não nos offerece mais , que hum monótono
fundo de quadro , onde não resahem scenas 2 nem figuras ve-
mos arder searas , pastos , e bosques ; consumir-se cidades , e
reinos ; rasgar-se a terra , esbrasear-se as montanhas , secar os
rios , fumegar , e crestar-se as nuvens , e minguar o Oceano :
NOTAS. 277
folgáramos porêm , que a natureza animal representasse ahi o
grande papel , que lhe era proprio . Emvez de catálogos de
montes , e rios , quizéramos ver a consternação de huma unica
familia, ou de hum unico indivíduo humano . ¿ Que ampla cei-
fa não houvéra sido essa para o talento de Ovidio ? ¡ Que recur-
sos lhe não offerecia o amor , a amizade , a avareza , a ambi-
ção , o egoismo , o ódio , a voluptuosidade , a infancia , a ve-
lhice , e , mais que tudo , e por cima de tudo , o amor dos
amores " o Amor Materno ! Fendesse-se, muito embora , a ter-
ra em boqueirões , por onde a luz descesse ao Avérno ; mas
abrisse tambem cavérnas a alguns infelizes , que para ahi se
refugiassem com seus filhos e Penátes ; viesse-se ruidosamente
abaixo a queimada abóbada das sélvas, mas esmagasse , na sua
quéda , homens e féras , que , ao recrescer do calor , para ahi
se houvessem refugiado , que o perigo commum tivesse reuni-
do , e o terror , associado , e irmanado ; as aguas particular-
mente estavão envidando invenções de admiravel novidade . Já
no primeiro Livro fôra a unica falta á descripção do Dilúvio
a do affecto ; pôsto que lá alguma vida , alguma humanidade
se enxergue ― rari nantes in gurgite vasto . —¿¡ Que diverso ,
e que melhor , não houvéra n’esta parte feito hum engenho in-
ferior ao de Ovidio, escrevendo em éras christas !? Prometheo
criára ao homem de terra , e com o fogo celeste não lhe in-
troduzíra mais do que entendimento e phantasía ; o Christianis-
mo lhe deo coração : estes defeitos , que nós hoje descobrimos ,
tão facilmente , em Obra tão cabal para admirações , já póde
ser, que a ninguem occorressem no século de Augusto, a não
ser a algum espirito , como o de Virgilio , Virgilio , que á for-
ça de saudoso , e melancólico , tanta vez adivinhou o christão
estilo. ¿ Mas , dirão , não serião esses episódios descabidos ,
onde só transformações se havião promettido ? Certo que não ,
como o Autor , a quem nada era difficil , os ligasse aos sujei-
tos de suas mesmas transformações , como tantas outras vezes
o costuma ; ahi estava a Mãi , e as Irmãs , de Phaetonte ; ahi
estava o príncipe Cisne, seu parente , e com elle a sua côrte,
e reino da Ligúria ; e ahi estava , finalmente , o Mundo ; pois
que todo o Mundo , desde o Tejo até os mais longinquos rios da
India , desde as areas da Africa até os gêlos do Norte , se nos
descortina entregue ás châmas . Estes reparos me pareceo bem
fazer, não para os Litteratos professos, a quem a mim me não
cabe dar doutrina , mas para os principiantes , e noviços , para
que , levados do gôsto de praticar poeta em todas suas cousas
tão feiticeiro, como Ovidio, não tomassem, desprecatadamente,
278 NOTAS.
por modelo , tudo , o que n'elle foi , ou pelo andar do tempo ,
e crescimento da arte , e de sua philosophia, se veio a tornar,
vicioso ; para estes mesmos , apontarei tres pedaços de tres ex-
cellentes Poetas modernos ; para que , pela confrontação d'el-
les , com o de que tratamos , póssão , mais claro , entender , o
que a Ovidio faltou , e melhor diremos , o que faltou á Idade
de Ovidio : o primeiro , he a descripção do Dilúvio por Gessner,
tão guapamente vertida pelo nosso Bocage , e impressa no to-
mo segundo das suas Rimas ; o segundo, he hum poemeto sobre
as ruinas de Pompeia por Madame Emile Girardin ; o tercei-
ro, he hum grandioso poema lyrico de Victor Hugo, intitulado,
Le feu du Ciel , onde , podemos crer , que , em realidade , as-
sistimos ao abrasamento , de Sodôma , e Gomôrra.
Mas , tornando ao sujeito do incêndio geral , alguns hão
suposto ver n'elle a fabulosa amplificação de huma antiga tra-
dição histórica ; porque reférem, que em tempo de hum Phae-
tonte, príncipe da Ligúria , muito dado á Astronomía, e em
particular ao estudo do giro do Sol , e do qual tambem dizem,
que veio a morrer afogado no Pó, acontecêra , cahirem sobre
a Italia annos de tão acceso estío , que tudo por lá se abrasou,
e consumio. Torniello, Saliano, e outros autores , que se con-
formam com o cálculo de Euzebio , poem este successo no an-
no 2530 da Creação do Mundo . Nos dias do príncipe Phae-
tonte, acredita Aristoteles, que chovêra fogo, de que muitos
paizes fôrão devorados : possivel he , que algum pé de verdade
tivessem taes notícias ; que a tradição as fosse encarecendo ,
que os poetas as amplificassem, de calôres a incêndios , e da
Italia ao Mundo ; e que naturalistas , e o povo, sempre affei-
çoados a maravilhas, tomassem, como próvas e confirmações de
tal calamidade, os vestígios , que a terra , por toda a parte, nos
descobre, de combustão, effeitos de já perdidos , e esquecidos,
volcões ; ¿ e, se os Antigos conhecerão o carvão mineral, cujas co-
piosas minas se achão , mais ou menos , por todas as partes,
quem duvída, que essas prodigiosas massas de carvão soterrado
lhes devião a elles , forçosamente , representar-se como argu-
mentos inconcussos de abrasamentos de sélvas, quando , só de-
pois do grande mineralogista Patrin, se advertio dever ser ou-
tra, e mui diversa, a sua origem ? Mas, deixemos á Historia
as suas confusões, e a Deos os seus segredos , ácerca das anti-
guidades do Mundo.
A esta primeira parte, segue-se, como bem cabia, outra ,
toda diversa, e variada. O espirito, resequido , e tisnado de
tão aturado fogo, dá , repentinamente, graças aos cortezes, e
NOTAS. 279
hospedeiros , desvellos do nosso bom Poeta ! com bósques bem
verdes, e espêssos, com rios bem frescos, e puros, e, porque
nada falte para delícias , com formosas Virgens, e Nymphas, a
banhar-se. O ameno da Fábula de Calisto, não só nos desconta
a aridez, que a precede, mas nos faz estimar , que tanto duras-
se ; pelo agro do cançasso, se mede a suavidade do repouzo .
A história de Calisto não menos, nem diversamente, moral para
donzellas, do que lhes fôrão as de Dáphne, I'o , e Syrins he huma
d'aquellas, em que o Autor mais esmerou pincel e tintas .
Da Fábula de Calisto , facunda e magestosamente rela-
tada, e terminada em tanta altura, como são as constellações
das duas Ursas, com mui industrioso artifício se passa á de
Corónis, em estilo todo familiar, e conchegado , e cujos prin-
cipaes actores , e interlocutores , são o Côrvo e a Gralha.
N'esta Fábula, he em especial para notar a mistura de rapidez
no narrar com huma certa demasía apparente de garrulidade :
o Transformador universal, até a sua Musa soube metamor-
phosear em Gralha ; mas, por hum tão acertado modo , que a
Gralha e a Musa só parecem huma : a bella, e nobre Poesia
transparece toda por entre a perfeita singeleza da conversação ·
era a flexibilidade hum dos mais admiraveis condões do seu
engenho.
Na immediata Fábula, remonta , súbitamente, o estilo de
palreiro a sublime ; e á Gralha succede em scena a prophe-
tiza Ocyroe, prognosticando os destinos do Centauro, seu pai ,
os do menino Esculápio, e os seus proprios, com rasgos de
huma força , e concizão, verdadeiramente lyricas : o desfecho,
sobre tudo, faz huma impressão singular. Pelo meio da torrente
do seu vaticínio , a magestosa Nympha, em pena de arrancar
os segredos aos Fados, começa a perder a voz, a sentir-se
transtornar, e a transtornar-se devez, em que ? em égua.
¡ Bem mal avindos devião de andar os poetas com os prophé-
tas d'aquellas éras, pois que, o que principiára por prophecía,
acaba em relinchos ! Batto e Mercúrio são já outra mutação ;
aqui a Poesia toma o caracter buchólico , e sabe rusticar, sem
ser grosseira, nem insípida, que são os dous escolhos d'este
género, tão infamado por naufragios : mas Оcyroe, e Batto, não
fôrão mais do que passagens rápidas. Mercúrio, Hérse, e Agláu-
ro, que lhes vêm na cóla, forma hum poema extenso," completo,
e de altissima valia , he , não a flor, senão o ramalhete, d'este
Livro. A pintura da Invéja, da sua horrorosa vivenda, da sua
viagem, e dos effeitos , que na sua víctima produz, he obra tão
de mão de mestre, e tão prima, que, se a propria Invéja lhe
280 NOTAS .
pozéra os ólhos , se finaria de desespêro. Hum reparo me oc-
corre n'este passo, não talvez sem verisimilhança ; Ovidio , 0
menos irritavel de toda a numerosa familia dos poetas, Ovidio,
que louvou sempre, nunca satyrisou , perdoou magnanimo a
inconstancias, maledicencias, maleficios, e ingratidões , e huma
só vez brandio o açoute das Fúrias contra o villanissimo de
todos os villões traidores, Ovidio, parece, de propósito, carregar
a mão n'este retrato da Invéja, e esmerar-se em a punir com
tornal-a infame , e odiosa : ¿આ não seria isto alguma cousa mais,
do que huma lição geral não seria alguma desaffronta ,
(d'aquellas, que só o génio sabe, e póde tomar) contra algum
poetastro seu detractor ? Esta possibilidade se convérte , a meu
vêr, em presumpção, e não leve, se advertimos, no que alguns
têem presuposto, e com assás de tino , ácerca da Fábula de
Batto, que immediatamente precede a esta sob o saial gros-
seiro d'aquelle rústico, se cuida, que disfarçára o Autor a hum
pobre, e engoiado , trovista, seu contemporâneo, que, entre outras
baldas, e pequices, tinha a de sempiternas repetições de pala-
vras, e frases ; figura, ou vicio, a que os rhetoricos chamão
Tautología, e tambem Battología ; nome derivado de outro an-
tigo poeta Batto, que já nos seus hymnos tivéra igual séstro ;
sendo-lhe por isso muito bem cabido o tal nome, que em grego
denota o gaguejar : e em verdade, que bem adrêde, e bem
acintosamente, parecem postas as tautologías, que Ovidio lançou,
fallando do seu couteiro Batto ; e que eu, seu traductor, lhe
conservei mui á letra : se porêm o poetastro romano se cha-
mava propriamente Batto, como , não falta, quem presuma, ou,
se o nome lhe foi ahi dado epithética, e proverbialmente , eis-
ahi, o que não podemos alcançar . A alguem parecerá de so-
bêjo fútil a matéria desta digressão , mas era empenho , e gôsto,
meu, excavar e descobrir, se podesse, depois da raiz grega,
o tronco romano da árvore genealogica dos poetas elma-
nistas .

Vivo na tradicção, na história vivo .

Varão digno de Lysia, ou Roma ou Grecia

Quando Grecia existio , quando houve Roma,

As tôrres da ambição, do orgulho as torres.


Sonda costumes, caracteres sonda :
NOTAS. 281
Illusões expulsou, despio fantasmas
Renascem Rafaéis, Phídias renascem

Remata, finalmente, o Livro com a Fábula de Europa,


ameno, e saboroso póstre depois do rico, mas sombrio , e trá-
gico banquete da desventura, bem merecida, da invejosa Agláu-
ro . Esta Fábula de Europa, é o digno prelúdio, ou comêço ,
da longa, e ramificada, história de Cadmo , primeiro rei de
Thébas, e sua descendencia, que se estende por todo o Livro
terceiro, e deita até verso 605 do quarto ; vindo assim a ha-
ver á conta d'esta familia, a quantia de 1375 áureos versos
Ovidianos, ao qual período responde a nossa traducção desde
pagina 110 até pagina 206 .

Ajuste de contas , com Ovidio, e Bocage.

Encerra este segundo Livro , no original, 875 versos, na


traducção 1173 ; isto he, tem a traducção mais 298 versos, do
que o original. Verteo Bocage tres retalhos, a saber, desde o
verso 161 do original, até o verso 182 ; desde o verso 761 até
o verso 781 (com pequenas ommissões) ; e desde o verso 836
até o verso 875. O primeiro retalho, que comprehende 22
versos , traduzio-o em 29 versos ; o segundo , que é de 21 versos
em 21 ; e o terceiro, de 41 , em 56. Corre a primeira parte da
sua traducção desde pagina 74,
Porém leve era o pêso ; era diverso,

até pagina 75,

O effeito conseguir do rôgo incauto .

A segunda , desde pagina 106 ,


He a Estância da Invéja em gruta enorme,

até pagina 107,

He verdugo de si, odio de todos.

E a terceira, desde pagina 110,


282 NOTAS .
O Pai , que o vê nos Ceos , á parte o chama ,

até pagina 112,


Enfuna o vento as susurantes véstes ,

isto he , 84 versos latinos, em 106 portuguezes ; 22 versos mais


do que no original ; destes 106 portuguezes, foi-me indispen-
savel , ou conveniente!, supprimir , substituir , alterar , ou
emendar, 16 ; ficão portanto pertencendo a Bocage, de todo
este Livro, 90 versos ; isto he, pouco mais de huma decima
terça parte.

SOBRE O LIVRO TERCEIRO.

(PAGINA 121. )

Em altura de 21 gráos e 5 minutos de longitude , e 38


gráos e 22 minutos de latitude norte ; óbra de 6 léguas portu-
guezas para o noroeste de Setines , que já fôra a grande Athe-
nas ; 9 para o sueste de Livádia , que fôra a antiga, e opulen-
ta , Lebádea dos Achêos ; e 78 ao sudoeste da Mafamética
Stambul , herdeira da Christă Constantinopla , herdeira da pa-
gå Byzâncio ; em a Provincia , do Turco nomeada Stramuli-
pa , e dos Gregos , outr'ora , Béócia ; existe hoje hum mes-
quinho povoado , que chamão Styves , ou Thyva. Dous ribei-
ros o banhão , duas mesquitas são o seu desconsolado brazão .
Fértil de fructos , e formosa de natureza , he , ainda agora , a
região circumpatente : mas a sua vida histórica , a sua vida
poética , muito mais vida , e a lingua grega , cujos sons aque-
cião, e perfumavão, esses ares, tudo isso , que para a alma he
o tudo , só nos livros se conserva ; como as folhas e flôres ,
que de peregrinas , e longes terras vêm , tristemente fechadas ,
no herbário do naturalista . Esta Styves, ou Thyva, foi Thébas ;
Thébas , a princeza d'esses districtos ; Thébas , a grandiosa ,
opulenta , e soberba ; Thébas , a guerreira a cujas sete portas
batião sete exércitos , e ella respondia , NÃO ; Thébas , a na-
morada , a cujo seio Jupiter baixava para a tornar mai , ora
NOTAS. 283
de hum Hércules , que pelo seu valor espantasse o Mundo até
os confins do Occidente, ora de hum Baccho , destinado a con-
quistal-o por suas féstas até o primeiro bêrço da Aurora ; ora
de hum Amphião, que o enfeitiçasse com a harmonía ; Thébas,
a música , e deliciosa , cujos sumptuosos palacios , e templos
sem conto , esse mesmo filho seu lh'os cercou de hum muro "
por si, e ao som da lyra, edificado ; Thébas , a poeta, a digna
de respirar os ares dos visinhos Parnaso e Hélicon , a que nos
publicos certâmes do engenho via coroar as suas Corinnas , e
Myrthis , a que produzio em Hesíodo hum precursor a Virgilio
e a Ovidio , e a que deo ao Mundo esse outro Hércules , Pyn-
daro , o Homéro dos Lyricos , ruidosa , e scintillante , catadu-
pa de espirito , ante a qual espantado Horácio dobrava o joe-
lho ; cuja palavra liberalisava immortalidade ; cujo nome¡ Pyn-
daro ! já sem dôno , e só por si , vencia ao vencedor de Dario ,
e do Mundo : e cuja pousada , quando até as dos Deoses se ar-
rasavão sob as torrentes furiosas dos conquistadores , ficava
unica em pé ; como de tudo , que essa Cidade foi , ou n'ella
se fez , só tinhão de resistir ás assolações dos séculos , humas
ódes. હૈં E não foi mais alguma cousa essa ignorada e silenciosa
aldea ? Sim ; essa foi a Cidade dos memoraveis infortúnios , a
Cidade das tragédias, que ainda agora arrancão lagrimas a to-
dos os povos ; Láio , Édipo e Jocasta , Argya e Antígone ,
Níobe e Amphião , Antíopa , Dirce , Etheócles e Polinyce ; a
Cidade fatal , sempre à sombra do braço erguido do Destino.
Tal he o pomposo theatro , onde a Musa de Ovidio cam-
pêa senhoril pelo decurso de todo este Livro : Amphião , disse-
mos nós, a murára com sua lyra ; Ovidio com a magía da sua
nol-a edifica. Nas ruinas e fragmentos da Historia thebana ,
começando por Cadmo , que no êrmo , onde ha de ser Thébas ,
The lança os primeiros alicerses , nas ruinas e fragmentos da
Historia prende todo este espêsso , e florecentissimo , fabular :
não ha ahi ramo , que , parecendo criado por méro luxo , bem
dispensavel, por sua muita formosura , de servir para mais na-
da, não inclua comtudo, na sua raiz, e tronco, alguma verda-
de transformada. Não faltárão curiosos , que lidárão desencan-
tal-as, e restituil-as ao seu antigo sêr, e, ora rastreando conve-
niencias, ora ordindo, e tecendo, probabilidades, ora amplian-
do o pouco sabido , e diligenciando completal -o , com o que as
ficções offerecião de mais sólido , não estendessem , a seu mo-
do , alguns lanços de historia , que , se hum dia a de Trógo
Pompeo resuscitar, já póde ser, que diante d'ella se desfarão
em riso. D'essas truncadas semiverdades, não he propósito men
284 NOTAS.
fazer aqui`alardo ; tomaremos as fábulas como fábulas , ou an-
tes como entidades mui reaes, mas de outra espécie de interes-
se, de interesse unicamente poetico, e artístico ; bem creio, que
rara narração , repito , haverá ahi , que não seja , como o lou-
reiro de Daphne , mui diversa no interior , do que nas mostras
de fóra se nos representa ; nem se ha mistér de mui delicada
mão, para sentir, ou apalpal-as, que lá dentro ha seu coração
vivo , qne latêja ; mas , bem pio era Enéas , e para bem santo
fim forcejava de arrancar aquellas hásteas de murta , quando
dos ramos , que estroncava , via correr sangue , e debaixo da
terra lhe sahia aquella voz ¿ ¡ para que me dilaceras !? deixa ,
a quem já está sepultado : não te profanes com hum sacrilégio.
Essa espessura , em que me eu transformei , não m'a queiras
derrotar !
Para se conciliar , logo do princípio , e de hum modo so-
lemne , a nossa attenção para com o theatro dos espectaculos ,
a que temos de assistir ; não he o acaso , nem huma escolha
humana, quem ordena o sítio , e fundação , de Thébas : he hum
Oráculo da Castália . Quem , segundo a ordem do mesmo Orá-
culo , lá conduz os edificadores , he huma vacca , da qual to-
mará a região toda nome de Béócia ; hum touro fizéra perder
a Cadmo a sua patria , bem era, que huma vacca lhe restituis-
se huma patria nova. Ao abrir dos alicerses precedem Sacrifi-
cios , como para assentar a Cidade á sombra dos Deoses ; mas,
logo ahi , se descobre o argolão , onde prenderá a interminavel
cadea dos seus infortunios. A Fonte , a que para os Sacrificios
se péde agua , despéde hum Dragão assolador : os sulcos pri-
meiros , que na terra se rasgão , brótão huma seara de lanças >
e soldados . Estes soldados , que se entrepelêjão , e os poucos ,
que d'elles sobrevivem , e ajudão a Cadmo nos seus trabalhos ,
querem alguns , que representem as contradicções , que o prín-
cipe forasteiro encontrára nos naturaes do paiz, parte dos quaes
o contrastou com armas, parte se lhe unio, e o favoreceo con-
tra os outros ; por onde sempre , ao cabo , veio a sahir com a
victória assim como têem , que o façanhoso Dragão de Marte
representa hum bellicoso capitão dos da Terra, por nome Dra-
gão , ou Dracão , ou o que quer que fosse , que foi de todos ,
o que mais rijamente lhe teve rôsto. Pallas , a Deosa do ex-
forço , he a protectora do nosso Heróe , e , sob seus auspícios ,
emfim se érgue, pejada de grandes fados, a Cidadella, ou For-
taleza, de Thébas. Que fosse esta a obra de Cadmo, e que já
o mais da cidade existisse áquelle tempo , grande argumento
nos he , contra a , quasi expressa , opinião de Ovidio , o que a
NOTAS. 285
este propósito se nos depára na famosa Chrónica dos Mármores
de Arundel , onde se lê- Desde que hum Filho de Agenor ,
por nome Cadmo , chegando a Thébas , edificou a Cadméa , rei-
nando em Athenas Amphicião , contão-șe 1255 annos. — Esta
Chrónica foi feita 264 annos antes da Éra Christã, vindo a ca-
hir a fundação da Cadméa em 1519 annos antes da mesma éra,
isto he, 3360 annos para além d'esta hora , em que d'ella escre-
vemos . Deixemos pois a pobre verdade quieta , lá onde jaz en-
terrada, e desfeita, no fundo de 1 : 227 : 240 dias, ou 29:453: 760
horas : nós, contemporâneos dos contemporâneos , bem sabemos,
que de mentiras se fórja em cada hora , e que enorme quantia
d'ellas cabe na folha de cada dia , que não desce de 50 , pelo
cálculo mais baixo ; d'onde, argumentando por analogía, ácer-
ca da fundação de Thébas podia, sem nenhuma admiração, ha-
ver hoje de mentiras 61 :362 :000 . Deixemos por tanto, repito,
a pobre verdade perdida ; e reportemo-nos só , e litteralmente ,
ao que nenhuma idade já poderá destruir , que he o poetico
Evangelho do nosso Autor.
Temos a Cadmo Rei , e primeiro Rei , e Rei fundador ,
Genro do Deos da Guerra , e da Deosa da Formosura , acom-
panhado de Espôsa amavel , e amante , cercado de populosa
familia de filhos , e filhas , nétos , e nétas , e já todos em an-
nos viçosos ; bemaventurado emfim no seu exílio . Toda esta
máchina de prosperidades era precisa, para pedestal ao espan-
toso vulto de miséria , que o espéra : por onde nos propõe logo
o Poeta huma sentença , que havia de sempre andar gravada
em algum recantinho da alma dos ditosos soberbos --
. aguardar o dia derradeiro !
Que , em quanto se não fecha a sepultura ,
O nome de feliz vai sempre em risco.

Máxima, nimiamente verdadeira, demonstrada por todas as his


tórias , publicas , e particulares , alcançada de todos os enten-
dimentos , mas de quasi todos esquecida , onde , mais importa-
va , que lembrasse ; máxima , como máxima pregoada por Só-
lon , ensinada ao Povo no theatro de Athenas por Sóphoclos ,
e Eurípides , e aos Romanos , e ao Mundo , por aquelle bom
vélho de Plinio , que , no quadragésimo capitulo do seu livro
septimo , escreveo —- cousa he esta certissima ; hum dia senten-
céa a outro dia , e o derradeiro a todos elles , pelo que em ne-
nhum ha que fiar. ~
O principe Actéôn , seu néto , he o primeiro , que o céva
2
.286 NOTAS .
de penas ; a relação do seu , nada merecido , e , totalmente fa-
tal , desastre , sahe exposta n'huma série de painéis , qual a
qual mais para ver. Á pêrda de hum néto , segue logo a de
huma filha ; Seméle peréce fulminada, não por causa do amor,
que , se esse fora, ainda que adúltero , lá lhe podéra carear al-
gum viso de desculpa ; mas por huma criminosa ambição , por
onde mais pena deveo ser esta pena para Cadmo , do que a
primeira.
易 A morte de Seméle , o nascimento , renascimento , e cria-
ção , de seu filho Baccho ; a questão entre Jupiter e Juno so-
bre prazeres ; e o episódio da mudança de sexo , cegueira , e
dom prophético , de Tirésias ; são quatro passos , que o Poeta
dá de corrida , mas nos quaes , ainda assim , não faltão flôres ,
e donáires. E cabe notar, quão acertadamente, e seguindo o seu
costume, que he realçar todas as cousas pelas contrárias, trou-
xe, após as duas tragédias, de Actéôn, e Seméle, a farça , em
que Jupiter borracho , e Juno , pela primeira vez , de bom hu-
mor, aporfião sobre a mais escusada, e menos averiguavel , ma-
téria , que no Mundo póde haver.
Repousados com esta fólga, baixamos dos Ceos, onde ríra-
mos , ás amenidades campéstres dos arredores de Thébas , para
ahi assistirmos a scenas de lamentosos, e mal succedidos, amô-
res ; d'onde , logo , o Poeta nos restituirá á interrompida chró-
nica da gente Cadméa . A Fábula de Écho e Narciso, he hum
dos mais esmerados trêchos d'este Livro. Cada huma das me-
tades, de que se compõe, lá encerra no fundo sua moralidade,
se nos quizermos fiar nos védores e mineiros moraes : Écho, he
hum lembrête ás terceiras , e encobridoras ; Narciso , huma li-
ção ao amor proprio ; como Actéôn , despedaçado dos caens
föra hum emblema do homem , de quem seus proprios dėsêjos ,
e paixões , chegão a dar cabo : assim será ; mas não he esse ,
repetil-o-hei , o meu instituto , senão , só , descobrir , e apon-
tar , a indústria do lavor poetico . He a principal graça d'esta
Fábula a correspondencia , e harmonía , que entre ambas suas
partes se está sentindo não póde Écho lograr-se , de quem
ama; não póde Narciso lograr-se, de quem ama com a repul-
sa, cresce o amor de Écho ; o de Narciso, se irrita com o ma-
lôgro : Écho , se fina , e converte em penedía ; Narciso , em
flôr : Écho e Narciso durão ainda , e conservão os seus nomes .
Mais ; na engenhosa descripção , do monte, respondendo ás vo-
zes , e da fonte , trasladando a imagem , ha tão mútua permu-
tação de attributos , que antes parece identidade ; porque , o
écho, he o espelho dos ouvidos, como o espelho, he hum écho
NOTAS. 287
para os olhos ; ¡ mas , com que abundante graça não soube o
Poeta variar estes effeitos, segundo as circumstancias , e , apos-
tando comsigo mesmo engenho contra engenho, parecer em am-
bas as partes vencedor , sendo igual ! Não se ha de porêm dis-
simular hum grave senão , que , muito , desconta a formosura
d'esta Fábula ; e que já en (¡ tanto he facil aos pequenos, que
vêm depois , emendar , o que os grandes errárão ! ) corrigí nas
minhas cartas de Echo e Narciso . O Narciso do nosso Autor ,
que , na idade das paixões , foge das Nymphas , que o persé-
guem , namóra-se , desnatural , e absurdamente , do que , ainda
que existíra , o não podia amar ; mas que , de mais a mais ,
não podia existir , e viver , onde elle o via : o meu Narciso ,
pelo contrário , crê ver nas aguas , que o retratão , a jóven
Náiade d'essas mesmas aguas ; e parece-me, que , se a Rham-
nusia , Deosa , e Deosa da Justiça , houvesse de punir aquelle
presumpçoso , pela sua isenção , como Ovidio nol-o affirma ,
muito melhor houvéra feito, por mais de huma razão , em ado-
ptar o meu arbítrio , do que o d'elle .
Como quer que seja , Tirésias , que já á Mãi de Narciso
prognosticára esse fim de seu Filho , a ponto nos apparece , para
do silencio dos campos nos reconduzir á nossa Thébas . Nós ahi
o vemos , isenta , e magestosamente , no meio dos Paços reaes 2
e em presença do tyrano, e incrédulo , Penthêo, néto de Cadmo ,
prophetisar-lhe a próxima chegada de Baccho, a triumphal en-
trada, que fará , na Cidade, o estabellecimento do seu culto pe-
lo Reino , e , finalmente , o desastrado castigo do Príncipe te-
merário , que lhe denegar reconhecimento de vassallagem. Se-
gue-se ás palavras o cumprimento : Baccho apparece ; os cam-
pos , a Cidade , se alvorótão ; tudo he rigozijo , alarido , mú-
sicas : só Pentheo se não rende ; manda buscar , preso , o novo
Deos , para o confundir , e castigar. Este , para mais o escar-
necer , se encóbre na figura de hum rude marítimo : deixa-se
conduzir , maniatado , á sua presença ; e sem sobresalto , nem
covardia, se lhe confessa partidário de Baccho , e lhe encaréce
a formosura , e poderío , de tal Nume . Nesta prosopopéa do
supôsto Acétes , nada ha ' , em que a mais sevéra crítica póssa
pôr tacha ; nunca em versos se mentio mais com maior verda-
de : a descripcão da originária humildade, e pobreza, de Acé-
tes , pescador , e filho de pescador ; a sua ambição de vir a ser
pilôto , as suas diligencias para o conseguir , a viagem a Délos,
em que já vai por capitão ; o seu pojar em Naxos , a fazer
aguada
mão ; a; altercaç
a lindeza
ão, entre
e o estado , d'aquelle
a gente do navio Menino
; a sedição conto
, que lá

2 .
288 NOTAS.
maioral ; o contraste da consternação , e súpplicas , da pobre
creancinha desamparada com a desabrida impiedade de toda a
chusma ladrona , são pinceladas de hum Apélles consummado :
¿ e que diremos da ultima parte d'essa prosopopéa ? ¿ Do mila-
gre , já esperado , sim ; mas , que ainda sobreléva a nossa ex-
pectação , quando , súbitamente , nem todo o bracejar dos re-
meiros , nem todo o assoprar dos ventos , pódem fazer surdir o
navio por davante ! ¡ e aquelle repentino volver de Baccho ao
seu natural ? ¡ e aquella temerosa representação de féras , que
o rodêão ! ¡ e , mais que tudo, aquelle subir, recrescer, e alas-
trar-se, de héras, e vides emparradas, pelos rémos, pelas vélas,
por toda a parte ! O que esta pintura val , que vol-o digão >
os que já alguma vez , barra em fóra , padecerão saudades da
terra natal esses , sabem , que poesia não tem , no meio dos
desertos do mar, o trovar serrano do homem do léme, pela ho-
ra da meianoute ; o cantar aldeão do gallo ao romper da alva ;
o balído montêz da cabra , que , Deos sabe , se não vai , como
o passageiro , recogitando a amenidade de seus campos. ¡ Ver-
dura, e tanta verdura ! ¡ fructos, e tão guapos fructos, no meio
das ondas ! ¿ Que presente mais bem acceito nos podéra vir das
mãos de tão feiticeira Musa ? Não era este improvisado jardim
para morada de sacrilegos : gôsto , e riso , nos he vêl-os trans-
formar-se , com mútuo pasmo , todos , em golfinhos ; e , despe-
nhando-se no pégo , deixar sós ahi os dous , pouco ha , suas ví-
ctimas, e seu ludíbrio ; os quaes, desfeito o encantamento , que
detivéra o navio , lá se vão velejando a desembarcar na pam-
pinosa , e fresca Naxos , predilecto hospício do Nume.
A fúria de Penthêo contra o narrador, e os supplícios, que
The manda apparelhar , assustão a imaginação. Mas , o Poeta ,
que para tudo tem á mão remédio , faz arrombar-se por si o
cárcere , desagrilhoar-se o preso, e desapparecer : brama o Ty-
rano no seu palacio , mas o Cythéron restruge os ares com o
estrondo das Bacchanaes ; para lá o arremessa, o que a elle se
The antolha a sêde de sua vingança , mas que , em verdade ,
não he , senão a cólera do Deos , que , por seu pé , e proprio
movimento , o envia ao patíbulo . Sua Mãi , a final , e suas
Tias , o colhem no Monte ; o fazem arrepender-se , e humilhar-
se ; e o despedação .
Huma questão se apresenta naturalmente n'este logar ,
questão , que ao ler os Antigos Poetas , bem vezes deve occor-
rer aos menos questionadores ; Até que ponto era o Polytheis-
mo religião ? quaes fôrão os verdadeiros esteios , em que se
manteve sobre a Sociedade ? A resposta a estas duas perguntas,
NOTAS. 289
não cabe em huma nota , nem porventura em hum livro. Ob-
servemos, simplesmente , que , pôstoque os milhares de Deoses,
pela maior parte gregos, naturalisados em Roma, tivessem seus
templos , seus sacerdotes , seus dias consagrados , e suas féstas ;
pôstoque houvesse pontífices , e mantenedores do culto ; pôsto-
que todas as fórmulas , da Paz , da Guerra , do Fôro , do Se-
nado , e do Palatiuo ; pôsto emfim que a propria lingua se nos
represente impregnada d'estas absurdas superstições ; não he
difficil perceber , que a philosophia incrédula gozava de huma
grandissima liberdade . Os martirios christãos , que só muito
mais tarde viérão , não pódem depôr em bom tribunal contra a
existencia da tolerancia antiga , que deixou correr , sem perse-
guição, tantos escriptos em verso, e em prósa , em que os Deoses,
ou erão negados , où duvidados , ou escarnecidos. Todas as sei-
tas da Grécia , tinhão , em Roma , seus partidários , descober-
tos ; e , algumas d'ellas , sabido he , como repugnavão , e se
oppunhão , diametralmente , ás crenças publicas do Estado : 0
poema de Lucrécio he o materialismo , e o quasi atheismo , quan-
do menos : nas obras philosophicas de Cicero , não vai menos ,
que scepticismo : Séneca , he quasi hum padre da Igreja : Pli-
nio , queimando os incensos da eloquencia ao divo Imperador
Vespasiano , (que foi quasi hum óptimo Imperador) escarnéce ,
e apóda a todas as outras divindades , que são mais em núme-
TO , diz elle , do que os homens , que as adórão ; e vai tanto
por diante, que, chegando a fallar de hum Deos único, escre-
ve ; Irridendum vero agere curam rerum humanarum illud ,
quidquid est, summum : e o nosso Ovidio, o mais amplo de to-
dos os antigos mythólogos , diz , convem que haja Deoses , e ,
como assim convem, julguemos , que realmente os ha : vamos con-
tinuando a dar incenso , e vinho , ás aras antigas.
A tendencia para o sobrenatural , e maravilhoso , e a
consciencia da fraqueza , e dependencia , do homem , como in-
divíduo , e até como sociedade , fôrão , em toda a parte , a pri-
meira semente das fábulas divinas. Apenas rebentadas estas
fábulas em hum povo nascente , ou n'elle enxertadas , a mo-
ral , as deveo cultivar , para seu sustento ; e as leis , sancio-
nal-as como taes : pois que , se sem moral não ha povo , tam-
bem , sem huma crença organisada , não ha moral . Assim a
politica se tornou a columna central do templo . As artes co-
meçárão de brincar, e embellezar, essas tradicções primitivas ;
que , dentro em pouco , se lhes tornárão tambem incentivo , e
alimento : o tempo , que tudo altera , e consome , excepto a ra-
zão , que por elle se encorpa , e cresce , o tempo , gastou as
290 NOTAS.
arreigadas , e seculares , preocupações : mas , porque as artes ,
que, similhantes ás plantas parasitas, as tinhão , de baixo a ci-
ma, abraçado , cingido, enfolhado, e recoberto, tinhão já tam-
bem por sua parte ganhado assás corpo ; a velhice , e destrui-
ção, do incluso tronco da Fé, não foi seguida da sua quéda e
a politica attenta , que d'antes o sustentára só para os costu-
mes ; hum pouco pela mesma razão dos costumes, e muito pela
do bello e da glória , e talvez tambem , pela de sempre o ter
amparado , continuou a ter mão n'este simulacro brilhante , e
vasio , á conta da decencia ; mas , sem já se importar muito
de o sentir vacillar diante das frequentes rajadas contrárias.
O que pois fôra religião , e como tal produzíra , sem dú-
vida, alguns bens , e muitos, quasi chegou a não ser mais, que
huma bordada capa a la moda, com que apparecião vestidos os
entendimentos ; ¡ e por baixo da qual , Deos sabe , quanto as
paixões fôrão mettendo , e abrigando , de misérias e torpezas !
Nem o longo existir , nem o existir geralmente, se póde haver,
só por si , como hum argumento , ou de solidez , ou de utilida-
de moral , no verdadeiro sentido d'esta ultima frase : ¿ e , se-
não , que nos digão , como se veio conservando , na Poesia , na
Esculptura, na Pintura, em féstas, em usos, em crenças geraes,
a maior , e talvez mais ponderosa , parte da romana idolatría ,
por entre a sisuda austeridade do Christianismo até nossos dias ?
Toda a Europa baptisada , não ha tomado nas mãos a lyra , o
pincel , ou o escôparo, senão para reproduzir , redivinisado sob
as mesmas fórmas, o Olympo . Hum tomo de qualquer dos nos-
sos Arcades , e hum volume dos versos da idade de Augusto ,
passados a huma mesma lingua , e lidos sem nome de autor ,
parecerão dous fructos criados na mesma árvore ; só com a dif-
ferença , de ter sahido , hum , sazoado , e o outro , pêco , e ou-
tonico : ¿ ora, se nem Coridôn, nem Elpino, nem Alfêno , nem
Filinto adoravão os Deoses , de que tão devotos e apóstolos se
representão , e só lhes mantinhão o culto pelo presupposto in-
teresse de suas Rimas ; quão possivel não he , que outro tanto,
e por mais fortes motivos , quasi acontecesse antigamente aos
outros poetas , aos sacerdotes , aos festeiros , e a muita e boa
parte do povo da illustrada Roma , e da Grécia illustradissi-
ma?
N'este pé , segundo entendo , estavão as cousas na Idade ,
em que o nosso Poela escrevia. O Christianismo , não matou
huma religião , sepultou hum cadáver. Eis aqui , o porque en-
tre os pretextos , com que se córou o destêrro de Ovidio , o Im-
perador Pontífice não ousou tomar o de blasfémia , sendo que,
NOTAS . 291
raras paginas do Autor deixavão de offerecer para isso mui fol-
gada matéria . N'este livro, por exemplo, consagrado quasi to-
do aos louvores de Baccho, ao pregão do seu culto, aos exem-
plos das vinganças d'esse Deos contra os seus incrédulos ; n'es-
te livro , em que elrei Penthêo he posto por ímpio , só porque
se oppõe á introducção das órgyas ; ¿ que he , o que por desfecho
se nos depára ? A descripção d'essas mesmas órgyas , como que
adrêde calculada, para as desacreditar. ¡ ¡ ¿ Que Deos aquelle ,
por cujos influxos , e em cujo nome , as mulheres , do mais no-
bre sangue , correm ébrias , desgrenhadas , clamorosas , e ace
zas, como Fúrias , despedação os mais suaves, os mais santos,
laços da Natureza ; e fazem triumphalmente pedaços hum so-
brinho , e hum filho ? !!
Eis-aqui, me parece, hum thema poetico, onde commentá-
rios de philosophos serião mui bem cabidos. }

Ajuste de contas , com Ovidio , e Bocage. 25


A. AL .!
Contêm este livro no original 733 versos , e na traducção
958 : tem a traducção mais 225 , do que o original. A Bocage
nada pertence ..

SOBRE O LIVRO QUARTO .

(PAGINA 171.)

Prende este Livro pelos primeiros seiscentos versos do ori-


ginal com o precedente, e com o seguinte pelos duzentos ulti-
mos. Thébas, a gente Cadméa, Baccho, e seu culto , continúão
a ser matéria da primeira parte. Prevalecêra, emfim, o novo
Deos: o, a que primeiro nos convida público bando do ponti-
fice thebano, he huma estrondosa celebração das Bacchanaes .
Razão he, que nos aproveitemos d'ellas ; que, até que outras
féstas nos venhão cerrar o Livro, assás temos de correr por
trabalhos, e misérias, do Mundo , e do Inferno.
As Bacchanaes, Órgyas, Dionysíacas, Dionysíades, (que o
mesmo havião de valer esses nomes) fôrão, em meu entender,
sem nenhuma dúvida o mesmo, ou quasi o mesmo, que o en
292 NOTAS.
trudo, ou carnaval, dos christãos. Cousas ha, que, ainda que
pelo correr, e variar, dos tempos, se demudem, nunca todavia
chegão a perder tanto o seu caracter primitivo, que, mais de
perto examinadas, se não reconheção ; e são estas cousas , pela
maior parte, as, de que he depositario, e usufructuario, o vul-
go, que de mão em mão as vai passando por alto, sem lhes dar
entrada no aver do peso da philosophia, nem nas, sobejamente
pautadas, alfandegas da civilisação . Hum relancear de olhos
sobre o nosso Entrudo sóbra para mostrar, com mais que pro-
babilidade, serem estas, sob outros nomes, as mesmas festas,
não renovadas, senão herdadas , e continuadas desde os Roma-
nos : lá, e cá, a embriaguez, a folgasă loucura com plena tré-
gua de todos os trabalhos sérios ; lá , e cá , as máscaras, e dis-
farces, o bailar, o tripudear, os cantos, e as chufas, as tróvas
satyricas, e o burlar com presentes, e o incutir medos, e pa-
vores. Se já não temos hum templo de Baccho, nem lhe vão por
essas ruas sacrificando bódes ; ¿ as suas laureadas ermidas de
humilde nome, não são fervorosamente frequentadas ? ¿ E quem
não descobre, n'aquella vélha figura do entrudo, a cavallo no
seu jumento, por entre os apupos, e saudações, da rapazía , o
mesmissimo clássico Syleno dos dithyrambos ? Se advertirmos,
no como, ainda ha dous dias, era huma das partes essenciaes
d'estes jógos o despêjo da agua, arrojando-a por mófa aos, a
quem se pertendia fazer affronta ; n'este acintoso menoscabo
á natural inimiga do vinho, temos convertida a presumpção em
certeza ; e muito mais haveria para a fazer evidencia, se outras
causas, além da grande, e incessante, mó do tempo , não hou-
vessem apagado aqui , como em tantas outras cousas, muitos tra-
ços primitivos . Do Padre Fr. Vicente de Lisboa, que foi Inqui-
sidor geral, escreveo o nosso mellifluo Frei Luiz de Souza, no
cap . 5. ° Liv. 2.º da 2.ª Parte da sua Chrónica, -a elle se attri-
bue o conselho, que governo da Cidade (de Lisboa) tomou em
fazer vóto de tirar os abusos gentilicos, que duravão no Reino,
como em outra parte temos contado, de lançar sortes , furtar
agoas, carpir defunctos : elle fez trocar em santas, e devotas
procissões as profanidades, que o povo mantinha de festejar cer-
tos dias do anno por titulo recebido da idolatria, com outros
máos costumes, que emfim por sua indústria ficárão desterra-
dos do Reino. - Pia, e santa, foi a intenção do bom Frei Vi-
cente ; mas heresía formal para Antiquários, e com fortissimo
saibo de herética para Poetas : muito nas boas horas se ata-
lhassem os escândalos , e abominações ; que mal quizéramos
nós, que, por fésta entrudal, corressem as môças por essas
NOTAS. 293
ruas, descompostas, por entre cantares obscenos, e levando ar-
vorados em hastas, como trophéos, os allegóricos emblemas da
fecundidade, as imagens expressivas, do que a Natureza nos
homens fez para andar occulto, e só entre Tupinambas se alar-
dêa essa parte das órgyas, não a cobiçamos nós ; nem outras
muitas torpezas dos desenfreados jógos floraes, em que as mu-
lheres íão bailar nos theatros, com muito mais desvergonhada
desnudez, do que em nossos dias. Por essa parte faria tão bem
o Inquisidor em cortar, como já em Roma fizéra o Senado,
quando, no anno da Cidade edificada 568 , vedou, sob graves
penas, os desafôros órgycos em toda a Italia ; mas, quanto ao
que, sem offensa dos bons costumes, nem verdadeira québra da
Fé, se podia consentir ao trabalhado povo, para seu desenfada-
mento, mais humano fôra, se não mais religioso, - e mais assisa-
do, se não mais philosophico, -fechar os ólhos, e dar-lhe cóstas
em silencio ; como já o grave Catão , nos mesmos jógos floraes ,
o praticára. De mim confesso , e o repito, que tirar, o que por
qualquer via recrêa , e por nenhuma damna, se me figura a
mais desorientada inhumanidade, de quantas contra este pobre
mundo, tão pêco, e tão curtido de misérias, se pódem perpe-
trar. Mas, tornando-nos á materia, digo , que, pôsto na compo-
sição do nosso entrudo entrárão, provavelmente , outros jogos
romanos, e, principalmente, os saturnaes, e os sigillários , ver-
dade, que por muitas conveniencias podéramos provar, se o lo-
gar o permittisse, sempre fica sendo, principalmente, bacchanal
a sua origem. E este he o mais forte motivo do gôsto, com
que assistimos, introduzidos por Ovidio, ao entrudo thebano .
A descripção, que d'elle nos faz o Poeta, he curta, mas appa-
ratosa ; e, sobre tudo, não apparece n'ella cláusula alguma ,
que espante a modéstia : d'onde se ha de inferir, que os trium-
phos do Phallo, as cantilenas devassas, e outros mais abusos
d'esse género, que nas famosas Dionysíades de Athenas se cos-
tumárão, não datão da primitiva do culto bácchico, nem lhe
erão essenciaes, mas, que se lhe enxertárão com o tempo ; e,
porque encontrárão com boa seiva, pegárão , e medrárão : e as-
sim havia de ser ; pois que, se com taes immodéstias se apre-
sentasse logo o novo rito, não só o Rei, que o repugnava, e
combatia, as houvéra denunciado, e afeado na sua prosopopéa,
mas as dônas, e donzellas, thebanas, seus maridos, seus pais,
seus parentes, seus amantes, toda a Cidade emfim se lhes
houvéra opposto unanimemente, emvez de unanimemente o abra-
çar, como abraçou . E corrobóra-se esta razão , com o que acha-
mos em bons autores, e monumentos, antigos, em abono das
294 NOTAS.
esquivanças, e castidade, das Bacchantes : em Eurípides temos,
que em meio da agitação, e fúria, que as senhoreava, sabião
deffender sua pudicícia ; e a bótes de thyrso se descartavão,
dos que lhes pretendião fazer aggravo. Nonno, nas suas Diony-
síacas, nol-as dá por tão virginaes, que por acautelar assaltos
entre o dormir, se abraçavão de huma cóbra viva . Das bacchan-
tes, Eurynome, e Porphíride, memóra a Anthología , que, por
haverem de se ir desposar, se despedírão do officio . Donzellas,
casadas, e viuvas, todas n'aquellas féstas concorrião ; mas , as
proprias Bacchantes, podemos assentar, em que erão, ou se
havião por virgens ; e , se aliás em preciosos resíduos artísticos
apparecem com os cabellos desatados , e sôltos , o que entre ro-
manas era boa mostra de immodéstia ; se ahi se nota hum Fáu-
no, que invéste com huma ; hum sátyro, que entre hum rancho
d'ellas adormecidas traça profanal-as ; e, em todas, se observa
a nudez ; se emfim, poetas, e satyricos, da Antiguidade , algu-
ma vez, disparárão o apôdo de bacchantes ás prostitutas ; o
que, só, dahi se infere, he o mesmo, que já apontámos ; que
aquelle culto variou em logares, e tempos ; e que de regosijo,
em que principiaria, passou a devassidão : se a sua immorali-
dade o fez abolir, não he verisimil, que, se logo no começo se
apresentasse com ella, houvesse pegado.
Estudai-me com tento, e philosophia, as falsas religiões ; e
achareis, sempre, com certeza, ou, quando menos, com summa
probabilidade, que, se todas, como óbras humanas, que erão, che-
gárão, por abusos, a degenerar, enfraquecer-se, e cahir ; todas,
entretanto, nascêrão puras, innocentes, e prestadías ; não, tal-
vez, puras, innocentes, e prestadías, em sentido absoluto, e
universal ; mas taes, certamente , em relação ao tempo, logar,
estado, conhecimentos , e costumes, das gentes, para quem se
fizérão todo o contrário parecer, he absurdo, e calúmnia contra
a espécie humana .
Realça Ovidio o effeito do seu painel, que nos representa
toda a grande Cidade de Thébas em fésta, por hum contraste .
(São os contrastes hum dos mais efficazes segredos da formosa
Poesia, que sempre em Ovidio encontraremos . )
Ha no ócio dos dias sanctificados, o que quer que seja, de
tão poetico, e alegre, que a todos, por mil maneiras , se dá a
sentir ainda aquelles ; que, por não cortados de trabalho , e
trabalhos, não podem dizer, que repousão em dias taes, e todos
os de sua vida desaproveitão ; lá participão, como pódem, d'este
geral, e vivaz recôbro de corpos, e espiritos . Não sei eu, como
diga a leitores dispoetas, e antipoetas, certo semisegrêdo, de
NOTAS . 295
que em huma manhã de domingo, o meu amigo Herculano
e eu fizemos larga, e curiosa prática, sentados á sombra de
cipréstes, e diante de bom sol, no cemitério dos inglezes. Con-
cordámos entre nós, e comnosco concordaria Zimmermann, se
ahi fosse, que tambem a alma tinha seus trajos domingueiros ,
e que, em os revestindo, sahia mui outra, mais desempenada,
mais leve, mais préstes, mais bem eucarada, e disposta, e me-
nos descontentadiça ; que, não só a gente feriada lhe parecia
diversa, e melhor, senão que o proprio mundo material se lhe
representava então, tanto on quanto, transformado, e enfeitado ;
e, que hum sol de dia santo, ainda annuviado, era mais inspi-
rador, quasi mais claro , e , em nosso sentir, muito mais sol,
que hum sol descoberto de estío em dia estrugído , e lidado ,
de mistéres, e occupações. Folgar só, e folgar bem, quando
todos os mais andão atarefados, e solícitos, não póde ser ; nem
tambem, quando todos fólgão , deixar hum só, em meio d'elles,
de se agitar , ainda que não seja senão vagamente para o
contentamento : he mais huma próva, de que nos fez , e talhou
Deos, para a sociedade. Muito era já por tanto para deleite o
presenciarmos em Thébas, não hum simples dia santo de guar-
da, mas hum domingo gôrdo , e o seu primeiro domingo gôrdo :
porêm, para que melhor nos saboreêmos n'elle, ahi se nos des-
cobre, (em huma sú casa da cidade) huma scena de trabalho,
¡ e quão affervorado, que elle vai ! Vêde-me aquellas filhas de
Minêo, e suas sérvas, carpeando , fiando, e tecendo ; em quanto
todas as outras mulheres , e o demais povo, pelas ruas, e pelo
visinho monte, tumultúão com alvoroço de músicas, e vozerías .
Aquella pousada tão circunspecta, e laboriosa , não póde, por
sua pouquidade, damnar o commum regozijo ; ao mesmo passo
que, por sua differença, e contradicção, lhe está servindo de
sainête, e bom estímulo . Alguma cousa anda ahi do suave mari
magno de Lucrécio.
Ora entremos ao aposento d'estas donzellas, que Ovidio,
que de todas as casas he conhecido, e íntimo, nos está, cortez-
mente, abrindo a porta. Entremos a vêr, de relance, o como
ahi se entretêem essas môças, e, quando para a praça, e folguê
do, nos tornarmos, o lembrarmo-nos do seu lavor, far-nos-ha
mais agradaveis os perfumes do incenso nas aras acesas, a
toada dos hymnos, o estrépito dos cymbalos, e as galas das
Bacchantes : porêm, não ; não sahiremos, que melhor vai cá
dentro com o trabalho, do que por todos os ruidosos báirros da
Cidade. Estas donzellas , tão curiosas de suas taréfas, são tam-
bem, vel-o-heis, mui lidas, e sabidas ; pelo que, em suas se-
296 NOTAS .
pulturas, se as houvessem de ter, já se poderia esculpir mais
alguma cousa, do que aquelle tão singello, e formoso, epitaphio
de huma antiga romana-

Hoc est sepulchrum haud pulchrum pulchrai feminæ.


Domum servavit, lanam fecit .

Encurtão as aproveitadas horas contando novellas ; e , não


outras, senão de amores. Não façais ruído, que tão embebidas
estão em sua óbra, que nem de nós dérão fé ; e as suas narra-
ções, pois que se cuidão sós, e seguras de ouvidos masculinos ,
alguma cousa hão de ter para os vossos de apetitoso . Deixemos
rir, quem ri, lá por fóra ; que, assim como, o quieto d'esta
morada requinta a alegria da Cidade , tambem o reboliço da
Cidade realçará o conchego d'estes contos ; e , se alguns forem
de lagrimas, mais valiosas as tornará .
A primeira, que falla , nos transporta, n'hum pulo, d'esta
Grécia, tão vista, tão historiada , e tão fabulada , ao antigo
Oriente, a Babylónia : ¿ quem deixará de estar attento ? Baby-
lónia, a grande das grandes, e hoje tão perdida, que, soando-
nos de toda a parte o seu nome, não ha em parte alguma ati-
nar-lhe com os restos ; Babylónia , a enramalhetada filha do
Euphrates, foi a maior maravilha, que o sol dourou no Le-
vante. Os Annaes dos seus escravos Hebrêos , nol-a dão por
şenhora, altiva, e potentissima : os Prophétas , a ameação, como
a inimiga de Deos : das suas pórtas, sahem as mãos, que vão
levantar até ás nuvens Babel ; porque, mal erão ainda seccas
as aguas do Dilúvio, quando já Babylónia era edificada, e
adulta, e conquistadora , e cabal para taes milagres. Nemrod ,
o néto de Noé, o gigante, o grande caçador diante do Senhor,
foi seu pai. N'ella, e por elle, e para elle, se fundio o pri-
meiro sceptro, que arrebanhou , e regeo, homens : n'ella, e do
sepulchro d'elle, nasceo o primeiro ídolo, que homens adorá-
rão e n'ella a sciencia, a que havião dado princípio os ócios
contemplativos dos pastores chaldêos, a Astronomia, se levan-
tou, menos insolente, mas não menos alterosa, e muito mais
bem fadada, que Babel . Ahi florecêrão artes ; ahi ferveo activo
commércio de mercadorias , de idéas, e de prazeres ; ahi, se
he licito dizêl-o, orçou a luxuriosa, e nua, devassidão pelas
ráias do sublime ; as Babylónias modernas , comparadas com a
Babylónia da tradicção, com a Babylónia debuxada por Quinto
Cúrcio, são hum José do Egypto confrontado com Sardanapalo ,
ou humas noviças christãs ao lado de Semiramis, e de Der-
NOTAS. 297
céte, que tambem fôrão babylónicas . D'esta Dercéte , e d'esta
Semiramis, filha sua, nos podéra a elegante narradora thebana,
já que a Babylónia nos conduzio, contar os raros successos,
pois que os sabe, e os aponta. Mas, parece, que tambem a
fama póde damnar, porque, por notorios, os metteo ao escuro,
antepondo-lhes a privada aventura de Pyramo e Thisbe . He
esta a primeira, propriamente, novella, com que topamos no
Poema, porque em todos os demais successos: até aqui, mais
vimos sempre Deoses , e Semideoses , do que humanos ; e, se
algum mortal, de longe a longe, se nos deparou, sempre com
elles vinhão fazer scena alguns agentes sobrenaturaes : não
assim agora ; e dahi nasce, porventura, parte do interesse,
muito mais vivo , e do sabor, muito mais especial , que senti-
mos n'este caso : afóra a derradeira, e accessoria, cláusula da
transformada côr das amóras, nada ha ahi , que não podesse
mui bem ter acontecido. He este quadro de mais a mais huma
lição moral para pais, e filhos, e, contendo extremos d'amor,
e mútuo, e correspondido, e aguilhoado pelas difficuldades,
nem sombra descobre de offensa á casta pureza dos costumes.
Quanto á Poesia, vai ella, de hum cabo a outro, derramada ás
mãos cheias ; e, ainda que mais alguma lhe houvéra eu dese-
jado, de huma espécie diversa , e que mui bem lhe cahiria ,
nem por isso aquellas scenas, dos collóquios atravéz da pare-
de, da fugida nocturna, e de quanto se passa juncto da amo-
reira, na mudez dos campos, alvejados de huma Lua cheia do
Oriente, deixão de ser quadros de invejavel excellencia. ¿ Mas,
o silencio das ruas d'aquella grande Cidade, não imprimiria
singulares effeitos na tímida namorada, que do tecto paterno
fugia, sósinha, e à deshoras, para se ir entregar ao amor em
hum deserto ? As sombras gigantéas d'aquellas Tôrres, e Jardins
aéreos, não dirião mil cousas ? ¿ O Euphrates, rolando sob o
astro melancólico da noute as suas ondas livres, e prateadas,
deixaria de segredar algumas sympathias, com quem pela pri-
meira vez, respirava a pósse da liberdade, e do mundo , e da
esperança ? e, finalmente, o Túmulo de Nino, que demarcava
o logar do ajuste, aquelle Túmulo, acanhadamente comparado
pelos historiadores a huma cidadella, pois tinha, segundo Dio-
dóro, dez stádios de largo, e nove stádios de alto, isto he, treze
alturas da grande Piramide do Egypto, e vinte e seis alturas
avantajadas do arco grande das Aguas Livres, ¿ Esta fabrica
immensa, Túmulo de Rei , e Óbra de Semiramis, porêm, em-
fim, túmulo, não lançaria no ânimo assoberbado da Virgem
mil confusas sementes de terror, de presentimentos, de remór-
298 NOTAS .
sos ? a lembrança de sua mãi , viva, ou morta , não lhe sal-
tearia então o peito ? Eis-ahi o íntimo do íntimo da Poesia,
com que esta novella se houvéra enriquecido , se Ovidio não
pertencesse a huma Éra do Mundo mais sensual, que espiritual .
Segundo o que já tocámos, tudo isto houvéra hoje acudido a
qualquer poeta, cujo talento, comparado com o d'elle, lhe ce-
desse, quanto o arco céde ao túmulo. As aguas da Castália,
não perfumavão , e enfeitiçavão , senão os lábios ;as do Baptis-
mo, repássão até ao fundo d'alma, e do coração.
No Oriente nos detem a segunda Irmã, a quem toca a sua
vez de contar. Aqui volta o Olympo, e seus Immortaes pecca-
doraços. Marte e Vénus são tomados em flagrante na rêde, e
expostos aos risos , e até invéjas , dos Deoses . Apollo , infiel aos
amores de sua Nympha Clycie, namóra-se da Princeza Leucó-
thoe, e engana-a ; e Clycie, por ciumes, a denuncia ao pai : a
denunciada, he enterrada viva ; a denunciante, despresada, e
odiada , de Apollo, fenéce em planta. O véo, que se aqui põe
aos mystérios amorosos, he de vidro, que, emvez de encobrir,
dá lustre á desnudez, de Marte e Vénus, de Apollo e Leucó-
thoe ; mas, a narradora, he môça entre môças ; e não presume,
que nós outros, estranhos , devassamos o asylo inviolavel da sua
casa de lavor : pelo que , se não ha aqui a maior decencia, ha,
pelo menos , grande conveniencia, e verdade. Das explicações
allegóricas, e pseudo-históricas, d'estas fábulas , taes, como de
alguns fôrão sonhadas, não ha que fazer cabedal ; todas são
improvadas , improvaveis, e futeis. Quanto a moralidades , as
que se pódem espremer, (se por fôrça querem, que poesia seja
sermão) serão duas ; a primeira, que amores illícitos nunca dão
bom pago ; nem ha cuidar, que os tereis sempre recatados ; a
outra, que se não deve denunciar, nem o mal ; porque de taes
denúncias, resultão desgraças, assim para os accusados, como
para os accusadores : para os accusados, porque Marte e Vénus
forão apanhados , e escarnecidos ; e a Princeza da Arabia, en-
terrada viva ; e para os accusadores, porque Apollo, teve, em
castigo, inclinações desgraçadas ; e Clycie, findou ao desampa-
ro, transformada em herva ; mas cousas d'estas não valem a
pena de serem escriptas, porque, se de si se mettem pelos ólhos,
não ha que notal-as ; e se se não mettem, o notal-as he escusado .
N'hum só ponto, quizéra eu, que me fizesseis ahi algum reparo ; e
he, no como ímos tomar em seu palacio huma Princeza, assim mô-
ça, e formosa, que enamorou o Sol , e filha de tamanho potentado ,
como foi ElRei Órchamo da Syria : em saráo, cuidava eu, que
seria ; e não he, senão em serão, fiando, entre suas criadas , á
NOTAS. 299
róda de castas lâmpadas, e no melhor recado. ¡ Bons tempos
aquelles, quando os costumes, que nos encantárão sob as tendas
patriarchaes, volvemos a encontral-os nas pousadas dos reis !
Nausica, princeza, lavando roupa , é Penélope, rainha, fazendo
teas, são humas pobrezas tão grandiosas , que, por si , se estão
inculcando por Homéricas. Quem manteve puros por largos
séculos os costumes da Antiga Romana Republica, e de tantas
outras mais antigas, foi a róca ; e não debalde se adorou , nas-
cida do cérebro de Jupiter, huma Deosa , que, sendo a tutelar
dos trabalhos feminís, o foi ao mesmo tempo do esforço, e da
castidade. Não me hajais isto por prégação , que não sou eu
parvo, nem rabugento ; mas só por fragmento curioso dos tem-
pos, que já lá vão, sem deixar rasto.
O caso de Hermaphrodito e da Nymphá Sálmace, relatado
pela terceira Filha de Mineo, pôstoque ainda algum tanto mais
livre, e nu, encerra , por entre huma grande profusão de gra-
ças, hum alto documento de doutrina, tão manifesta, como pro-
veitosa . He a Nympha Sálmace hum prototypo de presumidas ,
e ociosas : exercicio, e trabalhos, não lhe falleis n'elles, que
vos não entenderá a sua vivenda, he huma sélvatica represen-
tação da recâmara de muitas, que sabemos . A Natureza, a cuja
lei ella vive, lh'a adereçou, mui cabal, e prima, cómo para
filha tão mimosa. Espelho, (foi o seu principal cuidado) do
christal do lago lh'o brunio, que não ha mais desejar, e lh'o
apresentou moldurado em hum bórde de florída verdura : os
sophás, almofadas, e coxins preguiceiros, do mesmo bordado
estôfo lh'os estendeo em derredor : ao Sol, como a cortez , e
bom galan, fiou, que lhe offerecesse em cada dia, novas jóias,
e galas, profusamente penduradas, em multicôr enleyo, pelas
ramas das plantas, de que o seu toucador se guarnéce, e atavía :
o pente de buxo, variando os cabellos em mil phantasías, o molle
passeio, por sobre alcatifas de rélvado, o mirar-se, e remirar-se ,
o jazer-se de mimosa, ou cançada de ócio, emquanto as outras
correm, e cáção, taes são as suas occupações, e passatempos ?
só esqueceo ahi á Natureza, para a fazer retrato de muitos
originaes, o que ella, com poder tudo, lhe não podia offertar,
que erão algumas novellas de Balzac, ou George Sand. Se os
seus vestidos diáfanos deixão ver todos os seus encantos corpo-
raes, a somma de suas occupações, não menos, está descobrindo
toda a índole de sua alma : toda ella he huma sêde de delí-
cias ; o amor, ou antes o prazer, debaixo do nome de amor,
he o unico móvel de todas suas idéas . Já o mesmo Ovidio, no
remedio do Amor, nol-o tinha dicto : ¿ quercis saber, porque ha
300 NOTAS.
adulteros? porque ha ociosos . Chegado ahi o nosso viajante,
lindo, como filho, que he, de Vénus, e , pôstoque em flôr de
adolescencia , não , como Vénus , inflammavel ; eis Sálmace
rendida, e perdida de amôres, eil-a, como boa casquilha, re-
concertando, á pressa, os seus enfeites, estudando ademânes,
antes de sahir a o receber. Os primeiros termos, com que o
saúda, são huma declaração, sobêjo clara, de amor ; que já vos
disse, o como ella o concebia. Repellida (o que não he para
espanto) pelo noviço, muda de expediente, (devia de ser méstra
em sciencia, que era todo o seu disvello) recolhe a bateria, e
embósca-se. Vendo ao mancêbo, que, para se banhar, se atirou
ao lago, trás elle se atira, e, sem que tantas aguas lhe miti-
guem os incêndios, dentro n'ellas commette, e procura, á fôr-
ça, conseguil-o . Os dous córpos, por hum milagre inesperado,
se convértem em hum só, dotado de ambos os séxos. Algum
génio subtil, que averigue, se foi isso pena, ou prémio, ou pe-
na e prémio ; e, se para hum, ou , se para ambos ; que não sou
eu casuista para tão fundas questões. O que eu sei , e digo, he,
que não era isso, o que tal Nympha procurava, e que sempre,
portanto, podemos assentar, em que não ficou impune a sua
desenvoltura.
A execução artística d'esta Fábula he do mais absoluto
primor, e, pelo que toca ao moral, repetimol-o , se os sevéros a
taxarem, de se assimilhar hum pouco ao lago de Sálmace, que
enérva, e affemina, os que lá entrão ; bem descontado fica esse
desar, pelo vivo, e tão frisante, documento, que a donzellas, e
educadoras suas, está offerecendo . Donzella, he tambem, a que
nol-a contou ; mas contou-a affervorada no trabalho de seutear.
Se as, que a lerem, forem tão amigas do trabalho , como ella,
pouco perigo correrão, e, se o não forem, bem peiores contos,
do que este, lhes parirá, cada hora, sua mesma phantasía.
Bem sei eu, que Leucóthoe, que ha pouco elogiámos como
tão activa flandeira , e de génio tão avesso ao de Sálmace,
veio, ao cabo, a naufragar em escôlho de amôres ; ¡ mas, se
advertís na differença, Leucóthoe, mereceo ser amada, e ama-
da de hum Nume ; Sálmace, foi despresada de hum mancebo :
Leucóthoe, foi forçada ; mas Sálmace, forçou : por isso, a Nym-
pha, deixou de si vergonhosa fama ; emquanto a preciosa Prin-
ceza, depois de sua chorada morte, ficou sendo, nada menos,
que a árvore do incenso ; árvore grata aos homens, e aos Deo-
ses, árvore piedosa, e pura, que põe a Terra em commércio
com o Céo, árvore singular, que, tendo pelas suas lagrimas
servido , em todos os tempos , para transportar além mundo
NOTAS . 301
os pensamentos dos mortaes, ainda agora he desconhecida ; como
se em prémio da vida recatada, e proficua, da que n'ella se
converteo, a houvessem os Deoses , de propósito, fadado com
esse condão de virginal recato .
Continuando as nossas tres Mineidas em suas tarefas, cahe-
lhes de repente o horroroso castigo de não guardarem o dia
santo de Baccho. A scena, he em verdade para ver ; tudo, en-
tre suas mãos, e em volta d'ellas, se transforma em héras , e
parreiras ; e , ao som de estrondosas symphonias bácchicas, de
que se não vê autor, treme a casa, córrem sem mãos archótes,
reluz, e estrala, huma representação de incêndio ; passão féras
fantasticas, urrando e as tres Irmans sahem convertidas em
morcegos. Notemos, de corrida, que o fantástico desta scena,
não parece casual, senão muito de industria : já no precedente
Livro, víramos este Deos, que ora se disfarçava em menino, ora
em marítimo, cercar-se, para espanto dos marinheiros, de fan-
tasmas de animaes truculentos ; e desapparecer do cárcere, por
si mesmo arrombado : se isto não próva, pelo menos ajuda a
próva, de que os disfarces, e mascaradas, erão nas órgyas, como
ainda são no entrudo, huma parte essencialissima.
A ser Ovidio o creador d'esta Fábula, que o não foi, es-
tranhára-lhe eu, desabridamente, este castigo das Mineidas :
viva, e florêça Baccho, muito nas boas horas ; faça delphins
os corsarios, que, por crueza, e traições, lh'o merecêrão ; dê
morte a hum Lycurgo, derrotador de vinhas, e a hum Penthêo,
que, sobre oppôr-se a suas féstas, o quiz mandar metter a tra-
ctos, e justiçar, como malfeitor ; mas, para humas donzellas,
que, por ainda não convencidas, e só de suas portas a dentro,
o desvenerávão, á fé, que ultrapassa o rigor todas as ráias. A
serem ellas mulheres de humas certas de fraco espirito, a que
hoje chamão espiritosfortes, incapazes da mínima religiosidade,
pouco seria ainda o fazel-as morcegos, que para muito peiores
sevandijas daria o asco, e aversão, que nos inspirarião ; mas ?
descrendo em Baccho, ainda não bem canonisado, não descrião
`comtudo em outras Divindades : e no mesmo, com que a Baccho
desservião, davão culto a Minerva, a qual, (para que a todos vá
pelo direito o seu direito , como dizem) tambem não andou, como
quem era, em não as cobrir com a sua Égide contra os desati-
nos de seu borracho Irmão.
He, com razão, e foi sempre, o vinho reputado por hum
dos mais excellentes dons da terra ; como aquelle , em que ,
em maior numero , se reunem as maiores excellencias : he es-
teio da saude ; na enfermidade , medicina ; nos vélhos , moci-
3
302 NOTAS .
dade ; nos cançados , alento ; nos covardes , esforço ; nos tar-
dos , engenho ; nos affligidos , recôbro ; entre inimigos , conci-
liador ; entre amigos , apertador ; das féstas , e banquêtes , al-
ma, e encantamento : por isso , em a maior parte das religiões ,
se recebeo o vinho como condição aos sacrificios ; e , por isso
tambem , os póvos , que , pela Revelação , não tivérão luz da
sua primeira invenção , a attribuírão aos seus maiores varões ,
ou Deoses : os Romanos , a Saturno ; os Gregos , a Baccho ; a
Osíris, os Egypcios . Este he o retrato do vinho visto pelo rôsto .
do revéz , não ha que fazer menção ; ahi , he , que Baccho he
Liber, com garras de leão, e pontas de capro. Foi, por conhe-
cerem , ou aventarem , esse revéz , que os Romanos dos bons
tempos defendêrão ás mulheres o uso do vinho : em Plinio te-
mos , não era lícito ás Romanas beber vinho : entre outros
exemplos , achamos , que a mulher de Egnacio Mecénio , pelo
haver bebido de huma pipa, fóra morta pelo marido, e que Ró-
mulo o absolvéra. Escreve Fabio Pictor nos seus annaes , que
huma matrona, por haver aberto huma caixa , onde estavão as
chaves da adega , fóra pelos seus obrigada a morrer de fome.
Por isso Catão diz , que o costume das mulheres darem hum
úsculo aos parentes , tinha por causa , o provarem-lhes , que
não cheiravão a teméto , assim se chamava então o vinho , d'on-
de veio á embriaguez o nome de temulencia. E Cneio Domi-
cio , sendo juiz , sentenceon ácerca de huma mulher, que dava
mostras de ter bebido , a occultas do marido , mais , do que sua
saude the requeria ; e por isso , a multou no dóte . Por largo
tempo , accrescenta o mesmo Plínio , durou em Roma huma
grande temperança a respeito de tal género . Ora pois, sendo
tudo isto assim , e havendo para o ser as fortes razões , que a
todos occorrem , ¿ quem não levaria a mal ao Poeta romano ,
se fosse elle , (torno a dizel-o) o inventor d'esta Fábula , que
tres donzellas , porque se não adscrevêrão logo ás devotas de
Baccho , fossem em morcêgos transformadas ?
Mas , emfim , lá está pegado , em Thébas o novo culto.
A Penthĉo despedaçado succede no throno , e no infortunio ,
Athamante, marido de Ino, filha de Cadmo, tia materna, pri-
meira creadora , e principal pregoeira , de Baccho . As calami-
dades , que a zelosa vingança de Juno lhes suscita pelo minis-
tério das Fúrias , compoem hum quadro , opulento de poesia ,
e terror . A descripção do Inferno , assumpto eternamente mar-
tellado pelos poetas , assim pagãos , como christãos , por entre
cousas , que já para nós se tornárão logares communs , não he
vasía de bom interesse : Tisíphone , e a sua pestilencial caldei-
NOTAS. 303
rada , e o seu tomar ás pórtas do paço as duas reaes víctimas ,
são taes valentias de engenho , que passão , como dizem , em
cavallos brancos por diante de quasi todos os forçados pande-
monios modérnos . O arrôjo , com que Athamante esmaga o fi-
lho n'hum penêdo , o delirio , com que Ino, bradando , Evohé,
se precipita , com o outro , no mar , próvão , como o cantor
d'amores , e delicias , podéra , se o quizesse , ter dado a Roma
hum digno rival de Sóphocles , e Eurípides ; e nos renóvão a
mágoa de se haver perdido a sua Medéa.
Este derradeiro infortúnio em sua descendencia acaba de
render a constancia de Cadmo : de sua Thébas se abala com
sua esposa Hermione , desterrão-se para a Illyria , onde fené-
cem , demudados em serpentes . Se quereis lêr ácerca d'este
Cadmo , da sua sahida para a Illyria , e da origem da Fábula
da sua transformação , (já antes de Ovidio apontada por Pláu-
to) investigações , e conjecturas históricas , assás curiosas , con-
sultai a explicação de Banier no respectivo passo da sua tra-
ducção das Metamorphoses .
Aqui sahimos , tambem nós , de Thébas ; e da história de
Baccho, passamos, (por huma tranzição, da grossura, e sustan-
cia, de hum cabello) á de Persêu ; bom he, para quem atraves-
sou tantas amarguras , que até chegou a perigrinar pelos ne-
voeiros do Inferno , bom he , correr agora com este Persêu por
meio dos ares claros , frescos , livres , e tão êrmos de angús-
tias , como de homens : mas , porque razão , este bom de Ovi-
dio , que tanto em amôres se delicía , passou aqui por alto a
Metamorphose , a que este Heróe volatil deveo o ser gerado, a
Metamorphose de Jupiter em chuva de ouro ? Á fé , que mais
guapa , e refulgente fábula , lh'a não poderia deparar toda a
lenda dos Deoses : que o diga o seu graciosissimo paraphrásta
Anguillara, que ahi lhe deo quináo, sacando-a, com admiravel
felicidade , a limpo. Que o digão o afamado quadro de Anni-
bal Carracci , e o outro mais moderno de Girodet.
Representou Carracci a beldade de Dánae , jazendo-se ,
toda nua , encostada no cotovello esquerdo , vendo cahir das
alturas aquella sonorosa pancada , não de agua, senão de ouro ;
e, por melhor a disfructar, desviando para o lado o embaraço de
huma cortina. Ahi está o Menino Amor com o carcaz, que mui
bem despejou de suas sétas , e ás mãos cheias o enche dos do-
brões , que vêm cahindo . No de Girodet , se vêem as nuvens 2
chovendo , a bom chover , jóias , diches , flôres , garridices , e
louçainhas de todo o género , que pelos ares voltêão reluzindo ;
ao alabastrino pescoço da Princeza , feiticeiramente se enlaça
3 *
304 NOTAS.
hum collar espléndido ; e hum espêlho , em que se ella está
mirando , toda desvanecida , lhe dá ás suas virginaes esquivan-
ças o derradeiro mate . Estreiteza de praça na téla não dá ve-
rem-se os guardas ; mas lá se enxérgão os ferros das lanças ,
não aprumadas , e de véla , senão descuidadas , e descahidas ;
por onde bem se entende , que as mãos , a que erão confiadas "
bem pouco se lhes dá d'ellas, emquanto se pódem por lá andar
estendidas á chuva .
¡ Ora , Poeta , que assim excedia na Pintura a Girodets e
Carraccis , que não houvera feito , se no mesmo assumpto pro-
vára a mão ! Que situação mais para estudada , e descripta ,
que a da Virgem n'aquelle encêrro , onde se criára sem ver
homem , ignorando , por isso mesmo, a maior parte do seu mes-
mo sêr , cercada da natureza , como de hum enigma na idade
do amor , e sem amar , por não saber : mas sempre emfim de
carne e sangue ; e , por isso , sonhando , por vago instincto , o
que quer que fosse , huma míngua , ou hum sobêjo , hum con-
tentamento, ou huma pena ; perplexa , entre a confusão de hum
Oráculo , que atterra o seu amor filial , e as curiosidades , que
esse mesmo Oráculo lhe suscíta ; e logo , vendo com espanto
chover o ouro , e do ouro vendo com maravilha , com rapto ,
com encantamento , formar-se a seus ólhos hum Deos ; hum
Deos , que não he dos pêcos ; hum Deos , que lhe falla amor
linguagem , que ella nunca ouvio , mas que entende ; que não
só lh'o falla , mas lh'o exprime por todos os modos , e lh'o in-
flue, e lh'o explica, e lh'o próva, e lhe deixa por fructos d'el-
le os suavissimos tormentos da Maternidade ; e tudo isto , ¡ e
Deos sabe quanto mais ! esperdiçou , quem para tal não podia
ter outra razão, senão o sabido achaque dos opulentos, que he
a prodigalidade.
Passando por alto a passageira visita de Perseu ao descor-
tez , e bem punido , Atlante , sigamos o Heróe alípede pelos
ares até a Ethiopia ; que ahi nos aguarda, assim como a elle,
huma inaudita scena entre dous monstros , hum de ferocidade ,
outro de formosura . A história de Andrómeda , agrilhoada ás
róchas, para ser da Féra marinha devorada, e o gentil modo ,
como Perseu a liberta , são , em todas suas partes , hum dos
mais admiraveis trêchos , que nos herdou a Antiguidade . Vê-
de-me a ância, com que o immortal Ariôsto, no canto décimo,
tomou ao nosso Poeta com a liberdade , com que o costuma ,
e com que entre dous bons irmãos usa hum das alfáias do ou-
tro, este primoroso concebimento ; eo fez seu, com igual crédito
para ambos , no episódio de Rugeiro , salvando das fúrias da
NOTAS. 305
Órca a formosa Angélica . Qual a origem fosse d'esta Fábula
de Andrómeda , a que se pertendem dar mui desvairadas ex-
plicações , he essa huma briga de antiquários , com que ncs
não metteremos. Quanto porêm ao logar , onde essa , ou simi-
Ihante cousa, passára, apontarei por curiosidade, que em Jop-
pe , Jaffa , ou Japho , marítima cidade ás abas do Mediterrâ-
neo, onde vão pojar os peregrinos de Terra Santa, querem au-
tores de boa nota , que tal , em verdade , succedesse . Assim o
tem Strabão assim Plínio , o qual em o Livro quinto da Na-
tural História , diz : —he Joppe huma cidade mais antiga , que
a inundação das terras , (no que vai com Pompónio Méla , li-
vro 1.º, capitulo 11. °) está assentada em hum alto , com hum
penédo diante , onde ainda amostrão os vestigios das prisões de
Andrómeda. Lá se venéra a fabulosa Cette , ou monstro mari-
nho. No mesmo livro , capitulo 34 : -no mar Fenício , diante
de Joppe , está Pária , que he , toda ella , huma cidade fecha-
da , na qual , dizem , que fora exposta Andrómeda á Féra ; já
se lhe tambem déra o nome de Arados , e dista do continente
sincoenta covados de mar fundo , segundo Muciano. O mesmo
Plínio, no Livro 9.º, capitulo 5.º : -os óssos da Féra, a que,
se dizia , ter sido Andrómeda offerecida , trazidos de Joppe ,
cidude da Judea , a Roma , fórão , entre outras maravilhas ,
mostrados por Scauro, quando servio de Edil ; e tinhão de com-
primento quarenta pés ; as costellas aventajavão-se a dentes de
elephantes , a espinha tinha seis pés de grossa. Méla escreve :
-foi Joppe , conforme reférem , edificada antes do Dilúvio ;
n'ella, affirmão os naturaes haver reinado Cepheu : do que téem
por próva , o conservar-se a invocação d'elle , e do irmão Phi-
néu a humas aras antigas, que ainda lá são tidas em grande re-
ligião , e até amostrão , como claro argumento d'aquelle succes-
so, tão celebrado nos poemas, e fábulas , de Andrómeda conser-
vada por Perséu , os desconformes óssos de huma besta mari-
nha. - O israelita Flavio Josepho, que floreceo no Império de
Tito , testemunha , que ainda no seu tempo se vião n'hum pe-
nhasco os signaes dos grilhões , com que Andrómeda estivéra
presa . S. Jeronimo , escriptor do primeiro meado do Quarto
Século da Era Christã , fazendo commentário sobre Jonas, pro-
phéta , que em Joppe se embarcou para aquella memoranda
viagem , em que foi tragado da Balêa , tem estas palavras : -
o logar he este , onde , inda hoje em dia , se mostrão na praya
as rochas , em que Andrómeda esteve amarrada , e d'onde , pe-
lo esforço de Perséu , se vio sólta. - Mas concluamos , ouvin-
do , o que na materia nos dirá o nosso curioso Frei Pantaleão
306 NOTAS.
de Aveiro, (*) que faz caminho de Romeiro para a Terra Santa :
- ·Dentro na agua no porto nam muyto apartados da terra está
os penedos a modo de ilhotezinhos , aos quaes algús poetas con-
tam , que estaua atada Andromeda filha de Cepheu quando foy
de Perseo liure a que nam fosse tragada do monstro marinho
.... Eu somente dou testemunho & affirmo , que com
meus olhos vi & com minhas mãos tratei as basas da coluna a
que dizé foi atada, as quaes estão lauradas na mesma rocha , &
penedos , dentro no mar, com grandissima curiosidade de folha-
gés de obra corinthia , inda que ja gastada & comida , assi do
mar como do tempo : &, como eu tinha lido a historia, andan-
do de vagar vendo húa & outra cousa, seguindo nisso minha na-
tural inclinação , dei a caso com estas basas , & com admiração
as mostrey aos companheyros louvando mays a subtileza , & cu-
riosidade da óbra , que tratando da história gentilica. Escrevo
aqui isto (accrescenta elle) não por de todo o crer mas por que
o escrevem autores graves , ainda que gentilicos .
Se porêm em Joppe na Judéa foi o successo " o que não
deixa de condizer com algumas circumstancias de pessoas, que
Ovidio no princípio do seguinte Livro , descrevendo a penden-
cia , que seguio ao banquête das bôdas , especialisa , nomean-
do entre os Convidados, Assírios, Babilónios , Palestinos , etc.
¿ como nos diz aqui o mesmo Ovidio , que fôra na Ethiopia o
reino de Cephêu ? He difficuldade , mas explicão-na , porque
diz o grande Newton na sua Chronología dos Antigos Reinos ,
que havia Cephêu obtido de Ammon , rei da Lybia , a cidade
de Joppe , e que d'essa cidade he que Persêu levára Andró-
meda .
Perfeita a grande , e arriscada façanha , e morta a Féra ,
dão fim as aturadas angústias d'este Livro. Os vivas e embóras
ao Vencedor , o livramento da Princeza , o alvoroço , e reco-
nhecimento, dos Pais, o mútuo amor do Salvador, e da Salva-
da , os sacrificios , e acções de graças aos Deoses , nos varrem
as nuvens da tristeza de sobre a alma : para tudo aqui ser fáus-
to , a propria cabeça de Medusa , sempre terrivel causadora de
catastrophes , aqui não faz mais , do que alastrar-nos de coraes
as prayas , e povoar d'elles os mares : hum banquête , final-
mente, láuto, e real, em Paços opulentos, e custosamente ade-
reçados , nos refocilla ; e com os saborosos póstres de narrações
de já passadas aventuras nos recrêa.

(*) Capitulo XVII , folhas 41 verso , da Edicção de 1593.


NOTAS . 307
Ajuste de contas , com Ovidio , e Bocage.
Contêm este quarto Livro no original 302 versos , e na
traducção 1154 ; isto he , tem a traducção mais 352 , do que
o original. Verteo Bocage tres passos , a saber , desde o verso
55 do original , até o verso 166 ; desde o verso 503 , até o
verso 602 ; e desde o verso 614 , até o verso 661. O primeiro
passo , que comprehende 111 , traduzio-o em 179 versos : o se-
gundo , que he de 39 versos , em 57 : e o terceiro , de 47, em
83. Corre a primeira parte da sua traducção desde pagina 174

Pyramo , singular entre os mancêbas ,

até pagina 182 ,


Guardou n'huma só urna as cinzas de ambos.

A segunda desde pagina 204 ,


O filho de Agenor , Cadmo , vencido ,
até pagina 206 ,

Os benignos dragões inda se lembrão.

E a terceira desde pagina 207,

Levando o espólio do vipéreo Monstro ,


até pagina 210 ,

Todo o pêso dos Ceos descança n'elle .


isto he , 196 versos latinos , em 319 portuguezes ; 123 versos
mais , do que no original : d'estes 319 portuguezes foi-me in-
dispensavel , ou conveniente , supprimir , substituir , alterar ,
ou emendar , 49 : ficão portanto pertencendo a Bocage de todo
este Livro 270 versos , isto he , pouco mais de hum quarto.
308 NOTAS.

SOBRE O LIVRO QUINTO.

(PAGINA 230. ).

Em dous tróços partiremos tambem este quinto Livro : o


primeiro , que abrange no original até verso 250 , e vai na tra-
ducção desde pagina 229 até pagina 241 , proségue , e termi-
na , a chrónica de Persêu ; o segundo , que leva o resto , he
consagrado á larga visita , que Pallas , assim como de Persêu
se apartou , foi fazer ás Musas no seu Monte Hélicon.
mesa estamos ainda, com ElRei Cephêu , com a Rainha,
com a Princeza , com todos os Grandes da Côrte ; regalados
com os vinhos generosos , com os perfumes dos arômas , com a
fragrancia das grinaldas , com o regozijo do instrumental ; em
face da Ara doméstica , onde ondêão as labarédas ; e embeve.
cidos no peregrino contar do Heróe viajante , que tanto fez ,
tanto correo , e tanto vio , desde a terra , até ás estrellas , por
onde roçou senão quando , n'hum relâmpago se transtorna tu-
do ; o festim se desfaz em batalha ; todas as cousas , profanas ,
e s gradas , se convértem em armas ; e os passatempos em ma-
tança . ¿ Quem tanto pôde , e ousou " e conseguio ? o ciume ,
e a ambição. Persêu , alvo, pouco ha, de todas as admirações,
de todas as benevolencias , e invéjas , acha-se , de repente , ex-
posto a todos os insultos , e fúrias , dos levantados : ¡ e fiai lá
nas bonanças , e risinhos , da fortuna ! As côres , com que este
temeroso combate nos he representado , são dignas do grandioso
desenho , com que foi concebido : em mais de duzentos versos
de peleja , e pelêja antiga , ( que , todas , erão propriamente
huns feixes de duellos , e não pelêjas de geral interesse) he tal
a caudalosa fecundidade de Ovidio , que emvão se lhes quizéra
taxar sombra de redundancia , ou demasia , repetição , ou simi-
lhança , pequenez , impropriedade , inverosimilhança , descui-
do , ou cançasso de hum só momento . Disséreis, que não phan-
tasiou elle , o que vos narra ; nem o leo , nem o ouvio , nem
o vio ; senão que o vê , e vol-o mostra . Cada combatente , pôs-
toque retratado de carreira , he hum personagem distincto ,
NOTAS. 309
unico, e reconhecivel : todas as differentes classes , da fortuna ,
ou da natureza, ahi andão a braços, e confundidas, com aquel
la medonha igualdade , que a anarchia põe entre os homens. '
Por demais , he especificar primores , onde todas as cousas o
são mas , não passe sem advertencia hum , de que , não sei ,
se já algum commentador faria cabedal ; sendo , que não fére
elle nos ólhos com pouca fôrça : porque , em quasi todos estes
diversos pugnadores , ha entre as suas partes , ou circumstan-
cias individuaes , acções , que fazem , ou palavras , que profé-
rem , e o género da morte , que os alcança , huma , occulta , e
tão bem afinada, relação, de sympathia, ou de contraste, que ,
ainda os que não chegão a averigual-a , lhe hão de todavia ,
e de necessidade , sentir o effeito . Athis , por exemplo , he
hum mancêbo , formoso ás mil maravilhas , florído , enfeitado ,
e perfumado , como dama , mui pavão de sua formosura ; em
summa , o que hoje chamão francêlhos semsabores petimétre ,
e pintalegrête chamavão , com mais galanteria , os nossos vé
Those como o despacha Persêu ? com huma tiçoada accesa
pela cara , que lh'a encóva pela caveira dentro ; he matar , e
mais que matar. Lycabas , que de Athis era o íntimo , e com-
mette vingal-o , expira sobre elle . A Eritho , bruto de estatura
e fôrças , e bruto de armas , que assim arvora hum machadão
de dous gumes , derriba-o o Heróe , atirando-lhe de longe a
enorme talha do vinho , que pejava a meza ; e vêde-o acabar ,
golfando ondas de sangue , e duramente malhando o chão com
a nuca. Emathiôn , ancião piedoso , por entre o tumulto anda
prégando a paz, e se abraça com o altar, para exconjurar taes
ódios ; huma cutilada sacrilega lhe decépa a cabeça , que róda
para cima das châmas , e ainda lá , expirando , murmura exe-
crações ; ¡ donosa constancia de prégador ! O poeta , e cantor ,
que á hora do festim acodíra a embellesal-o , como aos prados
de Maio acode o rouxinol ; no meio do temporal dos mundanos
pelejadores , está como estranho , e vendido , immovel , inerte ,
absôrto ; como que sonha , e não presencêa , taes impossiveis :
esta nobre cabeça , he varada de hum bóte ; a ultima convul
são d'estes dêdos moribundos , extrahe ainda das córdas huma
melodía, que se esvaéce com o seu derradeiro suspiro. Péttalo,
o autor de tão villa façanha , e que ainda a encareceo , mote-
jando ao cantor , a quem matava , recebe o pago , que lhe ca-
bia ; para o supplício d'esse, e vingança de seu confrade , não
quer Ovidio outra arma , que não seja huma tranca , e de tão
boa gana lhe vai ella cascada á cervíz , que se parte em duas ,
e o baquêa , como a touro . ¿ Porque mais ? Relêde , e , quanto
310 NOTAS.
mais o fizerdes , mais , eu vos fio , que descobrireis diamantes
mesclados n'este ouro.
O restante d'esta lide , até á petrificação de Phinêu , he
sobremaneira bello, e theatral, e abundante de incidentes, que
varião constantemente hum fundo , aliás uniforme.
As seguintes punições , de Préto , e Polydéctes , vão ape-
nas esboçadas , e não ha que dizer d'ellas , senão , que , em
ambas , e , em especial na segunda , havia , porventura , ma-
téria para maior óbra , e muito conveniente ; á propria ilhêta
de Seriphe , se havia acolhido Dánae , com seu filho Persêu ,
por esquivar as iras de Acrísio ; ahi , não só fôra agasalhada
de Polydéctes , senão amada , e desposada sua , segundo Hy-
gino e fôra este mesmo Polydéctes , quem , para se descartar
da presença de Persêu , já mancêbo , que lhe fazia sombra , e
manhosamente dar cabo d'elle, o mettêra em brios de ir matar
a Medusa , arriscadissima façanha , de que por nenhum mo-
do houvéra sahido vivo, se Pallas e Mercúrio o não tivessem
prendado com o Terçado, e Escudo, de que résão as fábu
las ; mas o Poeta lá devia saber , o porque taes cousas en-
geitava .
Cançados das brigas, e vinganças , da primeira parte do Li-
vro , voamos na segunda ao Hélicon , onde com Pallas , entre
amenos arvorêdos, e formosas Musas, nos aguardão mais suaves
desenfados. No saboroso collóquio de taes Deosas , e em taes
sítios , sente-se aquillo , que hoje dizem estrangeirados con-
fórto , e melhor se expressa pelo conchego dos nossos bons
vélhos .
De allegorias, que são o sentido místico das fábulas, pou-
ca , ou nenhuma , conta havemos feito até aqui : porêm aqui ,
onde hum tal Poeta só nos trata de Musas , parece-me , que
algum sentido occulto lhe poderemos , sem temeridade , attri-
buir. Deixemos a origem da Hypocréne, que, não sei porque,
se finge produzida de hum couce do Pégaso , d'onde o nome
de Hypocréne , ou Caballina , lhe proveio . Nem tão pouco , o
porque se havia de phantasiar, que em aguas chilras de fon-
tes se accendião poetas ; teima mui contra natureza , em que
ainda hoje teimão alguns odeiros vates de raça árcade , OS
quaes , eu nunca ouço , sem me lembrar , do que , no seu
Dialogo das Fontes, põe em bôca de Apollo o nosso D. Fran-
cisco Manoel ; juro a mim , que se podéra , como já pude ,
houvéra de hoje por diante desterrar as minhas Muzas de
todos os Rios , & Fontes , & fazellas de sequeyro , que quiçá ,
como fruta , ou ortaliça ficárão de melhor gosto : mas dou ,
NOTAS . 311
que o não ficassem , já se ganhava o não ouvir Fontes tão ba-
charélas.
Em sós tres cousas advertiremos ; a visita de Pallas ás
Musas , a tragédia de Pirenêo , o desafio das Piérides. A vi-
sita de Pallas , Deosa das Sciencias , e do Esforço , ás Musas
o bom gasalhado , que estas lhe fazem , tratando-a por quasi
irmã, bem estão inculcando, por huma parte, quanto o saber,
e a virtude , são para se unir com os dótes do engenho ; ver-
dade de todos os tempos , porêm n'estes nossos ainda muito
mais, e melhor entendida, pôstoque raro praticada ; è por outra
parte , que aos grandes , e poderosos , não os desdoura , senão
que os honra, o humanar-se , e descer de suas remontadas nu-
vens a contemplar os talentos , que , emboscados em solidão ,
desertores , e desertados do reboliço do Mundo , preparão , va-
garosamente , óbras , que , unicas , passarão inteiras , venera-
das , e venerandas , de Idade a Idade.
¿ Pirenêo querendo forçar as Musas ; as Musas voando , e
fugindo-lhe ; elle querendo seguil-as pelo céo , e despenhando-
se ; não estão retratando pelo natural , ou a vaidosa soberba
de hum d'esses pequenos grandes , de que a terra cria tantos ,
que pretendem , para arribar á posteridade , agro paiz , para
onde se não comprão passaportes , jungir a seu carro os bons
engenhos , e a final vão cahir no Léthes ? ou ess'outros presu-
midos , de que ainda muitos mais pulullão do pó , que , sem o
sufficiente cabedal , de espirito, e doutrina, aspirão ás fragosas
alturas da glória litterária ? Não he isso , querer forçar as
Musas ? ¿ vendo-as fugir , perseguil-as , baquear-se , e perecer
miseravelmente , como qualquer Pindaro das dúsias ? Quanto
ao histórico d'esta Fábula, Plutarcho a tem por huma narração
metaphorica , e nos ensina , que , reinando em Phócida hum
tyranno , d'aquelle nome , inimigo , como quasi todos , da sua
inimiga , que he a Instrucção , mandára deitar abaixo os col-
légios , e academías , onde se professavão as bellas letras : e ,
para o tornar odioso , se disse , que tentára violar as Musas ;
que os Deoses , para as livrar , lhes dérão azas ; e , que elle ,
pelas perseguir, morrêra . A esta Fábula se deve referir huma
representação de Musas aladas , que Montfaucon commemó-
ra de hum antigo monumento . D'esta , como da seguinte ,
do desafio das Piérides , não se aponta vestígio em autor al-
gum anterior ao nosso : se , em verdade , foi elle o seu crea-
dor , bem fez em dar a Thrácia por naturalidade a esse bár-
baro.
A contenda das Piérides com as Musas , por si mesma es-
312 NOTAS.
tá dizendo , o a que vem. He a vaidade estólida querendo
apostar-se , e quebrar canas , com o verdadeiro engenho . As
Musas , que o simbolisão , contentes com o seu retiro , não só
não provócão, senão que , provocadas, e sabendo certo , alcan-
çarão a palma , têem custo em acceitar a lide , que ess'outras
reloucadas , de tão longe , e lá dos seus montes gelados , vié-
rão , acintosamente , commetter-lhes . Tudo ahi se passa como
cumpre : para tribunal , que sentencêe , se nomêão as Nym-
phas , e se juramentão a manter justiça de Pan, e mais cam→
péstres Deoses músicos , se houvéra lembrado qualquer poeta
menos attento que Ovidio ; mas Ovidio , entendeo , que não só
haveria mais delicado gosto em árbitras femininas , para bem
avaliar os delicados fructos da imaginação ; mas tambem , que
toda a suspeição de parcialidade em favor da formosura , fica-
va , d'este modo , sendo inadmissivel . Tres mui palpaveis op-
posições apparecem entre as pessoas, e cantos, da mortal desa-
fiante , e da Immortal , que , em nome de todo o Côro , lhe
responde. PRIMEIRA OPPOSIÇÃO : a Piéride , não espéra , que
o sorteio determine , qual deve começar ; levanta-se de impro-
viso , e descommedidamente encéta as suas tróvas : Calliope ,
segura de primar quanto ao effeito, modéstamente se contenta ,
nas próvas , com o segundo logar : e reparai ainda mais , que ,
depois que a Musa , relatora d'esta scena , disse a Pallas essas
tróvas da sua adversária , como que se retrahe , e téme tornar-
se importuna , referindo o alto Poema de sua propria Irmã , e,
só animada , e rogada , pela Deosa , lhe dá princípio . SEGUN-
DA OPPOSIÇÃO : he o canto da pseudo-poeta huma sátira , gros-
seira , e muito industriosamente indigésta , e enxabida , contra
os Deoses ; ( ¿ e que ha mais impoetico , do que a impiedade ?)
ao mesmo tempo , que alça os sacrilegos Gigantes a gráo de
Heroes , (¡ bem se irmanava com elles na condição ! ) a Musa ,
pelo contrário , fulmina , e sotérra os Gigantes ; tributa aos
Deoses louvores, e rendimentos. TERCEIRA OPPOSIÇÃO : as ven-
cidas , prorompem em injúrias , e violencias ; ao mesmo passo
que as Vencedoras, com a serenidade, que he filha da conscien-
cia da fôrça , só a poder de aggravos sobre aggravos se deci-
dem a castigal-as ; e , ainda então , não as vêdes recorrer a
supplícios atrózes ; convértem-nas em pêgas ; para que , sob
essa nova fórma , continuem de ser , como d'antes , gárrulas ,
vaidosas , e ridículas , ¡ oh ! se ainda hoje as Musas conservas-
sem o dom dos milagres , quem se entenderia com pêgas ! Es-
ta moderação , que o nosso Poeta attribue ás Musas , em si
mesmo a deveo elle achar ; que he essa huma das jóias , com
NOTAS. 313
que mais costuma resplandecer o talento grande . Foi Ovidio ,
homem de muitos amigos , mas tambem teve inimigos , invejo.
sos , detractores , perseguidores , piérios , e pêgos ; porque to
do o sol , que muito allumía , tambem deslumbra , e céga ; pa-
ra Homéro , houvéra Zôilo ; para Hesíodo , Cécrope ; para Si-
mónides , Timocreonte ; e para Virgilio , Bávio ; que muito ,
que para Ovidio houvesse hum Hygino , ou outro quejando ?
¿ mas, como se desaffrontou d'elles ? Com o silencio quasi sem-
pre , e ainda quando , huma , ou duas vezes , os fustigou , tan-
to se absteve de os nomear , que , por sua parte , nol-os deixou
desconhecidos . Esta lição he moral ; e tomada pelos do officio,
não fará pouco ao seu repouso , e fortuna.
Do canto de Calliope, confesso, que antes quizéra callar,
do que fallar ; porque, em geral, o tenho por inferior, ao que
da Musa se havia de esperar, e a muitos outros trêchos das
Metamorphoses : mas já sabereis, que sou achacado da verda-
de, e por isso direi tambem agora, o que a mim me parece
tal sobre tal sobre a matéria . A proposição deste Canto

Quem primeiro estreou na terra virgem


O arado creador, primeiro aos Póvos
Deu macío sustento em áureas mésses,
E em meditadas leis, costumes, pátria,
Céres foi tudo é dádiva de Céres .
Quanto ella he digna de formosos cantos ,
Possais vós, cantos meus, ser dignos d'Ella -

ou promette mais, ou promette diverso, do que vem a sahir


desempenhado porque, não he Céres legisladora, e civilisadora,
quem figura, senão Céres desconsolada na procura de sua Fi-
lha. Muito melhor se houvéra proposto Prosérpina, como he-
roína ; pôstoque a natureza especial de hum Poema, que, por
toda a parte, tinha de ser cheio, e cochado, unicamente de
Metamorphoses, nem bem ao titulo de Prosérpina faria cama.
O papel de Céres, he, em verdade, de mui secundário inte-
resse ; quanto ella faz, he chorar, e correr mundo, transformar
hum rapaz em ósga, destruir as lavouras da Sicilia, queixar-se
a Jupiter, ouvir huma história a Arethusa, e, a final, determinar
a Triptólemo, que vá espalhar pelas terras o uso do pão ; mas
esta ultima parte, que seria a mais adquada á personagem, e
onde porventura caberia algum pouco de philosophico , e de
didáctico, he tocada a escapar, e sem particularidade alguma,
que a recommende,
314 NOTAS.
Quanto ao rapto de Prosérpina se refére , me parece, peło
contrário, excellente : o Tiphêo, sepultado vivo sob a Sicilia,
he filho de Pindaro, e bem o mostra pela gigantéa sublimi-
dade ; mas a Musa de Ovidio o faz seu pela maneira, com que
o trata. O afan, com que Vénus, vendo hum hora a Plutão
fóra do Avérno, péde ao Filho, Amor, que aproveite o ensêjo,
para o ferir, e namorar da Filha de Céres, que, em menoscabo
seu, se ha votado por virgem ; a prompta obediencia de Cupi-
do ; e o repentino roubo da donzella , são formosas cousas, até
pela sobriedade, com que sahem ornadissimas : d'aqui ávante,
começa a decadencia : o episódio de Cyane he fraco ; a pere-
grinação de Céres, se não tem a difusão, e o contínuo esbom-
bardar de Claudiano, tambem se ha de confessar, que não tem
tanto affecto maternal, nem algumas de suas louvaveis phanta-
sias. Tanto he facil aos discipulos (como já em outra parte
advertí) sobrepujar algumas vezes aos méstres, que os prece-
dêrão ! E, pois que passamos por Claudiano , digamos, afouta.
mente, contra o carneiral rebanho dos criticos, que o seu Poema
do Rapto, defeituoso , e incompleto, como he, encerra mais
saudade, e melancolía, e , muitas vezes, hum colorido mais
vivaz, e adquado, que muitos dos melhores pedaços dos melho-
res Méstres.
A Fábula de Cyane , e a digressão da sêde de Céres , não
merecem mencionadas. A sua scena de despeitos , lástimas , e
súpplicas perante Jupiter, bem vai ; mas não espanta : o caso
da transformação de Ascálapho, era susceptivel de mais curiosa
pintura ; e as Serêas, apenas passão desgarradas por hum re-
canto do quadro .
No resultado da conciliação, que Jupiter faz entre os en.
contrados interesses da Mãi , e do Espôso , de Prosérpina , se-
gundo o que, ficará sendo seis mezes do Inferno, e seis do Mun-
do, tambem cabia, e se esperava , hum pouco mais de Ovi-
diano engenho. Quizérão alguns visionarios mythológicos adivi-
nhar n'esta Filha de Céres, seis mezes debaixo, e seis de cima,
da terra, huma allegoría do grão, ora semeado, e invisivel ,
ora rebentado, luxuriante, e viçoso : eu , cuja fé não chega a
tanto, só digo, que , se Ovidio não tivesse andado aqui tanto á
carreira, muito nos houvéra deleitado com as alternativas de
duas vivendas, tão diversas, e a muitos respeitos , tão sympathi-
cas ; dos Elysios , onde ella passa rainha os seus invernos, e
das claras noutes de verão , que lá, na Italia do Poeta, e cá ,
n'estoutra nossa Italia do Occidente, tão poeticas são, e tão
Elysias.
NOTAS. 315
Mas Arethusa nos vinga : a sua história he hum modelo
de graça, narrativa, e descriptiva . De Triptólemo, e do final
do Livro, onde as Piérides são punidas das bravátas, e inso-
lencias, já deixamos dicto, quanto basta.

Ajuste de contas, com Ovidio, e Bocage.

Contêm este Livro no original 678 versos, e na traduc-


ção 963 : isto he, tem a traducção mais 285 do que o original .
A Bocage nada pertence.

FIM DO TOMO PRIMEIRO.


18 JY63.

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