Você está na página 1de 39

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE LETRAS

LITERATURA CEARENSE

PROFESSOR CARLOS AUGUSTO VIANA

NOTA: Os textos que se seguem pertencem ao livro LITERATURA CEARENSE, DE SÂNZIO


DE AZEVEDO – obra que integra o CD “Revista da Academia Cearense de Letras –
virtualização da antologia, 2012; aqui editados tão somente para a fotocópia dos alunos, com
finalidade puramente didática.

1. NEOCLASSICISMO

Talvez devêssemos apresentar a primeira fase da Literatura Cearense sob a


denominação ampla de Classicismo (englobando o tern1o as manifestações que vão do
Renascimento ao Arcadismo): é que, se a obra dos poetas que iremos estudar está liberta da
maioria dos maneirismos barrocos, o certo é que também não apresenta aquela emoção que
perpassa nos sonetos dos árcades mineiros. Seguimos porém" a classificação dos autores que
nos precederam e que, mais adstritos à época, chamaram de neoclássica a poesia dos Oiteiros.

OS OITEIROS

Florescendo por volta de 1813 ou 1814, a literatura desse tempo é representada pelos
poemas de um grupo que se reunia em tomo do Governador Sampaio (Cel. Manuel Inácio de
Sampaio) , em sessões palacianas que ficaram famosas sob , a designação de Oiteiros, onde se
destacavam os nomes de Pacheco Espinosa, Castro e Silva, Costa Barros e outros. Sua poesia
não se afastava dos louvores aos heróis e aos governantes, com o que seguiam 11m dos
postulados neoclássicos de Luís Antônio Verney, teórico da corrente em ·Portugal; mas, ainda
impregnados de racionalismo barroco, os poetas dos Oiteiros não se entregaram aos temas
pastoris, a fim de embelezar a realidade. Daí, sua produção versificada, que não se eleva pela
grandeza do estro, não poder ser considerada puramente arcádica ou neoclássica .

PACHECO ESPINOSA

José PACHECO ESPINOSA - Nasceu na Ilha da Madeira, em data ignorada, vindo a falecer em
dezembro de 1814, provavelmente no Ceará. Era um dos principais comerciantes de Fortaleza
em seu tempo, chegando a fazer transações diretas com a Europa. Segundo informação do
Barão de Studart, Espinosa foi "dos poetas de mais nomeada que teve o Ceará no começo do
século passado". Apesar de nascido em terras de Portugal, aderiu à causa de nossa
Independência.

Soneto I

Alegrai-vos ó Chefe esclarecido

Pois que extinta está a cruel guerra:

Já respira alegria toda a terra,

Já se esquece do que tem padecido .

Alegrai-vos Congresso enobrecido,


Que a paz, a Santa paz que o mal desterra,

A guerra afugentou que tudo aterra,

E tudo deixa a cinzas reduzido!

Venceu a justa causa: aniquilado

Esse monstro ficou, esse Tirano,

Que há de perpetuamente ser odiado.

Regozija-te ó bravo lusitano!

Vivas repete, Exército aliado!

Exulta de prazer, Americano!

Soneto 2.0 "Para o Chafariz da Vila Fortaleza"

Esta que , vês, curioso passageiro

Límpida Fonte, clara, sussurrante

De cristalinas águas abundante,

Que o Sítio faz ameno, e lisonjeiro:

Este manancial de água, o primeiro,

Que fez surgir na Vila arte prestante,

Para a sede saciar o caminhante,

O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro:

Edificada foi incontinenti,

No memorável, ótimo Governo,

De Sampaio, Varão reto, ciente.

Como ao Povo mostrou amor Paterno,

Para todo o seu bem foi diligente,

Nesta Fonte deixou seu nome eterno.

Soneto 3 "Ao Aumento da Vila de Fortaleza"


Vai ó Fama, por toda a redondeza,

Publicando por tuas bocas cento,

Do Ceará que foi pobre o muito aumento,

A grande exportação, suma riqueza.

Dize que já se vê fausto e grandeza,

Na ·sua Capital do Chefe assento:

Que polícia já tem, tem luzimento,

E tem o que não tinha, Fortaleza.

Dize que do Governo a alta mente

Estas obras brotou assaz louvadas,

Por todos, sim, por todos geralmente;

Erários novos, rampas e calçadas,

Aterro, Cllafariz, Aula excelente,

Novas ruas, muralhas elevadas!

(Apud Dolor Barreira. "Associações Literárias no Brasil e Particularmente no Ceará Oltelros",


ln Revista do Instituto do Ceará, vol. L VII, 1943, pp. 148-204.)

O soneto inicial refere-se provavelmente ao primeiro desterro de Napoleão, sendo ele,


portanto, esse tirano, Que há de ser odiado, visto haver ordenado a invasão de Portugal pelas
tropas de Junot, como se sabe; por isso deve regozijar-se o português, assim como o exército
aliado contra Bonaparte, e os americanos, ou seja, os brasileiros; note-se a dicção clássica
sobretudo através do hipérbato (A guerra afugentou que tudo aterra). No segundo soneto, a
pretexto de falar da construção de um chafariz em Fortaleza, derrama-se o poeta em elogios ao
Governador Sampaio, que é citado nominalmente; é um dos raríssimos poemas da época em que
há notas de poesia pastoril, apesar de tratar de uma fonte artificial: é quando, no primeiro
quarteto, fala da fonte "clara, sussurrante", abundante de águas cristalinas, e Que o Sítio jaz
ameno e lisonjeiro; há inversões igualmente nessa estrofe. O soneto "Ao Aumento da Vila de
Fortaleza", um dos mais interessantes de Pacheco Espinosa, volta aos elogios, exaltando o
progresso da Vila, devido à "altamente" do Governo Sampaio; no verso 8 certamente quis o
poeta fazer um trocadilho, dizendo que a vila "já tem o que não tinha", isto é: fortaleza
( qualidade de ser forte) , com o que mostra forte acento barroco . Os sonetos todos seguem
rigorosamente o esquema rimático do Classicismo, em ABBA ABBA CDC DCD. Pelo fato de
serem quase todos dominados pelo tom louvaminheiro, o que, diga-se de passagem, era
característica geral no tempo, assim se expressou Sílvio Júlio, tratando precisamente de
Espinosa:· ''Sonetos, décimas, vários tipos de composições que deixou referem-se a coisas do
Ceará. É pena que estes acontecimentos não fossem os da sociedade, porém os do governo. Em
vez de cantar as praias batidas de vagalhões, o homem, gelidamente, atravancava o Parnaso com
décimas e sonetos sobre um chafariz!''
Antônio de CASTRO E SILVA Nasceu em Sobral em 21 de dezembro de 1787, e faleceu em
Arronches (Porangaba.) , em 13 de Julho de 1862. Tendo sido arbitrariamente preso em
novembro de 1825, publicou mais tarde uma Resposta ao manifesto do ex-comandante das
armas do Ceará, Conrado Jacó Niemeyer (1828), saída no Rio de Janeiro. Era Cônego, tendo
Sido Capelão do Governador Sampaio.

Este obséquio, Senhor, que vos envia

Meu ânimo fiel, curto parece;

Mas quem o pouco que possui oferece,

Se mais tivera, muito mais daria.

Sobre singelas mãos não se avalia

A oferta, pelo vulto que aparece;

Que então a aceitação fora interesse,

Vício que nunca em vós haver podia.

Bem sei que de meus versos a humildade

Subir não pode àquele desempenho

A que a minha afeição me persuade;

Mas uma salvação convosco tenho,

Saber que a vossa cândida vontade

Mais preza um dom d'amor que d'alto engenho.

(Dolo r Barreira. Op. e loc. clt.)

Repete-se aqui a poesia palaciana, fundamentada em temas muito pouco poéticos e


cheios de lisonjas aos governantes, o que era de praxe na época, e como pregavam os árcades
europeus, para os quais a poesia, entre outras coisas, deveria celebrar os deuses, os heróis e os
homens ilustres. Mas é digna de nota a segurança com que Castro e Silva trabalha o decas
sílabo, que sai perfeitamente balançado, sem a dureza ou a frouxidão de alguns versos do
próprio Espinosa. Castro e Silva, pelo menos neste soneto (o único que dele conhecemos),
mostra-se um excelente artífice do verso, conhecedor da técnica do soneto, sabendo ainda tirar
efeito dos hipérbatos e dando ao poema uns toques que mais o aproximam da dicção camoniana
do que da arcádica. Note-se, no verso 3, a sincope não assinalada de oferece, que deve
forçosamente ser tudo como se estivesse grafado of'rece.

COSTA BARROS

Pedro José da COSTA BARROS Júnior Nasceu no Aracatl, em 7 de outubro de 1779, e faleceu
no Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 1839. Deixou de fazer parte da Constituinte Portuguesa
para ficar no Rio de Janeiro, trabalhando pela independência do Brasil. Foi eleito à Constituinte
Brasileira em 1822, após cuja dissolução foi nomeado Ministro da Marinha. Veio para o Ceará
em 1824, como Presidente da Província, ao tempo da rebelião de Pereira Filgueiras e Tristão
Gonçalves. Um de seus poemas foi incluído no Florilégio da Poesia Brasileira (1850), de
Varnhagen, editado em Portugal. De sua longa Ode "Aos Heróis Lus'Anglos" damos apenas
uma amostra, transcrevendo-lhe 0 início:

Aos Heróis Lus' Anglos (fragmento)

Estrofe 1ª

Do Sacrossanto monte despregando

As lisas, brancas asas pressurosa,

Baixa celeste Musa: "

Do fogo, com que o Vate de Venusa,

Com que de Elpino a mente estrepitosa,

Dos Heróis a favor foste inflamando,

Benigna hoje me assiste, hoje me inflama:

Com teu divino facho

Tu na minha alma ateia ardente chama:

Guia-me afoita mão, que as Cordas fira;

E transporei às Eras Ações, que assustam

Mantuana lira.

Antístrofe 1ª

Dos Lus'Anglos Heróis em toda a terra

O sempre glorioso, imortal nome

Espalha novos brados:

Heróis, filhos de Heróis, de Heróis traslados,

Louro vivaz, que o tempo não consome,

Verde sempre na paz, verde na guerra:

No Eterno Templo só não brilha escrito

Temístocles, Lisandro,

Crasso, Antônio, Pompeu, César invicto:

Admira, ó Grécia; e tu contempla, ó Roma,

O glorioso enxame

De modernos Heróis, que ao Templo assoma.


Epodo 1º

O monstro vê raivoso

A Lusitana glória!

Arma contra a Nação, que vencedora

Sempre firme afrontou perigos, mortes,

Invejoso, cruel, fatais coortes;

Mas vê que à estragadora

Esfinge, que assolou Europa inteira,

Lusos peitos se opõem . Há mor barreira .

(Dolor Barreira. Op. e loc. cit.)

Esta é somente a sexta parte do poema que, seguindo o esquema da ode pindárica, é
composto de Estrofes, Antístrofes e Epodos. Fiel a um dos postulados da corrente arcádica,
celebra o poeta a luta de ingleses e portugueses contra os exércitos napoleônicos. Na l.a estrofe,
pede à Musa, como era de praxe, que lhe dê inspiração para cantar os feitos de heróis: a Musa
deverá descer do Parnaso (o "Sacrossanto monte"), ' com o fogo que inflamou a mente de
Horácio (o "Vate de Venusa' .'); assim cantará o poeta ações tão admiráveis, que assustarão a
própria inspiração de Vergílio (nascido em Mântua). Na 1.a antístrofe, são enumerados nomes
de várias figuras da História Antiga, aos quais acrescenta o poeta os dos novos Heróis,
igualmente gloriosos. Por fim, no epodo lº, é preparado o ambiente para se iniciar a descrição
dos combates: Napoleão intenta avançar contra Portugal, invejando-lhe as glórias. Os lusitanos
porém se opõem energicamente, e forma-se inacessível barreira. Essa ode, embora sem
grandeza, representa muito bem o poeta da época, com suas frequentes alusões ao mundo
antigo, e a pretensão de verem os poetas ·os seus cantos imortalizados tempos afora ("E
transporei às Eras Ações, que assustam Mantuana lira.").

Para o historiador Carlos Studart Filho, os Oiteiros não devem ter durado apenas de
1813 a 1814. como admitira Dolor Barreira ; é que o Governador Sampaio, que exerceu o
governo da Capitania de 1812 a 1820, "Sendo inteligente e muito amigo de incentivar o gosto
pelàs Belas-Letras, não podia, é claro, desinteressar-se das atividades intelectuais de seus
governados dois anos depois de eles terem iniciado com ' tanto ardor. "E menciona ainda uina
carta de 1817, em que o governador mecenas falava de uma festa, que teria sido abrilhantada
com "Muitas peças poéticas de mais ou menos merecimento.''

2. A PADARIA ESPIRITUAL

Voltando ao século passado, falemos da Padaria Espiritual, a original agremiação


fundada em Fortaleza, na Rua Formosa (hoje Barão do Rio Branco), nº 105, em 30 de maio de
1892, entidade que logo veria seu nome repercutir em todo o País, pela inédita bizarria de seu
programa. Como "padaria", propunha-se produzir o pão do espírito: seus sóc1os eram chamados
de " · padeiros", sendo Padeiro-Mor o presidente, o Primeiro-Forneiro o secretário, e
"amassadores" •= os demais sócios. Como era de se esperar, intitulou-se O Pão o órgão da
entidade na imprensa. "Forno'' era o local das sessões que, por sua vez, se denominavam
"fornadas".

Antônio Sales foi o idealizador da sociedade e que lhe redigiu o Programa de Instalação,
que transcrevemos na íntegra:
1 Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siàrá Grande,
uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada· "Padaria Espiritual", cujo fim é
fornecer pão de espírito aos sócios, em particular, e . aos povos, em geral.

2 A "Padaria Espiritual" se comporá de um Padeiro-Mor (presidente),' de dois Forneiros


( secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de Guarda-Livros na acepção intrínseca da palavra
(bibliotecário), de um .Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da
Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de
Padeiros.

3 Fica limitado em vinte o número de sócios,· inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir
sócios honorários, que se denominarão Padeiros-livres.

4 Depois da Instalação da '.'Padaria", só será admitido quem exibir uma peça literária ou
qualquer outro trabalho artístico que for julgado. decente pela maioria.

5 · Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra de cada
Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o
trabalho dessas indagações.

6 Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão
usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.

7 O distintivo da "Padaria Espiritual" será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo
que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.

8 As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à exceção das quintas-feiras, e aos


domingos, ao meio-dia.

9 Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer


peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras
que lerem.

10 Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas, e literatos a começar


pelos nacionais para o que se organizará uma lista, na qual serão designados com a precisa
antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou
estrangeiras.

11 Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.

12 Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo
possível, assinando todos os Padeiros presentes.

13 As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará
conta do dinheiro recebido e despendido.

14 É proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o


emprego dos neologismos do Dr . Castro Lopes .

15 Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a
flor, com exceção da de chichá.

16 Aquele que durante uma semana não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica
obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas . Quem disser uma pilhéria
superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.

17 O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plágio, falado ou escrito, pagará café e
charutos para todos os colegas.
18 Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão
ignaro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem-estar mútuo.

19 É proibido fazer qualquer referência à rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais ou menos
perfumadas dos álbuns.

20 Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero,
Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se
descobrirão.

21 Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou
plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho, etc.
etc.

22 Será dada a alcunha de "medonho" a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom
senso e o bom gosto artísticos.

23 Será preferível que os poetas da "Padaria" externem suas ideias em versos .

24 Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos
e ilícitos.

25 · Dirigir-se-á um apelo a todos os ·jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à


biblioteca da "Padaria".

26 São considerados, desde já, 'inimigos naturais dos Padeiros o Clero, os alfaiates e a polícia.
Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear o seu desagrado a essa gente.

27 Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura
contestáveis.

28 Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.

29 Organizar-se-á um Calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos. Haverá


uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em
seguida à data respectiva .

30 A Avenida Caio Prado é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que
felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da "Padaria".

31 Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável


educador Professor Sobreira e suas obras .

32 A "Padaria" representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública


e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de ideias.

33 Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução


pública e particular da Capital, relatórios que serão publicados.

34 · A "Padaria Espiritual" obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um


Cancioneiro Popular, genuinamente cearense.

35 Logo que estejam montados todos os maquinismos, a "Padaria" publicará um jornal que,
naturalmente, se chamará O Pão.

36 A "Padaria" tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e


extraordinário Padre Verdeixa .
37 Publicar-se-á, no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará, contendo
indicações úteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau.

38 A "Padaria" terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se


para isso literatos de primeira água.

39 As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio, excetuadas: as
fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.

40 A "Padaria" desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não
tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatória a instrução pública primaria.

41 A "Padaria" declara, desde já, guerra de morte ao bendegó do Cassino.

42 É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se
emitem nesta Capital.

43 No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas .

44 A "Padaria" declara embirrar solenemente com a secção "Para Matar o Tempo" do jornal A
República, e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma
secção.

45 Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da ''Avenida


Ferreira''.

46 O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, piston ou qualquer
outro instrumento irritante, dará parte disto à "Padaria" que trabalhará para pôr termo o
semelhante suplício.

47 Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da


cidade, em geral.

48 Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a "Padaria" tomará a


iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o Bom Gosto, com o
Progresso e com a Dignidade Humana.

27 Salientemos alguns pontos dignos de nota: No artigo 1.o, vemos que se trata não somente de
uma agremiação de homens de letras, mas de "uma sociedade de ·rapazes de Letras e Artes";
com efeito, vamos adiante encontrar, ao lado de escritores, alguns músicos e um pintor.

No artigo 5º falava-se de um livro com todos os dados referentes a cada "padeiro"; embora se
tenha dito, dois anos mais tarde, que os artigos de I a IX "tiveram fiel execução", o fato é que
não chegou até nós esse livro, de tanta importância hoje, já que somos a "posteridade" a que se
refere o item citado.

Quanto à bandeira da agremiação, tem realmente o distintivo previsto, mas em campo vermelho,
e não nas cores nacionais, como reza o artigo 7º

Observe-se, já naquela época, a condenação do tom oratório (artigo 11) "sob pena de vaia", e o
laconismo das atas, no artigo seguinte.

O Dr. Castro Lopes, referido no artigo 14, é o médico e gramático Antônio de Castro Lopes,
nascido no Rio em 5 de janeiro de 1827 e ali falecido, em 11 de maio de 1901; criou inúmeros
neologismos, como runimol, para substituir o francesismo "avalanche". Os "padeiros" o citam
em tom de pura blague, como se dizia.
Note-se ainda, no artigo 19, a aversão da entidade às coisas repetidas demais, aos lugares-
comuns. Contudo, ainda hoje se fala nessas rosas, alusão ao famoso poema de François de
Malherbe (1555-1628), reformador da língua e da versificação francesas .

Atente-se, no mesmo artigo, para um costume que vigorava até bem pouco: o das folhas
perfumadas dos álbuns femininos.

O artigo 21 encerra, a. nosso ver, o ponto mais importante de todo o Programa: condena ele o
uso, em textos literários nossos, de vocábulos que se refiram à Flora e à Fauna estrangeiras:
lembre-se que essa seria, exatamente 30 anos depois, uma das preocupações principais, da
famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo.

O Calendário, do artigo 29, vigorou apenas durante os primeiros dias .

O artigo 31 fala-nos de uma monografia sobre 0 Professor Sobreira. Trata-se de João Gonçalves
Dias Sobreira, natural do Crato, onde nasceu em 1847. Publicou vários livros, abrangendo
estudos da língua francesa, da gramática portuguesa, de Geografia do Ceará, tendo ainda
cultivado a literatura e feito um mapa de nosso Estado. Trata-se pois de· pilhéria a execução de
tal monografia, pois os "padeiros" implicavam com o enciclopedismo do professor.

Não foi cumprido igualmente o artigo 34, que se refere ao Cancioneiro Popular: apenas algumas
trovas foram estampadas n' O Pão.

Também deixou de ser cumprido o prometido no artigo 36, a respeito das aventuras do Padre
Verdeixa: alcunhado “Canoa Doida". Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa deu desde muito
cedo "provas de completo desequilíbrio mental, que a idade não modificou para melhor", como
observou o Barão de Studart; foi jornalista e chegou a deputado, sempre lutando contra tudo e
contra todos. Foi um dos tipos mais excêntricos de toda a história cearense.

O Cassino, de que fala o artigo 41, era o que os ''padeiros'' chamavam de um "monstrengo de
alvenaria", comparando suas dimensões às do famoso Bendegó, meteorito caído na Bahia. Esse
Cassino, que se erguia no Passeio Público, foi afinal demolido.

Mané Coco, referido no artigo 45, é Manuel Pereira dos Santos, dono do Café Java, onde se
reuniam os rapazes que fundaram a "Padaria". Inteligente mas sem cultivo, era figura
popularíssima em seu tempo. A Avenida Ferreira é a Praça do Ferreira .

Como diz o artigo 3º do Programa, foi fundada a Padaria Espiritual com 20 sócios, dos quais
damos a seguir a relação, com os respectivos nomes de guerra: JOVINO GUEDES (Venceslau
Tupiniquim) ANTONIO SALES (Moacir Jurema) TIBÚRCIO DE FREITAS (Lúcio Jaguar)
ULISSES BEZERRA (Frivolino Catavento) CARLOS VíTOR (Alcino Bandolim) JOSÉ DE
MOURA CAVALCANTI (Silvino Batalha) RAIMUNDO TEÓFILO DE MOURA (José
Marbri) ALVARO MARTINS (Policarpo Estouro) LOPES FILHO (Anatólia Gerval)
TEMÍSTOCLES MACHADO (Túlio Guanabara) SABINO BATISTA (Sâtiro Alegrete) JOSÉ
MARIA BRÍGIDO (Mogar Jandira) HENRIQUE JORGE (Sarazate Mirim) LíVIO BARRETO
(Lucas Bizarro) LUÍS SÁ ( Correggio del Sarto) JOAQUIM VITORIANO (Paulo
Kandalaskaia) GASTÃO DE CASTRO (Inácio Mongubeira) ADOLFO CAMINHA (Félix
Guanabarino) JOSÉ DOS SANTOS (Miguel Lince) JOÃO PAIVA (Marco Agrata)

Podemos dividir a existência da Padaria Espiritual em duas fases: a primeira, cheia de


verve, timbrando acima de tudo pela pilhéria, de 1892 a 1894; a segunda, menos brincalhona. e
mais voltada para os trabalhos de maior fôlego, de 1894 a. 1898, ano da extinção do grêmio;
assinalamos evidentemente a característica mais marcante, uma vez que houve trabalho profícuo
nos primeiros tempos, e a pilhéria jamais deixou de ser praticada e encarecida. Fundada, como
vimos, em 30 de maio de 1892, a Padaria Espiritual foi reorganizada em 28 de setembro de
1894, quando entraram para o seu quadro de sócios mais 10 elementos. No fim de 1894 contava
a entidade com 14 nomes além daqueles vinte fundadores:
ANTÔNIO DE CASTRO (Aurélio Sanhaçu) • JOSÉ CARLOS JúNIOR (Bruno Jaci)
RODOLFO TEÓFILO (Marcos Serrano) ALMEIDA BRAGA (Paulo Giordano) VALDEMIRO
CAVALCANTE (Ivan d' Azhoff) ANTONIO BEZERRA (André Carnaúba) JOSÉ
CARVALHO (Cariri Braúna) X. DE CASTRO (Bento Pesqueiro) EDUARDO SABÓiA (Braz
Tubiba) JOSÉ NAVA (Gil Navarra) ROBERTO DE ALENCAR (Benjamim Cajuí)
FRANCISCO FERREIRA DO VAI.E (Flávio Boicininga) ARTUR TEÓFILO (Lopo de
Mendoza) CABRAL DE ALENCAR (Abdhul Assur)

É que nem todos ingressaram ao mesmo tempo: ainda no ano da fundação, 1892,
segundo reza a Ata do dia 20 de junho, citada por Leonardo Mota, fora admitido ANTÔNIO DE
CASTRO; os dez nomes que se seguem, de JOSÉ CARLOS JÚNIOR a ROBERTO DE
ALENCAR, entraram para o grêmio quando da aludida reorganização, conforme Ata do dia 28
de setembro de 1894, transcrita em Cenas e Tipos (1919), de Rodolfo Teófilo.

Depois, já em novembro do mesmo ano, é que iriam entrar FRANCISCO FERREIRA


DO VALE, ARTUR TEÓFILO e CABRAL DE ALENCAR.

Destacaremos alguns dos "padeiros", de mais expressiva atuação no grêmio ou na literatura de


seu tempo:

JOVINO GUEDES Alcoforado (1859-1905) Foi o primeiro Padeiro-Mar da instituição,


caracterizando-se sua gestão, como se disse, pela pilhéria o que, aliás, deu originalidade ao
grêmio. Conhecedor profundo do vernáculo, foi professor vários anos. Exerceu mandato de
deputado estadual. Em livro deixou apenas uma Carta Aberta a Rodolfo Teófilo (1902),
publicada em Manaus e contendo refutações a um dos trabalhos de Teófilo sobre as secas.
ANTÔNIO SALES (1868 1940) Já o vimos entre os romancistas do Realismo, e havemos de
reencontrá-lo entre os poetas de nosso Parnasianismo. Fez questão de ser sempre Primeiro-
Forneiro (Secretário), apenas ocupando o lugar de Padeiro-Mar interinamente, por ocasião da já
mencionada reorganização do grêmio, em 1894.

LUÍS TIBúRCIO DE FREITAS (? - 1918) Prosador simbolista, nada deixou em livro; foi porém
no Rio de Janeiro amigo íntimo de Cruz e Sousa que, segundo dizem, lhe ouvia os conselhos
respeitosamente. Nestor Vftor fez-lhe o discurso de beira-túmulo.

ULISSES BEZERRA (1865 1920) Foi Primeiro-Forneiro quando Antônio Sales ocupou
interinamente a Presidência da ''Padaria''. Jornalista, colaborou em quase todos os periódicos de
sua época, chegando mais tarde a ser um dos principais redatores da revista Jangada, de 1909.
Deixou inédito um livro de crônicas ou fantasias, Páginas Soltas.

ALVARO Dias MARTINS (1868 1906) Destacou-se como poeta, e por isso vamos reencontrá-
lo adiante. Haveria de cedo abandonar a "Padaria", passando, com Temístocles Machado, a
hostilizá-la abertamente, fundando outra agremiação, o Centro Literário. Usava o pseudônimo
de Alvarins, e era irmão de Antônio Martins.

LOPES FILHO (1868 1900) Autor do primeiro livro de poesia simbolista do Ceará, será visto
oportunamente, quando da apresentação dos poetas de sua corrente estética.

TEMISTOCLES MACHADO (1874 -·.:..1921) Poeta, vê-lo-emos adiante, ao lado de Alvaro


Martins e outros que não se enquadram rigidamente em nenhuma escola. Foi o primeiro
presidente do Centro Literário, que fundou, como foi dito, . com Alvarins e outros.

Manuel SABINO BATISTA (1868 1899) Paraibano produziu literariamente aqui, onde
publicou seus dois livros de poesia, Flocos (1894) e Vagas (1896). Foi Secretário d' O Pão, e era
casado com a poetisa Ana Nogueira Batista. Colaborou largamente na imprensa fortalezense,
onde já se destacava,. mesmo antes da criação da Padaria Espiritual.
LÍVIO BARRETO (1870 1895) Um dos maiores poetas da "Padaria", será visto adiante, como
simbolista que foi..

HENRIQUE JORGE Ferreira Lopes (1872 1928) Não era escritor, e sim músico, havendo
animado, com seu violino, várias sessões da agremiação, recebendo, por isso, o título de
Embaixador da Música, entre os "padeiros". Realizou inúmeros concertos aqui e noutros
Estados. Pai de Paulo Sarazate e de João Jacques, era irmão de CARLOS VÍTOR, outro músico
da Padaria Espiritual.

LUíS Félix de SÁ (1845 1898) Também não era escritor, mas desenhista e pintor, sendo
chamado, no grêmio, de Plenipotenciário da Palheta e do Pincel. Luis Sá escrevia nas paredes
do "forno" os nomes de guerra dos companheiros, com o que, segundo Moacir Jurema (numa
das Atas referidas por Leonardo Mota), interpretava "a psicose de alguns nomes". Desenhou um
"Mapa Geográfico Postal do Estado do Ceará" (1890).

JOAQUIM VITORIANO de Almeida Pinheiro (? 1894) - Não sendo escritor, nem músico, nem
pintor, entrou para o grêmio, segundo Leonardo Mota. "não em virtude do cérebro e, sim, do
braço e da coragem de que era dono". Fazia, assim, o papel de guarda-costas dos "padeiros".
Contudo, numa das sessões, por pilhéria, foi escalado para falar sobre Spencer! Morreu
assassinado em plena Praça do Ferreira .

ADOLFO Ferreira CAMINHA (1867 1897) Vindo a destacar-se através de seus romances
realistas (onde aliás já o estudamos), teria participação quase nula na agremiação, terninando
por ser expulso de seus quadros, em 1896. Nas suas Cartas Literárias (1895), de ensaios críticos,
há um interessante artigo a respeito da criação da Padaria Espiritual, acompanhado de censuras
à falta de espontaneidade dos últimos tempos.

ANTÓNIO DE CASTRO Vidal Barbosa (1872 1935) Publicou, ao tempo da Padaria Espiritual,
dois livros de poemas, Versos (1894) e Marinhas (1897), de dicção quase romântica, ainda bem
longe da poesia descritiva que ensaiaria e que deixou esparsa nos jamais fortalezenses do início
do século.

JOSÉ CARLOS da Costa Ribeiro JUNIOR (1860 1896) Foi o segundo Padeiro-Mor, durando
sua ges·ão até o ano de sua morte. Já era nome feito ao tempo do Libertador, onde colaborou
largamente, em prosa e verso; pertenceu ao Clube Literário. Poliglota, foi professor de línguas
no Liceu, e versejava em vários idiomas. Para se ter uma ideia de sua posição nas nossas letras,
basta lembrar que foi José Carlos Júnior o prefaciador do livro de estreia de Antônio Sales, em
1890. Era paraibano, como Sabino Batista, e teve ainda destaque na magistratura no interior
cearense. Do muito que escreveu, deixou publicado unicamente O Sino, tradução do poema de
Schiler (1882), com prefácio de Clóvis Beviláqua .

RODOLFO Marcos TEÓFILO (1853 1932) Varão Benemérito da Pátria, título que recebeu do
Congresso Nacional, pelo seu trabalho de sanitarista, Rodolfo Teófilo é, acima de tudo, o ''fiel e
poderoso intérprete da alma cearense'', como lhe chamou Antônio Sales, na dedicatória de seu
romance. Como tal, já o vimos entre os ficcionistas de nosso Realismo. Foi ele o terceiro e
último Padeiro-Mor, durando sua gestão do ano da morte de José Carlos Jr. (1896) até à
extinção da "Padaria", em 1898 .

VALDEMIRO CAVALCANTE (1869- 1914) Tendo fundado um jornal aos 11 anos de idade,
seria jornalista a vida inteira: foi Promotor no Icó e Secretário de Polícia em Fortaleza, mas
nunca abandonou a vida da imprensa, fundando o Jornal do Ceará, com que fez corajosa
oposição ao Governo Acióli. Deixou em livro Males e Remédios Pró-Ceará (1899) e Discurso
(1899), para não citarmos o prefácio dos Dolentes. de Lívio Barreto, seu amigo de infância.
Valdemiro Cavalcante foi o segundo e último Primeiro-Forneiro, substituindo Antônio Sales,
quando este se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1897.
ANTÔNIO BEZERRA de Menezes (1841 1921) Tivemos oportunidade de vê-lo integrando,
com Antônio Martins e Justiniano de Serpa, o chamado trio dos Poetas da Abolição. Depois
daquela fase, dos Sonhos de Moço (1872) e das Três Liras (1883), passou a dedicar-se cada vez
mais aos estudos de nossa História, publicando ainda Maranguape, Notas de Viagem (1885),
Horas de Recreio (1886), Província do Ceará, No tas de Viagem (1889), O Ceará e os Cearenses
(1906) e Algumas Origens do Ceará (1918). Também pertenceu ao Clube Literário e a outras
agremiações, deixando a "Padaria" em 1896, quando se transferiu para a Amazônia, onde
chegou a Diretor do Museu Amazonense e redator do jornal A Pátria. "Antônio Bezerra não era
um cearense, era o cearense, o paradigma étnico de nossa raça, o próprio Ceará personificado."
disse dele Antônio Sales. Foi um dos fundadores da Academia Cearense.

JOSÉ CARVALHO (1872 1933) Responsável pela coleta de trovas populares estampadas n' O
Pão, foi outro que se dedicou aos estudos de História, bem como de folclore . Cultivou também
o conto e, mais raramente, a poesia. Deixou Perfis Sertanejos (1897), Pero Coelho (1903), A
Primeira Insurreição Acreana (1904), O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (1930). Compôs
ainda um drama, Dona Bárbara 1817 (1917).

X. DE CASTRO (1858 1895) Já o vimos como autor dos cromos, na poesia realista. Como
assinalou Leonardo Mota, nunca subscreveu seus versos com o pseudônimo, Bento Pesqueiro.
Seria o primeiro "padeiro" a falecer, 3 anos depois de fundado o grêmio.

ARTUR TEÓFILO (1871 1899) Jornalista por vocação, montou em 1930, em Viçosa, um jornal
do qual era ao mesmo tempo redator, tipógrafo e impressor: A Ideia. É hoje clássico seu artigo
por ocasião da morte de Lívio Barreto, no Pão de 15 de outubro de 1895. Estampou vários
contos nesse jornal da "Padaria", e consta que deixou inacabado um romance, que se intitularia
O Cigano. Colaborou ainda noutros periódicos, redigindo, por conta própria, O Repórter.

José CABRAL DE AI,ENCAR (1877 1915) Como Tibúrcio de Freitas, escrevia prosa
simbolista; no Rio de Janeiro, conviveu com os poetas do grupo Rosa-Cruz, em cuja revista
colaborou. Ainda em Fortaleza, publicou artigos e contos na imprensa, deixando em livro
unicamente Aspectos da Guerra Europeia (1915) .

EDUARDO Tomé de SABOIA (1876 1918) Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1894, a fim
de cursar a Escola Politécnica, mas abandonou-a para se dedicar ao jornalismo: foi redator d' A
Semana, a famosa revista de Valentim Magalhães. Bacharelando-se em Direito na Bahia, voltou
a Fortaleza, onde foi lente da Faculdade de Direito. Foi Secretário da Fazenda no Governo
Acióli. Publicou Contos do Ceará (1894), e também compunha poemas. Foi eliminado da
"Padaria" juntamente com Adolfo Caminha.

Pelo visto, podemos aquilatar a importância da Padaria Espiritual na história cultural do


Ceará: na pequena Fortaleza da época, ainda no século XIX, um grupo de rapazes,
frequentadores do Café Java, resolve criar uma sociedade literária e termina fundando uma
agremiação de homens de letras e de artes, movidos por um sadio espírito de inovação, e
regidos pelo mais original de todos os programas. Esse grêmio, que passa depois a uma fase
mais séria, mais compenetrada, enriquece a ·bibliografia de nossa terra com vários volumes que
abrangem a poesia, o conto e o romance, para não falarmos nos 36 números que saíram d' O
Pão, órgão oficial da entidade. Nem é necessário repisar o fato de a Padaria Espiritual haver-se
antecipado ao movimento modernista, principalmente quando condenou, em obras de nossa
literatura, quaisquer alusões a nomes de animais ou vegetais estranhos a nosso País. Isso numa
província, no século passado, bem antes portanto de Monteiro Lobato e da Semana de 1922.

Um exemplo, entre muitos, da repercussão da "Padaria" no Sul do Brasil, é este trecho


do "Prólogo" que João Ribeiro escreveu para os Mármores, de Francisca Júlia da Silva, em
1895: "Nem aqui, nem no sul, nem no norte onde agora floresce uma escola literária (A Padaria
Espiritual do Ceará) encontro um nome que se possa opor ao de Francisca Júlia." Embora pondo
em destaque, naturalmente, a poetisa paulista, já seria muito haver citado a Padaria Espiritual
como um grémio provinciano; João Ribeiro foi além: deu-lhe o titulo, nada despiciendo, de
escola literária.

Quanto ao jornal, O Pão, nem sempre teve a felicidade de uma vida regular: no
Retrospecto dos feitos da Padaria Espiritual, assinado por Moacir Jurema (Antônio Sales) e
publicado em 1894, época da reorganização da entidade, temos este depoimento:

''Numa bela manhã de julho do ano da graça de 1892, o Fomo surgia aos olhos da população do
Forte embandeirado, florido, pimpão e ruidoso como um viveiro de periquitos. Foguetes
esfuracavam o azul, e uma banda de música trauteava polcas alegres.

"Os passantes paravam a nossa porta, e tudo quanto era janela da Rua Formosa apinhava-se de
pessoas de todos os sexos e idades .

''Alguma cousa de extraordinário se passava no Forno. Curiosos acotovelavam-se a perguntar


que diabo seria aquilo ... "Dentro em pouco rasgava-se o mistério aos gritos estridentes de
meninos que apregoavam O Pão, cuja edição esgotou-se dentro de poucas horas.

''Devemos confessar aqui:- essa folha era menos o veículo literário da Padaria do que uma
válvula para a pilhéria petulante que se fazia lá dentro.

"Ainda conseguiu-se publicar seis números d' O Pão, que veio afinal a morrer de caquexia
pecuniária."

Vemos, pela palavra autorizada do Padeiro-Mar Interino. não somente que o jornal teve
de sair de circulação, por falta de dinheiro, como era bem o reflexo, nesses primeiros números,
da fase brincalhona a que já nos referimos. Predominam então os nomes de guerra e uma das
secções mais lidas era o "Saco de Ostras", espécie de paródia ao "Cofre de Pérolas" de outro
periódico da época. Posteriormente, voltaria a ser editado. O Pão,. em 1895 conseguindo
manter-se até outubro de 1896, quando definiti vamente deixou de circular.

Nos 30 números que saíram nessa segunda e última fase, ainda encontramos certa graça,
mas esta nem de longe se compara com o chiste da primeira fase, dos tempos de Venceslau
Tupiniquim. Entretanto, a Padaria Espiritual jamais chegou a igualar-se a qualquer grêmio
comum. Adolfo Caminha chegou a dizer, quando já no Rio de Janeiro, em 1895: ''A Padaria
Espiritual, cujo nome hors ligne tão depressa viajou merecendo aplausos de toda a imprensa
Norte-Sul, fazendo-se querida até por poetas e escritores consagrados, a Padaria Espiritual vai
decaindo, rolando para o nível comum. É hoje uma sociedade literária grave, 'ajuizada', com
uma ponta de oficialismo, sem os ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas
audácias que faziam dela um exemplo a imitar, alguma coisa superior a um rebanho de
ovelhas ... "

Não é tanto assim. Com toda a seriedade que assumiu sob as direções sucessivas de José
Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo, a Padaria Espiritual ainda manteve muito de sua originalidade,
compensando, por outro lado, algo do que perdeu em espirituosidade, pelo trabalho fecundo
representado tanto pelos 36 números .d' O Pão como pela bibliografia que nos legaram os
"padeiros".

Phantos Lopes Filho (1893), Versos Antônio de Castro (1894), Flocos Sabino Batista
(1894), Contos do Ceará. - Eduardo Sabóia ( 1894) , Cromos X. de Castro ( 1895) , Trovas do
Norte Antônio Sales (1895), Dolentes Lívio Barreto (1897), Marinhas Antônio de Castro 1897).
Maria Rita Rodolfo Teófilo (1897), Perfis Sertanejos José Carvalho ( 1897) .

Acrescente-se a tudo isso um fato curioso, apesar de Antônio Sales considerar-se


verdadeiro seguidor do Parnasianismo (o que na verdade ainda estava longe de ser), e de,
juntamente com outros "padeiros", haver. por diversas vezes atacado as excentricidades dos
nefelibatas, cujo movimento crescia no Sul do Pais, o certo é que, talvez mesmo antes de . tomar
conhecimento do grupo da Folha Popular que em 1891 congregou poetas como Cruz e Sousa,
Emiliano Perneta e B. Lopes, eram já simbolistas alguns membros da Padaria Espiritual, dois
dos quais deixaram livros de poesia: Lopes Filho e Livio Barreto; por isso, quando estudarmos o
Simbolismo no Ceará, as duas figuras apresentadas serão precisamente esses dois "padeiros"

3. O GRUPO CLÃ

Surgindo na década de 40, o Grupo Clã veio trazer, como contribuição mais importante
às nossas letras, a definitiva implantação do Modernismo no Ceará, precisa e felizmente numa
época em que essa corrente já não necessitava dos arreganhas iconoclastas nem das piadas
demolidoras dos primeiros momentos. Diga-se assim, de passagem, que o Modernismo, em
nosso Estado, já surgiu algo amadurecido, mesmo em suas mais remotas manifestações .

Mas se falamos em implantação definitiva é porque, depois dos tempos heróicos de


Maracajá e de Cipó de Fogo, atravessaram as nossas atividades literárias uma fase
incaracterística: cessado o impacto dos primeiros instantes, continuaram uns versejando à nova
maneira, mas outros vindos de correntes anteriores voltavam aos seus alexandrinos.

E assim passaram-se alguns anos .

Até que rebentou a Segunda Guerra mundial colhendo numa malha de espantos a
ingenuidade dos que esperavam não mais repetir-se a tragédia de 1914. Segundo o depoimento
de Braga Montenegro, "tudo parecia afogado num hiato de pensamento e poesia", quando
surgiu, de uma conversa de café, "a ideia de um congresso, o mais original dos congressos. "
Tratava-se do I Congresso de Poesia do Ceará, organizado em 1942 por Mário de Andrade (do
Norte), Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros, Otacilio Colares, Braga Montenegro,
Eduardo Campos e outros, e ao qual aderiu um escritor já maduro, de outra geração, Joaquim
Alves.

Nesse congresso, que não chegaria a ser encerrado normalmente, em virtude de um


quebra-quebra resultante da guerra, aparecem os nomes de vários escritores que participarão
mais tarde do Grupo Clã. É interessante lembrar que, em protesto por se fazer um congresso de
poesia em dias tão conturbados, organizou-se na cidade do Crato um Congresso Sem Poesia.
Um de seus promotores, Stênio Lopes, será figura destacada no Grupo Clã anos mais tarde ...

Dessa mesma época é a criação da Cooperativa de Letras e Artes, "donde talvez a


primeira ideia da sigla Clã" informa-nos ainda Braga Montenegro. Aliás, quanto ao designativo
de Clã, nada podemos afirmar com absoluta segurança. Antônio Girão Barroso (componente do
Grupo, como Braga Montenegro) , falou-nos da existência, em São Paulo, de um Clube dos
Artistas Modernos, cuja sigla CLAM teria inspirado a do grupo cearense .

O certo é que em 1943 iniciaram-se as Edições Clã, de onde haveriam de sair inúmeros
livros, a começar pelos Três Discursos, de Eduardo Campos, Mário Sobreira de Andrade e
Antônio Girão Barroso; o livro de contos Águas Mortas, de Eduardo Campos, e Escola Rural,
de Mário Sobreira de Andrade (o já mencionado Mário de Andrade do Norte), todos daquele
ano.

A nosso ver, o Grupo vai adquirir maior coesão por volta de 1946. Além de nesse ano
serem editados nada menos de quatro importantes livros de seus componentes (Noite Feliz, Fran
Martins, Face Iluminada, Eduardo Campos, Roteiro de Eça de Queirós, Stênio Lopes, Os
Hóspedes, Aluízio Medeiros, Antônio Girão Barroso, Artur Eduardo Benevides e Otacílio
Colares), ocorre o lançamento, em dezembro, do número zero da revista Clã, sob a direção de
Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros e João Clímaco Bezerra. Esse número 0 de Clã, hoje
raridade bibliográfica, foi lançado a título experimental. O número 1, sob a direção de Fran
Martins, sairia somente dois anos depois, em 1948.
Convém acrescentar que o Clube de Literatura e Arte, que , nesse numero O da revista é
mencionado não como Clã mas como C. L. A., organizara sua primeira sessão pública em
fevereiro de 19·46. O Clube de LIteratura e Arte, fundado por Antônio Girão Barroso, não é
porém, a rigor, o que viria a ser conhecido como o Grupo Clã, embora seus componentes dele
fizessem parte . Na "Explicação deste Número", que abre a revista CLA nº O, depois de se
explicar que aquele número se antecipava à publicação do órgão, tendo portanto "o caráter de
mostra", é transcrito trecho do artigo de abertura da revista, naturalmente escrito para o número
1:

CLA não é, apenas, uma revista de literatura. É, antes, uma revista de todo o
Ceará mental. Aqui, na medida do possível, recolheremos o trabalho dos nossos
homens de letras e de pensamento, pois a pretensão que nos anima é sermos
porta de saída da melhor produção intelectual da gente cearense, de tal modo
que ela possa aparecer lá fora, nítida 11a sua pureza, numa demonstração
convincente de que a gloriosa Província de Alencar continua a viver, a se agitar,
na procura sempre insatisfeita de rumos novos para a cultura brasileira.

Ainda nesse ano de 1946 tem lugar igualmente o Primeiro Congresso Cearense de
Escritores, no qual o Grupo tem participação das mais ativas, através da palavra dos escritores
Fran Martins, Braga Montenegro, Antônio Girão Barroso, Eduardo Campos, Aluízio Medeiros,
Artur Eduardo Benevides, Antônio Martins Filho, João Clímaco Bezerra, Stênio Lopes e
Joaquim Alves. Entretanto, na notícia que sobre o evento dá a revista CLA aludida (número
experimental) não se fala em Grupo Clã ou Grupo de Clã. Talvez pelo fato de ainda não existir
o periódico. Mas cumpre declinar os nomes dos componentes do Grupo Clã.

De ·acordo com o Artigo 9º de seus Estatutos, do dia 24 de março de 1964, foram


considerados fundadores: ALUÍZIO MEDEIROS, ANTONIO GIRAO BARROSO, ANTONIO
MARTINS FILHO, ARTUR EDUARDO BENEVIDES, BRAGA MONTENEGRO,
EDUARDO CAMPOS, FRAN MARTINS, JOAO CLÍMACO BEZERRA, JOSÉ STÊNIO
LOPES, LÚCIA FERNANDES MARTINS, MíLTON DIAS, MOREIRA CAMPOS, MOZART
SORIANO ADERALDO· e OTACÍLIO COLARES.

Esses nomes, observe-se, não figuram na ordem de precedência cronológica, mas


alfabética. Nem todos aí são da primeira hora. Por outro lado, omitiu-se inexplicavelmente. o
nome de JOAQUIM ALVES, falecido em 1952. Evidentemente não poderiam figurar os nomes
de CLAUDIO MARTINS, DURVAL AIRES e PEDRO PAULO MONTENEGRO, que
ingressaram no grêmio recentemente.

Fica assim completa a lista de todos os participantes, desde o início das atividades do
Grupo até hoje. E tanto é verdade que, segundo afirmamos, a característica de grupo só foi
surgir definitivamente por volta de 1946, firmando-se com a publicação da revista, que em anos
anteriores as alusões aos componentes da agremiação são mais ou menos vagas.

Joaquim Alves, num artigo provavelmente de 1944 pois trata de livro saído nesse ano ,
fala de um novo grupo ao qual "pertencem Fran Martins, Aluízio Medeiros, Otacílio Colares,
Girão Barroso, Albano Amora e, os mais recentes, Eduardo Campos· e Artur Eduardo
Benevides". Não fala da designação do grupo e inclui entre seus membros o nome do hoje
eminente historiador Manoel Albano Amora, talvez traído pelo fato de ele haver estreado com
um livro de poemas no mesmo· ano, na mesma editora e com o mesmo formato do livro
também de estreia de Antônio Girão Barroso .

Podemos dizer, talvez com algum exagero, que o grupo existia, mas tão
espontaneamente que seus próprios componentes não haviam ainda tomado· conhecimento
disso. Pelo menos é o que depreendemos da leitura do livro Falam os Intelectuais do Ceará, no
qual Abdias Lima entrevistou, de março de 1944 a fevereiro de 1945, vários escritores
cearenses, entre os quais quatro de Clã, e onde não se encontra a menor referência ao grupo,
muito menos à sigla.

O Grupo Clã surgiu portanto quando já havia passado a fase primitivista do


Modernismo e entravam os poetas naquela outra fase, chamada por alguns de construtivista.
Despontava por conseguinte a Geração de 45 quando a agremiação cearense, já com alguns
livros publicados, começou a projetar-se. Há quem prefira a designação de Grupo de Clã (ou
seja, grupo da revista Clã); inútil, porém, nestas alturas mudar uma designação já consagrada.
Claro que o Grupo não poderia (nem deveria) manter-se a vida toda como um
movimento; passada a fase mais ou menos heroica de implantação da nova arte, trataram seus
componentes não mais da descoberta, mas da preservação de seu esprit nouveau, mas perdendo
naturalmente a ânsia de novidade que caracteriza os agrupamentos de jovens. Cada um teve de
seguir suas tendências, dispersando-se dentro ou fora do Estado, mas todos continuaram
produzindo, contando hoje esse Clã com novos elementos, de reconhecidos méritos. É tempo de
falarmos de cada um, isoladamente. A ordem que escolhemos é talvez exageradamente
arbitrária. De certa forma procuramos seguir a cronologia, sempre que possível.

JOAQUIM ALVES

Nasceu em Jardim, no dia 10 de fevereiro de 1894, vindo a falecer em Fortaleza, em 8 de junho


de 1952. Tendo percorrido quase todo o interior nordestino, quer como dentista, quer como
Inspetor Regional do Ensino, ocorreu-lhe a ideia de estudar em profundidade o homem e a
região, resultando, daí, algumas das mais importantes obras que nos deixou. Passou a residir
mais tarde em Fortaleza, onde foi professor de diversos colégios, bem como da Faculdade de
·Ciências Econômicas do Ceará . Pertenceu à Academia Cearense de Letras e ao Instituto do
Ceará. Sua bibliografia reúne obras sobre Pedagogia, Sociologia, História e Geografia, além da
critica literária, que praticou com segurança e isenção. Publicou: Nas Fronteiras do Nordeste
(1929), Estudos de Pedagogia Regional (1939), O Vale do Cariri (1946), Juazeiro, Cidade
Mística (1949) e Autores Cearenses 1.a série (1949) . Sua História das Secas, escrita em 1935,
foi editada pelo Instituto do Ceará após sua morte. Aderindo a um movimento de jovens, ele já
nome consagrado nos· meios intelectuais cearenses, Joaquim Alves bem poderia ser chamado
tivesse um pouco mais de renome o "Graça Aranha do Grupo Clã."

FRAN MARTINS

Nasceu em Iguatu, no dia 13 de junho de 1913. Desde muito cedo revelou vocação para o
jornalismo e a literatura: colaborou em inúmeros jornais do Ceará e de outros Estados, tomando-
se mais tarde uma das figuras principais do grupo e da revista Clã, cujo n.o 1 já surgiu sob sua
direção. Professor da Faculdade de Direito do Ceará, consagrou-se como autor de obras
jurídicas,· conhecidas nacionalmente, dentre as quais se destaca o Curso de Direito Comercial
(1957) . Sua obra literária se realiza no campo da ficção; contos: Manipueira (1934), Noite Feliz
(1946), Mar Oceano (1948) e O Amigo de Infância (1960); romances: Ponta de Rua (1937),
Poço dos· Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco
Estrelas (1950) e A Rua e o Mundo (1962); novela: Dois de Ouros (1966). Desta última,
considerada sua obra-prima, destacamos um trecho.

DOIS DE OUROS

O enredo se passa no interior cearense, ao tempo do cangaceirismo: Juvêncio, sabendo que sua
namorada· Arminda se amasiara com Celestino, mata o rival e entra no bando de Bom-Deveras,
adotando a partir de então o nome de Dois de Ouros. Após vários crimes (e mesmo depois de
extinto o bando), assassina um soldado no Crato e o cabo Firmino (com quem se inimizara, mas
a quem havia salvo quando menino) persegue-o nas matas, ferindo-o a bala; mas recua, talvez
para deixá-lo escapar. O sargento Anacleto, que soubera, por Arminda, de um pacto entre os
dois, desconfia do cabo e comanda novo ataque ao cangaceiro. Não o encontram, mas as
atrocidades praticadas por Firmino no intuito de desmascarar os supostos "coiteiros"
(sabidamente inocentes) fazem-no crer na honestidade do cabo. Por fim, desmoralizado por não
haver capturado o bandido, o sargento Anacleto bebe demasiadamente e assassina Arminda, em
pleno cabaré. O corpo de Dois de Ouros jaz na mata, longe do local onde o haviam procurado,
levados pelo cabo Firmino ...

Trecho de Dois de Ouro

E encetou a fuga pela mata . Não podendo ficar de pé, pois nessa posição o ferimento
sangrava muito, andava curvado, uma mão no peito, a sustentar o tampão com que procurava
vedar a ferida. Mas não podia estugar o passo pois, com a perda do sangue, já estava sem forças.
Assim marchava curvado, lento, ofegante, mas de qualquer modo disposto a alcançar um abrigo
onde pudesse repousar com segurança.

Não sentia os espinhos nos pés nem as unhas-de-gato rasgando-lhe as carnes. Tinha o
corpo habituado a esses sofrimentos: três anos no meio das brenhas fizeram dele uma espécie de
bicho. Um bicho que não dava atenção às picadas dos insetos, aos arranhões pelos braços, aos
espinhos nos pés . Um bicho que agora só tinha um destino encontrar um abrigo onde não
pudesse ser localizado pela polícia.

Só agora tinha esse destino? Não, desde que entrara no cangaço sua vida consistia em
esconder-se da polícia. O grupo de Bom-Deveras atacava os viajantes nas estradas, visitava os
sítios, incendiava fazendas mais acima de tudo se es-· condia da polícia. Quando lhe avisavam
que uma volante andava à sua dava à sua procura o bando atravessava a serra do Araripe,
entrava em Pernambuco, escondia-se nas proximidades de Bodocó ou de Novo Exu. Nunca se
dispusera a fazer frente à policia não por medo mas porque sabia que disso não resultariam
vantagens para os homens, cujo objetivo era bem outro que o de lutar com os soldados.

O grupo era pequeno mas por isso mesmo de grande mobilidade. Composto apenas de
sete homens, mais tarde fora reduzido a seis, com a morte de Catingueira. Catingueira era ·um
mulato piauiense que não gostava de amizade com ninguém. Fiel a Bom-Deveras, tomara-se
uma espécie de guarda-costas do Chefe, andando sempre a seu lado, defendendo-o como um
cão de fila.

Mas essa aproximação era apenas com o Chefe, não com ·OS outros. Dizia-se, no
bando, que a aquilo vinha de muitos anos atrás. Um dia, numa briga na feira de Pio Nono, Bom
Deveras salvara a vida de Catingueira. Seis homens, armados de faca, lutavam com o cabra e
sem dúvida o liquidariam se Bom-Deveras, que ia passando na cidade desapercebido, não
tivesse dado uns tiros nos atacantes. Dois ficaram estirados, feridos; os outros debandaram
imediatamente. Catingueira acercou-se de Bom-Deveras, para agradecer-lhe. E, reconhecendo-
o, se ofereceu para acompanhar o Chefe, no cangaço.

Desse momento em diante os dois se tornaram amigos, se bem que, com os demais,
Catingueira não quisesse intimidades. E quando foi num fogo em Jardim, Catingueira pagou
.sua dívida para com o Chefe. Na luta Bom-Deveras fora ferido na perna e com certeza seria
morto se o amigo não o arrastasse até onde estavam os cavalos. Aí o cabra ajudou o Chefe .a
montar enquanto os tiros choviam sobre eles. Quando to cavalo disparou com Bom-Deveras,
oito balas vararam o corpo de Catingueira. Morreu com o dedo no gatilho a morte mais digna
para um cangaceiro .

(Fran Martins. Dois de Ouros·. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966, pp. 40-3; 72-3.)

ANTÔNIO GIRÃO BARROSO

Nasceu em Araripe., no dia 6 de junho de 1914. Transferiu-se em 1929 para Fortaleza, onde se
diplomou como Perito Contador e, depois, em Direito. Fundou vários periódicos, inclusive o
joinal José, que obteve alguma repercussão (1947). Professor de História Econômica Geral e do
Brasil na Faculdade de Ciências Econômicas e de Economia Política na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará. Residiu em Brasília, onde trabalhou no Conselho Federal de
Educação e na TV Rádio Nacional de Brasília. Jornalista. Membro da Acadenua Cearense de
Letras. Publicou: Alguns Poemas (1938), Os Hóspedes (1946), de parceria com Aluízio
Medeiros, Artur Eduardo Benevides e Otacílio Colares, Novos Poemas (1950) e 30 Poemas
Para Ajudar (1968), de parceria com Cláudio Martins e Otacilio Colares.

VIDA

Proezas não tenho

na vida tão pau

nem lances terríveis

tragédias enfim

com choros pesados

e mortes no meio

senão que uma vez

morrendo afogado

gritei pros passantes

me acudam me acudam.

Mas isso é tão simples

acho isso tão besta

tão sem novidade

a vida todinha

eu passo dizendo

me acudam me acudam.

POEMA DADA

Vida liquefeita

num jarro de flor.

O botãozinho aguça a pele .

Um pirilampo salta!

Como o pirilampo é lindo no jarro de flor.

O POETA

Como as árvores, que já andam carregadas de frutos,

os meus bolsos estão carregados de poemas.

E já pesam os meus bolsos como fardos eles, que eram vazios e felizes,

Sim os meus bolsos eram felizes ...


Podia tirar deles os minguados dinheiros e recibos de contas atrasadas.

Agora eles quase me doem, carregam coisas intraduzíveis

pedaços de mim leves esperanças

alguma aurora que já vem pelo caminho .

Os terríveis papéis que não puderam ficar em branco!

Como poderei carregar tudo isso

será que terei de levá-los para longe?

Ou eles terão sempre de voltar para mim?

Como as árvores, que já andam carregadas de frutos,

os meus bolsos estão carregados de poemas .

Uma árvore, Eu sei, pode se libertar do fruto

mas, como poderei eu me libertar do poema?

POEMA

Malmequeres suavizam a paisagem

e, lá fora, para além das montanhas cheias de escarpas e de medos

o mar ruge e, em mim, tudo é como se fosse um dia de tempestade.

O corpo melancólico do céu se esvai e de repente as sombras

[ que ainda há pouco apenas se anunciavam

se lançam para baixo e enchem a terra da sua cor arroxeada ,

ó melancolia, ó indizível tristeza de estar aqui

e não sentir, como outrora, o perpassar do fino ar tão saudável destas montanhas!

***

BOCA LOUCA

FALA FALHA

(Antônio Girão Barroso. Alguns Poemas. Fortaleza, Edésio Editor, 1938, pp. 9; 22; "Novos
Poemas de Antônio Girão Barroso" Clã n.0 10, julho, 1950, p. 45; Antologia de Poetas
Cearenses Contemporâneos, Fortaleza, 1965, pp. 40 45.)

Podemos concluir, pelos poemas apresentados, que o poeta não se fixou numa
determinada dicção, ao longo de sua trajetória literária: o primeiro, "Vida", de fins da década de
trinta, trai evidente influência da chamada "fase heróica" do Modernismo, a de 22, quando
predominavam os poemas-piada; no fundo, reflete uma grande tristeza, mas a forma como que
caricatura essa tristeza, por meio principalmente de termos bem populares, v. g. "pau", no
sentido de maçante, tediosa, referindo-se à vida, ou versos como acho isso tão besta . "Poema
Dadá", também do livro de estreia, segue ortodoxamente a estética de 22, lembrando certos
micropoemas de Oswald de Andrade; o toque descritivo é típico da mencionada fase. Em "O
Poeta", Antônio Girão Barroso abandona os metros curtos e pratica o puro verso livre, refletindo
certa angústia em face de sua própria condição de poeta: ao invés de sentir-se realizado, lamenta
o fato de os papéis não terem podido ficar em branco; note-se que os dois versos iniciais
repetem-se, como um refrão, no final do poema. Simplesmente "Poema" intitula-se o seguinte,
onde, mais do que no anterior temos um lírico a derramar-se em versos que, formalmente
modernistas, revelam uma cosmovisão mais ou menos romântica: o poeta não consegue conter a
onda lírica que a natureza faz brotar de sua mente, se ê que não sucede o inverso, a sua tristeza a
encher de nuvens a paisagem. E, para demonstrar que o poeta não pretende cristalizar-se, temos
uma amostra de seu Concretismo num minipoema composto de quatro vocábulos. Repetimos, a
esta altura, que o poeta não se fixou numa só dicção. Mas não é demais lembrar que em versos
recentes (que constituem sua participação nos 30 Poemas Para Ajudar, e que não apresentamos
aqui por ser todo um longo poema fragmentado) novamente apela o autor para a poética de 22,
como em versos deste teor: Versos com um vaga-lume / vagamundo / vaga-lume / tem dois
olhinhos faiscantes / é ver uma menininha de olhos claros / pretinha como a noite. Ou estes
outros, de um retardado sabor polêmico: No tempo de eu I no tempo de tu I no tempo de ele / no
tempo de nós no tempo de voz I no tempo de eles 1 seu mano, a poesia era um fato I TINHA
BILAC! ]

ALUÍZIO MEDEIROS

ALUlZIO Caldas MEDEIROS Nasceu em Fortaleza, no dia 16 de janeiro de 1918, vindo a


falecer no Rio de Janeiro, em 3 de setembro de 1971. Bacharel em Direito pela Faculdade de
Direito do Ceará, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde exerceu o jornalismo. Os problemas
sociais e políticos preocuparam-no sempre, com fundos reflexos em sua obra poética. Publicou:
Trágico Amanhecer (1941), Mundo Evanescente (1944), Os Hóspedes, de parceria com Antônio
Girão Barroso, Artur Eduardo Benevides e Otacílio Colares (1946), Os Objetos (1948),
Latifúndio Devorante (1949), Lírica (1954), Poema é Comício (1956) e Setenta e Três Poemas
(1963), além de dois volumes de Crítica (1954-56) .

CANTO DO SÉCULO

Nunca mais ouvirei violinos em surdina

nem pianos em surdina

nem cantos litúrgicos suavíssimos

nem músicas de sinos e de órgãos nunca mais.

O espírito mecânico do século esmagou as doces melodias

Nunca mais riscos de fogo de esferas vermelhas

nem a cabeleira azul de Olga flutuando no espaço

nem alvas gaivotas revoando nunca mais.

O céu está plúmbeo o céu está plúmbeo.

Nunca mais veleiros singrando serenamente os mares

nem canções de águas claras nunca mais.

O navio de aço levou a namorada para a distância

para a bruma silenciosa da distância.

Os mares estão revoltos os mares estão revoltos.


O barulho do mundo sólido desabou com estrondo.

Universo que desfalece que desfalece.

Ai de mim! Estou esmagado estou cego. Ai de mim!

Um anjo metálico com asas de hélices

me arrebatará para cima das nuvens.

RONDó SEM FIM

me arrebatará para cima das nuvens

e um amargo desespero inconfessado

( ó melancolia da juventude!)

quando tu chegaste,. minha amiga.

Havia o livro e a lua. Telefonavam!

Havia a súbita rebelião (ah os homens!)

e o vento gelado de agosto

quando tu chegaste, minha amiga .

Havia a rua deserta

o noivo na varanda

deserta a praça

o fim do mundo

cinema

quando tu chegas-te, minha amiga .

VIAGENS

A cavalo de galope

vejo ruínas de casas

sinto o lodo do passado

piso folhas amarelas

enveredo pelo tempo

me perco no .latifúndio

devorante do sofrer

úmidos brejos visito

no labirinto das matas


odorantes como dantes

me embrenho e escalante

percorro terras incultas

de léguas, léguas e léguas

mas sou demiurgo então

crio um mundo que não esse

uma vida diferente

a cavalo de galope

nostalgia nostalgia

de não habitadas ver

estas terras estas casas

em ruínas a cavalo

de galope devorante

latifúndio de sofrer

devorante de mil vidas

que não te chegaram a conhecer

volto atônito e aflito

os crimes os sofrimentos

destas extensões enormes

que são minhas são só minhas

a cavalo de galope

dia e noite vou revendo

o passado deste sítio

e dos meus antepassados

latifúndio devorante

me perco nos teus caminhos

de crimes e opressões

volto atônito ·e aflito

a cavalo de galope

com tristeza sofrimento.

FORTALEZA REVISITADA NOVAMENTE


Eis-me aqui onde outrora vivi

vem o vento de sempre vagante

vem o mar este mar

espraiado em líquida flora

calçadas estas pedras pisadas

pelos passos passados

estas ruas de luas e nuas

sombras e nuvens paradas

este barco de borco me viu ofegante

chocalhantes cangalhas este burro

navegante entre lerdo e pensante

esta praça que primo me viu

entre punhos e bocas andando

Pirambu a miséria encravada

estes muros de branco lavados

esta rua Assunção da infância

cirandantes estrelas cantantes

este val raso val Pajeú

este mar este céu claridades

crepitares de ares este dardo

Aldeota morada maloca

este Forte mirante de Praia

Formosa e canos idosos

larvados de lodo martírio

doutrora este tempo de agora

esta vida de agora é doutrora

esta val desta vida de agora

vem o vento de sempre vagante

eis-me aqui onde outrora vivi .

(Aluízlo Medeiros. Setenta e Três Poemas. Rio de Janeiro, Livraria S. José, 1963, p. 7; Carlos
Burlamaqui Kopke. Antologia da Poesia Brasileira Moderna. S. Paulo, Clube de Poesia, 1953,
p. 221; Aluízio Medeiros. Op. cit., pp. 76-7: Antologia de Poetas Cearerises Contemporâneos.
Fortaleza, IUC, 1965, pp. 21-2.)

O "Canto do Século" figura no Trágico Amanhecer (1941); falando precisamente dessa


estréia, assinalou Joaquim Alves: "O traço predominante na poesia de Aluísio Medeiros é a
inquietação, em que a procura de um ideal que sintetiza a alma coletiva se faz sentir em seus
versos. " 74 O que de certa forma se aplica a toda a sua obra. No poema aludido, vemos a
angústia do poeta que, mesmo sendo modernista, lamenta o desaparecimento de um mundo,
ante a força esmagadora do progresso desumanizador; note-se a intensidade das repetições,
como em O Céu está plúmbeo o céu está plúmbeo ou Os mares estão revoltos, os mares estão
revoltos; presenciamos algumas notas surrealistas, como na alusão à "cabeleira azul de Olga". O
"Rondó Sem Fim", pertencente · ao segundo livro, de 1944, traz-nos a face lírico-amorosa do
poeta: mas apesar da chegada da amiga ser o leitmotiv do poema, várias outras coisas interferem
na atmosfera lírica inclusive a nota político-social no verso Havia a súbita rebelião ( ah os
homens!). Nota que vai chegar ao ápice em "Viagens", um dos poemas que compõe o
Latifúndio Devo1·ante (1949) : vazado em redondilha maior, como que com isso quis o autor
usar um ritmo popular e consentâneo com o galopar do cavalo; note-se que o poema não tem
uma vírgula sequer, característica do poeta em suas derradeiras composições. Em "Fortaleza
Revisitada Novamente'·', a maioria dos versos segue o ritmo do eneassílabo romântico; e, além
da ausência das vírgulas, ressalta outra característica da última fase da poesia medeiriana: o uso
das rimas internas, como em estas ruas de luas e nuas e cirandantes estrelas cantantes / esta vida
de agora é doutrora, sem esquecermos o homoteleuto: este barco de borco. . . E, mesmo numa
página de saudade (pois o presente, no caso, mistura-se ao passado), a preocupação social
ressalta, ainda que seja ape11as para mencionar a miséria do Pirambu. O que faz com que a
observação de Joaquim Alves se estenda, como dissemos, a toda a sua poesia.

*HOMOTELEUTO: Desinência semelhante em palavras empregadas sucessivamente.

EDUARDO CAMPOS

Manuel EDUARDO Pinheiro CAMPOS Nasceu em • Guaiúba, no dia 11 de janeiro de 1923.


Jornalista, contista, romancista, teatrólogo e folclorista, é bacharel em Direito pela Faculdade de
Direito do Ceará. Vimo-lo entre os membros da Academia Cearense de Letras, da qual foi
presidente, mais de uma vez reeleito. É membro do Conselho Estadual de Cultura. Publicou.
contos Águas Mortas (1943). Face Iluminada (1946), A Viagem Definitiva (1949), Os Grande
Espantos (1965). As Danações (1967), O Abutre e Outras Estórias (1968) e Tropel das Coisas
(1970) ; romances O Chão dos Mortos (1965), A Véspera do Dilúvio (1966); várias peças
teatrais, como O Demônio e a Rosa (1948), A Máscara e a Face (1956), O Morro do Ouro
(1964), Rosa do Lagamar (1964) e outras mais, encenadas com êxito no Ceará e no Sul do País.
Além de estudos folclóricos, como a Medicina Popular, com 3 edições (1951, 55 e 67), Folclore
do Nordeste (1959), Estudos de Folclore Cearense (1959) e Cantador, Musa e Viola (1974).
Veremos o autor através de um conto:

CÉU LIMPO

Oh! mil vezes morrer a se ausentar de sua terra, daquele pedaço de capoeira, regalo dos
seus olhos! Como ia deixar o terreiro de barro socado, ciscado pelos pintos, a sua casinha de
taipa levantada à custa de tanto sacrifício? Como era mesmo? Arrumava tudo numa trouxa,
velhas e fuxicadas roupas, o chapéu da missa dos domingos, os sapatos de couro de bezerro,
meio comidos no arrastado dos sambas, não esquecer nada, botar tudo, arrochar, arrochar, até
não mais poder. Não, não podia ser. A saudade que lhe ia no coração não cabia dentro de uma
trouxa de panos velhos. Não ia escondê-Ia ali, e, num gesto derradeiro, passar a corda.
apertando o matulão. E então partir para muito longe, esquecido daquele chão todo seu, da
casinha de taipa, dos dias felizes que vivera na Pavuna ... Era lá besta! Não ia fazer isso. Não
era destituído de coração; o dele era largo, vivedor, bom.
Tolice! Mil vezes morrer, mil vezes sumir-se mesmo na terra ingrata, a deixar para trás
a capoeira, o roçado, o seu lar de homem pobre. Mil vezes morrer. . . murmura baixo.
Puxou a fumaça do cachimbo sertanejo. Deu mais passadas pelo interior da casa. Viu
Francisca sentada em cima da mala de couro; a folhinha que marcava os dias, brinde do
boticário de Pacatuba, e como se atrasara o calendário! Pregara-se no último Natal, dia esperado
por ele e a família e que transcorrera cheio de festas, dança na casa do compadre Luís, aluá, pé-
de-moleque, cachaça para os mais velhos, servida recatadamente no oitão ... Parece até que
agora a mulher e ele perderam as mãos e estão inanidos. Aquele vinte e cinco tinha sido dia tão
grande para eles, que lá ficara ante o olhar da efígie da santa como lembrança perpetuada.

- Chica, nós vamo mêmo?

A mulher deixou escoar por entre os lábios um riso estalado. Riso que dizia muitas
coisas, uma, por exemplo, que preferia também morrer, acabar-se de fome, a deixar a sua
.casinha de taipa coberta de palhas de carnaúba. Estirou os passos para o interior da casa.
Feitiço, o cão que dormitava na cozinha, levantou as orelhas sobre o corpo descarnado como se
aguardasse nova ordem:

- Vamo ficá, Feitiço. Num vamos mais não.

Mas qual! Leôncio não sabia o que dizer. Sumira-lhe a voz. A língua embrulhada,
aquela coisa estranha embolando dentro dele. Num desafogo, para não chorar ou blasfemar,
curvou-se rápido sobre o cão e lhe fez uma carícia .

Homem e cachorro estavam comovidos.

***

Sobre a mata seca, estorricada, desceu a noite.

A nuvem que parecia trazer chuva àquele sítio desfez-se em ventos, em rajadas que
levaram as últimas esperanças do dono da casa, para muito longe, e agitaram as palhas de
carnaúba em tremeliques nervosos como se por cima delas andassem os demônios soltos,
zangados com Leôncio, com o cão Feitiço e Francisca.

- Vento do diabo! esconjurou o homem.

Francisca, em cima da mala, não se mexeu. Não adiantava desfazer a trouxa para
recompô-la a seguir. Dormia ali se preciso fosse. Pobre arranja-se de qualquer jeito, inda mais
quando é de coração forte.

[...]

Afinal, soa o momento em que nada mais há que buscar no interior da casa. É sair
quanto antes, enquanto os olhos não ficam cheios de lágrimas, enquanto a saudade não vem com
a força da enchente de um rio.

Leôncio apanha a trouxa. Feitiço olha para a sala da casa, e não late uiva.

Quem chamaria aquilo de latido?

- O cachorro tá gemendo de sodade, Lonço.

-Tá ...

Está mesmo. Agora, imitando os donos, num último olhar, principiou a andar
indiferente a tudo. E os três, um atrás do outro, tomam o caminho pedregoso que atravessa a
capoeira assassinada. Vão perder a casinha, o pedacinho de terra, a existência feliz que viveram
juntos. Não irão mais aos pés de samba, não rezarão mais na igrejinha de Pacatuba, não ouvirão
também, nunca mais, os violões passando pela estrada, gemendo dores e saudades ...

- Lonço!

- Que é?

- Tá sentindo?

- Sim, tá pingando. Caiu um pingo no meu rosto. Olha , pro céu, repara.

O homem deu mais dois passos. Não pôde mais andar.

- Bobage, num chove não. O céu 'stá tão limpo.

Num sei, mas pingou.

O homem deu mais dois passos. Não pôde mais andar. Ficou parado, vigiando os olhos
vacilantes da· mulher, o ar saudoso do cão, o chão cheio de seixos, a capoeira comburida que
pisava. Agora, estão se consultando os três, se Indagando.

"Como é, a gente vai ou não vai? Convém ficar? Vale a pena aguentar mais uns dias?"
Podia ser que ainda chovesse, que o inverno, mesmo atrasado, chegasse a tempo de salvar a
terra e reflorar tudo – amolecia o homem.

Acocoraram-se, apalpando a areia com carinho, a terra que, regando-a a chuva, poderá
florescer em breve e apontar outra vez o caminho da fartura .

- Lonço, a gente fica?

Puseram-se de pé. Ficavam sim.

Correram então para a casinha de taipa. O cachorro na frente, Chica no meio e o


Leôncio da Chica no fim.

Em cima deles o céu continuava limpo, sem nenhum fiapo de nuvem.

(Eduardo Campos. o Abutre e Outras Estórias. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará,


Apresentação de Braga Montenegro, 1968, pp. 43-4; 46-7.)

Eduardo Campos a observação é de Braga Montenegro ---, conquanto haja


experimentado notável amadurecimento artesanal, desde sua estreia como contista, em 1943, "se
tem conservado o homem de suas aptidões telúricas e de sua geração espiritual." No conto aqui
apresentado, estadeia-se o regionalismo do autor, porventura sua característica mais marcante.
Trata-se de um flagrante, onde mais se constata um fato do que se percebe um enredo, razão por
que o trecho omitido não chega a prejudicar-lhe a mensagem, que se resolve no profundo amor
do sertanejo a sua terra natal. É um retrato perfeito do ambiente do sertão, com sua paisagem,
suas coisas, sua gente, seus bichos: a capoeira, o roçado, o casal de caboclos e mais o cão, figura
indispensável em tais quadros. O linguajar do povo cearense está presente nos diálogos: "Chica,
nós vamo mêmo?" Vamo ficá, Feitiço. Num vamo mais não." "O cachorro tá gemendo de
sodadet Lanço." "Tá ... " Isso, tanto pela supressão de fonemas, como pelo laconismo ( "Lanço!"
"Que é?" "Tá sentindo?" "Sentindo?"). Ou, de maneira indireta, através da narração do próprio
autor: "Era lá besta! Não ia fazer isso." Mas acima de tudo o que é mais digno de destaque, e
que, em última análise, constitui a razão de ser do conto, é a maneira como o contista nos
apresentar as personagens buscando sofregamente alguma razão (real ou imaginária) para não
abandonar a terra, árida e seca, mas amada: embora vendo o céu exageradamente azul, limpo,
sem uma nesga sequer de nuvem,. a Chica não hesita em dizer ao marido que sentira um pingo
de chuva no rosto. Na verdade, talvez nem lhe passe pela mente a idéia de poder iludir o esposo
com tal observação; o que ela diz é o que sente intimamente, o que ela queria realmente haver
sentido. Daí sua obstinação: "Num sei, mas pingou." Referindo-se exatamente ao conto Céu
Limpo, escreveu alhures Hertnan Lima, teórico e mestre no gênero: "Em cinco páginas, não
mais, Eduardo Campos condensou maravilhosamente o destino da raça, a difusa ternura, a
dorida singeleza d'alma, o resplandecente e irracional amor à terra, que não é maior em canto
nenhum do mundo.

ARTUR EDUARDO BENEVIDES

Nasceu em Pacatuba, no dia· 25 de julho de 1923. Transferindo-se para Fortaleza, milita


no jornalismo e se forma em Direito. Ocupa inúmeros cargos administrativos e ingressa no
magistério superior, como professor de Literatura Luso-Brasileira da Faculdade ·Católica de
Filosofia do Ceará, da qual seria Diretor. Professor igualmente da Faculdade de Letras da UFC,
da qual foi- também Diretor. Até inicio de 1976, dirigiu o Centro de Humanidades da
Universidade Federal do Ceará. Detentor de vários prêmios literários, membro da Academia
Cearense de Letras, poeta, contista, ensaísta e orador, publicou: Navio da Noite (19·44), Os
Hóspedes (1946), de parceria com Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros e Otacílio Colares,
A Valsa e a Fonte (1950), O Habitante da Tarde (1958), O Tempo, o Caçador e as Cousas
Longamente Procuradas (1965), Canção da Rosa dos Ventos (1966), O Viajante da Solidão
(1969), Elegias do Outono e Canções de Muito Amar e de Adeus (1974) e Viola de Andarilho
(19·74), todos de poesia, além de A Lâmpada e os Apóstolos (1952), Universidade e
Humanismo (1971) e Ideias e Caminhos (1974), de ensaios e discursos; Cancioneiro da Cidade
de Fortaleza (1953, 2.a ed., 1973), antologia; Caminho Sem Horizonte For(1958), de contos,
Evolução da Poesia e do Conto Cearenses, Fortaleza, Ceará, 1976, sem aludirmos a outras
obras, versando temas ligados à educação e ao h11manismo do mundo atual. Focalizamos o que
julgamos ser a parte principal de sua obra, a poesia.

ELEGIA CEARENSE

Longo é o estio.

Longos os caminhos para os pés dos homens.

Longo o silêncio sobre os campos. Longo

o olhar que ama o que perdeu.

Já não vêm as auroras no bico das aves

nem se ouve a canção de amor

dos tangerinos.

A morte nos aboia. Exaustos, resistimos.

Se se acaso caímos os nossos dedos

começam a replantar a rosa da esperança.

Ai Ceará

teu nome está em nós como um sinal

de sangue, sonho e sol.

Chão de lírios e espadas flamejantes,


território que Deus arranca dos demônios,

mulher dos andarilhos, dálida da canícula,

em nós tu mil rorejas. Pousas. És canção.

2.

Para cantar-te me banho em tua mem';oria

e ouço a voz enternecida

diante de esfinges soluçando.

Oh! ver-te apunhalada — e o sol

roubando tua frágil adolescência

e ponto em tua face o esgar

de quem se sente, súbito, perdido.

Teus pobres rios secam

os galhos perdem os frutos

as aves bicam o céu

fogem as nuvens.

Então ficamos escravizados

à tua sede austera, ao teu desejo

de um dia seres bela igual às noivas

que se casam no fim dos teus invernos.

Triste é ver as crianças finando-se nos braços

de mães alucinadas que vendo-as à morte

inda cantam de amor canções do tempo antigo.

E ficas desesperada vendo os filhos

ao longo das estradas onde há pouco

trabalhadores cantavam ao entardecer.

Mudas a voz, então: és cantochão

és réquiem crescendo à sombra dos degredos

és rouca como presos que murmuram

palavras dos dias em que foram

jovens e felizes.
Para cantar-te, Bem-Amada telúrica,

seria feliz se vez de vãs palavras

tivesse em minha boca chuvas e sementes.

Ai, viúva do inverno, flor violentada,

teu sol não brilha: queima. Mas um luar

renasce sempre no olhar

dos homens.

Ó grande olhar de pedra, sede e solstício:

te dessem um novo reino e nunca aceitarias!

4.

Belos são os teus frutos porque difíceis.

Em cada sepultura nasce uma rosa.

Em cada filho teu o amor é como o inverno.

Jamais tu morrerás. Não seríamos fortes

se por ti não estivéssemos em vigílias cruéis, ó mãe!

Mas se as chuvas te querem

como louco partimos

para o amanho da terra.

Os campos então ficam maduros

qual ventre de mulher,

e as bocas

— tranqüilas e felizes —

gritam

palavras de amor

que erguem

primaveras.

A MORTE

Lentamente a morte dança

sobre as pérgulas. Deita-se


no esquecimento e em ânforas

partidas. E cresce

para se dar madura

e em solidão.

De repente chega.

E já estava

há muito tempo em nós.

Mas surge caminhando

no mar que começa

sob o olhar de Deus.

Então nos erguemos. E colhemos

seu áspero fruto. E ela exige

o terrível tributo de viver.

Em silêncio a olharmos. Suá face

esplende mas é fria. E ela apanha

a flor, o cão, a casa, a ave, o homem,

o dia, o sonho, a nave o riso o amor.

Tudo morre. Incessantemente.

Tudo segue seus passos pela névoa.

Todos ouvem sua voz no que se vai.

Lentamente dança no tempo

e em nós. Somos

a canção que ela canta

o barco

em que desce sozinha pelo rio .

Ninguém a ama: só os santos .

e os que em versos a confortam

de sua dor de ser tão fria e só .

Ela é triste. Um dia a encontrei

no rosto de meu irmão, quando menino.

Depois em minha mãe. Estava lívida.


E eu tinha cousas para dizer . E não podia.

Estava quieto, olhando silencioso.

E via

a morte em sua pálida

imobilidade.

Ai, sua funda sede só se desaltera

quando ela nos leva

para o esquecimento .

Quantas vezes morremos antes

da morte definitiva?

Quantas vezes seu pólen cai

em nossa espera?

E a grande rosa cresce

e cobre

o púcaro da vida.

SÚBITA ELEGIA

Marinheiro não fui.

Nasci para as viagens.

Nasci para habitar os portos e os mares.

Em vão sonhei navios.

Meu olhar reflete embarcações.

Nunca tive uma ilha para amar. E

me perdi nas vãs infantarias.

Marinheiro não fui.

Minha âncora es tu, poema.

(No sono nascem

gaivotas impossíveis.)

O MORTO NA PRAIA

Um homem na praia estava imóvel.


Um homem na praia estava morto.

Um homem na areia enrijecido.

Vinham ondas do mar sobre o seu corpo.

Vinham ventos e entravam em seus ouvidos.

Vinham silvos longínquos e ele morto ...

Adiante mulheres se entregavam

aos desejos de jovens vagabundos.

Adiante bêbados gritavam,

marinheiros no bar contavam histórias.

Holofotes cruzava1n a superfície

sobre a noite rasgando o bom caminho.

Os uivos das águas vinham fortes.

Mas um homem na praia estava morto.

Ninguém o encontrava, nem um cão

vinha lamber o sangue coagulado.

Ao fundo, estava o mar; no alto, a lua

que outrora brilhara sobre as naus

de valentes marujos todos mortos.

Bem próximo do corpo estava o porto

como sigla nos olhos mareantes.

Noctívagos passavam assoviando

canções desesperadas pelo cais.

Sob os gestos alguns estavam mortos

Contudo caminhavam e eram ·tristes.

Mas na praia um homem se encontrava

como um barco fendido. E estava morto. .

ELEGIA PARA ALBA FROTA

IV

Lívida estavas no caixa enquanto

Nós outros, teus jograis, te rodeávamos


E em difíceis silêncios sufocávamos

O pranto sob o· qual nascem vigílias.

Teu velório foi longo. A madrugada

Encontrou-te parada sobre a essa

E tudo processava-se sem pressa

Com a lentidão das tristes despedidas.

Afinal veio a hora: fui daqueles

Que puseram teu esquife sobre o carro

Em que te conduziram sem regresso.

Mas nas brumas do adeus, na fria ausência,

Que pesa mais que a morte, não morreste:

Continuas nascendo no meu verso.

(Artur Eduardo Benevides. O Viajante da Solidão. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará,


1969, pp. 14-5; Antologia de Poetas Cearenses Contemporâneos. Fortaleza, IUC, 1965, pp. 53;
49-50; O Viajante da Solidão, clt., p. 68.)

Lírico por excelência, bem pode Artur Eduardo Benevides ser chamado de poeta
.elegíaco; infenso aos apelos da poesia experimental, prefere ficar no terreno em que adquiriu
renome de mestre, da estirpe de um Augusto Frederico Schm\dt. Podemos apontar duas
constantes em sua poesia: a morte e o mar (não raro grafado este com maiúscula). E de tal
maneira essas duas presenças povoam toda a sua obra, que não nos preocupamos em reproduzir
os poemas na ordem cronológica. A "indesejada das gentes" surge logo como tema único e
como título do segundo poema: a morte, que leva a todos, sem distinção, sejam homens,
animais, coisas ou mesmo abstrações; quando diz: Somos / a canção que ela canta / o barco /em
que desce sozinha pelo rio – talvez haja velada alusão ao Aqueronte da Mitologia grega, o qual
ia desembocar no reino dos mortos; ao lembrar a presença da morte no rosto de sua mãe, vemos
desencadear-se o máximo da carga lírica cJo poema (E eu tinha cousas para dizer. E não podia)
Em ''Súbita Elegia", temos o poeta a lamentar o não ter sido marinheiro, causa talvez de tanto
aludir ao Oceano em toda a sua ·obra: em O Tempo, o Caçador, e as Cousas Longamente
Procuradas ( 1965) , diz ele, numa página de prosa poemática: O Mar nos chama. Não apenas o
Mar líquido, o Mar das águas escuras, búfalo imenso, ondas revoltas, navios apitando, ôôôô!
Mas o Mar interior, a fuga que eternamente nos resguarda o imprevisto Mar, sem vento e sem
esquadras.) Por sua vez "O Morto na Praia'' traz-nos simultaneamente as duas constantes
referidas: a morte, com seu mistério inevitável tem como pano de fundo a paisagem marinha:
note-se o enriquecimento da densidade emocional com a revelação da ignorância ou indiferença
dos circunstantes; e como se não bastasse a presença avassaladora do mar, através das ondas dos
ventos dos uivos das águas, ainda é uma imagem náutica o que ocorre ao poeta, ao ver o morto
"como um barco fendido"; a predominância de decassílabos confere atmosfera clássica ao
poema, um dos mais bem realizados de toda a sua obra, a nosso ver. Afinal, para não ficarmos
só nos poemas livres, um soneto: destituído quase de rimas (apenas duas consoantes nos
quartetos e uma toante nos tercetos), e tendo como tema a morte de uma amiga, é o fecho de
uma elegia composta de quatro sonetos. Foi Edigar de Alencar quem observou a respeito do
poeta: "Mesmo quando parece hermético, é límpido nas suas intenções e concepções." 7& Com
efeito se podemos vislumbrar em sua arte algumas notas daquele mistério que o Modernismo
herdou do Simbolismo (e que, afinal está na poesia de todos os tempos), o certo é que raramente
podemos qualificar de herméticos os seus versos. Isso nos faz lembrar Manuel Bandeira, que
chegou a confessar: " . . . jamais fiz um poema ou verso ininteligível para me fingir de profundo
sob a especiosa capa de hermetismo". Benevides é sem sombra de dúvida uma das mais altas
vozes da poesia cearense contemporânea.

MOREIRA CAMPOS

José Maria MOREIRA· CAMPOS Nasceu· em Senador Pompeu, no dia 6 de janeiro de


1914. Passou a infância e parte da adolescência em Lavras da Mangabeira, de onde se transferiu
para Fortaleza, bacharelando-se em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará e licenciando-se
em Letras pela Faculdade Católica de ·Filosofia do Ceará. Professor de Literatura Portuguesa do
Departamento de Letras Vernáculas do Centro de Humanidades da· UFC, foi Decano do mesmo
Centro e exerce atualmente as funções de Pró-Reitor de Ensino e Gradu8.,ção da Universidade
Federal do Ceará. É membro da Academia Cearense ·de Letras. Tem praticado ô ensaio e o
poema, destacando-se porém, acime de tudo, como contista, dos maiores de nossa literatura.
Publicou: Vidas Marginais (1949) , Portas Fechadas (1957), As Vozes do Morto (1963), O
Puxador de Terço (1969), e Contos· Escolhidos (1971, 2.a ad. 1974) . De poesia, Momentos, ·
Imprensa Universitária do Ceará, 1976. Transcrevemos na íntegra, o conto "As Corujas".

AS CORUJAS

Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chao e metido no dólmã de
brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as janelas do velho
necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os mortos sobre as lousas. Deixa-
lhes .apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas, com o sangue coagulado entre os dedos
abertos; as grandes botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no
oitão do armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por
muitos dedos, foram recolhidos à ·delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes as
cabeças. As corujas descem pela claraboia. Têm voo brando, impressentido, num cair de asas
leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma
sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados,
que fulgem na noite, divididos ao meio.

- Xô, praga.

Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre,
curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da
lâmpada, que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda
percorre o teta de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço do
alemão contra a parede umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda
na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre cinzentos
telhados, passa pela torre da capela, detém-se, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em
qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio,
sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos,
que guincham nas suas garras. Necessar1o subir ao sótão, desfazer-lhes os ninhos. Falará com
Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando
as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que Antero, o jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e
divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de teia de aranha, e as atirará ao
pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as malditas, que
rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
- Xô, praga.

Resmunga, conversa sozinho, repete-se. Torna a experimentar as trancas das janelas,


teima em ajeitar os pedaços de lona, que modelam saliências rígidas . O pedaço de lona do
alemão ficou curto como uma camisa: têm presença apenas as botas. Resmunga. Se pudesse ele
próprio poria uma tela de arame na claraboia. Já falou a Dr. Joca, que ele trata por você, porque
foram criados juntos, e um xinga o outro. O bisturi do Joca corta sem pressa, profissionalmente.
Luvas ensanguentadas, bigode branco amarelecido pelo fumo, ele apanha o cigarro com a boca
no cinzeiro sobre o peitoril da janela. Secciona pedaços:

- Leva o balde . . .

O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã
de mescla. Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto d ·a pensão veio
fazer velório ao corpo descarnado do filho, ele deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as
corujas. Elas desciam pela claraboia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas
acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas.
Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na ·torre da capela. Sem a presença
das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de morte: alteiam-se leves,
pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e
indefesos na noite.

(Moreira Campos. Contos Escolhidos. Fortaleza, Imprensa Un1vers1tár1a da UFC, 1971, pp.
134-6.)

Ao reunir num só volume contos de seus 4 livros, quis Moreira Campos não só dar uma
idéia de sua evolução no "gênero, como definir o que entende por conto, modernamente; antes
esboço de romance, atingindo mais de uma dezena de páginas, é atualmente o conto, segundo o
escritor cearense, "um momento, um flash 11ma fatia de vida, uma impressão, uma mancha,
como querem alguns." Com efeito, autor de contos longos, como "Lama e Folhas", "Vigília", ou
"O Preso", chegou a tal ponto de contenção que n'O Puxador de Terço (1969) os mais extensos
não passam de 4 páginas, havendo-os de duas apenas. Não assinalamos isso em detrimento dos
contos citados (todos de valor indiscutível, incluídos em antologias nacionais e estrangeiras),
senão para constatar uma tomada de posição do autor, em busca da essencialidade. E desta é
exemplo perfeito o conto "As Corujas" do citado O Puxador de Terço . De início, observa-se
uma particularidade interessante: contrariando a etimologia, esse conto não pode, a rigor, ser
contado, pois é destituído de enredo, com princípio, meio e fim; trata-se, portanto, de um corte,
de um flagrante, em suma, daquilo que o autor disse ao definir o conto atual. A ausência de
enredo aproxima-o, a nosso ver, do poema; ainda mais pelo fato de só a alusão aos pássaros
noturnos bastar para conferir ao texto uma atmosfera encantatória, densa de mistério e poesia.
As aves, fatalmente ligadas à ideia de morte pela crendice de que seu canto rasga mortalhas,
surgem-nos aqui ainda mais lúgubres, em contacto real com os mortos. Não que nós as vejamos
descer sobre os defuntos, mas através dos pensamentos ou palavras do velho: por duas vezes, de
dentro das considerações em torno do ambiente e da aproximação das rapinas, sai a exclamação:
" Xô, praga!" É o velho espantando as corujas, mas não podemos precisar se estamos voltando
aos instantes em que as aves pousavam sobre os mortos ou se o velho, ao rememorá-las, solta as
palavras como as estivesse vendo de fato. Temos ideia de como são caçadas as aves agoureiras:
o facho de luz procurando-as pelas árvores,· ou o jardineiro torcendo-lhes os pescoços no sótão;
também tomamos conhecimento da morte do andarilho alemão, com suas "botas de muitas
viagens''; sabemos quem é Irmã Jacinta, bem como o Dr. Joca, ou o jardineiro Antero. Tudo isso
porém emerge do meio das manchas que constituem o conto. Inimigo do detalhismo, o contista
valoriza todavia o detalhe imprescindível: o dólmã de mescla, o travejamento antigo do teto, as
botas do andarilho, etc. Note-se ainda com que crueza neonaturalista aparecem os olhos dos
mortos, na noite, divididos ao meio, semicerrados. Mas, acima de tudo, ressalte-se a força do
refrão: por duas vezes, no fim do primeiro parágrafo e no final do conto, descreve-se a descida
branda e impressentida ,das corujas, que se alteiam e pousam sobre o peito dos mortos, a fim de
arranhar-lhes os olhos; há pequenas variações vocabulares mas a cena é a mesma, repetida para
efeito estilístico. Pelo sortilégio das palavras, pelas evocações que consegue despertar, atinge
Moreira Campos, com "As Corujas", a altitude de um poema denso de simbolismo. Escusado
lembrar que o autor tem lugar destacado no panorama literário nacional como verdadeiro mestre
do conto.

MÍLTON DIAS

José MÍLTON de Vasconcelos DIAS Nasceu no Ipu, em 29 de abril de 19l9. Bacharel


em Direito pela Faculdade de Direito do Ceará, foi professor no Ceará e em S. Paulo Exerceu as
funções de Secretário da Universidade Federal do Cear: e de Técnico de Educação. É professor
de Literatura Francesa no Departamento de Línguas Estrangeiras do Centro de Humanidades da
mesma Universidade. Fez estágio no Instituto Nacional Pedagógico de Paris e cursou Literatura
Francesa também na França. Membro da Academia Cearense de Letras. Foi condecorado pelo
Governo da França com a Ordem das Palmas Acadêmicas. Cronista e contista, publicou
SeteEstrelo (l960), As Cunhãs (1966), A Ilha do Homem Só (1966) ,Entre a Boca da Noite e a
Madrugada (1971), Cartas Sem Respostas (1974) e Viagem no Arco-Íris (1974), em
colaboração com Cláudio Martins. Segue na íntegra uma das suas "estórias":

TRÊS IRMÃS

Presume-se que Hermínia, a mãe, não tenha tido conduta irrepreensível na juventude,
mesmo na vigência do finado n1arido, que era um homem bem constituído para os trabalhos do
campo, feito também de corpo e alma para as alegrias da pinga, da dança e da conquista à
mulher alheia. Hermínia, já velhota, ainda punha no andar uma certa graça que não deixava
dúvida quanto à intenção de atrair a cobiça masculina. O certo é que agora, aposentada de todos
os amores, come o pão difícil cumprindo a sentença bíblica com o suor do seu rosto derramado
pelas cozinhas dos brancos.

Morava e mora no sertão e foi lá mesmo que se perdeu a primeira filha, por nome
Maria, e tão depressa se tornou esta dita menina conhecida como mulher de vida airada, bonita,
malcomportada, afrontando a sociedade local com os veStidos curtos, decotados, de cores
violentas e as farras acintosas, que passou a ser tratada por Maria Perdida, versão municipal da
concubina dos grandes do Império e da República, pois falavam claramente. das suas aventuras
e dos seus amores com o senhor prefeito.

E tanto sucesso alcançou, tanto subiu na carreira rápida, tanto "charme" pôs no olhar de
brasa, tanta sinceridade no seu propósito de luxar, de ganhar dinheiro e correr o 1nundo, tanto
sonhou com navio e cidade grande, que vindo para Fortaleza e botando banca, ou melhor,
botando cama no Mucuripe, lá mesmo conseguiu que um comissário se interessasse por ela e a
carregasse para terras do sul. Esta é o orgulho da mãe, que continua no sertão, na mesma cidade
que sempre viveu. Quando aparece, Hermínia faz por sua conta a promoção da menina, inventa
cartas, improvisa notícias, informa com segurança: Está no Rio, a Maria. É a que está melhor de
todas, mora num "departamento", ·casou com um gringo, tem automóvel e todo conforto.

Uma vez lhe perguntaram se Maria está gorda, ela respondeu com alegria d'alma: Nem
gorda, nem magra, está assim medieval ... Uma outra Maria, a que vinha encostada à primeira
na ordem de idade, foi a segunda pomba despertada. Não se pode dizer que era bonita como a
Perdida, ah, isto nunca mas era sacudida, tão alvoroçada, tão doida, dançareira, bebedeira de
cerveja, abrideira de barulho, tão inquieta, que ganhou o apelido de Maria Pinote. Tantas fez,
tanto trabalho deu ao padre, ao delegado, tanto escandalizou, que se cotizaram, pagaram-lhe a
passagem de caminhão e a mandaram exercer seu ânimo amorento aqui na capital. Salvou-se
assim muita paz doméstica.
Hermínia desculpava a filha, dizia que a pobrezinha tivera uma doença em pequena,
ficara com o juízo "destroçado". E completava: mas aquilo tem um coração de ouro. Apesar d·e
todo ouro no coração, sabia-se, por porta de travessa, que Hermínia apanhara da própria filha,
ao ensejo duma carraspana inesquecível.

Tão avoada, não havia quem dissesse que se apaixonaria um dia. Mas diz que o
impossível aconteceu a pobre se engraçou dum embarcadiço, caiu-lhe nas malhas. Quando foi
abandonada, sofreu, chorou, bebeu, perdeu o gosto de usar os óculos "rayban", de pintar o
cabelo de louro, de usar o colar de miçanga, o vestido vermelho brilhoso, e foi entristecendo,
alternando a embriaguez frequente com estados de desgraçada depressão. Um dia destes
queimou-se toda, virou fogueira, morreu ardendo, morreu apaixonada pelo embarcadiço infiel.

Hermínia veio cá, os olhos constantemente molhados de choro copioso, mas


compreendendo o gesto da filha como fraqueza do coração generoso e perdoando tudo da
pobrezinha, debitando tudo por conta daquela doença que ela tivera em cr1ança. Foi buscar os
pertences da menina mesmo na pensão onde morava e voltou magoada, a madame não quis dar
nem os óculos, nem o colar de conta de vidro nem os brincos nem a pulseira. Hermínia
lamentava: As outras disseram que o homem deu muita coisa a ela, mas a madame estava
intolerável. Alegou as despesas do enterro, encerrou o assunto. Tanto que ela queria os óculos
escuros da menina!

Quando veio, Hermínia trouxe outra filha, por nome Maria das Graças, que tratam por
Graciosa. Bem se vê que é de menor, mas tão enfeitada, o batom carregado na boca polpuda, o
esmalte feito sangue nas unhas compridas, as sobrancelhas arqueadas, o olhar vivo, o cabelo
curto. O vestido barato, as alpercatas ordinárias denunciam pobreza de verdade.

- Esta não volta pro sertão, esclareceu Hermínia. Vai se empregar por aqui os ganhos lá
andam poucos, em casa de branco só tem mesmo a vantagem da comida, mas pagam barato e
ainda são desaforentos que só vendo. Está é que nem a mais velha, quer ser gente ...

Foi assim, por morte de Maria Pinote, que apartou recentemente em Fortaleza, a terceira
Maria mulata como as irmãs, menina de muito futuro.

(Milton Dias. As Cunhãs. Fortaleza, Editora Comédia Cearense, 1966, pp. 63-7.)

Andou muito bem Mílton Dias ao subintitular alguns de seus livros de "estórias e
crônicas", entre eles As Cunhãs, do qual extraímos o conto acima reproduzido; e chamamo-lo
de conto para enquadrá-lo num gênero definido; guardando muito daquela leveza própria da
crônica, "Três Irmãs" aproxima-se com efeito muito mais do conto do que de qualquer outro
gênero literário; e apesar de lhe faltarem a síntese e a monocronia do conto atual, é
extremamente moderno pela linguagem. Aqui, desfilam, cada uma a seu turno, as três irmãs
filhas da velha Hermínia, cuja condição de ex-prostituta parece refletir-se o destino dessas
Mar1as: a primeira, arribando com um gringo, depois de uma temporada no submundo do
Mucuripe; a segunda, pondo fogo às vestes (num suicídio típico de mulheres em sua situação) e
deixando vago um quarto num cabaré; a terceira, ainda impoluta, mas segura candidata ao ofício
das outras, visto que para isso a trouxe do sertão a velha Hermínia. Toda essa fauna miserável
com a velhota ainda tentando atrair amores pelo andar faceiro, as ligações da primeira Maria
com o Prefeito,. Maria Pinote batendo na mãe e caindo no meretrício, a mesma Hermínia
parecendo lamentar mais a perda dos óculos rayba1n do que a morte da filha; a mais nova, já
ensaiando os primeiros passos na "vida alegre" toda essa humanidade in ·feliz daria páginas de
colorido trágico; Mílton Dias, porém, consegue, de maneira quase alegre, mal disfarçando a
piedade e mesmo a simpatia que lhe inspira essa sub-humanidade, pintar-nos quadros leves: à
maneira de Charles Chaplin que,. no cinema, alternava o melodrama com o humorismo, entre o
escritor com a nota de fino humor, mal começamos a esboçar alguma comoção; assim ocorre
quando Hermínia informa uma amiga da situação física de sua filha mais velha: " Nem gorda,
nem magra, está assim medieval ... " ou. ainda quando, ao referir-se à mais nova, sentencia,
como que orgulhosamente: "Esta é que nem a mais velha, quer ser gente ... " O exercício da
crônica nos jornais, onde são absolutamente necessários o tom coloquial, bem como a graça e
elegância da frase, fizeram de Mílton Dias um dos mais originais escritores cearenses da
atualidade, seja no campo mesmo da crônica, em que é mestre, seja na ficção, compondo o que
ele chama de "estória", e que está bem representada. pelas "três irmãs".

Você também pode gostar