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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE LETRAS
LITERATURA CEARENSE
1. NEOCLASSICISMO
OS OITEIROS
Florescendo por volta de 1813 ou 1814, a literatura desse tempo é representada pelos
poemas de um grupo que se reunia em tomo do Governador Sampaio (Cel. Manuel Inácio de
Sampaio) , em sessões palacianas que ficaram famosas sob , a designação de Oiteiros, onde se
destacavam os nomes de Pacheco Espinosa, Castro e Silva, Costa Barros e outros. Sua poesia
não se afastava dos louvores aos heróis e aos governantes, com o que seguiam 11m dos
postulados neoclássicos de Luís Antônio Verney, teórico da corrente em ·Portugal; mas, ainda
impregnados de racionalismo barroco, os poetas dos Oiteiros não se entregaram aos temas
pastoris, a fim de embelezar a realidade. Daí, sua produção versificada, que não se eleva pela
grandeza do estro, não poder ser considerada puramente arcádica ou neoclássica .
PACHECO ESPINOSA
José PACHECO ESPINOSA - Nasceu na Ilha da Madeira, em data ignorada, vindo a falecer em
dezembro de 1814, provavelmente no Ceará. Era um dos principais comerciantes de Fortaleza
em seu tempo, chegando a fazer transações diretas com a Europa. Segundo informação do
Barão de Studart, Espinosa foi "dos poetas de mais nomeada que teve o Ceará no começo do
século passado". Apesar de nascido em terras de Portugal, aderiu à causa de nossa
Independência.
Soneto I
COSTA BARROS
Pedro José da COSTA BARROS Júnior Nasceu no Aracatl, em 7 de outubro de 1779, e faleceu
no Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 1839. Deixou de fazer parte da Constituinte Portuguesa
para ficar no Rio de Janeiro, trabalhando pela independência do Brasil. Foi eleito à Constituinte
Brasileira em 1822, após cuja dissolução foi nomeado Ministro da Marinha. Veio para o Ceará
em 1824, como Presidente da Província, ao tempo da rebelião de Pereira Filgueiras e Tristão
Gonçalves. Um de seus poemas foi incluído no Florilégio da Poesia Brasileira (1850), de
Varnhagen, editado em Portugal. De sua longa Ode "Aos Heróis Lus'Anglos" damos apenas
uma amostra, transcrevendo-lhe 0 início:
Estrofe 1ª
Mantuana lira.
Antístrofe 1ª
Temístocles, Lisandro,
O glorioso enxame
O monstro vê raivoso
A Lusitana glória!
Esta é somente a sexta parte do poema que, seguindo o esquema da ode pindárica, é
composto de Estrofes, Antístrofes e Epodos. Fiel a um dos postulados da corrente arcádica,
celebra o poeta a luta de ingleses e portugueses contra os exércitos napoleônicos. Na l.a estrofe,
pede à Musa, como era de praxe, que lhe dê inspiração para cantar os feitos de heróis: a Musa
deverá descer do Parnaso (o "Sacrossanto monte"), ' com o fogo que inflamou a mente de
Horácio (o "Vate de Venusa' .'); assim cantará o poeta ações tão admiráveis, que assustarão a
própria inspiração de Vergílio (nascido em Mântua). Na 1.a antístrofe, são enumerados nomes
de várias figuras da História Antiga, aos quais acrescenta o poeta os dos novos Heróis,
igualmente gloriosos. Por fim, no epodo lº, é preparado o ambiente para se iniciar a descrição
dos combates: Napoleão intenta avançar contra Portugal, invejando-lhe as glórias. Os lusitanos
porém se opõem energicamente, e forma-se inacessível barreira. Essa ode, embora sem
grandeza, representa muito bem o poeta da época, com suas frequentes alusões ao mundo
antigo, e a pretensão de verem os poetas ·os seus cantos imortalizados tempos afora ("E
transporei às Eras Ações, que assustam Mantuana lira.").
Para o historiador Carlos Studart Filho, os Oiteiros não devem ter durado apenas de
1813 a 1814. como admitira Dolor Barreira ; é que o Governador Sampaio, que exerceu o
governo da Capitania de 1812 a 1820, "Sendo inteligente e muito amigo de incentivar o gosto
pelàs Belas-Letras, não podia, é claro, desinteressar-se das atividades intelectuais de seus
governados dois anos depois de eles terem iniciado com ' tanto ardor. "E menciona ainda uina
carta de 1817, em que o governador mecenas falava de uma festa, que teria sido abrilhantada
com "Muitas peças poéticas de mais ou menos merecimento.''
2. A PADARIA ESPIRITUAL
Antônio Sales foi o idealizador da sociedade e que lhe redigiu o Programa de Instalação,
que transcrevemos na íntegra:
1 Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siàrá Grande,
uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada· "Padaria Espiritual", cujo fim é
fornecer pão de espírito aos sócios, em particular, e . aos povos, em geral.
3 Fica limitado em vinte o número de sócios,· inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir
sócios honorários, que se denominarão Padeiros-livres.
4 Depois da Instalação da '.'Padaria", só será admitido quem exibir uma peça literária ou
qualquer outro trabalho artístico que for julgado. decente pela maioria.
5 · Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra de cada
Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o
trabalho dessas indagações.
6 Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão
usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.
7 O distintivo da "Padaria Espiritual" será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo
que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.
11 Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.
12 Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo
possível, assinando todos os Padeiros presentes.
13 As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará
conta do dinheiro recebido e despendido.
15 Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a
flor, com exceção da de chichá.
16 Aquele que durante uma semana não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica
obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas . Quem disser uma pilhéria
superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.
17 O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plágio, falado ou escrito, pagará café e
charutos para todos os colegas.
18 Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão
ignaro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem-estar mútuo.
19 É proibido fazer qualquer referência à rosa de Malherbe e escrever nas folhas mais ou menos
perfumadas dos álbuns.
20 Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero,
Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se
descobrirão.
21 Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou
plantas estranhas à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho, etc.
etc.
22 Será dada a alcunha de "medonho" a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom
senso e o bom gosto artísticos.
24 Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos
e ilícitos.
26 São considerados, desde já, 'inimigos naturais dos Padeiros o Clero, os alfaiates e a polícia.
Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear o seu desagrado a essa gente.
27 Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura
contestáveis.
28 Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.
30 A Avenida Caio Prado é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que
felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da "Padaria".
35 Logo que estejam montados todos os maquinismos, a "Padaria" publicará um jornal que,
naturalmente, se chamará O Pão.
39 As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio, excetuadas: as
fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.
40 A "Padaria" desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não
tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatória a instrução pública primaria.
42 É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se
emitem nesta Capital.
43 No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas .
44 A "Padaria" declara embirrar solenemente com a secção "Para Matar o Tempo" do jornal A
República, e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma
secção.
46 O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, piston ou qualquer
outro instrumento irritante, dará parte disto à "Padaria" que trabalhará para pôr termo o
semelhante suplício.
27 Salientemos alguns pontos dignos de nota: No artigo 1.o, vemos que se trata não somente de
uma agremiação de homens de letras, mas de "uma sociedade de ·rapazes de Letras e Artes";
com efeito, vamos adiante encontrar, ao lado de escritores, alguns músicos e um pintor.
No artigo 5º falava-se de um livro com todos os dados referentes a cada "padeiro"; embora se
tenha dito, dois anos mais tarde, que os artigos de I a IX "tiveram fiel execução", o fato é que
não chegou até nós esse livro, de tanta importância hoje, já que somos a "posteridade" a que se
refere o item citado.
Quanto à bandeira da agremiação, tem realmente o distintivo previsto, mas em campo vermelho,
e não nas cores nacionais, como reza o artigo 7º
Observe-se, já naquela época, a condenação do tom oratório (artigo 11) "sob pena de vaia", e o
laconismo das atas, no artigo seguinte.
O Dr. Castro Lopes, referido no artigo 14, é o médico e gramático Antônio de Castro Lopes,
nascido no Rio em 5 de janeiro de 1827 e ali falecido, em 11 de maio de 1901; criou inúmeros
neologismos, como runimol, para substituir o francesismo "avalanche". Os "padeiros" o citam
em tom de pura blague, como se dizia.
Note-se ainda, no artigo 19, a aversão da entidade às coisas repetidas demais, aos lugares-
comuns. Contudo, ainda hoje se fala nessas rosas, alusão ao famoso poema de François de
Malherbe (1555-1628), reformador da língua e da versificação francesas .
Atente-se, no mesmo artigo, para um costume que vigorava até bem pouco: o das folhas
perfumadas dos álbuns femininos.
O artigo 21 encerra, a. nosso ver, o ponto mais importante de todo o Programa: condena ele o
uso, em textos literários nossos, de vocábulos que se refiram à Flora e à Fauna estrangeiras:
lembre-se que essa seria, exatamente 30 anos depois, uma das preocupações principais, da
famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo.
O artigo 31 fala-nos de uma monografia sobre 0 Professor Sobreira. Trata-se de João Gonçalves
Dias Sobreira, natural do Crato, onde nasceu em 1847. Publicou vários livros, abrangendo
estudos da língua francesa, da gramática portuguesa, de Geografia do Ceará, tendo ainda
cultivado a literatura e feito um mapa de nosso Estado. Trata-se pois de· pilhéria a execução de
tal monografia, pois os "padeiros" implicavam com o enciclopedismo do professor.
Não foi cumprido igualmente o artigo 34, que se refere ao Cancioneiro Popular: apenas algumas
trovas foram estampadas n' O Pão.
Também deixou de ser cumprido o prometido no artigo 36, a respeito das aventuras do Padre
Verdeixa: alcunhado “Canoa Doida". Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa deu desde muito
cedo "provas de completo desequilíbrio mental, que a idade não modificou para melhor", como
observou o Barão de Studart; foi jornalista e chegou a deputado, sempre lutando contra tudo e
contra todos. Foi um dos tipos mais excêntricos de toda a história cearense.
O Cassino, de que fala o artigo 41, era o que os ''padeiros'' chamavam de um "monstrengo de
alvenaria", comparando suas dimensões às do famoso Bendegó, meteorito caído na Bahia. Esse
Cassino, que se erguia no Passeio Público, foi afinal demolido.
Mané Coco, referido no artigo 45, é Manuel Pereira dos Santos, dono do Café Java, onde se
reuniam os rapazes que fundaram a "Padaria". Inteligente mas sem cultivo, era figura
popularíssima em seu tempo. A Avenida Ferreira é a Praça do Ferreira .
Como diz o artigo 3º do Programa, foi fundada a Padaria Espiritual com 20 sócios, dos quais
damos a seguir a relação, com os respectivos nomes de guerra: JOVINO GUEDES (Venceslau
Tupiniquim) ANTONIO SALES (Moacir Jurema) TIBÚRCIO DE FREITAS (Lúcio Jaguar)
ULISSES BEZERRA (Frivolino Catavento) CARLOS VíTOR (Alcino Bandolim) JOSÉ DE
MOURA CAVALCANTI (Silvino Batalha) RAIMUNDO TEÓFILO DE MOURA (José
Marbri) ALVARO MARTINS (Policarpo Estouro) LOPES FILHO (Anatólia Gerval)
TEMÍSTOCLES MACHADO (Túlio Guanabara) SABINO BATISTA (Sâtiro Alegrete) JOSÉ
MARIA BRÍGIDO (Mogar Jandira) HENRIQUE JORGE (Sarazate Mirim) LíVIO BARRETO
(Lucas Bizarro) LUÍS SÁ ( Correggio del Sarto) JOAQUIM VITORIANO (Paulo
Kandalaskaia) GASTÃO DE CASTRO (Inácio Mongubeira) ADOLFO CAMINHA (Félix
Guanabarino) JOSÉ DOS SANTOS (Miguel Lince) JOÃO PAIVA (Marco Agrata)
É que nem todos ingressaram ao mesmo tempo: ainda no ano da fundação, 1892,
segundo reza a Ata do dia 20 de junho, citada por Leonardo Mota, fora admitido ANTÔNIO DE
CASTRO; os dez nomes que se seguem, de JOSÉ CARLOS JÚNIOR a ROBERTO DE
ALENCAR, entraram para o grêmio quando da aludida reorganização, conforme Ata do dia 28
de setembro de 1894, transcrita em Cenas e Tipos (1919), de Rodolfo Teófilo.
LUÍS TIBúRCIO DE FREITAS (? - 1918) Prosador simbolista, nada deixou em livro; foi porém
no Rio de Janeiro amigo íntimo de Cruz e Sousa que, segundo dizem, lhe ouvia os conselhos
respeitosamente. Nestor Vftor fez-lhe o discurso de beira-túmulo.
ULISSES BEZERRA (1865 1920) Foi Primeiro-Forneiro quando Antônio Sales ocupou
interinamente a Presidência da ''Padaria''. Jornalista, colaborou em quase todos os periódicos de
sua época, chegando mais tarde a ser um dos principais redatores da revista Jangada, de 1909.
Deixou inédito um livro de crônicas ou fantasias, Páginas Soltas.
ALVARO Dias MARTINS (1868 1906) Destacou-se como poeta, e por isso vamos reencontrá-
lo adiante. Haveria de cedo abandonar a "Padaria", passando, com Temístocles Machado, a
hostilizá-la abertamente, fundando outra agremiação, o Centro Literário. Usava o pseudônimo
de Alvarins, e era irmão de Antônio Martins.
LOPES FILHO (1868 1900) Autor do primeiro livro de poesia simbolista do Ceará, será visto
oportunamente, quando da apresentação dos poetas de sua corrente estética.
Manuel SABINO BATISTA (1868 1899) Paraibano produziu literariamente aqui, onde
publicou seus dois livros de poesia, Flocos (1894) e Vagas (1896). Foi Secretário d' O Pão, e era
casado com a poetisa Ana Nogueira Batista. Colaborou largamente na imprensa fortalezense,
onde já se destacava,. mesmo antes da criação da Padaria Espiritual.
LÍVIO BARRETO (1870 1895) Um dos maiores poetas da "Padaria", será visto adiante, como
simbolista que foi..
HENRIQUE JORGE Ferreira Lopes (1872 1928) Não era escritor, e sim músico, havendo
animado, com seu violino, várias sessões da agremiação, recebendo, por isso, o título de
Embaixador da Música, entre os "padeiros". Realizou inúmeros concertos aqui e noutros
Estados. Pai de Paulo Sarazate e de João Jacques, era irmão de CARLOS VÍTOR, outro músico
da Padaria Espiritual.
LUíS Félix de SÁ (1845 1898) Também não era escritor, mas desenhista e pintor, sendo
chamado, no grêmio, de Plenipotenciário da Palheta e do Pincel. Luis Sá escrevia nas paredes
do "forno" os nomes de guerra dos companheiros, com o que, segundo Moacir Jurema (numa
das Atas referidas por Leonardo Mota), interpretava "a psicose de alguns nomes". Desenhou um
"Mapa Geográfico Postal do Estado do Ceará" (1890).
JOAQUIM VITORIANO de Almeida Pinheiro (? 1894) - Não sendo escritor, nem músico, nem
pintor, entrou para o grêmio, segundo Leonardo Mota. "não em virtude do cérebro e, sim, do
braço e da coragem de que era dono". Fazia, assim, o papel de guarda-costas dos "padeiros".
Contudo, numa das sessões, por pilhéria, foi escalado para falar sobre Spencer! Morreu
assassinado em plena Praça do Ferreira .
ADOLFO Ferreira CAMINHA (1867 1897) Vindo a destacar-se através de seus romances
realistas (onde aliás já o estudamos), teria participação quase nula na agremiação, terninando
por ser expulso de seus quadros, em 1896. Nas suas Cartas Literárias (1895), de ensaios críticos,
há um interessante artigo a respeito da criação da Padaria Espiritual, acompanhado de censuras
à falta de espontaneidade dos últimos tempos.
ANTÓNIO DE CASTRO Vidal Barbosa (1872 1935) Publicou, ao tempo da Padaria Espiritual,
dois livros de poemas, Versos (1894) e Marinhas (1897), de dicção quase romântica, ainda bem
longe da poesia descritiva que ensaiaria e que deixou esparsa nos jamais fortalezenses do início
do século.
JOSÉ CARLOS da Costa Ribeiro JUNIOR (1860 1896) Foi o segundo Padeiro-Mor, durando
sua ges·ão até o ano de sua morte. Já era nome feito ao tempo do Libertador, onde colaborou
largamente, em prosa e verso; pertenceu ao Clube Literário. Poliglota, foi professor de línguas
no Liceu, e versejava em vários idiomas. Para se ter uma ideia de sua posição nas nossas letras,
basta lembrar que foi José Carlos Júnior o prefaciador do livro de estreia de Antônio Sales, em
1890. Era paraibano, como Sabino Batista, e teve ainda destaque na magistratura no interior
cearense. Do muito que escreveu, deixou publicado unicamente O Sino, tradução do poema de
Schiler (1882), com prefácio de Clóvis Beviláqua .
RODOLFO Marcos TEÓFILO (1853 1932) Varão Benemérito da Pátria, título que recebeu do
Congresso Nacional, pelo seu trabalho de sanitarista, Rodolfo Teófilo é, acima de tudo, o ''fiel e
poderoso intérprete da alma cearense'', como lhe chamou Antônio Sales, na dedicatória de seu
romance. Como tal, já o vimos entre os ficcionistas de nosso Realismo. Foi ele o terceiro e
último Padeiro-Mor, durando sua gestão do ano da morte de José Carlos Jr. (1896) até à
extinção da "Padaria", em 1898 .
VALDEMIRO CAVALCANTE (1869- 1914) Tendo fundado um jornal aos 11 anos de idade,
seria jornalista a vida inteira: foi Promotor no Icó e Secretário de Polícia em Fortaleza, mas
nunca abandonou a vida da imprensa, fundando o Jornal do Ceará, com que fez corajosa
oposição ao Governo Acióli. Deixou em livro Males e Remédios Pró-Ceará (1899) e Discurso
(1899), para não citarmos o prefácio dos Dolentes. de Lívio Barreto, seu amigo de infância.
Valdemiro Cavalcante foi o segundo e último Primeiro-Forneiro, substituindo Antônio Sales,
quando este se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1897.
ANTÔNIO BEZERRA de Menezes (1841 1921) Tivemos oportunidade de vê-lo integrando,
com Antônio Martins e Justiniano de Serpa, o chamado trio dos Poetas da Abolição. Depois
daquela fase, dos Sonhos de Moço (1872) e das Três Liras (1883), passou a dedicar-se cada vez
mais aos estudos de nossa História, publicando ainda Maranguape, Notas de Viagem (1885),
Horas de Recreio (1886), Província do Ceará, No tas de Viagem (1889), O Ceará e os Cearenses
(1906) e Algumas Origens do Ceará (1918). Também pertenceu ao Clube Literário e a outras
agremiações, deixando a "Padaria" em 1896, quando se transferiu para a Amazônia, onde
chegou a Diretor do Museu Amazonense e redator do jornal A Pátria. "Antônio Bezerra não era
um cearense, era o cearense, o paradigma étnico de nossa raça, o próprio Ceará personificado."
disse dele Antônio Sales. Foi um dos fundadores da Academia Cearense.
JOSÉ CARVALHO (1872 1933) Responsável pela coleta de trovas populares estampadas n' O
Pão, foi outro que se dedicou aos estudos de História, bem como de folclore . Cultivou também
o conto e, mais raramente, a poesia. Deixou Perfis Sertanejos (1897), Pero Coelho (1903), A
Primeira Insurreição Acreana (1904), O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará (1930). Compôs
ainda um drama, Dona Bárbara 1817 (1917).
X. DE CASTRO (1858 1895) Já o vimos como autor dos cromos, na poesia realista. Como
assinalou Leonardo Mota, nunca subscreveu seus versos com o pseudônimo, Bento Pesqueiro.
Seria o primeiro "padeiro" a falecer, 3 anos depois de fundado o grêmio.
ARTUR TEÓFILO (1871 1899) Jornalista por vocação, montou em 1930, em Viçosa, um jornal
do qual era ao mesmo tempo redator, tipógrafo e impressor: A Ideia. É hoje clássico seu artigo
por ocasião da morte de Lívio Barreto, no Pão de 15 de outubro de 1895. Estampou vários
contos nesse jornal da "Padaria", e consta que deixou inacabado um romance, que se intitularia
O Cigano. Colaborou ainda noutros periódicos, redigindo, por conta própria, O Repórter.
José CABRAL DE AI,ENCAR (1877 1915) Como Tibúrcio de Freitas, escrevia prosa
simbolista; no Rio de Janeiro, conviveu com os poetas do grupo Rosa-Cruz, em cuja revista
colaborou. Ainda em Fortaleza, publicou artigos e contos na imprensa, deixando em livro
unicamente Aspectos da Guerra Europeia (1915) .
EDUARDO Tomé de SABOIA (1876 1918) Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1894, a fim
de cursar a Escola Politécnica, mas abandonou-a para se dedicar ao jornalismo: foi redator d' A
Semana, a famosa revista de Valentim Magalhães. Bacharelando-se em Direito na Bahia, voltou
a Fortaleza, onde foi lente da Faculdade de Direito. Foi Secretário da Fazenda no Governo
Acióli. Publicou Contos do Ceará (1894), e também compunha poemas. Foi eliminado da
"Padaria" juntamente com Adolfo Caminha.
Quanto ao jornal, O Pão, nem sempre teve a felicidade de uma vida regular: no
Retrospecto dos feitos da Padaria Espiritual, assinado por Moacir Jurema (Antônio Sales) e
publicado em 1894, época da reorganização da entidade, temos este depoimento:
''Numa bela manhã de julho do ano da graça de 1892, o Fomo surgia aos olhos da população do
Forte embandeirado, florido, pimpão e ruidoso como um viveiro de periquitos. Foguetes
esfuracavam o azul, e uma banda de música trauteava polcas alegres.
"Os passantes paravam a nossa porta, e tudo quanto era janela da Rua Formosa apinhava-se de
pessoas de todos os sexos e idades .
''Devemos confessar aqui:- essa folha era menos o veículo literário da Padaria do que uma
válvula para a pilhéria petulante que se fazia lá dentro.
"Ainda conseguiu-se publicar seis números d' O Pão, que veio afinal a morrer de caquexia
pecuniária."
Vemos, pela palavra autorizada do Padeiro-Mar Interino. não somente que o jornal teve
de sair de circulação, por falta de dinheiro, como era bem o reflexo, nesses primeiros números,
da fase brincalhona a que já nos referimos. Predominam então os nomes de guerra e uma das
secções mais lidas era o "Saco de Ostras", espécie de paródia ao "Cofre de Pérolas" de outro
periódico da época. Posteriormente, voltaria a ser editado. O Pão,. em 1895 conseguindo
manter-se até outubro de 1896, quando definiti vamente deixou de circular.
Nos 30 números que saíram nessa segunda e última fase, ainda encontramos certa graça,
mas esta nem de longe se compara com o chiste da primeira fase, dos tempos de Venceslau
Tupiniquim. Entretanto, a Padaria Espiritual jamais chegou a igualar-se a qualquer grêmio
comum. Adolfo Caminha chegou a dizer, quando já no Rio de Janeiro, em 1895: ''A Padaria
Espiritual, cujo nome hors ligne tão depressa viajou merecendo aplausos de toda a imprensa
Norte-Sul, fazendo-se querida até por poetas e escritores consagrados, a Padaria Espiritual vai
decaindo, rolando para o nível comum. É hoje uma sociedade literária grave, 'ajuizada', com
uma ponta de oficialismo, sem os ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas
audácias que faziam dela um exemplo a imitar, alguma coisa superior a um rebanho de
ovelhas ... "
Não é tanto assim. Com toda a seriedade que assumiu sob as direções sucessivas de José
Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo, a Padaria Espiritual ainda manteve muito de sua originalidade,
compensando, por outro lado, algo do que perdeu em espirituosidade, pelo trabalho fecundo
representado tanto pelos 36 números .d' O Pão como pela bibliografia que nos legaram os
"padeiros".
Phantos Lopes Filho (1893), Versos Antônio de Castro (1894), Flocos Sabino Batista
(1894), Contos do Ceará. - Eduardo Sabóia ( 1894) , Cromos X. de Castro ( 1895) , Trovas do
Norte Antônio Sales (1895), Dolentes Lívio Barreto (1897), Marinhas Antônio de Castro 1897).
Maria Rita Rodolfo Teófilo (1897), Perfis Sertanejos José Carvalho ( 1897) .
3. O GRUPO CLÃ
Surgindo na década de 40, o Grupo Clã veio trazer, como contribuição mais importante
às nossas letras, a definitiva implantação do Modernismo no Ceará, precisa e felizmente numa
época em que essa corrente já não necessitava dos arreganhas iconoclastas nem das piadas
demolidoras dos primeiros momentos. Diga-se assim, de passagem, que o Modernismo, em
nosso Estado, já surgiu algo amadurecido, mesmo em suas mais remotas manifestações .
Até que rebentou a Segunda Guerra mundial colhendo numa malha de espantos a
ingenuidade dos que esperavam não mais repetir-se a tragédia de 1914. Segundo o depoimento
de Braga Montenegro, "tudo parecia afogado num hiato de pensamento e poesia", quando
surgiu, de uma conversa de café, "a ideia de um congresso, o mais original dos congressos. "
Tratava-se do I Congresso de Poesia do Ceará, organizado em 1942 por Mário de Andrade (do
Norte), Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros, Otacilio Colares, Braga Montenegro,
Eduardo Campos e outros, e ao qual aderiu um escritor já maduro, de outra geração, Joaquim
Alves.
O certo é que em 1943 iniciaram-se as Edições Clã, de onde haveriam de sair inúmeros
livros, a começar pelos Três Discursos, de Eduardo Campos, Mário Sobreira de Andrade e
Antônio Girão Barroso; o livro de contos Águas Mortas, de Eduardo Campos, e Escola Rural,
de Mário Sobreira de Andrade (o já mencionado Mário de Andrade do Norte), todos daquele
ano.
A nosso ver, o Grupo vai adquirir maior coesão por volta de 1946. Além de nesse ano
serem editados nada menos de quatro importantes livros de seus componentes (Noite Feliz, Fran
Martins, Face Iluminada, Eduardo Campos, Roteiro de Eça de Queirós, Stênio Lopes, Os
Hóspedes, Aluízio Medeiros, Antônio Girão Barroso, Artur Eduardo Benevides e Otacílio
Colares), ocorre o lançamento, em dezembro, do número zero da revista Clã, sob a direção de
Antônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros e João Clímaco Bezerra. Esse número 0 de Clã, hoje
raridade bibliográfica, foi lançado a título experimental. O número 1, sob a direção de Fran
Martins, sairia somente dois anos depois, em 1948.
Convém acrescentar que o Clube de Literatura e Arte, que , nesse numero O da revista é
mencionado não como Clã mas como C. L. A., organizara sua primeira sessão pública em
fevereiro de 19·46. O Clube de LIteratura e Arte, fundado por Antônio Girão Barroso, não é
porém, a rigor, o que viria a ser conhecido como o Grupo Clã, embora seus componentes dele
fizessem parte . Na "Explicação deste Número", que abre a revista CLA nº O, depois de se
explicar que aquele número se antecipava à publicação do órgão, tendo portanto "o caráter de
mostra", é transcrito trecho do artigo de abertura da revista, naturalmente escrito para o número
1:
CLA não é, apenas, uma revista de literatura. É, antes, uma revista de todo o
Ceará mental. Aqui, na medida do possível, recolheremos o trabalho dos nossos
homens de letras e de pensamento, pois a pretensão que nos anima é sermos
porta de saída da melhor produção intelectual da gente cearense, de tal modo
que ela possa aparecer lá fora, nítida 11a sua pureza, numa demonstração
convincente de que a gloriosa Província de Alencar continua a viver, a se agitar,
na procura sempre insatisfeita de rumos novos para a cultura brasileira.
Ainda nesse ano de 1946 tem lugar igualmente o Primeiro Congresso Cearense de
Escritores, no qual o Grupo tem participação das mais ativas, através da palavra dos escritores
Fran Martins, Braga Montenegro, Antônio Girão Barroso, Eduardo Campos, Aluízio Medeiros,
Artur Eduardo Benevides, Antônio Martins Filho, João Clímaco Bezerra, Stênio Lopes e
Joaquim Alves. Entretanto, na notícia que sobre o evento dá a revista CLA aludida (número
experimental) não se fala em Grupo Clã ou Grupo de Clã. Talvez pelo fato de ainda não existir
o periódico. Mas cumpre declinar os nomes dos componentes do Grupo Clã.
Fica assim completa a lista de todos os participantes, desde o início das atividades do
Grupo até hoje. E tanto é verdade que, segundo afirmamos, a característica de grupo só foi
surgir definitivamente por volta de 1946, firmando-se com a publicação da revista, que em anos
anteriores as alusões aos componentes da agremiação são mais ou menos vagas.
Joaquim Alves, num artigo provavelmente de 1944 pois trata de livro saído nesse ano ,
fala de um novo grupo ao qual "pertencem Fran Martins, Aluízio Medeiros, Otacílio Colares,
Girão Barroso, Albano Amora e, os mais recentes, Eduardo Campos· e Artur Eduardo
Benevides". Não fala da designação do grupo e inclui entre seus membros o nome do hoje
eminente historiador Manoel Albano Amora, talvez traído pelo fato de ele haver estreado com
um livro de poemas no mesmo· ano, na mesma editora e com o mesmo formato do livro
também de estreia de Antônio Girão Barroso .
Podemos dizer, talvez com algum exagero, que o grupo existia, mas tão
espontaneamente que seus próprios componentes não haviam ainda tomado· conhecimento
disso. Pelo menos é o que depreendemos da leitura do livro Falam os Intelectuais do Ceará, no
qual Abdias Lima entrevistou, de março de 1944 a fevereiro de 1945, vários escritores
cearenses, entre os quais quatro de Clã, e onde não se encontra a menor referência ao grupo,
muito menos à sigla.
JOAQUIM ALVES
FRAN MARTINS
Nasceu em Iguatu, no dia 13 de junho de 1913. Desde muito cedo revelou vocação para o
jornalismo e a literatura: colaborou em inúmeros jornais do Ceará e de outros Estados, tomando-
se mais tarde uma das figuras principais do grupo e da revista Clã, cujo n.o 1 já surgiu sob sua
direção. Professor da Faculdade de Direito do Ceará, consagrou-se como autor de obras
jurídicas,· conhecidas nacionalmente, dentre as quais se destaca o Curso de Direito Comercial
(1957) . Sua obra literária se realiza no campo da ficção; contos: Manipueira (1934), Noite Feliz
(1946), Mar Oceano (1948) e O Amigo de Infância (1960); romances: Ponta de Rua (1937),
Poço dos· Paus (1938), Mundo Perdido (1940), Estrela do Pastor (1942), O Cruzeiro Tem Cinco
Estrelas (1950) e A Rua e o Mundo (1962); novela: Dois de Ouros (1966). Desta última,
considerada sua obra-prima, destacamos um trecho.
DOIS DE OUROS
O enredo se passa no interior cearense, ao tempo do cangaceirismo: Juvêncio, sabendo que sua
namorada· Arminda se amasiara com Celestino, mata o rival e entra no bando de Bom-Deveras,
adotando a partir de então o nome de Dois de Ouros. Após vários crimes (e mesmo depois de
extinto o bando), assassina um soldado no Crato e o cabo Firmino (com quem se inimizara, mas
a quem havia salvo quando menino) persegue-o nas matas, ferindo-o a bala; mas recua, talvez
para deixá-lo escapar. O sargento Anacleto, que soubera, por Arminda, de um pacto entre os
dois, desconfia do cabo e comanda novo ataque ao cangaceiro. Não o encontram, mas as
atrocidades praticadas por Firmino no intuito de desmascarar os supostos "coiteiros"
(sabidamente inocentes) fazem-no crer na honestidade do cabo. Por fim, desmoralizado por não
haver capturado o bandido, o sargento Anacleto bebe demasiadamente e assassina Arminda, em
pleno cabaré. O corpo de Dois de Ouros jaz na mata, longe do local onde o haviam procurado,
levados pelo cabo Firmino ...
E encetou a fuga pela mata . Não podendo ficar de pé, pois nessa posição o ferimento
sangrava muito, andava curvado, uma mão no peito, a sustentar o tampão com que procurava
vedar a ferida. Mas não podia estugar o passo pois, com a perda do sangue, já estava sem forças.
Assim marchava curvado, lento, ofegante, mas de qualquer modo disposto a alcançar um abrigo
onde pudesse repousar com segurança.
Não sentia os espinhos nos pés nem as unhas-de-gato rasgando-lhe as carnes. Tinha o
corpo habituado a esses sofrimentos: três anos no meio das brenhas fizeram dele uma espécie de
bicho. Um bicho que não dava atenção às picadas dos insetos, aos arranhões pelos braços, aos
espinhos nos pés . Um bicho que agora só tinha um destino encontrar um abrigo onde não
pudesse ser localizado pela polícia.
Só agora tinha esse destino? Não, desde que entrara no cangaço sua vida consistia em
esconder-se da polícia. O grupo de Bom-Deveras atacava os viajantes nas estradas, visitava os
sítios, incendiava fazendas mais acima de tudo se es-· condia da polícia. Quando lhe avisavam
que uma volante andava à sua dava à sua procura o bando atravessava a serra do Araripe,
entrava em Pernambuco, escondia-se nas proximidades de Bodocó ou de Novo Exu. Nunca se
dispusera a fazer frente à policia não por medo mas porque sabia que disso não resultariam
vantagens para os homens, cujo objetivo era bem outro que o de lutar com os soldados.
O grupo era pequeno mas por isso mesmo de grande mobilidade. Composto apenas de
sete homens, mais tarde fora reduzido a seis, com a morte de Catingueira. Catingueira era ·um
mulato piauiense que não gostava de amizade com ninguém. Fiel a Bom-Deveras, tomara-se
uma espécie de guarda-costas do Chefe, andando sempre a seu lado, defendendo-o como um
cão de fila.
Mas essa aproximação era apenas com o Chefe, não com ·OS outros. Dizia-se, no
bando, que a aquilo vinha de muitos anos atrás. Um dia, numa briga na feira de Pio Nono, Bom
Deveras salvara a vida de Catingueira. Seis homens, armados de faca, lutavam com o cabra e
sem dúvida o liquidariam se Bom-Deveras, que ia passando na cidade desapercebido, não
tivesse dado uns tiros nos atacantes. Dois ficaram estirados, feridos; os outros debandaram
imediatamente. Catingueira acercou-se de Bom-Deveras, para agradecer-lhe. E, reconhecendo-
o, se ofereceu para acompanhar o Chefe, no cangaço.
Desse momento em diante os dois se tornaram amigos, se bem que, com os demais,
Catingueira não quisesse intimidades. E quando foi num fogo em Jardim, Catingueira pagou
.sua dívida para com o Chefe. Na luta Bom-Deveras fora ferido na perna e com certeza seria
morto se o amigo não o arrastasse até onde estavam os cavalos. Aí o cabra ajudou o Chefe .a
montar enquanto os tiros choviam sobre eles. Quando to cavalo disparou com Bom-Deveras,
oito balas vararam o corpo de Catingueira. Morreu com o dedo no gatilho a morte mais digna
para um cangaceiro .
(Fran Martins. Dois de Ouros·. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1966, pp. 40-3; 72-3.)
Nasceu em Araripe., no dia 6 de junho de 1914. Transferiu-se em 1929 para Fortaleza, onde se
diplomou como Perito Contador e, depois, em Direito. Fundou vários periódicos, inclusive o
joinal José, que obteve alguma repercussão (1947). Professor de História Econômica Geral e do
Brasil na Faculdade de Ciências Econômicas e de Economia Política na Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará. Residiu em Brasília, onde trabalhou no Conselho Federal de
Educação e na TV Rádio Nacional de Brasília. Jornalista. Membro da Acadenua Cearense de
Letras. Publicou: Alguns Poemas (1938), Os Hóspedes (1946), de parceria com Aluízio
Medeiros, Artur Eduardo Benevides e Otacílio Colares, Novos Poemas (1950) e 30 Poemas
Para Ajudar (1968), de parceria com Cláudio Martins e Otacilio Colares.
VIDA
tragédias enfim
e mortes no meio
morrendo afogado
me acudam me acudam.
a vida todinha
eu passo dizendo
me acudam me acudam.
POEMA DADA
Vida liquefeita
Um pirilampo salta!
O POETA
E já pesam os meus bolsos como fardos eles, que eram vazios e felizes,
POEMA
e não sentir, como outrora, o perpassar do fino ar tão saudável destas montanhas!
***
BOCA LOUCA
FALA FALHA
(Antônio Girão Barroso. Alguns Poemas. Fortaleza, Edésio Editor, 1938, pp. 9; 22; "Novos
Poemas de Antônio Girão Barroso" Clã n.0 10, julho, 1950, p. 45; Antologia de Poetas
Cearenses Contemporâneos, Fortaleza, 1965, pp. 40 45.)
Podemos concluir, pelos poemas apresentados, que o poeta não se fixou numa
determinada dicção, ao longo de sua trajetória literária: o primeiro, "Vida", de fins da década de
trinta, trai evidente influência da chamada "fase heróica" do Modernismo, a de 22, quando
predominavam os poemas-piada; no fundo, reflete uma grande tristeza, mas a forma como que
caricatura essa tristeza, por meio principalmente de termos bem populares, v. g. "pau", no
sentido de maçante, tediosa, referindo-se à vida, ou versos como acho isso tão besta . "Poema
Dadá", também do livro de estreia, segue ortodoxamente a estética de 22, lembrando certos
micropoemas de Oswald de Andrade; o toque descritivo é típico da mencionada fase. Em "O
Poeta", Antônio Girão Barroso abandona os metros curtos e pratica o puro verso livre, refletindo
certa angústia em face de sua própria condição de poeta: ao invés de sentir-se realizado, lamenta
o fato de os papéis não terem podido ficar em branco; note-se que os dois versos iniciais
repetem-se, como um refrão, no final do poema. Simplesmente "Poema" intitula-se o seguinte,
onde, mais do que no anterior temos um lírico a derramar-se em versos que, formalmente
modernistas, revelam uma cosmovisão mais ou menos romântica: o poeta não consegue conter a
onda lírica que a natureza faz brotar de sua mente, se ê que não sucede o inverso, a sua tristeza a
encher de nuvens a paisagem. E, para demonstrar que o poeta não pretende cristalizar-se, temos
uma amostra de seu Concretismo num minipoema composto de quatro vocábulos. Repetimos, a
esta altura, que o poeta não se fixou numa só dicção. Mas não é demais lembrar que em versos
recentes (que constituem sua participação nos 30 Poemas Para Ajudar, e que não apresentamos
aqui por ser todo um longo poema fragmentado) novamente apela o autor para a poética de 22,
como em versos deste teor: Versos com um vaga-lume / vagamundo / vaga-lume / tem dois
olhinhos faiscantes / é ver uma menininha de olhos claros / pretinha como a noite. Ou estes
outros, de um retardado sabor polêmico: No tempo de eu I no tempo de tu I no tempo de ele / no
tempo de nós no tempo de voz I no tempo de eles 1 seu mano, a poesia era um fato I TINHA
BILAC! ]
ALUÍZIO MEDEIROS
CANTO DO SÉCULO
( ó melancolia da juventude!)
o noivo na varanda
deserta a praça
o fim do mundo
cinema
VIAGENS
A cavalo de galope
me perco no .latifúndio
devorante do sofrer
me embrenho e escalante
a cavalo de galope
nostalgia nostalgia
em ruínas a cavalo
de galope devorante
latifúndio de sofrer
os crimes os sofrimentos
a cavalo de galope
latifúndio devorante
de crimes e opressões
a cavalo de galope
(Aluízlo Medeiros. Setenta e Três Poemas. Rio de Janeiro, Livraria S. José, 1963, p. 7; Carlos
Burlamaqui Kopke. Antologia da Poesia Brasileira Moderna. S. Paulo, Clube de Poesia, 1953,
p. 221; Aluízio Medeiros. Op. cit., pp. 76-7: Antologia de Poetas Cearerises Contemporâneos.
Fortaleza, IUC, 1965, pp. 21-2.)
EDUARDO CAMPOS
CÉU LIMPO
Oh! mil vezes morrer a se ausentar de sua terra, daquele pedaço de capoeira, regalo dos
seus olhos! Como ia deixar o terreiro de barro socado, ciscado pelos pintos, a sua casinha de
taipa levantada à custa de tanto sacrifício? Como era mesmo? Arrumava tudo numa trouxa,
velhas e fuxicadas roupas, o chapéu da missa dos domingos, os sapatos de couro de bezerro,
meio comidos no arrastado dos sambas, não esquecer nada, botar tudo, arrochar, arrochar, até
não mais poder. Não, não podia ser. A saudade que lhe ia no coração não cabia dentro de uma
trouxa de panos velhos. Não ia escondê-Ia ali, e, num gesto derradeiro, passar a corda.
apertando o matulão. E então partir para muito longe, esquecido daquele chão todo seu, da
casinha de taipa, dos dias felizes que vivera na Pavuna ... Era lá besta! Não ia fazer isso. Não
era destituído de coração; o dele era largo, vivedor, bom.
Tolice! Mil vezes morrer, mil vezes sumir-se mesmo na terra ingrata, a deixar para trás
a capoeira, o roçado, o seu lar de homem pobre. Mil vezes morrer. . . murmura baixo.
Puxou a fumaça do cachimbo sertanejo. Deu mais passadas pelo interior da casa. Viu
Francisca sentada em cima da mala de couro; a folhinha que marcava os dias, brinde do
boticário de Pacatuba, e como se atrasara o calendário! Pregara-se no último Natal, dia esperado
por ele e a família e que transcorrera cheio de festas, dança na casa do compadre Luís, aluá, pé-
de-moleque, cachaça para os mais velhos, servida recatadamente no oitão ... Parece até que
agora a mulher e ele perderam as mãos e estão inanidos. Aquele vinte e cinco tinha sido dia tão
grande para eles, que lá ficara ante o olhar da efígie da santa como lembrança perpetuada.
A mulher deixou escoar por entre os lábios um riso estalado. Riso que dizia muitas
coisas, uma, por exemplo, que preferia também morrer, acabar-se de fome, a deixar a sua
.casinha de taipa coberta de palhas de carnaúba. Estirou os passos para o interior da casa.
Feitiço, o cão que dormitava na cozinha, levantou as orelhas sobre o corpo descarnado como se
aguardasse nova ordem:
Mas qual! Leôncio não sabia o que dizer. Sumira-lhe a voz. A língua embrulhada,
aquela coisa estranha embolando dentro dele. Num desafogo, para não chorar ou blasfemar,
curvou-se rápido sobre o cão e lhe fez uma carícia .
***
A nuvem que parecia trazer chuva àquele sítio desfez-se em ventos, em rajadas que
levaram as últimas esperanças do dono da casa, para muito longe, e agitaram as palhas de
carnaúba em tremeliques nervosos como se por cima delas andassem os demônios soltos,
zangados com Leôncio, com o cão Feitiço e Francisca.
Francisca, em cima da mala, não se mexeu. Não adiantava desfazer a trouxa para
recompô-la a seguir. Dormia ali se preciso fosse. Pobre arranja-se de qualquer jeito, inda mais
quando é de coração forte.
[...]
Afinal, soa o momento em que nada mais há que buscar no interior da casa. É sair
quanto antes, enquanto os olhos não ficam cheios de lágrimas, enquanto a saudade não vem com
a força da enchente de um rio.
Leôncio apanha a trouxa. Feitiço olha para a sala da casa, e não late uiva.
-Tá ...
Está mesmo. Agora, imitando os donos, num último olhar, principiou a andar
indiferente a tudo. E os três, um atrás do outro, tomam o caminho pedregoso que atravessa a
capoeira assassinada. Vão perder a casinha, o pedacinho de terra, a existência feliz que viveram
juntos. Não irão mais aos pés de samba, não rezarão mais na igrejinha de Pacatuba, não ouvirão
também, nunca mais, os violões passando pela estrada, gemendo dores e saudades ...
- Lonço!
- Que é?
- Tá sentindo?
- Sim, tá pingando. Caiu um pingo no meu rosto. Olha , pro céu, repara.
O homem deu mais dois passos. Não pôde mais andar. Ficou parado, vigiando os olhos
vacilantes da· mulher, o ar saudoso do cão, o chão cheio de seixos, a capoeira comburida que
pisava. Agora, estão se consultando os três, se Indagando.
"Como é, a gente vai ou não vai? Convém ficar? Vale a pena aguentar mais uns dias?"
Podia ser que ainda chovesse, que o inverno, mesmo atrasado, chegasse a tempo de salvar a
terra e reflorar tudo – amolecia o homem.
Acocoraram-se, apalpando a areia com carinho, a terra que, regando-a a chuva, poderá
florescer em breve e apontar outra vez o caminho da fartura .
ELEGIA CEARENSE
Longo é o estio.
dos tangerinos.
Ai Ceará
2.
fogem as nuvens.
jovens e felizes.
Para cantar-te, Bem-Amada telúrica,
dos homens.
4.
e as bocas
— tranqüilas e felizes —
gritam
palavras de amor
que erguem
primaveras.
A MORTE
partidas. E cresce
e em solidão.
De repente chega.
E já estava
e em nós. Somos
o barco
E via
imobilidade.
para o esquecimento .
da morte definitiva?
em nossa espera?
e cobre
o púcaro da vida.
SÚBITA ELEGIA
gaivotas impossíveis.)
O MORTO NA PRAIA
IV
Lírico por excelência, bem pode Artur Eduardo Benevides ser chamado de poeta
.elegíaco; infenso aos apelos da poesia experimental, prefere ficar no terreno em que adquiriu
renome de mestre, da estirpe de um Augusto Frederico Schm\dt. Podemos apontar duas
constantes em sua poesia: a morte e o mar (não raro grafado este com maiúscula). E de tal
maneira essas duas presenças povoam toda a sua obra, que não nos preocupamos em reproduzir
os poemas na ordem cronológica. A "indesejada das gentes" surge logo como tema único e
como título do segundo poema: a morte, que leva a todos, sem distinção, sejam homens,
animais, coisas ou mesmo abstrações; quando diz: Somos / a canção que ela canta / o barco /em
que desce sozinha pelo rio – talvez haja velada alusão ao Aqueronte da Mitologia grega, o qual
ia desembocar no reino dos mortos; ao lembrar a presença da morte no rosto de sua mãe, vemos
desencadear-se o máximo da carga lírica cJo poema (E eu tinha cousas para dizer. E não podia)
Em ''Súbita Elegia", temos o poeta a lamentar o não ter sido marinheiro, causa talvez de tanto
aludir ao Oceano em toda a sua ·obra: em O Tempo, o Caçador, e as Cousas Longamente
Procuradas ( 1965) , diz ele, numa página de prosa poemática: O Mar nos chama. Não apenas o
Mar líquido, o Mar das águas escuras, búfalo imenso, ondas revoltas, navios apitando, ôôôô!
Mas o Mar interior, a fuga que eternamente nos resguarda o imprevisto Mar, sem vento e sem
esquadras.) Por sua vez "O Morto na Praia'' traz-nos simultaneamente as duas constantes
referidas: a morte, com seu mistério inevitável tem como pano de fundo a paisagem marinha:
note-se o enriquecimento da densidade emocional com a revelação da ignorância ou indiferença
dos circunstantes; e como se não bastasse a presença avassaladora do mar, através das ondas dos
ventos dos uivos das águas, ainda é uma imagem náutica o que ocorre ao poeta, ao ver o morto
"como um barco fendido"; a predominância de decassílabos confere atmosfera clássica ao
poema, um dos mais bem realizados de toda a sua obra, a nosso ver. Afinal, para não ficarmos
só nos poemas livres, um soneto: destituído quase de rimas (apenas duas consoantes nos
quartetos e uma toante nos tercetos), e tendo como tema a morte de uma amiga, é o fecho de
uma elegia composta de quatro sonetos. Foi Edigar de Alencar quem observou a respeito do
poeta: "Mesmo quando parece hermético, é límpido nas suas intenções e concepções." 7& Com
efeito se podemos vislumbrar em sua arte algumas notas daquele mistério que o Modernismo
herdou do Simbolismo (e que, afinal está na poesia de todos os tempos), o certo é que raramente
podemos qualificar de herméticos os seus versos. Isso nos faz lembrar Manuel Bandeira, que
chegou a confessar: " . . . jamais fiz um poema ou verso ininteligível para me fingir de profundo
sob a especiosa capa de hermetismo". Benevides é sem sombra de dúvida uma das mais altas
vozes da poesia cearense contemporânea.
MOREIRA CAMPOS
AS CORUJAS
Ele conversa muito consigo mesmo, repete-se, os olhos no chao e metido no dólmã de
brim listrado, os pés redondos nas alpercatas. Resmunga, insistente. Fecha as janelas do velho
necrotério. Apanha os pedaços de lona e, com eles, cobre os mortos sobre as lousas. Deixa-
lhes .apenas os pés de fora. A mulher sem chinelas, com o sangue coagulado entre os dedos
abertos; as grandes botas gastas e de cadarços do alemão andarilho, que amanheceu morto no
oitão do armazém da praia, onde se alojara: o enorme saco e o livro de impressões, folheado por
muitos dedos, foram recolhidos à ·delegacia. É preciso cobrir os mortos, proteger-lhes as
cabeças. As corujas descem pela claraboia. Têm voo brando, impressentido, num cair de asas
leves, como num sopro de morte. De repente, dá-se conta de sua presença, das asas de pluma
sem ruído. Alteiam-se e pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados,
que fulgem na noite, divididos ao meio.
- Xô, praga.
Os pedaços de lona ficam dobrados a um canto da sala escura, e ele os puxa sempre,
curtos, deixando à mostra os pés inertes. Indispensável fazê-lo; depois fechar a luz triste da
lâmpada, que desce pelo fio longo com teias de aranha. O facho da lâmpada de pilhas ainda
percorre o teta de travejamento antigo. Crescem e oscilam as sombras: as botas de cadarço do
alemão contra a parede umas botas de muitas viagens. As corujas rasgam mortalha a noite toda
na copa das altas árvores do terreno. O facho de luz tenta a densidade das folhas, corre cinzentos
telhados, passa pela torre da capela, detém-se, ao longe, na janela de vidro do nosocômio. Em
qualquer parte, na noite, estarão as corujas. Elas rasgam mortalha, agourentas, cortam o silêncio,
sacudindo a vigília dos doentes. Recolhem-se, de dia, ao sótão da capela, onde pegam os ratos,
que guincham nas suas garras. Necessar1o subir ao sótão, desfazer-lhes os ninhos. Falará com
Irmã Jacinta, diretora do nosocômio, quando ela vier para a ala dos indigentes, ativa, tilintando
as chaves no bolso do hábito. Ela mandará que Antero, o jardineiro, trepe ao sótão. Ele é moço e
divertido. Torcerá o pescoço das corujas, com os cabelos cheios de teia de aranha, e as atirará ao
pátio do alto da torre, pilheriando com as enfermeiras. É preciso exterminar as malditas, que
rasgam mortalha na noite, enquanto o facho de luz as procura na sombra densa das árvores:
- Xô, praga.
- Leva o balde . . .
O velho o recolhe, e conversa consigo mesmo, o corpo atarracado mal contido no dólmã
de mescla. Quando o homem que chegou do interior e se hospedou no quarto d ·a pensão veio
fazer velório ao corpo descarnado do filho, ele deu a lâmpada de pilhas e o advertiu para as
corujas. Elas desciam pela claraboia, mesmo com a luz da lâmpada. Era preciso manter as velas
acesas nos castiçais. Só assim as desgraçadas não vinham: temiam queimar as asas nas chamas.
Ficavam rasgando mortalha no alto das velhas árvores ou na ·torre da capela. Sem a presença
das velas, elas surgem sempre, impressentidas, como num sopro de morte: alteiam-se leves,
pousam sobre o peito dos mortos e com o bico arranham-lhes os olhos, que fulgem parados e
indefesos na noite.
(Moreira Campos. Contos Escolhidos. Fortaleza, Imprensa Un1vers1tár1a da UFC, 1971, pp.
134-6.)
Ao reunir num só volume contos de seus 4 livros, quis Moreira Campos não só dar uma
idéia de sua evolução no "gênero, como definir o que entende por conto, modernamente; antes
esboço de romance, atingindo mais de uma dezena de páginas, é atualmente o conto, segundo o
escritor cearense, "um momento, um flash 11ma fatia de vida, uma impressão, uma mancha,
como querem alguns." Com efeito, autor de contos longos, como "Lama e Folhas", "Vigília", ou
"O Preso", chegou a tal ponto de contenção que n'O Puxador de Terço (1969) os mais extensos
não passam de 4 páginas, havendo-os de duas apenas. Não assinalamos isso em detrimento dos
contos citados (todos de valor indiscutível, incluídos em antologias nacionais e estrangeiras),
senão para constatar uma tomada de posição do autor, em busca da essencialidade. E desta é
exemplo perfeito o conto "As Corujas" do citado O Puxador de Terço . De início, observa-se
uma particularidade interessante: contrariando a etimologia, esse conto não pode, a rigor, ser
contado, pois é destituído de enredo, com princípio, meio e fim; trata-se, portanto, de um corte,
de um flagrante, em suma, daquilo que o autor disse ao definir o conto atual. A ausência de
enredo aproxima-o, a nosso ver, do poema; ainda mais pelo fato de só a alusão aos pássaros
noturnos bastar para conferir ao texto uma atmosfera encantatória, densa de mistério e poesia.
As aves, fatalmente ligadas à ideia de morte pela crendice de que seu canto rasga mortalhas,
surgem-nos aqui ainda mais lúgubres, em contacto real com os mortos. Não que nós as vejamos
descer sobre os defuntos, mas através dos pensamentos ou palavras do velho: por duas vezes, de
dentro das considerações em torno do ambiente e da aproximação das rapinas, sai a exclamação:
" Xô, praga!" É o velho espantando as corujas, mas não podemos precisar se estamos voltando
aos instantes em que as aves pousavam sobre os mortos ou se o velho, ao rememorá-las, solta as
palavras como as estivesse vendo de fato. Temos ideia de como são caçadas as aves agoureiras:
o facho de luz procurando-as pelas árvores,· ou o jardineiro torcendo-lhes os pescoços no sótão;
também tomamos conhecimento da morte do andarilho alemão, com suas "botas de muitas
viagens''; sabemos quem é Irmã Jacinta, bem como o Dr. Joca, ou o jardineiro Antero. Tudo isso
porém emerge do meio das manchas que constituem o conto. Inimigo do detalhismo, o contista
valoriza todavia o detalhe imprescindível: o dólmã de mescla, o travejamento antigo do teto, as
botas do andarilho, etc. Note-se ainda com que crueza neonaturalista aparecem os olhos dos
mortos, na noite, divididos ao meio, semicerrados. Mas, acima de tudo, ressalte-se a força do
refrão: por duas vezes, no fim do primeiro parágrafo e no final do conto, descreve-se a descida
branda e impressentida ,das corujas, que se alteiam e pousam sobre o peito dos mortos, a fim de
arranhar-lhes os olhos; há pequenas variações vocabulares mas a cena é a mesma, repetida para
efeito estilístico. Pelo sortilégio das palavras, pelas evocações que consegue despertar, atinge
Moreira Campos, com "As Corujas", a altitude de um poema denso de simbolismo. Escusado
lembrar que o autor tem lugar destacado no panorama literário nacional como verdadeiro mestre
do conto.
MÍLTON DIAS
TRÊS IRMÃS
Presume-se que Hermínia, a mãe, não tenha tido conduta irrepreensível na juventude,
mesmo na vigência do finado n1arido, que era um homem bem constituído para os trabalhos do
campo, feito também de corpo e alma para as alegrias da pinga, da dança e da conquista à
mulher alheia. Hermínia, já velhota, ainda punha no andar uma certa graça que não deixava
dúvida quanto à intenção de atrair a cobiça masculina. O certo é que agora, aposentada de todos
os amores, come o pão difícil cumprindo a sentença bíblica com o suor do seu rosto derramado
pelas cozinhas dos brancos.
Morava e mora no sertão e foi lá mesmo que se perdeu a primeira filha, por nome
Maria, e tão depressa se tornou esta dita menina conhecida como mulher de vida airada, bonita,
malcomportada, afrontando a sociedade local com os veStidos curtos, decotados, de cores
violentas e as farras acintosas, que passou a ser tratada por Maria Perdida, versão municipal da
concubina dos grandes do Império e da República, pois falavam claramente. das suas aventuras
e dos seus amores com o senhor prefeito.
E tanto sucesso alcançou, tanto subiu na carreira rápida, tanto "charme" pôs no olhar de
brasa, tanta sinceridade no seu propósito de luxar, de ganhar dinheiro e correr o 1nundo, tanto
sonhou com navio e cidade grande, que vindo para Fortaleza e botando banca, ou melhor,
botando cama no Mucuripe, lá mesmo conseguiu que um comissário se interessasse por ela e a
carregasse para terras do sul. Esta é o orgulho da mãe, que continua no sertão, na mesma cidade
que sempre viveu. Quando aparece, Hermínia faz por sua conta a promoção da menina, inventa
cartas, improvisa notícias, informa com segurança: Está no Rio, a Maria. É a que está melhor de
todas, mora num "departamento", ·casou com um gringo, tem automóvel e todo conforto.
Uma vez lhe perguntaram se Maria está gorda, ela respondeu com alegria d'alma: Nem
gorda, nem magra, está assim medieval ... Uma outra Maria, a que vinha encostada à primeira
na ordem de idade, foi a segunda pomba despertada. Não se pode dizer que era bonita como a
Perdida, ah, isto nunca mas era sacudida, tão alvoroçada, tão doida, dançareira, bebedeira de
cerveja, abrideira de barulho, tão inquieta, que ganhou o apelido de Maria Pinote. Tantas fez,
tanto trabalho deu ao padre, ao delegado, tanto escandalizou, que se cotizaram, pagaram-lhe a
passagem de caminhão e a mandaram exercer seu ânimo amorento aqui na capital. Salvou-se
assim muita paz doméstica.
Hermínia desculpava a filha, dizia que a pobrezinha tivera uma doença em pequena,
ficara com o juízo "destroçado". E completava: mas aquilo tem um coração de ouro. Apesar d·e
todo ouro no coração, sabia-se, por porta de travessa, que Hermínia apanhara da própria filha,
ao ensejo duma carraspana inesquecível.
Tão avoada, não havia quem dissesse que se apaixonaria um dia. Mas diz que o
impossível aconteceu a pobre se engraçou dum embarcadiço, caiu-lhe nas malhas. Quando foi
abandonada, sofreu, chorou, bebeu, perdeu o gosto de usar os óculos "rayban", de pintar o
cabelo de louro, de usar o colar de miçanga, o vestido vermelho brilhoso, e foi entristecendo,
alternando a embriaguez frequente com estados de desgraçada depressão. Um dia destes
queimou-se toda, virou fogueira, morreu ardendo, morreu apaixonada pelo embarcadiço infiel.
Quando veio, Hermínia trouxe outra filha, por nome Maria das Graças, que tratam por
Graciosa. Bem se vê que é de menor, mas tão enfeitada, o batom carregado na boca polpuda, o
esmalte feito sangue nas unhas compridas, as sobrancelhas arqueadas, o olhar vivo, o cabelo
curto. O vestido barato, as alpercatas ordinárias denunciam pobreza de verdade.
- Esta não volta pro sertão, esclareceu Hermínia. Vai se empregar por aqui os ganhos lá
andam poucos, em casa de branco só tem mesmo a vantagem da comida, mas pagam barato e
ainda são desaforentos que só vendo. Está é que nem a mais velha, quer ser gente ...
Foi assim, por morte de Maria Pinote, que apartou recentemente em Fortaleza, a terceira
Maria mulata como as irmãs, menina de muito futuro.
(Milton Dias. As Cunhãs. Fortaleza, Editora Comédia Cearense, 1966, pp. 63-7.)
Andou muito bem Mílton Dias ao subintitular alguns de seus livros de "estórias e
crônicas", entre eles As Cunhãs, do qual extraímos o conto acima reproduzido; e chamamo-lo
de conto para enquadrá-lo num gênero definido; guardando muito daquela leveza própria da
crônica, "Três Irmãs" aproxima-se com efeito muito mais do conto do que de qualquer outro
gênero literário; e apesar de lhe faltarem a síntese e a monocronia do conto atual, é
extremamente moderno pela linguagem. Aqui, desfilam, cada uma a seu turno, as três irmãs
filhas da velha Hermínia, cuja condição de ex-prostituta parece refletir-se o destino dessas
Mar1as: a primeira, arribando com um gringo, depois de uma temporada no submundo do
Mucuripe; a segunda, pondo fogo às vestes (num suicídio típico de mulheres em sua situação) e
deixando vago um quarto num cabaré; a terceira, ainda impoluta, mas segura candidata ao ofício
das outras, visto que para isso a trouxe do sertão a velha Hermínia. Toda essa fauna miserável
com a velhota ainda tentando atrair amores pelo andar faceiro, as ligações da primeira Maria
com o Prefeito,. Maria Pinote batendo na mãe e caindo no meretrício, a mesma Hermínia
parecendo lamentar mais a perda dos óculos rayba1n do que a morte da filha; a mais nova, já
ensaiando os primeiros passos na "vida alegre" toda essa humanidade in ·feliz daria páginas de
colorido trágico; Mílton Dias, porém, consegue, de maneira quase alegre, mal disfarçando a
piedade e mesmo a simpatia que lhe inspira essa sub-humanidade, pintar-nos quadros leves: à
maneira de Charles Chaplin que,. no cinema, alternava o melodrama com o humorismo, entre o
escritor com a nota de fino humor, mal começamos a esboçar alguma comoção; assim ocorre
quando Hermínia informa uma amiga da situação física de sua filha mais velha: " Nem gorda,
nem magra, está assim medieval ... " ou. ainda quando, ao referir-se à mais nova, sentencia,
como que orgulhosamente: "Esta é que nem a mais velha, quer ser gente ... " O exercício da
crônica nos jornais, onde são absolutamente necessários o tom coloquial, bem como a graça e
elegância da frase, fizeram de Mílton Dias um dos mais originais escritores cearenses da
atualidade, seja no campo mesmo da crônica, em que é mestre, seja na ficção, compondo o que
ele chama de "estória", e que está bem representada. pelas "três irmãs".