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Pedra, terra

e buquê
Esta é uma publicação do Sodalício da Academia Acreana de
Letras - AAL, Rio Branco - AC; Academia dos Poetas Acrea-
nos - APA, Rio Branco - AC e International Writers and Ar-
tists Association, IWA, Toledo, OH, EUA.
Antologia poética

Seleção e organização: Wladimir


Saldanha

1ª Edição

Bahia / 2021
Nenhum trabalho pode ser medido pelo tamanho da empresa que o executa,
mas pela coragem e confiança no que faz. É assim que, inspirados pela
máxima pessoana, “põe quanto és no mínimo que fazes”, trabalhamos
cotidianamente oferecendo ao leitor livros de qualidade e respeitando o
autor naquilo que ele tem de mais sagrado: os seus sonhos.

www.mondrongo.com.br

2021, Pedra, Terra e Buquê


Gênero: Poesia
Copyright © Renã Corrêa Pontes
Copyright © Mondrongo
Editoração eletrônica: Ulisses Góes
Prefácio: Wladimir Saldanha
Revisão: Wladimir Saldanha,
Renã Corrêa Pontes e Claudio Sousa Pereira
Arte da caricatura: Ulises Sanchez Multiarts
Arte da capa: Marco Lenísio
Editor: Gustavo Felicíssimo

E-mail do autor: correa.pontes@globo.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP


P814p Pontes, Renã Corrêa.
Pedra, terra e buquê / Renã Corrêa Pontes. – Itabuna, BA: Mondrongo,
2021.
126 p. ; 15 x 22 cm.

ISBN 978-65-86124-57-6

1. Literatura brasileira. 2. Poesias. I. Título.

CDU: 869.0(81)-1
CDD: 869.917

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editoramondrongo@gmail.com
Gratidão

A Deus, por me permitir publicar mais esta obra.

A Dona Socorrinha, a metade de tudo.

A Wladimir Saldanha, pelo singular prefácio deste livro


feito para circular nos diversos ambientes literários.

A Claudio Sousa Pereira,


pelo companheirismo.

A João de Souza Lima,


amigo das horas inglórias.

A Luísa Karlberg,
pela parceria sempre.

Ao ex-Governador Nabor Teles da Rocha Júnior,


nos bons tempos, pelas lições de renúncia em prol do Acre.

Ao Tribunal de Justiça do Estado do Acre,


pela valorização e estímulo.
Em Honra e Memória

Do meu querido pai Severino


Agostinho Pontes, pela vida.

Meu querido cunhado Hirofumi Hamaguchi,


pelas lições de amor a família e ao trabalho
que realizava com alegria.

Dr. Augusto Hidalgo de Lima,


modelo de médico benfeitor dos acreanos.

Meu Tio paterno e tutor, o Oficial PM/RJ


Manoel de Lima Pontes, que alcançou
a dita de viver 105 anos e o Priorado da Rosacruz
de Saint Germain, seção Niterói - Rio de Janeiro.
Sumário

PREFÁCIO
13 | Por Wladimir Saldanha

I – POEMAS DA PEDRA
23 | Pietá
24 | Rasputin
27 | Escorraçado
28 | Zanga-burrinho
30 | Austeríssimo titã
31 | Quebra-cabeça
32 | O tema de Nietzsche
33 | Damiens versus poder
34 | Eu vou embora
35 | Só porque
36 | Lendas antigas: a escolta
37 | Custe o que custar
38 | Inania verba, glosa de Bilac
39 | Grau 33
40 | Tua imagem
43 | Desertos e oásis
44 | Condenação do não ser
45 | Impotência
46 | Nas vinte e quatro horas
47 | Autobiografia
48 | Escorraçado 2
51 | Último poema
II – POEMAS DA TERRA
55 | Do êxtase ao êxodo
59 | Calíope
60 | Chuvas tórridas
61 | A árvore da praça
62 | Vida e morte de Chico Mendes
63 | O último Soldado da Borracha
64 | A garrafa de mel falsificada
66 | Morte e vida seringueira
69 | A culpa
71 | Saudade remoída
73 | Oásis e desertos
74 | Pesadumbre
75 | O medo
76 | Jurema
77 | A peste
78 | Isolados: ritual de passagem
81 | O xamã
83 | Centenária
85 | Árvore infor/madeira

III – POEMAS DO BUQUÊ


89 | Soneto para uma moça tímida
90 | Despedida
91 | O pássaro
92 | Se ainda me amas
93 | Quero-te
94 | Último tributo
95 | Medula
96 | Bilhete de passagem
97 | Soneto do amigo
98 | Eflúvio
99 | A meu pai morto
100 | A meu pai morto 2
101 | Despedida 2
102 | Tua imagem 2
103 | Último verso de amor

POSFÁCIO
105 | Por João Filho
109 | Por Luísa Karlberg
AUTOFAGIA

Começou amando a planta,


uma plantinha cruel.
Amou a planta do jeito
que a abelha prepara o mel,
que o tempo prepara a morte,
que o ventre prepara o filho,
que o boldo prepara o fel.

Alheou a quem o amava,


num abandono infiel.
Movido a temeridade,
botou a planta num céu
incerto que só vereda,
complicado que só fé.

Teceu um fio da seda,


que nem um bicho fiara,
pôs no gargalo uma amarra,
num namoro. Aquele abraço
que, descendo, aperta o laço

de pedra, terra e buquê.


POESIA EM ESTADO DE EXPANSÃO

Caricatura de Ulises Multiarts

Quando Auguste Rodin começou a deixar sobras de


bronze nas suas esculturas, os repuxados no corpo causaram
espanto. Era a beleza do inacabamento chegando a nossos
olhos e nos dizendo que a perfeição não é para este mundo.
Somos inacabados, temos arestas, sobras, faltas. E então Ro-
din começou a torcer esses seres quase reais de tão assimétri-
cos e nos deu as famosas “posições impossíveis”, como a d’O
Pensador, apoiado pelo cotovelo de um lado na perna oposta
do outro. Muitos não notam, mas está lá. Como estão nossas
impossibilidades, tornadas possíveis na experiência real.
Evoco Rodin para refletir sobre a poesia de Renã
Corrêa Pontes porque, convidado a antologiá-la, deparei-
-me com aquele estado em que percebemos uma mutação
na linguagem, a caminho de definir-se em sentido novo no
arranjo formal com o temático. Optei, assim, por combinar
o critério estético com o histórico, em função de supostos
núcleos informativos; portanto, esta é uma antologia nem
sempre do que julgo o melhor do autor, mas de suas mo-
dulações de linguagem desde a estreia até o presente —
onde está, sem dúvida, o seu melhor no sentido estético,
apontando para outro ainda, por desenvolver.
Desse modo, não quis esconder vezos do po-
eta, ou restos de moldes que deixou à mostra, falsean-
do sua constituição atual. Também não quis amputar
suas nuanças, nem todas já “redondas” na poesia que
produz agora, mas latentes ou entrevistas na produção
anterior. E se retorci sua escrita, fazendo-a ajustar-se a
três pontos cardeais — pedra, terra e buquê —, sei bem
que não escreve assim naturalmente, mas parece que
escreve, como aquele Pensador de bronze parece estar
em uma posição natural.
Os núcleos informativos foram retirados do po-
ema que fiz de pórtico, e este é uma ótima peça artísti-
ca, a servir de bússola. Corrêa Pontes é o poeta da pedra
não no sentido da economia emocional, sentido de poesia
“mineral” posto em circulação pelo grande João Cabral de
Melo Neto, mas no sentido de uma poesia mais áspera na
própria emoção: poesia da perda, poesia dos momentos
duros da experiência humana. É sua lira mais dolorida,
que avança na memória e nos desfeitos do amor. Mas este
é também o poeta da terra, no sentido que o faz atento
às coisas de seu estado, o Acre, tão desconhecido do resto
do Brasil. Então Renã oscila entre a crítica e o panegíri-
co; no largo interstício, é de notar a sábia apropriação de
termos regionais, de temas remissivos às etnias indígenas,
e sobretudo o pertencimento que soa muito verdadeiro e
poderá nos dar, como parecem apontar alguns momentos,
um poeta narrativo de fôlego. Por fim, temos ainda o po-
eta do buquê, poeta de lira amorosa mais pulsante, na boa
tradição luso-brasileira dos falares de amor.
As seções são intercambiáveis: o lírico da pe-
dra também é o do buquê e os dois estão no da terra,
onde sopra às vezes um vento indigenista. São divisões
para amostragem, nas quais uma característica avulta,
mas não exclui as demais, nem outras que o leitor pos-
sa descobrir. Este notará que a linguagem tantas ve-
zes procura se enquadrar em um saber-fazer métrico
e nos dar, por exemplo, um soneto “bem feito”; mas a
excelência formal existe até mais no aparente descui-
do, pois atende a uma necessidade vital da expressão,
necessidade que impõe sua assimetria. Há supostos
“descuidos” até em Camões; os parnasianos, mais ar-
tesãos que artistas, fizeram seu catálogo.
A linguagem de um poeta vai-se modelando com
a vida e com a cultura. Não digo com isso que, na posição
de antologista, concedo maior indulgência ao meu antolo-
giado que de regra aos demais, quando me coloco na po-
sição de crítico. Apenas, neste momento da trajetória de
Renã Corrêa Pontes, entendi ser especialmente produtivo,
para ele e talvez para muitos que aportem nestas páginas,
dar com uma antologia um pequeno panorama de certo
desenvolvimento poético. Um desenvolvimento de resis-
tente, eu diria, isolado como está do meio em um dos esta-
dos mais jovens do país.
Não é fácil fugir ao provincianismo. O clichê mais
corrente em publicações do Nordeste, por exemplo, tornou-
-se dizer que tal escritor fala de sua terra “sem ser regionalis-
ta”. Cita-se ao cansaço a frase atribuída a Tolstói: “Canta tua
aldeia e tu cantarás o mundo”. E isso se torna desculpa para
se cantar infinitamente a aldeia, o rio que corre nela, a moça
que se banha nesse rio etc. É o salvo-conduto do provin-
ciano tomado à crítica literária dos anos 1930 e seguintes,
quando o romance brasileiro revigorou o regionalismo e foi
dar na prosa inventiva de Guimarães Rosa. Alguém leu, ou
ouviu a palavra de ordem — não ser regionalista — e saiu
advertido, passando a senha para adiante.
Será vantagem ou desvantagem, nesse ponto, es-
crever no Acre e às vezes sobre ele? É um lugar de recém-
-chegados, onde a memória da imigração, levada muitas
vezes no propósito de integrá-lo ao país, ainda está muito
forte. Ser regionalista, nesse contexto, é ser memorialis-
ta — dos pais ou avós, nordestinos quase sempre — ou
indigenista, mas não de gabinete: colhendo nas etnias lo-
cais o substrato humano da literatura.
Porém, memorialismo e indigenismo estão
sempre à beira de falsificações românticas. É muito fácil
ceder à tendência autocomplacente de edulcorar nossa
linhagem familiar ou simplesmente repetir o idealismo
antiquado do bom selvagem, sobretudo hoje, quando o
discurso ambientalista anda em voga.
Aqui não há, propriamente, o risco do regio-
nalismo, senão o daquele feito por empréstimo. Penso
que até no Amazonas ou no Pará, com seus ciclos eco-
nômicos extrativistas, com sua aristocracia de latifun-
diários, sua arquitetura de espalhafatoso neoclássico,
a comida e os ritmos para onde convergiram todos os
temperos, penso que até ali, no Mercado do Ver-o-Peso
ou no Theatro Amazonas, o regionalismo seja mais pos-
sível, mas não no Acre, um estado anexado após disputa
militar e diplomática, fronteira do país, onde há muito
por fazer — por “regionalizar” ainda. E é bem isso o
que sinto na produção deste poeta, filho de imigrante
potiguar: o esforço de apropriação equatorial conviven-
do com a memória familiar semiárida. Uma região su-
perposta a outra, que tem de despojar, assimilar pelos
usos e pela linguagem a grande floresta onde alguém,
ao voltar do trabalho na construção da estrada, sonha
uma paisagem de umbuzeiro, mandacaru, carcarás e
lagartos. Que esse homem — o pai do autor — tenha
se convertido, já na sua primeira descendência, em lin-
guagem poética, é algo notável (veja-se o poema genea-
lógico Morte e vida seringueira).
Não me refiro apenas aos momentos expressa-
mente dedicados ao pai, mas ao ciclo de usos, costumes,
adequação ao clima, à geografia — refiro-me ao imaginá-
rio. Essa amálgama ainda está se processando em Renã
Corrêa, e deve estar igualmente assim em outros de sua
geração e nos mais jovens. O tempo da Internet encurtou
distâncias e decretou o fim dos isolamentos totais. Hoje
é possível isolar-se em grandes metrópoles, bastando se
“desconectar” — a palavra já virou sinônimo de intros-
pecção. De modo oposto, é possível estar na fronteira e
“antenado” com todo o resto do país ou do mundo — e
agora uso outra palavra do jargão técnico, que talvez de-
nuncie minha própria obsolescência.
Passando desse plano maior, de justaposição
cultural, para o microcosmo das relações pessoais,
observo como são pungentes os momentos de me-
mória familiar no autor. Os mais expressivos, para
mim, não são os do pai, senão os de seu irmão sui-
cida. Há muita coragem nesse gesto. A poesia exige
que não lhe façam de máscara. Sempre acena com a
possibilidade do subterfúgio, cabendo ao poeta negar
passagem e entregar-se. Eu vejo que Renã se entrega,
aqui com mais felicidade expressiva, ali com menor,
mas sua poesia lateja de vida — é de rosto aberto que
o homem se coloca em verso.
Outro ponto delicado onde o poeta se coloca
às vezes é o da crítica social e política. Facilmente se faz
má poesia a partir daí. As fórmulas estão gastas. As in-
dignações em verso não impressionam mais ninguém.
Bem nisso observo, como no poema Pesadumbre, que
Renã cria ótimos arranjos de forma e conteúdo. Este
pequeno poema é intitulado em espanhol e fala de cer-
to ladrão que persegue o sujeito lírico em sonhos. Diz
pouco, sugere muito: inveja, tráfico de drogas, contra-
bandos, descaminhos, subornos, chantagens de fron-
teira — a fronteira geográfica, a da linguagem e a da
consciência, da vigília para o sono.
Outro momento de avanço na crítica social, bem
realizado pelo que demonstra do temperamento poético
do autor e suas opções de linguagem, é este soneto:
A PESTE

Frente à Judia, desaguando em dique,


a velha Quinari de antigamente,
de casebres de palha — em paus a pique —
cobria os sonhos meus e a minha gente

laboriosa, lembro direitinho:


lá, todo filho tinha o seu ofício.
Ninguém sentava à beira do caminho,
dando sorte ao azar, refém do vício.
Éramos negros, brancos e alguns nipos,
jovens e velhos de diversos tipos,
todos cumprindo o seu dever, contentes;

mas a peste assolou a nossa vida.


Moléstia para nós desconhecida:
não há trabalho para as novas gentes.

Este poema é pouco e muito: é um semitom de


dor humilde, com boas escolhas formais, sem exageros,
como a rima de “nipos” e “tipos”, ou o “lembro direiti-
nho” — que dá uma coloração de conversa de alpen-
dre, algo bandeiriano, ao escrito. Não há panfleto, nem
demagogia, nem pretensão: é a perplexidade de um
mundo onde nem todos cabem mais. De igual modo, a
poesia do autor, que nem acena para a ideologia, nem
para senhas estilísticas, nem para coisa alguma, é poe-
sia pura. Poesia pura e simples.
A vida por vezes surpreende assim. Aquele mes-
mo Auguste Rodin que se empenhava em formas inaca-
badas, certa feita, esperou a hora de chegar a modelo de
sua Eva, parte da encomenda da grande Porta do Inferno,
e Anna Abruzzezzi, a moça, não apareceu, como nos dias
seguintes. Rodin impacientava-se: precisava aparar qual-
quer coisa no baixo ventre, pois lhe parecera irregular, de
uma irregularidade impensada. Foi ter com um amigo
pintor, que sabia amante de Anna: este lhe contou que
soubera, por um bilhete, da fuga de Paris da modelo, ao
se dar conta de que estava grávida (talvez dele, talvez de
outro homem casado).
Rodin então compreendeu que a sua dificulda-
de em fixar a forma do baixo-ventre era devida à pró-
pria gestação — e assim deixou sua Eva, com as formas
imprecisas, móveis, da vida nova que se encaminhava.
Recebeu como um presente e um encontro com sua con-
cepção de arte. Não retocou, não aplainou, não poliu. É
pensando nesse gesto do grande mestre escultor que ora
lhes entrego a poesia de uma poesia em expansão.

Wladimir Saldanha1

1 Poeta, crítico e tradutor. Doutor em Literatura e Cultura pela Universidade


Federal da Bahia. Autor de Natal de Herodes (Prêmio Nacional da Academia
Pernambucana de Letras, 2018), entre outros.
i
poemas de Pedra
PIETÁ

Pietá de olhar vazado em pranto,


gentil na primavera. Oh! Olhos lindos.
Profundos como o mar, mansos, infindos,
carraros como o teu divino manto.

Deito em teus pés um beijo sacrossanto;


teu ser marmóreo mudo ao meu intento.
Boca que diviniza o monumento,
verbo de perfeição, ternura e encanto

me bendiz, me ensina a amar te imploro


flores no meu caminho enquanto choro
meu grito que estremece o firmamento.

Imitando um Hebreu que te honrou tanto,


neste instante de pranto e sofrimentos,
vim buscar no teu colo um acalanto.

23
RASPUTIN

Levanto o copo, sorvo-o e me excedo,


no doce fel que pronto mataria
desde um petersburguês de boa cepa a

qualquer tribuno de cavalaria.


Sinto o cheiro potente do veneno
pelas nobrezas más encomendado,

levanto o copo, digo um verso e enceno


as tragédias do tempo, já faz tempo
que volto a este vale, e aqui contemplo,

oásis e deserto unificado.


No caminho restrito, calcinante,
pendo à direita, à esquerda a montanha

enreda este caminho consagrado


por chuvas bentas que abastecem as leiras
com frutas frescas que faltam adiante

e apodrecem mais cedo que as madeiras.


Corgo escorrendo? Não! É um hidrante
de humo e feldspato em estado fluido.

24
Tanto venero o fruto verdejante
— que julgo merecer das castanheiras,
só penso em merecer, mas não mereço —

que tento suplantar com contraditas


o produto do ódio destilado
que faz denúncia de um aleive enorme.

Nesta jurisdição que o amor não doma,


quem faz denúncia não tem que provar.
Oh, Deus, use matar-me e acabe tudo,

mas, por amparo, dê-me mais um dia,


não deixe que eu morra sem calar
tertúlias que cipós me agregam ao passo,

pandilha que não causa mais que azar.


A Ti, se recorri, pedi Justiça
aos aleivosos de cá, aos conjurados

que me pregaram sem Te revelar:


o Deus que clarifica a água do rio,
INRI que inflama e purifica o ar,

Elói que arrasa um reino e logo, e logo


faz erigir do orvalho e do granito,
um novo, faz dos próceres coitados.

Se Deus me rebaixou, não o condeno


por tocar fogo neste acampamento
dos que profanam o cânone ao falar.

25
Tanto venero a vida que a desprezo,
nem morto esqueceria esta inversão
dos deuses natimortos... Eu amo aquele

pavio flamejante em chama eterna,


Deus cintilando nesta opacidade,
herança luminosa em parafina,

um fogo salvador de vela a vela


que apagou-se para os meus validos,
na dor pungente porque sou mortal,

chorei perante a parca, que alheada,


a minha mágoa doida e grande medo;
com mil reprovações, pensei... pensava:

prender este homem bom no canho altar


da chama fumacenta de um breu falso;
que lição nos ensina esta estultice?

Criei um monstro pra me devorar.


Distante dos queridos, sem defesa,
brilha, ao longe, um farol, na noite escura,

que desfraldou-se para um desvalido.

26
ESCORRAÇADO

Pra parar de dormir, desperta e passa


longe daqueles que buscam honraria
em prejuízo do povo quando a má
vontade dá plantão na enfermaria.

Vais entender porque a doida sente


loucura repentina que não passa
nem tomando o veneno da desgraça
contido nestas línguas de serpente.

Conhecerás os segredos do milorde:


por que tal ordem consta em todo enxame,
por que a serpente mansa também morde,

por que nossa injustiça nunca passa...


Precisarás sentir todo o vexame
da pedra estilhaçada na vidraça.

27
ZANGA-BURRINHO

Os homens que estão embaixo,


sabem que existem dois mundos:
o mundo dos lá de cima

e o mundo dos cá de baixo.

Os homens que estão por baixo,


não sabem como é em cima,
mas sentem que estão por baixo.

Os homens que estão por cima,


sim, sabem como é embaixo,
entendem que são de cima,

E não querem ir para baixo.

Seus filhos só vão para cima,


moram em cima — do muro,
mas, os do pobre só vão para baixo.

O que vou fazer embaixo?


Bem sabem que sou de cima,
devido ao meu alto nível!

28
Na verdade,
por cima se vai para cima
e às vezes se vai para baixo.
Por baixo, se vai para baixo
e sempre se vai para baixo.

Isto se chama zanga-burrinho.

O fogo vai morro acima,


queima tudo forma rima.
O bicho come o feijão,
é praga na plantação.

A água vai morro abaixo,


quebra os beiços do riacho,

só para se chega embaixo.

29
AUSTERÍSSIMO TITÃ

Austeríssimo Titã, teus pelotões


abordavam os barcos estrangeiros,
em alto-mar, com ogivas e morteiros,
convertendo-lhes em monte de bagaços.

Austeríssimo Titã, com seus “valores”,


reis das genealogias dos degredos,
até em Eva Braum tu impingias medos
quando o Bundeswehr caçava dia e noite.

Austeríssimo Titã, nas madrugadas,


tu soltavas bombas, muitas saraivadas;
mataste Olga em câmara de gás.

Austeríssimo Titã, rei dos horrores,


de Norte a Sul, tu semeavas dores,
e apodreceste de poder demais.

30
QUEBRA-CABEÇA

Vai preparando a arrumação o Grão-


Vizir. Peças do quebra-cabeça vão
faltando. Outros grupos obsoletos
comem restos. Falta ar puro pros fetos.

A mata e os dentes vão se esburacando.


Vão iniciar este remendo quando?
O mundo se equilibra em corda bamba
e a boca que te beija te esculhamba.

O livro que achei, poeirento alfarrábio,


fala da mazela que acomete o sábio,
diz: é o rio que guarda fogo no seu peito.

Respiremos — enquanto ainda temos chance:


brinquemos n’ água antes que o mar avance.
Deus criou o mundo para ser desfeito?

31
O TEMA DE NIETZSCHE

O tema de Nietzsche foi perfeito:


meus pensamentos são os meus tiranos,
pensam de per si, arquitetam planos.
Não pensar é melhor até pro peito.

No meu trabalho, no carro, no meu lar,


na meia parte que eu em parte vejo,
aparece-me um ente malfazejo
— rosto de anjo e não sabe voar.

Meus pensamentos são duros espinhos,


meus remorsos, de então, são os seus ninhos.
Oponho resistência alucinada.

Na sucessão deste revezamento,


enquanto luto por pensar em nada,
meus eus arquitetam meu tormento.

32
DAMIENS VERSUS PODER

Todas as lanças do mundo, traspassai-me,


e toda a escória do meu corpo, queime.
Do meu corpo o ser se desvaneça,
dos meus pés, dos braços e cabeça.

Que a loucura do mundo se esclareça


e não me sobre parafuso ou peça,
e toda antena de celular se empene,
e o fogo queime de modo perene.

Meu receio na América da morte, é


que conste ainda em nosso calendário,
o dia dela, da estrela que mente.

Por sua culpa, este sol tão quente


castigará meu corpo refratário,
até que o nó aperte, quebre e aparte.

33
EU VOU EMBORA

Eu vou embora deste mundo, desta vida,


lembrar de desamores volta-me a agonia
dos dias de abandono, dor à revelia,
adeus, mulher de falso amor, adeus, querida.

Tornei-me alma de triste canto, arrependida,


que ora se ri e ora tem melancolia.
Voltar ao tuo amore não mais quereria:
ver-me cair em outra nova recaída.

Tornaste minha sorte triste suprimida,


enchendo o pobre peito meu de rebeldia.
Por mal, voltei ao ponto zero; na partida

me vi refém da mágoa triste e ofendida:


na noite escura e longa que jamais viu dia,
guardei meu coração de pedra não polida.

34
SÓ PORQUE

Só porque
o vento norte sopra favorável
e as tuas asas
são maduras do tempo
e as minhas
ainda malformadas,

voas alto,
me humilhas,
me estranhas,

sem dar por conta


— porque o teu orgulho
não te deixa ver —

que és abutre da terra,


e eu, um agravado ser alado
das montanhas.

35
LENDAS ANTIGAS: A ESCOLTA

Barba comprida, um tipo viparita,


no retorno da mais nobre missão.
Na mão de homem forte, um galardão,
que lhe foi dado por um rei semita

porque salvou de Herodes o pequeno


Filho da Nazarena agraciada
pelo Anjo Gabriel, bendito fruto;
alento da esperança em hora incerta

guiou, rumo ao Egito, noite e dia,


o Rei nascido em estrebaria
— o Vinho sacratíssimo dos ritos.

Custou três longos anos a epopeia...


Missão incerta — espias na escarpada —
cumprida com o maior dos sacrifícios.

36
PROCURA

Perseguindo vetusta dinastia


andava em uma praça em Salamanca,
quando um muro, súbito, me tranca:
saí num vilarejo enfeitiçado.

Fiquei com o que vi impressionado


— arsênico espalhado pela areia,
dama linda com rosto de sereia,
janelas com seis lados num sobrado.

Marchava por um córrego aloprado,


com águas depravadas, de cisterna,
um tísico jinete ensanguentado.

Na direita, a Ilíada de Pope,


buscava o elixir da vida eterna,
inda que fosse pra alcançá-lo a pé.

37
INANIA VERBA, GLOSA DE BILAC

“Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,


o que a boca não diz, o que a mão não escreve?
– ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava.”

VERUM FACERE

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,


o sofrimento dado ao teu maior Profeta.
No espinho de aflição, a cruz fez-se repleta
da dor que, de improviso, em graça transmutava.

Sofrer publicamente o que temera em oculto:


o que a boca não diz, o que a mão não escreve:
quem deu ao vil malvado uma carta de indulto,
atentou contra o amor que o mundo jamais teve.

Atado aos ódios seus, por mais que um rei intente


encarcerar um Deus em castelo de neve
— ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve
os santos cobrarão aquele sangue quente.

O homem degradou o poder da palavra.


O céu responderá a voz que se levanta?
Passado o sacrifício, a tua luta tanta:
olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava.

38
GRAU 33

Era a hidra feroz, esquartejei-a,


lacei o javali das terras altas,
matei de besta as mil bestas peraltas,
flechei até Celene, a bicha feia.

Venci quem cumpre e quem capitaneia,


fiz Hera deglutir suas risadas.
Foi retirando pedras calcinadas
que Alfeu desaguou naquela aldeia.

Olhei severo aqueles olhos rudes,


rangeu a barca sob os pés sidéreos,
passei por provas de vicissitudes,

feito um noivo que ao público incomoda,


com alva palidez no rosto vítreo,
expira, de repente, em plena boda.

39
TUA IMAGEM

Independente
da promessa
de um céu póstumo,
do egoísmo
de escapar sozinho
deste lugar ermo,

Tua imagem,
Tua sombra,
pouco me importa,
se não muda o que sou.

Por isto vem me ver!

Apresenta-Te
com Tua imagem
descortinada;

humana forma,
com a mão estendida.

Estou pretérito
de mentiras

40
e confusões
sobre Tua imagem:

um deus com braços


de pedra-sabão,
abertos.
Quantas vezes
estendi a mão
para o vazio
propagado
— leite e mel
da Tua boca?

Se eu pudesse fazer-Te
e não o contrário.
Perdão!

Usarias palavras,
e não apenas
cinema mudo.

Se eu pudesse fazer-me,
me daria os pés de Ulisses
sobre a balsa

e me adornaria
com os dedos de Davi,
harmonizando
mãos prometedoras.

41
Não me concebo assim:
chamando Teu nome
por diversos nomes,
em vão,

sinto-me um pagão
desbravador
do desespero.

Porque o homem
não dita
a própria vida,

o barro
não julga
a fôrma e a fornalha;

com a mão estendida,


eu, homem,
sou a caricatura
em preto e branco

que Deus não terminou.

42
DESERTOS E OÁSIS

Depois de dar três mil voltas ao redor


de uma tapera abandonada...

Persigo o voo de um ser alado


que plaina em direção a um oásis perto.
A força de vontade me há poupado
de desmaiar na frágua do deserto.

Dobra o calor que esta areia gera


quando, ao assomo de um asco sem tamanho,
diviso a platitude de um rebanho
encurvado ante um céu de além-quimera.

Do domínio do mal passa adiante.


Meu anjo protetor, o hierofante,
me ajuda a refugar o escárnio santo.

Mas, a peste com o veneno do seu charme


espalha a impudicícia no meu canto...
Perdão, Senhor, me apresso em condenar-me!

43
CONDENAÇÃO DO NÃO SER

Quando me fere o teu sorriso agro,


ante a minha impotência, eu sofro e engulo
o meu critério, meu juízo nulo,
e o sal que escorre no meu rosto magro

queima-me a azia, perco a fé, me anulo,


quando me feres com tua confiança,
quase chorando como uma criança,
por teus esforços de retorno chulo.

Pedi a Deus fortuna em teu caminho,


mas os homens faltaram ao juramento;
não nasceu flor no roseiral de espinhos

desta terra socada por mil cascos,


devido às letras deste parlamento,
e um defeito de gene em teus carrascos.

44
IMPOTÊNCIA

Indenização nenhuma vai ser tença.


Quinhão nem espólio vale um lance.
Ponte nenhuma sobre o rio avance.
Em muros baixos, grita alguma vença.

Duas eternidades de silêncio


não seriam capazes de mais dito
que aquela indiferença de arenito
nas mãos vindas do abismo fundo,
calçando, rijas, luvas de pelica.

Eu vinha tão sofrido,


que, vencido, sobejei o sofrimento.

45
NAS VINTE E QUATRO HORAS

Nas vinte e quatro horas do velório


predecessor da minha cremação,
oh! Verme torpe que intentar roer-me,
não te aproximes do meu coração.

Ao senhor cremador que, indiferente,


torra o sujeito pela morte eleito,
quando for me queimar no fogo ardente,
peço de ti um pouco de respeito

— um dia fui poeta compulsivo,


confessei para o mundo a minha falha,
driblei a minha morte em ziguezague,

mas, nem por isto pude ficar vivo.


Morte: não há tesouro que me valha.
Vida: não há dinheiro que te pague.

46
AUTOBIOGRAFIA

A primeira batida deu-me a vida.


Meu coração teve o golpe segundo,
ao contemplar a desgraça do mundo.

Tornei-me infante, estava programado.


Apresentei meus valores, ninguém fez caso.
Envelheci sem haver me desenvolvido.

O tempo se encarregou
da aparente normalidade
que julgo desfrutar

depois que internalizei a máquina.

47
ESCORRAÇADO 2

Se já nasci pagando meus pecados,


graças a Deus, cheguei até ter saldos,
pois a cegonha me jogou no meio
de uma família muito pauperada,
numa choupana com luxo de nada,
num vilarejo sem cerca ou esteio.

Nasci fraquinho e, para minha sina,


eu recebi furada de vacina
dada por leigo: quase vou à morte.
Dores? Pena-se ali por todos os meios
quando a saúde nega os magros seios
aos tais abandonados pela sorte.

Eu senti sede, e a fome que eu sentia,


compartilhava-a minha pobre tia,
menina que pensei já tê-la visto,
antes de vir aqui ser castigado.
Pensei assim: só devo ter jogado
uma pedra na Cruz de Jesus Cristo.

Naquela vila, o ócio deletério


vem nos forçar a tudo, sem critério;

48
a vida ali é uma madrasta em ânsia,
maltrata os indefesos por ciúme.
É tão funério o seu grande azedume
— nos rouba até as cenas da infância.

Nascer ali é o mais puro engodo,


andar descalço por cima do lodo.
Que mão nos ligaria a tal destino,
qual esgoto que escorre pelo chão?
É bem a força desta seca mão,
do pulso do político cretino.

Quanta injustiça esta mão fabrica,


de gente que foi pobre e, agora rica,
vive no bom, no belo e presenteia
à custa da miséria e sofrimento.
É razoável que um velho jumento
se compadeça vendo a dor alheia?

Hoje entendi porque a vida é assim.


Vidas marcadas do princípio ao fim
— cujo fracasso sempre vem rotundo,
a flor que nunca viu a primavera
e nem conforto nesta nova era...
A rapinagem do terceiro mundo.

O desalmado que com seu partido


faz teu bebê doente e desnutrido;
neste país sem princípios nem leis.
Nas manhãzinhas. Pelas madrugadas

49
os mancebos revoam em debandada
dizendo: Deus é pai, eu escapei!

Quem é que vai chorar o meu fracasso?


Meu pai já cometeu tal erro crasso!
Não serei tolo, qual Maquiavel,
que foi escada para oportunistas,
fez teses para guerras de conquista.
Vou-me embora da vila miserável.

Se de outra plaga eu for escorraçado,


vou voltar de avião, e não a nado.

50
ÚLTIMO POEMA

Depois deste poema, ao ser cremado,


vou retornar ao fino pó dos pós,
e ao liberar meu coração alado,
nada mais quero, do que quereis vós.

Irei voar num vento delicado,


para ajuntar-me ao pó dos meus avós,
e, abandonado, o nosso horrendo estado,
fluir-me em gás num vento de mil nós.

Ficar da cor de cúrcuma vermelha,


ser da divina fogueira, a centelha
da chama que dá vida ao universo.

Só rogo a Deus que, na hora póstuma,


não haja entrave de coisa nenhuma:
quero escrever o meu mais lindo verso.

51
iI
poemas da terra
DO ÊXTASE AO ÊXODO

Aruaques, legiões de aruaques,


comitivas fraternas da nação Pano,
e à frente Aiyra:
tão linda que espalhou a morte.

Os olhos do bravo
a ninguém mais veem,
mas, somente a ela,
tão somente a bela,
vestida de palhas.

Na mão, uma flor;


no colo solto ao vento,
o emblema dos valentinianos
e, no coração,
amor maior que o materno.

É sorrindo que diz:


Chegou meu Abaçai!
Chegou a vitória!

55
Soam os gritos,
bufam mil cavalos,
ribombam os bumbos,
prorrompem os instrumentos de sopro,

saudando a vitória,
e, logo,
pequenos e velhos
mergulham na glória
da paz pela guerra,

curvando-se às prendas
da filha Naiá
norte — na vitória.

II

Após muitas luas


de força e fartura,
um forte temporal
fez subir os rios,
inchar as várzeas,
e, nublando a paragem,
escondeu tupã.

Quando o sol voltou,


iluminou
a presenças insólita
de homens bizarros falando
— e que vozes adocicadas!

56
Com pano e vidro,
seduziram shumayas e anciãos.

Depois de dez sóis,


a mata moldou-se
aos moldes do acero:

imensos descampados
manchados de óleo,
tecidos, tertúlias,
comida com sal,

foices, chapéus,
botas, cordas,
pistolas, arpões.

Crivados de manchas,
cansados, sem prumo,
perderam seu rumo,
partiram, fugiram,
caíram, morreram,
os bravos de outrora.

III

Entre os desamparados,
a maternal figura
(com seus curumins)
partiu da esplanada
dos tempos de glória,

57
subiu na ubá,
venceu muitas águas,
cruzou muitos rios;
seu rumo: a cidade.

58
CALÍOPE

Dentro das matas e longe das máquinas


nasci. Ouvia rádio, via paisagens
do Norte imaginando Cozumel.
Bem-te-vi ouvi ao ver tuas mãos divinas.

Povoaste os sonhos da minha infância.


Noutras cenas divinais vinhas voando,
linda fada volante bela e em ânsia,
me vinhas ver. Virás me encontrar quando?

Ainda virás cedo e voarás comigo?


Ver teu rosto é privilégio de meninos?
A tua ausência para mim é um castigo.

Vê, hoje decerto faltam sonhos


e peças teatrais de anjos pequeninos,
fadas que nem tu, seres risonhos.

59
CHUVAS TÓRRIDAS

Era tarde de quinta-feira da Paixão.

Caíam revoltosas, fluíam numa queixa.


Estas gotinhas, eu acho que as deixa
como protesto um olho revoltado,
ironizando o estado deste Estado.

Caíam gotas, sem pingar, decerto,


mas, não molhando este solo deserto,
convertiam-se em ares de ameaça.
E o sol sumiu, perdeu o ar da graça,

nos quatro cantos ares de protesto


contra o nosso potentíssimo Festo
(corpo hidratado em terreno tórrido).

E a ribombância chuvosa traduzia


a melancolia que surgiu da azia
e dos pranteios de um rosto hórrido.

60
A ÁRVORE DA PRAÇA

Decana árvore, por vezes demais


eu contemplei tuas raízes desiguais.
Lembro bem do desenho dos meninos,
das tuas flores e cachos pequeninos.

Com flores amarelas, folhas largas,


testemunhaste coisas muito amargas.
A motosserra mata, e choras e imploras;
mata-nos a todos, o passar das horas.

Por gente presa a areia-movediça,


ceifada foste pelo ego que atiça:
planta após planta, em breve a mata some.

Foi na Praça do Quinari ou Guiomard


que a mais linda árvore aprendi a amar,
mas ninguém sabe lá dizer teu nome.

61
VIDA E MORTE DE CHICO MENDES

O Chico na mata lá vai toque-toque.


Sensato, rebelde e amigo... Ele é pai!
Levando a poronga e faca ele vai,
defende a floresta com balde a reboque.

Defesa da mata é motivo de choque,


qual choque de frio da chuva que cai.
Jurado de morte, pra luta ele sai
pedindo à justiça que o mal não lhe toque.

Quem sabe se a mata ficar bem cuidada,


não para esta raiva do rude inimigo,
que quer toda a mata refém da boiada,

cilada composta de grande perigo.


Tão moço, seu Chico tombou de emboscada
com tiro que pega do peito ao umbigo.

62
O ÚLTIMO SOLDADO DA BORRACHA

Era noite de sexta-feira,


30 de maio de 2008. Fazia frio.

Chegou, meu pai,


o filho dos teus amores.
Trouxe-te uns chocolates
bem sortidos

e cuidados
como sempre há recebido;
trouxe-te sedas
das mais lindas cores.

Súbito, no ar voa
um objeto,
este, que os espanhóis
chamam de acha

e mata o último Soldado da Borracha,


deixando um órfão a mais
na angústia dos nefelibatas.

63
A GARRAFA DE MEL FALSIFICADA

Eu andava no mundo pela estrada,


do meu lado um poeta sergipano,
quando vi um casal parnasiano,
a garrafa de mel falsificada.

O casal maioral na embolada,


que cantava na praça esta charada,
uma história antiga e repetida:
todo escrito que não rimar com rima
é garrafa de mel falsificada.

Eu olhei para aquela marmelada


parecida com Química Analítica.
O político que acredita na política
— a garrafa de mel falsificada.

E cantei: olhe aqui, meu camarada,


já faz tempo que quero esta vingança.
Vou comprar pro amigo, por lambança,
a garrafa de mel falsificada,

pro amigo fazer a garrafada


que precisa pra festejar os anos.

64
Nada mau para os dotes desumanos
da garrafa de mel falsificada.

O sujeito pulou da balaustrada


com um salto felino, quase humano,
disse: dê para aquele outro acreano
a garrafa de mel falsificada,

esse tal sujeitinho sujismundo,


viciado na droga do dinheiro,
que com preços e juros escorchantes
quer fazer deste acre o fim do mundo,
a garrafa de mel falsificada.

65
MORTE E VIDA SERINGUEIRA

Dedicado à memória do meu querido


e saudoso pai, Severino Agostinho Pontes,
“Soldado da Borracha”, nº 28.802.

Era rebento potiguar, bem-nascido.


Partiu da Praia de Iracema em 1944
para não ir à guerra na Itália,
mas o seu pai não deu consentimento.

Por compensação, promessas oficiais


de paz, aventura e riqueza prometida.

Chegou ao Acre em setembro de 1945.


Foi para o Quinari, no outro dia,
numa canoa dos correios
levar um amigo, a mulher dele e o Costinha,
recém-nascido — agora todos falecidos.

Mas depois, para dizer a que veio,


foi rodar, rodar, rodar nas estradas de seringa
na colocação Vai Quem Quer
— no Seringal do Inglês.

Saiu, balde na mão, poronga na cabeça


para cortar pneu com faca cega
e pegou mais de 700 dias de malária de uma vez.

66
Amarrou a rede velha em fraco esteio,
que mal aguentou uns 650 dias.
Pra piorar o homem era solteiro. A onça pega:

II

Esta é a vida seringueira,


severa como a má sina
de quem é menino aos vinte
e rapaz aos vinte e dois

e, aos vinte e quatro, bem, pois,


é senhor, faz o que quer.
E aos vinte e seis é traído,
sem ser por uma mulher.

III

Esta é a arte seringueira,


degreda por degredar,
o corpo fica num canto,
a alma fica no ar.

Êta guerra seringueira


de herói sem galardão,
faz perder-se uma existência
devido à má opção.

Para ela um bom amigo não convida.


Viagem de só dois anos,
que dura uma longa vida.

67
IV

Tiro que lhes quebra a asa,


lhes enterra em terra estranha,
bem longe da sua casa.

Casa de tantas saudades,


que já não existe mais,
cortejo de dez pessoas:
não comparece no enterro
sobrinho ou filho dos pais.

A morte que contaria Mario Quintana,


porque, depois de sofrer mil horrores,
o homem é enterrado só, sem flores.

Ah! Mas que governo bacana,


que recorre a tantos aparatos,
desculpas, evasivas e eufemismos
para não ver do injustiçado as dores,

até chegar a hora da partida


e o homem ser enterrado
sem direito e sem sapatos.

As pérolas são de plástico


e os sapatos, de marfim.
E o amor é a borracha
de um pneu ou de um chiclete.

Adeus, ingrata, adeus.

68
A CULPA

Ah! Barca sem destino, és tu quem levas


as nossas filhas, lindas feito devas,

és tu quem levas o nosso nobre fruto;


parece que o mundo é um prostituto

que com força soberba lhes obriga


a empurrar o pecado com a barriga,

no vil castelo sujo e deletério


— a casa nauseabunda do adultério

onde brilham os dentes das matilhas.


Meu Deus, salvai as nossas pobres filhas

(casa torpe onde a cândida infante


entrou para comprar desodorante

e demais bricabraques e um vestido


para o corpo, esse pobre pervertido).

E peço mais: Deus, nunca me dai filhas


para seguir por estas duras trilhas,

69
enquanto o mundo segue com projetos,
a respeito do amor com mais respeito.

Por que nunca prenderam um suspeito


na prática de tais crimes abjetos?

Bem na moda do tempo da caverna


existe a aliciação oculta e interna,

lá, os machos mergulham nos seus vícios,


no fétido bazar dos meretrícios

oferecido para quem quiser.


Depois jogam a culpa na mulher.

70
SAUDADE REMOÍDA

Eu sou o Soldado da Borracha,


potiguar que não quis
ir à Itália em 1945.

Minha vida é dura


nesta floresta,
meu novo lar:

Mal o galo canta,


eu já tô de pé,
preparo a poronga,
desejo mulher,

corro pra cozinha,


vou fazer café,
já que tenho a fé
nunca abatida.

E tudo recomeça:
faz mau tempo, o tempo pinga.
Eu pego a espingarda,

71
me alembro da reza,
já está me esperando
a estrada de seringa

encurvada, escura e fria.


Eu dou tanta volta,
mas nada me revolta,

pois sei que a seringueira


é quem me alimenta
nessa lonjura esquecida.

Não suporto a saudade


e tomo aguardente;
já é de noitinha,
eu como o pirão;

sem ter companhia


eu vou me deitar,
lembrando a família,
pensando no saldo,
sonhando com o mar,

sinto uma saudade remoída.

72
OÁSIS E DESERTOS

Um vinho e um pão francês, neste deserto,


me valiam mais que a prata do universo.

O que já fora coisa garantida


na cordilheira que alimenta o lago,
hoje é promessa de um futuro vago,
sem as geleiras que garantem a vida,

nas águas cristalinas que, em cascatas,


por entre as pedras vão serpenteando,
ora revoltas, ora em curso brando,
preambulando as vidas abstratas.

E, um solitário peixe em meio ao rio,


um cavalo no campo seco e frio,
uma mulher que não é de ninguém,

todos dependem destas águas claras:


as matas verdes, flores e searas,
e alguém distante que a mulher quer bem.

73
PESADUMBRE

Meu maior pesadelo


(em toda a vida),
não é fruto do medo
de que o bem me abandone
e o mal me cegue.

Vem também das sequelas


de uma infância perdida,
neste Brasil de um ladrão

que me persegue.

74
O MEDO

Lá fora, eles,
na cinética patológica das ruas
da infeliz cidade,
o medo

do roubo, do atraso, da Covid,


da gripe... do medo.

Cá dentro, eu,
na estática faustosa do claustro
da infelicidade,
o medo

do outro.

75
JUREMA

Ao canto do inhambu, que não tem dono,


o barulho das botas do abandono
forma a poeira.

Num campo sapecado,


na casa paxiúba de madeira,
um corpo abandonado:
tem quem queira!

Do olho ao queixo,
as lágrimas formam o Nilo.
Canta o inhambu, chora a Jurema.

O arrulhar da ave que resiste,


o sofrer da mulher, pesado e triste,
à prestação

forma o poema.

76
A PESTE

Frente à Judia, desaguando em dique,


a velha Quinari de antigamente,
de casebres de palha — em paus a pique —
cobria os sonhos meus e a minha gente

laboriosa, lembro direitinho:


lá, todo filho tinha o seu ofício.
Ninguém sentava à beira do caminho,
dando sorte ao azar, refém do vício.

Éramos negros, brancos e alguns nipos,


jovens e velhos de diversos tipos,
todos cumprindo o seu dever, contentes;

mas a peste assolou a nossa vida.


Moléstia para nós desconhecida:
não há trabalho para as novas gentes.

77
ISOLADOS: RITUAL DE PASSAGEM

Nas ocas ligadas


a túneis e passadiços
contados nas histórias
consideradas mitos,

confinam berunãs de quinze anos


e cinquenta quilos,
em grupos de dez,
por muitas luas.

II

Logo aparecem
os velhos dos túneis,
a encantar
com contos de trinta mil anos:
tragédias de amor fecundo;

os dramas de um longo êxodo;


beleza de fazer mundo,
plantar castanheiras e abrir estreitos;

78
histórias de escavar
geoglifos gigantes.

As histórias são combinadas


com cantigas e silêncio
e isolamento com mel;
raízes e frutos amargos da várzea
(os frutos que dão coceira)

e o sumo tirado
da planta trazida da margem de lá
do rio sem fim
que banha a virgem nascida
do morubixaba.

III

Na lua crescente da metamorfose,


liberam
os agora guerreiros gigantes:
os bravos serventes
de cento e quarenta quilos de
transformação,
com um mínimo de nove palmos de altura,
para que sejam, então, defensores de todos.

IV

Com órgãos imunes à sede e ao veneno,


ánimo de acero,

79
ossos duros de tucum,
carnes de caucho,
sob a pele vermelha de urucum
que a mata pratica esconder,
têm olhos tão puros, que
até que o raio de Tlaloc os detenha,
hão de ver.

Com força de formiga,


sustentando, nos ombros, um âmago
bem maior que o próprio peso,
na prova que consagra a iniciação,
os, por todos chamados
de ursos gigantes,

jurarão pela mãe do guerreiro-jaguar,


que jamais matarão
sem contar três avisos,
e que, por caro que custe,
entre dores e risos,

estarão a serviço
dos poucos restantes.

80
O XAMÃ

Cunhã de filho ferido de morte no peito


adentrou a opy
de palha, de nó e de ângulo agudo
e de pau amuado.

Chorou
a cunhatã, mas baixinho,
em lágrimas de silêncio
ante o ingente,

que, sem nada dizer,


viu, com olhos vitrais,
o curumi doente.

De repente,
o ingente das cinzas
e, ao mesmo tempo,
indigente,

verteu da garganta, ligeiro,


de unhas nas cordas da harpa,
um som que imitava serpente
— a serpente sagrada do breu verdadeiro.

81
Foi quando o pequeno sorriu.
Sarou?
Por nobreza,
um cantil de cabaça com água trazida

da margem de lá
e a harpa mistério, em metal cirúrgico

com o velho vergado de anzol


e de pele enrugada, saudosa do sol.

82
CENTENÁRIA

Falo por mim!


Não desejo — dar seiva aos apuís —
virar peça de passadiço
da rua do comércio
de joias e almas.

Também não quero ser:


cabo de machado,
coice de 16,
pé de mesa,

tábua de cortar carne


nem piso de taquinhos
cimentado na base,
na assembleia de pretextos
que não se curva às leis.

II

O canto dos passarinhos


desta planície

83
é melancólico,
mas este é o Tangará mais triste
que já pousou na seringueira.

III

As espinhas do peixe
não desencorajam
os predadores,

o abismo do rio
não põe a salvo
o habitante das águas.

IV

A pesca...
O peixe é um símbolo luminoso
do rio sagrado,

mas este peixe


que o homem criou,
este peixe polui o rio.

84
ÁRVORE INFOR/MADEIRA

Ela, árvore infor/madeira nacional,


de propósito, ex officio,
de quando em quando,
de quando em vez,
bate na motosserra.

É estratégico,
porque senão dá nas cascas,
dá no âmago,

dá na vista.

85
iII
poemas do buquê
SONETO PARA UMA MOÇA TÍMIDA

Cabeça baixa, olha pra calçada,


evita o meu olhar, rosto vermelho.
De tanta timidez, fica pasmada
lembrando do que vê olhando o espelho.

Enrubesço também, moça esticada,


toda arredia ao meu padrão mais velho.
Saia de flor, da moda ultrapassada,
foge de mim, seguindo algum conselho.

Ah, se soubesse a moça fugidia


que eu penso nela de noite e de dia
rude insônia se acosta do meu lado,

traz a ausência pungente da donzela.


A moça simples, recatada e bela,
a sensação do meu mundo encantado.

89
DESPEDIDA

Beija-me: que eu sinta a ternura derradeira


e leve no rosto esta lembrança eterna.
Beijo dos lábios desta minha carne, para que
deste amor, que morreu sem nascer, nasça o cerne.

Beija-me agora, eu estou indo embora.


Uma metade subtrai-se, a outra chora;
beija-me aos prantos, lágrimas quentes feito brasas,
de pena deste amor que quis voar sem asas.

Beija-me com um beijo de Judas, senão não permito,


quebra comigo o elo que uniu nosso pranto,
porque, depois do beijo, o resto é ignoto.

Estou partindo com o coração descrido,


chorando o amor que renasce ao ter morrido,
o amor que se deseja ao ser garoto.

90
O PÁSSARO

Certa tarde eu estava meditando,


a mente em branco, em simples vê zero,
de repente aterrissa um quero-quero;
coisas que ocorrem só de vez em quando.

O passarito cantou: são treze horas!


Eu ouvi uma voz, não era pio.
Conferi no relógio o desafio,
eram treze horas exatas, não imaginas.

Tu me dirás: mas isto é impossível.


Um pássaro dar horas não é crível.
Alucinado mais um louco ufana.

Eu respondo, então, com toda a calma:


foi a minh’ alma que ouviu a sua alma,
liberta da loucura que me engana.

91
SE AINDA ME AMAS

Se tu me amaste muito loucamente,


fruta do amor, estojo dos segredos,
vai, grita aos prados, grita aos arvoredos
que tu suspiras tão por mim somente.

Se me dedicas todos teus carinhos,


com louco amor imenso e tão profundo,
vai, grita aos ares, vai dizer ao mundo,
acorda a flor, acorda os passarinhos.

Faze do teu lençol redemoinhos.


Recita versos, dize insanidades,
promete-me mil beijos comezinhos

com reprises dos tempos em que amamos.


E, num encanto, vão voltar saudades
das mil juras de amor que não trocamos.

92
QUERO-TE

Quero-te como um homem quer, mulher!


Com gosto deste amor purificado.
Qual rio que se apoia no outro lado,
ou fruta que se cuida, pra colher.

Quero-te! Qual desejo de comida.


O fruto que traguei, cuspir não posso.
Eu vivo do amor teu, meu, do amor nosso;
do sonho que alimenta o sonho, a vida.

Que fique para o mundo o nosso exemplo,


o teu, o nosso amor, o lindo templo
que construímos de contradições.

Que ele confunda as mais sutis razões,


por ser simples e ao mesmo tempo amplo,
como o pulsar a dois dos corações.

93
ÚLTIMO TRIBUTO

No andar de cima, num delgado leito,


amei uma mulher perdidamente.
Janela aberta para o sol nascente,
o sol resplandecia no seu peito.

Pescoços para trás, na ação cadente,


pés calcados no chão do parapeito,
ninguém jamais amou daquele jeito.
Se alguém disser que amou é porque mente.

Depois riu, me abraçou, fez-se calada,


partiu muda, no fim da madrugada,
como se nada houvesse acontecido.

Levou consigo todo o amor que eu tinha,


deixou comigo esta saudade minha,
e nunca mais eu me senti querido.

94
MEDULA

A leite o teu peito se há negado;


razão que não nos turba ou encabula,
pois tens no ventre o cálice sagrado,
e eu, sangue de deuses na medula.

Dentro de mim, o sol de Brahma azula,


dentro de ti há o branco imaculado
do amor pouco sentido e até provado,
que quanto mais se dá mais se acumula.

Neste conúbio que o céu testemunha,


vamos cobertos de um manto vicunha,
em harmonia com a terra e o oceano.

Quando chegar a hora apropriada,


virá do ventre onde nasceu nada
o bom que pode haver no ser humano.

95
BILHETE DE PASSAGEM

A meu irmão suicidado.

Me dói saber que foste para o além,


meu pobre irmão que pouco amor colheu
no jardim das sementes que o Céu deu
a meu querido pai e a mim também.

Quão prematura foi tua hospedagem,


bem-querido do mundo, e ainda assim,
maltrataste a papai, mamãe e a mim,
devolvendo o bilhete de passagem.

Graças a Deus, papai dormia o sono


que me tirou do dorso o desabono
de ver meu pai chorando os erros seus.

Ninguém colhe um amor que não foi dado;


eu queria livrar-te deste fado,
mas, que fazer, querido? Eu não sou Deus!

96
SONETO DO AMIGO

Por algo errado que aprendi contigo,


ontem querido e hoje abandonado,
sacudindo as lembranças do passado,
fui buscando-te, amigo, em outro amigo.

Lembrando o tempo em que eras bom comigo,


sentado calmamente do meu lado,
procuro em outro amigo apresentado,
em novo amparo, o teu olhar antigo.

O mar pôs-se entre a terra e os meus amigos,


na solidão findei me acostumando
com a certeza de que o amor fecundo

permite a amizade eternamente,


se for de um monge para um penitente,
de um filantropo para um moribundo.

97
EFLÚVIO

Respiro o teu Dior, teu cheiro fixado,


curtido no meu corpo, e nunca te amei.
Cultivo uma estação de flores do passado,
mil beijos que eu te dei, mas nunca te beijei.

A tua falta em mim me deixa incomodado,


insone e sem porquê levanto muito cedo,
carente de escutar o barulhinho ledo,
das filhas que eu te dei, mas nunca me hás amado.

Juravas não me amar em crises de ciúme,


dizias não dormir sentindo o meu perfume.
Agora que esqueci teu rosto que amei tanto,

a tua voz, teu cheiro e o teu andar felino,


agora que encontrei em outra o meu destino,
tu voltas para mim como que por encanto.

98
A MEU PAI MORTO

Toda a herança de família


que eu guardo em um altar:
um lampião que brilha
e uma trova potiguar

que no meu sangue fervilha,


lembra papai a cantar
a canção de maravilha
cantada à beira-mar.

A trova que me seduz


chega num facho de luz
e dissipa a escuridão.

São versos gratos, sinceros,


rededilhados, sem erros,
nas cordas do coração.

99
A MEU PAI MORTO II

Sem Juno ou uma Vênus de brandura,


servi de inspiração para Espronceda.
Fraco, sem forças: que Deus me conceda!
Depois que ele partiu foi-se a ternura.

A alma leve evadiu-se da criatura,


alçada foi ao ar, dilacerada,
em altas horas, alta madrugada,
chegou-me a pura dor, a dor mais pura

(alguém tem um analgésico


para a alma?).

E, entrou com a caça a casta Diana,


com seus seios à mostra e a caça ferida...
Pareceu-me uma Diana tão profana,

que tomei-a pela Diana dos ateus,

mas a deusa cobriu-se com seu manto,


me mostrou em um céu pleno de encanto,
meu amantíssimo pai junto de Deus.

100
DESPEDIDA 2

Não! Não zombes de mim, bela mocinha,


pois teus cabelos soltos, de bailado,
enchem-me de paixão. Eu sou coitado,
já que insistes tanto em não ser minha.

Deixo-te feliz, desço, vou à rinha,


à desumana luta, num trabalho
que considero mais que um atrapalho,
porque dormes sem mim, ficas sozinha.

Eu, que cuidei de ti, fiz-te a eleita,


la belle de jour, o blues desta viela,
hoje te vais de mim, ris, me rejeita.

Não vou negar que a culpa seja minha.


Ousei cuidar, me expus, tornei-te bela
— tomei um xeque-mate da rainha.

101
TUA IMAGEM 2

Não faria-a de bronze, te respeito!


Nem tampouco de prata porque é pobre.
E de ouro, não! Eu acho muito esnobe,
suscetível a roubos e a despeito.

Vou entalhar a golpes de martelo,


teu retrato sublime, o teu semblante
ornado da lisura que cultivas
como as flores e a mística do eterno

culto da natureza a tua imagem:


a maior perfeição das criaturas,
que darei os matizes da realeza,

na madeira, e os contornos do teu colo,


tão perfeito, farei correspondente,
à escultura da própria irmã de Apolo.

102
ÚLTIMO VERSO DE AMOR

Quando, vencido pelo teu olhar,


tomaste por inteiro os meus sentidos,
fui compensado pelos tempos idos
em que vivi no mundo sem te amar.

Se me deixas hoje, hás de matar-me.


Oh, deixa-me amanhã, eu te suplico,
em nome deste amor que é de ninguém.

Porém amanhã, na hora em que partires,


ignores meu pranto derramado;
segue feliz, mudar não é pecado.

Mas, se ali na rua, aos pés ajoelhado,


do teu divino vulto cobiçado,
eu implorar por teu amor também,

olha de largo: se me censurares,


direi teu nome ante os letais olhares,
no último verso de amor que eu fiz a alguém.

103
POSFÁCIO

DO SIMPLES E DO SINCERO1
João Filho
Poeta e Escritor.
Autor, dentre outros, de A Dimensão Necessária
(poesia, 2014) — Prêmio da Biblioteca Nacional, 2015.

Na simplicidade dos versos do poeta Renã Leite


Corrêa Pontes há a condição reflexiva do homem que ele
é. É nessa perspectiva — e já sensivelmente expressando
a postura adotada neste Quatro Atos para um Oásis &
Desertos — que o poeta revela, logo no início:

Talvez por ser grito


em um mundo incompleto,
o poema viva mais
do que o decreto.

Se há gritos, há também murmúrio, e o poeta


consegue ser veemente ou suave. Nesse mundo incerto
talvez o poema tenha uma sobrevida, pois vem de con-
fluências literárias robustas: a tradição poética brasileira
e a hispânica despontam ao longo do livro — de Mario
Quintana a César Vallejo e muitos outros. A defesa, logo,
amor, do mundo amazônico em suas variadas dimensões
— humana, ambiental, simbólica etc. — é visível em vários

1 Originalmente publicado em: Quatro Atos Para um Oásis & Desertos/


Editora: Mondrongo/ Itabuna/ ISBN: 978-8593552-87-8. Com adaptações
para posfácio por Claudio Sousa Pereira. (N. do E.)

105
momentos desta terceira entrega poética de Renã Pontes.
A crítica social é muitas vezes bem direta, no entanto, não
deixa de lançar uma visão terna, sem falsa lamúria, para
aqueles que sofrem e quase sempre não têm voz. Assim
também certa visão de espiritualidade secularizada sem
perder de vista, e com coragem, o grande mistério de ser-
mos e estarmos vivos. Essas duas posturas diante da vida es-
tão conjugadas na primeira seção “Oásis e desertos”. O po-
ema “Impotência” alcança status simbólico e pode ser lido
em dupla clave: política e metafísica. Vale citá-lo inteiro:

Indenização nenhuma compensaria.


Dinheiro nenhum do mundo poderia comprar.
Nenhuma ponte sobre o mar seria mais desafia-
dora.
Milhões de gritos não dilatariam mais as pupilas.

Duas eternidades de silêncio


não seriam capazes de dizer mais
que aquela indiferença com mãos de ferro,
extraída do abismo mais profundo,
vestindo aquelas luvas de pelica.

Eu estava tão sofrido,


que, vencido, não consegui sofrer mais.

A voz destes versos pode ser de todos e de nin-


guém: do sujeito lírico que sofreu algum tipo de injustiça
ou que exacerba sua condição de isolamento no cosmo e
o seu clamor mudo. A primeira estrofe sugere um movi-
mento centrífugo, pois parte de duas palavras do mundo
burocrático e econômico (indenização, dinheiro) para se
ampliar num imagismo que ecoa o lirismo de tom uni-

106
versal (ponte sobre o mar, milhões de gritos, duas eterni-
dades de silêncio) para se quedar na debilidade de não po-
der sofrer mais. E, aqui, o movimento inicial de abertura
se fecha bruscamente na sequência de imagens — mãos de
ferro, abismo mais profundo, luvas de pelica. Aquela im-
potência, porém, numa particularidade própria da poesia
moderna, logra expressar-se. Tornou-se poema.
A seção “Nós”, por sua vez, traz a influência di-
reta do neorromantismo de Vinicius de Moraes. Em for-
ma fixa ou livremente, há versos para uma mulher total
que “até na ausência pode ser notada”, mas pode também
perturbar com “névoas, miragem, um calmante com ál-
cool/que confunde o que penso”, porque “sem ela não
me arrisco a um passo”. A ausência é um dado constante,
que contrasta com o anseio de eternidade e com o desejo
interdito ou realizado. O mundo amazônico e os seus
múltiplos elementos, como dito acima, recebem um tra-
tamento que contém o fôlego do epos; esta característica
se faz mais patente na seção “Do êxtase ao êxodo”. Há
momentos que remete o leitor ao compasso e força de
Gonçalves Dias de “I-Juca Pirama”:

Crivados de manchas,
cansados, sem prumo
perderam seu rumo,
partiram, fugiram,
caíram, morreram,
os bravos de outrora.

A cultura indígena e inúmeros termos tupis são


poetizados; a força e o engenho guerreiro, a beleza femini-

107
na — é o êxtase; a aculturação do povo da floresta, a doen-
ça, a morte etc. — é o êxodo. Na última seção “Poemática
Amazônica”, as árvores, pela voz do poeta, falam, e não
importa se ainda fincadas em suas raízes ou derrubadas. É
nessa seção que está o poema “A meu pai morto”, que vale
ser citado na íntegra:

Toda a herança de família


que eu guardo em um altar,
são: um lampião que brilha
e uma trova potiguar

que no meu sangue fervilha,


lembra papai a cantar
a canção de maravilha,
cantada à beira do mar.

A trova que me seduz


chega num facho de luz
e dissipa a escuridão.

São lindos versos sinceros,


rededilhados, sem erros,
nas cordas do coração.

Este soneto é de uma singeleza musical como-


vente. A trova hereditária rebrilha no filho, e é através
dele que a memória do povo, no caso, o potiguar, retorna
em estrofes redondas, numa fluência harmônica de que
só a tradição popular é capaz. Desse modo, é possível di-
zer que a mimese entre forma e conteúdo é invulgar. Da
boa sinceridade em poesia é que é composto este livro de
Renã Pontes.

108
UMA FORTUNA CRÍTICA EM QUATRO
ATOS PARA OÁSIS & DESERTOS 2
Prof.ª Dr.ª Luísa Galvão Lessa Karlberg
Presidente da Academia Acreana de Letras - AAL

Passadas muitas décadas — desde quando


nossas letras estampavam valiosamente os periódicos
acreanos, mostrando poemas esperados e muito lidos,
de Juvenal Antunes, J. G. de Araújo Jorge, Laura Viter-
bo — eis que ressurge a poesia profícua de Renã Leite
Corrêa Pontes, anunciando os semitons de regene-
ração da literatura deste recanto da Amazônia, desta
vez, em livro. Não existe entidade mais resistente, em
uma sociedade, do que a cultura, normalmente des-
considerada e aprisionada, tende a renascer como um
lótus que nasce da lama. É deste modo que fenecem e
ressurgem as artes de forma e conteúdo: é Deus garan-
tindo a continuidade do movimento da grande roda
da história. Quatro Atos para um Oásis & Desertos, de
Renã Pontes, é uma prova deste fenômeno de ressurgi-
mento e renovação. Para valorizar academicamente o
advento deste importante material poético, ocupei-me
de dissecá-lo, iniciando pelo estudo semântico dos
verbetes “oásis” e “desertos” — termos inquietantes e
abrangentes em potência de significação.

2 Originalmente publicado em: Quatro Atos Para um Oásis & Desertos/


Editora: Mondrongo/ Itabuna/ ISBN: 978-8593552-87-8. Com adaptações
para posfácio por Claudio Sousa Pereira. (N. do E.)

109
“Oásis” remete a um ambiente fértil em área de-
serta, graças à presença da água. Assim, quando o poeta
Corrêa Pontes convida o leitor à reflexão sobre oásis, rios,
lagos, o elemento água, significa chamar à atenção para a
beleza do fruto, do milagre da vida, a “água” que alimenta
e rega a terra, mata a sede e faz renascer a natureza. O rio
oásis — magnânimo personagem das paisagens acreanas
— que antigamente brindava o cidadão com o acesso li-
vre às suas águas não poluídas, que traziam, sazonalmen-
te, a fartura das piracemas, representação maior de uma
gama de eventos de grata memória do Acre ancestral — é
apresentado no terceiro ato “Poemática Amazônica”.
O segundo caminho descerra-se a partir da aná-
lise do nome “desertos” — substantivo plural que significa:
região seca, de escassa diversidade e pluviosidade. Apon-
ta, provavelmente, não para um deserto tangível, como o
Atacama, Saara e Namíbia, mas, antes, indica um provável
“deserto moral”, que causa angústia ao cidadão brasilei-
ro, ao poeta, aqui enfastiado com a ameaça constante da
corrupção dos valores, condição anômala que beneficia,
apenas, aqueles que, invocando a privacidade para pecar,
molham o pão no suor dos trabalhadores, condenando
jovens vulneráveis ao desperdício dos talentos e frustra-
ção vocacional, ao medo do futuro, a perda da esperança.
Tudo isso são particularidades que não passam desperce-
bidas ao olhar esquadrinhador do poeta-romancista Cor-
rêa Pontes, quando oferece, neste livro, um tributo àquilo
que aparentemente não pode ser mudado, mas pode ser
poetizado (denunciado), conforme brinda o leitor nos
quartetos do seu soneto “ Condenação do não ser” (p.35):

110
Quando me fere o teu sorriso agro,
ante a minha impotência, eu sofro e engulo
o meu critério, meu juízo nulo,
e o sal que escorre no meu rosto magro.

volta-me a azia, perco a fé, me anulo,


quando me feres com tua confiança,
quase chorando como uma criança,
por teus esforços de retorno chulo.

Ante esta análise, “Condenação do não ser” salta


como um retrato, em cores vivas e fosfóricas, do senti-
mento de abatimento que acomete os mortais frente ao
inevitável e, apenas a magia da poesia internalizada, pare-
ce fazer o autor superá-lo [esse sentimento de abatimento
e desesperança] e comportar-se não como um incluído no
grupo dos reféns das circunstâncias, mas como um mo-
derno alquimista que testemunha os problemas sociais do
seu tempo, transmutando, pela palavra, o chumbo dos di-
lemas existenciais no ouro do espírito. Desejoso de que a
beleza e a perfeição contidas nos versos que compõem Oá-
sis & Desertos, livro instrutivo e educativo, redima o leitor,
ao menos, dos dramas e tragédias do tempo atual.
Ressalte-se, ainda, que este livro traz provas da
maturidade que Renã desenvolveu no domínio dos versos
alexandrinos, modalidade poética clássica, que reclama do
seu autor um excepcional domínio no trato com as palavras.
Talvez, por esta dificuldade, o verso alexandrino seja pouco
apresentado hoje em dia, principalmente quando o públi-
co leitor reclama a harmonia da sua beleza originária, com
domínio da técnica que o poeta do Quinari apresenta, por
exemplo, nos versos 13 e 14 do seu soneto “Desencontro”:

111
[...]
agora que encontrei em outra o meu destino,
tu voltas para mim, como que, por encanto.

Ao contemplar e cotejar “Último Verso de Amor”


(retirado do conjunto pelo editor), poema que aformo-
seiava a seção “Nós” — título usado, também, pelo estro
de Guilherme de Almeida — verifica-se que este imortal,
o sucessor de José Higino de Souza Filho, na AAL, a quem
dedica um poema na p. 102, “A Luta Contra os Astros”, faz
uma construção bela, em todos os aspectos: semânticos,
estilísticos e recursos literários. Aqui, Renã Leite Pontes
eleva-se, poeticamente, aos clássicos da poesia romântica
brasileira, tanto no metro e melodia, quanto na beleza in-
superável da expressão, adoração a uma diva quase rare-
feita (p.74 – Amor sem Par), mas capaz de despertar no
poeta o amor sublime, como aquele retratado por J. G. de
Araújo Jorge, em “Os versos que te dou”:

Se neste tempo eu já tiver partido


[...]
podes colher no chão todas as flores,
pois são os versos de amor que ainda te dou.

Ao que Corrêa Pontes, prontamente, responde:

Se ali na rua, aos pés ajoelhado,


do teu divino vulto cobiçado,
eu implorar por teu amor também.

Olhes de largo, se me censurares,


direi teu nome ante os letais olhares,
no último verso de amor que eu fiz pra alguém.

112
E esta semelhança ocasional entre os poemas
que Renã insere no livro e os clássicos que se conhecem,
o alto padrão literário apresentado em Oásis & Desertos
é prova incontestável do que dissemos de início: a reto-
mada da poesia acreana em nova clave.

Considerações sobre Epifania

Na tentativa de explicar qual a natureza da ma-


téria, surgiram várias teorias. Uma delas foi criada por
um filósofo grego, Empédocles, por volta do século V
a.C. Segundo ele, tudo que existe no universo seria com-
posto por quatro elementos principais: terra, fogo, ar e
água. Surgiu daí a Teoria dos quatro elementos.
Por volta de 350 a.C., outro filósofo grego muito
conhecido, Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), retomou
essa ideia e acrescentou que cada um desses elementos ti-
nha um devido lugar na natureza e procurava permanecer
nela ou encontrá-la. Por exemplo, a terra estava no centro
dos quatro elementos, em seguida vinha a água, acima vi-
nha o ar e, por último, acima de todos, o fogo.
Gaston Bachelard (Bar-sur-Aube, 27 de junho
de 1884, Paris, 16 de outubro de 1962) foi um filósofo
e poeta francês. Seu pensamento está focado, principal-
mente, em questões referentes à filosofia da ciência. Ele
traz um “novo espírito científico”, portanto, encontra-se
em descontinuidade, em ruptura, com o senso comum,
o que significa uma distinção, nesta nova ciência, entre o
universo em que se localizam as opiniões, os preconcei-
tos, enfim, o senso comum e o universo das ciências, algo

113
imperceptível nas ciências anteriores, baseadas, em boa
medida, nos limites do empirismo, em que a ciência repre-
sentava uma continuidade, em termos epistemológicos,
com o senso comum. A “ruptura epistemológica” entre a
ciência contemporânea e àquela do senso comum é uma
das marcas da teoria bachelardiana. A realidade social é
objeto de avaliação por todos aqueles que vivem na socie-
dade, o que torna a tarefa do cientista social ainda mais
difícil, pois deve construir seu conhecimento apesar e con-
tra o senso comum; apesar e contra a realidade. Também a
inglesa que viveu em Nova Zelândia, Katherine Mansfield
(1998), trabalhou bastante sobre a epifania em obras poé-
ticas e ressalta o valor imensurável dos quatro elementos
para a riqueza da literatura que traduz, sempre, a vida.
Igualmente, pode-se dizer que nos momentos
epifânicos de “Quatro atos para um Oásis & Desertos” há a
apreensão do mundo desvinculado do tempo, mantendo
o objeto tomado pelo poeta no curso de sua beleza eter-
na e imutável. Assim, a perfeição desejada é obtida nos
versos da obra poética, pois o tempo, fator causador da
degenerescência, está momentaneamente afastado (por-
quanto parado para o olhar esquadrinhador do poeta).
Na epifania, tem-se, então, a eliminação do tempo causa-
dor de mudanças. Na citação que vem a seguir, Mansfield
(1998) descreve o que denomina “eternidade do momen-
to”, a “suspensão” do fluir temporal, o “fora-da-vida”, os
“lampejos” — que são, acredita-se, termos corresponden-
tes à epifania a que se refere o presente estudo.
Poeticamente, poder-se dizer ser possível impe-
dir a marcha do tempo: é o que parece ocorrer durante

114
a epifania, cuja concepção aproxima-se bastante do que
Bachelard denomina “devaneio cósmico”, que é um esta-
do de alma em que se escapa do fluir temporal.
Epifania  significa  aparição ou manifestação de
algo, normalmente relacionado com o contexto espiritu-
al e divino. Aqui, a epifania centra-se nos quatro elemen-
tos que unidos formam o mundo. E se um único homem
fosse capaz de controlá-lo ele moveria montanhas, o céu
e a terra para transformar o mundo. Talvez aqui esteja a
maior mensagem do poeta Corrêa Pontes: sentir e dizer
das dores do Mundo, na busca de transformar tudo em
paraíso de amor e paz. De outra parte, o poeta sente que
essa epifania, do ponto de vista filosófico, significa uma
sensação profunda de realização, no sentido de compre-
ender a essência das coisas, boas ou não. Ou seja, a sen-
sação de considerar algo como solucionado, esclarecido
ou completo, porque está acontecido.
A Epifania também pode ser considerada como
um “pensamento iluminado”, tido como uma inspiração
divinal que surge em momentos de impasse e complexi-
dade, solucionando as frustrações e dúvidas sobre deter-
minada angústia. Aqui, neste romance-poema, o escritor
sente as mazelas do mundo, da vida e, de certo modo, não
as soluciona, mas confia no poder revelador das palavras,
ao denunciar, de forma literária, os deslizes da vida.
Nessa direção, os ingleses costumam utilizar
muito este termo dizendo: “I just had an epiphany”, no
sentido de “pensamento indescritível e único”. Os ele-
mentos da natureza podem ser associados aos estados
físicos da matéria, todos presentes na obra que respira,

115
transborda a vida na terra, o ar necessário, a água para
regar a vida, e o fogo que corre em chamas, ora na vida,
ora nas veias do poeta: Terra → Sólido/ Água → Líquido/
Ar → Gasoso/ Fogo → Plasma.

Epifania na literatura

Na literatura, epifania  é uma manifestação su-


blime vista por um olhar inquiridor sobre um núcleo ou
insight, visando a produção de um texto, oportunizando
ao leitor a apreensão de uma ideia eminente. Assim, ele
traduz, por meio de palavras, imagens formais e materiais
originárias das percepções da alma, ora pelo novo inespe-
rado, buscando a descrição da natureza externa ao ser, ora
pela busca interna que investiga o interior desse mesmo
ser. Essas são forças imaginantes que impulsionam a men-
te poética, dando vida à causa formal e material.
Com isso, essas tais forças imaginantes, atu-
ando, em conjunto, funcionam como chamariz a en-
volver o leitor. De outro modo, o devaneio, conside-
rado menos nobre que a epifania, não poderia levar a
cabo sua essência de sedução, necessitando, por isso,
apoiar-se nas exuberâncias da beleza formal de versos,
como explicita Bachelard.
Esse pensamento parece ganhar impulso ao se
considerar a função poética da linguagem, assinalada
por Jakobson e largamente difundida no nicho da ciência
da comunicação, visto que a citada função da linguagem
tem como centro gravitacional a forma de apresentação
daquilo que se comunica. Ou conforme Bachelard:

116
Com efeito, acreditamos ser possível estabelecer, no
reino da imaginação, uma lei dos quatro elemen-
tos, que classifica as diversas imaginações mate-
riais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à
água ou a terra. E, se é verdade, como acredita-
mos, que toda poética deve receber componentes
— por fracos que sejam — de essência material, é
ainda essa classificação pelos elementos materiais
fundamentais que deve aliar mais fortemente as
almas poéticas. Para que um devaneio tenha pros-
seguimento com bastante constância para resultar
em uma obra escrita, para que não seja simples-
mente a disponibilidade de uma hora fugaz, é pre-
ciso que ele encontre sua matéria, é preciso que um
elemento material lhe dê sua própria substância,
sua própria regra, sua poética específica.

Deste modo, o poeta assimila — e transmite por


sua escrita — a potência originária, criativa do elemento água
como fonte de vida. E, para tanto, uma das formas comuns
que a poesia toma para traduzir isso é a escrita, nos moldes
que performam este gênero, em consonância com um meca-
nismo natural de associação material. Esse processo é larga-
mente esclarecido nos escritos de Bachelard. A proposta do
estudioso é realizar o que chama de “psicanalisar a poesia”,
na percepção da complexidade da vida, pela necessidade pre-
mente de sair da passividade aos perigos e desafios, alcançan-
do, pelo esforço, a harmonia com o cosmo.
Para Bachelard (1999) o devaneio se diferen-
cia dos sonhos e o ponto que marca essa diferença é a
associação aos quatro elementos (água, terra, ar, fogo).
O autor aponta para uma doutrina que possa revelar a
estreita relação que se guarda entre os temperamentos

117
refletidos no devaneio poético e a doutrina dos quatro
elementos físicos, esclarecendo que:

Em todo caso, as almas que sonham sob o signo do


fogo, sob o signo da água, sob o signo do ar e sob o sig-
no da terra revelam-se muito diferentes entre si. Em
particular, a água e o fogo permanecem inimigos até
no devaneio e, aquele que escuta o regato dificilmente
pode compreender a canção das chamas: eles não fa-
lam a mesma língua.” (BACHELARD 1999, p. 132).

Esses pressupostos se apresentam, inicialmente,


na Psicanálise do fogo e se repetem em água e terra. Gomes
(2015) esclarece a forma como Bachelard organizou esse
pensamento no primeiro livro, em que revela as principais
imagens do fogo, dando-lhes as seguintes denominações:
o complexo de Prometeu, o desejo de possuir o fogo con-
tra a vontade dos deuses (1999b, 11-19; 1990b, 89-112);
o complexo de Empédocles, o desejo irracional de se dei-
xar consumir pelo fogo (1999b, 21-31; 1990b, 113-142);
o complexo de Novalis, o fogo associado ao amor corres-
pondido (1999b, 33-63), o complexo da dissociação entre
o fogo sagrado, a luz divina e as chamas que ardem nos
infernos, o sexo (1999b, 145).
Deste modo, o destino humano se assemelharia
ao desaparecimento revelado na imagem de águas pro-
fundas, ou a continuidade pela infinidade dessas mes-
mas águas. Adiante este detalhe se vislumbra, na obra de
Corrêa Pontes, ora analisada, onde se percebe que os ter-
mos utilizados na poemática narrativa mantêm estreita
ligação com os elementos da matéria, o que enriquece,

118
significativamente: o olhar, a dor, a esperança, inclusive
a fé do autor de Quatro Atos para um Oásis & Desertos.
No conjunto, Renã Pontes valoriza as imagens
da água, como fonte de vida e alimento, junto aos demais
elementos, ao tempo em que descreve imagens desse ele-
mento em singularidade, como, por exemplo, (p. 21) —
“As águas cristalinas que, em cascatas/ [...] Todos depen-
dem destas águas claras/ as matas verdes/ flores e searas”.
Vejam que beleza desnuda o poeta com o elemento água,
água é vida, água é bíblico: Jesus transformou água em
vinho no casamento em Caná da Galileia. É o primeiro
sinal (João 2, 7:10), uma epifania do Verbo feito carne.
Jesus não transforma só água em vinho. A água é a água
da purificação dos Judeus, e quando Jesus a transforma
em vinho ele não está apenas manifestando poder divi-
no, mas manifestando sobre a transição das regras de pu-
reza do velho para a celebração jubilosa do novo. Aqui o
poeta, ao trazer o elemento ÁGUA quer traduzir a vida,
com os amores e os dissabores de demolição, ebulição,
mas com esperança, fé e amor no coração.
Ora, sabe-se que os corpos, em vida, possuem
predominante composição aquosa em sua formação
química e que, na morte, tornar-se-ão, materialmen-
te, pó, pela decomposição. Porém, as operações se-
mânticas, (escolhas de termos) inerentes ao devaneio
poético, apresentado em sua forma escrita, permitem
riqueza de expressividade tal que o oposto se torna ób-
vio, capaz de revelar uma nova ideia formada na men-
te poética e transcrita graças às associações com um
dos quatro elementos.

119
A epifania em Quatro Atos para um Oásis & Desertos

O vocábulo epifania vem do grego epi (acima)


e phaino (aparecer, brilhar); as duas palavras resultam
em epipháneia (manifestação, aparição). A definição de
epifania que a maioria dos dicionários de língua por-
tuguesa traz é religiosa, neles a epifania é sinônimo de
“aparição ou manifestação divina” (Novo Dicionário Au-
rélio, por exemplo). No Dicionário Contemporâneo de
Língua Portuguesa, de Caldas Aulete (1958) e no Dicio-
nário Mor de Língua Portuguesa, de Candido de Olivei-
ra (1967), encontra-se a definição litúrgica de epifania
como sendo uma comemoração religiosa da “manifesta-
ção de Jesus Cristo aos gentios”. Mas, por extensão, os
mesmos dicionários designam a epifania como “revela-
ção, manifestação”.
É esse último sentido de revelação, nos olhos do
poeta do Quinari, que reflete os fatos da vida, no contex-
to próximo (ou distante), conjugando as formas e a ma-
téria, na jurisdição do romance-poema protagonizado
pelo autor, onisciente e onipresente, que tudo percebe e
tudo sente, em seus domínios: Seção 1 — Oásis & Deser-
tos (27 poemas); Seção 2 — Nós (11 poemas); Seção 3 —
Do êxtase ao êxodo (4 poemas) e Seção 4 — Poemática
amazônica (17 poemas). Seção 5 — Tributo a Góis e seus
Poetas (5 poemas).
Toda esta urdidura se traduz, ainda, em esforço
para realçar as figuras de linguagem utilizadas enrique-
cedoramente nas narrativas, transparecendo os compo-
nentes da retórica aristotélica: pathos, logos e ethos, isto é,

120
a construção das imagens de personagens e de cenários,
a comunicação que perfaz o diálogo com os leitores da
narrativa, buscando atingir e modificar seu estado emo-
cional, pela simples ou complexa utilização da palavra.

Epifania nos quatro elementos:

Elemento Ar:
p. 25 — Um lindo jardim/ um planeta afundando em
um mar reagindo/ ar sufocante (calor); p. 31 — Dobra
o calor (ar) que esta areia gera; p. 50 — A primeira bati-
da deu-me a vida/ quando inalei o frio oxigênio (ar que
respirou); p. 59 — porque a hemoglobina/ tem mais afi-
nidade/ com a fumaça (ar e fogo); p. 69 - Respiro (o ar)
o teu Dior, teu cheiro (no ar) fixado; p. 70 — Te procuro
nos campos que exalam teu cheiro [...] que me engasgo
no ar que do teu corpo exala; p. 105 — Deus está no calor
do Atacama (ar).

Elemento Água:
p.21 — Na cordilheira que alimento o lago [...] sem as
geleiras (água sólida) que garantem a vida/ nas águas
cristalinas que, em cascatas [...] perambulando as vidas
abstratas (personificação) / E, um solitário peixe em
meio ao rio [..] todos dependem destas águas claras; p.38
– imaculada/ como as águas passadas/ do meu Quinari;
p.42 — cascata/ que não é de águas pluviais, /é um mar
de lama/ que mata Mariana; p. 53 — Frente a Judia, desa-

121
guando em dique; p.81 — subiu na ubá, / venceu muitas
águas, / cruzou muitos rios, / seu rumo, a cidade.

Elemento Fogo:
p.23 — lá em cima / as nuvem de fumaça/ não se dissipa-
rão (o fogo simbólico está presente nos versos de amor...
Também no clima, no sol); p. 37 — Gosto mais das ver-
sões:/ do carro de fogo de Elias; p. 44 — Matarei a fome
do fogo, ao menos uma vez [...] quando for me queimar
no fogo ardente; p. 58 — o ar sufocado/, sufoca (alitera-
ção), até a vegentogênese do alimento que me envenena;
p. 77 — O amor é um fogo na carne do boi; p. 87 — Olha
só. Temos peçonha de surucucu-de-fogo; p. 88 — chi-
chuacha, cipó de fogo, jucá, pau barbado, cubiu.

Elemento Terra:
Belém também celebrou a Epifania. Foi lá que, há mais
de 2 mil anos, uma estrela brilhou indicando aos Reis
Magos o local da manifestação de Deus. Aqui, em Oásis
& Desertos a Epifania da terra retrata a vida humana no
Planeta, conquistas e perdas. Assim o poeta de Oásis &
Desertos, igualmente os Reis Magos — guiados pela es-
trela no céu e pela estrela de uma grande esperança no
coração, os Magos começam a caminhar. Na sua busca,
examinam o céu e auscultam o próprio coração. No caso
acreano, o caminhante move-se e desempenha-se por-
que tem perguntas e inquietações no coração, como dei-
xa vazar em muitos versos: p. 24 — O desafio de manter
a esperança/ neste deserto privatizado; p. 29 — o barro
não julga (Personificação)/a forma e a fornalha (alite-

122
ração); p. 32 — O mar pôs-se entre a terra e os meus
amigos; p. 35 — não nasceu flor no roseiral de espinhos/
desta terra socada por mil cascos; p. 42 — a folha é da
cor da pele,/ a folha, em terra, que suga a cor da terra;
p. 51 — que, descendo, aperta o laço/ de pedra, terra e
buquê; p. 66 — encontrar céu e terra em teu regaço; [...]
e treme a terra,/ à ação da mão enérgica,/ guerreira; p. 88
— Mmmm! Na tua terra,/ como vocês educaram o sena-
do de vocês?; p. 103 - Herdei, muito moço, a figueira im-
ponente,/ do meu bisavô, num ranchinho vetusto ( uma
terra),/ de barro batido, onde um dia, ao poente,/brotara
da terra em forma de arbusto [...] tombou terra abaixo
a grande figueira./ Descendo ao terreno batido que her-
dei,/ montanha de pedras, cavando (na terra) encontrei,/
prendendo as raízes no raso da terra; p. 104 — “Cantai
neste Natal, sinos festivos, /na voz dos hinos que é a voz
dos anjos/as virtudes do Filho prometido/— o Cordeiro
de Deus, a água viva [...] laço entre terra e céu que se
renova/ nos séculos sem fim de esperança/ refletida na
vida das crianças.
Parafraseando a máxima filosófica de René
Descartes3, esta obra possibilita a seguinte interpretação:
a existência precede o entendimento do ordenamento
das relações humanas ou, melhor dizendo, nas palavras
de Sartre, a existência precede a essência. Assim, o nosso
existir pressupõe a existência de outros. E essa compreen-
são da vida, em conjunto, em grupos, na terra, na água,
no ar, no fogo, conforme está posto no livro, em quatro

3 O criador do racionalismo cartesiano sustenta que o homem não pode


alcançar a verdade pura através de seus sentidos.

123
Campos Semânticos ou Significativos – rico em figuras
de linguagem — denota a consciência humana sobre a
existência do AMOR. A vida precisa melhorar, sempre,
e para tanto as pessoas e o mundo necessitam mudar. E
somente os seres humanos, pela educação, leitura, arte,
linguagem, literatura, ética, respeito, cidadania, serão ca-
pazes de fazer essa travessia.
Então, nesta obra, percebe-se a importância do
poder da imaginação, que dá sentido a um mundo que,
sem este poder de imaginar, é um mundo estéril. Logo,
ter imaginação é condição sine qua non para transformar
a experiência, rica de nuances e detalhes, em sabedoria,
que faz valer a pena nossa existência.
Dito isto, deseja-se expressar que os humanos
são, pois, responsáveis por eles mesmos. E as escolhas
feitas trazem, consigo, consequências que podem inter-
ferir na existência do outro, por isso, talvez, Sartre tenha
dito que as pessoas estão condenadas a serem livres nas
escolhas. Ainda, nesta obra, pode-se aduzir que o poeta-
-romancista se debruça sobre a experiência de vida, do
seu olhar atento sobre o Brasil, para oportunizar, em qua-
tro capítulos necessários, um terreno propício a manifes-
tação da Epifania sobre os elementos da vida. Também,
um vasto campo para estudos semânticos, estilísticos,
literários, filosóficos, históricos, antropológicos e sociais.
Distante de exaurir as complexas questões que
envolvem a linguagem de Quatro Atos para um Oásis
& Desertos, seja no plano da apreciação ou ressignifica-
ção das ideias ou vocábulos utilizados na construção do
romance-poema, deixo em suspensão esse breve estudo,

124
augurando que outros olhares acedam ao desafio de pas-
sar além da proposição deste estudo-posfácio, originando
outros olhares sobre o livro, no sentido de melhor explorar
os recursos semânticos, estilísticos e epifânicos dessa lite-
ratura de autoria amazônica.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A água e os Sonhos. Tradução Antô-


nio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. A poética do devaneio, São Paulo: Martins Fon-
tes, 1996, p. 105.
BALLY, Charles. Linguistique générale et linguistique
française . Berne: Éditions Francke Berne, 1965.
CÂMARA, J. M. Princípios de Linguistica Geral. 7. ed.
Rio de Janeiro: Padrão, 1989.
DUCROT, Oswald et al. Les mots du discours. Paris: Mi-
nuit, 1980.
______. Esboço de uma teoria polifônica da enunciação.
In: O dizer e o dito.
GUIRAUD, Pierre. A estilística. Trad. de Miguel Maillet.
São Paulo: Mestre Jou, 1970.
______. A semântica. São Paulo, 1980
MANSFIELD, Katherine. Bliss & other stories. Great Bri-
tain: Wordsworh Editio.

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Impresso para a Editora Mondrongo em junho de 2021
no formato 15 x 22 em papel Pólen Bold 90 gr no miolo e Cartão
Supremo na capa. As fontes tipográficas usadas foram a Arial, Augustus,
Cambria, Minion Pro e Times New Roman nos títulos e no conteúdo.

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