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e buquê
Esta é uma publicação do Sodalício da Academia Acreana de
Letras - AAL, Rio Branco - AC; Academia dos Poetas Acrea-
nos - APA, Rio Branco - AC e International Writers and Ar-
tists Association, IWA, Toledo, OH, EUA.
Antologia poética
1ª Edição
Bahia / 2021
Nenhum trabalho pode ser medido pelo tamanho da empresa que o executa,
mas pela coragem e confiança no que faz. É assim que, inspirados pela
máxima pessoana, “põe quanto és no mínimo que fazes”, trabalhamos
cotidianamente oferecendo ao leitor livros de qualidade e respeitando o
autor naquilo que ele tem de mais sagrado: os seus sonhos.
www.mondrongo.com.br
ISBN 978-65-86124-57-6
CDU: 869.0(81)-1
CDD: 869.917
MONDRONGO
Travessa Manoel Fogueira, 177 / 102 | Edif. Inah
Centro | Itabuna - Bahia | CEP: 45.600-148
A Luísa Karlberg,
pela parceria sempre.
PREFÁCIO
13 | Por Wladimir Saldanha
I – POEMAS DA PEDRA
23 | Pietá
24 | Rasputin
27 | Escorraçado
28 | Zanga-burrinho
30 | Austeríssimo titã
31 | Quebra-cabeça
32 | O tema de Nietzsche
33 | Damiens versus poder
34 | Eu vou embora
35 | Só porque
36 | Lendas antigas: a escolta
37 | Custe o que custar
38 | Inania verba, glosa de Bilac
39 | Grau 33
40 | Tua imagem
43 | Desertos e oásis
44 | Condenação do não ser
45 | Impotência
46 | Nas vinte e quatro horas
47 | Autobiografia
48 | Escorraçado 2
51 | Último poema
II – POEMAS DA TERRA
55 | Do êxtase ao êxodo
59 | Calíope
60 | Chuvas tórridas
61 | A árvore da praça
62 | Vida e morte de Chico Mendes
63 | O último Soldado da Borracha
64 | A garrafa de mel falsificada
66 | Morte e vida seringueira
69 | A culpa
71 | Saudade remoída
73 | Oásis e desertos
74 | Pesadumbre
75 | O medo
76 | Jurema
77 | A peste
78 | Isolados: ritual de passagem
81 | O xamã
83 | Centenária
85 | Árvore infor/madeira
POSFÁCIO
105 | Por João Filho
109 | Por Luísa Karlberg
AUTOFAGIA
Wladimir Saldanha1
23
RASPUTIN
24
Tanto venero o fruto verdejante
— que julgo merecer das castanheiras,
só penso em merecer, mas não mereço —
25
Tanto venero a vida que a desprezo,
nem morto esqueceria esta inversão
dos deuses natimortos... Eu amo aquele
26
ESCORRAÇADO
27
ZANGA-BURRINHO
28
Na verdade,
por cima se vai para cima
e às vezes se vai para baixo.
Por baixo, se vai para baixo
e sempre se vai para baixo.
29
AUSTERÍSSIMO TITÃ
30
QUEBRA-CABEÇA
31
O TEMA DE NIETZSCHE
32
DAMIENS VERSUS PODER
33
EU VOU EMBORA
34
SÓ PORQUE
Só porque
o vento norte sopra favorável
e as tuas asas
são maduras do tempo
e as minhas
ainda malformadas,
voas alto,
me humilhas,
me estranhas,
35
LENDAS ANTIGAS: A ESCOLTA
36
PROCURA
37
INANIA VERBA, GLOSA DE BILAC
VERUM FACERE
38
GRAU 33
39
TUA IMAGEM
Independente
da promessa
de um céu póstumo,
do egoísmo
de escapar sozinho
deste lugar ermo,
Tua imagem,
Tua sombra,
pouco me importa,
se não muda o que sou.
Apresenta-Te
com Tua imagem
descortinada;
humana forma,
com a mão estendida.
Estou pretérito
de mentiras
40
e confusões
sobre Tua imagem:
Se eu pudesse fazer-Te
e não o contrário.
Perdão!
Usarias palavras,
e não apenas
cinema mudo.
Se eu pudesse fazer-me,
me daria os pés de Ulisses
sobre a balsa
e me adornaria
com os dedos de Davi,
harmonizando
mãos prometedoras.
41
Não me concebo assim:
chamando Teu nome
por diversos nomes,
em vão,
sinto-me um pagão
desbravador
do desespero.
Porque o homem
não dita
a própria vida,
o barro
não julga
a fôrma e a fornalha;
42
DESERTOS E OÁSIS
43
CONDENAÇÃO DO NÃO SER
44
IMPOTÊNCIA
45
NAS VINTE E QUATRO HORAS
46
AUTOBIOGRAFIA
O tempo se encarregou
da aparente normalidade
que julgo desfrutar
47
ESCORRAÇADO 2
48
a vida ali é uma madrasta em ânsia,
maltrata os indefesos por ciúme.
É tão funério o seu grande azedume
— nos rouba até as cenas da infância.
49
os mancebos revoam em debandada
dizendo: Deus é pai, eu escapei!
50
ÚLTIMO POEMA
51
iI
poemas da terra
DO ÊXTASE AO ÊXODO
Os olhos do bravo
a ninguém mais veem,
mas, somente a ela,
tão somente a bela,
vestida de palhas.
55
Soam os gritos,
bufam mil cavalos,
ribombam os bumbos,
prorrompem os instrumentos de sopro,
saudando a vitória,
e, logo,
pequenos e velhos
mergulham na glória
da paz pela guerra,
curvando-se às prendas
da filha Naiá
norte — na vitória.
II
56
Com pano e vidro,
seduziram shumayas e anciãos.
imensos descampados
manchados de óleo,
tecidos, tertúlias,
comida com sal,
foices, chapéus,
botas, cordas,
pistolas, arpões.
Crivados de manchas,
cansados, sem prumo,
perderam seu rumo,
partiram, fugiram,
caíram, morreram,
os bravos de outrora.
III
Entre os desamparados,
a maternal figura
(com seus curumins)
partiu da esplanada
dos tempos de glória,
57
subiu na ubá,
venceu muitas águas,
cruzou muitos rios;
seu rumo: a cidade.
58
CALÍOPE
59
CHUVAS TÓRRIDAS
60
A ÁRVORE DA PRAÇA
61
VIDA E MORTE DE CHICO MENDES
62
O ÚLTIMO SOLDADO DA BORRACHA
e cuidados
como sempre há recebido;
trouxe-te sedas
das mais lindas cores.
Súbito, no ar voa
um objeto,
este, que os espanhóis
chamam de acha
63
A GARRAFA DE MEL FALSIFICADA
64
Nada mau para os dotes desumanos
da garrafa de mel falsificada.
65
MORTE E VIDA SERINGUEIRA
66
Amarrou a rede velha em fraco esteio,
que mal aguentou uns 650 dias.
Pra piorar o homem era solteiro. A onça pega:
II
III
67
IV
68
A CULPA
69
enquanto o mundo segue com projetos,
a respeito do amor com mais respeito.
70
SAUDADE REMOÍDA
E tudo recomeça:
faz mau tempo, o tempo pinga.
Eu pego a espingarda,
71
me alembro da reza,
já está me esperando
a estrada de seringa
72
OÁSIS E DESERTOS
73
PESADUMBRE
que me persegue.
74
O MEDO
Lá fora, eles,
na cinética patológica das ruas
da infeliz cidade,
o medo
Cá dentro, eu,
na estática faustosa do claustro
da infelicidade,
o medo
do outro.
75
JUREMA
Do olho ao queixo,
as lágrimas formam o Nilo.
Canta o inhambu, chora a Jurema.
forma o poema.
76
A PESTE
77
ISOLADOS: RITUAL DE PASSAGEM
II
Logo aparecem
os velhos dos túneis,
a encantar
com contos de trinta mil anos:
tragédias de amor fecundo;
78
histórias de escavar
geoglifos gigantes.
e o sumo tirado
da planta trazida da margem de lá
do rio sem fim
que banha a virgem nascida
do morubixaba.
III
IV
79
ossos duros de tucum,
carnes de caucho,
sob a pele vermelha de urucum
que a mata pratica esconder,
têm olhos tão puros, que
até que o raio de Tlaloc os detenha,
hão de ver.
estarão a serviço
dos poucos restantes.
80
O XAMÃ
Chorou
a cunhatã, mas baixinho,
em lágrimas de silêncio
ante o ingente,
De repente,
o ingente das cinzas
e, ao mesmo tempo,
indigente,
81
Foi quando o pequeno sorriu.
Sarou?
Por nobreza,
um cantil de cabaça com água trazida
da margem de lá
e a harpa mistério, em metal cirúrgico
82
CENTENÁRIA
II
83
é melancólico,
mas este é o Tangará mais triste
que já pousou na seringueira.
III
As espinhas do peixe
não desencorajam
os predadores,
o abismo do rio
não põe a salvo
o habitante das águas.
IV
A pesca...
O peixe é um símbolo luminoso
do rio sagrado,
84
ÁRVORE INFOR/MADEIRA
É estratégico,
porque senão dá nas cascas,
dá no âmago,
dá na vista.
85
iII
poemas do buquê
SONETO PARA UMA MOÇA TÍMIDA
89
DESPEDIDA
90
O PÁSSARO
91
SE AINDA ME AMAS
92
QUERO-TE
93
ÚLTIMO TRIBUTO
94
MEDULA
95
BILHETE DE PASSAGEM
96
SONETO DO AMIGO
97
EFLÚVIO
98
A MEU PAI MORTO
99
A MEU PAI MORTO II
100
DESPEDIDA 2
101
TUA IMAGEM 2
102
ÚLTIMO VERSO DE AMOR
103
POSFÁCIO
DO SIMPLES E DO SINCERO1
João Filho
Poeta e Escritor.
Autor, dentre outros, de A Dimensão Necessária
(poesia, 2014) — Prêmio da Biblioteca Nacional, 2015.
105
momentos desta terceira entrega poética de Renã Pontes.
A crítica social é muitas vezes bem direta, no entanto, não
deixa de lançar uma visão terna, sem falsa lamúria, para
aqueles que sofrem e quase sempre não têm voz. Assim
também certa visão de espiritualidade secularizada sem
perder de vista, e com coragem, o grande mistério de ser-
mos e estarmos vivos. Essas duas posturas diante da vida es-
tão conjugadas na primeira seção “Oásis e desertos”. O po-
ema “Impotência” alcança status simbólico e pode ser lido
em dupla clave: política e metafísica. Vale citá-lo inteiro:
106
versal (ponte sobre o mar, milhões de gritos, duas eterni-
dades de silêncio) para se quedar na debilidade de não po-
der sofrer mais. E, aqui, o movimento inicial de abertura
se fecha bruscamente na sequência de imagens — mãos de
ferro, abismo mais profundo, luvas de pelica. Aquela im-
potência, porém, numa particularidade própria da poesia
moderna, logra expressar-se. Tornou-se poema.
A seção “Nós”, por sua vez, traz a influência di-
reta do neorromantismo de Vinicius de Moraes. Em for-
ma fixa ou livremente, há versos para uma mulher total
que “até na ausência pode ser notada”, mas pode também
perturbar com “névoas, miragem, um calmante com ál-
cool/que confunde o que penso”, porque “sem ela não
me arrisco a um passo”. A ausência é um dado constante,
que contrasta com o anseio de eternidade e com o desejo
interdito ou realizado. O mundo amazônico e os seus
múltiplos elementos, como dito acima, recebem um tra-
tamento que contém o fôlego do epos; esta característica
se faz mais patente na seção “Do êxtase ao êxodo”. Há
momentos que remete o leitor ao compasso e força de
Gonçalves Dias de “I-Juca Pirama”:
Crivados de manchas,
cansados, sem prumo
perderam seu rumo,
partiram, fugiram,
caíram, morreram,
os bravos de outrora.
107
na — é o êxtase; a aculturação do povo da floresta, a doen-
ça, a morte etc. — é o êxodo. Na última seção “Poemática
Amazônica”, as árvores, pela voz do poeta, falam, e não
importa se ainda fincadas em suas raízes ou derrubadas. É
nessa seção que está o poema “A meu pai morto”, que vale
ser citado na íntegra:
108
UMA FORTUNA CRÍTICA EM QUATRO
ATOS PARA OÁSIS & DESERTOS 2
Prof.ª Dr.ª Luísa Galvão Lessa Karlberg
Presidente da Academia Acreana de Letras - AAL
109
“Oásis” remete a um ambiente fértil em área de-
serta, graças à presença da água. Assim, quando o poeta
Corrêa Pontes convida o leitor à reflexão sobre oásis, rios,
lagos, o elemento água, significa chamar à atenção para a
beleza do fruto, do milagre da vida, a “água” que alimenta
e rega a terra, mata a sede e faz renascer a natureza. O rio
oásis — magnânimo personagem das paisagens acreanas
— que antigamente brindava o cidadão com o acesso li-
vre às suas águas não poluídas, que traziam, sazonalmen-
te, a fartura das piracemas, representação maior de uma
gama de eventos de grata memória do Acre ancestral — é
apresentado no terceiro ato “Poemática Amazônica”.
O segundo caminho descerra-se a partir da aná-
lise do nome “desertos” — substantivo plural que significa:
região seca, de escassa diversidade e pluviosidade. Apon-
ta, provavelmente, não para um deserto tangível, como o
Atacama, Saara e Namíbia, mas, antes, indica um provável
“deserto moral”, que causa angústia ao cidadão brasilei-
ro, ao poeta, aqui enfastiado com a ameaça constante da
corrupção dos valores, condição anômala que beneficia,
apenas, aqueles que, invocando a privacidade para pecar,
molham o pão no suor dos trabalhadores, condenando
jovens vulneráveis ao desperdício dos talentos e frustra-
ção vocacional, ao medo do futuro, a perda da esperança.
Tudo isso são particularidades que não passam desperce-
bidas ao olhar esquadrinhador do poeta-romancista Cor-
rêa Pontes, quando oferece, neste livro, um tributo àquilo
que aparentemente não pode ser mudado, mas pode ser
poetizado (denunciado), conforme brinda o leitor nos
quartetos do seu soneto “ Condenação do não ser” (p.35):
110
Quando me fere o teu sorriso agro,
ante a minha impotência, eu sofro e engulo
o meu critério, meu juízo nulo,
e o sal que escorre no meu rosto magro.
111
[...]
agora que encontrei em outra o meu destino,
tu voltas para mim, como que, por encanto.
112
E esta semelhança ocasional entre os poemas
que Renã insere no livro e os clássicos que se conhecem,
o alto padrão literário apresentado em Oásis & Desertos
é prova incontestável do que dissemos de início: a reto-
mada da poesia acreana em nova clave.
113
imperceptível nas ciências anteriores, baseadas, em boa
medida, nos limites do empirismo, em que a ciência repre-
sentava uma continuidade, em termos epistemológicos,
com o senso comum. A “ruptura epistemológica” entre a
ciência contemporânea e àquela do senso comum é uma
das marcas da teoria bachelardiana. A realidade social é
objeto de avaliação por todos aqueles que vivem na socie-
dade, o que torna a tarefa do cientista social ainda mais
difícil, pois deve construir seu conhecimento apesar e con-
tra o senso comum; apesar e contra a realidade. Também a
inglesa que viveu em Nova Zelândia, Katherine Mansfield
(1998), trabalhou bastante sobre a epifania em obras poé-
ticas e ressalta o valor imensurável dos quatro elementos
para a riqueza da literatura que traduz, sempre, a vida.
Igualmente, pode-se dizer que nos momentos
epifânicos de “Quatro atos para um Oásis & Desertos” há a
apreensão do mundo desvinculado do tempo, mantendo
o objeto tomado pelo poeta no curso de sua beleza eter-
na e imutável. Assim, a perfeição desejada é obtida nos
versos da obra poética, pois o tempo, fator causador da
degenerescência, está momentaneamente afastado (por-
quanto parado para o olhar esquadrinhador do poeta).
Na epifania, tem-se, então, a eliminação do tempo causa-
dor de mudanças. Na citação que vem a seguir, Mansfield
(1998) descreve o que denomina “eternidade do momen-
to”, a “suspensão” do fluir temporal, o “fora-da-vida”, os
“lampejos” — que são, acredita-se, termos corresponden-
tes à epifania a que se refere o presente estudo.
Poeticamente, poder-se dizer ser possível impe-
dir a marcha do tempo: é o que parece ocorrer durante
114
a epifania, cuja concepção aproxima-se bastante do que
Bachelard denomina “devaneio cósmico”, que é um esta-
do de alma em que se escapa do fluir temporal.
Epifania significa aparição ou manifestação de
algo, normalmente relacionado com o contexto espiritu-
al e divino. Aqui, a epifania centra-se nos quatro elemen-
tos que unidos formam o mundo. E se um único homem
fosse capaz de controlá-lo ele moveria montanhas, o céu
e a terra para transformar o mundo. Talvez aqui esteja a
maior mensagem do poeta Corrêa Pontes: sentir e dizer
das dores do Mundo, na busca de transformar tudo em
paraíso de amor e paz. De outra parte, o poeta sente que
essa epifania, do ponto de vista filosófico, significa uma
sensação profunda de realização, no sentido de compre-
ender a essência das coisas, boas ou não. Ou seja, a sen-
sação de considerar algo como solucionado, esclarecido
ou completo, porque está acontecido.
A Epifania também pode ser considerada como
um “pensamento iluminado”, tido como uma inspiração
divinal que surge em momentos de impasse e complexi-
dade, solucionando as frustrações e dúvidas sobre deter-
minada angústia. Aqui, neste romance-poema, o escritor
sente as mazelas do mundo, da vida e, de certo modo, não
as soluciona, mas confia no poder revelador das palavras,
ao denunciar, de forma literária, os deslizes da vida.
Nessa direção, os ingleses costumam utilizar
muito este termo dizendo: “I just had an epiphany”, no
sentido de “pensamento indescritível e único”. Os ele-
mentos da natureza podem ser associados aos estados
físicos da matéria, todos presentes na obra que respira,
115
transborda a vida na terra, o ar necessário, a água para
regar a vida, e o fogo que corre em chamas, ora na vida,
ora nas veias do poeta: Terra → Sólido/ Água → Líquido/
Ar → Gasoso/ Fogo → Plasma.
Epifania na literatura
116
Com efeito, acreditamos ser possível estabelecer, no
reino da imaginação, uma lei dos quatro elemen-
tos, que classifica as diversas imaginações mate-
riais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à
água ou a terra. E, se é verdade, como acredita-
mos, que toda poética deve receber componentes
— por fracos que sejam — de essência material, é
ainda essa classificação pelos elementos materiais
fundamentais que deve aliar mais fortemente as
almas poéticas. Para que um devaneio tenha pros-
seguimento com bastante constância para resultar
em uma obra escrita, para que não seja simples-
mente a disponibilidade de uma hora fugaz, é pre-
ciso que ele encontre sua matéria, é preciso que um
elemento material lhe dê sua própria substância,
sua própria regra, sua poética específica.
117
refletidos no devaneio poético e a doutrina dos quatro
elementos físicos, esclarecendo que:
118
significativamente: o olhar, a dor, a esperança, inclusive
a fé do autor de Quatro Atos para um Oásis & Desertos.
No conjunto, Renã Pontes valoriza as imagens
da água, como fonte de vida e alimento, junto aos demais
elementos, ao tempo em que descreve imagens desse ele-
mento em singularidade, como, por exemplo, (p. 21) —
“As águas cristalinas que, em cascatas/ [...] Todos depen-
dem destas águas claras/ as matas verdes/ flores e searas”.
Vejam que beleza desnuda o poeta com o elemento água,
água é vida, água é bíblico: Jesus transformou água em
vinho no casamento em Caná da Galileia. É o primeiro
sinal (João 2, 7:10), uma epifania do Verbo feito carne.
Jesus não transforma só água em vinho. A água é a água
da purificação dos Judeus, e quando Jesus a transforma
em vinho ele não está apenas manifestando poder divi-
no, mas manifestando sobre a transição das regras de pu-
reza do velho para a celebração jubilosa do novo. Aqui o
poeta, ao trazer o elemento ÁGUA quer traduzir a vida,
com os amores e os dissabores de demolição, ebulição,
mas com esperança, fé e amor no coração.
Ora, sabe-se que os corpos, em vida, possuem
predominante composição aquosa em sua formação
química e que, na morte, tornar-se-ão, materialmen-
te, pó, pela decomposição. Porém, as operações se-
mânticas, (escolhas de termos) inerentes ao devaneio
poético, apresentado em sua forma escrita, permitem
riqueza de expressividade tal que o oposto se torna ób-
vio, capaz de revelar uma nova ideia formada na men-
te poética e transcrita graças às associações com um
dos quatro elementos.
119
A epifania em Quatro Atos para um Oásis & Desertos
120
a construção das imagens de personagens e de cenários,
a comunicação que perfaz o diálogo com os leitores da
narrativa, buscando atingir e modificar seu estado emo-
cional, pela simples ou complexa utilização da palavra.
Elemento Ar:
p. 25 — Um lindo jardim/ um planeta afundando em
um mar reagindo/ ar sufocante (calor); p. 31 — Dobra
o calor (ar) que esta areia gera; p. 50 — A primeira bati-
da deu-me a vida/ quando inalei o frio oxigênio (ar que
respirou); p. 59 — porque a hemoglobina/ tem mais afi-
nidade/ com a fumaça (ar e fogo); p. 69 - Respiro (o ar)
o teu Dior, teu cheiro (no ar) fixado; p. 70 — Te procuro
nos campos que exalam teu cheiro [...] que me engasgo
no ar que do teu corpo exala; p. 105 — Deus está no calor
do Atacama (ar).
Elemento Água:
p.21 — Na cordilheira que alimento o lago [...] sem as
geleiras (água sólida) que garantem a vida/ nas águas
cristalinas que, em cascatas [...] perambulando as vidas
abstratas (personificação) / E, um solitário peixe em
meio ao rio [..] todos dependem destas águas claras; p.38
– imaculada/ como as águas passadas/ do meu Quinari;
p.42 — cascata/ que não é de águas pluviais, /é um mar
de lama/ que mata Mariana; p. 53 — Frente a Judia, desa-
121
guando em dique; p.81 — subiu na ubá, / venceu muitas
águas, / cruzou muitos rios, / seu rumo, a cidade.
Elemento Fogo:
p.23 — lá em cima / as nuvem de fumaça/ não se dissipa-
rão (o fogo simbólico está presente nos versos de amor...
Também no clima, no sol); p. 37 — Gosto mais das ver-
sões:/ do carro de fogo de Elias; p. 44 — Matarei a fome
do fogo, ao menos uma vez [...] quando for me queimar
no fogo ardente; p. 58 — o ar sufocado/, sufoca (alitera-
ção), até a vegentogênese do alimento que me envenena;
p. 77 — O amor é um fogo na carne do boi; p. 87 — Olha
só. Temos peçonha de surucucu-de-fogo; p. 88 — chi-
chuacha, cipó de fogo, jucá, pau barbado, cubiu.
Elemento Terra:
Belém também celebrou a Epifania. Foi lá que, há mais
de 2 mil anos, uma estrela brilhou indicando aos Reis
Magos o local da manifestação de Deus. Aqui, em Oásis
& Desertos a Epifania da terra retrata a vida humana no
Planeta, conquistas e perdas. Assim o poeta de Oásis &
Desertos, igualmente os Reis Magos — guiados pela es-
trela no céu e pela estrela de uma grande esperança no
coração, os Magos começam a caminhar. Na sua busca,
examinam o céu e auscultam o próprio coração. No caso
acreano, o caminhante move-se e desempenha-se por-
que tem perguntas e inquietações no coração, como dei-
xa vazar em muitos versos: p. 24 — O desafio de manter
a esperança/ neste deserto privatizado; p. 29 — o barro
não julga (Personificação)/a forma e a fornalha (alite-
122
ração); p. 32 — O mar pôs-se entre a terra e os meus
amigos; p. 35 — não nasceu flor no roseiral de espinhos/
desta terra socada por mil cascos; p. 42 — a folha é da
cor da pele,/ a folha, em terra, que suga a cor da terra;
p. 51 — que, descendo, aperta o laço/ de pedra, terra e
buquê; p. 66 — encontrar céu e terra em teu regaço; [...]
e treme a terra,/ à ação da mão enérgica,/ guerreira; p. 88
— Mmmm! Na tua terra,/ como vocês educaram o sena-
do de vocês?; p. 103 - Herdei, muito moço, a figueira im-
ponente,/ do meu bisavô, num ranchinho vetusto ( uma
terra),/ de barro batido, onde um dia, ao poente,/brotara
da terra em forma de arbusto [...] tombou terra abaixo
a grande figueira./ Descendo ao terreno batido que her-
dei,/ montanha de pedras, cavando (na terra) encontrei,/
prendendo as raízes no raso da terra; p. 104 — “Cantai
neste Natal, sinos festivos, /na voz dos hinos que é a voz
dos anjos/as virtudes do Filho prometido/— o Cordeiro
de Deus, a água viva [...] laço entre terra e céu que se
renova/ nos séculos sem fim de esperança/ refletida na
vida das crianças.
Parafraseando a máxima filosófica de René
Descartes3, esta obra possibilita a seguinte interpretação:
a existência precede o entendimento do ordenamento
das relações humanas ou, melhor dizendo, nas palavras
de Sartre, a existência precede a essência. Assim, o nosso
existir pressupõe a existência de outros. E essa compreen-
são da vida, em conjunto, em grupos, na terra, na água,
no ar, no fogo, conforme está posto no livro, em quatro
123
Campos Semânticos ou Significativos – rico em figuras
de linguagem — denota a consciência humana sobre a
existência do AMOR. A vida precisa melhorar, sempre,
e para tanto as pessoas e o mundo necessitam mudar. E
somente os seres humanos, pela educação, leitura, arte,
linguagem, literatura, ética, respeito, cidadania, serão ca-
pazes de fazer essa travessia.
Então, nesta obra, percebe-se a importância do
poder da imaginação, que dá sentido a um mundo que,
sem este poder de imaginar, é um mundo estéril. Logo,
ter imaginação é condição sine qua non para transformar
a experiência, rica de nuances e detalhes, em sabedoria,
que faz valer a pena nossa existência.
Dito isto, deseja-se expressar que os humanos
são, pois, responsáveis por eles mesmos. E as escolhas
feitas trazem, consigo, consequências que podem inter-
ferir na existência do outro, por isso, talvez, Sartre tenha
dito que as pessoas estão condenadas a serem livres nas
escolhas. Ainda, nesta obra, pode-se aduzir que o poeta-
-romancista se debruça sobre a experiência de vida, do
seu olhar atento sobre o Brasil, para oportunizar, em qua-
tro capítulos necessários, um terreno propício a manifes-
tação da Epifania sobre os elementos da vida. Também,
um vasto campo para estudos semânticos, estilísticos,
literários, filosóficos, históricos, antropológicos e sociais.
Distante de exaurir as complexas questões que
envolvem a linguagem de Quatro Atos para um Oásis
& Desertos, seja no plano da apreciação ou ressignifica-
ção das ideias ou vocábulos utilizados na construção do
romance-poema, deixo em suspensão esse breve estudo,
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augurando que outros olhares acedam ao desafio de pas-
sar além da proposição deste estudo-posfácio, originando
outros olhares sobre o livro, no sentido de melhor explorar
os recursos semânticos, estilísticos e epifânicos dessa lite-
ratura de autoria amazônica.
REFERÊNCIAS
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Impresso para a Editora Mondrongo em junho de 2021
no formato 15 x 22 em papel Pólen Bold 90 gr no miolo e Cartão
Supremo na capa. As fontes tipográficas usadas foram a Arial, Augustus,
Cambria, Minion Pro e Times New Roman nos títulos e no conteúdo.