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CATIVEIRO E LIBERDADE NO SERTÃO

Taiane Dantas Martins

Uibaí-BA
2014
CATIVEIRO E LIBERDADE NO SERTÃO
Taiane Dantas Martins

Uibaí-BA
2014
Foto da Capa - Taiane Dantas
Capa e diagramação - José Nilton C. S. Jr.
Revisão - Eduardo Pereira Lopes
Prefácio - Eduardo Pereira Lopes
Texto Capa (final) - Celito Regmendes
Texto orelhas - José Nilton C. S. Jr.

Obra premiada pelo Calendário das Artes 2014, da Fundação


Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB. Secretaria da Cultura
do Governo do Estado da Bahia

Martins, Taiane Dantas, 1982-


M379c
Cativeiro e liberdade no Sertão/ Taiane Dantas Martins - 1ª ed. –
1ª ed. Jacobina, BA: Edição do Autor, 2010.

130 p. il.

ISBN 9788591762309

1. Contos brasileiros. I. Título.

CDD - 869.3

Ficha Catalográfica: Bibliotecário Romualdo Machado Ferreira CRB/6 -


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Norte de Minas - Campus Almenara.
Dedicatória

A todos aqueles que protagonizaram essas histórias sofrendo, lutando,


vencendo ou sendo derrotados, que a terra lhes seja leve.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer imensamente aos professores e técnicos do


Mestrado em História Regional e Local da UNEB – Universidade do Estado da
Bahia, que me possibilitaram essa vivência com esses sujeitos, a qual me
possibilitou muitas reflexões acerca de suas vidas e experiências e me trouxe
até a presente obra.
Agradeço também a Celito Regmendes que esteve ao meu lado durante
toda a pesquisa e me estimulou a buscar este tema com suas histórias
recontadas a partir do que ouviu no Assuruá e viu em alguns documentos.
Histórias que passavam por assassinatos de senhores, cativas brancas a muito
trabalho e dor.
A Eduardo Pereira Lopes e José Nilton Carvalho Santos Júnior por
terem contribuído com seus conhecimentos na área literária e na revisão e
organização da obra.
A Secretaria de Cultura do Estado da Bahia através do Calendário das
Artes que patrocinou a publicação e distribuição desta obra.
A meus irmãos Janaina, Daiane e Flávio Dantas Martins pelo estímulo
para buscar a publicação da obra.
A todos aqueles que conviveram comigo durante a elaboração deste
trabalho e compreenderam minha dedicação e apego ao mesmo. Meu muito
obrigada.
Sumário

Prefácio 9
Apresentação 13
Avô de Dois Mundos 15
Liberdade e descoberta no sertão 23
Trabalho, amor e dor 29
Quero o mar! 35
O último grito de uma mulher 40
Sou livre! Da minha família cuido eu 46
Caminhos e contatos 53
Nas fronteiras de dois mundos 59
Morte e homenagem oculta 64
Amizade x mil réis 71
Vivendo na sombra e na luz 77
Branca e cativa 83
Vingada e criminosa, mas respeitada? 90
Amigo do algoz e cúmplice do assassino deste 99
Um momento em que existi 107
Eterna solidão do cativeiro 112
Ser cativa e ser senhora: condições sempre incertas 118
Ouro, justiça e liberdade 123
Prefácio
Taiane Dantas Martins inicia na literatura com a capacidade para dizer o
não dito - tarefa natural aos poetas - pois com a sensibilidade da poesia ela
canaliza em palavras uma faceta do sertão implícita para a maioria das pessoas.
Certamente muitos já entraram em contato com os temas abordados nesse
trabalho, porém através do didatismo escolar. O que Taiane faz nas suas
narrativas é retirar a História do “cativeiro” da área e dilatá-la em literatura
com um texto inteligente e muito agradável de se ler.
Estes contos estão situados no entre-lugar história e literatura. Por isso é
uma literatura perturbadora, provoca até mesmo a ideia de gênero, pois se
pensarmos assim, o que lemos é real como pretende o trabalho do historiador,
ou ficção como é chamado o que um escritor cria? A literatura brota somente da
inspiração ou também da técnica?
Vejo em Taiane uma técnica-inspirada e não uma simples inspiração
técnica. Assim, bem no estilo de João Cabral de Mello Neto, essa obra é uma
literatura advinda da pedra, mas também da emoção que a lapida. A autora
lapida e esmera a pedra bruta da escravidão nas entranhas do sertão. É um
trabalho vindo das pesquisas, fruto do estudo e maturação da pesquisadora que
jamais se tornaria literatura se não fosse a criatividade da autora.
O processo criativo de Taiane beira uma metanarrativa para o campo da
historiografia assim como ensaia uma historiografia literária para o campo da
teoria da literatura. Lembramos bem de O queijo e os vermes, de Carlo
Ginzburg, de como um trabalho pretensamente historiográfico ganha uma
alma literária, e ao contrário, de como obras literárias ganham do leitor uma
leitura bastante próxima da história, como é o caso de Viva o povo brasileiro, de
João Ubaldo Ribeiro, e do também baiano Antônio Torres, em Meu querido
canibal que explicita na sua obra o trabalho técnico, de pesquisa sobre temas da
história, que precede o literário. Assim como Torres, Taiane usa como matéria
prima fontes buscadas principalmente em arquivos públicos, estes que por sua
vez atuam no seu livro praticamente como personagens ou vozes nos
bastidores das narrativas que a autora traz ao final de cada conto. Também
lembra o processo criativo de Taiane, algo visto no historiador baiano João José
Reis, no seu livro O alufá Rufino, onde recorre-se ao campo literário,
especificamente ao recurso narrativo, para chegar as nuances que os
documentos históricos não permitem alcançar sozinhos. As fontes para Taiane
são as moedas de ouro ao barqueiro para a travessia para o (sub)mundo das
letras.
Quanto ao estilo, a escrita de Taiane lembra bastante obras chamas pós-
modernas, como Budapeste, de Chico Buarque, e Caim, de Saramago, quanto
ao trato gramatical – apesar de que em Taiane isso fique mais forte no conto
Avô de dois mundos, onde há uma liberdade maior para compor a narrativa a
despeito da pontuação gramatical clássica, com tantas pausas, como se observa
por exemplo, em Machado de Assis, autor que também trabalhou
magnificamente com o tema da escravidão em contos como O espelho e Pai
contra mãe. A narrativa da autora uibaiense é direta, fluida, no compasso da fala
até por que a oralidade é o pilar dessas narrativas.
Neste livro, a emoção salta as páginas a todo instante. Uma vez
Aristóteles disse que para haver literatura é preciso que o texto inspire no leitor
certas emoções específicas. Em Cativeiro e Liberdade no Sertão a catarse é
inevitável, em contos como Amor, trabalho e dor, em Amizade x Mil Réis,
Quero o mar - para citar alguns, e sentimentos de angústia, tristeza, alegria,
facilmente o leitor encontrará e compartilhará junto com os personagens. Para
o teórico da literatura Todorov, a literatura humaniza o homem, pois só ela tem
a capacidade de proporcionar alteridade fazendo com que o leitor troque de
lugar com o personagem. E nessa posição (des)confortável que assumimos aos
ler Cativeiro e liberdade no sertão é a medida ideal para ativar outras funções da
literatura que somente as boas obras são capazes de proporcionar: o deleite e a
ação. É quase impossível ficar parado, pelo menos em pensamento, em não se
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engajar em algo em prol dos temas que atravessam a obra de Taiane: a questão
da escravidão e seus ranços atuais, a situação da mulher, o papel do Estado na
construção/manutenção dos marginalizados, entre outros.
O leitor é levado a conviver durante a leitura com muito sangue, suor,
dor, crueldade mas também amor e sobretudo sonhos. Os cativos quando
vendo a sua vida ser objeto de comércio e ao mesmo tempo respaldados pelo
direito de comprar sua própria liberdade soa quase como um paradoxo cruel e
irônico. No livro, não encontramos simplesmente contos, mas sim relatos
verossímeis de um tempo que existiu (e resistiu) embaixo do nariz das
instituições sociais. Os relatos nos transportam para a História do Brasil, do
mar, ao sertão, da roça ao garimpo. Vemos personagens demasiadamente
humanos que longe de serem romantizados como heróis ou ingênuos ou
alienados à sua condição, na verdade parecem ter consciência de seu status- ao
menos para sonhar, como se percebe em muitos relatos. Foi um amor impedido
porque o marido escravo foi vendido para outro senhor, outros, porque foi a
fome que sacaram-lhe a carne enfim são narrativas quase psicológicas que
brotam da reminiscência dos personagens, de memórias rotas, secas como o
sertão, que furam a carne como o espinho do xique-xique, pesadas como o
trabalho no garimpo, e leves como a esperança da liberdade.
Se tivesse que fazer uma escolha sobre um dos maiores méritos desse
trabalho eu diria que é o fato dele proporcionar para o leitor não especializado
um vislumbre do período mais marcante na história do Brasil. O que Taiane faz
é democratizar, através da linguagem literária, o conhecimento histórico que
muitas vezes é inacessível para o público em geral. Por exemplo, pode-se
conhecer bastante da história regional, pois o pano de fundo das narrativas é o
nosso sertão.
Essa é uma das importâncias de uma literatura doméstica, de casa, mas
não só para a casa. Enquanto lia, pensava e escrevia sobre esses contos em meio
as propagandas dos festejos juninos da região de Irecê, onde para muitos
descaracterizou-se para com a tradição, com a memória popular, com a raiz
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sertaneja, e que reflete o processo de uma cultura que passa por um processo de
mudança muito veloz e absurdamente pouco refletido. Nesse sentido, é
importante celebrar a chegada de uma obra como a de Taiane que vem somar na
nossa cultura, contribuindo para a existência de uma identidade cultural e
histórica regionais que é necessário que se mantenha, até mesmo por que
identidade cultural é algo sobretudo político, e perdê-la ou pouco conhecê-la,
significa um desvirtuamento político.
Por último, somando-se aos precursores orais como Bié, e aos escritores
contemporâneos como Enoch Carneiro, Pita Paiva, Osvaldo Alencar Rocha,
Edimário Oliveira Machado, o poeta Arí, Alan Oliveira, entre outros, Taiane
Dantas vem adubar com o novo o chão artístico uibaiense. Por isso, é com
muita satisfação que participo de sua estreia nas letras pois tenho certeza que
ela não precisou sair da história para compor as narrativas; ela continua lá e cá,
nas fronteiras, fazendo acima de tudo, não sei se por força do ofício, educação
de qualidade. Ganha a autora que já merece prestígio, ganha a literatura, pois é
mais uma historiadora que vem para a área, ganha a região por mais uma
escritora, e sobretudo ganhamos nós, leitores, por ter acesso a um deleite
intelectual nas páginas de Cativeiro e liberdade no sertão.
Boa leitura! Vocês irão ficar presos nas páginas, porém livres para sonhar
no Cativeiro.

Eduardo Pereira Lopes é Professor de Literatura e Língua


Portuguesa do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e Mestre em
Literatura e Diversidade Cultural – Universidade Estadual de
Feira de Santana – UEFS.

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Apresentação
Estas narrativas são contos baseados em pesquisa desenvolvida num
curso de Mestrado acerca da experiência das pessoas escravizadas no sertão
baiano, município de Xique-Xique, na qual se observou a diversidade e
dinâmica existentes nessas trajetórias, havendo elementos que a diferenciam
sobremaneira da escravidão no litoral e buscou-se traduzir e reinterpretar essas
vivências para a linguagem literária.
Obviamente, por se tratarem de textos literários, o tratamento foi dado de
forma diferenciada do trabalho do historiador e a perspectiva foi de explorar
essas vivências a partir de sua riqueza narrativa e do peso do suor, do amor e das
lágrimas dessas pessoas que foram mantidas sob o jugo do cativeiro e nem por
isso deixaram de amar, sonhar e lutar por sua liberdade, possibilitando as
vivências mais diversas.
Trazemos aqui histórias como as dos africanos Paulo Angla e Francisco
Haussá que estiveram envolvidos na morte de seu senhor, ou a de Antônia, que
foi assassinada por um soldado de polícia deixando uma filha com apenas um
ano de idade.
Podemos conhecer também um pouco da luta pela liberdade
empreendida por pessoas como Romualdo, Vicente Veloso e Maria, esta
acompanhada de uma imensa família. Bertholina traz a contradição de ser
escrava e branca e Gabriel é um escravo homenageado pela sociedade
“branca”. Josepha nos faz refletir acerca da violência sofrida pelas mulheres no
século XIX. Os libertos Ciríaco, Francisca e Sebastião trazem um pouco da
condição de liberto no sertão e seus limites.
Que as narrativas possam apresentar um passeio à vida dos escravizados
no sertão baiano, possibilitando uma boa viagem por esse pedaço de chão.
CONTOS
Avô de Dois Mundos
Olho para as Serras do Assuruá. Pedras. Solidão. Seca. Vejo os brejos de
minha terra. Riacho. Milho. Verde. Cana do doce mel ou da cachaça. Vai do
gosto de cada um. Prefiro a segunda, que me faz esquecer. Esquecer o tempo
que vejo indo e vindo em minha cabeça.
Olho para meus netos e meus filhos. A mulher morreu de parto e a
ausência dela, cercada de presença, me acompanha todo dia. Rosa. Rosa de
luta, Rosa de fé. Mulher, mãe e guerreira. Não vi morrer porque corri para caçar
remédio. Quando voltei o caixão já estava feito. Dos oito meninos só ficaram
quatro. E tudo vai e volta, vai e volta, volta e vai.
Nem sei direito que causos contar pros meus netos. Eles acham que é
história inventada, mas é a mais pura verdade. Eu nasci do outro lado do mar,
que fica bem longe daqui. Os meninos nem acreditam que existe um tanto de
água que você não vê o fim. Mas existe. E é lá que fica a minha casa, minha casa
onde eu era livre e fui pegado à força, arrastado para longe de minha mãe. As
lembranças são fumaçentas e se misturam com o que eu queria que tivesse sido.
Mas muita coisa foi. E muita já não tem mais como ser.
Andamos muitas léguas e jogaram a gente num navio. Eu e um monte de
irmão.
É triste perder as rédeas de seu destino. Ser levado como um bicho. Mas
bicho se leva para comer. O que iriam fazer com a gente? Mar e fome, fome e
mar, dia e noite, choro e mar.
Uns morreram de desespero, muitos de fome e outros de horror. Todos
jogados no mar e a água parecia que nunca ia findar. Mar findou. Cheguei fraco
e triste e fui colocado acorrentado, numa cidade aqui no Brasil. Cidade da
Bahia. Triste Bahia. Não entendia o que ninguém falava e uns homens olhavam
para mim como se eu fosse um bicho. Bicho que não sabia se ia ser comido, mas
fui vendido e arrastado para outro mundo.

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Dessa vez não era de água o meu calvário. Era de seca. Tudo seco. Não se
achava água nem para beber. As plantas da estrada tinham morrido todas e eu
via que o inferno não era tão perto e nem tinha fim. Dias e mais dias se
passaram, até que apareceu uma corrente, uma corrente bonita de fazer gosto.
Era um rio. E eu que pensei que iria morrer de sede. Mas a parada não era ali. Eu
certamente não poderia nadar naquela água doce de fazer gosto. Rio São
Francisco, descobri que esse era o nome dele.
Ainda tinha muitas serras para subir e para descer. Serras de dar medo até
que cheguei num garimpo. Que sofrimento. E eu que pensei que o fundo do
poço já tinha chegado, mas não chegava. O poço não tinha fundo. Imundo.
Fome. Trabalho. Fome. Sono. Trabalho. Trabalho. Tiramos muito ouro
meu dono e eu. Isso mesmo. Eu tinha um dono! Desde a captura na África que
eu pertencia a outras pessoas e era vendido e revendido. Meu senhor achou que
nós já tínhamos juntado muito ouro e ele já poderia comprar terras e gado.
Subir serra e descer serra. Essa era a minha nova vida. Mas chegamos
num bonito vale. Meu senhor, que era português, comprou as terras e nós
começamos a botar roça. Teve um cabra que me acompanhou nisso tudo, que
era companheiro de África, mas não de nação. Era Paulo Angola. Mas ele foi
vendido a outro senhor, ruim que só o cão, que fazia ele passar fome tendo o
depósito cheio de farinha. Mas eu e Paulo ainda iríamos nos reencontrar.
Meu senhor se chamava Domingos Pereira e disse que ia me dar de dote
para sua filha Maria quando ela se casasse. Maria não era uma pessoa má. Ela
deixava eu comer até matar a fome e não mandava me bater, mas casou com um
homem que tinha as feição do cão e era o dito cujo dono de Paulo Angola. Se
chamava Antônio José.
Tá certo que ele não era de bater em Paulo nem nos outros, mas o
desgraçado não foi com minha cara e me perseguia no que podia e no que não
podia. Eu apanhava por tudo e só me livrava das pancadas quando Dona Maria
tava por perto. Desgraçado! - Mas o inferno também tava perto pra ele.
Ele tinha outros escravos. Era um dos homens que tinham mais cativos
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no lugar. Eram homens, mulheres e meninos. Quinze. A gente trabalhava na
roça, plantava milho, feijão, mandioca, algodão, banana, cana e laranja. Era
uma fartura de dar satisfação, porque ele tinha terreno nos brejos e a gente
comia de tudo. Escondido.
Cuidava de boi, cabra e cavalo. Se o senhor dava pra mais ruim mandava
um ou outro pra algum garimpo que estourasse, mas a gente nunca queria isso
não. Eu gostava de fazer farinha e de trabalhar no alambique e de vez em
quando a gente ia em Xique-Xique e podia ver o rio e comprar peixe. Mesmo
sendo longe era uma satisfação só.
A luz de meu viver nesse cativeiro foi Rosa, que também veio de navio e
foi uma alegria em minha vida. Sofria, brincava, cantava e chorava comigo.
Rosa era uma mulher de dar inveja em muito livre. Prendada, bonita e faceira
como ela só, mas gostava de conversar e dançar era com o negão aqui.
Mas como tudo que é bom tem de acabar, veio uma seca braba. Era 1857
e não choveu. 58, 59 e nada. Morria gado, morria livre, morria escravo. Não
dava milho nem feijão e só não passava muita fome quem tivesse brejo ou
farinha guardada. Não se fazia mais farinha, a fruta era disputada e escassa e o
meu senhor, que já era um unha de fome, regulava a comida até da mulher e dos
filhos e ainda botava a gente pra trabalhar como jumento.
O estômago doía e a coragem foi escasseando, não tinha ânimo nem pra
caçar no mato e a coisa ficava cada vez pior. Os filhos, a mulher e a família dele
não podiam mais nem enxergar o canguinho e todos só queriam se livrar dele
para aliviar os sofrimentos da seca.
O gado só emagrecia e meu senhor resolveu botar uma fazenda de
criação numas terras que ela tinha no Carvalho, onde ainda tinha alguma água e
algum verde. A família aproveitou essa oportunidade em que ele ia pra um
lugar ermo para tentar colocar em prática o plano de dar felicidade a todo
mundo e mandar mais um excomungado pros lados do demo.
Paulo Angola era o homem de confiança do senhor. Ele dava pouca
comida e muito trabalho a ele, como aos outros, mas não batia em Paulo de jeito
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nenhum, mesmo a mulher fazendo o inferno por ciumar da preferência do
marido. Seu Manoel precisava de alguém para andar junto e até vigiar ele de
seus inimigos e Paulo era esse alguém.
Dona Maria sabia que Paulo ia estar junto e deu logo um jeito de
conquistar ele. Chamou pra conversar e disse que se ele fechasse o bico antes e
durante a morte, seria um homem livre e poderia sair dali logo depois. Paulo
ficou satisfeito com o trato e ficou de levar o machado para o crime, que eu
mesmo entregaria a ele.
O vaqueiro iria também, mas esse era mais fácil de comprar. Ele não
gostava de meu senhor, porque esse sempre roubava nas contas dos bezerros
que seriam do vaqueiro, dando para ele os mais fracos e descontando dele os
que morressem. Era só prometer alguns mil réis e ele ia ser testemunha
silenciosa por quanto tempo fosse preciso.
Eu, que já era o homem de confiança de Dona Maria ia acompanhar tudo
de bom grado só pra me ver livre daquele coisa ruim. Quanto ao filho dela,
menino de 12 anos que trabalhava igual a um condenado com o pai e estava
doido pra botar a mão no dinheiro, iria muito satisfeito e ainda seguraria os
cachorros para alguém dar cabo do cabrunco.
Mas e o matador? Tinha que ser profissional, porque se a coisa desse
errada, tava todo mundo com o pé na sepultura, que aquilo não ia sair barato
não. O irmão de Dona Maria procurou se informar e soube de um tal Joaquim,
amansador de burros, garimpeiro e faz tudo, dos que matam por prazer e o
dinheiro sempre cai bem. O menino foi atrás dele que concordou em fazer a
morte do português por cem mil réis.
Tudo certo, todo mundo combinado e cinco horas da manhã do dia
marcado saímos eu, Paulo Angola, Sinhozinho, meu Senhor, o vaqueiro e os
cachorros. Levávamos armas de caça, machados, couros de carneiro, farinha e
redes para a grande viagem. A viagem que ia dar cabo do paridor de tormentas
de todo mundo. Era o grande dia.
A chave da caixa de dinheiro andava amarrada no lenço que o senhor
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carregava pra onde ia e todo mundo sabia disso. A mulher ficou em casa com os
outros filhos e escravos, tendo como comida apenas umas cuias de farinha. Era
dinheiro de ouro, dinheiro de gado, dinheiro de escravo, dinheiro de farinha e
ninguém via nada. Só se via desgosto, pirão sem gordura e carne de caça. O
cuscuz era regulado e o milho dava cada espigão no brejo... Era a ganância do
cabrunco e o dia já tava marcado.
Cortamos planta de machado, arrancamos toco, fizemos palhoça.
Palhoça pra ele dormir junto com Paulo Angola que sempre estava ao pé dele.
Dormiu no seu couro de carneiro e não sabia que nunca mais iria deitar na
cama. Nunca mais iria comer carne fresca de gado, que ninguém além dele
tinha direito. Nunca mais iria visitar as putas de Santo Inácio, nem comprar
rebanho de gado. Nunca mais...
Eu, o vaqueiro e sinhozinho dormimos do lado de fora da palhoça, eles
numa rede e eu nums galhos de folha perto dos cachorros do patrão.
Era de madrugada, o dia nem tinha clareado, quando Joaquim chegou e
eu entreguei o machado. Sinhozinho segurava os cachorros e dava os restos da
caça que a gente comeu de dia para eles não latirem. Joaquim entrou na palhoça
e Paulo quieto tava e quieto ficou. Meu sinhô roncava como um porco, pois
tinha tido muito trabalho, dado muita ordem e andado muito naquele dia.
A primeira machadada foi certeira, bem no meio da cabeça e o porcão
nem gritou. Joaquim deu mais uma e o menino dizia: “bate forte, que cabeça de
maroto é dura!”. Mas ninguém mais precisava ter medo, o serviço tava feito e a
felicidade por vir.
Quando o homem já estava morto, o sinhô moço correu no bolso do pai e
pegou a chave da caixa, desamarrou do lenço, entregou este a Joaquim e correu
para abrir a caixa na sua casa no Cotovelo. Tirou o dinheiro dos trabalhos que
ele tinha feito com o pai e entregou a chave para a mãe.
Joaquim pegou o lenço, encheu de farinha, amarrou e entregou a Paulo
dizendo que ele fosse embora, pois era livre. Paulo saiu correndo e eu fiquei
com o corpo e o vaqueiro. Joaquim também saiu, mas sem nenhuma pressa e
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disse que iria esperar o pagamento pelo serviço.
O sol já tava alto quando pessoas começaram a chegar para ver o corpo.
Resolvemos levá-lo para enterrar no Cotovelo. Mas minha senhora tinha mais
treitas do que eu pensei e no dia seguinte foi atrás do delegado e denunciou
Paulo Angola como o assassino fugitivo. Ela levou o couro de bode, o machado
e uma rede como provas, além das roupas do falecido. A polícia saiu
imediatamente em busca do escravo que teria matado seu senhor.
Não esperava essa artimanha de minha senhora. Acusar justamente a
pessoa que menos ódio tinha do seu marido, mas com a qual ela menos se
afeiçoava. E o crime ficaria por isso mesmo, porque ela teria prejuízo tanto
com a fuga quanto com a prisão e estando Joaquim fora da história, ela não
corria o risco de ser descoberta.
A polícia saiu atrás de Paulo e o encontrou na roça do próprio senhor, no
Cotovelo. Não sei se Paulo estava descansando, pegando alguma coisa que
entendia ser dele ou mesmo pensando em para onde iria. O fato é que ele estava
lá e foi preso imediatamente.
Mas minha senhora não contava com a ação de seu próprio pai que,
sabendo que era um qualquer o verdadeiro assassino, quis soltar Paulo e
mandá-lo de volta ao eito. Domingos foi à polícia dar continuidade ao processo
da morte do genro e irmão de pátria. Denunciou Joaquim, dizendo que ele era o
verdadeiro assassino. O processo começou a andar e o juiz foi chamando
testemunha, chamando testemunha e ouvindo sempre que o garimpeiro era o
culpado. O vaqueiro tratou, no entanto, de reforçar a idéia de minha senhora
dizendo que achava que tinha sido o escravo Paulo, pois quem foge é porque
tem culpa.
Até que uma testemunha, de fora da fazenda de minha senhora, disse que
o crime foi a mando dela e do filho. Minha senhora então resolveu fugir. E me
levou junto. A gente foi pra Vila de Xique-Xique e de lá pegou o rio pra Barra,
lugar desenvolvido. Essa temporada lá foi de passeio e descanso para mim. Seu
Domingos ficou de defender o neto e não se falou mais de minha senhora como
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mandante, nem de mim como testemunha. Ainda bem.
Joaquim foi preso no Garimpo das Figuras e o menino pego na própria
casa. Ouviram mais algumas pessoas e o julgamento foi marcado. Joaquim viu
que estava abandonado por minha senhora e abriu a boca. O povo diz que ele
falou: “Já que eu saio criminoso, também são criminosos a mulher do falecido,
o irmão dela e o filho, que ia direto atrás de mim para eu fazer a morte. Me
prometeram cem mil e só me pagaram vinte. Disseram que tinham dois burros
gordos pra me botar fora desse lugar se a história viesse a lume e não
cumpriram nada. Eu fiz o crime por paga mas não sou o único culpado”.
Seu Domingos se viu apertado para defender o filho, a filha e o neto, mas
como tinha dinheiro, parentes coronéis e colegas da política com cargos
importantes, tirou os dois filhos do processo e tratou de defender o neto. Ele
nem sonhava naquele momento que seria assassinado alguns anos depois por
seus inimigos políticos em sua própria fazenda. Os amigos se tornaram
inimigos e fizeram questão de dar cabo em sua vida.
Joaquim ficou abandonado à própria sorte. Ou azar. O menino tinha
então treze anos e seu advogado disse que ele era uma criança e o fizeram
acreditar que teve parte na morte do pai. Sendo que isso não era a verdade. O
júri, que certamente já estava convencido da “inocência” do menino o absolveu
e condenou Joaquim à morte na forca.
O juiz recorreu da decisão, Joaquim ficou preso até morrer de fome e
sofrimento e o menino foi desfrutar com a mãe e os irmãos o dinheiro do
falecido. Paulo foi solto a mando de seu Domingos e mandado para bem longe.
Hoje a família dele mora num Vale da Serra, planta seu pedacinho de chão e a
gente nunca mais se viu, só sei disso por notícia.
Eu continuei a roçar, cuidar de bicho e fazer farinha até a Abolição,
quando tive que me virar mais Rosa e trabalhar muito para comprar nossa
rocinha. O paraíso não chegou, a seca vai e vem, mas nós não temos mais que
nos sujeitar a branco ruim. Hoje meus netos gostam de ouvir esses e outros
causos que eles pensam ser invenção deste velho. Velho que parece mesmo ter
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vindo de muito longe...

“eu estava dormindo, acordei com as pancadas que davam em


meu senhor, olhei e vi Manoel Joaquim acabar de matar meu
senhor com um machado, e vi junto dele meu senhor moço José,
vi Francisco Aussá meu parceiro, e aí Justino vaqueiro de meu
senhor”.

(Fala do cativo Paulo Angola em seu depoimento no processo


aberto pelo assassinato de seu Senhor).¹

¹ APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Processo Crime n° 26/920/19, Homicídio, Réu:
Manoel Joaquim. Vítima: Antônio José da Costa, Xique-Xique, 1859.

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Liberdade e descoberta no sertão
Vicente era aparentemente um escravo como outro qualquer. Trabalhava
o dia inteiro no garimpo do Arraial do Ventura, perto de Morro do Chapéu.
Suportava com fronte altiva a fome, o cansaço, os esporros do dono e, acima de
tudo, dava lucro, dava lucro e dava lucro.
Mas Vicente começou a pensar: por que eu tenho que trabalhar e meu
senhor só descansar? Por que recebo ordem, grito e chute calado se sou muito
mais forte do que ele. Por que vivo preso nesse ermo, se tem um mundo de serra
ao meu redor e escuto falar dos rios, do mar e da liberdade. Vejo que tem gente
que já foi escravo e não é mais. Será que é isso mesmo o certo para mim?
Vicente se considerava um homem comum. Mas acreditava que não era
Deus quem havia dividido o mundo entre senhores e escravos. Seu dono era
bem inferior a ele. Menos ativo, menos esperto, menos bonito e nada
simpático. Por que havia de ser aquela criatura pálida e brutal o livre e ele o
cativo?
Ele que fazia rir escravos, libertos e senhores. Que era forte e trabalhador.
Que sabia explicar coisas que a maioria das pessoas não entendia. Que
reconhecia um lugar bom de ouro assim que o via. Não tinha nada de inferior e
não seria a cor de sua pele que o manteria sujeito para o resto da vida.
Entrava dia e saía dia e Vicente cada vez mais pensava em ter uma
rocinha, uma casinha, umas roupas que não fossem trapos, uma mulher e umas
cabecinhas de cabra. Desejava poder levantar e dormir sem ouvir grito, sem
passar fome e sem levar pancada. Êta, como é bom sonhar.
E ao embalo desses sonhos, Vicente ficava cada vez mais cansado do
serviço, se sentia cada vez mais doente e ao mesmo tempo cada vez mais forte e
maior. Seu senhor ficava mais inútil e nojento aos seus olhos e pensava todos os
dias que aquela situação injusta teria que mudar, independentemente do que as
outras pessoas pensassem. Vicente passou a alimentar uma convicção: de um
jeito ou de outro, iria ser livre!
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Um dia ele passou a noite sem dormir com dor de dente. Teve vontade de
correr pro mato, de se matar; mas como a noite aumenta a dor, o dia amanheceu
e ele sentiu então um pouco de alívio. Mas seu corpo estava moído, não daria
para garimpar. Não conseguiu nem levantar da rede e a vontade que sentia era
de desaparecer daqueles ermos. De viver em um lugar onde houvesse luz, onde
existisse vida além dos cascalhos, da violência, da fome e de pepitas de ouro.
De qualquer forma, não tinha como ir para aquele riacho infernal garimpar
naquele triste dia.
Falou com seu senhor que lhe gritou que não! Por acaso ele estava se
esquecendo de que era escravo! Ele que era o senhor não se dava ao luxo de
passar o dia inteiro deitado numa rede, o que dizer daquele negro fedorento!
Que fosse trabalhar!
- Dor de dente? Isso é mesmo ressaca. Disse o senhor. - Eu sei disso
porque me sumiu uma garrafa de cachaça e eu desconfiava mesmo, sabia que
tinha sido um desses inúteis e aproveitadores desse bando de preguiçosos que
se compra e não presta para nada. Você é mesmo um escravo sem futuro e
insolente e assim que eu puder viajar para comprar novos cativos, vou me livrar
de você. E vá para o riacho que tempo é dinheiro.
Vicente se sentiu ferido em seus brios. Mentiroso, preguiçoso e ladrão. Já
era demais! Não poderia aguentar calado tal série de ofensas e ficou
completamente fora de si. Deu então um soco no senhor avarento, que caiu ao
chão após o som abafado. Em seguida, sacou um facão que este carregava na
cintura e o degolou ali mesmo. Ficou com o facão e iniciou então uma fuga,
após pegar na cabana do senhor farinha e nada mais.
Embrenhou-se pelas serras e em poucas horas não sabia mais que direção
tomar. Resolveu seguir os bichos e os riachos, que eram os sons da natureza e
andou por muitos dias. Passou serra, passou terreno plano, chegou em serra de
novo. Caçava com arapucas improvisadas, com lanças que fabricava. Comia
murici, puçá, fruta de rabo de cachorro, juá, quixaba e carne de caça com um
pouco de farinha. Sua sorte foi que estavam no verde, senão ele teria passado
24
muito mais aperto do que passou.
Mas Vicente pouco descansava e quase não dormia, por medo de gente
no seu rastro para vingar a morte do senhor rico, por medo de onça e de
cascavel. Tentava cochilar à noite em cima de galhos e folhas, mas tinha
pesadelos com o senhor que subia num buraco ofegante e todo ensangüentado e
o agarrava pelo pescoço. Sonhava também que jaracuçus o cercavam e lhe
picavam em todo o corpo e então ele soltava uma espuma pela boca
envenenado e sozinho. Se tivesse pelo menos uma rede!
Já muito cansado, Vicente avistou uma serra azulada muito bonita e
resolveu buscar um abrigo nela. Encontrou um vale exuberante e começou a
andar por ele. Havia um riacho que corria um longo espaço com uma água doce
e cristalina. Andava por prazer às margens daquele paraíso e se não estivesse
sozinho pararia por ali mesmo e colocaria um mocambo. Mas era preciso
continuar! Avistou uma toca e se ajeitou para dormir ali algumas noites
protegido da chuva e do frio. Pôde então descansar um pouco e se livrar ao
menos dos pesadelos das cobras. Ali lhe atemorizava mais a idéia do
surgimento de onças que seriam as donas daquela toca e o extermínio por elas
do indesejado visitante.
A diferença da toca era que havia menor possibilidade de cruzar com
cobras penduradas nas árvores que lhe dessem abrigo e não precisaria se
preocupar com a chuva que caísse durante a noite. Isso já representava um
grande progresso para alguém que não tinha quem lhe avisasse que havia
começado a pingar ou que uma forte chuva se aproximava. Mas o pior de tudo
era não ter com quem conversar. Tinha medo até mesmo de falar sozinho e ser
ouvido por possíveis senhores que denunciariam sua presença ou por policiais
que estivessem no seu encalço.
Como a solidão pode ser mais forte do que a beleza, Vicente decidiu
seguir. Andou léguas até achar uma fazenda que parecia ser de gente muito rica.
Decidiu se arriscar e se aproximar para ouvir voz de gente. Avistou um homem
negro e ficou muito feliz. Tentou então estabelecer contato. O homem a
25
princípio o repeliu, talvez por seu aspecto, pois vestia uma calça de algodão
suja e aos trapos. Estava ainda com o cabelo e a barba bastante crescidos e
cansado como um cachorro que tinha seguido o dono.
Mas ele começou a falar e a se explicar e o homem felizmente era
brasileiro como ele e o entendia muito bem. Era um escravo do homem mais
poderoso daquelas paragens, o Coronel Ernesto Augusto da Rocha Medrado;
se chamava José e disse que poderia escondê-lo alguns dias em sua casa, até
inventar uma história para o coronel. Alguns dias depois, Vicente já estava
barbeado, mais gordo e vestido quando foi apresentado ao Coronel Ernesto
como um liberto vindo das Lavras de Lençóis em busca dos garimpos do
Gentio.
O Coronel, vendo a possibilidade de obter serviço barato pelo menos até
a colheita, o convidou para ficar mais algum tempo na Fazenda Conceição,
dizendo que o garimpo não estava bom e que ele poderia ajudá-lo com a
plantação e as criações. Vicente ficou, até porque não sentia nenhuma saudade
do serviço de garimpo e gostou de viver entre os escravos do Coronel, que eram
dezoito, entre homens, brasileiros e africanos, mulheres e crianças.
Vicente plantou, arrancou mandioca, tocou vaca, tirou leite, conheceu
Joana, mulata faceira e namoradeira que deu muita corda para ele e fez com que
puxasse. Ele estava apaixonado por ela, mas se sentia como alguém sem lugar e
viu que seria perigoso permanecer por muito tempo ali, em casa de alguém tão
conhecido.
Resolveu então seguir viagem, mas nunca se esqueceu do riacho e da
grota que lhe deram abrigo no momento em que mais precisou. Passou pelo rio
e pensou que seria perigoso ficar na Vila, pois por lá passava muita gente e
poderiam saber do assassinado e desconfiar dele. Continuou sua vida de
serrano e em um lugar chamado São Domingos do Assuruá conheceu um
homem de nome Venceslau, filho de uma liberta com um português, que estava
querendo descer a serra e viver da agricultura em terrenos mais planos, mas
tinha pouco dinheiro para essa mudança.
26
Vicente lhe falou então acerca do paraíso que tivera oportunidade de
conhecer, onde passou alguns dias e teria ficado se tivesse companhia.
Ninguém morava lá, era pé de serra, tinha um grande riacho e terreno plano que
passava da areia para o barro em poucos metros e ele poderia ali plantar, criar e
viver muito bem. O lugar com morador mais perto parecia ser a Fazenda
Conceição, do Coronel Ernesto e Venceslau poderia ver com este a quem
pertencia.
Venceslau foi, indicou a área e ela pertencia justamente ao Coronel. Foi
armada então uma comitiva para explorar as terras. Ela foi formada por um
filho do Coronel, um escravo deste, Venceslau, seu cunhado Gonçalo e
Vicente. Encontraram a área e viram que não havia lá apenas um riacho. A
menos de uma légua para o sul havia outro, que seria futuramente batizado de
Riacho do Meio e a poucos metros de distância para o norte havia sucessivas
correntes. A que lhes chamou mais atenção seria depois batizada de Riacho de
Areia. Estabeleceram os limites, Riacho do Meio ao Riacho da Areia e o preço:
quinhentos mil réis.
Venceslau não titubeou e tratou logo de levantar o valor vendendo tudo o
que tinha em São Domingos. Seu cunhado Gonçalo também quis adquirir
terras naquele oásis e comprou a parte que ficava ao sul da de Venceslau, se
mudando para lá antes deste e batizando seu lugar de Olho d'Água, numa
evidente valorização do líquido precioso do sertão. A Fazenda de Venceslau se
chamaria Canabrava e ele se mudaria para lá com os filhos, netos, a escrava
Maria e seu filho Antônio, além de alguns agregados que iniciariam a
reocupação deste trecho do sertão baiano.
Vicente, mesmo convidado a ficar ali decidiu que seria um homem do
mundo e seguiu garimpando, plantando, aboiando, tirando sisal, fazendo o
serviço que aparecesse, mas sem jamais se arrepender de ter se tornado um
homem livre, o que lhe possibilitou escrever sua história com seus próprios
passos e ajudar outras pessoas a construírem a sua.

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Conta-se que na fundação da localidade de Canabrava,
que daria origem ao município de Uibaí, houve a
participação de um cativo conhecido como Vicente
Veloso, que teria matado seu senhor no litoral ou em
Morro do Chapéu e fugido para a região, fato ocorrido na
década de 1840.²

O senhor Valmir Rosa de Miranda, um memorialista local,


narra o ocorrido:
«[...] ele se revoltou contra o patrão e entraram em luta
corporal e ele derrubou o patrão lá por cima de umas
pedras e tirou uma espada que o patrão portava na
cintura e sangrou o patrão deixando ele lá inerte sobre
uma poça de sangue.»³

² Osvaldo Alencar Rocha; Edimário Oliveira Machado. Canabrava do Gonçalo: uma Vila do baixo-médio São
Francisco. Brasília: Edição do Autor, 2000. 2 ed. p. 50.
³ Depoimento de Valmir Rosa de Miranda. In.: Taiane Dantas Martins. Viver pra parir, labutar pra não morrer:
Cotidiano de trabalhadoras rurais na Vila de Uibaí, Xique-Xique (1850-1888). Monografia (Especialização em
História: cultura urbana e memória). UNEB - Universidade do Estado da Bahia. Jacobina, 2008. p. 68-75.

28
Trabalho, amor e dor.
Sentada nessa pedra da Ipueira, fico vendo minha vida passar diante dos
meus olhos. Gosto de lavar roupas, pois fico sentindo a água me tocar o corpo e
lavar as dores e alegrias que carrego sempre comigo.
João de Deus surge no alto do barranco do rio. Ele está armado e com cara
de poucos amigos. Já sou capaz de imaginar qual vai ser o final disso tudo. Ele
vive cego. Sempre está cego de ciúmes e cismou que quero ficar com o pai de
minha filha, que hoje completa um ano de vida.
Conheci João de Deus há uns três meses. Ele veio de Jacobina e é soldado
de polícia. Incutiu por mim assim que me viu e queria que eu ficasse com ele a
qualquer custo. Até que gostei dele, mas não sonho em passar a vida toda ao
lado dele. Isso não! É muito bruto, sem estilo, só fala gritando e dá mais atenção
aos seus cachorros do que a mim. Sem falar que é canguinho e só compra ossos
e tripas para a gente comer. Um soldado não deve ganhar tão pouco quanto ele
diz. Pelo menos é o que eu penso.
Ciumento que só o demônio, João vê maldade em cada um dos meus
passos. Enquanto converso com minhas companheiras lavadeiras, cativas e
livres, ele acha que estou marcando encontros com outros homens, ou
querendo saber sobre eles na cama. Acha que só penso em estar com algum
macho e que não tenho mais nada para fazer na minha vida, além disso.
Quando estou na casa do meu senhor, sempre acha que ele está me
atraindo para a cama e grita comigo sempre que eu chego de lá. Se estou no eito,
acha que estou conversando com os outros escravos e, pior, observando o
parente do senhor enquanto ele trabalha. Morre de ciúmes mais ainda dos
brancos e dos livres.
Não tenho tido paz nesses três meses. Deixei um bule sem asa por um
bule sem fundo. É o que minhas companheiras dizem e elas têm razão. Vivia
com um escravo de meus senhores, meu companheiro de cativeiro, mas esse

29
também era uma cruz. Sempre achava que os outros homens estavam
interessados em mim e via má intenção em tudo e em todos.
Acho que todos os homens com os quais convivo têm esse ciúme todo de
mim porque eu tinha um caso com o filho de meu senhor e ele sempre ia atrás de
mim, às vistas de todos. As outras mulheres, escravas e livres, tinham ciúmes
de mim por isso. Mas o pai mandou ele estudar em Recife e nunca mais nos
encontramos.
Depois dele fiquei com esse escravo que falei. Charmoso e cobiçado
como ele só, mas vivia achando que tinha outros homens me perseguindo. Bem
que tinha alguns e eu gosto disso, mas não me encontro com nenhum deles. Só
que ninguém acredita em mim. Minha filha é filha desse escravo e ele foi
vendido para um senhor da Barra.
A Barra é meio perto daqui, mas ele não pode vir porque o senhor não
deixa, tem medo que ele fuja e a última vez que nos vimos já faz quatro meses.
Gosto dele e se pudesse passaria toda a minha vida ao seu lado. Não me tratava
tão bem, mas era um bom companheiro. João de Deus sabe disso e por isso vive
aterrorizado, com medo de que ele volte. E se ele voltasse realmente eu ficaria
com ele.
Um dos poucos prazeres da minha vida são os homens, pois não posso
sair para festas. Quando não são meus companheiros que proíbem, são os meus
senhores que não permitem. Dizem que escrava que sai pra o batuque não
trabalha direito no outro dia. Sou a única escrava de meus senhores que dorme
na casa deles, mas eles estão pensando em me deixar dormir na casa de João, o
que já aconteceu esta noite.
Por dormir na casa dos senhores sou mais vigiada, o que é muito ruim.
Por outro lado, como comidas melhores como carne fresca e requeijão. Outra
alegria que tenho é prosar com as outras lavadeiras, por isso capricho tanto nas
roupas: as minhas ficam sempre branquinhas e passo elas como ninguém.
Quero lavar roupas para sempre.
João de Deus já vem gritando, como sempre, mas nem sempre anda com
30
a arma na mão. Está perguntando por que eu não dei comida aos cachorros
antes de sair, se estava com a cabeça nos outros machos, se não sei cuidar da
casa. E outros absurdos mais.
Nem pude lhe dizer que minha senhora disse que hoje eu teria que lavar
também as roupas de cama e que, por isso, tive que sair bem cedo, senão não
daria tempo. Que por isso me esqueci dos cachorros. Mas ele não queria me
ouvir.
Apontou o revólver em minha direção e deu um tiro. Acho que ele pegou
no meu estômago, não sei. Senti as vistas escurecerem. E toda a minha vida
começa a passar diante dos meus olhos enquanto minhas companheiras gritam
e correm. Algumas delas tentam então me carregar e me colocam embaixo de
uma planta.
Me lembro agora de minha mãe e de minha filha. Ser mulher e cativa.
Quem merece essas duas sinas de uma única vez? Minha mãe sofria ao ver cada
um dos seus filhos ser arrancado dela e vendido. Só me deixaram porque eu fui
a mais velha e minha senhora queria uma lavadeira, pois minha mãe era sua
costureira. E eu vi cada sofrimento dela, que não tirava os filhos, pois tinha
sempre a esperança que seus senhores mudassem de ideia. Mas eles não
mudavam. Nunca mudaram.
Só tive essa filha porque eu gostava muito do pai. E ainda gosto. Se ele
não tivesse sido vendido não nos separaríamos nunca, pois ele também gosta
muito de mim. Mas só pudemos viver os três juntos por oito meses. Minha filha
ainda estava na barriga. Até que ele foi vendido.
Planejávamos trabalhar muito. Mais ainda do que eu trabalho, para
comprar a liberdade de nós três. Primeiro seria a minha, pois se eu engravidasse
novamente, nosso próximo filho seria livre, depois a de nossa filha, que por ser
criança era mais barata. Depois, finalmente a dele, pois seu senhor não se
importava de vender os cativos, desde que achasse um bom dinheiro por eles.
Eu já estava me habituando a trabalhar à noite. Bordava a luz do
candeeiro, fazia rendas e já estava planejando vender tudo para conseguir
31
algum dinheiro. Ele estava aprendendo a trabalhar como vaqueiro com o
irmão, pois assim poderia ganhar mais e realizaríamos nosso sonho, quando
chegou a notícia da venda. O senhor disse que como ele já sabia trabalhar como
vaqueiro, seria vendido para outra fazenda.
Ele implorou para que ou não fosse vendido ou fosse vendido para algum
senhor em Xique-Xique, mas seu senhor disse que o venderia para quem
pagasse melhor e esse alguém era da Barra. Choramos juntos até secar os olhos
e inchar o rosto, mas não havia saída. Seríamos separados.
Ele queria fugir, mas como iríamos fugir? Nós dois até que seria mais
fácil, mas sair pelo mundo com uma criança tão pequena seria muito perigoso.
Dormir ao relento, correr da polícia e dos cachorros. Simplesmente impossível.
Eu não largaria minha filha. E se ele fugisse sozinho poderia ser mais difícil de
nos reencontrarmos.
Quando João de Deus apareceu e se engraçou para meu lado pensei que
essa poderia ser a minha chance de comprar minha liberdade e ir atrás de meu
homem. Um soldado de polícia deve ganhar bem e poderia me ajudar na
alforria minha e de minha filha.
Comecei a me encontrar com ele que logo quis que morássemos juntos.
Minha senhora disse que concordava desde que eu continuasse a lavar as
roupas com o mesmo cuidado e capricho. Mas tinha a condição de que eu
passasse mais um tempo dormindo na casa deles. Aceitei imaginando que
minha vida melhoraria, mas me enganei profundamente. O tempo que antes eu
dedicava à costura e aos bordados, agora tinha que me dedicar às coisas a fazer
na casa dele, aos seus cachorros e a suas roupas. Virei escrava dele que só
falava comigo aos gritos e me tratava na cama como a uma puta.
Ele não gostava da minha filha, gritava com ela e disse que quando
tivéssemos um filho, aquela menina seria entregue a sua dona. Queria poder
sair desse inferno. Mas não posso, ele disse que se eu o largasse ele me mataria,
que se eu pensasse em outro homem me mataria e que eu ia ficar com ele
enquanto ele me quisesse.
32
Quando lhe falei de minha alforria, ele disse que eu não precisava de
liberdade. Já morava com ele, já podia trabalhar na casa dele e continuar
trabalhando para minha senhora, então não precisava de liberdade. Quem
precisava de liberdade era o nosso filho e ele juntaria um dinheiro para alforriá-
lo assim que nascesse. Seria registrado como livre e se tornaria um grande
coronel. Esse era o desejo dele, mas eu estava demorando para engravidar.
Mal imaginava ele que eu tomava remédios do mato todo mês para não
ficar prenha, pois não queria um filho daquele demo! Não sei como vou me
livrar desse trançado do capeta em que me meti.
Agora nem sei se vou ficar viva, pois meus sentidos fogem de mim e
voltam o tempo todo e as outras lavadeiras gritam que eu estou morrendo.
Minha filha... Pobre coitada! O pai morando na Barra e cativo, sem poder
vê-la, sem poder fazer nada por ela. Uma mãe que viva, não poderia ajudá-la
muito e morta significará uma vida totalmente em cativeiro, sem família,
parentes ou aderentes. O padrasto lhe odeia e certamente nada fará por ela.
A única esperança é sua madrinha, espero que interceda por aquele anjo.
Tenho esperança de que ela consiga a liberdade e vá viver com o pai. Que Deus
me ouça. Já não peço pela minha vida que em qualquer caso nada mais
significa. Vejo tudo escurecer... Me despeço da miséria e da alegria. Adeus.

“Delegacia de Polícia da Villa Chique Chique, 16 de Agosto


de 1873.
Ilmº Senr.
Tendo o soldado de polícia destacado nesta Villa João de Deos
Roza assassinado com um tiro a escrava de nome Antonia, no
lugar denominado Ponta da Ilha, distante desta Villa um quarto de
légua, cumpre que V. Srª proceda ao competente corpo de delito
na ofendida.
O crime foi dado na presença do soldado João Barboza
Damaceno que se achava mais distante do lugar, o qual prendeu
imediatamente ao mesmo e me veio apresentá-lo.
Deus guarde a V. Srª

33
4
Alferes José Netto”

Testemunho de João Barbosa Damaceno, 26 anos, soldado de


policia.

“Respondeu que o réu presente no dia dezesseis do corrente mês pelas três
horas da tarde pouco mais ou menos, convidara a ela testemunha para
irem lavar uns cavalos na roça de D. Lionídia, e de lá irem ao Miradouro
comprar alguns ossos, e ela testemunha aceitando o convite assim o
fizeram, e ao passar pela ponta da Ilha, o réu o convidou para passarem aí
para dizer a escrava Antonia que quando viesse para a casa, cuidar em
uma panela de 'de comer' que ele tinha deixado no fogo, e dar o que comer
a uns cachorrinhos que deixara em casa, e ela testemunha o
acompanhando até o barranco do rio, ele apeou-se e desceu para
conversar com ela, e com pouco tempo ouviu um tiro e olhando para baixo
viu ela cair no chão, e ele de junto dela com um pistola; de pois do que ela
testemunha o chama para virem para o Quartel e ele o acompanhou, e
perguntando ela testemunha para que ele tinha feito aquilo, ele respondera
que tinha sido para desabafar o seu peito, estando nessa ocasião bastante
5
tomado de aguardente, e que vinha se entregar a prisão pois era homem”.

Maria, parda, filha de Antonia e nascida dia 17 de agosto de 1872, ficou


órfã um dia antes de seu primeiro aniversário. Foi batizada na Igreja Matriz
dia 15 de setembro de 1872 e teve como padrinhos Felix Pinto d'Almeida,
6
sendo que tocou a coroa de Nossa Senhora Maria Francisca Soares.

4
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 25/897/15, Homicídio. Réu: João de
Deus Roza, Vítima: Antônia (escrava), Xique-Xique, 1873.
5
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 25/897/15. Homicídio, Réu: João de
Deus Roza, Vítima: Antônia (escrava), Xique-Xique, 1873. Grafia mantida do original.
6
Paróquia do Senhor Bom Jesus de Xique-Xique. Livro de Registros de Batismos, 1871-1886.

34
Quero o mar!
Às vezes penso que estou sonhando, pois o que acontece na minha vida
está mais para pesadelo do que para vida real. Apesar de que a vida real às vezes
pode ser pior do que qualquer pesadelo.
Fui vendido na minha terra natal, revendido para o litoral e embarcado
como escravo para essas terras do outro lado do mar. Cheguei a um lugar
chamado São Salvador e, mesmo na condição de escravo, fiquei feliz porque a
coisa que mais me apetecia era ver o mar! Mas nem por isso deixei de sentir
saudades de minha mãe, minhas irmãs e minha terra, com suas plantas e bichos
e minha vida em liberdade.
Quando desconfiei que seria vendido novamente, fiquei triste pensando
qual seria o meu destino. Viver seco, triste, longe do mar, longe da prosa que
alimenta cada dia e da chuva que lava os desgostos. Mas fui levado para um
lugar chamado Santo Amaro e lá, convivendo com muitos escravos como eu,
pude entender melhor essa língua estranha e, o que é melhor, tinha com quem
falar em minha língua, tinha gente que gostava de dançar as danças minhas, de
cantar minhas cantigas, de beber cachaça e lamentar de saudade como eu.
E, para enfeitar tudo isso, tinha o mar! Mar sereno que servia de cantiga
para o trabalho no eito e onde a gente pegava peixe para se alimentar. Mas,
como o certo pode ser duvidoso, um dia apareceram uns homens estranhos e
roubaram outro colega e eu enquanto a gente terminava o serviço do eito.
Carregado, apertado, esfomeado, acorrentado, mais uma vez. Mais uma vez.
Fui levado mato adentro e não ouvia mais o barulho do mar. Não sentia
mais o cheiro do mar. Mal via água para beber e a sede e a fome se tornaram
nossas companheiras. Depois de muitos dias de caminhada avistamos um rio.
Fiquei esperançoso. Não era o mar, mas de sede eu não morreria mais. Lá
fomos vendidos a dois senhores diferentes e fui batizado pela terceira vez. De
Geraldo, nome dado quando cheguei a São Salvador, passei a José, perto do rio
São Francisco. Os santos estavam perto de mim, mas não vinham a meu lado e
35
fiquei imaginando o que estaria por chegar.
Porém, eu não seria capaz de imaginar tanta coisa ruim. Dos
companheiros que falavam, dançavam e pensavam como eu nenhum restou, só
havia escravos brasileiros que pensavam como os brasileiros e pouco
lembravam o meu povo, há tanto deixado para trás. Do mar passei paro o rio, do
rio fui para a serra e da serra, pro garimpo.
Para o sofrimento do garimpo, pois mal o dia clareava começávamos a
cavar, lavar, lavar ou cavar. A comida era pouca, nada de peixe para pescar,
nada de música para dançar, nada de conversa boa para acalentar. Só cavar,
cavar e cavar... Até eu me enterrar num daqueles buracos em que fui enfiado ou
morrer de fome ou entalado num punhado de farinha seca, carne seca. Vida
seca.
Um dia o meu senhor me disse: nós vamos para Lençóis, onde tem muito
ouro, diamante e muita riqueza. Eu passei de um santo pra outro: Salvador,
Amaro. De um santo para uma planta, Xique-Xique; de uma planta para um
osso, Cotovelo e de um osso para um lençol. Onde é que eu iria parar? O buraco
não tinha fundo? Nunca se acabava o meu mundo?
Fomos. Subia ladeira e descia ladeira. As calças rotas, a carne fraca, a
pele dura, dura como aquela terra que eu tinha que cavar, cavar e cavar. Os
Lençóis eram mais molhados que a serra, mas não havia mar, não havia festas,
só trabalho. Trabalho, suor e dor.
Entrava dia e saía dia e cada vez que eu achava uma pedrinha de ouro, ao
invés de estar mais perto de ir embora e talvez plantar e colher, eu ficava mais
dentro do buraco. Meu senhor queria mais e mais e mais...
Se eu conhecesse essas terras, se pudesse saber a direção a tomar, eu
fugiria e viveria perto das águas, viveria livre e usaria meu suor para ser feliz,
para comemorar cada espiga de milho que arrancasse da terra ou cada vagem
de feijão que abrisse para a panela. Mas não sei nem para que lado fica o mar.
Parece que esse Brasil não tem fim e que cada buraco que entro me deixa mais
longe de onde eu vim. De onde eu nasci, de onde eu tenho com quem conviver.
36
E se meu senhor não é meu senhor, não há nada que eu possa fazer?
Ninguém pode me ajudar? Se não posso sair daqui sozinho, será que não posso
ser levado? Se pelo menos esse desgraçado me deixasse sozinho um minuto.
Mas ele não deixava, vivia nos meus calos e ocupava meus espaços como uma
praga que tomava conta de meu viver.
A cada noite eu pensava: se um dia eu ficasse sozinho e pudesse ir à
polícia. Talvez eles acreditassem em mim. Talvez me levassem de volta para
perto do mar e me tirassem desses buracos.
Esses pensamentos passaram então a me perseguir e eu vivia para
presenciar o dia em que sairia das correntes daqueles lençóis. Fosse através de
alguém que conhecesse aqueles matos e me ajudasse, fosse pela polícia que
talvez me tirasse das garras daquele senhor.
Um dia meu senhor teve uma dor de barriga desgraçada, deve ter sido da
comida pouca, do calor e de viver naquela mesquinhez de guardar dinheiro e
crucificar negro. Percebi que era a minha grande chance e corri em direção da
delegacia. Quando cheguei lá, a felicidade foi de ter chegado à minha terra,
saído do buraco e visto um banquete com peixe, carne e muito mais.
Entrei. Pedi para falar com o delegado, com minha fala meio misturada
de africano. Meio mar da Bahia, meio serra do sertão. Perguntaram o que eu
queria dizer a ele e eu falei que precisava falar que fui roubado e estava com um
dono falso. Acharam importante o que eu disse e foram chamar o delegado. Ele
chegou e pediu que eu contasse direito a história. Disse a ele que eu viva em
Santo Amaro, na propriedade do Conselheiro Saraiva e às vezes trabalhava
para seu filho em Salvador. Um dia estava no eito de cana de meu senhor e fui
carregado por dois homens armados para a Vila de Xique-Xique e de lá tinha
sido trazido para trabalhar ali.
O delegado disse que eu ficasse na delegacia que ele iria ver se era
verdade minha história. Foram dos melhores dias de minha vida. Contava
minha história a um monte de soldados e quase não trabalhava. Fazia só alguns
serviçinhos na delegacia e tinha um pouco de comida três vezes por dia.
37
Meu senhor de mentira, quando voltou do mato e não me viu, deve ter
sentido uma das maiores dores de sua vida. Deve ter pensado: “Meu Deus!
Minhas pepitas de ouro foram embora durante minha cagada! Preciso
recuperar”. Ele deve ter andado mato acima e mato abaixo, perguntado a todas
as pessoas se não tinham visto um negro alto, magro, cabeludo e barbudo que
trabalhava nos garimpos dali.
Todo mundo já tinha visto muitos negros magros e barbudos. Isso não era
novidade em nenhum garimpo e ele demorou três dias para aparecer na
delegacia. Mas não contava que o filho do Conselheiro Saraiva já tinha
conversado com o chefe de polícia em Salvador e denunciado o sumiço de dois
negros de seu pai da roça em Santo Amaro, mostrando a ele os documentos de
compra dos dois.
Meu falso senhor chegou na delegacia aos berros e disse que soube que
seu escravo estava preso ali, sem ter cometido crime algum e que deveria voltar
ao serviço. Quando o delegado lhe falou que eu havia sido roubado e seria
devolvido ao meu dono que morava em Santo Amaro, meu senhor ficou branco
como um algodão e disse que iria provar que tinha me comprado por
quinhentos mil réis!
O delegado disse que ele apresentasse os documentos e ele falou que
estes haviam ficado na Vila de Xique-Xique. O delegado disse que ele fosse
buscar e enquanto isso eu ficaria na delegacia e que se ele demorasse, eu seria
encaminhado ao Conselheiro que era meu verdadeiro dono e que ele poderia
até ser preso por furto. Meu senhor ficou alucinado, como alguém que acabou
de perder a própria mãe e disse que ele estava sendo injustiçado naquela terra,
só porque era de fora e que seu direito de trabalho e de propriedade não estava
sendo respeitado e muitas coisas mais.
O delegado disse que ele falasse baixo, fosse embora e procurasse as
provas de sua inocência. Eu fiquei feliz e satisfeito por ver meu senhor naquela
situação de desespero e por alguns instantes esqueci as minhas dores nas
costas, nos pés e no estômago. Fiquei imaginando o sabor de um cozinhado de
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camarão e já podia ouvir o som e sentir o cheiro do mar.
Uma semana depois o filho de meu senhor, acompanhado de Cosme, um
escravo muito meu amigo, vieram me buscar. Aquele dia foi como um clarão
no céu de minha vida noturna e eu pude respirar livre por um minuto ao menos.
Cheguei a Salvador onde servi carregando baldes de água, carregando
cadeiras de arruar, colhendo frutas para Mariana vender, pescando ou
remando. As dores nas costas e nos dedos não pararam. O estômago não estava
de todo cheio e o mar às vezes fedia a peixe recém-tratado e tinha o gosto de
suor. Mas pelo menos eu tinha meus companheiros com quem eu cantava
cantigas de minha terra e lembrava junto com eles do anoitecer por lá. Ao
menos podia viver fora dos buracos das serras e bem distante das pedras
encantadas.

7
No ano de 1856 José, Africano , foi vendido por Antônio
Joaquim de Figueredo, pelo valor de 550$000 a Modesto
Gonsalves de Meireles que, a partir de então, segundo o último
8
afirmou, entrou na “posse maneira e pacífica do mesmo”.
Em março de 1860, encontrando-se nos garimpos, José
encaminhou-se à polícia e “denunciou na Villa de Lençóis
chamar-se Geraldo e não José e que fora furtado do poder de seu
9
legítimo senhor em Santo Amaro”.

O seu “legítimo” proprietário seria o pai do Conselheiro Saraiva,


este residente em Salvador, para quem Geraldo foi rapidamente
enviado após serem apresentados os documentos que
comprovavam a posse.

7
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciário, Processo Cível, n° 14/0502/45. Escritura de Venda de
Escravos. Modesto Gonçalves de Meirelles. 1860.
8
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciário, Processo Cível, n°14/0502/45. Escritura de Venda de
Escravos. Modesto Gonçalves de Meirelles. 1860.
9
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciário, Processo Cível, n° 14/0502/45. Escritura de Venda de
Escravos. Modesto Gonçalves de Meirelles. 1860.

39
O último grito de uma mulher.
Josepha era filha de uma escrava com um filho de seu senhor e trabalhou
por muito tempo costurando, fiando e tecendo até conseguir comprar sua
liberdade e viver sobre si. Mas sua mãe, também já liberta, vivia lhe cutucando
e dizendo que uma mulher livre e séria tinha que casar, e casar bem. Que ela
deveria procurar um homem livre que tivesse terra e gado e fosse, de
preferência, branco.
Josepha até gostaria de encontrar alguém que ela gostasse de verdade,
mas passou tantos anos fiando, costurando e tecendo, que desaprendeu a olhar
para as pessoas e não tinha ainda se apaixonado. Não concordava com sua mãe
acerca da ideia de que o homem com quem deveria se casar já estaria definido
pela cor e pelas posses.
Ela seguia seu caminho e tentava não se preocupar muito com essas
questões. Costurava para muitas mulheres da Vila e tinha amigas para
conversar e alegria para poder passear. Até que um dia chegou à Vila um
homem que viu nela algo que parecia não existir em nenhuma outra mulher e
insistiu em perseguí-la.
Até que o homem era bonito, mas ela não agradava do jeito selvagem e
grosseiro dele. Ele falava com Josepha como se ela fosse um bicho do mato ou
uma criança mal criada. Mas sua mãe agradou do tal homem. Ele não era lá
muito branco, mas tinha o cabelo liso e o nariz afilado, apesar da pele queimada
e dos lábios grossos. Mas o melhor é que ele contava que tinha muitas terras
para os lados da Fazenda Olho d'Água e algumas cabeças de gado, porcos e
cabras. Era o homem dos sonhos de Dona Margarida, mãe de Josepha.
E Dona Margarida se tornou a grande aliada dele. Amanhecia e anoitecia
dizendo a Josepha que outro homem igual aquele a filha não iria encontrar.
Bonito, rico e solteiro. E que ainda tinha intenções sérias com ela. Deveria
aproveitar aquela sorte e casar-se com ele ou iria costurar até ficar cega e

40
morrer sozinha e abandonada como a sua triste mãe.
Josepha pensou que talvez sua mãe tivesse razão e resolveu aceitar a
proposta. Ali mesmo o padre fez o casório e aquela mulher montou num cavalo
e andou por dias até chegar ao Olho d'Água. A riqueza do marido era uma roça
que ficava longe de sua casa e duas cabeças de gado, cinco cabras e três porcos.
Mas o pior é que se ele era bruto perto de sua mãe, longe dela era um homem
violento e ciumento ao extremo.
Josepha não encontrou clientes em número suficiente para trabalhar
sempre com costura e resolveu ajudar o marido na roça. Era grito em casa e
chute na roça. Soco na rua e trabalho em todo lugar.
Esse tratamento deixava Josepha cada vez mais indignada e ela pensava
seriamente em se separar do marido. Como ele nunca concordaria com a
separação, ela precisava pensar em uma maneira de fugir, mas tudo parecia
bem difícil, pois sua mãe não a aceitaria de volta e diria que ela era uma mulher
vadia por ter abandonado o marido e que se ele lhe batia era porque tinha
motivos. Não conseguia achar uma solução, pois não tinha nenhuma amiga ou
homem que pudesse ajudá-la. Estava perdida.
Um dia ela e o marido iam para a roça e havia um pé de imbu no meio do
caminho. Seu marido lhe disse que ela fosse tirar uns imbus para ele e ela
respondeu que ele tinha mãos e se queira imbu que fosse tirar. Seu marido
transfigurou-se, ficou vermelho, roxo e avançou em sua direção.
Sacou uma faca que trazia na cintura e lhe deu uma facada na barriga. Ela
caiu num grito de dor e o rosto dele voltou à vida e teve um lapso de razão. Saiu
correndo e chorando, pois mesmo sentindo raiva da mulher em vários
momentos, não suportava a ideia de viver sem ela. Josepha era a luz do seu
amanhecer e o acalanto de suas noites de frio. A companhia de suas horas de
trabalho e a saciedade em seus momentos de fome.
Flor encontrada no barranco do rio. Mas flor espinhosa aquela! Tinha que
lhe desobedecer? Tinha que ficar de conversa fiada com tudo quanto era
mulher do Olho d'Água? Naquelas conversas devia perguntar pelos homens,
41
pelo gosto e jeito deles. Podia até arrumar pra conversar com eles, se encontrar
com eles quando dizia que ia levar a vaca pro circo, lavar a roupa no riacho ou
tirar feijão para cozinhar.
Josepha, motivo das alegrias e das agonias, único descanso da vida.
Linda mulher que deu trabalho para encontrar, trabalho para casar, trabalho
para amansar e trabalho para matar!
Mas ele não poderia deixar sua mulher ali, com as tripas de fora. E se ela
não morresse? Iria ficar dando trabalho para ele dia após dia, agonizando num
sofrimento sem fim, desmanchando aos poucos numa doença sem remédio.
Numa dor sem descanso.
Ele precisava voltar e acabar de vez com a vida dela, a vida da mulher que
foi a grande conquista de sua vida. Conquista à qual não soube dar valor, não
soube aproveitar, não soube ser companheiro. Não soube saber amar.
Enquanto isso Josepha pensava em sua vida. Cativa do senhor. Cativa da
mãe. Cativa do marido. Trabalho, trabalho e trabalho. Sempre solitária, nunca
ouvida, nunca amada. Todos a queriam, mas ninguém soube a conquistar. Ela
que tinha tanto amor para dar, tanta felicidade para compartilhar, tanta vida por
viver.
Por que tivera essa sina? Nem sua morte havia sido bem matada. Mal
nascida, mal vivida, mal morrida. Ela que era mais bela que as outras! Tão
prendada! Tão encantadora! Era o que todos diziam, mas sua beleza só serviu
para despertar a cobiça dos homens e a inveja das mulheres. Sempre fora
detestada, sempre fora desejada, sempre fora mal amada, odiada. Suas prendas
só serviram para lhe fazer trabalhar dia e noite; de dia no eito, de noite na
almofada, na agulha. Seu encanto só atraiu solidão, distância e tragédia.
Quanta tragédia.
Seu marido reapareceu. Disse que veio para terminar o serviço senão ela
iria lhe dar trabalho demais. E lhe desfechou mais seis facadas, rasgando-lhe a
roupa e arrancando seu sangue da garganta, do rosto e das pernas.
Josepha deu um último suspiro e nunca mais se questionaria sobre o
42
porquê da beleza trazer tanta feiúra e do amor trazer tanta dor. Seu corpo ficou
ali: esfacelado, aos trapos, jogado embaixo do pé de imbu.
Seu marido saiu correndo em direção ao Morro do Chapéu e de lá foi para
Jacobina, mas despertou suspeitas, pois um homem suado, esfomeado,
assustado e aos trapos não passa a imagem de um viajante qualquer. Foi detido
e dois dias depois chegou a notícia de que um homem havia matado a esposa na
Vila de Xique-Xique e era procurado pelo crime.
Foi enviado para a delegacia de Xique-Xique onde sentiu pela primeira
vez o que era sofrer de verdade. Honório, esse era seu nome, nunca foi rico, mas
também não passou necessidades. Sempre teve a comida na mesa, o trabalho na
roça, alguma criação e um cavalo para ir passear na Vila.
Participava das festas que tinha aos arredores e nunca havia se
apaixonado. Nenhuma mulher parecia ser suficiente para ele, que brincava
com várias e não ficava com nenhuma. Quando viu Josepha, ficou fora de si.
Nunca havia visto uma mulher tão linda e forte. Tão decidida e prendada. Tinha
que se casar com ela de qualquer forma. E fez tudo que pôde para isso.
Dava presentes a Josepha, a sua mãe, ia com freqüência à Vila, que ficava
bem distante de sua casa e contava histórias mirabolantes de riqueza e poder.
Até que conseguiu o objetivo. Casou-se com a mulher mais encantadora que já
havia visto, mas não sabia como lidar com isso.
Não teve um só momento de paz após o enlace e só pensava no quanto os
outros homens deveriam desejá-la. Sentia ciúmes terríveis e sempre achava
que ela reparava nas qualidades deles.
Vivia imaginando o dia em que encontraria um homem em cima de sua
mulher e até nos momentos em que estavam sozinhos, se sentia vigiado e
perseguido. Tornou-se o pior marido que poderia ser e achava que isso faria
com que ela abandonasse a idéia de traí-lo, por medo.
Mesmo assim não tinha paz e ter encontrado a mulher que considerava
perfeita foi a sua ruína. Vivia pensando que não agüentaria perdê-la e não
percebia que a afastava cada vez mais de si. No fundo sabia que ela não o amava
43
e esse conhecimento era sua maior desgraça.
A única coisa que Honório tinha certeza era de que não aguentaria ver
Josepha com outro homem e após matá-la sentiu certo alívio em saber que isso
nunca iria acontecer. Se não seria dele, só dele, era melhor que não fosse de
mais ninguém. Era o que pensava e ao menos nisso havia sido bem sucedido.
Naquela cela de cadeia ficava relembrando seus meses de casado. Por
que nunca fora feliz tendo aquela pepita de ouro? Mas o ouro pode também
trazer desgraça e foi o que aconteceu com ele.
Honório pensava o que teria acontecido se tivesse sido um bom marido.
Mas como as coisas haviam acontecido não teria saída. Chegou à conclusão
que nunca sairia daquela cadeia onde emagrecia e adoecia com uma
intensidade que ele seria incapaz de imaginar. Certamente o casamento e a vida
dele e da mulher teriam durado mais, mas agora era tarde para lamentar.
Ele havia perdido tudo. Sua roça, sua esposa, sua saúde e sua liberdade.
Tudo porque não soube aproveitar a sorte que a vida lhe proporcionou.
Morreria sem vela e sem choro. Morreria sem amor porque não havia sabido
amar.
Homicídio. Vítima: Josefina de Tal, Xique-Xique, 1884.

No dia 13 de dezembro de 1883 Josefina estava indo para a roça


com seu marido Honório, a duas léguas de Olhos d'Ágoa, onde
residiam. De acordo com as testemunhas, Josefina foi
10
assassinada por seu marido por causa de uns umbus.
A primeira testemunha do processo, Laurindo Martins de
Miranda, 35 anos, lavrador e casado, disse que Josepha recebeu
três facadas por causa de “uns imbus”, história que foi
confirmada pelas testemunhas seguintes apenas com algumas
variantes. Nicolão Alves dos Santos, 40 anos, lavrador e casado,
por exemplo, disse que Honório pediu a Josefina um umbu e essa
negou-se a tirá-lo, tendo sido este o motivo da morte. Afirmou
ainda que após violentar a esposa “[...] voltou dizendo que não
convinha deixa-la viva para lhe não dar trabalho, chegou-se a ela

10
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº2/65/11, Homicídio, Réu: Honório
Manoel Ferreira Soares, Vítima: Josefina de Tal, Xique-Xique, 1884.

44
11
e deu-lhe sete facadas”.
O réu contou que ele e a esposa passaram por um umbuzeiro que
ficava a um lado do caminho e ele lhe pediu para tirar uns umbus,
ele disse que ela fosse tirar seus umbus e saiu. Como ela demorou,
ele foi atrás e não a viu ali, resolveu ir atrás em um capão que
estava ali perto onde a viu com um homem que ao vê-lo fugiu,
então ambos começaram a lutar e a mulher entrou entre os dois e o
outro homem lhe deu uma facada que pegou na mulher da qual ela
morreu, então ele avisou as pessoas para irem buscá-la e evadiu.
12
O réu foi preso em Jacobina.

11
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº2/65/11, Homicídio, Réu: Honório
Manoel Ferreira Soares, Vítima: Josefina de Tal, Xique-Xique, 1884.
12
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº2/65/11, Homicídio, Réu: Honório
Manoel Ferreira Soares, Vítima: Josefina de Tal, Xique-Xique, 1884.

45
Sou livre! Da minha família cuido eu.
Preso nesta cadeia imunda, não paro de pensar em minha vida. 40 anos...
Uma vida inteira de solidão no meio da multidão. Sofrimento de um homem
que pôde ter terra, gado e família. Angústia eterna e um aperto no peito que
parece que nunca vai ter fim, nem mesmo com a morte...
Sei que vou morrer. Minha pele já está toda rachando. Estou apenas um
saco de ossos e passo mais fome que qualquer mendigo em tempo de seca na
minha cidade. Xique-Xique. Nunca mais vou te ver. Nunca mais vou ver o rio e
os cavalos que são lavados à sua margem. Os meninos que pulam contentes em
sua água sem se preocupar com sua condição, com a vida e todos os problemas
que ela pode nos trazer. Só eles são verdadeiramente felizes.
Só pude ver o mar estando acorrentado. Estou na cidade da Bahia. Numa
cela escura e imunda. Durmo no chão. Como uma ração que é mais feia do que
a que jogam para os porcos em minha cidade. Não tenho ninguém para
conversar e faço as necessidades em um balde que eles demoram a recolher. E
vejo que quando o recolhem, o desejo que tinham era de jogar tudo na minha
cara, o que não tornaria esse lugar muito mais humilhante do que já é. No balde
vai mais sangue que qualquer outra coisa e não consigo mais separar realidade
de ilusão.
Mas a ilusão pode ser pior do que a realidade e quanto mais eu penso em
minha vida, mais vejo que minha sina era de sofrer feito um cachorro leproso
por não poder conviver com o próprio destino. Destino esse que eu sempre fiz
questão de renegar. Nunca me aceitei e por isso estou hoje nesse lugar.
Nasci escravo, mas um escravo que era filho do coronel mais poderoso
da região. Vocês não sabem avaliar o que isso significa. Vocês não imaginam o
que é viver assim. Escravo. Filho de coronel. Sujeito ao pai. Homem cativo. E
tudo sempre se misturou na minha cabeça de uma forma que não havia como
dar certo. Me sentia o melhor e o pior ao mesmo tempo. Poderoso e cativo.

46
Livre e sujeito. E essa mistura se confundia todos os dias em minha cabeça
fazendo com que eu remoesse as coisas cada vez mais.
Casei. Construí. Plantei e colhi. Mas não houve um só dia na minha vida
que eu não sentisse raiva de meu pai. Dele me tratar como tratava o filho de
qualquer peão seu. Tomava a minha bênção como tomava de qualquer
afilhado, filho de escrava ou de agregado e esses não eram poucos. Nunca teve
para mim uma palavra de conselho. Uma ajuda de pai. Uma mão firme em que
eu pudesse segurar. Teria sido melhor passar a vida pensando que minha mãe
não sabia quem era o meu pai, que eu era filho de uma vadia qualquer e de um
pai que não sabia que era pai. Ao menos não teria a quem direcionar minha
raiva e me esqueceria desse problema.
Mas não, tinha que ser filho do coronel. Minha mãe tinha que ter certeza
disso. Todos precisavam saber, inclusive ele, que me entregou algumas braças
de terras para que eu cultivasse e umas poucas cabeças de gado. Mas isso ele
entregava a qualquer pardo que fosse lhe pedir para arrendar terras, ou a
qualquer vaqueiro que cuidasse de seu rebanho e eu queria bem mais.
Nasci com o espírito ruim. E minha mãe percebeu isso desde meus
tempos de menino. Até tentou abrandar com rezas, promessas e principalmente
surras. Mas eu só piorava. Torturava os bichos. Furava os olhos das cabras,
assava as lagartixas vivas e arrancava o couro dos pintos. Tinha raiva dos
outros escravos, porque eu era filho do senhor. E dos outros filhos de meu pai,
porque só eu era escravo. Nunca tive casa. Nunca estive em casa. Passei a vida
com a vida suspensa e foi isso que sempre me doeu.
Todas as atitudes que tomei para me livrar de minha agonia só me
trouxeram mais agonia. E a última ação que tive me trouxe até essa cela de
cadeia. Foi uma atitude quase forçada pela ação do meu oponente, mas se não
tivesse o gênio que tenho provavelmente teria agido de forma menos violenta.
Mas não me adianta nem lamentar. Um homem que nasce escravo e casa
com a mulher que ama, mas tem o desgosto de vê-la morrer aos gritos sem
poder fazer nada. Se vê com cinco filhos pequenos que só sabem perguntar por
47
que a mãe não volta. Pergunta que ele não consegue responder nem a si mesmo
e se vê tendo que morrer de trabalhar enquanto os parentes levam vida de rei.
Apodrecer numa cadeia até que não foi a parte mais trágica da minha vida.
Todos sabem que eu sou filho do Coronel Ernesto. Todos sabem que é por
isso que fui libertado. Por isso tenho a pele clara. Por isso sou orgulhoso,
arrogante e seco. Mas todos sabem também que não tenho um pedaço de terra
meu, nem tenho tanto gado como os outros filhos. Não sou estudado e
respeitado como eles.
E tudo porque eu sou o filho de escrava. Porque minha mãe se deitava
com ele sem ser casada. Por que ele a pegou porque quis e nunca recebeu dote.
Mas eu sou trabalhador, forte e de ferro. E sou valente, também poderia ser
Coronel, mas estou aqui nessa cela imunda.
Isso aconteceu porque tive que provar que sou homem, que sou livre e
que posso cuidar sozinho de minha família. Tive que dar o grito diante de um
homem que achava que porque sou liberto não sou gente, que porque ele tem
mais dinheiro do que eu pode mandar em minha vida. É por isso que não me
arrependo do que fiz e faria novamente a mesma coisa quantas vidas tivesse
para voltar atrás. Não seria capaz de suportar a vergonha de ouvir os gritos de
outro homem que queria mandar em minha vida e ficar calado e quieto como
um covarde.
Eu vivia na Fazenda Conceição, dos herdeiros de meu pai e era
vaqueiro. Fui criado dentro da casa dele e sempre conheci e conversei com
todos por ali. Me relacionava bem com os livres e os cativos e essa parece ter
sido a maior diferença, além da riqueza e do poder é claro, entre meu pai e eu.
Ele era muito ruim com os cativos e quando morreu e estava sendo
levado para ser enterrado na Vila, alguns ex-escravos aquilombados tomaram o
corpo dele de assalto e levaram para sua terra. Devem ter feito desgraças com
ele. Nem devem ter enterrado. O corpo deve ter sido comido pelos urubus.
Nem sei se ele merecia isso, mas deve ter feito muito mal para aqueles
homens terem planejado e executado aquilo. Cada um tem o fim que merece e
48
não deve ter acontecido diferente com o meu desgraçado pai.
Minha mãe foi escrava até morrer e sempre sofreu nas garras da mulher
de meu pai. Ela fazia minha mãe trabalhar feito uma jumenta, do dia clarear até
a noite escura e isso só era aliviado quando meu pai tomava partido e mandava
minha mãe pro eito. Ali ela sofria menos do que nas garras daquela mulher. Era
carregar água até pular as veias das pernas, lavar roupas até escurecer a pele e
costurar até o galo cantar.
Eu sentia vontade de matar aquela mulher, mas nunca tive chance nem
coragem porque eu brincava com os filhos dela e eles gostavam da mãe. Mas o
tempo passou e os filhos dela foram ficando cada vez mais distantes de mim.
Parece que por terem descoberto que eu era irmão deles, passaram a me odiar.
Perdi os amigos de infância e passei a ser visto como um ser que apareceu no
lugar errado, na hora errada e entrou onde não deveria ter entrado.
É muito difícil ter que pagar por diversos crimes que não cometemos.
Paguei pelo crime de ser filho de escrava, de ser filho de coronel casado, de ser
pardo e de não ter um pai reconhecido. Vim a ter mais posses por meu suor e
não por herança como meus irmãos por parte de pai.
Fui ter reconhecimento da sociedade por que era trabalhador, porque era
leal, honesto e corajoso. Não por ter nascido um príncipe com todas as boas
características herdadas de berço. E isso dói. Isso dói quando se é filho do
homem mais poderoso da região e se vê abandonado em uma cela escura e
imunda. Sem que ninguém tivesse tido pena e movido uma só palha que fosse
para meu sofrimento ser menor.
Meus filhos. Triste sina! Não nasceram cativos, mas não parecem ter tido
uma sorte melhor que a minha. Filhos de uma mãe falecida e de um pai
assassino. Vivendo sob a guarda de um tio que deverá fazê-los trabalhar a seu
serviço e na melhor das hipóteses, vai arrumar um casamento para as meninas e
ensinar os meninos a serem vaqueiros.
Nunca mais os verei. Triste sina. Pensando bem não fui um pai muito
melhor que o meu. Pensei tanto em me vingar dele e dos dele que me esqueci de
49
mim e dos meus. Não vivi, não amei e não perdoei. Poderia ter sido um bom
pai. Se não fosse tão enérgico, tão orgulhoso, triste e de ferro. Mas, não... não
poderia ter sido melhor do que fui, porque não seria eu e isso é impossível.
O melhor teria sido não me casar. Não levaria ninguém comigo para a
minha miséria e seria mais feliz por não ter tornado infeliz quem não merecia.
Mas se isso não tivesse acontecido, não teria parado para pensar nisso e sem
parar para pensar em algo não poderia sentir alegria por não ter cometido
alguma ruindade.
De qualquer forma, minha mulher não teria morrido de parto. Pelo
menos não de parto de um filho meu. E eu não teria deixado cinco crianças
órfãs de pai e mãe. De qualquer sorte, tudo já aconteceu e eles já estão lá. Não
há o que se fazer.
Na minha juventude tive muitas mulheres. Elas gostavam de mim. Eu era
bonito, alto, quase branco, corajoso e bruto como um bicho. Além disso, era
filho do coronel. Mesmo ilegítimo, mesmo deserdado, mas filho do coronel
Ernesto e isso parecia significar algo muito importante para elas. Devia ser por
que eu teria chances de ficar rico e poderoso como o meu pai. Ao menos era o
que elas pensavam.
Escolhi a mulher que mais me agradou e a perdi muito cedo. Perdi tudo
que conquistei por causa desse sangue maligno. Sangue do coronel. Nunca
soube ser amigo, nunca soube respeitar nem ser humilde e essa foi a minha
ruína.
Um dia resolvi ir à casa de meu pai e cobrar tudo o que me pertencia. Ao
chegar lá o que ouvi foram palpites sobre a forma que tratava meus filhos. Um
primo meu disse que eu era muito enérgico, que maltratava as crianças e que
não era assim que se criava filhos. Senti o sangue ferver. Além de roubar o que
era meu, aquelas pessoas queriam dizer como eu deveria me comportar e qual a
forma correta de criar os meus filhos!
Isso já era demais. Fui receber o que era meu e antes de fazer a cobrança
fui recebido como se recebe um tolo. Comecei a xingar aquele homem. Disse
50
que eu era um homem livre e que sabia muito bem como cuidar da minha
família e criar meus filhos. Ele disse que eu era um simples liberto e que não
deveria falar com ele daquela altura.
Aumentou o tom de voz e eu lhe disse que se ele ficasse se intrometendo
na minha vida iria matá-lo e que iria tomar deles tudo o que me pertencia. Tudo
o que meu pai deveria ter me dado antes de morrer e não deu. A essa altura eu
gritava muito alto e tinha chamado a atenção de todos da casa.
Meu primo virou as costas para mim, como se eu não significasse nada e
falou em voz baixa: “lembre-se de que gato miador é mau caçador!”. Nesse
momento ele tinha passado de todos os limites. Dizia como eu deveria me
comportar e ainda me chamava de covarde!
Saquei a faca que trazia sempre à cintura e desferi-lhe uma facada pelas
costas que lhe acertou em cheio o coração. Ele caiu sem gemer e eu,
repentinamente, resolvi sair correndo. Mas fui seguido por muitos agregados
que me alcançaram e prenderam antes de eu chegar na porteira da fazenda.
Eu era um criminoso! Fui ali para tentar pegar o que me pertencia e
melhorar de vida e selei a minha desgraça e de minha família. Minha mãe
deverá morrer de desgosto logo que a minha morte se concretizar nessa cadeia
imunda. Meus filhos serão tristes órfãos e não terão um futuro nada promissor.
Tudo porque fui um gato miador, mas que era também um bom caçador.
Homicídio. Réu: Sebastião Augusto da Rocha.

“Por volta de “quatro horas da tarde”, com uma facada desferida pelas
costas e que encontrou abrigo certo entre uma costela e outra, Sebastião
Augusto da Rocha assassinou Eurípides Abelardo Castelo Branco, em
presença de várias testemunhas e dentro da própria casa de moradia dos
13
Castelo Branco”.
Uma das testemunhas, “João Antônio de Oliveira, 35 anos, era um lavrador
natural de Juazeiro, mas também morador na fazenda das Pedras e,
conforme o próprio Sebastião, era um amigo tanto dele como de Eurípides
Abelardo. João Antônio dissera que tudo foi motivado pelo fato da vítima

13
Elisângela Oliveira Ferreira. Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no
sertão do São Francisco, no século XIX. Tese (Doutorado em História Social). UFBA, 2008. p. 331 e 332.

51
ter dado uns “conselhos” a Sebastião, para que este “não maltratasse pela
forma que sabia a sua família”. Sebastião não gostara da intromissão,
respondendo a Eurípides Abelardo de forma áspera. Este teria apenas
completado a sua repreensão com um ditado popular, antes de retirar-se
para o interior da casa: “pois bem Sebastião, use como intender, certo de
14
que, o Gato miador é mau Caçador”. Neste momento foi seguido por
15
Sebastião, resultando no desfecho conhecido”.

14
Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/65/10, Homicídio, Réu: Sebastião Augusto
da Rocha, Vítima: Eurípides Abelardo Castelo Branco, Xique-Xique, 1884.
15
Elisângela Oliveira Ferreira. Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no
sertão do São Francisco, no século XIX. Tese (Doutorado em História Social). UFBA, 2008. p. 333.

52
Caminhos e contatos.
Fui escrava até os vinte e cinco anos, quando consegui fugir daquele
inferno que era aquela Vila na Província de Pernambuco. Todos me disseram
que seria loucura fugir com oito filhos, sendo um deles de colo, para outra
província, mas entendi que loucura seria continuar vivendo naquela miséria e
sofrimento em que eu vivia.
Ser escravo já é difícil, mas ser escrava com oito filhos de uma senhora
pobre em tempos de seca é uma coisa que ninguém pode imaginar o que
significa. Assim era eu. Mãe de oito filhos e cativa de uma senhora velha, cujos
filhos tinham saído todos para tentar a vida em outros lugares e que não queria,
graças a Deus, vender a mim e a meus filhos para juntar uma boa herança para
os herdeiros, que quando saíram deixaram apenas a mãe com uma jovem
escrava.
Minha proprietária ficava feliz com o nascimento de cada filho meu e eu
sentia ficar cada vez mais distante a liberdade de minha família. Quanto mais
ela crescia, mais diminuíam as chances de comprarmos nossa liberdade e
aumentavam as possibilidades de sermos vendidos.
Com a seca as coisas pioraram e não paravam de aparecer aproveitadores
que estavam comprando tudo a preço de banana e se aproveitando da miséria
dos proprietários que não tinham produzido nada no ano anterior e ao ver seu
gado morrer, se desfaziam de seus escravos para que esses não tivessem o
mesmo fim.
Apareceu um negociante na casa de minha senhora e ofereceu uma alta
quantia em dinheiro por mim e meus oito filhos. Certamente iria nos separar e
vender para mais distante e eu senti meu coração doer ao pensar em ser
separada de minhas crias.
Eu tinha duas escolhas: esperar pelo inevitável ou contar com a ajuda do
pai de meus filhos, que era um homem liberto e estava disposto a me ajudar a

53
fugir para bem longe, mesmo o deixando por ali, pois não queria abandonar
seus parentes e a criação que tinha.
Resolvi que fugiria. Minha senhora não tinha dinheiro para mandar irem
atrás de mim e quando seus filhos dessem conta do prejuízo, já estaríamos bem
longe, sem deixar rastros. A parte pior seria alimentar nove bocas numa longa
viagem em tempos de seca, quando todos os preços sobem para a hora da
morte. Mas o pai de meus filhos disse que me ajudaria e arranjou água e farinha.
Além disso, matou um dos seus bodes e colocou para secar com a ideia de o
levarmos para essa longa viagem. Nos deu também algumas rapaduras e disse
que nos acompanharia até sairmos de Pernambuco.
O destino estava escolhido: Província da Bahia, Vila de Xique-Xique,
que fica na beira do São Francisco. Água pelo menos não iria faltar e diziam
que lá tinha muitos garimpos com ouro e diamante e muitas criações, além da
produção de sal e cal, sem falar de peixe em fartura. Pensávamos que não tinha
como alguém passar fome em um lugar desses.
E o melhor: era rodeada de serras onde se plantava e produzia farinha,
fumo e cachaça e os cativos fugidos de outros lugares se escondiam. Seria o
lugar perfeito.
Fomos. O mais difícil seria não ser assaltada pela horda de famintos e
oportunistas que assolavam as estradas e meu companheiro teve que me
acompanhar até lá para garantir a segurança minha e de meus filhos com a arma
que carregava. Voltou quase sem comida e tenho fé em Deus que tenha chegado
em paz.
Mesmo ele tendo me abandonado para ficar com uma mulher livre e dito
que não suportava mais ver seus filhos em cativeiro, era um bom homem e me
ajudava no que podia. Nunca mais tive notícias dele. Ao chegar ele ainda
procurou um coronel poderoso de Xique-Xique e pediu proteção para nós em
busca de trabalho e fidelidade. O coronel concordou e ficamos na fazenda dele.
Passado o período de seca quando até o peixe era difícil e quase não
tínhamos em que trabalhar, as coisas melhoraram muito. Meus filhos e eu
54
plantávamos uma rocinha nas terras do coronel, recebemos um rancho para
morar e em troca disso trabalhávamos nas capinas e arrancas de milho, feijão e
mandioca das roças dele e ajudávamos a cuidar de seu imenso rebanho.
Era melhor do que viver no cativeiro, mas não tínhamos paz completa
porque de vez em quando apareciam vozes de que parecíamos cativos fugidos.
Uma mulher, sozinha, com esse rebanho de filhos, sem parentes nem ninguém,
não parecia nada além de escravos em fuga. Era o que diziam.
Mas o coronel acalmava os boatos e dizia que éramos agregados de uns
parentes dele e tínhamos fugido da seca nas caatingas e as vozes se calavam.
Muitas vezes perdi o sono só de pensar em voltar ao cativeiro e aquelas terras
de fome.
Sofria também quando meus filhos tinham que pegar em armas para
ajudar o lado político do coronel. Feria os joelhos de tanto rezar e, graças a
Deus, nenhum deles levou nenhum tiro nessas lutas. Sempre morriam alguns e
eu tinha muito medo que fossem meus filhos ou netos.
A grande vantagem daqui é que tem comida e peixe em fartura e somos
tratados como livres, mesmo devendo favores ao coronel e não podendo, sem
uma razão maior, irmos embora daqui. Algumas filhas minhas logo se casaram
e eu fiquei feliz porque a família aumentou. Quase explodia de satisfação cada
vez que via nascer um neto livre. Estava vivendo um sonho e não poderia
querer algo que fosse maior do que aquilo.
Quando pensávamos que o pesadelo da escravidão já era algo distante,
soubemos de uma triste notícia. Um homem vivia por aqui dizendo que estava
procurando uma escrava que fugiu da província de Pernambuco com oito filhos
e que o proprietário soube que toda a família estava ali e que, ao invés de oito,
ele já tinha mais de vinte escravos.
Sem dúvida éramos nós os procurados. Mas quem seria nosso dono?
Provavelmente um dos filhos da senhora que havia voltado e percebeu que
poderia ficar rico com a gorda e fugitiva herança. Meu chão desabou. Fomos
recorrer ao coronel e ele disse que ficássemos tranqüilos, que ele estava do
55
mesmo lado político do juiz e do presidente da Província e que não
perderíamos nossa liberdade de jeito nenhum. Fiquei mais tranqüila com isso,
mas sabia que estava começando uma fase bastante difícil para todos nós.
O homem apareceu em nossa casa e disse que realmente era eu a escrava.
Afirmamos que não éramos cativos e que só sairíamos dali com a polícia. Em
poucos dias chegou a ordem judicial e fomos todos depositados em mãos de um
outro coronel, que era amigo de nosso protetor.
O processo foi longo e foram meses difíceis e de longa ansiedade. Meus
netos que haviam nascido como livres se sentiam humilhados com aquilo e não
aceitavam a situação. Diziam que os pais haviam mentido para eles e que era
uma injustiça eles nunca terem sabido sua real condição.
Realmente não falávamos sobre esse assunto em casa e cativeiro era uma
palavra proibida. Eles não sabiam nem mesmo que os pais e a avó tinham sido
cativos e foram presos a uma família que os mantinha sob vigília e exploravam
seu trabalho os tratando como escravos. Com certeza era muito difícil para
eles.
O processo foi longo, mas ao final dele conseguimos a liberdade devido à
clara intercessão do coronel. Ele conseguiu um excelente advogado e pudemos
experimentar a liberdade mais uma vez.
Meus netos não eram mais os mesmos e me tratavam de forma distante,
me vendo como o sangue sujo e responsável pela condição deles. Na verdade
eu era a maior responsável pela liberdade deles e abri mão de meu amor pelo
avô deles e de minha saúde trabalhando como a mais fiel das escravas do
coronel para conseguir isso. Mas eles não conseguiam enxergar. Nunca
conseguiriam.
Voltamos a levar uma vida que não poderia ser chamada de normal,
porque até mesmo os escravos do coronel olhavam torto para nós e os livres e
libertos não nos tratavam mais como iguais.
Tínhamos que conviver com a desconfiança de todos e a única pessoa
que não mudou o comportamento foi o coronel. Foi então que percebi que meu
56
marido havia lhe contado e verdade e senti um certo alívio, pois sempre tive
medo de que ele descobrisse.
Quando já estávamos nos readaptando à ideia de que poderíamos ser
visto como libertos ou cativos, uma nova e triste surpresa aconteceu. O grupo
do coronel perdeu as eleições e o filho de minha senhora, sabendo disso,
aproveitou a situação para abrir um novo processo e nos reescravizar. Nessa
altura eu já não aguentava mais a angústia de uma nova luta e caí de cama.
Fui presa mesmo assim junto com todos os meus filhos e os filhos de
minhas filhas. Os únicos netos que ficaram de fora foram os filhos de meus
filhos homens, pois todos eles se casaram com mulheres livres ou libertas. Esse
processo correria na cidade da Bahia e tudo estava desenhado para sermos
reescravizados.
Mas o coronel era amante de uma boa briga e mesmo sem estar do lado do
presidente da Província resolveu lutar. Acho que era mais pela briga do que por
nós. Apesar de que formávamos um grupo de mais de quarenta braços fortes e
trabalhadores. Alguns dos meus filhos eram excelentes atiradores e como já
tinham formado família, o grupo se tornava a cada dia maior.
Independentemente da luta ter sido por ele ou por nós, ela se prolongou e
o coronel conseguiu adiar o julgamento para depois das eleições, quando o
grupo dele retornou então ao poder e, graças a Deus, ao nosso trabalho,
amizades e aos políticos, pudemos ficar livres de novo.
Me orgulho de ter podido construir tão fortes laços com pobres e ricos
nessa nova terra que me acolheu. Isso foi o que definiu nosso destino. Hoje
estou acabada nessa cama, mas tenho até mesmo um neto vereador! Imaginem
se isso seria possível para uma velha escrava fugida. Pois foi.
Meus filhos são todos trabalhadores e puderam dar um bom destino a
seus filhos por aqui. Alguns deles têm muitas terras e criações e outros
continuam pobres, mas não falta o que comer a cada dia que nasce. A mais
importante lição que ensinei para eles foi que não devemos tratar mal a
ninguém, pois ninguém é tão pobre que nada tenha a dar nem tão rico que não
57
precise dos outros.
Essa lição pode ser vista como o resumo das nossas vidas. Coragem e
bons contatos. Uma amizade muitas vezes vale mais do que dinheiro e muitas
vezes vi gente levar balas na boca cheia de ouro por não saber tratar bem aos
outros.
Quase todos os meus filhos tiveram sorte no casamento e vivem muito
bem na nova terra. Não diria apenas que meu marido e eu escolhemos bem o
lugar, mas também que eu soube me relacionar com o coronel e a família dele,
pois recebemos, ao longo de todos esses anos, ajudas que vieram do mais
humilde escravo, até um dos melhores advogados da província que foi nos
defender na capital e isso não tem preço.
Hoje estou velha e acabada, mas sinto que minha missão nesse mundo foi
realizada. Consegui com muita força, luta e trabalho libertar toda a minha
família e hoje todos são respeitados e acima de tudo felizes, vivendo aqui nessa
beira de rio. Que a sorte continue ao lado deles. Adeus.

A Doutora Elisângela Ferreira, em sua tese de doutorado e no


artigo citado a seguir, nos conta a saga de Maria e seus
16
descendentes na luta pela liberdade. Vejamos um trecho de seu
texto:

“[...] em meio ao infortúnio causado pela estiagem que teve início


o “sonho de liberdade” de Maria José, crioula de cerca de 34 anos
de idade, sonho compartilhado com sua prole de oito filhos, seis
mulheres e dois homens. Segundo os relatos, neste ano, toda a
família fugiu de uma fazenda chamada Massaganinho, terras da
povoação de Petrolina, na vizinha província de Pernambuco,
encontrando acolhimento posteriormente nos territórios das vilas
da Barra e Xique-Xique, na província da Bahia, e empreendendo
a partir dessas localidades uma luta pela manutenção da liberdade
que duraria mais de trinta anos e envolveria várias gerações de
17
descendentes”.

16
Elisângela Oliveira Ferreira. Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no
sertão do São Francisco, no século XIX. Tese (Doutorado em História Social). UFBA, 2008.
17
Elisângela Oliveira Ferreira. Os laços de uma família: da escravidão à liberdade nos sertões do São Francisco. Afro-
Ásia, n. 32 (2005), 185-218. p 185.

58
Nas fronteiras de dois mundos.
Estou perto de morrer e fico pensando em tudo o que consegui. Tudo que
desejei. Tudo que sonhei. Sonhei e realizei. Sou liberta. Tive a felicidade de
conseguir, ainda jovem, me livrar do cativeiro. E o melhor é que saí dessa
prisão junto com o melhor homem que já existiu. E me casei com ele.
Mas não pense que a maioria dos cativos do sertão consegue essa
felicidade. Apenas alguns que tem muita sorte e nascem com um senhor menos
malvado, ou com uma mãe que já lutou a vida inteira pela sua liberdade e a dos
seus, ou aqueles que têm muita vontade e trabalham além de suas forças,
usando todas as artimanhas de que é capaz, dizendo sim senhor ao dono,
quando gostaria de lhe dizer: vá pro inferno. E assim, ao dormir e ao acordar, só
pensam na liberdade e lutam por ela a cada vez que pegam na enxada e antes de
cada palavra que dizem.
Meu marido e eu não tivemos filhos. Mas nem por isso deixei de ser feliz
por estar ao seu lado a cada minuto que passamos juntos. Apesar de tudo, sei
que fui uma mulher de sorte.
Mas, como nem tudo são flores, fico triste ao ver que grande parte da
minha família ainda vive no cativeiro. Tenho alguns bens, que dariam para,
com a minha morte, libertar alguns deles, mas devo muitos favores a pessoas
ricas e poderosas e não poderia esquecer delas perto da minha morte.
Amanhã vou ditar meu testamento e vejo que não tenho como morrer em
paz comigo mesma. Ciríaco, que era meu marido e já faleceu, em cada dia de
trabalho que tínhamos, me ajudou bastante e conseguimos muitos bens. Temos
duas casas na Rua das Flores, uma das melhores da Vila, uma criação razoável,
dinheiro e vários objetos de casa que vendidos dariam uma boa quantia em
dinheiro.
O que possuo daria para libertar meu irmão, sua mulher, que é minha
comadre e minha afilhada, que é também minha sobrinha. Isso me deixaria

59
feliz. Mas não posso deixar de lado os livres que me ajudaram a sair do
cativeiro, que ajudaram meu marido a se arrumar enquanto comerciante e que
nos emprestam o pasto para deixarmos nossas criações.
Seria desleal de minha parte esquecer a igreja que sempre me recebeu
como uma irmã das mais valiosas e ainda minha afilhada branca que me trata
como a uma avó. Vou seguir minha consciência e esperar que cada um faça o
que for mais justo com o que receber.
Posso deixar algumas cabeças de criações para meu irmão e sua família e
a partir delas, ele pode se tornar um criador razoável e libertar toda a família.
Sei que seu dono lhe emprestará o terreno para plantar o capim e apoiará sua
luta. Para ir melhorando sua vida no cativeiro, vou lhe deixar também um
mosquiteiro, coisa de luxo e necessidade para quem vive perto do rio no meio
de todas essas muriçocas.
Mas de qualquer forma, sei que minha consciência não descansará
tranquila. Já saí do cativeiro com meu marido e sei que é necessário que muitas
coisas aconteçam juntas para que uma pessoa possa executar esse plano. É
preciso muito dinheiro e é muito difícil juntar dinheiro e ver comida, roupas e
remédios em nossa frente quando temos fome, estamos seminus e doentes.
Juntar dinheiro não é para qualquer um, principalmente quando se é cativo.
Ganhar dinheiro com pouca criação também pode ser muito difícil. É
preciso se rezar bastante para não vir um ano ruim, pois em tempo de seca ou
você vende pelo preço que encontrar seus animais ou tem a triste imagem de
vê-los emagrecer até morrer. Além disso, mesmo que o cativo tenha
conseguido juntar o dinheiro suficiente para comprar a si mesmo e aos seus, é
preciso rezar para o preço dos cativos no mercado estar nesse momento em
baixa.
E o preço dos cativos tem subido bastante e eles são em número cada vez
menor. Alguns dizem que a escravidão vai acabar. Gostaria de viver para poder
ver isso, mas sinto faltar meu fôlego e sei que minha hora está próxima.
Mesmo existindo atualmente uma lei que garante ao cativo que tem o
60
dinheiro para comprar a sua liberdade de poder comprá-la, é preciso manter
uma boa relação com seu senhor, pois se ele não quiser lhe vender pode querer
um valor muito alto por sua liberdade ou dificultar sua vida quando você
conseguir ficar livre através da justiça, espalhando que seu ex-cativo é ladrão,
preguiçoso e perigoso e que ninguém deve negociar com ele ou lhe arrendar
terras.
Por tudo isso é que rezo bastante para que meu irmão, minha cunhada e
minha sobrinha tenham sabedoria e sorte para conseguir se guiar nos difíceis
caminhos que nos levam à liberdade. E que tenham paciência quando a
conseguirem e perceberem que ela nunca é completa para quem nasce no
cativeiro. Que sempre nos olham torto porque temos a pele escura ou porque
somos libertos.
Quando eu era cativa nunca fui muito maltratada. Apanhei muito quando
era criança, como todos os meninos daqui, sejam livres ou escravos, para
aprenderem o que é certo e o que é errado e conhecerem a dor desde pequenos,
mas percebi logo o que me fazia apanhar e evitava fazer todas as coisas pelas
quais recebesse gritos e tapas. Mesmo assim não era fácil. Havia momentos em
que eu nada fazia de errado e mesmo assim apanhava e ouvia gritos. Percebi
mais tarde que as mulheres descarregam parte de seu sofrimento nos seus
muitos filhos e nas outras crianças que encontrarem por perto e é isso que lhes
permite continuar vivas e ter força diante de tanto trabalho, preocupação e falta
de reconhecimento.
Cresci trabalhando como uma jumenta e sei o que é o trabalho do eito, do
garimpo, da casa de farinha, do alambique, de carregar água para os outros e
vender coisas na rua. Acho que das coisas consideradas mais fáceis eu já fiz de
tudo, mas dentre as mais difíceis eu também aprendi as que encontrei quem me
ensinasse. Ainda criança aprendi a bordar e a fazer renda. Era um dos
momentos do dia em que mais gritavam comigo quando eu errava, mas aprendi
rápido.
Quase não brincava com as outras meninas e acompanhava minha mãe
61
para onde ela ia. Passava o dia colocando vagens de feijão dentro de um cesto e
olhando alguns meninos subirem em um pé de imbu ou jogando pedras nos
inxús. Nunca fui uma menina como as outras e mesmo depois de adulta, pouco
me alegrava. Meu marido e eu nos acostumamos na luta contra o cativeiro a não
beber cachaça nem participar das farras que os outros gostavam de fazer.
Só íamos mesmo para as festas quando éramos convidados pelos
coronéis do nosso lado político, para as farras de comemoração das vitórias nas
eleições e lutas ou nos batismos e casamentos de pessoas de suas famílias. Às
vezes íamos nas festas de outros livres mas os cativos, na maioria das vezes,
nos viam como estanhos ao seu mundo porque vivíamos dentro demais do
mundo dos livres.
Mas ninguém imagina a dificuldade de um liberto para encontrar espaço
nesses meios tão violentos e disputados. Tivemos que matar uma onça por dia e
passamos a vida inteira nos sentindo sozinhos porque não éramos nem cativos
nem livres. Mas tentei viver nos dois mundos. Não poderia esquecer meus
irmãos e parentes de cativeiro, mas também não tinha a possibilidade de viver
como livre se não convivesse com os livres. E existem pessoas que são livres e
muito tranqüilas.
No meio de tantas dúvidas, vou ditar amanhã meu testamento. Às vezes
penso que se meu marido e eu tivéssemos gastado mais e juntado menos, eu
teria menos problemas na hora da morte. Mas fizemos o que achávamos que era
certo e vou partir desta vida agindo assim.
Vou dividir meus bens entre aqueles por quem tenho maior consideração,
sejam eles cativos ou libertos, pois foi entre esses dois grupos que vivi minha
vida. Que cada um use da melhor forma o que receber, pois aí ficarei em paz
onde estiver e espero que entendam que eu tive meus motivos para fazer tudo o
que fiz durante toda a minha vida.
Que a terra me seja leve e Deus me dê a paz que eu não tive aqui quando
eu estiver no outro mundo.

62
Podemos citar uma família escravizada que foi beneficiada por
Francisca, irmã liberta do cativo Cesário. Esta deixou para o
irmão, já no último ano da escravidão, 100 mil réis, uma canoa
pequena e um mosqueteiro. Para a cunhada Josepha, esposa de
Cesário, destinou duas ovelhas e para a filha do casal, afilhada
18
de Francisca, foi reservada uma novilha.

18
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Inventários e Testamentos, n° 07/3119/21, Inventário
e testamento de Francisca Pereira de Araújo, Xique-Xique, 1888.

63
Morte e homenagem oculta.
Existem pessoas que têm mais sorte depois que morrem do que enquanto
são vivas. Esse foi o caso do cativo Gabriel, que só foi reconhecido depois de
morto. Morte esta ocorrida de desgaste e esforço excessivo no trabalho de abrir
uma longa estrada no sertão. Desgaste das carnes, dos ossos e dos nervos.
Gabriel nasceu na Serra do Assuruá e vivia com sua mãe, dois tios e
outros cativos no Cotovelo. Quando estava um rapaz, foi vendido para outra
família, mas não perecia se incomodar muito com a luta do cativeiro. A família
de seus novos senhores resolveu então se mudar toda para uma nova fazenda,
onde não existia ninguém e ele foi mais uma vez sem demonstrar nenhum tipo
de revolta.
Chegando à Canabrava, Gabriel começou a gostar cada vez mais daquele
lugar e arrumou uma namorada. Se ele não parecia infeliz com o cativeiro,
iluminou seu rosto como ninguém ao descobrir o amor. Sua felicidade saltava
aos olhos e a mulher, que era mais velha do que ele e livre, parecia estar
satisfeita com o novo relacionamento.
Passavam todas as noites juntos, os domingos e feriados e, quando
possível, trabalhavam juntos no alambique e na casa de farinha. Ela plantava
uma rocinha e ele sempre que podia ajudava.
Os dias pareciam estar tranqüilos e a felicidade ser uma grande
companheira quando aconteceu algo que Gabriel e sua mulher seriam
incapazes de suspeitar. Seu senhor resolveu se mudar para umas terras que seu
pai compraria distante dali umas boas léguas. Ele não poderia mais viver com
sua mulher e sorrir e cantar ao seu lado.Gabriel sentiu, pela primeira vez na
vida, quão amargo pode ser o sabor do cativeiro. Como não apanhava, por ser
um excelente trabalhador e não responder a ninguém, acreditava que sua vida
não era muito diferente da vida das pessoas livres e pobres, mas pôde nesse
momento perceber uma grande diferença entre seu destino e o de sua mulher:
ela poderia escolher o lugar onde fosse melhor para ela e ninguém a obrigava a
64
ir ou a vir.
Sentiu uma angústia profunda que só foi minorada quando seu senhor
disse que não ficasse triste, que eles construiriam uma estrada para ligar a nova
fazenda, que se chamaria São Rafael a Fazenda Canabrava e que ele poderia vir
todos os domingos ver sua mulher.
Gabriel passou então a depositar todas as suas esperanças nessa estrada e
a ligação que ela poderia fazer entre ele e sua amada. Pensava nisso do
anoitecer ao entardecer, quando começava a conversar sobre isso com a sua
mulher, algo que fazia durante todo o tempo livre que tinha.
A fez prometer que o esperaria e disse que com o tempo iria conseguir
com o senhor um pedaço das terras da fazenda para os dois plantarem e
construírem um alambique onde ela poderia trabalhar e que, então, finalmente,
viveriam juntos. Os corações se acalmaram e passaram a esperar com tristeza a
partida que estava próxima.
A família se mudou para a nova fazenda, acompanhada, é claro, pelos
poucos cativos que tinha e começaram então o penosíssimo trabalho.
Construir, com machados, foices e fogo, uma estrada que ligasse a nova
fazenda a Canabrava. Ao chegarem às novas terras, procuraram um lugar alto e
miraram o horizonte procurando a Serra das Laranjeiras.
Puderam ver então o Morro Branco, que ficava acima das casas da
fazenda e iniciaram o trabalho que desgastaria bastante os poucos cativos e
livres que assumiram a empreitada. Gabriel, que era um homem jovem e muito
trabalhador, parecia abrir uma estrada para o céu. Acordava muito cedo, quase
não comia, trabalhava com uma velocidade bem além do normal e quase não
conversava.
Com certeza ele enxergava na sua frente sempre a sua mulher e isso fazia
com que ele se esquecesse da comida, das dores no corpo e do tempo, que só
interessava à medida que o levava para mais perto de sua maior fonte de
alegrias.
Mas Gabriel emagrecia a olhos vistos, estava ficando amarelo e triste e
65
todos começaram então a se preocupar com ele. Diziam que deveria trabalhar
menos, comer melhor e descansar mais, pois já estava ficando doente. Quando
lhe diziam isso, Gabriel, que sempre fora sereno e comedido, falava alto que o
deixassem trabalhar, que queria ver aquela estrada pronta e que ninguém o
moveria daquela tarefa.
O seu senhor, temendo perder o cativo e ter um grande prejuízo, que seria
financeiro e traria problemas também para a construção de sua nova fazenda,
resolveu intervir. Chamou Gabriel bem cedo quando iam para a picada e lhe
disse que tentasse se esforçar menos, que ele era um escravo e deveria
trabalhar, mas também tinha a obrigação de continuar vivo para continuar
trabalhando e que, caso continuasse a agir daquela forma, seria levado para a
construção do curral e derrubada das matas para as roças.
Gabriel olhou o senhor de uma forma que nunca havia olhado e disse
coisas que pareciam estar presas na sua garganta desde antes dele nascer. Disse
que nunca tinha reclamado de nada, que sempre aceitou com um sorriso nos
lábios a pesada carga de trabalho que teve desde menino e que veio calado para
essa nova fazenda.
Mas só veio calado porque ele, o seu senhor, havia lhe prometido que
abririam aquela estrada e que ele poderia ir à Canabrava todos os domingos de
burro e que era aquilo que o estava fazendo viver naqueles ermos onde só havia
bichos e mato.
Seu senhor, como homem que era, deveria manter a sua palavra e ele, que
apesar de cativo, também era um homem, iria cumprir a promessa que havia
feito a sua mulher que ficou na Canabrava, que era estar lá e vê-la o mais rápido
possível, quando comemorariam juntos a construção da estrada que ligaria
suas vidas até que eles pudessem morar juntos novamente.
Iria agora para o trabalho, não queria mais perder tempo e, se todos
trabalhassem a sério como ele, o serviço já estaria bem mais adiantado e
poderiam fazer as outras coisas da fazenda para, finalmente, levarem uma vida
normal.
66
O senhor não teve o que dizer, pois percebeu que havia uma coerência
infinita nas palavras daquele escravo e que fazia aquilo do fundo do seu
coração e por amor. Ninguém o demoveria de seu propósito e ele estava, a partir
dali, correndo o sério risco de perder um forte, corajoso e trabalhador cativo
que ainda estava na flor da idade e nada poderia fazer contra essa possível
perda.
Gabriel, que já trabalhava de forma obstinada chegou, a partir daquele
dia, às vias da loucura. Ia à frente dos outros derrubando as árvores maiores e
quase não parava nem para beber água. Nem um homem forte como ele poderia
aguentar aquele tipo de serviço naquela intensidade, feito de domingo a
domingo.
Ele enfraquecia cada vez mais, emagrecia e ficava pálido e já estava com
dificuldades de sair para trabalhar. No dia em que não se levantou para ir à
estrada, todos perceberam que o fim já estava próximo e não havia recursos a
buscar.
Gabriel estava com os olhos amarelos e parecia ter uma profunda
desilusão. Sua alma havia enfraquecido junto com o corpo, que aguentou
apenas mais três dias sem comer. Morreu como um passarinho. Não deu
trabalho para viver nem para morrer. Foi um cativo que trouxe apenas lucro
para seu dono e o único desgosto que deu foi o de querer trabalhar demais, para
ver pronto um caminho que seria a salvação de suas horas de angústia e
sofrimento.
O trabalho foi suspenso e todos choraram a morte de Gabriel. Dois
homens foram avisar na Canabrava e disseram que lá fariam o enterro. Os dois
voltaram dizendo que fazia dó ver a mulher de Gabriel quando ela recebeu a
notícia. Desmaiou e quando voltou a si parecia que iria enlouquecer.
A família do senhor ficou muito abatida. Certamente pensavam ao
mesmo tempo no prejuízo e no amigo. Todos deviam admirar a tenacidade de
Gabriel e chorou no enterro do mais velho ao mais moço, enquanto a mulher
gritava que aquilo não era verdade, que não haviam levado Gabriel dela.
67
O trabalho de terminar a estrada, que já era desgastante, tornou-se um
grande fardo para os homens que restaram, mas eles o concluíram regados de
histórias sobre aquele cativo valente que tudo o que fez foi bem feito e que tinha
sido sempre um bom e alegre companheiro. Deixando de ser alegre apenas
quando enxergava na frente nada mais que sua mulher, quando esqueceu que
ele mesmo existia e que precisava se cuidar.
O único grande defeito de Gabriel foi amar mais os outros que a si
mesmo. Gostava dos filhos do senhor, por isso não reclamava do cativeiro, nem
pensava em se libertar. Gostava demais dos amigos, por isso vivia sempre
contando histórias engraçadas, para que eles rissem e deixava guardadas as
próprias dores. Quando amou uma mulher, amou-a mais que a ele mesmo e
julgou a vida dela mais importante que a sua. Esse amor foi sua ruína. Gabriel
amou demais e por isso se tornou infeliz.
Seu senhor começou então, apenas após a morte do cativo, a pensar no
que poderia ter feito. Viu que foi uma burrice não trazer a mulher de Gabriel,
percebeu que na maioria das vezes os senhores, do alto da sua condição, se
esqueciam de que o escravo também era gente, também sentia, sonhava e
sofria. Pensou que se tivesse oferecido um pedaço das suas grandes extensões
de terra para a mulher de Gabriel construir ao seu lado um rancho, uma roça e
um alambique, que era a especialidade de trabalho dela, teria evitado tanto
sofrimento e tanto prejuízo.
Se tivesse se colocado apenas um minuto no lugar de seu cativo, teria
evitado sua morte e sua consciência passou a pesar a cada dia. Resolveu então,
para satisfazer a todos e aliviar a própria consciência, mudar o nome da fazenda
de São Rafael para São Gabriel, para homenagear o escravo.
Assim os cativos e livres da Canabrava ficariam mais alegres com ele e
deixariam de pensar que ele matou Gabriel fazendo-o trabalhar mais do que
conseguia. Falou sobre isso com a mulher e ela disse que não via problema. Era
o nome de um santo cristão e as pessoas de fora que passassem por ali jamais
pensariam que aquele nome era uma homenagem a um cativo.
68
Ela não só concordou como espalhou a notícia que alegrou a quase todos.
Digo quase, pois há sempre os invejosos que acham que o benefício ao outro
lhes prejudica e ficam sempre satisfeitos com a miséria alheia e infelizes com o
sucesso. A fazenda, a partir daquele dia, passou a ser chamada por todos de
Gabriel. Desde lá até a Canabrava e aos poucos todos foram se esquecendo do
verdadeiro motivo daquele nome e de toda a tristeza que ele carregava.
Os moradores passaram também a comemorar o dia de São Gabriel na
data da morte do cativo Gabriel. Foi a forma que eles encontraram de lembrar a
data e o amigo. Este, que nunca foi por muito tempo verdadeiramente feliz,
passou a emprestar o dia de sua morte como momento de comemoração do
sagrado e do profano por aquela gente. Um povo que achava normal ter um
cativo trabalhando de graça no eito de sol a sol e outro eternizado no nome de
seu lugar.
Gabriel nunca morrerá e estará sempre presente na vida daqueles que dão
o máximo de si pelos outros. Que entendem que nasceram para servir e dar
alegria ao outro. Que entendem um elogio como o maior prazer que um ser
humano é capaz de alcançar e que percebem na satisfação do outro a sua
satisfação.
Cada Gabriel deveria ter dentro de si um pouco do seu senhor. E cada
senhor deveria levar um pedaço de Gabriel não no nome de alguma coisa, mas
em seus atos e seu coração. Só assim nunca mais haveria histórias como essa.
Casos de dor transformada em glória, de sofrimento visto como sucesso.
Fazendeiro homenageia cativo.

A “mudança de nome se deu porque o escravo que ajudou a situar


a fazenda chamava-se Gabriel e as pessoas passaram a chamar o
local de 'as terras de Gabriel' e, durante um longo tempo a vila foi
19
conhecida apenas como Gabriel”.
Segundo Cecília Machado de Oliveira, “[...] para embranquecer
a origem do nome da fazenda que tinha como padroeiro o arcanjo
Gabriel, troca-se o nome dos arcanjos, e de Fazenda São Rafael

19
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Inventários e Testamentos, n° 07/3119/21, Inventário
e testamento de Francisca Pereira de Araújo, Xique-Xique, 1888.

69
passa a chamar São Gabriel, isto no período de sua
20
emancipação”.

20
Ibidem.

70
Amizade x mil réis.
Sou Domingos Cabra. Cabra porque sou preto, mas tenho sangue de
branco. Nasci no Brasil e vivia em uma fazenda chamada Canabrava. Pense em
um lugar bom... Lá havia algumas casas de morar, uma casa de farinha,
algumas rocinhas, muita terra, água e alguns riachos. Êta água docinha. Tenho
uma saudade que vem do fundo do meu coração e de minha alma.
Lá tinha poucos escravos. Acho que por isso a gente não era tratado
muito diferente dos outros. Tá certo que quando tinha algum desentendimento
chamavam a gente de preto safado, cativo e negrinho. Mas em dias normais
conversávamos, ríamos e trabalhávamos juntos com os senhores e agregados.
Bebíamos juntos com a família dos donos da fazenda. Comíamos,
fazíamos farinha e capinávamos em grupo. Os dias eram tranquilos e
começavam com o clarear do sol. Terminavam com o escurecer e tudo
recomeçava mais uma vez. E assim era para os brancos, pardos e pretos. Livres,
libertos e cativos.
Tudo ia assim até que um dia meu senhor, que possuía poucos cativos,
incutiu de ter mais terras, criar muito gado e plantar muito milho. Incutiu de ser
rico. E esse incutimento não poderia trazer boas consequências para mim.
Invocou que iria comprar uma grande fazenda, que seria só dele e que iria
me vender para isso. Foi a pior notícia que eu já ouvi em minha vida. Até hoje.
Velho, deitado nessa rede suja. Escravo doente que só serve para dar trabalho
aos companheiros de sina. Mesmo estrupiado, velho e cansado, ainda sinto
meus olhos se encherem de lágrimas ao me lembrar daquele dia.
O dia em que minha triste sina foi marcada mais uma vez. Escravo ao
nascer. Vendido após ficar adulto. Solitário e triste ao morrer. Este fui eu.
Dona Isabel, minha senhora, pareceu ter gostado da ideia. Quando
percebi isso, vi que meu futuro já estava marcado. Seria vendido. Os filhos
dela, que eram meus amigos, pediram muito que os pais não fizessem aquilo,
que não me vendessem, mas eles não ouviram. Seu José e Dona Isabel já se
71
viam como grandes fazendeiros, com mais posses que quaisquer outros da
família e foram procurar o Doutor Alfredo Machado, que era um dos homens
mais ricos da região e dono das terras que eles ambicionavam.
Disseram antes aos filhos que eu não tinha o sangue deles e que não
poderiam esquecer que eu era, antes de tudo, apenas um escravo, que o preço
dos cativos tinha subido e que eu valia muito dinheiro e seria um desperdício
me deixar envelhecer ali. Apenas mais um braço naquela família que já tinha
tanta gente! Mas poderia mudar a vida deles, de todos eles. E que essa grande
fazenda que comprariam seria uma dádiva para todos os filhos que poderiam
criar gado e plantar milho. Ficariam ricos...
Os filhos até que se conformaram depois dessa conversa e já não
insistiam mais com os pais. Eu estava verdadeiramente perdido. Aquele seria o
meu fim. Percebi então que a amizade não é tão grande quando envolve
dinheiro e que quando se é cativo, nunca se tem a possibilidade de alimentar
sentimentos verdadeiros pelos livres, pois eles amam mais o dinheiro do que
gostam de você.
E eu? O que tinha a ganhar com aquela história toda? Mais trabalho,
sofrimento e dor. Seria levado como um cachorro sarnento para uma terra
distante onde não conhecia ninguém. Não me perguntaram nada. E eu não disse
nada em nenhum momento. Agi como o nada que era e que nada representava
para ninguém. Nada.
Fomos para a fazenda do tal Doutor Alfredo. Ele olhava curioso para
mim. Observava meus músculos, meus dentes. Fez algumas perguntas para ver
se eu era inteligente e, infelizmente, gostou de mim.
Sempre disseram que eu era bonito, bem afigurado e bom de prosa. Além
disso, eu era forte e trabalhador. Triste sina. Ter tantas qualidades foi uma
desgraça em minha vida. Foi o que definiu meu cruel destino: ser vendido por
um conto de réis. Um conto de réis... Era muito dinheiro. A fazenda Canabrava
foi metade disso.
Quando seu Alfredo disse que me trocava por terras no valor de um conto
72
de réis o chão desabou embaixo de meus pés. Foi como se tivessem roubado o
meu corpo e deixado só o cheiro, a sombra e o rastro no lugar. Fui levado de
mim...
Uma companheira tão prendada, alegre, carinhosa e bonita que eu tinha
na Canabrava, tantos amigos. A gente conversava, ria, fazia brincadeira
enquanto trabalhava. Aquele riacho descendo a serra... Aquele verde todo
acompanhado de paz e tranqüilidade. Eu que gostava tanto do mato!
Nunca mais iria ver nada daquilo. Coronel sempre é pior como dono do
que alguém mais pobre. Era o que todo mundo dizia e hoje vejo que, quase
sempre, isso é verdade.
Coronel quer mostrar que é o melhor, que é ele quem manda. Que é forte,
violento, valente, que não é à toa que ele é coronel... E dá para imaginar, diante
disso, o que significa ser escravo de um coronel... Gritos, peia, ser tratado como
menor e pior, como uma peça na vida complicada de alguém que é tão
importante. Aquele covarde!
Isso é o que ele era. Um covarde. Um homem que se diz tão valente não
precisa estar sempre com as melhores armas e acompanhado dos mais bem
treinados escravos. Sempre que viajava ele levava um escravo bom de luta e
um bom de tiro. Onde está a valentia e a superioridade de um homem como
este? Onde? Não vejo as coisas assim, mas os brancos achavam que ele era o
mais bonito, mais inteligente, mais valente e mais rico senhor daquelas
paragens e muitas mulheres dariam tudo para ter um olhar daquele homem. Um
simples olhar de quem eu considerava apenas alguém com muita sorte por ter
nascido com muito dinheiro e recebido um grande poder.
Além da ruindade de viver em um lugar que eu não gostava e de ter um
senhor que eu não admirava, eu ainda tinha que participar de guerra quando ele
resolvia guerrear, o que era ruim porque eu poderia morrer na luta, matar ou
perder um companheiro e ainda ser castigado se perdesse a refrega. Existia
ainda a grande chance de levar um tiro e ficar inutilizado dando trabalho aos
outros até morrer de desgosto e sofrimento levando fama de derrotado. Essa era
73
a parte pior de pertencer a um coronel. E eu que não gostava de brigas e achava
a violência uma estupidez, era taxado de covarde e inútil.
Tive que encarar essa vida de trabalhar um dia com gado, outro na
trincheira e no seguinte com a terra. Ou ainda com salina, casa de farinha ou
garimpo, de acordo com a vontade do senhor e a temporada de seca ou de
chuva. Cada mudança significava uma derrota para mim, pois sabia que o
tempo estava passando rapidamente e poucas eram as minhas chances de
mudança. Poucas eram as esperanças de sair daquela vida de receber ordens e
não ser olhado de frente.
Na minha saída da Fazenda Canabrava foi um choro só. Maria, minha
companheira, quase se desmanchou de sofrimento. Eu tentei segurar, mas não
consegui. Ser levado como um bicho venenoso e perigoso que precisa ser
separado e sacrificado... É dor demais para fingir.
As filhas de meu senhor e alguns companheiros cativos e livres também
choraram ao me verem ser levado dali. Acho que só quem ficou feliz foi meu
senhor e minha senhora, que agora eram donos de uma fazenda enorme, onde
como ali tinha um riacho e poderiam criar muito gado e plantar muito milho.
Minha saída representava uma grande glória para aquela família que agora
seria uma das maiores proprietárias de terras daquelas bandas e ter terras que
não se pode dar conta é uma demonstração de superioridade para os brancos.
Ao invés de dividir com quem não tem, eles querer é ter de sobra, até não mais
precisar e sentem prazer em ver o sofrimento de quem nada tem.
Na fazenda do coronel tinha muitos outros cativos. Fiz amizades.
Arrumei companheiros. Mas tudo era diferente da Canabrava e não tinha um só
dia que eu não me lembrasse de lá. Sonhava quando deitava e lembrava quando
acordava. Quando via um copo de cachaça, uma enxada, um cachorro...
Quando ouvia alguém cantando ou um casal feliz. Tudo me fazia lembrar.
A Canabrava estava dentro de mim e nunca saiu. Nunca mais eu voltei lá.
Já se passaram uns trinta anos e ainda sinto a mão de Maria passando
suavemente no meu rosto. O saboroso gosto de cada risada que dávamos na
74
capina do milho. Ainda ouço a gaitada de Antônio mexendo a farinha no forno,
enquanto Manoela imitava as filhas do finado Venceslau. Ainda sinto o gosto
do puçá e da cachaça com murici.
Venderam meu corpo, este que agora está jogado nessa rede de trapos,
mas minha alma, que nasceu livre, ainda vive na Serra das Laranjeiras com
seus tatus, seus riachos e suas cobras.
Ela passeia livre e ri, canta e planta na beira do riacho... Ela sempre será
canabrabeira.

Cativo trocado por fazenda.

Um escravizado ficou marcado na memória da fundação do atual


município de São Gabriel quando os grandes proprietários Dr.
José Alfredo Machado e sua esposa Dona Anna Joaquina Berta da
Rocha Medrado Castelo Branco Machado trocaram uma Fazenda
que lhes pertencia e se chamava São Rafael, por um cativo
chamado Domingos Cabra, que pertencia a José Pereira da
21
Rocha, morador da Fazenda Canabrava do Gonçalo.

Podemos detectar o fenômeno de transferência de cativos dos


pequenos proprietários para os grandes em alguns documentos e
relatos, havendo inclusive casos em que o único escravizado da
família foi trocado por uma fazenda, como ocorreu quando os
grandes proprietários Dr. José Alfredo Machado e sua esposa
Dona Anna Joaquina Berta da Rocha Medrado Castelo Branco
Machado trocaram uma Fazenda que lhes pertencia e se chamava
São Rafael, por um cativo chamado Domingos Cabra, que
pertencia a José Pereira da Rocha, morador da Fazenda
Canabrava do Gonçalo. Quando José Pereira faleceu em 1886,
deixou essa propriedade, 132 cabeças de gado e parte de outra
22
fazenda, dentre os bens de maior valor.

Uma autora do município o descreve assim:


21
José Purcino Pereira; Leonellea Pereira. Terra dos Arcanjos: historiografia da cidade de São Gabriel-Ba. Irecê: Print
Fox, 2010.
22
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Inventários e Testamentos, n° 07/3119/17, Inventário
de José Pereira da Rocha, Xique-Xique, 1886.

75
“[...] um escravo muito forte e trabalhador chamado Domingos
Cabra, cujo valor foi um conto de Réis, diga-se de passagem, um
pouco caro, e esta negociação aconteceu em 1870 e fora
escriturada na vila de Xique-Xique aos 16 de agosto de 1873,
pelo tabelião Juvêncio Rodrigues Ribeiro, então titular do
23
registro imobiliário”.

23
Cecília Machado de Oliveira. São Gabriel: memórias e lembranças. São Gabriel: Editora Print Fox, 2004. p.09.

76
Vivendo na sombra e na luz.
Meu nome é Zé. Vivo no Mocambo. Serra do Assuruá. Fugi para cá há
muitos anos. Vivo com dois dos meus muitos irmãos. Os outros devem ter
morrido ou continuam na vida de escravos. Podem também ter fugido para
outro lugar. Nem sei. Não tenho tido muitas notícias do mundo do cativeiro.
Esse é um mundo que eu quero esquecer, mesmo tendo deixado irmãos por lá.
Não vieram porque não quiseram. O azar é deles.
Não tenho culpa de eles serem medrosos. Medo do senhor. Da polícia.
Do mato. De onça. De castigo. Que fiquem com a peia e a fome. Tenho muitos
irmãos aqui. Tenho mulher, filhos e amigos. Temos comida, muita comida. E o
mais importante: a liberdade, que sempre é infinita.
Aqui plantamos fumo, fazemos os rolos e vendemos para muitos
fazendeiros da Serra do Assuruá, para tropeiros que os vendem nos garimpos
que ficam perto daqui, no de Santo Inácio e em Lençóis e para alguns vendeiros
de Xique-Xique. Nosso fumo é muito bom e nele trabalham homens, mulheres
e crianças. Mas o trabalho com o fumo não é a nossa única atividade por aqui.
Plantamos mandioca e fazemos farinha e tapioca. Criamos galinhas.
Caçamos no mato. Plantamos algodão para fazer nossas roupas, pois temos
mulheres que sabem fiar, tecer e costurar, além de bordar. Plantamos ainda
milho, feijão, abóbora, maxixe e melancia... É uma fartura que dá gosto e uma
alegria sem tamanho.
Mas de vez em quando aparece algum fazendeiro, coronel ou soldado de
polícia querendo que a gente venda muito barato o que produz ou dê algumas
coisas a eles. Senão dão parte da gente ao governo. E o governo não gosta de
escravo fugido. Manda matar todo mundo.
Então é melhor a gente dar as coisas. E ter paz. A paz não tem preço. E o
fumo não faz falta.
Às vezes tem briga por aqui, porque a gente também é gente e ninguém é
de ferro. Um briga com o outro por causa de alguma mulher, porque aqui tem
77
mais homens do que mulheres e elas são muito disputadas. Mesmo aquelas que
são casadas, exigem que os maridos as tratem muito bem, pois oferta de
homem é o que não falta por aqui. Aquelas que preferem ficar solteiras
despertam muitos ciúmes daqueles com os quais se envolvem, mas
dificilmente as brigas acabam em mortes, porque todo mundo interfere e nos
tratamos como uma grande família.
Na hora de dividir o que é produzido o que conta é o número de pessoas
em cada casa e a quantidade é diferente para menino e para gente grande. Todos
trabalham e de vez em quando um acusa o outro de preguiçoso. Então a gente se
reúne e se todos concordam que alguém está fazendo corpo mole sem estar
doente, decidimos uma punição para essa pessoa, que tem algum trabalho mais
pesado por mais tempo e tudo volta ao normal.
O mais difícil foi achar esse lugar. Um lugar com água, perto e distante ao
mesmo tempo. E o mais difícil: sem dono. Mas achamos, porque Deus é
grande, mas o mato é ainda maior. É um lugar difícil de chegar, porque é em
cima de uma serra muito alta. Tem que subir umas pedras. Pessoas velhas e
doentes não chegam aqui. Mas temos velhos e doentes que a gente trata ou
enterra por aqui mesmo. Quem tem medo de altura também sofre para chegar
aqui, pois temos que passar por muitas estradas com ribanceiras onde até
jumento tem medo de passar.
Difícil também é despistar o ex-senhor de cada um de nós, porque muitos
senhores sabem da existência desse lugar, apesar dele não ser o único nessa
serra onde vivem negros que fugiram. Mas a gente se esconde, entra nos
buracos da serra que só a gente conhece e engana os brancos. Vamos então
levando a vida. Mas esses momentos de fugas são compensados por vivermos
sem ouvir gritos e ordens, fazendo o que queremos do nosso destino e indo para
os lugares que desejamos, desde que ele não seja perto das casas de nossos
senhores, é claro.
Quem negocia direto com os senhores da região são aqueles que fugiram
de mais longe para cá. Como eu. Vim de Lençóis e meu senhor não tem como
78
me descobrir, se é que ele está vivo. Ele é de São Félix e não tem como saber
para qual lado dessas terras ermas eu resolvi fugir. Nem sonha que eu vim para
o sertão e que vivo em um brejo encravado nele!
Meu senhor certamente é incapaz de imaginar que estou vivendo em um
lugar que tem um rio estreito, onde quase não tem cana e tem ouro bem perto.
Um lugar onde mora um povo que reza esperando por chuva, porque a chuva é
pouca e é capaz de dar vida ou mandar a morte em seu lugar. Ele deve pensar
que fui para Salvador ou estou bem perto de São Félix.
Não foi fácil fugir. Meu senhor não saía dos meus calos. Tinha muito
medo que eu roubasse dele algum diamante. Mas não era esse o meu maior
desejo. O que eu queria mesmo era me livrar daquele cabrunco que além de ser
um triste grude em minha vida, vivia gritando comigo e me acusando de
preguiçoso.
Até que um dia ele amanheceu com uma febre do cão. Nem saiu da rede.
Devia ser a maleita. Era a minha chance e eu tinha que aproveitar a desgraça
dele para me livrar da minha. Nem pensei em ajudar aquele homem que tinha
por profissão me fazer sofrer e me desgastar até a última gota. Resolvi então
enganá-lo e agarrar a oportunidade que eu tinha rezado tanto para que
aparecesse.
Disse então que eu ia buscar uma planta no mato para fazer um chá para
ele. Ele concordou porque sabia que meu povo conhece remédio para tudo
quanto é mal e também porque não tinha muita escolha. Eu era a única pessoa
que poderia cuidar dele ali no meio daquela guerra. Além de me tratar mal, ele
vivia gritando com os outros garimpeiros e fazendo intriga. Eu sentia até medo
de que quisessem vingar em mim a antipatia que sentiam por ele e tinha certeza
de que caso ele se demorasse por aquelas paragens iria acabar sendo eliminado
por uma das muitas pessoas que não toleravam a cara mal amada e nojenta que
ele tinha.
Saí e nunca mais voltei. Corri no meio daqueles matos e minha única
preocupação era me afastar cada vez mais dos garimpos de Lençóis. Subi e
79
desci serra procurando algum lugar onde as pessoas me dessem informações
sem me denunciar. Um lugar onde eu pudesse oferecer meu trabalho em troca
de comida e pudesse descansar.
Dei então de cara com um lugarejo em cima da serra onde havia muitos
negros e algumas pessoas mais claras. Desconfiei que pudesse ser um povoado
onde viviam cativos fugidos, pois ouvia as pessoas dizerem que no sertão havia
muitos desses lugares encravados pelas serras, pois as fazendas ficavam muito
longe umas das outras e era possível aos cativos fugitivos viverem longe dos
olhares de seus donos, estivessem esses mais perto ou mais distantes do litoral.
Chamei então um dos homens que ia passando para conversar, disse que
eu era um escravo fugido e perguntei se ele sabia de algum lugar onde poderiam
me acolher. Falei que tinha escapado dos garimpos de Lençóis e estava
disposto a oferecer meu trabalho em troca de alguma comida para eu seguir
meu destino para mais longe dali, onde não pudesse ser encontrado por meu
senhor.
Ele disse que ali viviam negros fugidos e algumas outras pessoas como
índios e libertos e que eles poderiam me dar uma rede para descansar e comida
para seguir viagem. Poderiam até indicar alguém para me levar a um quilombo
que ficava mais distante dali, onde meu senhor jamais me acharia, pois era
difícil de chegar e ficava para os lados de Xique-Xique.
Para mim aquilo significava uma grande luz, pois havia encontrado
irmãos que iriam me ajudar sem exigir nada em troca e aquilo já era uma grande
vitória naquela situação. Agradeci a ajuda e descansei por uns dias, mas me
preocupava em ir para um lugar mais distante, onde estaria mais seguro e
poderia viver mais tranqüilo. Me ofereceram um guia que era muito
conversador e foi muito agradável viajar por essas bonitas serras ao seu lado.
Durante a viagem eu já pensava em todas as coisas maravilhosas que iria
fazer ao me tornar livre, entre elas cuidar de alguns bichos e sair para caçar mais
vezes, pois gosto muito da caça.
Jamais voltarei. Prefiro morrer e sou capaz de matar, mas não me sujeito
80
mais a homem nenhum. Não aceitaria ser escravo de novo. Desde que vivo aqui
no mocambo me sinto como gente, durmo em paz e celebro o nascer de cada dia
e disso ninguém deve abrir mão.
Conheci muitas pessoas e conversamos sobre os lugares de onde viemos.
Aqui tem gente que nasceu em Xique-Xique, na Barra, na cidade da Bahia,
alguns de São Félix, Maragogipe, Província do Piauí e até de Minas Gerais.
Contamos histórias do mar e do sertão e as noites de lua são maravilhosas
porque as regamos de conversas, cachaças e batuques que demoram a ter fim.
Apareceu por aqui um tropeiro de São Félix e eu aproveitei para mandar
um recado para meus irmãos. Disse que se eles quisessem viver livres aqui, eu
pagaria ao tropeiro com produtos que temos aqui pelo serviço e ele os traria.
Dois deles vieram. Os outros ficaram para trás, como eu já disse, por medo.
Medo do senhor, da polícia, do céu e de viver.
Quem tem medo de viver, merece mesmo é morrer. Em vida. Vida sem
sal não vale a pena ser vivida. Que fiquem por lá então.
Não existe vida melhor do que aqui no Mocambo. Quando a gente quer
uma arma melhor ou uma roupa mais bonita, vai para algum garimpo que
explode aqui por perto e tira algumas pepitas de ouro ou pedrinhas de diamante.
Então compra a arma ou a roupa.
O sal a gente tira em alguma salina aqui por perto. Escondido. Peixe,
quando a Ipueira esvazia mais e prende muito, escolhemos alguns daqui,
aqueles que não são mais procurados e estes vão até lá, montam uma palhoça e
pegam muito peixe, tratam, colocam para secar com o sal que eles já levam
daqui e trazem eles prontos, pois fica mais leve e dura mais tempo.
A gente não tem gado, nem fazenda e nem alambique. Mas a gente é feliz.
Muito mais feliz do que muito fazendeiro, porque a gente já viu o inferno de
dentro e só quem já viveu no fogo é capaz de reconhecer o paraíso, que é um
lugar onde não tem ouro, cana, nem ganância e todo mundo é livre...

81
Quilombos em Xique-Xique!

Em junho de 1719, as autoridades coloniais baianas chamavam a


atenção para o fato de que grupos de escravizados fugidos e
quilombolas estavam minerando nos distritos de Jacobina. Já em
1801, nessa mesma localidade, mais propriamente nos “distritos
do Julgado de Xiquexique”, uma expedição encarregada de
descobrir ouro acabou encontrando “dois quilombos de negros
24
foragidos”.

Em um processo-crime que analisa a destruição da Vila de Xique-


Xique por um dos grupos políticos que a cercou e alvejou por
alguns dias em janeiro de 1886, podemos encontrar Marciano do
Mucambo, cujo nome, como de muitos outros indiciados, veio
25
junto da localidade em que vivia e que, no caso, era o Mucambo.

24
Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidade de fugitivos no Brasil
(séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. Unesp; Ed. Polis, 2005. p. 403.
25
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Processos Criminais. n° 24/839/07, Apelação
Crime, Réu: Jacob Pereira Bastos (e outros). 1886.

82
Branca e cativa.
Me chamam de Bertholina. Sou branca, tenho os olhos azuis e o cabelo
claro e liso. Sou escrava desde que nasci. Moro no Cotovelo. Tenho cinco
filhos e doze afilhados. Sou muito conhecida nessas serras porque sou
rezadeira e parteira. Também me chamam a escrava branca do Cotovelo e vivo
nessa vida de oposições e incertezas desde que fui concebida.
Aprendi muitas coisas com minha avó, que era africana e me ensinou a
rezar para tirar olho ruim das pessoas, sarar mordida de cobra, fechar o corpo e
cair verrugas. Ela sempre me contava muitas histórias de sua terra e disse que
muitas dessas coisas que ela me ensinava, aprendeu lá. Mas muitas rezas e
remédios aprendeu por aqui, com os santos daqui e as plantas dessa nova terra.
Ela dizia que muitas coisas aqui são diferentes, mas doença, sofrimento e olho
ruim existem e sempre existiram em todos os lugares.
Ganho muitos presentes e sou muito respeitada por aqui. As pessoas me
procuram para ajudar nos partos e me dão agrados que eu divido com meus
senhores. Quando o parto não dá certo e a mulher, a criança, ou as duas morrem,
o que acontece muitas vezes, todos entendem que era a vontade de Deus e me
agradecem por eu ter ajudado em um momento tão difícil. Fico triste mesmo é
quando a mãe falece. Na maioria das vezes ela deixa outros filhos para trás, que
ficarão desprotegidos e sofrerão muito mais do que se ela não tivesse morrido.
As crianças são anjos, não tem pecados e não tem porque ficarmos tristes
porque elas se foram. Mas algumas sofrem muito e morrem gritando com o mal
de sete dias e quando acompanho um caso assim, sempre fico muito triste. Ela
grita, grita, até perder o fôlego e ninguém pode fazer nada. Não existe remédio.
Viajo para outras fazendas de burro e rezo pessoas que estão doentes.
Quando a casa é mais perto vou a pé mesmo com meu companheiro e na casa
rezo gente e animal. Também preparo remédios com as plantas que existem por
aqui.

83
Mas tem uma coisa que nunca entrou direito em minha cabeça: por que
sou branca e escrava? Dizem uns que pessoas escravizam outras porque os
brancos são melhores que os negros.
Não concordo com isso, pois conheço brancos e negros fracassados,
ignorantes, de bom coração e inteligentes. A diferença não está fora, mas do
lado de dentro. Penso: sendo a cor que determina o ser escravo, por que sou
cativa?
As pessoas vivem estranhando minha cor e condição andarem juntas e a
única resposta que eu sei dar é que sou cativa por que minha mãe era e pronto.
Prefiro não ir muito longe nessa conversa que me deixa triste e só me faz
lembrar de muita coisa ruim que passei nessa vida. E essas coisas ruins, só
passei porque sou cativa e vista como bonita. Justamente as condições que
levantam tantas perguntas sem solução.
As pessoas acham que tive sorte porque nasci branca, que todos gostam
de mim por isso, que os homens me acham bonita e se sentem atraídos. Até que
tudo isso pode ser verdade, mas ser branca me trouxe muito mais sofrimentos
do que privilégios. Vou contar um pouco disso para vocês.
Desde criança sofri com a inveja das outras meninas escravas que me
odiavam porque todos diziam que eu era muito bonita e nem parecia ser cativa.
Acho que as pessoas não deveriam ficar olhando para as crianças e dizendo
tudo o que vem em suas cabeças. Não se deve ficar por aí falando que os outros
são feios, bonitos, inteligentes, tolos, espertos ou sem vergonha,
principalmente quando esses outros nem sabem direito o significado dessas
palavras e entendem apenas que aquilo os faz melhores ou piores que os outros
e que eles são culpados por isso.
As pessoas falam sem imaginar o sofrimento que podem causar e o
quanto poderiam deixar de atrapalhar se apenas ficassem caladas, sem
despertar orgulho, inveja, dor e sofrimento sem nenhuma necessidade.
Havia momentos em que eu me sentia superior por ser assim
considerada, mas sempre que tentava fazer algo que demonstrasse minha
84
superioridade, me lembravam que eu era cativa e deveria me comportar como
tal. Nunca soube verdadeiramente o que é ser livre como uma criança filha de
livres. Brincar sem ser o cavalo de ninguém ou poder andar para onde quiser e
falar com quem quiser e como quiser. Desde quando éramos crianças deixavam
bem claro para nós o lugar que cada um poderia ocupar e até onde poderíamos
ir. Menino livre pode bater, xingar, correr e quebrar. Menino cativo pode
brincar e correr, mas tem que trabalhar. Menina livre tem que aprender a ser
sinhá, a bordar, a gritar com os outros e a calar quando os meninos livres falam.
Menina cativa tem que aprender a cuidar dos meninos menores, a cozinhar,
carregar peso, obedecer e se calar sempre. Sem correr, brincar ou xingar.
Menina é especial, era o que diziam.
Tinha uma imensa vontade de ser menino e livre. De correr para a lagoa,
pegar passarinhos, levar as cabras para beber água, nadar e badogar. Mas foram
desejos que nunca consegui realizar e tinha que aprender a ser cativa. E cativa
branca.
Conviver entre os extremos nunca foi fácil. Assim que me tornei uma
mulher, que no fundo era ainda uma menina, todos os homens passaram a me
assediar e, infelizmente, meu senhor não estava de fora desse grupo. Fui
violentada por ele que disse que iria fazer aquilo antes que outro fizesse, afinal,
ele era o meu dono.
Eu estava dormindo no quarto com as outras escravas da casa e meu
senhor entrou com um candeeiro, agarrou no meu braço e disse que tinha uma
coisa para me mostrar. Eu o segui e não imaginava o que estava a me esperar do
outro lado da fazenda. Não podia esperar que iniciaria uma nova fase em minha
vida, bem mais trágica que a anterior. Caminhei com meus próprios pés para o
abismo, mas fui guiada por meu senhor.
Ele me levou então para a casa de farinha. Tirou suas calças e disse que eu
tirasse a minha roupa, pois já estava em ponto de cama. Fiquei aterrorizada e só
então percebi qual era a intenção dele. Comecei a tremer como uma vara verde
e não sabia se gritava ou obedecia.
85
Eu disse a ele que não queria fazer aquilo e ele respondeu que eu não
tinha querer, que calasse a boca e tirasse a roupa, pois eu era escrava dele e
deveria me comportar como uma.
Rasgou então minha roupa e me agarrou. Senti como se estivesse sendo
esquartejada e meu mundo acabou ali. Só então percebi que o que parece bom
pode ser ruim e o que é dor não tem disfarce. Chorei. Gritei. Berrei. Nunca me
senti tão escrava em minha vida como naquele momento.
Desde então meu senhor ordenou que eu passasse a dormir sozinha, o que
foi motivo de inveja para alguma das outras cativas e desde então me visitava
com uma frequência infernal.
Após alguns meses minha barriga apareceu. Pelo menos ele me deixou
em paz até o final do resguardo. Eu era ao mesmo tempo uma roda de casa de
farinha e a mandioca. Moía eu mesma infinitamente.
O pior ainda estava por vir. Minha senhora descobriu tudo e passou a me
perseguir de forma obstinada. Ela que já não gostava de mim porque eu era
mais branca que as filhas dela, passou a me odiar. Surgiu nela a idéia fixa de me
vender. A mim e a meu filho. O marido não queria e eles passaram a brigar às
vistas de todos. Tudo naquela fazenda se tornou um inferno. Todos fofocavam
nos cantos e eu sabia que meu nome estava em quase todas as conversas. Havia
até brigas onde uns me defendiam e outros diziam que eu era a puta de meu
senhor e que gostava muito daquela situação. Diziam até que eu pirraçava
minha senhora e que ela estava sofrendo com minha ruindade, pois eu tinha
feito feitiço para meu senhor se apaixonar por mim e minha senhora morrer aos
poucos de dor e sofrimento.
Sei que ela sofria com aquela situação, mas o meu sofrimento não era
menor. Nunca desejei aquele homem e a cada vez que ele se aproximava eu
sentia vontade de vomitar e desmaiar, para não ter que presenciar aquilo mais
uma vez e a cada mentira que os outros escravos contavam a meu respeito, eu
sentia um vazio maior por dentro. Vazio de quem não tem casa nem
companheiros. De quem se sente sem berço e sem lugar. De alguém que foi
86
perdido e nunca será encontrado.
A essa altura eu trabalhava em um único dia na casa de farinha, na casa
dos senhores e na roça. Vivia moída e não tinha tempo de cuidar de meu filho
que vivia jogado à própria sorte, até que alguma cativa sentia pena e cuidava
dele. O coitado demorou muito tempo para aprender a falar e quase não crescia.
Os olhos de todos se voltavam para ele que era apenas um inocente cativo
branco. Quando eu o via, meu único desejo era que ele não sofresse como eu
havia sofrido e que tivesse uma sorte melhor que a da mãe.
Pelo menos com as brigas dos dois as visitas diminuíram. A mulher
vigiava o marido dia e noite e o ameaçava de voltar para a casa do pai, de não
ajudá-lo mais na fazenda e de mandar alguém me matar. Meu senhor resolveu
então me vender. Senti um misto de alívio, dor e incerteza. Mesmo sendo
violentada por meu senhor, tinha parentes ali e tinha medo do que poderia
encontrar em meu novo cativeiro. Tinha medo também de que me separassem
de meu filho, o que seria uma dor muito grande para nós dois. Um dia ela veio
me dizer que havia arrumado um comprador para mim e para o bastardo. Fiquei
alegre nesse momento, pois pressenti que as coisas não poderiam ficar piores
do que estavam.
Fui vendida junto com meu filho para essa fazenda onde vivo no
Cotovelo. Não tenho parentes aqui, mas ao menos posso dormir a noite inteira
sem levar sustos ou ser interrompida. Também passei a ter menos pesadelos.
Aqui conheci pessoas maravilhosas que não achavam tão grave o fato de eu ser
branca e cativa e consegui os únicos grandes amigos que eu tive nessa vida.
Percebi então que o que tornava minha vida pior era que eu não tinha quem
valesse por mim. Minha avó era muito velha e minha tia não gostava de mim.
Os outros moradores da fazenda me ignoravam ou me maltratavam e era isso o
que fazia de minha vida insuportável, muito mais do que meu senhor ou minha
senhora.
Aqui passei a ter, como lá, muito trabalho, mas tinha tempo de cuidar do
meu filho. Cerca de um mês após minha chegada, todos notaram o que eu já
87
suspeitava há dois meses: eu estava grávida. Mais um filho da violência do
cativeiro. Mais um escravo branco que era filho, desta vez, do ex-senhor. Meu
dono ficou alegre com a notícia, pois provavelmente receberia um lucro com
sua compra realizada tão recentemente.
Cuidei da menina e pensava até então que ser mãe era um sinônimo de
dor e sofrimento, pois quando olhava para meus filhos me lembrava das
agonias e da tortura e pensava que aquilo nunca iria ter fim. A menina era a cara
de uma das filhas de meu senhor com minha senhora e isso era para mim algo
insuportável.
Até que um dia conheci um homem que despertou em mim algo que eu
nem imaginava que pudesse existir. Quando eu o via, o mundo desaparecia e só
havia nós dois. Ele era educado, atraente e bonito. Finalmente estava diante de
um homem pelo qual eu não nutria nojo. O que eu sentia era desejo e coisa
melhor não poderia existir. Ele me fazia feliz apenas com sua presença e
conversava comigo, mas não me olhava como se eu fosse uma costela de porco
assando. Me via como gente. E isso era o que poderia haver de melhor. Nesses
momentos ele era a única coisa que me interessava no mundo.
Era negro, alto e forte. Quando eu o via, sentia vontade de ficar ali, ao seu
lado, até o universo desaparecer. Descobri então que poderia ficar sozinha com
um homem e ter prazer ao mesmo tempo e me tornei a mulher mais feliz
daquelas serras.
Meus filhos não me davam mais calafrios ao olharem para mim e pela
primeira vez na vida esqueci que era branca e cativa. Meu homem me tratava
simplesmente como sua mulher e mãe de seus filhos e aprendi a sentir alegria
com coisas simples como cozinhar ou costurar uma roupa.
Ele era liberto e passamos a viver juntos em uma casinha nas terras de
meu senhor. Trabalhava numa pequena roça e vendia o dia de serviço nos
tempos de capina e quebra de milho. Fazia a farinha da mandioca que plantava
na casa de farinha de meu senhor e sempre tinha alguma coisa para vender e
comprar o que precisássemos.
88
Hoje tenho mais três filhos e somos uma família de sete pessoas. Nunca
menciono que meus filhos são uns brancos e outros negros e mulatos. Nunca
falo que alguém é mais bonito ou mais feio, mais esperto ou mais tolo ou o que
quer que seja. São todos meus filhos e gosto deles da mesma forma. Mesmo os
que são filhos do demônio que era meu senhor não têm culpa disso e todos
chamam meu marido de pai.
Depois que passei a viver e a ser feliz, tive vontade de ajudar os outros e
passei a usar as coisas que minha avó havia me ensinado: as rezas, os remédios
e a ajuda na hora do parto.
Meu marido me mostrou que é possível sim ser gente. Mesmo sendo
branca e cativa.

Bertholina, mulata e achacosa, era escrava de Eufrásia Maria da


Conceição e Domingos Carvalho dos Santos, casados há mais de
26
50 anos em 1872 quando Eufrásia faleceu.
Era mãe de Maria, parda, nascida em 1872 e Anna, parda, de
1876, dentre outros filhos que pode ter tido. A primeira era
afilhada de Antonio Pereira Cardoso e Theodora Maria da
Conceição e a segunda de Irineo da Cunha e Silva e Brisida Maria
27
do Espírito Santo, pessoas livres.
Mas Bertholina também tinha compadres escravizados.
Maximiana, escrava de Floris da Cunha, deu à luz a Nicolau,
crioulo, em 1873, que foi batizado por Bertholina Carvalho dos
Santos e Francisco Lourenço Teixeira. Três anos depois, a cativa
batiza um outro filho de Maximiana chamado Pedro e crioulo. O
padrinho de Pedro foi Bernardo, escravizado do mesmo senhor da
28
mãe. Bertholina foi madrinha também de João, pardo, filho de
Raymunda, escrava de Antonio Carvalho dos Santos, sendo que o
29
padrinho foi Isidoro, cativo de Maria Rosa da Conceição.

26
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Inventários e Testamentos, n° 04/1444/1913/16,
Inventário de Eufrásia Maria da Conceição, Xique-Xique, 1871.
27
Paróquia do Senhor Bom Jesus de Xique-Xique. Livro de Registros de Batismos, 1872-1886.
28
Paróquia do Senhor Bom Jesus de Xique-Xique. Livro de Registros de Batismos, 1872-1886.
29
Paróquia do Senhor Bom Jesus de Xique-Xique. Livro de Registros de Batismos, 1872-1886.

89
Vingada e criminosa, mas respeitada?
Tive que recorrer a Deus e a história de Cristo para me livrar da prisão e
da forca. Precisei trabalhar embaixo de sol e chuva, de dia e de noite, para
conseguir ficar livre do cativeiro. Fui obrigada a contratar um assassino para
matar um homem e ser ao menos um pouco respeitada. Hoje estou três vezes
livre: da prisão, do cativeiro e da humilhação, mas não estou feliz.
Sinto-me cansada, destruída e envelhecida. Fui abandonada por meu
homem quando a nossa encomenda de assassinato foi descoberta. Abandonei
minha família junto com a escravidão e nunca mais os vi. Deixei para trás o
resto de tranquilidade que ainda conseguia ter ao carregar um assassinato em
minhas costas. Durmo e não sonho. Tenho pesadelos e não descanso.
Estou vingada, mas continuo me sentindo degradada, desvalorizada e
mal amada. Nasci mulher, cativa e valente. E as pessoas me odeiam por isso.
Era escrava de uma família em Xique-Xique e ali nasci. Nunca me conformei
com o cativeiro e desde que descobri que poderia comprar minha liberdade,
passei a trabalhar de forma obstinada para juntar o devido valor. Capinei, lavei,
passei, fiz doce, costurei, bordei, fiz renda e cozinhei. Minhas mãos estão
calejadas, meus olhos doentes e sou uma mulher livre.
Mudei-me para Santo Inácio por causa do garimpo. Lá eu cozinhava e
vendia comida para os garimpeiros. Costurava para todos. Respeitava a todos,
mas não era respeitada. Todos me olhavam torto porque eu era negra, liberta e
solteira. Eram três marcas pesadas demais para qualquer mulher num lugar
onde a força, a valentia e o dinheiro é que definiam tudo.
Conheci um homem que notou minhas qualidades e quis ficar comigo.
Nunca me disse que gostava de mim, mas estava comigo todos os dias, comia e
dormia ao meu lado e me fazia companhia nas alegrias e tragédias. Santo Inácio
era um lugar impossível para uma mulher sozinha. Além de trabalhar durante
todo o dia ela teria que se prostituir, pois se não aceitasse receber pelo serviço
seria com certeza violentada de graça.
90
Havia muitos homens que viviam alguns do comércio e a maioria do
garimpo e as poucas mulheres ali tinham função bem definida: servir na mesa e
na cama. Cozinhávamos para aqueles animais e tínhamos que dormir ao menos
com um deles. Toda mulher que não fosse casada ali era vista como puta.
Ninguém acreditava que pudéssemos ter um homem só e viver apenas do
dinheiro suado das comidas e costuras.
As mulheres solteiras viviam ouvindo piadinhas e isso tornava a vida de
cada uma de nós ainda pior. Ter que levantar cedo e carregar água para nós e os
homens tomarmos banho, beber e cozinhar as comidas. Lavar as roupas de
todos. Preparar as difíceis comidas onde pegávamos peixes por limpar e
galinhas por matar.
E apesar disso sermos vistas como fardos, que só dão despesas e que não
viveriam se não fosse o trabalho dos homens. É difícil ser uma mulher forte
num lugar desses e esse foi o meu maior crime.
Logo que cheguei aqui percebi que não poderia ficar sozinha e conheci
Joaquim Gandra. Homem rude, como os outros, mas que conversava comigo e
me pedia opinião sobre as coisas. Era visto como fraco por isso, mas ele não se
importava. Percebia que eu era bem mais esperta que a maioria dos amigos dele
e por isso sabia me tratar devidamente bem.
Eu ganhava mais do que ele nas minhas costuras e vendendo comida. De
vez em quando ele encontrava no garimpo uma pedra que poderia ser vendida
por um dinheirinho até bom, mas como quase todo garimpeiro, ele vendia a
pedra e caía na boa vida até o dinheiro acabar. Não passava fome porque tinha a
negona aqui que nunca deixou de vender comida e economizar seus trocados e
aprendeu também nos garimpos a trabalhar embaixo do sol e da lua.
Não vou negar que gostava das farras que ele fazia. Sempre gostei de
uma cachaçazinha acompanhada por uma boa carne de porco e muitos amigos
para rir e gozar. Os nossos momentos de maior alegria eram regados pelas
pedras que ele achava e meu sofrimento servia para não passarmos fome nem
ficarmos nus.
91
Mesmo todos sabendo que eu vivia mesmo com o Joaquim e só com o
Joaquim, eu era tratada como as mulheres do puteiro. Mesmo eu tendo dinheiro
e boas roupas, ninguém me chamava de Dona Antônia e todos conversavam
sobre qualquer assunto em minha frente. Não queria ser tratada daquela forma.
Não foi para aquilo que me matei esses anos todos para comprar o que todos
consideravam bonito: uma casa, uma cama de vento e várias redes e lençóis.
Não foi para ser tratada como uma escrava que lutei tanto para comprar
minha alforria. Acho que andei, andei e voltei para o mesmo lugar. Um dia esse
tratamento chegou a um ponto que me deixou revoltada. A mim e a Joaquim,
que antes sempre dizia que eu estava exagerando e que se tinha nascido negra,
mulher e cativa, tinha mesmo era que me conformar com minha sorte.
Alguém escreveu um pasquim onde esculhambava várias mulheres
solteiras de Santo Inácio e meu nome estava lá. Quando eu soube daquilo, após
perceber que as pessoas me apontavam e riam na rua, senti meu sangue ferver.
Gritei aos quatro ventos que se descobrissem quem fez aquilo, eu iria fazer uma
arte com o tal fulano.
Que ele pagaria caro por mexer em meu orgulho e que tinha duzentos mil
réis para acabar com o sujeito. Era só no que todos falavam. Ou riam das
mulheres que foram rebaixadas a lugar inferior ao das putas ou falavam que eu
dizia que tinha duzentos mil réis e que mataria o difamador, o que as pessoas,
quase todas, duvidavam.
Joaquim também sentiu um ódio indizível e disse que me ajudaria na
vingança. Seria tão mais fácil se ele quisesse se casar comigo. Bem mais fácil
que calar a boca de todos que criticavam nossa condição de amásios. Mas ele
me dizia que não iria se casar com uma velha negra que quando ele conheceu já
tinha muita estrada andada e ponto final.
Tratamos de descobrir o escritor, o que não era muito difícil. Quase
ninguém sabia escrever ali e passamos também a procurar o assassino, o que
era mais fácil ainda, pois não faltava que aceitasse acabar com a vida de alguém
por alguns trocados, afinal, num garimpo quase todos são aventureiros. Apesar
92
disso, as pessoas não tinham a menor preocupação em deixar de espalhar o que
sabiam a respeito dos outros, mesmo que isso custasse a vida deles.
Começaram a dizer que quem tinha feito o pasquim era Sulpino, pois ele
era gaiato, tinha raiva das mulheres que não queriam nada com ele e, acima de
tudo, sabia escrever e tinha tempo e dinheiro suficientes para perder com isso e
poderia mandar para a tipografia.
Estava descoberto o criminoso, agora só faltava o assassino. Espalhamos
que pagaríamos cem mil réis e candidatos não faltaram. A maioria não tinha
nada além de um porrete, mas resolvi emprestar meu canivete e contratar dois
deles. Receberiam metade do valor antes da morte e a outra metade depois.
Tudo certo, agora só faltava esperar o melhor momento.
No domingo seguinte, como sempre, iriam acontecer várias farras no
lugar e aproveitaríamos a ocasião para colocar em prática o esperado plano.
Havia um São Gonçalo na casa de Maria Grande, mas isso era festa pra pardo e
cativo e eu queira um lugar superior para estar na hora do crime. Resolvemos ir
a uma tocata que teria na casa de Francisco Linguiça, onde teria muita cachaça
e comida. Além disso, mesmo que as pessoas soubessem de nosso plano,
teríamos muitas testemunhas de que não fomos nós que cometemos o crime. E
se os assassinos fugissem, teríamos enfim nossa vingança e eu teria paz.
O grande dia chegou. Vesti minha melhor roupa e fui. Está certo que tinha
passado o dia inteiro cozinhando para a farra, mas apesar de cansada, estava
feliz. Lá pelas onze horas da noite os dois contratados saíram do São Gonçalo e
um deles, que era “amigo” de Sulpino, chamou a vítima para uma conversa em
um beco, carregando-lhe pelo braço.
Sulpino, que certamente ouviu os boatos, mas não acreditou neles e se
julgava inatingível por ser branco, estudado e rico, provavelmente nem
desconfiou que seu fim estivesse próximo, mesmo o colega estando com um
porrete, o que era muito comum ali. Este lhe desfechou um grande golpe na
cabeça, que lhe produziu um buraco profundo. Nesse momento chegou o
companheiro do traidor com outro porrete e o meu canivete e desfechou mais
93
golpes com o pau e deu ainda uma cravada certeira com o canivete no coração,
só para garantir a morte imediata.
Fugiram e voltaram para a festa, após retirarem as roupas sujas de sangue
e o corpo foi descoberto por pessoas que passavam pelo beco para seus
encontros íntimos. A notícia se espalhou rapidamente e Sulpino já estava a essa
altura completamente morto. Senti uma espécie de gozo que não tinha sentido
nem mesmo quando recebi minha carta de alforria. Por menos de um minuto,
eu fui extremamente feliz.
Mas no minuto seguinte minha agonia começou. Um dos assassinos era
extremamente incompetente e foi pedir para a mulher que ele vivia na pensão
lavar o canivete sujo de sangue. Ela o reconheceu, mas perguntou a ele só para
confirmar. Ele disse que o canivete era meu.
Isso serve para vocês verem como eram os homens aqui naquele tempo e
ainda são hoje. Aquele bocó não poderia ter ido ao riacho e lavado o bendito
canivete, para me devolver alguns dias depois? Não. As mãos dele não foram
feitas para lavar, apenas para matar e surrar e por causa disso fui descoberta.
Por causa do meu canivete. Meu próprio e querido canivete. Que muitas
vezes tinha me livrado de homens indesejados, que me dava segurança para
morar sozinha e para trabalhar de noite. Ele que tantas vezes havia sido minha
salvação, naquele momento seria a minha denúncia e meu desterro.
Mesmo que todos soubessem que ameaçamos matar o Sulpino, se não
fosse o canivete, teríamos saído imunes, pois tínhamos muitas testemunhas de
que na hora da morte estávamos na casa de Francisco Linguiça e todos
reconheceram os cacetes. Tínhamos dinheiro para pagar aos matadores e eles
nunca mais voltariam ali. Assim driblaríamos a justiça e seríamos eternamente
felizes.
Todos saberiam no fundo que fui eu que mandei matar e pensariam duas
vezes antes de falar de mim ou de qualquer outra mulher solteira de Santo
Inácio e a paz se estabeleceria em minha vida. Mas o que veio foi a tormenta da
prisão e do abandono por meu homem que, ao perceber que o plano não deu
94
certo, sumiu levando inclusive o dinheiro de pagar aos matadores. Eu estava
perdida.
Fui a julgamento. Todos me viram como culpada e fui condenada à forca.
Graças e Deus o juiz recorreu e eu teria direito a um novo julgamento. Mas o
que eu poderia fazer se não tinha aparecido nada de novo e todos alimentavam a
certeza de que eu era culpada?
A porta estaria para sempre fechada e minha vida acabaria ali. Nascida e
crescida no cativeiro. Consegui a liberdade incompleta e joguei fora usando o
dinheiro que havia conseguido juntar. Meu trabalho comprou minha liberdade
e minha prisão. É difícil entender uma coisa dessas.
Pensava, lutava com minha mente, mas essa missão ficava cada vez mais
difícil, porque que me tornava a cada dia mais velha, fraca, triste e doente. Não
conseguiria vencer aquela batalha e minha vida terminaria em condição pior do
que tinha começado. Ninguém me visitava e a constatação de que estava só me
deixava cada vez mais desesperada, o que me impedia completamente de
pensar.
Uma noite eu tive um sonho, onde vi Jesus Cristo. Lembrei-me que ele
também foi perseguido, massacrado e que conseguiu ser reconhecido como o
maior de todos, apesar de tudo isso. Passei o dia seguinte inteiro pensando
naquilo e precisava de uma solução, pois faltava apenas três dias para o
segundo julgamento.
Eu não tinha parentes, aderentes, dinheiro ou condição de contratar um
advogado. Ninguém se compadecia do meu sofrimento e todos me viam como
uma criminosa. Uma liberta mal agradecida que não soube honrar a sua
condição e só mereceria mesmo a morte, pois na prisão ainda daria despesas
aos outros e eu não valia a farinha que comia ou o ar que respirava.
Como iria sair daquela situação? Passaram a me alimentar um pouco
melhor por causa do julgamento, para que eu parecesse um pouco mais com
gente e não denunciasse demais as condições que estava vivendo – eu disse
vivendo? – ou melhor, as condições nas quais eu era mantida respirando dentro
95
daquela cadeia fedorenta.
Com o pirão pude pensar melhor e reorganizar minha mente e me lembrei
de que por aqui muitas pessoas que cometem crimes são admiradas. Enquanto
outras são perdoadas porque se colocam abaixo de todos, o que faz os outros se
sentirem superiores e aceitá-las, mesmo que sejam pessoas inferiores e
malditas.
Ser admirada era algo que eu não poderia almejar. Eu era mulher, negra,
liberta e assassina. E o pior: era pobre e sem família ou compadres de prestígio
e não poderia tentar me colocar como superior de forma alguma. O que eu
poderia fazer era pousar de injustiçada e me comparar com Cristo ou
Madalena, me colocando como alguém que todos apedrejam ou perseguem,
mas que, no fundo, carrega um grande sofrimento e algo de bom.
Chegou o dia definitivo. Eu, como tinha planejado, não disse na defesa
que era inocente nem culpada. O discurso de injustiçada abarcaria a todos e
poderia comovê-los. Afinal eu era mulher e, portanto, naturalmente fraca e
dada aos pecados e a ser enganada e manipulada (era o que eles queriam que
fosse a verdade). Era a minha única esperança de iniciar uma nova vida naquele
tribunal.
Apareci magra, com grandes covas no rosto e visivelmente doente.
Minha imagem chocou as pessoas, que não puderam mais ver ali a mulher forte
que fugiu da escravidão, da prostituição e da difamação. Não era mais odiada,
pois era um trapo humano entre a forca e o bom coração daqueles jurados e eles
tinham todo o poder do mundo. Poderiam me dar a vida ou me oferecer em
sacrifício e dormiriam melhor se optassem pela primeira opção.
Na hora da minha defesa, como não tinha ninguém para me defender,
falei. Disse que estava sendo injustiçada, que era uma pobre mulher e que se
nem Cristo conseguiu agradar a todos, como eu poderia querer tal coisa? Falei
da infinita misericórdia de um Deus infinitamente misericordioso. Não
mencionei que esse Deus também poderia ser cruel e as pessoas se sentiram
diante de uma aparição.
96
Como uma mulher sem conhecimento, sem educação, sem inteligência
como todas as outras, poderia dizer coisas tão bonitas? Certamente eu estava
possuída por algum anjo que resolveu me salvar e aquelas pessoas estavam
diante de um milagre. E elas seriam superiores se soubessem reconhecer isso.
Fui absolvida. Não me vejo mais como uma grande vitoriosa, como eu
me via antes. Percebo que fui muito arrogante e usei minha força para coisas
que na verdade não me faziam feliz. Deveria ter sido mais humilde, mas não
nasci para engolir humilhação e só penso assim hoje porque sou respeitada.
Não por admiração, mas por medo e fico, bem no fundo, satisfeita por isso.
Sinto-me indigna por ter matado um homem. Mesmo sendo ele um
homem prepotente que gostava de humilhar todos os que não tivessem a cor
dele, ou o conhecimento que ele tinha, ou o dinheiro que sempre exibia. Mas
não acho que fui totalmente errada. Usei minha competência no que achei
melhor usar em cada momento e sei que se vivesse novamente faria tudo igual.
Não sou feliz. Mas uma mulher que nasce escrava, preta, forte e
inteligente, não tinha mesmo como ser feliz em um mundo que premia quem é
macho, branco, fraco e se faz de tolo ou de esperto. Que meus últimos dias
sejam leves.

“Interrogatório da Ré Antonia Maria do Nascimento.

(...) Respondeu chamar-se Antonia Maria do Nascimento,


natural da Villa Nova da Rainha, de idade de vinte e quatro anos,
pouco mais o menos, solteira; residente em Santo Ignácio deste
Termo.
(...) Respondeu que vivia de fazer comidas para vender e
engomar.
(...) Perguntado de sabia ler e escrever? Respondeu
negativamente.
Perguntado se sabia o motivo pelo qual era acusada e se precisava
de algum esclarecimento a esse respeito. Respondeu que não
sabia qual o motivo, mas tendo o Juiz de Direito esclarecido, ela
declarou que de nada sabia e nem tinha visto, pois vivia dentro de
seu rancho trabalhando para comer e viver.
(...) Perguntado se conhecia as testemunhas que juraram neste

97
processo e se tinha alguma cousa a opor contra elas?
Respondeu que conhece a todas, e que não sabe se elas lhe
desejavam fazer mal.
Perguntado se tinha algum motivo particular a atribuir a
acusação?
Respondeu que não, pois quando a Jesus Cristo se levantou falso,
30
quanto mais a ela”.

30
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 24/842/02, Apelação Crime, Ré:
Antonia Maria do Nascimento. Vítima: Joaquim Candido das Chagas. 1870.
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Amigo do algoz e cúmplice do assassinato deste.
Eu era amigo de meu senhor. Se é que isso é possível. Ele me tinha como
seu confidente, me falava dos seus planos, alegrias, derrotas e amarguras e eu,
como sempre, sabia ouvir. Sempre fui muito ouvinte e pouco falante. Nem sei
se vou conseguir narrar algumas de minhas memórias. Mas depois que me
tornei velho e avô, tenho ficado cada vez melhor em falar. Hoje até que as
pessoas me ouvem.
Convivi com todo tipo de gente. Gente que sente prazer com a desgraça
do outro. Gente que sacrifica a própria vida para ver o outro feliz. Mas a
maioria das pessoas está entre esses dois lados e tem seus momentos de
caridade e de vaidade. Meu senhor era desse tipo de gente. Muitos pensavam
que ele era de todo mau, mas não. O único grande defeito dele era a ganância.
Para ele, enriquecer estava acima de tudo e de todos e isso foi a sua
desgraça. Todo homem que fica cego, seja pela beleza, dinheiro ou amor, traça
a sua sina de fracasso e solidão. Seu Antônio gostava muito da mulher, dos
filhos e até de alguns escravos, mas ele não sabia como demonstrar isso. Ele
achava que se desse alguma coisa para agradar um filho ou a mulher, estava
sendo um fraco, que se ajudasse outro homem, seria inferior a ele e que se
tratasse bem a um escravo, seria um péssimo senhor. Mas, por incrível que
pareça, às vezes parecia que ele tinha coração.
Eu gostava dele. Mas como todo ser humano sensato deve ser, eu gostava
mais de mim e mesmo eu sendo seu cúmplice de todas as horas, meu sonho era
me livrar dele. É difícil ouvir as histórias e feitos de alguém que faz tudo errado,
saber que ele está agindo de forma a cavar sua própria sepultura e não poder lhe
dizer. É uma angústia grande demais para caber em qualquer mente e a minha já
estava por explodir.
Meu senhor alimentava mal os seus cativos, que eram muitos, e também
deixava a própria família passar necessidades. Para ficar mais rico. Ter mais
dinheiro, ouro, gado e terras, além de escravos. Ele fazia cada um de nós nos
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desgastarmos como se fôssemos jumentos, sem ter direito a um dia de trabalho
para melhorar nossa alimentação e sermos mais felizes. Impedia-nos de plantar
um metro de chão que fosse, de construir nossa própria casinha. A gente vivia
como se fosse um boi ou um velho machado.
Além disso, ele parecia sentir prazer em bater nos escravos que olhavam
feio para sua triste cara. Claro que todo mundo vivia insatisfeito e é possível
imaginar que quem tinha espaço fugia e que o sonho maior da gente nem
chegava a ser a liberdade do cativeiro, mas a liberdade daquele cativeiro, que
era o pior que a gente poderia imaginar ter.
Para mim, as coisas eram um pouco melhores. Meu senhor nunca me
bateu e dividia comigo algumas coisas boas que comia, quando enchia a
barriga e não tinha nenhum animal perto para dar. Por causa disso, muitos
companheiros de cativeiro não gostavam de mim e a minha senhora me odiava.
Ele me levava junto quando ia para Santo Inácio encontrar com as putas e ela
queria que eu contasse o que acontecia, o que eu não fazia e por isso ela sempre
me tratava mal e me desprezava.
Se por um lado eu não apanhava, por outro era obrigado a ficar todo o dia
acompanhando aquela cruz, pois ele tinha medo de ser assassinado pelos
vizinhos, porque ele roubava as terras quando fazia algum cercado, ou pelos
parentes da esposa dele, que o odiavam porque ele explorava o trabalho dos
filhos e tratava mal a mulher, que era filha de um fazendeiro português muito
rico.
Ele tinha medo também dos ladrões comuns, pois todos da serra sabiam
que ele andava sempre com a chave da caixa onde guardava o dinheiro, o ouro,
as jóias e tudo de valor que tivesse, pois só raramente comprava escravos, terra
e gado com o dinheiro que ganhava nos garimpos, na venda do gado e da
produção de farinha e fumo que tirava de seus brejos.
Por isso eu sempre dormia ao pé dele e tinha a ordem de matar qualquer
um que se aproximasse com movimentos estranhos. Nesse ponto ele errou na
escolha de seu protetor. Se, por um lado, era bastante fiel para lhe guardar
100
segredo, caso fosse preciso, não poderia matar sequer um porco, pois não me
sinto bem em conviver com a violência e essas cenas que a maioria dos homens
sente prazer em presenciar.
Mas ele nunca me perguntou o que eu pensava sobre nada, ou o que eu
achava da ideia de matar alguém, ou se eu queria ser o “amigo” dele. Ele nunca
se interessou pelo que eu nem ninguém sentíamos ou pensávamos e isso foi o
seu abismo. Se tivesse me ouvido ao menos uma vez, saberia que não gosto de
caçar, não gosto de conversar ou de ouvir histórias que nunca acabam, não
gosto de competir, nem de brigar e seria, portanto, uma péssima companhia
para alguém como ele.
Preferia apanhar de vez em quando, o que provavelmente não
aconteceria, porque não tenho o espírito desobediente nem desafiador, do que
ter que acompanhar alguém que no fundo tem medo até de si mesmo e vive
pousando do mais corajoso da região. Alguém que sente pavor de passar fome
numa seca e por isso passa fome a vida inteira, para ter a reserva quando a seca
chegar. Alguém que desperdiça o amor de uma mulher que tem tudo a oferecer
e de filhos fortes e corajosos, por medo de algum dia perder o amor de alguém
que o consideraria um fraco. Esse era o tipo mais deprimente de homem que eu
poderia imaginar. E esse era o meu senhor.
Sinto certo remorso de saber que eu era a pessoa em quem ele mais
confiava e que fui eu quem assistiu silenciosamente sua cabeça sendo partida
por um machado bem afiado. Um machado que ele mesmo ordenou que eu
amolasse daquela forma, para não perder muito tempo derrubando matas que
dariam espaço para construir currais para ele. Vi seu cérebro que tanto temia o
desamor, a fome e o abandono, ser posto para fora da cabeça por ordem de sua
mulher, seu cunhado e seu filho, com o assassino pago pelo precioso dinheiro
que ele cuidou em juntar de forma tão tenaz.
Mas esse remorso desaparece quando me lembro de que só quando o
sangue dele manchou o couro de carneiro, foi que eu passei a viver. Mesmo
tendo que fugir sem saber para onde, mesmo tendo ido parar naquela cadeia
101
imunda, que é pior que qualquer cativeiro. Só depois daquele dia soube o que
era dormir em paz, sem esperar abrir os olhos e encontrar o assassino de meu
senhor na minha frente, me eliminando antes de chegar até ele.
Eu sempre soube que aquele dia iria chegar e já me preparava há muito
tempo para isso. Alguém que tinha inimigos na política, na família, no
comércio local e dentro da própria casa, não poderia viver ou vegetar por muito
tempo e por incrível que pareça ver aqueles miolos de fora foi para mim a
liberdade duas vezes: do cativeiro e da cruz.
Foi na terrível seca de 1859. A fome era tanta que eu nem conseguia
pensar direito, a tontura era comum e as pernas ficavam cada vez mais fracas.
Meu senhor, inconveniente como sempre, resolveu que iríamos abrir uma
picada para criar gado numas terras que ele tinha no Carvalho. O desgraçado
fazia a gente trabalhar do amanhecer ao entardecer, em plena seca, capinando
mato seco e arrancando toco moqueado. Um serviço que ele mesmo sabia que
não iria dar em nada, só para a gente não ter o prazer de descansar um pouco,
mesmo estando com o estômago roendo de fome.
E o pior era que fazia o mesmo com os filhos. Os meninos, coitados,
magros que só uma vara de só comer pirão sem gordura, tinham que capinar e
arrancar toco. As meninas lavavam roupa limpa, em plena crise de água, para
não ficar pensando em macho, como dizia ele. Os menores tinham que separar
uma cuia de feijão e uma de milho que ele juntava “pra dar emprego a menino”
e ai deles se dessem o milho ou o feijão à mãe para cozinhar ou fazer cuscuz.
Ao fim do dia, se após separadas, as sementes não formassem uma cuia
cheia de feijão e uma de milho, ele batia em todos os meninos, os filhos e os
escravos, pois tinham dado a alguém o que era dele. Ele chegou a furar o olho
de um escravinho e a quebrar o braço de outro em um dia que as cuias ficaram
pela metade. Isso não poderia ser gente, mesmo que de vez em quando
chorasse.
Então, levantamos um dia assim que clareou para irmos ao tal Carvalho.
Não se sabe quem ia mais contrariado: eu, por saber o que ia acontecer e ter que
102
trabalhar o dia todo e comer uma mão cheia de farinha, tendo como descanso
apenas a noite, quando os outros deveriam caçar para comermos no dia
seguinte e só não ia ajudá-los, porque tinha que ficar ao pé do excomungado.
Ele, que nem sonhava que no dia seguinte ninguém iria tocar fogo em mato,
nem arrancar toco e muito menos caçar. Todos iriam se esbaldar no velório
dele, momento mais feliz para nós que qualquer casamento ou batismo que
pudéssemos ir.
Fomos descansar a noite alta. Eu numa rede acima de meu senhor, que
dormia no chão em cima de um couro de carneiro dentro da palhoça que
tínhamos feito. Os outros dormiriam do lado de fora, num frio de enginhar o
couro de qualquer cristão, perto de um fogo que teriam que passar a noite
inteira colocando pau, pois não tivemos mais forças para procurar uma madeira
mais grossa.
O sinhozinho e o vaqueiro dormiram em redes e meu companheiro de
cativeiro, que era muito meu amigo e protegido de minha senhora, Chico
Haussá, dormiu em cima de folhas no chão, perto dos cachorros de meu senhor.
O dia ainda não tinha clareado quando chegou o assassino de aluguel, que se
chamava Manoel. Ele fazia de um tudo, parece que tinha até parte com o demo,
pois amansava o burro mais brabo que pudesse ser encontrado nesse sertão e
matava qualquer um, sem se importar em lamber a faca ou o porrete depois.
Meu senhor seria morto por um machado que eu mesmo entregaria a
Manoel assim que ele chegasse. Quem o trouxe foi Chico, mandado pela minha
senhora. Manoel chegou silencioso e eu mostrei o machado a ele, perto de meu
senhor. Ele pegou o machado, levantou com força e precisão e acertou bem na
testa de seu Antônio, que caiu como um porco, sem dar um gemido sequer.
A essa altura meu sinhozinho já estava à porta junto com o vaqueiro e
gritava: “pode bater forte que cabeça de maroto é dura!”. O que fez o
contratado dar outra machadada certeira que só fez espalhar mais os miolos já
completamente misturados. Aquela cena de meu sinhozinho gritando foi uma
das mais aterrorizantes que já vi em minha vida. Foi pior que o machado
103
entrando na cabeça do pai, pois ele estava com os olhos brilhando de felicidade.
Tudo por causa de um tratamento indigno e impróprio. Tudo por causa da
brutalidade e ignorância de um pai que achava que educar é maltratar. Um
garoto foi colocado a perder por causa de tudo isso. Todos estavam satisfeitos
com o sucesso da empreitada.
E eu, finalmente, ficaria livre! Foi o que minha senhora prometeu para eu
aceitar a ação, que julguei indigna e covarde. Ela sabia que eu não concordaria
facilmente e ofereceu aquilo que é o maior sonho de qualquer cativo: a
liberdade. Pensei que poderia determinar meus próprios passos e não teria mais
que seguir o caminhar imundo de um homem que só enxergava ouro em sua
frente.
Poderia ter minha mulher, minha rocinha, alguns porcos e os filhos que
sempre tinha sonhado. Seria feliz. Ela disse que me entregaria comida,
dinheiro e a carta de alforria e eu iria para onde quisesse, sem tocar jamais nesse
assunto ou no nome do meu senhor. Achei que era uma boa proposta e
concordei em levar o machado, ficar calado e assistir ao desenrolar de tudo.
Mas no dia da morte a única coisa que a tratante mandou para mim foi um
punhado de farinha. Nada de carta de alforria, nada de carne seca, nenhum
dinheiro. Onde eu iria chegar com um lenço cheio de farinha e nada mais? Seria
um simples fugitivo e poderiam pensar até que tinha sido eu o assassino de meu
senhor. Mas o matador disse que eu pegasse e farinha e sumisse, senão eu teria
o mesmo fim de meu dono e que esse era um recado de minha senhora.
Saí desnorteado, como quem leva uma pancada na cabeça e perde a
direção. Faminto, cansado e com medo, fui até o Cotovelo pedir satisfação para
minha senhora. Ela teria que me dar o que prometeu, pois eu não teria
condições de chegar a lugar algum daquela forma.
O que encontrei na roça do Cotovelo foi a polícia atrás de mim. A
desgraçada tinha me denunciado e eu fui preso como o assassino de meu
senhor! Havia caído na armadilha. O sofrimento na cadeia foi pior que o do
cativeiro, pois sentia remorso e, por incrível que pareça, sentia falta da
104
companhia de meu senhor.
Só não apodreci o resto da vida na prisão porque o sogro de meu dono era
parecido com ele e via dinheiro em tudo. Sendo assim, avaliou que seria mais
lucrativo estar o verdadeiro assassino, que era livre, preso, que um escravo de
sua filha e resolveu então fazer a denúncia na delegacia de polícia. O matador
foi preso, morreu na cadeia e eu só fui solto após o julgamento, tendo que penar
duros meses naquele inferno.
Quando fui solto, minha senhora pediu que eu sumisse das vistas dela,
pois não tolerava minha triste imagem e só então eu soube o que era ser
verdadeiramente livre. Alguns filhos dela até tentaram me reescravizar, mas
me adaptei a vida dessas serras isoladas e aparentei tão velho e acabado, que
eles desistiram quando viram minha triste figura.
Hoje recordo dessas vivenças da juventude e percebo que de qualquer
forma, meu destino era de tristeza e amargura e fiz o que parecia ser melhor em
cada momento. Fui sensato e por isso me considero como alguém que cumpriu
a sua sina.

Interrogatório do réu Paulo Angola:

O réu foi interrogado e afirmou chamar-se Paulo Angola, ser


natural de Angola, ter 20 anos, trabalhar na roça e não saber ler. O
outro réu, Manoel Joaquim, afirmou ser filho de um paulista, de
nome Felipe, supor ter mais de 30 anos e viver de andar ganhando
dinheiro e amansando burros e ser analfabeto.
Ao ser questionado sobre ser o assassino de seu senhor, Paulo
respondeu “[...] eu queria bem a meu senhor, dá pouco comer e
muito trabalho, mas eu queria bem a ele que não me dava
31
pancada”. Argumenta, portanto, que gostava do senhor, apesar
deste lhe dar pouca comida e muito trabalho, pois não lhe batia.
Na continuidade do interrogatório, Paulo Angola foi
questionado acerca do lenço que se achava em seu poder. Ele
afirmou que era de seu senhor e que Manoel Joaquim lhe havia
31
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 26/920/19, Homicídio, Réu: Manoel
Joaquim, Vítima: Antônio José da Costa, Xique-Xique, 1859. Depoimento de Paulo Angola quando questionado se
sabia o porquê de ser acusando de matar o seu senhor.

105
entregado com 'hum bocado de farinha' dizendo-lhe que fosse
embora, que ele era 'forro' e afirmou ainda: “eu fugi com medo
32
para o mato e corri até a roça do Cutuvêlo onde fui preso”.

32
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 26/920/19, Homicídio, Réu: Manoel
Joaquim, Vítima: Antônio José da Costa, Xique-Xique, 1859. Trecho comentado com citações indiretas e diretas do
original e ortografia atualizada.

106
Um momento em que existi.
Ninguém imagina o que é viver na sombra e não ter sentido para
ninguém. Assim fui eu. Servi apenas para lavar sujeira alheia e dar matéria para
mais um processo contra o Coronel Manoel Martiniano, que nunca foi preso e
só saía fortalecido das disputas na justiça. Nunca tive família que me amasse,
amigos que me respeitassem ou um homem que me visse como sua e que fosse
meu.
Minha dona, aquela desgraçada, me mandou para o rio, sabendo que eu
iria morrer e significaria para ela apenas um gasto a mais; uma pequena queda
de braço com o coronel, que seria mais uma vitória ou mais uma derrota nas
eternas refregas daquela beira de rio. Tanto fazia, o que ela gostava mesmo era
do sabor da batalha.
Escolheu-me porque eu não tinha família e não tinha quem rogasse ou
sofresse por mim. Caso eu tivesse parentes, eles reclamariam daquela ideia e,
no mínimo, ela teria um certo trabalho para colocar de novo em ordem a
escravaria. Mas ninguém reclamaria, ou sequer abriria a boca por mim. Eu era
uma apenas uma lavadeira de qualidade mediana, uma mulher feia e triste.
Simplesmente uma escrava rabugenta que não sabia sorrir. E que por isso
ninguém gostava dela.
As pessoas só gostam de quem é feliz, bonito, rico ou bem sucedido.
Todos dão tudo a quem não precisa de nada e se sentem bem por ajudar a quem
não necessita. Quem mais recebe atenção é quem já se sente preenchido. Quem
mais recebe admiração é quem não precisa dos outros para se sentir útil e belo.
Assim são as pessoas. Assim é o mundo. E eu não tive sorte nenhuma nele.
Minha mãe foi vendida quando eu era ainda uma menina de colo e não fui
criada junto com nenhum irmão. Nunca soube o que era família. Sempre fui
considerada feia e antipática. Nunca senti alegria em nada. Não gosto da
companhia das pessoas e hoje, depois de morta, analisando minha vida, vejo

107
que teria sido melhor não ter nascido.
Cresci e não era atraente aos homens. Apaixonei-me pelo mais bonito e
mais alegre deles e concluí que era também o de maior desprezo, pois nunca
percebeu minha existência, tendo me dirigido a palavra uma única vez para
perguntar sobre uma cativa que todos achavam bonita e simpática. A partir
daquele dia me tornei mais amarga do que já era e passei a odiar todas e todos.
Nunca me destaquei em nada e fazia as coisas mal feitas por desprazer
em fazer bem feitas e para tentar chamar a atenção. Apanhava da senhora e das
escravas e sempre fui considerada de “má figura”. Minha dona falava em me
vender, mas sempre dizia que ninguém iria querer me comprar.
Nunca tive amigas de verdade, pois todas diziam que eu não sabia ouvir,
não gostava de falar e só desejava o mal aos outros. Nunca desejei sucesso nem
felicidade para ninguém, pois nunca soube o que significavam essas palavras.
Conhecia todas as pessoas importantes da Vila, pois vivia circulando
nela e fazendo as tarefas que ninguém queria fazer como carregar esterco, água
ou guiar jumentos. Mas nem mesmo os escravos me conheciam. Quando eu
tentava puxar conversa com alguém, por me sentir demasiadamente sozinha,
era sempre identificada como a escrava nojenta de Dona Ana Leonídia e todos
pensavam que ainda era pouco o que falavam de mim.
Nunca conheci homem nenhum e creio que todos me achavam
repugnante. Não tinha o corpo bonito como a maioria das escravas e nunca
frequentei batuques ou circulei nas festas da Vila. Não gosto de festas, de
missas, nem de conversar enquanto lavo roupas como as outras mulheres que
se sentem alegres falando besteiras sobre o seu dia ou dizendo como seus
maridos são na cama ou como seus filhos são espertos e inteligentes. Não
tolerava essas conversas e lavava roupas em uma pedra que ficava mais
distante das outras, onde vivia remoendo minha solidão e meus desgostos.
Sempre preferi os trabalhos de dentro de casa, pois lá ninguém fugia de
conversar comigo e por isso me sentia menos só. Às vezes conversava com um
cachorro ou um gato, pois esses não fugiam de mim nem me tachavam de feia
108
ou nojenta.
Gostava apenas de ouvir as histórias de Dona Josefa e de imaginar como
eu seria feliz se tivesse um homem, filhos, roupas bonitas ou a liberdade, como
muitas escravas já puderam ter. Mas essas eram coisas que eu podia apenas
imaginar de forma esfumaçada e distante. Tratava mal as crianças, pois sabia
que eu nunca seria mãe. Desprezava os homens e as mulheres, pois conhecia o
meu futuro e sabia que nele nunca caberia um companheiro ou uma amiga de
verdade.
Conhecia meu destino e sabia que eu seria eternamente infeliz. Quando
menina, era solitária; quando moça, rejeitada e, se tivesse envelhecido, teria
me tornado insuportável, pois nossos defeitos aumentam com o tempo.
Dona Ana Leonídia me escolheu para morrer, pois sabia que ninguém
choraria por mim. Que minha morte não seria trágica nem para mim mesma e
que mais valia uma vida mal vivida curta do que longa. Até para ser vendida eu
era imprestável. Não era caprichosa, nem bonita e muito menos saudável. O
prejuízo seria certamente pequeno. Principalmente para ela que dizia que gasto
com briga política não era gasto, mas investimento, pois com o poder vinha o
retorno.
Não me canso de dizer que minha vida foi investida em um processo
contra Manoel Martiniano. Em um processo que de nada adiantaria.
Fracassado como eu. Serviria apenas para ele se tornar ainda mais poderoso.
Mas ela também ficaria mais famosa por desafiar um Deus. E enquanto essa
gente grande brigava na justiça e depois de um tempo um passava para o lado
do outro e começavam a ir a festas nas fazendas dos ex-inimigos, a gente pobre
que os acompanhava ficava pousando de violenta e caía no soco ou no tiro com
os outros pobres que acreditavam serem seus inimigos. Nada ganhavam
quando venciam e podiam ter que abandonar a vida se perdessem, como alguns
que conheci que ficaram sem poder trabalhar e abandonados pelos coronéis
depois que levaram um tiro numa dessas brigas.
No cerco que o coronel Manoel havia feito a Xique-Xique, todos
109
passavam fome, sede e medo. Os soldados dele, que eram seus comparsas
políticos, agregados, compadres de fazendas distantes, ex-cativos e escravos,
apontavam armas para a cidade e qualquer um que aparecesse poderia ser
alvejado. O terror reinava e quando acabasse a briga ninguém iria se lembrar
dos tolos que apontaram as armas ou levaram tiros. Iriam apenas endeusar
ainda mais alguém que já era tratado como um Deus e tudo recomeçaria outra
vez.
As pessoas mais ricas pagavam a aliados do coronel para pegar água para
elas e usavam seu estoque de comida. As mais pobres penavam de fome e sede
e geralmente nada tinham a ver com aquela disputa pelo poder.
Naquela guerra, quanto mais mortos, mais glória e poder. E eu acabei
entrando nesse saldo de eliminados. Foi no dia em que o coronel Manoel
descobriu que alguns aliados estavam vendendo água para os inimigos e
ordenou que naquele dia ninguém fosse ao rio.
Minha senhora, pelo simples prazer de desafiar o coronel e pelo grande
desejo de ser vista e admirada, resolveu mandar um de seus escravos ao rio,
desobedecendo à ordem do maior de todos. Mas quem ela mandaria? Quem
seria tão insignificante a ponto de não fazer falta a ninguém, de não ser um
grande prejuízo e de aceitar tão torpe destino?
É claro que esse alguém seria eu. Mal nascida, mal vivida e mal amada.
Seria o único momento de minha vida em que eu estaria em evidência, o único
momento em que eu seria o centro das atenções. Minha única chance de
demonstrar um sentimento nobre como coragem. E eu iria.
Todos me olharam com um sentimento de terror, mas não sabiam que
naquele dia eu sentia algo que nunca havia sentido. Um grande prazer em
existir. Mesmo que essa existência fosse em um momento extremo.
Quando cheguei ao rio e levei aquele tiro, senti que minha história havia
se completado e que além de deixar de sofrer por existir eu estava, mesmo que
durante apenas alguns minutos, existindo para os outros. E coisa maior não
pode haver nesse mundo.
110
Homicídio. Vítima: Maria de Tal.

Maria, escrava da órfã Laurentina, foi mandada pela avó desta,


Dona Anna Leonídia Azevedo, ao Porto dia 19 de janeiro de 1886
para lavar roupas, das onze horas para o meio dia, apesar de seu
inimigo político, o Coronel Manoel Martiniano da França
33
Antunes ter “[...] ordenado que ninguém fosse ao rio.”
Ao chegar lá, Maria foi alvejada com um tiro cuja “[...] bala
34
entrou na pá direita e saiu no rosto ao lado da face” , não
morrendo de imediato. Faleceu somente semanas depois, sendo
que, alguns dias depois de aberto o processo contra os assassinos,
D. Anna Leonídia retirou a queixa por nada ter “[...] de sofrer a
35
sociedade com a desistência da suplicante” . Mas a Justiça
continuou o processo e Bento José de Britto foi preso e enviado
para o forte de São Marcelo em Salvador. Manoel Martiniano,
como sempre, saiu ileso e Maria morreu em consequência de
36
brigas políticas, no momento em que realizava seu trabalho.

33
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/68/14, Homicídio (denúncia), Réu:
Manoel Martiniano de França Antunes (e outros), Vítima: Maria de tal, Xique-Xique, 1886.
34
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/68/14, Homicídio (denúncia), Réu:
Manoel Martiniano de França Antunes (e outros), Vítima: Maria de tal, Xique-Xique, 1886.
35
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/68/14, Homicídio (denúncia), Réu:
Manoel Martiniano de França Antunes (e outros), Vítima: Maria de tal, Xique-Xique, 1886.
36
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/68/14, Homicídio (denúncia), Réu:
Manoel Martiniano de França Antunes (e outros), Vítima: Maria de tal, Xique-Xique, 1886.

111
Eterna solidão do cativeiro
Ninguém é capaz de sentir sem ter passado a indizível dor de ser
arrancada de sua terra ou de sua gente. Levam um pedaço de nós e isso nunca
cicatriza por completo. Passei por isso três vezes em minha longa vida. Fui
arrancada de minha terra, na África, capturada de meu povo e trazida para essa
terra diferente, triste e distante. Aqui ainda tive mais duas grandes mudanças e
esse eterno modificar forçado ainda aparece como um longo pesadelo nas
minhas noites.
Quase não me conformo com a primeira perda. Minha gente, meu lugar e
eu. Ser mantida no cativeiro numa terra distante é a situação em que você mais
pode usar o se em sua vida. E se eu não estivesse naquela hora e naquele lugar
na hora da luta? E se eu tivesse conseguido fugir e não ser capturada? E se
tivessem me levado para um lugar onde tivesse mais africanos como eu? E se,
se, se...
Mas todas essas perguntas só fazem a gente perder tempo e nos impedem
de viver as coisas que poderíamos desfrutar, apesar de tudo. Depois da chegada
à Bahia, fui levada para Xique-Xique. Dali, parti para as Serras do Assuruá e lá
formei uma nova família onde tinha muitos companheiros e vivia alegre,
apesar do cativeiro.
Mas meu senhor se cansou de lá, queria novos lugares e nova vida. Dizia
que lá não tinha espaço para ele e sua família crescerem e que precisavam de
novas terras para plantar e criar gado e senti aquela dor que se sente das coisas
que não se pode controlar. Meu senhor comprou novas terras e mais uma vez eu
seguia. Satisfazendo as vontades alheias num eterno não querer.
Viemos para uma terra diferente, com uma serra diferente, onde tudo
pertencia a meu senhor e seus parentes. A essa altura eu já tinha um filho, que se
chamava Antônio e tive que me separar do pai dele, o que foi uma grande dor
para nós três. O vi apenas mais uma vez quando ele passou por Canabrava junto

112
com seu senhor que comprava gado e senti muito mais tristeza do que alegria.
Tristeza pelo que poderia ter sido e nunca será.
Nós poderíamos ter vivido muito bem por muitos anos, pois ele era
tranquilo e muito paciente, gostava de conversar comigo e me respeitava. É
triste ver sua vida interrompida pela vida alheia.
Muitas pessoas livres dizem que não têm o controle sobre o seu destino.
Elas que passassem ao menos um dia de sua vida sendo cativas, então saberiam
o que é não poder dar um único passo sem a ordem de outra pessoa, o que é não
poder decidir com quem e onde viver, não ter a possibilidade de viajar por
vontade própria, se aventurar e, o que é pior, ter que andar nos rastros dos
sonhos e aventuras alheias. Isso é que é não ter liberdade. E isso foi a minha
longa vida.
Quando vi o pai de Antônio novamente, após longos anos, senti uma
imensa vontade de chorar. E chorei. Mas ele não gostou. Disse que fiquei triste
com a visita dele. Que ele tinha feito todas as artimanhas para passar por aquela
fazenda com seu senhor e era recebido daquela maneira? Foi uma decepção
para ele, que imaginou logo que eu tinha outro homem na nova terra, mas isso
não era verdade, a realidade era que eu tinha ficado todos aqueles anos sozinha.
Mas não esperava por ele. Não esperava nada mais da vida, mesmo sendo uma
mulher muito jovem, pois quando se é roubada de si mesmo duas vezes, o que
se espera é apenas a terceira vez. Mas eu não sabia como dizer aquilo tudo a ele.
Não tinha palavras. Na verdade, de minha boca não saiu uma só palavra.
Eu chorava de desgosto. Desgosto de ser cativa, de não poder ficar com
quem eu desejava ter ao meu lado na maior profundidade de meu ser. E ele me
amava. Isso é o que mais me dói. Vejo tanta gente livre que passa a vida inteira
sem encontrar nenhum amor. Eu tive dois grandes amores e fui privada de ficar
com ambos. Pela ganância de homens que acham que viver se resume a ter
mais. Mais terra, mas gado e mais escravos. E esse mais sempre significa para
nós cativos mais cansaço, mais sofrimento e desilusão e uma angústia que não
tem metro para ser medida.
113
Para os livres viver é traduzido em ter. O pai de Antônio foi embora e
disse que nunca mais voltaria. E nunca mais voltou. Entendeu que meu choro
representava desespero por vê-lo. Mas ali eu desengasgava nada mais do que a
dor de não poder ter a felicidade de conviver.
Deveria ter chorado antes da chegada dele, tive tantos anos para chorar e
nem isso soube aproveitar. Nem chorar na hora certa eu soube. Ao menos teria
conseguido explicar a ele que o maior desejo da minha vida seria poder ficar
com ele, mas que éramos impedidos pela nossa condição e pela distância.
Talvez ele encontrasse uma saída, já que tinha encontrado uma solução para me
ver, mas eu não fui capaz de conversar com o primeiro grande amor da minha
vida. Ele devia ter muitas coisas para me dizer, mas eu não deixei, soube apenas
berrar e esse foi um dos grandes desgostos da minha longa vida.
A surpresa de vê-lo só me permitia sofrer pelo que não foi. Pelo que
poderia ter sido. E ele foi embora pensando apenas coisas que não eram. Não
pudemos continuar sendo três. Ele se foi e espero que não tenha continuado
sendo um.
Desde então, tentei pensar em outras coisas. Tentei enxergar outros
homens. Achei que seria melhor para mim me apaixonar por alguém livre.
Mesmo que eu fosse apenas a puta dele. Mesmo que fosse apenas para não
viver tão só. E passei a ceder às investidas de um sobrinho de meu senhor. Ele
era meio grosseiro, mas a sua presença de espírito me fazia sentir viva e nos
encontrávamos em muitas noites sem lua. Essa foi uma experiência bem
diferente da que havia tido antes, mas o que poderia ter feito? Na verdade achei
que iria me apaixonar por aquele homem livre, o que não aconteceu.
Logo engravidei e tive minha filha. Manoela. Alegre como o pai.
Marcada pelo destino como a mãe. Desde então nuca mais nos encontramos.
Acho que ele não conseguia conviver bem com a idéia de ter uma filha cativa.
Também não tinha energia nem coragem para tentar me libertar do cativeiro.
Preferiu se afastar de mim. Fiquei só mais uma vez e meu plano de encontrar
um homem com quem poderia ficar por um tempo mais longo trouxe apenas
114
mais uma cativa para o mundo.
Criei mais uma filha sozinha e passado muito tempo enxerguei mesmo
foi um outro cativo. Parece que essa era a minha sina.
Ele era lindo e acima de tudo, feliz. Parece que buscamos nos outros
aquilo que nunca poderemos ser e eu me encantava com a alegria de Domingos.
Éramos poucos cativos na Fazenda Canabrava e ele vivia ali como se fosse um
passarinho. Parecia não se sentir preso ao cativeiro e gostava demais daquela
fazenda.
Conversávamos muito e ao mesmo tempo em que eu amargurava o
cativeiro ele dizia que não se sentia mau, que não apanhava, que era bem
tratado por todos e gostava de viver ali. Ele sabia aproveitar cada minuto e
alegria maior não pode existir.
Começamos a nos dar cada vez melhor e quando percebemos já
estávamos morando juntos. Só nós dois e minha filha menor num ranchinho
perto da serra e do riacho. Meu filho ficou na casa de minha senhora e eu
continuava trabalhando muito, mas tinha enfim, um companheiro.
Finalmente, pude experimentar mais uma vez, o que é ser gente. E pude
me alegrar das pequenas coisas, como uma caça que ele trazia para eu preparar
para nós dois, uma música que cantávamos para distrair ou com uma conversa
em dia de lua.
Ele era bem mais jovem do que eu, mas isso não o incomodou e vivemos
momentos que iam do mais extremo fogo, até a mais alegre brincadeira. Mas
tudo durou muito pouco.
Um dia ele chegou com um fogo nos olhos como nunca eu havia visto.
Estava fora de si e disse que estava sentindo a pior sensação da sua vida e que
agora entendia por que o cativeiro é uma triste sina. Eu fiquei desesperada com
as palavras dele e entendi que vinha uma coisa muito ruim pela frente.
Percebi que mais uma vez minha vida seria decidida pelos outros e pelo
olhar e palavras dele entendi logo que seria vendido e que esta venda não seria
para alguém dali da fazenda e meu peito se esfacelou. Prometi que nunca mais
115
amaria alguém, que nunca mais teria um homem em minha vida, pois só assim
poderia me livrar daquela dor de ser deixada para trás. Percebi que jamais
amaria alguém com quem permitissem que eu ficasse e que uma das formas de
me livrar da dor seria abandonar os prazeres.
Mais uma partida marcava a minha história e desta vez não era eu a
levada. Às vezes acho que a dor é maior para quem fica, pois quem vai muda os
ares, a dormida e as paisagens. Mas quem fica vive a cada dia com o fantasma
do outro. Dorme e acorda com a ausência do outro ao seu lado. Vê as coisas que
viam juntos e sente a falta com uma intensidade impossível para quem está
convivendo a cada minuto com coisas novas e diferentes.
Nos primeiros dias eu sofri muito. Mas era um sofrimento mais de
desespero que de tristeza e com o tempo parece que o buraco foi ficando cada
vez mais fundo. Ele não iria viver muito longe daqui, mas veio apenas duas
vezes me ver e ficou triste porque eu disse que era melhor a gente se afastar de
vez e levar cada um a sua vida. Ele era ainda muito jovem e não merecia ficar
preso a uma velha de triste sina como eu.
Não disse a ele que não queria mais homem em minha vida, pois se ele
soubesse disso não iria viver em paz com outra mulher. Era melhor que
pensasse que eu estava querendo outro homem.
Funcionou o plano, pois ele nunca mais voltou e eu nem pergunto por ele
aos que aparecem aqui da fazenda onde ele mora. Prefiro assim. Ao menos não
tive mais que sair daqui nem me separar de ninguém e isso já é uma vitória,
mesmo que já tenham, com tantas separações, levado a maior parte de mim.
Mudança de moradia de um proprietário e seus bens:

Venceslau Pereira Machado, filho de um português e uma liberta


partiu da Serra do Assuruá, com sua esposa Francisca, seus filhos,
cativos, netos, genros e agregados para comprar e se estabelecer
nas Fazendas Canabrava e Olho d'Água do Gonçalo na década de
37
40 do século XIX . Os sítios ficavam na área da caatinga, mas
37
Osvaldo Alencar Rocha; Edimário Oliveira Machado. Canabrava do Gonçalo: uma Vila do baixo-médio São
Francisco. 2 ed. Brasília: Edição do Autor, 2000.

116
contavam com fontes de água doce descidas da serra,
estabelecidos no local onde hoje se situa a sede do município de
Uibaí.
De acordo com o seu inventário, deixou as seguintes
propriedades:

BENS
(18.02.1850)
Maria, africana, 25, 400$000
Antonio, crioulo, 12, 300$000
Manoela, cabra, 1, 150$000
cavalo ruço castanho, 16$000
38
Sitio Canabrava “com todas benfeitorias” 500$000.

38
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. N° 07/3127/23, Inventário de Venceslau Pereira
Machado, Xique-Xique, 1850.

117
Ser cativa e ser senhora: condições sempre incertas.
É humilhante ser cativa de alguém que é quase tão pobre quanto você. É
assim que vivo. Dividindo a pobreza com outra mulher e os filhos dela. A única
saída que ela tem para essa miséria em que vive é vender a mim e a meu filho,
mas que não quer fazer isso.
Ela não quer nos vender porque sou sua melhor amiga e única
companhia. Acabou de perder o marido que foi violentamente assassinado e
não quer perder mais ninguém. Além disso, eu a ajudo muito no sítio e no
cuidado com seus quatro filhos e ela teria dificuldades em plantar e vender os
produtos sem mim e ainda cuidar de crianças tão pequenas, além de conviver
com a solidão e o desprezo de que é vítima.
A vida de minha senhora tem sido pior do que a minha. Ela ficou muito
doente em seu último parto e está sendo consumida dia após dia com uma
infecção que a torna frágil e fedorenta. Casou-se com um homem violento,
cachaceiro e encrenqueiro e mora em um sítio que é seu, mas está rodeado de
vizinhos que lhe detestam por causa da arrogância de seu falecido marido.
Devido a uma das encrencas dele com os vizinhos foi assassinado e a
vida dela mudou para pior. Ele deixou para ela apenas um sítio, eu e meu filho,
além da imagem de mulher que, pelo fato de viver com um monstro, não devia
ser tão diferente dele. Mas essas pessoas não a conhecem e não sabem que ela é
uma ótima pessoa e que era apenas mais uma vítima das ferocidades do marido.
Mesmo ele não era tão mau assim. Era um ótimo pai e seu único grande
defeito era se irritar com facilidade e gostar de cuspir valentias por todos os
lugares onde andava. Ele só batia nela quando havia gente diferente por perto e
a grande valentia dele era apenas com pessoas estranhas. Ele se sentia uma
estrela e precisava ser visto por todos. Isso foi o que trouxe a ruína sua e de sua
família e o caminho para a sua morte.
A confusão começou assim: meu senhor vivia se gabando de ter ganhado
o sítio de um coronel pelos serviços prestados em uma refrega política, onde
118
ajudou a fazer trincheiras na igreja e baleou dois homens, dos quais um morreu.
Além de outras valentias que narrava de episódios acontecidos com pessoas e
com animais.
Um dia ele estava cortando um pé de São João e um de seus vizinhos
disse que não tinha necessidade, que a planta não atrapalhava a estrada e que
servia para os animais comerem na seca. Ele disse que não estava pedindo
opinião e que o vizinho cuidasse da sua vida, que aquilo não era coisa de
homem ficar se intrometendo na vida dos outros.
O homem saiu morrendo de raiva de sua brutalidade e voltou com um
agregado seu e um escravo, todos armados. Os três fizeram uma verdadeira
festa sobre o corpo dele, que ficou todo retalhado e espatifado. Eu fui a primeira
da casa a ser avisada. Ia passando na frente da fazenda que fica ao lado da roça
dele e Maria, a dona da casa, me chamou e disse: “minha nêga, não sou de te
enganar, meu cunhado matou o teu senhor no Descanso Velho”.
Fui correndo para lá e quando cheguei não acreditei no que vi: retalharam
o corpo dele inteiro com foices e ele estava completamente desfigurado. A
primeira pessoa em que eu pensei quando vi aquilo foi na minha senhora.
Ficaria desesperada ao ver que perdeu o marido, pois apesar dele ser grosseiro,
ela o amava.
Além disso, teria que criar sozinha aquelas quatro crianças, pois não teria
coragem de voltar para a fazenda dos pais de onde fugiu para se casar com ele.
Se chegasse com aquelas quatro crianças, iria ouvir coisas horrorosas do pai
que dizia que não iria aceitar que ela se casasse com um assassino
desconhecido.
A família dele ninguém conhecia. Ele era um desses aventureiros que
vivem procurando algum lugar para viver e fazem de tudo um pouco. O
dinheiro para me comprar ele conseguiu em um garimpo e eu tive meu filho
depois que já era escrava deles, o que aumentou o seu patrimônio.
Ela teve que providenciar o enterro tendo apenas a minha ajuda e durante
o processo aberto para investigar o crime, eu fui a única pessoa que teve
119
coragem para falar quem eram os assassinos. Às vezes minha senhora acha que
eu corro risco de vida por ter feito a denúncia, mas acho que eles não chegariam
a tanto.
Os vizinhos todos diziam ao juiz que não sabiam quem tinha feito a
morte, pois meu senhor tinha muitos inimigos e existiam várias pessoas
prováveis. Alguns deles disseram que não era certo prender os indicados como
assassinos, pois a única pessoa que havia contado que foram eles tinha sido
uma escrava e palavra de cativo não tinha nenhum valor.
Fiquei triste quando soube que estavam dizendo isso. Principalmente
porque todos sabiam quem tinha feito o crime e achava um absurdo dizerem
que palavra de escravo não tinha nenhum valor. Mas os assassinos foram
presos e as pessoas fizeram um abaixo assassinado para libertá-los. Eles eram
amigos de todos e os vizinhos alegavam que porque eles eram pais de família,
trabalhadores e nunca tinham antes entrado em confusão nenhuma, não
deveriam ficar presos por terem se envolvido com um homem que todos
sabiam que era encrenqueiro.
Foram presos o senhor e seu agregado, mas ele tratou de tirar logo o seu
escravo da confusão, para não correr o risco de ter prejuízo. Não teve como
fingir que não estava envolvido na morte, pois no dia seguinte estava com um
corte enorme no braço da luta que teve com o meu senhor.
Não sei que fim terá isso tudo. Não acredito mesmo na justiça e como
minha senhora não tem dinheiro e um dos assassinos tem, acho que o mais
provável será mesmo eles serem soltos.
Minha senhora tenta resistir e não me vender, mas já sei que a qualquer
momento isso pode acontecer e já estou me preparando. Tenho visto meu
homem todos os dias e já combinamos que se eu for vendida para longe, eu fujo
para ficar perto dele.
Só vou pedir a minha senhora que quando for me vender, só aceite um
comprador que queira junto o meu filho, pois não quero me separar dele, mas
tenho certeza de que ela não faria isso, pois é mãe de quatro filhos e sabe o
120
tamanho da dor de ser separada de um deles.
Espero que nós duas tenhamos uma sorte razoável e encontremos um
lugar onde sejamos bem tratadas e respeitadas. Mas acho que ela terá mais
chance de ter esse destino do que eu. Ter um cativeiro suportável não é coisa
que aconteça a uma mesma pessoa duas vezes em sua vida e enquanto a má
hora não chega vou aproveitando os meus dias, que mesmo que não sejam de
glórias, me permitem ao menos parar para pensar, respirar e ser feliz por alguns
momentos que sejam.

Homicídio. Vítima: Camilo Pereira Machado.

No dia 24 de maio de 1851 foi assassinado com quatro facadas


pela frente e dez pelas costas, além de nove golpes de foice,
Camilo Pereira Machado, no lugar denominado Descanso Velho,
39
município de Xique-Xique.
Foram acusados Manoel Joaquim de Abrêo, Manoel Lemos
Cardoso, Antonio Lemos Cardoso e Frutuoso, escravizado
pertencente a Manoel Joaquim.
A escrava do assassinado, que se chamava Maria Theodora,
afirmou que encontrou Maria da Cruz, cunhada do réu, chorando
com outras e lhe perguntou o que havia ocorrido, ao que esta lhe

39
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/65/01, Homicídio, Réu: Manoel
Joaquim de Abreu (e outros), Vítima: Camilo Pereira Machado, Xique-Xique, 1862.

121
respondeu: “minha nega não sou de te enganar meu cunhado
40
matou teu senhor”.

Bens de Camilo Pereira Machado:

Theodorica, cabra de 20 anos, avaliada em 800 mil réis.


“Escravinho Balbino”, de dois anos de idade, avaliado em 200
mil réis.
Uma parte de terras do Sítio do Discanso, avaliada em 10 mil
41
réis.

40
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento nº 02/65/01, Homicídio, Réu: Manoel
Joaquim de Abreu (e outros), Vítima: Camilo Pereira Machado, Xique-Xique, 1862.
41
APEB - Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Documento n° 07/2924/05, Inventário de Camilo
Pereira Machado, Xique-Xique, 1861.

122
Ouro, justiça e liberdade.
Sonhar vale a pena! Mesmo para quem nasce escravo. É essa a conclusão
a qual cheguei após pensar e repensar sobre a vida que levei. As lutas que lutei e
as vitórias que tive. Nasci cativo em Xique-Xique e me deram o nome de
Romualdo. Minha mãe era escrava de um homem chamado Raimundo e eu,
naturalmente, também.
Quando a gente é criança não tem consciência do que significa pertencer
a outra pessoa. Não percebe o quanto isso é grave. Dizem que para quem nasce
no cativeiro é mais fácil, e, sinceramente, não queria estar na pele dessas
pessoas que nasceram livres na África e foram trazidas arrastadas para cá. Ter o
cativeiro de berço é sina. Receber ele depois de grande pode ser visto como
uma completa tragédia.
Cresci entre as serras e o rio e gostava de armar arapuca para pegar
passarinho e de pescar. Ia para a roça com minha mãe, meus tios, irmãos, os
outros escravos, meu senhor e os filhos dele. Aprendi as coisas da roça muito
cedo e fazia tudo o que minha mãe e os outros escravos faziam. Capinava,
plantava, ajudava a quebrar o milho e a arrancar a mandioca. Brincava e
trabalhava no curral e no chiqueiro. Me divertia nas arrancas de feijão e tomava
banho nu no rio com os outros meninos. Tudo era uma grande festa. Tudo era
motivo para riso e alegria.
Era mais feliz no tempo do verde vendo as plantas crescerem e darem
seus frutos, mas vivia também satisfeito na seca, quando era tempo de fazer
farinha, sal e cachaça. Na casa de farinha era uma farra só. A gente descascava a
mandioca, ia pegar água no riacho, ajudava a ensacar a farinha e os dias iam
passando sem que minha condição de cativo aparecesse como coisa muito forte
em meu dia-a-dia.
Mas cresci. O trabalho aumentou. A responsabilidade também e a
consciência pesava cada dia mais. Via que não era justo eu trabalhar e dar tudo

123
o que produzia a alguém, só porque ele dizia que era meu dono. Só porque há
uns quarenta anos atrás o pai dele tinha comprado a minha avó, a qual ele
recebeu de herança do pai. Coitada. Trabalhou tanto, teve tantos filhos e deu
tanto lucro aquele desgraçado, mas morreu na míngua e doente sem ter quem
lhe desse um remédio sequer para aliviar a dor. Meu senhor não queria gastar
com remédio para cativo, principalmente quando ele era velho, como minha
avó.
Tinha sido trazida da África e sempre contava para nós as histórias de
uma terra que tinha bichos enormes, bem maiores que os caititus daqui e onde
eles andavam livres e as pessoas caçando, plantando, enfim, vivendo.
Minha mãe nasceu no cativeiro e eu também. Mas se a vida tivesse
seguido entre a roça e a casa de farinha, a roça e a salina, a salina e o alambique,
tudo teria sido bem mais tranquilo.
Minha desgraça é que apareceu ouro, muito ouro nestas paragens das
serras do Assuruá e meu senhor se assanhou. Mandou a gente para lá. A vida no
garimpo era diferente da vida perto das roças ou do rio. Lá quase não se tinha o
que comer, não tinha peixe fácil para pescar, nem fruta fácil para roubar. Além
disso, o trabalho era vigiado, pois meu senhor não saía de meu pé com medo
que eu roubasse o ouro que encontrasse e fugisse.
Mas eu não tinha intenção de fugir. Não queria deixar minha mulher,
minha mãe, meus irmãos, meus compadres e amigos. O que eu desejava
mesmo era ficar livre daquela cruz que eu carregava e ter minha rocinha e meus
bichos para viver tranquilo o resto dos meus dias.
Encontramos ouro. Muito ouro. Até que meu senhor se sentiu satisfeito.
Não que ele não fosse ganancioso. É que o garimpo fraqueou e quase não se
achava mais nada ali. Ele achou melhor ir embora e aproveitar os lucros da
investida. E aproveitou. Eu fiquei só olhando ele planejar os gastos. Minha
parte era o cansaço, o desgaste, a magreza e a velhice aos trinta anos.
Comprou gado, terras, escravos, jóias e armas. Voltei para a roça e
retornei a minha vida de antes. Só que mais cansado, triste e revoltado.
124
Um dia apareceu a notícia de um novo garimpo e uns camaradas meus,
que eram livres, me chamaram para ir. Pensei: se fosse para trabalhar para mim
bem que eu iria, mas para trabalhar para esse desgraçado, prefiro ficar por aqui
mesmo.
A essa altura da vida meu senhor não iria mais querer se embrenhar por
garimpos, pois já estava velho, desgastado e bem mais rico que da outra vez.
Tive a ideia então de lhe fazer uma proposta: eu iria para o garimpo, comeria,
vestiria e viveria às minhas próprias custas e lhe compraria minha alforria com
o ouro que conseguisse. Ele pensou e viu que isso poderia ser bem mais
lucrativo do que eu ficar ali plantando mandioca. Percebeu também que fugir
não era a minha intenção, que me interessava mais ficar livre e viver com
minha mulher liberta do que andar errante pelos matos e que ele poderia levar
uma boa quantia nessa aventura. Trato feito.
Fui. Juntei minhas economias das coisinhas que eu plantava, comprei
farinha, rapadura, uma rede, espuleta, uma arma de caça e me encaminhei para
o mato. Afinal, Deus é grande, mas o mato é ainda maior.
O nome do garimpo era Caldeirão. Ali era mesmo um caldeirão: quente,
apertado e feio. Sofri, passei fome, cavei, senti muita dor nas costas e nos
dentes. Passou-se então mais de um ano. Mas consegui ouro. Muito ouro. Junto
com meus companheiros tiramos mais de uma arrouba do metal. Era ouro de
não acabar mais.
Finalmente seria livre e poderia conduzir meu próprio destino. Voltei
satisfeito, pois consegui uma quantia de pepitas que dariam de sobra para
comprar minha liberdade. Fui conversar com meu ex-senhor, pois era assim
que eu já o considerava. Já havia sentido o gostinho da liberdade trabalhando
no garimpo sem vigia e organizando minhas coisas da forma que eu queira.
Mostrei satisfeito a ele todo o ouro que eu havia retirado e disse que agora
queria receber a carta de alforria, que era a prova que eu era um liberto e poderia
andar para onde minha cabeça me levasse.
Ele pegou o ouro. Seus olhos brilharam e ele se sentiu jovem outra vez.
125
Foi ao seu quarto, escondeu o ouro e pegou uma de suas armas, já aparecendo
com sangue nos olhos e um ódio que eu reconhecia bem em seu olhar. Gritou-
me que eu era seu escravo, portanto aquele ouro era dele e não meu e que não
me daria nenhuma carta de alforria.
Minhas pernas amoleceram e o chão sumiu embaixo de meus pés. Como
um homem que sempre se gabou de ter palavra e de ser macho, tinha coragem
de fazer uma coisa daquela. Uma covardia sem tamanho para ser medida?
Eu tinha feito um acordo com ele e a obrigação que ele tinha era de
cumprir e não de fazer uma meninice daquelas comigo. Era uma covardia. Saí
com o sangue fervendo, mas consegui manter a calma. Sabia que meu senhor
era perfeitamente capaz de me matar bem ali e que não estava mesmo disposto
a perder a riqueza que eu apresentava diante dele. Eu era uma mina que pouco
servia para mim mesmo e só tinha nascido para dar boa vida aos outros.
Cheguei na casa de minha mulher revoltado e lhe contei o que havia
acontecido. Ela disse que iríamos fazer alguma coisa, que eu não me
desesperasse e que tinha de existir alguma saída. Parece que aquela mulher
apareceu em minha vida para me trazer calma, pois nos meus momentos de
desespero ela sempre disse que as coisas melhorariam e sempre teve toda
razão.
Passei três noites sem dormir, só pensando no que poderia fazer naquela
situação. Pensei em matar o sujeito, mas me tornaria um assassino e fugitivo e
isso estava muito longe da liberdade que era o meu maior sonho. Quando,
vencido pelo cansaço, finalmente dormi, só tinha pesadelos com meu senhor.
Ele roubava meu ouro, minha voz da garanta, minhas pernas, meus olhos... Não
sei como não enlouqueci naqueles dias. Tive então uma ideia que parecia de
pouca valia, mas poderia ser minha única saída: iria entrar na justiça.
Sei que na maioria das vezes a justiça só funciona para proteger os ricos.
Mas também sei que, de vez em quando, para não ficar de todo desacreditada,
ela dá razão a um pobre. Quem sabe eu não teria esse presente? Quem sabe
minha liberdade estaria não muito distante?
126
Se meu senhor não tinha palavra e não me respeitava, ele não podia fazer
a mesma coisa com a justiça. Se o juiz dissesse que eu estava livre, ele não
poderia fazer nada e eu renasceria. Era uma grande ideia.
Acordei minha mulher para lhe contar o que estava pensando. Ela ouviu
paciente, como sempre e disse que quem sabe tivéssemos sorte. Que ela ouviu
falar de um escravo que conseguiu a liberdade na justiça e que eu procurasse o
senhor Urgino, que entende das leis para ver o que ele pensava daquilo tudo.
Finalmente dormi profundamente e no dia seguinte, quando saí da roça
dizendo que ia almoçar, fui procurar o senhor Urgino, que trabalhava no
cartório e entendia bem das leis.
Contei para ele minha história e ele disse que pela lei eu poderia sim pedir
para ficar livre, não por causa do ouro que entreguei a meu senhor, mas porque
poderia dizer que ele me abandonou quando fui para o garimpo e pela lei,
escravo abandonado tinha direito a ficar livre.
Deus sabe como fiquei feliz naquele momento e o quanto tive
esperanças. Era a minha saída e ele disse que poderia entrar comigo na justiça e
me defender. Começou a estudar meu caso e entrou logo com um pedido para
que eu fosse depositado em outra casa e saísse do poder de meu senhor.
O pedido dele foi aceito e uma grande vitória para mim foi ver a cara de
meu senhor ao me ver sendo levando para a casa de outra pessoa. Ele estava
com um verdadeiro terror nos olhos. Era uma criança de quem tiraram o doce e
eu era o doce mais satisfeito que alguém poderia ver.
O senhor Urgino disse que iria ver se meu senhor tinha me matriculado,
pois a lei dizia que todos os escravos precisavam ter sido matriculados e aquele
que não tivesse sido, poderia ficar livre! Ele voltou pulando de satisfação me
dizendo que meu senhor não tinha me registrado e que meu nome não estava na
lista.
Disse que aquele juiz era simpatizante das causas em que escravos
buscavam a liberdade e que a sorte estava ao meu lado. O juiz chamou as
testemunhas indicadas por mim a seu Urgino e todas disseram que era verdade
127
que eu vivia às minhas custas e que tinha tirado o ouro e entregue a meu senhor.
Ele não apareceu em nenhum momento, acho que foi por medo de perder
o escravo e o ouro e eu fui declarado como livre pela justiça! Nunca pensei que
a justiça dos brancos pudesse me libertar, mas em poucos anos todos os meus
companheiros ficariam livres do cativeiro. Livres por sua luta e pela simpatia
de outras pessoas que percebiam que não éramos bichos e tínhamos
sentimentos como todo ser humano deveria ter.
Saí do tribunal de cabeça erguida e desde então vivo com minha mulher,
que é liberta. Trabalho, sofro, amo e vivo como toda pessoa deve viver. Vejo
que minha luta valeu a pena. Que valeu a pena acreditar no meu sonho e lutar
por ele. Foi isso que me trouxe a maior alegria que se pode sentir. A de ser dono
de seu corpo e de seu destino.

O cativo Romualdo, pertencente a Raimundo José de Britto,


segundo testemunhas do processo que abriu para requerer sua
liberdade, estava vivendo às suas próprias custas e sem sujeição
alguma, no garimpo do Caldeirão, no próprio Termo de Xique-
Xique e de lá extraiu ouro.
Seu curador Urgino de Brito encaminhou ao Juiz Municipal e de
Órfãos de Xique-Xique, no dia 26 de outubro de 1886, um
requerimento de depósito e abertura de processo contra seu
senhor alegando ter direito à sua liberdade “[...] por ter estado e
vivido durante alguns anos neste estado em virtude de abandono”
e por ter entregue a seu “pretendido” senhor a quantia de quatro
libras de ouro que com o seu trabalho adquiriu no lugar
denominado Caldeirão, em exploração com outros
companheiros, de mina de ouro ali existente, da qual tiraram
42
juntos mais de uma arrouba de ouro.

42
Arquivo Público do Estado da Bahia. Seção Judiciária. Processo Cível, n° 89/3202/34. Manutenção de Liberdade.
Brito, Raimundo José de. Romualdo. 1886.

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Um belo dia recebi em minha caixa de e-mails
um texto, cuja escritora pedia-me opinião. Fui
lendo, me envolvendo, rindo aqui, sofrendo ali,
imaginado coisas acolá e disse: Taiane, isso dá
um belo livro. Pois não é que deu! Ótimo!
A literatura sertaneja é agraciada e se
engrandece com esta obra. Agora é ler, divulgar,
fazer a “rede” girar para que nossa literatura
avance cada vez mais, cresça e floresça como a
caatinga quando recebe a água providencial.
Que venham outros!
Celito Regmendes, junho de 2014. Uibaí, Bahia.

Sobre a Autora:

Taiane Dantas Martins é Pedagoga, Especialista e Mestre em História Regional e Local


pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia. Atua como pedagoga do IFBA – Instituto
Federal da Bahia, Câmpus Jacobina.

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