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on:;iri0 de José Lemos Montei-


r,), l,.u,t(rn:;c radicado em FortaÍeza, on-
rlrr r;u dodica ao magistério superior na
t,lrrrvors,idade Federal do Ceará e na
lJrrivorsidade Estadual do Ceará, o leitor
:;o deÍrontará com um acervo de reÍlê- 3
xÕes sobre a problemática existencial
do homem contemporâneo.
Trata-se de um corte metodológico do
universo literário de José Alcides pinto, DE JOSÉ ATCIDES PII§TO
no sentido de que a análise empreendi-
da possa interessar, não apenas aos es-
tudiosos do fazer estético, mas também
a todos aqueles que, de uma forma ou de
outra, refletem sobre a natureza humana.
Aqui, o tema do absurdo, relacionado a
uma concepção determinista do amor e
da morte, encontra sua deÍinição na cons-
tante fuga através do sonho e da loucura
ou da criação de um país fantástico, on-
de o homem entra em contacto com as
ÍorÇas que, ilusória ou efetivamente, di-
rigem o seu destino. Esse universo fan-
tástico é descrito desde a sua gênese de
maneira coerente, embora sua caracte-
rística básica seja 6, incessante contrapo-
sição de seus componentes, 0 que re-
dunda num tecido complexo de impres*
sões conflitantes, a ponto de o real (con)
[undir-se ao imaginário, acontecendo o
mesmo com os binômios morte x vida,
Deus x Demônio, e todos os demais ele-
mentos que, em suma, atestam a convic-
çâo da impotência humana diante do in-
sondável.
Como tentativa de penetração, o en-
r;irio de José Lemos ÍVlonteiro revela acui- (

(lÍldc perceptiva e sensibilidade crítica,


lÍrq:os biisicos qr-re dcÍinem sua vocação
rlc ;rrralistir, pilri.l quem a leitura da obra
lilol'rri;r, pcla cttrnpíexidade de aspectos,
rllvl olrr:tlccLrr ít oôrlc:i que, mesmo iso-
l,rrÍ,r',.,,,,,.,,,t1i1.1nt lllll;l visiirl fnlçg1'31gr12
rl,r r rt;rr,:ito r:r;lólir;;t. l,<.rf itiso, ;t ifnáliSe
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DO AUTOR l);t*.t, i- , ji."i'-'
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Iogicos de Fortaleza, 1972 (parceria).
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'A redação como atividade dos sentidos". Irt Educaç'úo (n, d(büte.
F«rrtaleza, 2 (2), 1979.

A SÁIR

Os dedos longos e a mão cabeluda


A valsa de Hiroúma
Á realidade educaciorral brasileita

Para o meu pai,


um habitante do sobrenatural.

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A produção literárÍa de José Alcides Pinto, pela sua
variedade e significação, estava exigindo um estudo crí*
tico-interpretativo que tentasse penetrar em seu mundo
de vatores. A tarefa, por ser vasta, tinha que obedecer
certamente a uma delimitação metodológica determina-
da, embora com isso muitos dados Íicassem de Íora, à
espera de novas pesquisas.
E foi isso o que realizamos, decidindo analisar o
corpus apenas nos aspecÍos concernenÍes à caracteriza-
ção do universo mí(s)tico do autor. Se vez por outra
digredimos, toi, com o obietivo de Íornecer novos dados,
de interpretar melhor esse mundo tão complexo.
Ousamos, porém, defender a idéia de que essa corn-
plexidade conduz a uma unidade de valores, todos vin-
I culados à temática do absurdo. Em suma, José Alcides
revela-nos ern suas concepções sobre a morte e a vida,
sobre o Bem e o fi/lal e outros confrastes um mesmo
pessimismo que redunda sempre numa visão fatalista da
realidade.
lJm so tema pode ser vlsÍo sob duas perspectivas,
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colrno se a dualidade Íosse ilusão e a uno consÍiÍuisse
' a única verdade. Assim, há constanÍes Íusões entre o
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rcal e o Ímaginário, entre o tirico e o grotesco, entre
opecadoeagraça.
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Percebendo esta caracteristica, nosso estudo ficou
basÍante facilitado e consistiu basicamente em desco-
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brir quais os camponenfes do universo do autor que estão Tais motivos se comb:nam e se contrapõem,.como
em choque e/ou se amalgamam numa v.são unitária. E, tudo em José Alcides. O sexo, sendo reprodutar da vida,
dessa forma, figuramos um mundo de scres astranhos e é a antítese da morte. Ê se o seNo ó vida, e também lou-
hediondos, uma região fascinante pelo exotico, onde a cura, dado que a existência se cieÍíne pelo alogisma e
proieção do real é deÍormada peta propria irnaginação. arracionalidade. Sexo e laucura sinanintizam, partanto,
Homens, mitos e demônios habitant as n?esrnas zonas e se opõem à concepção de morte. Contudo, esta é igual-
e observam leis ou acordos tácitos de coexistcncia entre men|;e absurda e assim se confunde aos atr,butos do
sí. Mas os homens são vít;mas dos deuses e demônios sexo e da loucura.
que lhes causam a morte. São levados pela vida como Um único motivo, pois, terá duplo tratamento: como
poeira arrastada, sem nenhuma Íinalidade, c a unica li- parte de autro{s) ou como cantinente. E estará suieito
bertação possive/ se efetiva através da loucura e do a aticas diferentes. Por isso, o sexo e divin;zado no ro-
sonho. mance Entre o sexo: a loucura/a morte e amaldiçoado
Aí está o absurdo ou alógico da existência humana. em Os verdes abutres da colina e João Pinto de Ívlaria.
iosé Alcides Pinto delineia, às yezes, com imagens sur- 'É
divinizado na figura de Mausie, o símbolo do amor
realistas, quadros que situam o homem solitário e amar- puro, primit;vo e integral. É amaldiçoado na figura de
gurado diante do mistério. E nessa circunstâncla ou se Antônio José Nunes, o símbolo da tara demoníaca, do
entrega a Deus ou a Satã. sexo imundo e bestial.
Reconstituímos um pouco a gênese dessa mitolog:a, E a maldição decorre de Íorças estranhas, provém
encointrando na intância do autor as primeiras sedimen- dos seres perversos que habitam a zona do Íantástico.
tações do íantástico ao contato com uma natureza de Sâo os abutres da colina, os representantes de Safanás,
ienômenos inesperados, como as grandes enchentes e os instrumenfos do pecado. Entretanto, Satanás deixa
as secas devastadoras. Tudo num cenário em gue os de ser mau e se humaniza em "Equinócio", única peça

urubus agourentos e outras aves de rapina Íogem, cro- teatral do autor. um demônio de idéias altruístas, de
citando, aos bandos, dos esconderijos da serra do Mu- concepções poslÍlrzisfas, que não apavara mas, ao con-
curipe. Tudo num ambiente de tanat;smo religioso, onde trário, seduz pela simplicidade e quase ingenuidade.
os evenfos mais insignificantes são para os serÍaneios Sâo esfas as /eis principais do un,verso literário de
casÍigos ou recompensa de Deus pelos comportamentos José Alcides. E tuda se submeÍe a uma visão determi-
humanos. nisÍa dos fenômenos, de tal maneira que a morte é uma
Tentamos ainda conhecer os componentes surreais fatalidade e a vida, um enigma insolúvel. O homem é inú-
que perpassam a produção literária do autor e nos fami- til diante dos abismos gue o circundam e impotente para
liarizamos com os seres sern forma defin,;da, com os interpretar a existência. Dai, o misticismo cristão e visio-
agentes do mal e toda uma série de fantasmas, encar- nário a um só tempo, um misticismo alicerçado em bases
nações de valores reais ou pura emanação do incons- míticas, de onde se exclui todo o senÍido de liberdade
ciente como forma de evasão. humana.
E deduzimos que a abra total do escritor, contendo Há, finalmente, um vislumbre de libertação através
as /lrcs/nas matrizes temáticas, era a resultante do jogo do sonho. E vêm de novo as mes/??as obsessões pelo
de trô.s ntotivos intplicantes.' o sexo, a loucura e a morte. trlegorico com a imagem da ave que sapra o tempo no

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relógio da torre. O homem reflete no símbolo da ave,
compreende que ela representa a morte e a vida, e nesta
meditação e/e se perde e mergulha no mais profundo de
seu ser. E o universo inteiro se torna interiorízado, por-
que o homem, afinal , descobre que toda a real;dade é
ilusória e o sonho é a única forma de libertação.
Diante de tais observações, captadas pela simples
leitura da produção estética do autor, nossa abordagem
teria que perder sem dúvida o rigor cientíÍico e partir
para uma análise mais espontânea. Foi em suma o que
conseguimos realizar: uma sintonização com as ondas de
um universo estranho e sedutor, que exprcssa os mais A Formoçõo
recônditos e inconscienÍes deseios humanos, na busca
inútil de um sentido existencial.
do Universo Mí(s)tico
'1

1 Um menino diante de uma natureza


-
ameaçadora. 2 O retorno às atitudes
românticas e a -busca do infinito. 3 O
fantástico como um novo caminho de - ex-
pressão e alimento para o homem aluci-
nado. 4 A necessidade de crença nas
-
superstições e mitos. 5 A chegada ao
-
realismo mágico e ao ,mundo onírico do
surreal. 6 Os pássaros azuis e trans-
) lúcidos e -a elegia aos abutres. 7 O
tema do absurdo na fusão do mito- com
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a realidade.

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1 Seria uma tarefa bastante fastidiosa tentar deÍinir


- os
todos elementos que contríbuÍram, de modo direto
ou índireto, para a gênese do universo literário de José
Alcides Pinto. Aqui ousamos sugerir apenas alguns da-
dos, tão-somente aqueles que possam clariÍicar aspec-
tos de sua obra, tão variada e cheia de contrastes como
o mundo que organíza.
Teríamos, por certo, que procurar os primeiros mo-
tivos na infância do escritor, na paisagem do sertão da
Ribeira do Acaraú. lmaginamos um menino diante de
uma natureza ameaçadora, um cenário onde os esque-
letos de ani,mais mortos pelas secas ou as casas des-
truídas pelas enchentes são uma oscilação constante e
perturbadora. Facilmente, esse menino de olhos e ou-
vidos sempre atentos começa a Íorjar uma concepção
e filosofia de vida, segundo a qual todas as coisas são
imprevistas e absurdas e o homem é um joguete nas
mãos da natureza ou de alguma força sobrenatural.
Os mitos se formam e ficam gravados na mente
inconsciente. E a partir deles todos os fenômenos pas-
sam a ser vistos e examinados na perspectiva do absur-
do. Com efeito, os acontecimentos e os seres parecem
ter existência Ílusória, já que a percepção que cada
homem adquire deles depende de suas üívências e es-
tados comportamentais. Um mesmo objeto é vÍsto como
'rrt , bom ou mau, feio ou bonito, conforme a ótica de quem
o observa.
No caso de José Alcides, os componentes de seu
\ universo têm Íormas estranhas e grotescas e há regiões

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macabras onde se amontoam esqueletos e Íantasmas. É lnmpam o estado de desequilíbrio, de angústia e opres-
a zona do fantástico, do surreal, lugar preferido dos de- :;iio interior em que se situa o homem atômico.
mÔnios e duendes mas também .dos pássaros azuis e dos Este estado de espírito consegue explicar inclusive
seres de natureza clivina como Mausie. rr busca insaciável do inÍinito, o fascínio pela descoberta
a4
Os mitos parecem surgir da própria realidade e o conquista de novos mundos e a constante oscilação
valem pela simbologia que possuem. O importante na ontre o apego a prazeres materiais e ao desejo de re-
vida seria tentar desvendar o sígnificado das coisas, em- ospiritualização, o que acarreta sem .dúvída uma cosmo-
i:ora este anseío seja utópico pela natureza enigmática visão romântica ou mesmo barroca dos fenôrnenos exis-
cia existência. ltllas a tentativa de penetração no misté- Ir-.nciais.
rio é uma obsessão do homem, o que ao Íim de tudo o
levará à loucura como fuga e ao sonho como libertação. :l -- Ora, o artísta pressente com sua intuição os fatos
Toda essa cosmovisão se assenta, pois, em conteú- c valores prestes a ocorrer. lsto é sobejamente compro-
Cos inconscientes mo!dados na inÍância do cscritor, num vado pelas grandes obras Iiterárias. E assim nos arris-
ambiente de superstição e de Íanatismo rcliç;ioso. To- camos a supor que o universo criado por José Alcides
davia, além desses ,conteúdos inconscienrtes que têm Pinto sintoniza com uma diretriz nova da história de
como pano de Íundo a paisagem do Acaraú, com os vôos nossa literatura, qual seja, a da exploração do Íantás-
agourentos dos urubus ao descerem da serra do Mucu- tico, do estranho ou do maravilhoso.
ripe, há no mínimo mais dois fatores mencionáveis. Esta corrente rá, por conseguinte, efeito de um clima
r;aracterístico de uma época que volta a dar crédito à
bruxaría, que discute a existência da possessão demo-
2 O primeiro diz respeíto à atmosÍera cultural em íit niaca (basta refletir sobre o sucesso de O Exorcista) e
-
clue vive o mundo contemporâneo. O segundo trata das pesquisa os Íenômencs paranorm6ís de toda espécie. São
influêncías Iiterárías recebidas possive,lmente mediante os sintomas do meCo diante de um caos iminente, pre'
a leitura de e*critcres da linha de KaÍka e Jr:yce ou dos visto por Nostradamus para o Íim deste século. O ho-
postulados surrealistas de André Breton e Antonin Artaud, mem, nessas circunstâncias, sente-se indefeso e tenta
para não Íalarmos nos princípios do nouveau roman, de evadir-se, movido pelo pavor imposto nas camadas mais
Alain Robbe-Grillet. proÍundas do inconsciente coletivo. Daí o fascínio pelo
Quanto à atm<lsÍera cultural de nosso século, esta Íantástico como alímento para o homem alucinado, que
se caracteriza, como se percebe Íacilmente mesmo numa iá não consegue distinguir o real do irreal. A neurose
análise superficial, por uma série de indícÍos revelado- cia civilização é talvez o sintoma maÍs deÍinido da inse-
res de atitudes tipicamente românticas: o clima de nos- quranÇa e da solidão, o mal du siàcle de nossa socie-
talgia dominante, u,ma exagerada valorizaçã.o do oriente dade. Como corolário, a crença em valores que escapam
e, portanto, do exótico através da difusão do ioga, ;'r percepção sensorial e o recrudescimento de hábitos
-
da Íilosofia indu, da alimentação macrobiótica, da acu- suporsticiosos.
pLrntura etc. uma preocupação em cultuar a natureza
om nomc do -tão decantado equilíbrio ecológico e muitos 4 Bem a propósito, a vida de José Alcides Pinto é
oulros traÇos que, em conjunto ou individualmente, es- r:rrrrcterizada espantosamente pelas superstições e pelos

l4 15

br
mitos. Lembramos, por exemplo, que seu nome neste li- Cada obra enquadra novas concepções estéticas, utiliza
vro sempre se acompanha do prenome José. Sem o José procedírnentos inéditos, numa contínua busca e revisão
o azar acontece e as coisas andam para trás. de valores. As vezes, cs proce'dinrentos vêm contradizer
Respeitamos tal superstição como algo sagrado, so- os anterlores, como é o caso da técnica de paragrafar
bretudo depois de nos Íamiliarizar com as leis que regem ou de estruturar frases. Em O criador de demônios, por
o seu universo. Não usando o prenome, quem nos asse- exemplo, há um sÓ parágrafo, constituído de frases sol-
gura que os verdes abutres da colina vão nos deixar em tas, com ruptura até dos padrÕes sintáticos' Em EsÍação
paz durante os sonhos?... da morte já o discurso se caracteriza por períodos cur-
Um outro fato, este ligado ao mito, já foi objeto de tos e Írases incisivas, processo idêntico ao adotado em
difusão em todo o Brasil. José Alcides pinto teve a sorte O dragao. Os verdes abutres da colina e João Pinto de
ou coincidência de acha.r em sua proprieclade, no muni- Mar;a possuem uma linguagern rnais espontânea, as fra-
cípio de Acaraú, o "Braço do prinritivo',, um símbolo ses têm maior expressividade rítmica e os padrões sin-
fálico sern dúvic!a, mas ain,da misterioso. Julgamos que táticos se repetem som cêssar em esquemas de alter-
a ele se referem estes versos, extraídos de Ás águas nância.
novas: E assim cada oLrra adquire seu próprio estilo, orga-
niza seu sisterna únicc, inrlic!anc{o a preocupação do es-
nesse FALO critor em renovar-se constantemente e tazer que seu uni-
Íalo verso seja o mais possível multiforme e atual-
nesse mistério Todavia, se não conseguinros filiar o autor a uma
calo (p. 16) só corrente estética, pelo menos reconhecemos que suas
incursões são mais freqüentes no realismo mágico e no
EIe guarda esse mito cuidadosamente, como um surrealismo.
aviso, e está seguro de que nasceu predestinado a en_ Apesar disso, o surrealismo de José Alcides se re-
corÍtrá*lo naquele lugar exato, porque enrtende tque o vela muito mais pelcs conteúdos oníriccs do que pela
"mito se revela por si próprio no tempo preciso e no forma. Cr:m efeitrr, nem sernpre a escrita automática pre-
momento exato". conizada por André Breton caracteríza o'discurso do au-
Estes e muitos elernentos explicam o sentido deter_ tor. Sente-se, por exemplc, em Os verdes abutres da co-
minista das coisas, a visão Íatalista de tudo aquilo que lina, uma preocupação Íormal muito bem deÍinida pela
circunda o homem. É sob o fatalismo que os temas da escolha consciente de urna série de recursos morfossin-
morte e da loucura sãs enfoeack:s em sua r:bra de fic_ táticos e semânticos. A construção de frases, a seleção
ção, na afirmação de que nada tem nexo e os Íenôme_ do léxico, tudo .denuncia um trabalho de quem busca a
nos acontecem do jeito que ctevem acontecer, sern que "arte pe!a arte".
o dedo humano possa mudar-lhe o caminho. O automatismo verbal ocorre talvez com mais insis-
tência no romance Entre o sexo.' a loucura/ a morte, onde
5 No que tange às ínfluências literárias, nâo pode_ a técnica da enumeração caótica passa a ser significante
rrrol;dc ccrto [iliar o autor a uma corrente estética de- do próprio caos interior da personagem. E esta técnica
I.rmi.uda, .nr Iace da variedade cie suas experiências. sem dúvida é o legado de possíveis contatos com os
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livros de autores como Joyce ou Virginia Woolf. Ou se trrl, "pode ser repasto / de cáo (ou cachorro), / pode
não, com os her,deiros desses monstros sagrados da li- :rrrrvir de estru,me / aos vermes ,do esgoto."
teratura que, por serem incontáveis, deixam de ser ci- De forma coerente José Alcides homenageia a ima-
tados aqui. r;orrr do Íilho mcrto. No poema "O resto.do parto", sua
llrrquagem comunica os aspectos cruéis e contraditóriós
6 Como poeta maldito, em muitos de seus versos se rlrr cxistência, relembrando traÇos estilísticos utilizados
-
podem visualizar atinências com Arthur Rimbaud, Char- r,rrr O vale dos abutres. O tom elegíaco continua pre-
les Beaudelaire, Lautréamont, Allan Poe ou rncsrno Au- ricnte. Os abutres também persistem, embora sugeridos
gusto dos Anjos. Quase sempre pontos dc contalo com irrdiretamente pelas imagens sensoriais que tra,duzem
representantes simbolistas, principalmcntc pr:lo onirismo t:rrrnuladamente o sentido de desvalorização da vida e o
e culto da diafaneidade. Há muita luz e brilho nos poe- rir: inconÍormismo diante da morte.
mas de José Alcides, há uma obstinaçãio pelas cores,
uma busca incessante do infinito indiciada por muitos t Na prosa narrativa, pela temática do absur'do, José
símbolos, entre os quais, o dos "pássaros azuis e trans- -
Alcides parece herdar os motivos e concepções de Al-
lúcidos". licrt Camus, Genet e Henry Miller, entre outros. Sem es-
Entretanto, talvez a aproximação mais marcante em (luecer naturalmente Franz Kafka, pela profundidade de
termos de discurso poético seja com Anlonin Artaud pelo sua mensagem e riqueza de simbologia que seduzem a
demoníaco e tom elegíaco de vários pocrnáls, cm que qualquer escritor de nosso tempo ansioso por tematizar
preponderam as imagens surrealistas. Aliás, ó o próprio a con.dição humana num século de angústias.
poeta quêm declara estes inf luxos, como dcduzimos Na linha do romance regionalista, guê ensaiou na
dessa passagem de O vale dos abuÍrcs" "Trilogia da maldição", se aproxima de José Lins do
Rego, Amando Fontes e Graciliano Ramos. Contudo, não
Já não habito a terra. Estou com An- se pode aÍirmar que José Alcides seja um regionalista
tonin Artaud na treva, numa cruel diliEên- c.xtemporâneo. Ele, a nosso ver, simplesmente não é re-
cía de encontrar no escuro mortos de olhos gionalista, dado que o sertão em seus romances é ape-
de Íera. (p. 20) nas pano 'de fundo.
Lembramos a este respeito que em seu livro O Aca-
Sua identificação com Antonin Artaud é assim cla- raú (Biogratia do rio), obra poótica cuja preocupação
ramente manifestada. E tornou-se uma espécie de culto social é amplamente evidenciada, ele traduz de modo
ou admiração que ele próprio desejou perpetuar através simples e filosófico a cerleza de que o homem é sempre
de um filho, a quem deu o nome de Antonin Artaud. Mas o mesmo em qualquer tempo ou espaço. Tal como em
o Íalecimento do filho, aos vinte e dois dias de nasci,do, tVachado de Assis, a natureza que interessa é a essên-
veio pôr Íim a este anseio, aumentando as trcvas da vida cia do homem, sua luta e seus fracassos, seus anseios
do poeta. E em seu último livro O Acarau (BiograÍia e desilusões.
do rio) ele expressa de forma -pungente todo um qua- Citemos, para Íundamentação, três estrofes do poe-
dro de-sentida revolta e louco desespero. Antonín Ar- ma "Sociologia do rio", onde, a partir do próprio título,
taud morto deixou de ter qualquer significação e, como se deduz a intenção de analisar a problemática social
18 19
I

do nordestino, preocupação que se reflete de modo idên- t,scritores que tematizaram o absurdo e incursionaram
tico em Os catadores de siri.' pclos domínios do Íantástico.
Nada obstante, acima de qualquer dessas atinên-
Pertença a qualguer rio r;ias está a visão própria do escritor, pata quem mito e
ou a qualquer região. rcalida.de se confundem. Essa visão é que ousamos des-
O homem em toda parte cobrir a cada passo na leitura de suas obras, desven-
é um pedaÇo do chão. dando as cortinas que obscurecem seu mundo fantás-
tico e tentando revelar o poeta "entre seus dedos azuis
Mesmo gue esse so/o o no cigarro que se transforma num enorme corvo para
seja áspero e agreste devorá-1o".
como o sêrtão da Ribeira
do interior do Nordeste.

Mas o homem não muda


o que muda é a paisagem.
Porissoohomeméomesmo
con? essa ou aquela imagem.

José Alcídes compreendeu, por conseguinte, que o


íundamental não é o sertão, porém o ser. E em seus ro-
rnances chega a deformar o próprio ambienle, quando
sente que sua verdade sobre o homem deve ser comu-
nicada de forma contundente e estranha, a Íim de dar
oportunidade a reflexões demoradas por parte dos leí-
tores. Daí, por exemplo, a transformação da serra do
Mucurípe num covil de demônios e a descriçáo das chu-
vas como dilúvios ameaçadores. Tudo passa a configu-
rar um mundo estranho e caótico, mas de valores uni-
versais porque dizem respeito aos sentimentos humanos
diante do sobrenatural.
Todos os dados observados até o momento confir-
mam, portanto, que o universo místico e fantástico do
autor foí gerado pela convergência de três fatores bá-
sicos: os conteú'dos inconscientes gravados desde a in-
Íância vivida num ambiente extremamente místico, a at-
mosÍera cultural da era contemporânea e o influxo de

20
21
Os Componentes Surreois

1 Ângulos para o mesmo


- 2 Umdiferentes
lema. misticismo herético e o
desejo de- volta ao paraíso perdido. 3
O culto a Satã. 4 Um país do sadismo-
-
e da antropofagia. 5 A revolta contra
- do inconsciente.
a razáo e a valorização
6 Um mundo de palavras sem idéias.
7 - A atração pelo macabro. S A uni-
- na multiplicidade de um-universo
dade
sedutor.

l,*-É---
1 __ Todos os mitos ou valores que constituem o uni-
verso de José Alcides Pinto já se configuram em sua
obra poética, a partir de seu primeiro livro Nogões de
poes.'a 8a Arte. Aqui, por exemplo, o tema da morte se
repete na quase toia"iidade dos poemas, delinean'do uma
série cle traços convergentes para o mesmo objetivo: o
de caractetizar o pessimismo como aspecto fundamen-
tal de sua mundivivência.
0 vocábulo "morte", seus cognatos e/ou palavras
cle idêntiea esÍera semânticadominam os poemas do au-
tor e alguns versos, neste sentido, bem poderiam per-
tencer a fvlanuel Bandeira, como o seguinte:

Quando procurarmos os amigos lá es-


tarão todos perÍeitamente mortos. (p. 20)

Contudo, há um desnível enorme entre as concep-


ções dos dois poetas no que concerne ao tema'da morte'
Para Bandeira, a "indesejada das gentes" é aguardada
com toda a calrna e passividade. A vida é uma prepara-
ção para a morte que é o Íim de todos os milagres. Para
José Alcides, a morte é sempre algo inexplicável que,
por isso, gere a revolta interna do homem.
Embora ÍVlanuel Bandeira revele uma pos!ção Íata-
lista, esta é associada à resignação e à certeza de que,
i além desta vida de aquém-túmulo, há um mundo novo a
que todos devemos aspirar. lnversamente, o Íatalismo
de José AicÍdes se vincula ao absurdo, ac deseio de
que a vida terrena seja eterna.

25
São, pois, duas perspectivas contrastantes do mes- 3 lvlas aentrega total ao eriador entra em choque
mo fenômeno: uma serena e tranqüila porque santifica- -
constante com o culto a Satã, expresso na criação de
'da, outra inquietante e inconformista porque humanizada. entes possuidores de uma força malética capaz de des-
truir toda a ordem estabelecida. Tais entes pertencem
2 Da obsessão pelo tema da morte surge o misti- ao domínio do surreal e suas formas muitas vezes pa-
- do escritcr. Um misticismo
cismo que arnalqama a idéia recem grotescas e hediondas.
de Deus e a do Demônio, já que o poeta está ,,dividido É em O vale dos abutres onde se encontra a maior
ao meio pelo umbigo, entre o reino cje Lúcifer e o de quantidade desses componentes surreais. Todos os poe-
Cristo", e que, por vezes, se caracteriza como herético mas em prosa aqui se caraclerizam por uma linguagem
ou sacrílego para expressar sua revolta interior. Eis uma onírica, de diÍícil captação mas extremamente lírica.
passagem do poema "Soluço", pertencente a Cantos de Entre os seres do N/al que povoam o mundo estra-
Lúciíer: nho do autor destacam-se os abutres, em essência con-
fundidos às Íorças demoníacas de Os verdes abutres da
Estou ajoelhado aos pés de Cristo, colina. Neste romance, eles vivem nos esconderijos de
descrente como se esfiyesse diante de um uma serra e, de vez em quando, se lançam em revoada,
enorme sapo. (p. 58) à procura de algum cadáver, cobertos de lodo, pintando
o céu de urna paisagem macabra. Em O vale dos abutres,
Esta revolta é um brado do homem solitárío, amar- imagem idêntica se nos apresenta no seguinte trecho:
gurado pelo fato de sentir-se perdido na imensidão do
universo e reconhecer sua insigniÍicância. O homem é E os abutres, que dormiam nas covas
uma criança que se rebela "pelo infortúnio de ter nas- da montanha, mal se anunciasse a aurora
cido só". E por isso arquiteta buscar os elos soltos, en- partiriam para o vale, onde disputariam o
contrar o caminho da identificação com o absoluto, di- verde e semp're fresco cadáver que o tem-
vinizar-se na proteção de Deus. Esta alta expressão do po a;nda não conseguira apodrecer. (p. 25)
teísmo do poeta representa uma tentativa de retorno ao
paraíso, às origens divinas, um reencontro em que o Os morcegos também habitam esse país aterrador.
homem se despe de to,clos os males e vÍcios e passa a Tais como os abutres, eles se sucedem em gran'de quan-
ter uma visão lúcida das coisas. É o que se lê em ,.Sis- tidade.
tema", último poema do livro Cantos de Lúcifer: NisÍo, um formidável morcego caíu tre-
mendamente aos pés do poeta louco. Outro
Estou com a medalha na boca. Estou o sucedeu. E mais outro. Dai em diante
soluçando. Estou lúcido. Estou nu. Fareio, uma nuvem cinzenta revoava sobre a ca-
nessa luz escura da terra, os pés dos meus beça do louco poeta. (p. 27)
avós atravessando o mundo, marchando so-
bre o áspero destino da mÍnha v:da. Diversos animais ainda entram em cena nessa at-
Vêde! Caminho para o |É,den. EnÍim, mosÍera de alogismo e terror: os gatos "atraídos pelo
caminho para o :Éden. (p. 74) cheiro ácido do sangue dos morcegos", um corvo de-

26 27
vorador do cadáver de uma criança, um cachorro doente O primeiro traço marcante é, sem dúvida, o ilogismo
que mor.dia um aleijado, o porco china que "atou ao rabo e nisto se resume uma série de elementos que não têm
o Íantasma de um anão" e uma multidão de "jacarés explicação aparente. O poeta se volta contra o raciona-
sonâmbulos que há séculos vlviam encantados". lismo que só possibilita captar os ÍenÔmenos relaciona-
dos com a experiência humana. Ele pretende conquistar
outros domínios, jogar com novos valores. Por isso, seus
4 Dentro desse país só pode imperar o sadismo, a versos carecem às vezes de signiÍicado referencial e sáo
-
violência. E em toda parte há alusões a cenas de bru- absurdos. As imagens psicolÓgicas, que se constituem
talidade que se chocam com os pa,drões morais de nossa em metáÍoras ou símiles, diÍicilmente são analisáveis,
sociedade. Lembremos, a propósito, a cena do ímpeto dado que a preocupação básica do autor não é ser en-
incestuoso de Willy NIompou. Ele tentou violentar sua tendido mas ser sentido. Há imagens cujo valor reside
própria irmã, uma adolescente pura, criada ''à sombra exatamente nesse aloglsmo ou na deformaçáo proposital
das águas e dos jardins". N/as quando a cena do estu- dos elementos reais, como a que se segue:
pro ia concretlzar-se, dois esqueletos, usando espelhos,
ofuscaram os olhos de Mompou e ele adormeccu De repente a paÍsagem Íicou roxa, e
enormes cubos de sombras caíram do céu.
Ao despertar, notou que a irma estava Ern torno de si cresceu um silêncio pesado
morta. Então o louco [tlompou amputou- que lhe doía nos ouvidos. (p. 25)
/he os seios corn as unhas, arrancou-lhe os
denfes e os o/hos e os enterrou na praia
iunto com as coxas de um deus adolescente As vezes, tal ilogismo se manifesta através "de antí-
que aí encontrara. (p. 31) teses, corno a ocorrente na última parte da citação acima
ou no verso "Meu corpo é puro como um punhal de as-
Mencionaremos agora uma cena de humor negro, em sassino", para só mencionarmos dois exemplos.
que a violência toma caráter de antropofagismo, justa- A carência de Ióg!ca dos enunciados poéticos se re-
mente para mostrar como o surrealismo do autor não dis- lacíona com a valorização do inconsciente, através da
tingue o Íeio do belo nem teme ir de encontro aos va- inspiração dos scnhos, oncle o poeta julga encontrar a
lores cultuados pela socíedade, sua realidade absoluta. Como nas visões oníricas, as ima-
gens produzidas pelo inconsclente se transmudam e nun-
Um pobre de Cnsto, que dera de es- ca se fixam. É uma realidade onde tudo se amalgama,
mola tudo o que possuia, comia, agora, as porque nada tem essência deÍinida. Assim, uma rosa se
próprias falanges e as dos Íithos. 1p. 2g) parece ao mesmo tempo com "um rosto ,de mulher, um
seio, um pássaro sem cabeça" e um lago nada mais é
5 Diante de tais imagens, será talvez oportuno fixar do que um "seio branco e enorme coberto de nuvens".
as- características básicas da estética surrealista encon- Dessa forma, o autor entende que a realidade lite-
tráveis na poesia do autor, como tentativa de melhor pe- rária pode ser modificada. A poesia não é tão-somente,
netração no seu universo. canto, porém uma ação mágica, criadora de mitos. Tra-

28 29
ta-se ,de uma "poesia de transÍiguração", para usarmos se nota melhor a certeza de que as idéias não criam
a Íeliz expressão de Domício Proença Filho. literatura. O que organiza o poema é o arranjo apropria-
Jcsé Alcides Pinto tenta, pois, rnergulhar no mais do de termos usados como objetos. Esta mesma cons-
íntimo de sua natureza de artista e sondar-lhe os mis- ciência fez que José Alcides Pinto enveredasse pelo mo-
térios, libertando-se das limitaçÕes do consciente e bus- vimento concreto, onde a palavra-objeto chega a ter o
,maior desempenho, uma vez que é aprcveitada até no
cando sistematizar estes valores numa linguagem menos
disciplinada e mais espontânea. seu aspecto gráfico-espacial. O poeta concreto manu-
Essa Iinguagem define bem a concepção cstética do seia o vocábulo, desmontando-o e associando-o a ou-
surrealismo através da chamada escrita automática, em tro(s) pelos seus valores fônicos e semânticos, como se
que se verifica a associação livre. Por esszt tócnica as observa em Concreto: Estrutura visual / gráÍica e em Ás
vivências mais profundas do inconscientc inc.lividual do águas novas.
escritor se cruzam e se fundem de tal forma quo as pa-
lavras ousam trazer ao exterior todo um trnivt,:rso mágico
e mítico. 7 Mas, freqüentemente, a linguagem poética de José
-
Alcídes busca apoio em nossas tradições literárias. O
6 A linguagem é, nesse raciocínio, o cssr-'ncial na gosto pelo macabro o aproxima de Augusto dos Anjos
- de José Alcides. Como [Vlallarme, clc crrlr:nde que
poesia no longo poema "As pontes", onde os substantivos de
não é com idéias que se Íazem versos, por('rnr (:()nl pa- caráter científico e os adjetivos marcadamente senso-
lavras. Ele trabalha o material léxico e sintático, combi- riais estampam uma v'são quase naturalista do fenôme-
nando adjetivos de cunho impressionista e aprovcitando no poético. Citemos algurnas estrofes em que facilmente
até os recursos expressivos dos Íonemas, Niio raros são se estabelecem vínculos com o poeta do "ErJ":
os exemplos de motivação sonora como "o silôncio que
é seda cede aos meus passos", onde a reilcracrio da si- Toda a exalação, Íodos os gíases,
bilante gera o apelo virtual do próprio silôncio. todo o veneno e esterco Íumegantes
A valorização da palavra é responsávc-'l pr-'la cria- pelo ânus saltado ou pelo ouvido
ção de belas inragens e pelo ritmo lânguido c cnvolvente dão aos bichos um perÍume extasiante
que os poemas objetivam expressar. Obscrvcmos a ri-
queza de sugestões evocadas nos versos abaixo: E os microorganismos saltitantes
tão nocivos à pele dos soyacos
No chão mineral onde a semente explo- são para os o/hos dos bichos todo orvalho
de, cavas, ó piássaro, com tcu bico de me- todo pólen e flor, todo conforto.
tal a cova onde incubaremos nossos ovos
(p. 45) fodo nosso tósforo e nttrogênio
vieram desÍas fontes fecundíssimas;
Esta consciência de que os poemas se fazem com Íodos os ácidos orgânicos viridentes
palavras está implícita no próprio título de um de seus nesfas pontes ficaram impregnados.
livros. De fato, é em Pequeno caderno de palavras onde

30 31

i
I
Porque eu sou eu mesmo em qualquer ponto
seqüência, ângulo, tangente, hemisfério:
mesmo depois de morto sou eu mesmo
revertido ao carbono desÍas ponÍes.

Ainda sou eu no cálcio deste rio,


n)trogênia no caule desfas plantas.
Ainda sou eu no urânio desÍe so/,
e à noite nas sombras desfas ponÍes
ainda sou eu a sombra desÍas sombras.
A Divinizoçõo do Sexo
Em suma, porém, é o mesmo culto à palavra no que
ela apresenta de mais sugestivo. tt/luitos dos poemas são
lidos sem deixar nenhuma idéra na mente do leitor, preso
a eles pelo tom elegíaco que encerram. Assemelham-se
a músicas compostag em tr:nr menor e transmitem um
sentimento vago e indefinido, talvez de amargura diante
da vida, talvez de soli.dão em face do iníinito.
1 O erotismo primitivo como fuga das
-
opressões. 2 A mistificação do amor
I É assim o mundo literário de José Alcides Pinto: -
carnal num uníverso mágico-onírico. 3
- país onde o ilusório se mistura ao real, onde as coi-
um -
Um mundo ilusório com duas faces con-
sas carecem de signiÍicado e as palavras tecem as ima- trastantes. 4 As visões apocalípticas
gens mais absurdas. É um universo de contrastes, em -
e o misticismo proÍético. 5 O sacrí-
que coabitam lado a lado Deus e Satã, o Bem e o Mal, lego sem pecado. 6 -
A eternização da
o macabro e o Iírico. Uma região de seres cujas formas -
angústia através dos monólogos interio-
nunca se encontram reproduzidas no real, mas que se- res. 7 A ironia contra a imbecilÍdade
duzem pelo grotesco e inusitado. -
humana e os males do progresso. I O
Todos esses componentes surreais ganharão dimen- engajamento social e o suicídio como -
sões diversas nas obras narrativas analisadas nos capí- protesto.
tulos subseqüentes. Entretanto, da maneira que se apre-
sentem, sempre se atraem uos âo5 outros, caracterizando
um universo uno, fruto das palavras de um escritor, aci-
ma de tudo poeta múltiplo e uno, como o considera Cas-
siano Ricardo, no prefácio de CanÍos de LúciÍer, obra
que con'densa sua produção poética desde 1952 a 1964.

32
SHIUFC
R l5 5355: l
t
Íffi"q9
1 Entre o sexoi a loucura I a morte é um romance
-
diferente no quadro da produção literária de José Alci-
des Pinto. E talvez por isso o autor o isolou de qualquer
estudo conjunto, ao contrário do que Íez para os outros.
Diferente sobretudo no estilo e na técnica de estrutura-
ção. Mas, talvez por isso, rico de valores aÍetivos e
sensoriais.
O realismo mágico que o define prende o leitor, a
ponto de este esquecer até mesmo os preconceitos mo-
rais e aceitar o primitivismo sexual mais como um sím-
bolo para um mundo menos opressor do que propria-
mente como um recurso apelativo ou comercial. O sexo
é tratado na sua pureza animal, sem os vícios ou tabus
que a civilização impôs.
De fato, nossa cultura mitiÍicou o sexo com a fixa-
ção "de uma série de tabus que, segundo os psicanalis-
tas, são os responsáveis diretos por muitos complexos
e neuroses. O homem civilizado, ao contrário do selva-
gem e do animal, passou a encarar o sexo como coisa
obscena, e um puritanismo social puramente exterior aos
indivíduos gerou as neuroses e, sobretudo, a hipocrisia.
Entre o sexo.' a loucura / a morte Íixa um outro uni-
verso, apontando os erros 'de nossa civilização. O ero-
tismo primitivo perpassa de um lado a outro os limites
desse novo universo, justiÍicando-se na idéia de que, se
a vida náo taz sentido, o puritanismo é absurdo. Tudo
ao Íim é síntoma da própria loucura humana, doença que
se revela sempre uma fuga aos padrões sociais estabe-
lecidos. Uma fuga pelo próprio poder da mente.

35
I

2 O mito do sexo é tratado no romance de muitos Como mulher, nâo passa 'de uma neurótica, cujas
-
ângulos. E de vez em quando o erótico se aproxima do marcas do passado lhe atormentam a vida. Seu furor
místico, principalmente por força dos valores que tt/ausie uterino e a beleza do corpo provocam até senfÍmentos
representa. Mausie é o símbolo do amor total, do amor !ésbicos da enfermeira do hospital. Mausie é uma per-
violento e primitivo. Entretanto, como Afrodite, ela só sonagem dominada pela angústia e pelo tédio. No pas-
poderia simbolizar o Amor se tivesse uma natureza divi- sado, Íora casada mas amava a outro homem, por causa
na. Por isso, ela é mulher e deusa. Como mulher, sofre rle quem tentou o suicídio e foi acordar no hospital.
as mesmas crises de angústia de todos os homens. Como Tinha o poder de transportar-se subitamente para o
deusa, tem o poder de transÍormar-se naquílo que desejar. plano sobrenatural. Era mulher e deusa e no choque
Uma aura de mistério circunda a descriÇão de Mau- dessa dupla natureza residia todo o desequilíbrio, toda
sie, de tal Íorma que o leitor penetra no domÍnio do ma- a loucura. Sua dimensão divina a ca'da passo transfere
ravilhoso e onírico. Mausie se modifica, se transmuda, o leitor para um,universo mágico. Como mulher, era vio-
como num passe de mágica, de louca dançarina para lenta, dotada de fúria sexual. Mas no instante em que
uma mulher morta que reencarna instantaneamente em se acalrnava, seu olhar se aproÍundava e ela se trans-
Joana d'Arc. Pouco depois, ela é novamente Mausie. Íigurava:
Numa paisaEem de sol, as borboletas se multiplicam e lltlausie agora estava serena e seu olhar
ÍVlausie termina por entregar-se Ioucamente ao amante. prof undo se perdia no azul das colinas. Nâo
Este é um poeta, um homem que vê a realidade com a gostávamos que ela se entregasse à con-
revolta dos artistas e por isso sofre de neurose. A razáo templação, porque perdia sua dimensão hu-
única de sua vida é Mausie, a deusa do sexo. Do sexo mana e /ogo se entregava à magia e ao
total, puro, como nos tempos de Adão e Eva. E também alumbramenÍo. (p. 40)
do sexo bestial, sádico, que leva os amantes a quase se
devorarem. Sua atuação agia sobre todas as forças da natu-
0 amor carnal se assocÍa, pois, ao misticismo na tezai o céu escurecia, o chão cobria-se com as folhas
Íigura dos dois amantes. Ela é a imagem de uma santa, da5 árvores, a chuva caía e os relâmpagos incendiavam
na visão do poeta. Este julga trazer no peito o sofrímento o firmamento.
de Cristo, imolando-se diante dos seios de [/lausíe. Como À/lausie tinha ainda o sortilégio de se metamorÍosear
numa visão tântrica, o sexo é assim profundamente es- em pássaro preto, gato branco ou rosa vermelha. E, sem-
piritualízado e impulsívo. pre depois dc sortilégio, o desÍecho era a conjunção
carna! com o amante, o companheiro de hospital. Dois
3 O misticismo que a Íigura de Mausie encarna a mundos superpostos: o da ilusão e o da realidade. Ou
- momento
cada parece, criar um universo mítico, fruto de só o da ilusão, parecendo ter duas Íaces.
um delírio produtor de visões surrealistas. Ela percorr,e Funde-se, pois, constantemente o mundo real com
todos os planetas e descobre que tudo não passa de o irreal, embora talvez não se possa falar na intromissão
uma imensidão de desertos de poeira brílhante. Mausie do Íantástico. A zona que se descortina pertence de fato
é um ser etéreo, intangível, representando por isso a pró- ao domínio do maravilhoso, exatamente porque os ele-
pria espiritualidade cósmica. mentos sobrenaturais não provocam nenhuma reação
36 37
particular. E não é uma atitude para com os fatos rela- tico, comô se percebe em O dragão e em Os verdes abu-
tados que caracleriza o maravilhoso, mas a própria na- tres da cotina.
tureza dos acontecimentos. Até mesmo sua produção poética manifesta esse
cunho social, algumas vezes misturando-se a visões aPo-
4 Neste campo, a óptica sobrenatural desloca-se até calípticas e ao grotesco como em O vale dos abutres, ou-
- para o profético, na antevisão de um castigo para
mesmo tras denunciando os crimes praticados pelos poderosos
a Humanidade com a vingança dos que morreram pelo e encontrando no terror uma das características de nossa
poder da bomba atômica. época. É o terror, por exemplo, o motivo único do poema
"Sabotagem", incluso no livro Acaraú (Biografia do rio).
Os morÍos de H.'roxima e Nagasaki ía- Para refletirmos melhor nesta questão, transcreve-
rão a última guerra. E a terra ficará tão de- mos algumas estrofes do poema mencionado, ressaltan-
serta em seus desertos brilhantes como a do que os aparentes exageros tentam, por um lado, iro-
superÍície desse planeta. E não haverá mais nizar a sociedade contemporânea e, por outro, alertar o
no mundo um só olho, nem mesmo eletrô- homem para o perigo da auto-destruição, ao mesmo tem-
nico, que possa constatar a verdade. (p. 51) po em que revelam o absurdo dos atos humanos.

A bomba pode vir


Este sentido de vaticinar sobre o Íuturo da Huma- no centimetro cúbico da água-
nidade se explica por uma revolta incontida ,diante do Dissolvida no açúcar, no pó do café,
absurdo da destruição dos fracos pelos poderosos. A granulada ou liquida.
guerra que extermina a vida dos inocentes seria a maior
prova do absurdo de nosso mundo e isso introduz a A bomba pode vir no relógio
angústia e o terror. (uma mínima bomba-relógio)
O terror adquire assim outra conotação na criativi- sobre o pulso e a pulseira
dade de José Alcides Pinto. Não é apenas o pavor diante e explodir enquanto você aperta
cle Ícrças estranhas e pertencentes a outros planos, po- o fecho, que se fecha sobre a morte,
rém o terror do próprio homem, de sua capacida'de de
clestruição e perversldade para com os frágeis. É o medo Você pode estar senÍado sobre a bomba
incontido do instinto sangüinário capaz de inventar ar- {sem que o saiba, evidentemente).
mas potentes como a bomba atômica, armas que arrasam Uma bomba na obturação do dente
uma cultura inteira em Íração de minuto. que a dentista acaba de colocar.
Aqui, pois, .divisamos um dos múitiplos aspectos do
caráter social que o autor intenta conferir a suas obras. Ou ainda escorado nela
Ele entende que realizar literatura é também prestar um (como sua alma por Íora do corpo)
Cepoimento social, demonstrar um protesto contra os aborrecida de tanto vazio.
erros e injustiças da civilizaçâo. E para tanto vale-se de Ou como a moça na ianela
incontáveis recursos, inclusive apelando para o fantás- triste, por não ser bela.

3B 39
A bomba pode estar no relogio de parede Deus, na visão do narrador, é o responsável direto
ou acesa nos castiçais da catedral. pelo absur'do. Se Deus não existisse' nada haveria' Nem
A bomba pode estar no oratório a bomba atÔmica, nern o câncer, nem nada' O homem
da treira, ou no consistório é inocente de tudo, um simples brinquedo nas mãos do
ou mesma na sala do velorio. destino e, assirn sendo, não consegue, por sua vontade,
libertar-se do caos. T'orna-se um revoltado mas ao mesmo
A bomba pode estar no laboratório dentário, tempo temeroso de ser punido' O homem está para Deus
confeccionada pelo prolético. assim como um escravo pâra um amo exiEente.
A bomba pode estar no sintético Todavia, o misticismo prcfético prevê um mundo di-
da dentadura, gue desarmará quando você ferente onde os hornens seráo puros. Não serão mons-
lsorrir. tros como os atuais nem exterminarão os inocentes com
A bomba pode estar no cinto de segurança a bomba atômica. Será um mundo em que o sexo se li-
ldo avião, vrará de todos os tabus, em que o primitivismo se res-
no emblema da colegial, no quepe do generat. tabelecerá em toda sua pujança e beleza:
A bomba pode estar nos elementos/suple-
lmentos À/ossos filhos {os Ítlhos da poeira atô-
do lsor'dil sublingual. mica) serão velozes e Íogosos como cava'
los, ê os machos cobrirão as Íêmeas e e/as
A bomba pode estar na superfÍcie do solo darão crias como as pulgas e os rafos. E
e vacê explodirá com o bico do sapato, estes rebenÍos so/fos no vento reproduzirão
pensando que é uma bola de brinquedo como as sen?enÍes do campo. Ássím como
tão seguro está você do chute. as esÍre/as se multiplicam no céu sem se
saber como, as nuvens e também as tem'
au escondida entre nuvens assassinas pesÍades. E daremos um ieito de educar
como em Nagasaki e Hiroxima. nossos filhos a Íim de que eles não se tor-
nem monstros como os homens deste sé-
culo. (p. 168)
Retomando a análise de Entre o sexo." a loucura /
a morte, enfatizamos que os ângulos sociais enÍocados
se definem igualmente pela caracterização do absurdo 5 Uma última faceta Co misticlsrno atinge o sacrÍlego
existencial. Mas essa caracterização chega a contaminar no- desrespeito
do vigário pelos objetos litÚrgicos durante
a própria zona do sobrenatural e, .dessa forma, a exis- sua conjunção carnal com a zeladara da igreja. Contu-
tência de Deus também não taz muito sentido. do, mesmo aqui, o sexo é encarado como um valor maior,
divino. E em função dessa divindade do sexo, até os pa-
E não exist;ria Deus drões eclesiásticos parecem preconceituosos, na óptica
1

que a mais
- Ele daé abstra-
I

I perÍeita encarnação do absurdo, do narrador. De sua parte, nenhurna censura é Íeita ao


ção, da loucura e da estética. (p. g6) sacerdote que desrespeita o voto de castidade.
I

40 41

I
A descrição do ato sexual traz assim uma conotação da consciência, sem nenhurn objetivo. Por isso, as frases
cie unr quase ritual, em que a pureza do signiÍicado ex- são incoerentes, não sÓ pela ruptura dos elos sintáticos
tingue toda sensação de maldade ou pecado: nras também pela associação de imagens aparentemente
desconexas.
Seu vigár.'o urinava no litro de óleo- Tais Írases se amontoam todas, umas seguidas às
sanfo, vazio. Não faziam nenhum gesto obs- outrâs, de maneira que os parágrafos se tornam enormes'
ceno. Evitavam, sempre que possível, fun- Até os diálogos se sucedem sem mãrcação formal, todos I

gar ou tosslr. Apoiada a perna num grande no mesmo parágrafo das descrições' Aliás, no romance
castiçal , tendo as cosÍas ampararlas por dois em análise, eada capÍtulo possui um só parágraÍo que
erlcança uma página ou ate me§mo dez. Este processo
I
louros anias de olhos lânguidos, era o ato
sexua/ um mamento quase divino. (p. 16g) enseja que as emoções, cs momentos evocados se su-
t

cedam num continu,Jm, num estado de angústia perenê'


6 Passemos agora à análise dos principais procedi- A extensão dos parágrafos passa a significar, entrê ou- í

-
rnentos que estruturarn o romance. lnicialmente, perce_ tras coisas, a prÓpria dimensão do esta'do emotivo'
l:emos uma sucessão de monólogos interiores, onde a De outra parte, esse mundo interior de fundas an-
corrente de pensamento inesgotável vai rel.omando ce- Eústias parece eternizar-se a cada momento'
E talvez o
nas de urn passado desconexo e entrelaçando um acú_ autor tenha objetivado transmitir essa impressão pela
rnulo de imagens projetadas por livre associação. A téc- i:rópria estruturação léxica e sintática. Os próprios ver-
nica, evidentemente, desde que produziu excelentes re- bos, como nos demais livros do autor, estão no tempo
sultacjos em Faulkner, Virgínia Woolf e Joyce, tornou_se presente e indicam a continuída'de das açÕes e dos sen-
um dos traÇos do estilo de nossa época e reÍlete o nosso timentos.
viver nervoso e depressivo, As construções frasais são em sua maioria paratá-
Como se sabe, o século XX tem experimentado acon_ ticas e, em muitos parágrafos, os períodos se relacio-
tecimentos que abalaram to,da a estrutura social do ho_ nam pelo conectivo e, repetido, como na linguagem das
mem. E por isso o discurso literário tinha que soÍrer fun_ estórias inÍantis.
das lransformações que, para nruitos, parecem incabí_ Trata-se de uma linguagem espontânea, prevalente-
veis à criação estética. mente afetiva, e os enunciados se revestem de tons evo-
Uma das mudanças sofridas diz respeito à própria cativos. Tudo conduz à quebra da logicizaçáo e o dis-
estrutura Írasal que deixou de ser uma construção lógíca üurso se torna assim mais expressivo, bem próximo da
para tomar a feiçáo de algo caótico, desordena,do. A L)oesia.
frase caótica lembra, pelo seu ritmo e liberdade de as_ Aliás, como afirmamos em nosso estudo sobre a
sociação, o depoimento de alguém diante de um psica- análise e interpretação do texto literário, a estruturação
nalista. O aspecto mais generalizado que ela toma é, paratática é apropriada para o discurso poético. A prosa
de uma personagem num ambiente de total depressão, arquiteta-se em discursos ob.ietivos e a ordenação dos
como se essas reações e vivências brotassem livremente signos é de base sintagmática, em que sempre um enun-
por conseguinte, o do monólogo interior, em que o nar_ ciado depende do outro' Há uma série de relações lo-
rador expõe suas reações mais íntimas ou as vivências gicas, como a de causalidade' condição ou fim, que são

42 43
l

levadas em conta neste processo de hierarquização, exi_ Como notamos, a omissão das vírgulas, além de per-
gindo um esforço sem o quar o discurso sairá desconexo. mitir uma série de leituras, oferece maior dinamicidade
A poesia, valendo-se de elementos plurissigniÍicativos, à descrição, de tal forma que as imagens se projetam
foge da informação pura e busca a expressão, o lirismo. uma após outra, instantaneamente, à maneira 'de proces-
É como o lir:smo é espontâneo, evocativo, o rigor ló_ sos cinematográficos.
gico tem que desaparecer. Os nexos de dependência Todos esses recursos conÍerem aos monólogos in-
se
eusenlam, as idéias se situam no mesmo plano, muitas teriores uma impressão do interminável e do conÍuso. Um
vezes em verdadeira afronta aos princípios da Iógíca. mundo de valores antiteticos Ílui nas imagens sensoriais
Neste ponto, muitas são as passagens poéticas do habilmente projetadas através de tais procedimentos. E
iomance. O lirismo descarta-se do senso de objetivldade o resultado mais eficaz é o envolvimento do leitor, que
do autor e dá um caráter romântico ou impressíonista passa a síncronizar com os sentirnentos da personagem,
a
muitas descrições, sobretudo as reracionadas com o uni- divisando na realidade circundante só o caótico e o frag-
verso de NIausie. mentário.
Nessa mesma linha de raciocínio, visando a conÍerir
maior dinamicidade ao ritmo frasal e maior noção do 7 Outro lado bastante significativo para a tarefa de
caótico, o autor chega ar: ponto de desprezar até os si_ -
interpretação da obra diz respeito à ironia do narrador-
nais de pontuação. Assim, na descrição do quarto de personagem contra os males da sociedade e a imbecili-
[\4ausie, o clesprezo das vírgulas possibilita diversos dade humana. Há uma crítica à corrupção da sociedade
tí_
pos de leitura, conforme as pausas feitas pelo leitor pelo dinheiro, âo puritanismo e à desumanizaçáo causa-
e,
por conseguinte, um eleva,do número de interpretações, da pelo progresso. Trata-se de uma ironia que freqüen-
como se veriÍica em: lemente se une ao recurso da hipérbole como rneio de
impressionar o leitor. A título de exemplificação, lem-
bramos a descriÇão caricatural do médico que atende os
...pente escoya de cabetos de esco_ doentes na Ciínica de Repouso. Na perspectiva do nar-
var roupa de escovar dentes cigarros is_ rador, o Dr. Abílio é urn avarento cuja única preocupa-
queiros".. (p. 19) ção é juntar dinheiro. Sua obsessão pelos lucros é tão
forte que ele descuida até mesmo da higiene pessoal e
ou em vive cercado de moscas. Eis um trecho elucidativo:

. ".o toca-disco girando a água esca_ Suas mãos se embalavam Pesadas nos
pando do encanamento a água entrando da tadas da corpo. Ás rnoscas estavam também
chuva o vento com a chuva entrando em lu- sobre elas, unidas, camo se e/e usasse /u-
fadas o vento molhado da chuva o vento vas. (p. 29)
f uriosa da chuva cusp|ndo gelo
alf inetes
agulhas entrando peta ianela escancarada E toda a descrição do Dr. Abílio é Íeita ironicamen-
lobo sangrado fera procurando reíúgio. . . te. Ele vem a ser um sírnbolo da idiotice humana que
(pp. 19-20) grassa na civ!lizaçâo contemporânea, idiotice que faz o
44 45
homem apegar-se ao dinheiro e desprezar os valores Dessa maneira, o narrador-personagem condena os
espirituais. vícios da civilização e a idiotice humana e, a todo ins-
Para fixar bem a ironia e o sarcasmo, a escolha do tante, pretende chocar o leitor com suas idéias anarquis-
Íoco narrativo teve papel decisivo. Neste sentido, o ro- tas. Às vezes, sua ironia se reflete na forma de fábulas,
mance apresenta a técnica de, antes do início da trama, como as que encerram os capítulos "O rei babacu" e "A
situar panoramicamente o ambiente, a mesma técnica uti- barata e o general". São fábulas perfeitamente destacá-
Iizada, por exemplc, em todos os livros do "Tempo dos veis e pcdem Íuncionar como textos autônomos. 0 Único
mortos". Por este enfoque, o intérprete logo passa a co- recurso que as associa ao contexto do romance é a mar-
nhecer e viver a angústla de um grupo de doentes, hos- ca ,do narrador, sua ironia e seu sentimento de revolta
pitalizados para a cura de suas neuroses. São ao todo diante da imbecilidade.
seis, porém dois mantêm a armação inteira do romance:
[Vausie e o narrador-personagem. Este é um poeta que B Para concluir. reÍletimos que, embora a mensa-
-
gem da obra possa aplicar-se a qua!quer tempo e espa-
de imediato conquista o leitor pela sua sinceridade e
autenticidade. Mas é também um revoltado contra a fa- ço, exlste um certo enEajamento com a época atual, na
rnília, o médico do hospital, clrjos pulmões são de bron- denúncia das injustiças e das destruições que o homem
ze de tanto respirar dinheiro, a enfermeira e, enlim, con- comanda. A crítica social se refere, pois, aos males que
tra toda a sociedade. Seu nome ó Artur, o mesmo do a civ!Íização hodierna acarrela e só um retorno ao pri-
protagonista de EsÍação da morte com quem se conÍun- mitlvisrno 'devolveria toda a pu(eza do paraíso de Adão
cle pelas idéias políticas idênticas. Todavia, aos poucos e Eva,
ele se revela extremamente narcisista, considerando-se o Não ousamos contestar a conÇepção de literatura
melhor poeta, o homem mais talentoso, o que sem dú- corno compromisso que o romance parece conter. A obra
vida caracteriza a quadro de sua neurose. Iíterária sirnplesmente expõe a situação do homem
lriuma visão geral, devemos ainda dizer que o ro- e do universo de que participa. A realidade consiste no
mance parece uma sucessão de crônicas, uma vez quê aqui-e-aEora e o indivíclr-ro deve vÍvô-la. A arte, por con-
aiguns capítulos semelham simples f/ashes do cotidiano. seguinte, se condic:onâ a um ambíente que exige uma
O ambienie geográfico é a ciclade do Rio de Janeiro pelas toma,Ca de posíção, um engajamento.
alusões diretas à Praia de lpanema. No entanto, à ma- Há, por certo, uma vinculação entre a tese do com-
neira dos outros Iivros, o ambiente poderia situar-se em promisso social clo escritor e a exploração do absurdo.
qualquer cidade do mundo atual. Acreditamos que a meioria dos autores que trabalham
O Rio de Janeiro é uma cidade-símbolo. Representa iíterariamente sobre o absurdo ou se !igam a concep-
a vida das metrópoles modernas em que o progresso ções filosóficas existencia[istas sempre se angustiam com
material levou o homem a esguecer-se dos valores pri- os problemas humanos e escrevern no intuito de denun-
mitivos e a deturpar a própria beleza do amor. Símbo- ciá-lcs. Assim, a-s obras de Jean Paul Sartre. Assim, os
liza talvez a falta de nexo da existência, depoÍs que o romances de Albert Camus e de KaÍka. E se outros mér-
sexo adquiriu todos os tabus e preconceitos, deixando gulham mais nos rnistérios da essência humana, seus
de ser algo natural como tudo no reino da mãe natureza heróis infalivelmente terão que ser interpretados como
,deve ser. símbolos ou resultantes de massacrêe ou injustiças do

46 47
contexto social de que fazem parte. Desta forma, disser- rárias realizadas, um desejo enorme de fazer "arte pela
tando sobre a existência ou acerca da essência, sempre arte", mas no melhor sentido. Contudo, no romance EnÍre
o escritor angustiado com o tema do absur'do se engaja o sexo.' a loucura / a morte, ocorre de vez em quando
nos aspectos sociais de seu tempo. uma certa preocupação com problemas aestéticos, como
No caso de José Alcicies Pinto, este engajamento é iá repetimos várias vezes. O que, em Última análise, con-
responsável por um dos valores que exigiria um estudo tribui para marcar uma temática desenvolvida ao longo
cie maior penetração. §e aqui nãc o Íazemos, estamos de :oda a sua produção literária: o tema do absurdo da
apenas respeitando o corte metodológico que estabele- existência.
cemos para esta análise, no sentido de atingir uma certa O romance termina deixando muitas lacunas para o
coerência. Mas o social é tão rico quanto os componen- leitor preencher. Í\4ausie perde aos poucos sua natureza
ies místico e mitologico de seu universo e se apresenta divína, comeÇa a ente'diar-se com a vida. E o tédio que
em todos os livros. com um emprego de linguagem inci- a domina é devido à,destruição das roseiras e dos ninhos
srva e, quando necessária, desrespeltosa. dos rouxinóis. A clínica será transformada em hotel e,
Já frisamos que ató sua obra poética adota esta ati- em nome do progresso, os operários já começam a des-
tude. Às vezes, como em Os catadores de siri, o que José truir tudo, Mausie sofre com a iminente queima dos eu'
Alcídes tenciona depor é um quadro de misérias, a sub- caliptos, a transformação do lago dos patos numa pisci-
vicla dos homens que a sociedade marginaliza. Outras na e com toda a imposição do luxo e do conforto.
vezes, ele funde homem e terra numa só mensagem e E então vem o protesto na forma do suicídio:
ciemonstra rnais uma faceta de sua sensibilidade esté-
tica: o telurlsmo. A,ssim, o amor ao chão, a exaltação do Estávamos reunidos em torno da mesa
rio Acaraú, é o tema de urn de seus livros, em que a do caf,á. Todos, menos Mausie. Um pressen-
comeÇar do título já pretende antropomorÍizar o rio, pre- timento repentino, camo um mau presságio,
tensão concretizadâ em muitas imagens poéticas. Em passa por nossa mente. Abandonamos a
vá"rios poemas de Acaraú (BiograÍia da r"o) se pode ana- mesa e subirnos ao quarto. Não havia aí
iisar um conteúdo social detinidor de uma concepção de ninguém. Olhamos pela ianela. Seu corpo
arte iiterária como meio de expressão humana prestes a jazia na grama. E, acima de seu busto bri-
denunciar as situaçÕes atitudinais da sociedade que cons- lhante, uma rasa vermelha desabrochava.
tltuam entraves à realizaçáo do homem enquanto ser. (p. 1e7)
Esta concepção é passível de ser substituída em ter-
mos de criaÇão estética. O compromisso do escritor não
é necessariamente de nalureza político-ideológica. Em
lugar disso, pode ser a plena consciência dos problemas
de seu próprio discurso, a convicção da importância des-
ses problemas e o firme propósito de resolvê-los a partir
do lado interno.
Ressaltamos que José Alcídes Pinto está consciente
disto e tem mostrado, pelas diversas experiências lite-

4B 49
A Moldiçõo do Sexo

1 Maldição e santificação: duplo as-


- de uma só realidade. 2 Um dra-
pecto
gão dez anos mais veiho que -os abutres.
3 O fantástico em oposição ao estra-
- e ao maravilhoso. 4 O alegórico e
nho
poético. 5 Um mundo- cria,do pelas fi-
guras. 6 - O suspense como lei do Ían-
-
tástico e a criação de demÔnios. 7 O
misticismo na Íusão do real com o -ima-
ginário. B O valor da imagem que se
-
repete sem cessar. I As contradições
-
e exageros da maldição.
1 A obra-prima de José Alcides Pinto é, sem ne-
- dúvida, o romance os verdes abutres da colina'
nhuma
principalmente porque todos os procedimentos formais
utilizados estão em perfeita consonância com o contexto
que os motiva. Trata-se de uma narrativa em que o mÍs-
tico se (con)funde ao mítico e profético, com muitas pas-
sagens onde o fantástico invade a zona do estranho e
do maravilhoso.
Neste ponto, se há uma vinculação estreita com o
romance Entre o sexo: a loucura / a morte, há, por outro
lado, uma diferença marcante entre as 'duas obras na
perspectiva de encarar o sexo. Mausie, pela sua natu-
reza divina, é símbolo do amor puro, da deificação do
sexo. lnversamente, Antônio José Nunes, protagonista de
Os verdes abutres da colina, pela sua natureza animal,
e o símbolo do sexo amaldiçoado. Mausie é uma deusa;
Antônio José Nunes é um garanhão, em cujo corpo re-
side o demônio.
A maldição acompanha, dessa for'ma, todos os mo-
mentos da aÇão. Até as epígrafes que antecedem a cada
uma das três partes do livro são citações de profetas
eclesiásticos. Em muitas passagens, a voz vaticinante 'de
Chelego alude ao Íim dos tempos, e percebe-se que Alto
dos Angicos passa a funcionar como símbolo de toda a
terra numa época de materialização ou de esquecimento
dos valores espirituais.
Uniremos nesta análise os três romances que com-
põem a "Trilogia da ttíaldição", embora devêssemos se-
pará-los como Íaremos adiante para a trilogia "Tempo

53
Cos mortos". É que aqui pretendemos estudar o sata- veu desprezar integralmente a sua riqueza em bene'fício
nismo de José Alcides dentro de seu universo narrativo dos pobres.
para depois contrapô-io ao satanisrno de sua produção Vê-se, pois, que, ao Íinal de tudo, a maldição e a
cênica. E tanto em O dragão, coÍÍlo em Os verdes abutres beatificáção funcionam como duas Íaces da mesma moe-
da colina e João Pinto de Alaria, a temática permanece da e compõem um universo em que o misticismo é mar-
a mesma: a do pecado do sexo e da usura. cado pelo Íanatismo visionário. É o ambiente do sertão
A maldição do sexo, já Írisamos acima, é represen- que propicia talvez esse fanatismo, já tantas vezes irra-
tada na figura típica do coronel Antônio José Nunes. Ele diado por líderes reais como o pe. Cícero Romão Ba-
é ciescrito como um fugitivo de guerra que veio parar em trsta ou o Beato Antônio Conselheiro. O sertão de mi-
terrâs cearenses, quase morto, e pouco depois roubou sérias e seca cria na mente do nordestino campo fértil
uma índia da tribo dos Tremembés, que habitava a re- para a instalação de um fanatismo religioso em que Deus
gião do Acaraú desde o século XVIll, começando então e o Diabo pârêcêÍTl estar em luta e acordos constantes.
a produzir uma prole numerosíssima. Com o tempo se Se chove, Deus é o vitorioso. Se há seca e desolação,
organizou um povoado, cujos habitantes eram todos 'des- Deus está castigando os homens porque Satanás conse-
cendentes do coronel. O povoado prosperou materialmen- gue dominá-los com os prêmios da riqueza efêmera e
te, porém, após a morte de AntÔnio José Nunes, estra- dos prazeres mundanos.
nhos e aterradores fatos passaram a ocorrer, como se
§atanás estivesse imperando. Da serra do Níucuripe voa- 2 Examinando conjuntamente os romances 'da "Tri-
vam bandos de abutres verdes, espalhando o terror em
-
logia da maldição", sente-se que O dragão se afasta um
todos os habltantes. O demônio do corpo do coronel es- pouco dos outros dois pelos seus aspectos estilísticos.
tava multipiicado nos corpos de seus descendentes e as- Com efeito, uma diferença rítmica escapa logo nas pri-
sim todos ficaram Ioucos, aió a destruição total. meiras páginas, pelo emprego de frases curtas, sincopa-
A maldição é esiendida a todos os descendentes do das, caracterizando uma linguagem menos solta, menos
corcnel e, especialmente, a seu neto João Pinto de Maria. espontânea do que a encontrada em Os verdes abutres
Este, depclis de regressar do Amazonas, onde residiu du- da colina e João Pinto de Alaria, onde os parágrafos são
rante vinte anos, adquiriu todas as propriedades da re- longos, alguns até de cinco páginas, e a estruturação
gião do Acaraú. Sua preocupação exclusiva era o di- das frases traz um ritmo mais envolvente.
nheiro. Gastava o tempo inteiro juntando moedas, na,da Esta, por certo, é a diferença que comanda todas as
comprava para si nem dava esmolas a quem lhe pedis'se. outras. E se deve talvez ao fato de ter havido um hiato
Sua fortuna era devida a um pacto estabelecido com o de tempo significativo entre a publicação do primeiro li-
diabo, segundo o pe. Tibúrcio. [VIas um dia, antes da pro- vro da trilogia e a dos demais. O dragão Íoi editado pela
cissão ,do Senhor, a torre da igreja ruiu e o pe. Tibúrcio, primeira vez em 1964, dez anos antes da publicação dos
responsabilizando pelo Íenômeno a usura de João Pinto outros, tempo e,m que o ficcionista amadureceu sua téc-
de Maria, exigiu deste a reconstrução da torre. O ava- nica de narrar. A linguagem de O dragão é indecisa, não
rento ajoelhou-se e permaneceu em êxtase, como morto, tem aquela vivacidade e autenticidade que José Alcides
durante três dias e três noites. Era um santo. Tinha che- Pinto alcançou, à custa de sua obstinação literária. Mas
gado ao caminho da beatificação ou da loucura e resol- o romance, em termos conteudísticos, já trabalha com a

54 55

f-E-r
materia-prima do autor: o satanismo. Contém referências contra a ignorância e a falta de higiene dos sertanejos.
diretas ao pe. Tibúrcio, descrito coiro um sacerdote muito Trata-os rudemente como idiotas e é respeitado pela
enfezado e resmunguento, e ao episódio da seca que di- doutrina que divulga. Sua grandeza humana é posta em
zimou as vacas de Joâo Pinto. Os traços desta persona- destaque por muitos críticos ou leitores, justamente por-
gem já estão integralmente delineados, como se pode que contribui para caracterizar o ambiente reglonal do
ler no trecho abaixo: Nordeste.
A propósito, já destacamos que Josá Alcides Pinto
. " .João Pinto, o
usurário, caminhava geralmente deixa de apegar-se ao regional para aspirar
na mata. As alpercaÍas de couro cru redu- ao universal. lVas na "Trilogia da maldição" o ambiente
zidas à metade, protegendo apenas o peito do sertão que lhe marcou a rnÍância é revivido e com
dos pés, mostrando os calcanhares caleja- isso ele se situa na linha regionalista de José Lins do
dos como a couraça de um monstro pré- Rego e Graciliano Ramos. Apesar disso, o regional é
histórico. A avareza dele era tamanha que apenas ponto de referência, contorno ou moldura para
o havia transformado num bicho, um objeto sua temática. O que de fato ele pretende é criar um uni-
insensível e indi,ferente a tudo. No entanto, verso Íantástico, cuja simbologia atinja o essencial do
havia nele uma indomável vontade de tra- homem. A angústia de transmitir sua verdade nessa to-
balhar. (p. 83) mada de posição é sentida na própria Írase de Teilhard
de Chardin que serve de epígrafe ao romance: "Só o
Sob o ângulo da linguagem, apesar das observações fantástico tem a possibilidade de ser verdadeiro."
feitas acima, temos que concordar corn Fausto Cunha O regicnal, portanto, funciona tão-só como paisa-
na declaração de que algumas páginas são verdadeira- gem, como pano de Íundo para o universo místico e fan-
mente extraordinárias. O que lhes falta é talvez ma,ior tástico, em que as imagens surrealistas se sucedem a
coesão, mais vivacidade. De vez em quando, registram- todo ínstante. O culto da hipérbole tenciona instaurar
se lances poéticos em que a imagética do autor cria qua- esse sistema a partir do primeiro parágrafo, com a alu-
dros marcantemente impressionistas. são do despertar de uma vaca depois de uma noite chu-
Exemplificamos com o parágrafo seguinte: vosa. Eis o trecho:

Choveu Írês d,'as seguidos, estiando por


curtos intervalos. Depois, o cérJ, como ou- Chovera a noite inteira. Uma vaca te-
trora, surgiu sereno, azulado, como uma vantou-se da malha. EspreguiÇou-se. Ge-
barca côncava, tranqüila, ancorada no infi- meu. Tornou a espreguiÇar-se . Sacudiu a
niÍo. (p. 91) cabeça derrubando o orvalho e encolheu-se
toda como uma mulher. Levantou o talo ver-
Ressaltamos ainda que o grande valor de O dragão de do rabo. Miiou. Arlijou demoradamente,
se encontra na Íigura humana do pe. Tibúrcio. Ao longo como se o corpo liyesse absorvido toda a
da narrativa ele consegue impor-se, pelo seu trabalho chuva que caíra naquela noite. Abriu um la-
apostólico, condizente com o ,meio em que prega. Luta go no chão. (p. 15)
5ô 57
3 É útil, porém, observar que José Alci'des Pinto não Neste ponto, poderíamos pensar que o estranho, e
- em rigor um universo fantástico puro. Freqüente-
cria não o fantástico, caracleriza Os verdes abutres da colina,
rnente, haverá invasão dos domínios de gêneros limítro- se os abutres passarem a ser interpretados como urubus
fes como o maravilhoso e o estranho. lsto se não qui- que aos bandos descem em vôos rasantes da serra do
sermos levar em conta o alegórico e o poético como [Mucuripe, cobertos de lodo. E a paisagem real que ocorre
tentativas de interpretação. para quem conhece o ambiente do romance é exatamen-
Reflitamos um pouco sobre esses gêneros, antes de te esta. Não obstante, José Alcides consegue desÍigurar
prosseguir a análise que ora realizamos, tomando como o real, imprimir-lhe tanto nratiz exótico que o leitor per-
base os ensinamentos de Tzvetan Todorov. Para este au- manece na dúvida em iodo o romance. Nlesmo o caráter
tor, a fim de que uma obra pertença ao gênero do fan- de documentário que a obra apresenta, inclusiye com no-
tástico, três condições devem ser preenchidas simulta- tas de rodapé para explicar eventos reais, não permite
neamente. Em primeiro lugar, ela deve conduzir o intér- que o leitor opte por uma interpretaÇão racional dos
prete a entender o mundo das personagens como um f atos"
ambiente de pessoas vivas e a hesitar entre uma expli- Continuemos, porém, com a delimitação das carac-
cação natural e outra sobrenatural para os fenômenos terísticas do Íantástico em contraposição a seus gêneros
aludidos. Em seguida, o leitor tem que recusar as inter- vizinhos. Já virnos quê sua marca essencial é a hesitação
pretaçÓes alegóricas e não julgar-se diante 'de um texto do le:tor. Se este ao fim aceita, por exemplo, uma ex-
pcético. Finalmente, a hesitação entre as duas perspec- plicação sobrenatura!, a obra penetra na esfera em que
tivas de abordar os Íatos deve ser sentida igualmente por o fantástico se funde ao maravilhoso. No maravilhoso
urna personaEem. puro, os elementos sobrenaturais deíxam de provocar
O fantástico, por conseguinte, só existe na medida qualquer reação específica nas personagens ou no leitor
ern que há uma hesitação comum ao leitor e à persona- implíclto. O que o deÍine é a própria natureza dos fe-
gem. Se o leitor interpretar que as leis da realidade con- nômenos e não uma atitude diante deles.
tinuam intactas e podem perfeítamente explicar os acon- Tzvetan Todorov encontra ainda quatro qualificações
tecimentos narrados, a obra passa a situar-se na zona do maravilhoso que apenas citamos aqui: o maravilhoso
do estranho, extrapolando da órbita do fantástíco. Se ele hiperbólico, o exótico, o maravilhoso instrumental e o
admitir, por outro lado, que tudo pode ser compreend'do científico. A todas estas variedades se opõe o maravi-
por novas leis da nalureza, desconhecidas até então, a ihoso puro, que não se explica de Íorma alguma e não
narrativa taz parle do domínio do maravilhoso. causa, por isso, nenhuma surpresa no leitor.
O fantástico equilibra-se assim entre dois gêneros
Íronteiriços em que há constantes fusões. Desta forma, 4 Mas, alérn do perigo de considerar como fantás-
se os Íenômenos parecem sobrenaturais ao longo do ro-
- o que é maravilhoso ou estranho, há outros riscos
tico
mance, mas no fim recebem um tratamento racional, es- para o intérprete. Com efeito, aÍora estes gêneros limí-
taremos diante do Íantástico-estranho. No estranho puro trofes, há ainda o poético e o alegórico, que podem per-
se encontrariam as obras onde os acontecimentos podem turbar a caracterizaçáo do fantástico.
ser compreendidos pelas leis da razã,o, embora sejam Quanto ao primeiro, deve-se, constatar de imediato
incríveis ou extraordinários. que o fantástico, só podendo subsistir nas narrativas em

58 59
prosa, nunca será poético. A poesia não pode ser Ían- literária é uma grande metáfora, a interpretação de Os
tástica, já que as marcas do discurso poético não o verdes abutres da colina e Jaão Pinto de Maria deve ca-
permitem, segundo a teorização de Todorov. minhar para um mergulho na slmbologia de suas perso-
Estamos, pois, novarnente diante de um problema: nagens, ricas de atitudes denunciantes de um mundo de
as imagens surrealistas, que, criam uma atmosfera exó- valores a ser explorado.
tica e põem o leitor num estado de hesitação, muitas Às vezes, um só adjetivo, pela sua capacidade sen-
vezes estabelecern, pelo seu lirísmo, um clima poético, soriat, é capaz de evocar paradigmaticamente no discur*
como ocorre em diversas passagens de Os verdes abu- so literário uma série de elementos alegóricos. Retíre-
tres da eolina. Ít/e!hor ainda: em Canfos de LúciÍer hâ mos, por exemplo, um dos adietivos sensoriais 'do ro-
muitos poemas em prosa cujo surrealismo atinge evi- mance Os verdes abutres da colina e vejamos como é
dentemente o fantástico ou o ma!'avilhoso e, contudo, têm possível divisar um sistema simbológico aceito dentro
de fato conteúdo poético. do próprio contexto.
Cremos que o problema reside na caracterizaçáo do O primeiro adiotivo encontrado é "aceso", usado
poético. Este gênero não se opõe ao fantástico mas ao no sintagma "poste aceso", em que já se observa um
prosaico. Um texto em prosa pode, de acordo com a vi- procedimento metonímico indiciador de uma situação cul-
vência estética do autor, enfatizar alguns procedimentos turat. "Poste aceso", em vez de "Lâmpada acesa", co-
utilizados com mais Íreqüência em poesia, o que, por nota para Rosa o progresso material, numa primeira apre-
certo, gera o poema em prosa, não importando que seja ensáo interpretativa. Logo na segunda linha ocorre o
narrativo. Neste ponto, as imagens podem estabelecer o substantivo "lt)z", seguido dos adjetivos "amarela" e "em-
clima do fantástico or.r, principalmente, do maravilhoso. baciada". Agora, um segundo nível de apreensão dos
É o que sucede em muitas passagens de Entre o sexoi valores conotativos se sobrepÕe ao primeiro. O adjetivo
aloucura/ amorte. "amarelo" passa a conotar um nnistério para a persona-
No que tange ao alegórico, o risco de conÍundir o gem. Ela não entendía a mudança, era-lhe um mistério o
Íantástico com aquilo que é puramente simbológico as- amarelo da luz resistir ao vento e à chuva sem apagar-
sume proporções bem mais vastas. Num texto alegórico se. [/as outro valor se ecrescenta ao adjetivo "amare-
o signiÍicado referencial ou literal cede lugar ao conota- lo", quando este, paradoxalmente, indicia o próprio es-
tivo, de tal forma que a obra adquire muitas aberturas tado de alienação mental de toda uma população.
'nterpretativas. Assim, o fantástico de José J. Veiga mis-
tura-se ao alegórico, justamente porque seu discurso só ...o so/ apareceu, amarelo como um me-
pode ser decodiíicado por um significado latente e sub- lão. Os homens e as mulheres desenfurna-
liminar. ram-se das casas, também amarelos, arre-
O sentido alegórico não se reserva às fábulas ou piados e frisÍes como bichos doenfes,' os
aos contos de fadas. Ele sucede com freqüência nas nar- braços ainda cruzados por causa do frio,
rativas modernas. Em José Alcides Pinto não poucas ve- olhando abobalhados para o tempo, e sem
zes o leitor se depara com imagens cuja interpretação trocar palavras uns com os ouÍros, como
tem que ser alegórica, como a da ave que sopra o tempo seres esÍranhas que não se conhecessem.
do relógio da Central, no romance O sonho. E, se a obra (p. 18)

60 61

,--
A interpretação, conquanto sumária, nos dá uma no- mente, é que ele se originou delas. O sobrenatural surge
da linguagem, pois, em verdade, os mitos e seres estra-
çâo de como o alegórico pode estar presente em ca'da
passagem de uma obra que tenha matizes impressionis- nhos só existem no universo estruturado pelas palavras.
tas ou surrealistas. A linguagem é que, por si mesma, cria o supra-real'

5 Resta-nos ainda indicar algumas características do


6 Uma outra característica 'da narrativa Íantástica
- - respeito à técnica de composição
diz que, em termos
cliscurso Íantástico e verificar em que medida José Al-
ideais, deve apresentar uma linha ascendente até chegar
cides Pinto delas se serve. Como primeiro elemento, as-
sinalamos um emprego regular da linguagem Íigurada,
a um ponto culrninante. Há toda uma preparação, o que
sobretudo porque o sobrenatural freqüentemente surge
coloca o Ieitor em suspense, até o instante em que a
quando se interpreta ao pé da letra o que seria em es- estória atinge o ciímax. Nas estórias de fantasmas o clÊ
sência uma metáÍora. As Íiguras, principalmente a me- max é loglcamente a aparição do espectro, o que gra-
táfora e a hipérbole, se associam de muitas Íormas ao Cativamente foi indiciado, desde o início da trama'
fantástico. Se esta regra Íosse condição essencial, não pode-
Nenhum trabalho teríamos se tentássemos compro- ríamos talvez nem aludir ao Íantástico em José Alcides
var esse discurso em Os verdes abutres da colina. A lin- Pinto. De Íato, em João Pinto de Alaria, o clímax ocorre
guagem hiperhólica se reflete, por exemplo, na descri- comacenadoêxtaseoutransedoprotagonistadtlrante
Ção de Antônio José Nunes, o garanhão luscl, que não
três dias e três noites. Não há nada de fantástico aí. Este
se fatigava de cobrir todas as fêmeas que o procuravam clímax até surpreende o leitor e caracteriza o avarento
voluntariamente, até suas próprias Íilhas. A ín'dia que como personagem esÍérica, piuriciimensional, capaz de
lhe servia de concubina também é descrita numa lingua- iransformar-se inesperadarnente' Em Os verdes abutres
gem de exageros: "era fecunda como uma coelha e dava da cotina o clímax é de fato a conseqüência de toda uma
íilhos aos pares". A duração de vlda dos habitantes do gradação de eventos que culminam com a destruição da
lugar escapa, outross'm, à normalidade dos fatos: todos cidade.
I

vivem mais de cem anos. E assim sucessivamente.


A tempestade de poeira entrou no po-
j

A metáfora está, de igual modo, presente em qual-


quer página do rornance, Íixando o sobrenatural exÓtico voado com os verdes abutres da colina, I

em que o místico se mistura ao proÍano. carno se previra. E os ÍeÍos das casas foram I

Por vezes, metáfora e hipérbole se uniÍicam, pro- atiradas d;stante, e um grande incêndio ir-
duzindo irnagens surrealístas que atestam a imaginação rampeu no povoado. Ás labaredas, açoita-
fértil do autor. É assim que, ao caraclerizar a intelígên- das pelos venfos, se levantavam altas, de'
cia de João Firmíno Cajazeiras, a imagem de uma cabeça vastando tudo num segundo. (P. 99)
enorme de elefante se funde com a das idéias que va-
zavam pelas bordas de sua cabeça, "como as águas de Pode-se, pois, pensar aí em termos de discurso Ían-
uma cacimba de bom veio". tástico. E outros exemptos se encontrariam em A criador
Deduzimos, portanto, que, se o fantástico aproveita de demônios ou na peça EquinÓcio, sobretudo pela pre-
as figuras de retórica e com elas se relaciona íntrinseca- sença do diabo.
63
62
Aliás, o demoníaco toma várias conotações na obra dimentos formais de O criador de demÔnios são total-
de José Alcides" Em Os verdes abutres da colina é sím- mente diversos, sendo a novela inclusive estruturada num
bolo da maldição do sexo. Em Equ;nócio é o agente da só parágrafo. Depois, na "Trilogia da maldição", o narra-
corrupção humana pelo dinheiro, o mesmo sucedendo em oor pretendeu Íixar-se num só ambíente, o sertão de Aca-
Joãa Pinto de Maria. Ern O criador de demônios é o ter- raú, e descrever-lhe seus aspectos místicos e apocalípti-
ror das vlsões dos monstros e espectros. Citemos um cos. Ora, o ambiente de O criador de demônios é tão di-
pequeno trecho deste último livro, nitidamente fantástico verso, que esta novela se afasta mais do que se aproxima
neste sentido: dos livros cuja temática é a maldição do sexo e do di-
nheiro.
Aparece uma caveira boiando na cer-
ração, com um comprido cigarro aceso en-
Íre os dentes, rindo-se com escárnio. Hor- 7 Deixemos de lado tais considerações. Reflitamos
ror . Fuma. Fumemos Íuntos este cigarro.
-
no misticismo do autor diante do processo de fusão dos
Sai , vem comigo. Breve esfarás assim. De planos e aspectos distintos. É curioso realmente como
Júlia, a
voz. Sua voz saindo da caveira José Alcides Pinto consegue fundir o sobrenatural ao
baiando na cerração. Novamente sou arras- natural. Em face de um episódio como o do enterro do
tado pelos cabelos ao centro do quarto. O coronel, Iogo ganham proporções inesperáveis os elemen-
espectro continua golpeando a ianela. A ios de um mundo de seres ameaçadores. São os verdes
porta abre-se imperceptivelmente. (p. 52) abutres, os demônios que dirigem os destinos dos habi-
tantes da aldeia e que aparecem em profusão:
A propósito, embora O criador de demônios seja
uma novela à parte, inclui reÍerências incontestáveis às
personagens e cenas dos romances da "Trilogia da mal- Como um esquadrão cobriam os céus
dição" e a estes se liga pelo satanismo ameaçador. A de asas abertas, unidos uns aos outros,
maldição existe aqui na contemporanização da loucura como jamais foram vlsÍos assim. Todos le-
e no poder do mal. De vez em quando entra em cena o vantaram a cabeça quando a farândula ver'
garanhão luso que vivia a emprenhar as negras da Íazen- de-escura proietou sua sombra achatada
da e mulheres de outros recantos. (Cf. p. 35) O coronel sobre a legião do corteio. E sem se saber
era mesmo um "cavalo de lote", "macho pencudo que explicar continuaram voando ao ritmo dos
não tinha medo dos demônios" (p. 43). "Sozinho, po- passos das criaturas até chegar ao cemité-
voava uma região. Não existiam fêmeas estéreÍs em sua rio. Enquanto o corpo do garanhão não de-
peia. Davam crÍas como ratas. Coelhas". (p. +q) sapareceu na terra, se detiveram parados
Diante disso, o leitor se pergunta por que O criador no espaÇo, inexplicavelmente, como uma
de demônios é uma narrativa desvinculada e não forma colagem, as asas imóve:s, Íortemente amar-
com as outras três uma Tetralogia da maldição. radas umas às outras, num silêncio pesado
Cremos que duas características são bastantes para e ameaçador, carregado de expectativa, até
responder a esta questão. Em primeiro lugar, os proce- o corpo do garanhão se afundar de vez na

64 65
terra. Depois levantaram vôo, desamarran- suas ativi.dades. Onde fatalmente o misticis,mo se torna
do as asas e, se espa/hando pelos céus afo- em essência visionário.
ra, subiram até a vista não mais alcançar Surgem, pois, no romance, constantes alusões aos si-
e desapareceram na amplidão azul. (p. 14) nais do tempo, insistentes marcas de um profetismo reve-
lador de visões apocalípticas. A maldição estava decre-
tada pelas forças do Dernônio. Tinha que ser cumprida.
E neste contexto até as forças da natureza são co-
rnandadas pelos poderes do Mal, pela força dos abutres. A grande ninhada de mil oyos gue os
O céu e a terra sentiram o impacto da morte do coronel, verdes abutres da colina estavam chocando
quando o demônio salu de seu corpo. O cortejo dos pás-
na serra do Mucuripe iá devia ter "tirado",
saros fora enviado por Satanás, tal como um cego havia e os novos abutres estavam crescendo vio-
'orevisto. E depois, para que nenhum dos habitantes dei-
lentamente com o tempo, mudando de cor,
xasse de conhecer e temer os poderes do demônio, mui- de tamanho, er? seus esconderiios na serra
tos sinais começaram a aparecer. Quinze'dias choveu sem do Mucuripe. Quando os verdes abutres
parar e, assim que o céu clareava um pouco, um baru- voassern sobre o povoado, precedidos da
lho infernal tomava conta do ar. "Éra a avalancha dos grande ninhada, arrancariam os o/hos das
verdes abutres da colina que abandonavam seus escon- cr:aturas e arrombariam o fundo e mergu-
derijos na serra do Mucuripe e cortavam a aldeia em lhariam no tubo intestinal, como faziam às
cruzes, grasnando ameaçadores atrás de cadáveres para carniças, e deixariam as vítimas ocas como
se alimentar." (Cf. p- 17) tabocas. (p. 93)
O diabo nada poupou. Muitas crianças morreram
congeladas, outras nem sequer chegaram a nascer. Toda O profetismo é na realidade um dos traços mais de*
a região ficou devastada pela chuva que o demônio en- Íinidores de Os verdes abutres da cotina. trrlas não só
viou, após ter deixado o corpo do coronel. neste romance o misticismo toma tal conotação. ldên-
Ora, estes fatos poderiam ter ocorrido realmente na ticos padrõês aos até agora comentados ocorrem em João
região do Acaraú. As enchentes no Nordeste sempre se Pinto de Maria, obra que Íecha a "Trilogia da maldição",
contrastam com os períodos de seca, fazendo do serta- constituindo-se um relato biográfico de um neto do co-
nejo um escravo da natureza, eternamente castigado por ronel Antônio José Nunes, em cujo corpo o diabo tam-
esta. [\ías tais fenômenos naturais recebem outro trata- bém encarnou. Aliás, todos os descendentes do coronel
mento na visão do narrador. Fundem-se ao sobrenatural, Íoram amaldiçoados e os demônios prometeram atuar
ao satânico, ao ,místico. E esta é a matéria-prima com que neles até quando houvesse um só rebento da estirpe do
José Alcides organiza o fantástico-místico. garanhão luso, verdadeíro animal cuja tara sexual não
Para tanto, coloca-se numa situação cultural em que se satisfazia nem com todas as mulheres de sua redon-
a mentalídade do povo é capaz de crer em castigos dos deza.
céus, em que todos os fatos reais são vistos à luz da A estruturação dos dois romances é praticamente a
superstição e do Íanatismo religioso. Um contexto social me,sma,com o uso de idêntícos recursos de expressão,
onde o beato e o vidente encontram campo propício para onde o Que ,mais se sobressai é o excesso de repetições
66
67
definida e a projeção dos elementos
entre si' numa re-
de veriÍicar em
de vocábulos e frases. Tivemos o cuidado petição incessante dos mesmos valores'
de pro-
que medida ocorre este processo com o intuito
que as repe-
cederaumaanáIisequantitativa,.masdesprezamosade I Em termos formais, devemos refletir
coleta realiza.da. Assim mesmo, chegamos
à conclusão -
t;ções, quando não acrescentam algum
novo dado' pelo
de José Al- fixar no
que a repetição ó o prÓprio universo literário menos intensificam os anteriores e conseguem
personagens' os te- isso' as Írases se
cides Pinto. Tudo aqui se repete: as lntérprete a imagem pretendida' Por
Um unlverso em de seus
mas, o tempo, os rneios de expressão'
se Íundem' se ,"p*iu* integralmente ou com mudança parcial que fica
ciue os elementos sempre se encontram' termos. Outras vezes, é só a ordem dos
termos
grande roda onde não sensação rítmica bem
uniÍicam, como se Íormassem uma itlterada, prodtlzindo no leitor uma
se consegue descobrir o início nem
o fim' dos textos poéticos'
ninguém sabe frOxima da cadênc!a melódica
Assim é o mundo fantástico 'do autor: Observemos apenas um exemplo:
Ao descrever o
onde termina o real e começa o
ilusório' onde o cast;go página 109' o nar-
protagãnista ao'longo do romance' na
se confundem
se torna recompensa, onde os demÔnios rador assim o caracteriza:
distinguir a graça do
com os anjos puros. Ninguém sabe
tVlaria' usurário
pecado ou da maldição' João Pinto 'de João Pinto de A/laria era um homem
a fortuna' Ele Íaz
muito estranho' /''' / E não se sabia
sua para
perverso, santiÍica-se ao desprezar
'parte e o se tocam
desse universo ern que o Bem
lt/lal pois
quem João Pinto de ilaria trabalhava'
eforrnamUmasounidadenumprocessoderepetiçáo não tinha um fitho para herdeiro da fortu-
constante.
gênese dos roman-
na. .

Este comentário se aplica até à


de dados reais' al- período ci-
ces do autor' Todos parecem surgir Logo no parágraÍo seguinte' o segundo
gumas vezes autobiográÍicos' João Pinto
de Maria' por
AntÔnio José tado é rePetiCo na ordem inversa:
exemplo, existiu n* oiau real' O coronel
José Alcides
Nunes tambem teve existência comprovada' Para quem João Pinto de Maria traba-
da cama' a
possui inclusive em sua residência' debaixo lhava, não se sabía'
obra de ar- I

laje esculpida em mármore (uma vercla'deira coronel' O


do
tei) com os dados de nascimento e morte A oração "não tinha um filho para herdeiro da
Íor-
José Nunes'
autor é, na realidade, bisneto de AntÔnio tuna" é repetida na página seguinte com outra estrutu-
agosto de
pãrtugues, nascido em Cascais' no dia 24 'de ra: "nem um Íilho possuía, sequer' que servisse
de her-
julho de 1910' no povoado de
1800, e falecido em 27 de deiro a tarnanha fortuna"'
São Francisco do Estreito, na Ribeira do
AcaraÚ'
Ora, o que notamos é um processo de
alternância'
romances, ninguém é signifi-
Não obstante, ao ler os seus
de vaivém, cada estrutura repetindo os mesmos
ficção e o que eÍetiva-
capaz de assegurar o que é pura cadosmasproporcionan,doumaimagemprecisaquepos-
rnente foi real. Talvez nem o prÓprio
autor seja capaz um pro-
com o real' Ele sa permanecer gravada' O narrador age como
cíisso, tal a imbricação do Íantástico Íessor extremamente detalhista, preocupado
em que seus
para acender
aproveita um Íato apenas como centelha alunos não deixem escapar as mínimas facetas
de um
asluzesdeummundoestranhocujamarcamaisbem
69
oo
proble,ma. Assim, um traço comportamental ou físico da uma linguagem em que o insólito ou o maravilhoso re-
personagem se define com uma simples frase repetida, sumem a própria beleza do tazer estético. 'É o que se
ao invés de diluir-se em descrições inteiras. Esta é, sem percebe na descrição do incêndio de Alto dos Angicos
dúvida, uma das características fundamentais do realis- em Os verdes abutres da colina.'É também o que se ob-
,:ro do autor, para quem a imagem vale mais do que a serva na cena da beatificação de João Pinto de Maria,
estória. nos termos abaixo transcritos:

I O resto pode até mesmo entrar em contradição. João Pinto de Maria tinha agora no sem-
-
Anotamos algumas passagens onde a lógica da narra- blante o ar de um proÍeta ou de um louco.
tiva é desrespeitada, talvez porque o essencial para o Estava completamente transtigurado, como
autor é a imagem do herói ou o que ele possa simbo- se esÍiyesse em êxtase. O padre apanhou a
lizar. Neste sentido, seu realismo é mais solto, menos cabeça de João Pinto de Arlaria com as duas
exigente do que o de outros escritores. mãos, e ergueu-a. Seus olhos azuis e par-
Vejamos um exemplo: João Pinto de Maria adquiriu dos tixaram-se no infinito dos céus, e dei-
as terras dos descendentes do coronel Antônio José Nu- xaram transparecer uma renúncia total por
nes. Mas todos eles haviam morrido no incêndio que des- fodas as coisas do mundo e pelos bens ter-
truiu a aldeia do Alto dos Angicos. Diz o autor, na pá- renos. /.../ Depois o vigário se dirigiu à
gina 137, que João Pinto de Maria escapou porque se igreja para dar início à procissão do Senhor
encontrava nos seringais do Amazonas. Nas páginas 136 Morto. E João Pinto de Maria curvou-se,
e '148 há referências claras de que apenas duas pessoas mais uma vez, até a cabeça tocar no pó do
-_ Rosa e o louco Chico da Frota se salvaram do chão. E aí Íicou por um tongo tempo, até
incêndio e da tempestade de poeira. -Se ÍoÍ assim, o pe. que o padre, temendo que ele v;'esse a mor-
Tibúrcio não poderia ser mais o cura da aldeia na época rer naquela posição, o exortou: "Ergue-te,
cie João Pinto. E o era. João Pinto de Maria, o Senhor te chama
Todavia, estas contradÍções, que inexistiriam com al- para conduzi-lo no andor". Mas João Pinto
guns pequenos esclarecimentos, podem ser interpreta- de Maria não ouvia nada. Havia um halo de
das dentro da própria linguagem hiperbótica e alógica luz em torno de sua fronte, enlaçando a ca-
I
I

do autor. EIe mesmo como poeta se definiu em Ás águas beça como uma chama viva, ou uma coroa. 1

novas: "é que sou alógico, lógico". (p. 156)


De fato, repetimos mais uma vez, a hipérbole se
encontra em qualquer livro do autor, criando constantes Eis a quintessência do universo mí(s)tico de José
alogismos. O pe. Tibúrcio, o coronel Antônio José Nu- Alcides Pinto. Um universo capaz de fundir santidade e
nes, pe. Anastácio e seu escravo Damião, João Pinto de loucura numa só visão, capaz de transformar o orgulho
Nnaria e todas as outras personagens são descritas com em humildade e a maldição da espécie na mais com-
um exagero por vezes caricatural. Entretanto, é no em- pleta bem-avenlurança.
prego da hipérbole que o escritor atinge o auge da ex-
pressão artística. As melhores cenas são presididas por

70 71

4
I

A Humonizoçõo do Demônio

't A desmitificação do demÔnio por


-
meio da afetividade. 2 A comunicação
-
com o inÍerno pelo poder da invocação.
3 O progresso em vez da fé e a re-
-
volta do homem no inferno da poluição.
4 O determinismo falso porque huma-
-
no. 5 Os mitos criados pelo absurdo
-
no mundo da morte e da loucura. 6 A
-
morte associada ao místico numa visão
grotesca e a desvalorizaçáo humana.
1 A versatilidade de José Alcides Pinto já o fez in-
-
cursionar por quase todos os gêneros literários, inclusive
no teatro. Sua única peça, intitulada Equinócio, é um
misto de sátira e comédia e, por suas qualidades cêni-
cas, alcançou ultimamente grande sucesso, quando le-
vada ao palco pelo elenco da Comédia Cearense, sob a
rlireção de Haroldo Serra. Não iremos realizar uma aná-
lise dessas virtualidades ou dos defeitos que apresenta
para um diretor ou ator 'de teatro, porque assim fugiría-
,mos bastante do plano traçado para o nosso objetivo. E
se aqui nos detemos um pouco em seus elementos é por-
que encontramos material que nos leva a compreender
melhor o mundo místico e satânico do autor.
De fato, em Equinocio José Alcides perdura na ta-
refa de povoar de demônios seu universo literário. Con-
tudo, os demônios agora são tratados de forma diferente.
Não parecem macabros e ameaÇadores como os verdes
abutres mas, ao contrário, se esÍorçam por eÍetivar o
bem e angariar a amizade e simpatia dos homens. São
diabos alegres e espirituosos, que não causam medo às
pessoas e faze,m que estas se rejubilem ao sinal de sua
chegada.
Estamos diante de uma peça onde o demônio até
certo ponto é desmitificado e se torna humano. E esta
desmitificação gera a alegria do homem, ao descobrir
que o diabo não é tão mau ou tão feio quanto pintam.
Itluito ao contrário, ele está pronto a ajudar a qualquer
pessoa e quase nada deseja em recompensa.

75
2 Vejamos como arma o autor o jogo de tensões e justiça e o desenvolvimento. Entretanto, com pouco tem-
-
conflitos que organizam a trama. Poucas personagens po, o povo se irritará, não se conformará com o traba-
compõem a ação e, entre elas, Armanda e Joaquim sus- lho bem remunerado e todos os recursos para o bem-
tenta,m os nós principais. estar coletivo proporcionados pela administração muni-
Arrnanda, irmã de OIga, é dona de um temperamento cipal. O povo exige igrejas e cemitérios. E isto logica-
impulsivo. Não se acostuma com a civilização e consi- mente não se concilia aos princípios satânicos.
clera as criaturas iguais a monstros. Abandona o curso Há, portanto, nas entrelinhas do texto uma concep-
de Direito no ano da formatura com a intenção de ir ção positivista mediante a qual o progresso matcrial 'deve
rflorar numa selva junto aos índios, em contato direto substituir a adoraçáo a Deus. Sem as preocupações com
com a natureza, atitude idêntica à que o autor tomou, a existência de Deus, os hornens teriam o máximo de
ao trocar a Universidade, o magistério superior, pela Ía- desenvolvirnento material e de justiça social. Mas o ma-
zenda que adquiríu nas regiões fantásticas da Ribeira do terialisrno entedla e Íorça uma reespiritualização, pois, no
Acaraú, onde se passa a ação dos romances da "Trilo- fundo, todos os pcvos são místicos e não podem viver
gia da maldição". sem adorar a Deus, o Senhor 'de tudo. Conseqüentemen-
O fantástico se insinua a partir do momento em que te, a mesma ironia ao progresso formalizada em, por
l-ola, segunda esposa de Joaquim e madrasta de Arman- exemplo, Entreo sexo.'a loucura/ amorte.
da e OIga, começa a injuriar o nome da primeira mulher Esta ironia às vezes se refere ao tema da poluição,
de Joaquim, considerada em vida uma visionária. Em um dos grandes mitos de nosso século. Joaquim, em
discussão com Armanda, Lola pressente a chegada do determinada cena, declara que o ar dos campos é mais
Diabo com a invasão 'da casa por uma onda de poeira, saudável que o das cidades, porque nestas a todo mo-
latidos e guinchos. Quando o Díabo chega, dando saltos mento se respira o micróbio dos mortos. O Diabo, então,
mortais, com grande alarido, diz que vai ocupar o lugar comenta qLle o ar do inferno é muito mais puro. No in-
cie Armanda, pols ela irá residir nas selvas. ferno não há o contágio dos corpos.
Após Joaquim descobrir que Arman'da tem poderes O exagero é evidente. Todavia, atinge uma 'das cha-
de invocar os demônios, afirma-lhe que gostaria de rea- gas pesadas de nr:ssa civilização, a de que o progresso
lizar um pacto, de oferecer ao Diabo o que Íosse possível acarreta a própria destruição do natural e puro. A polui-
em troca de uma fortuna. E, quando Satanás lhe apare- ção cria um ambiente tão mortífero, tão irrespirável, que
ce, ele propõe o que planejara. Satanás lhe exige, em as cidades se tornam infernais. Corno diz o Diabo' o ar
troca de toda uma cidade a ser edificada, sua mulher. do inferno é rnais puro.
Lola protesta mas em vão. E assim Armanda não neces- Em linhas gerais, esta é a mensagem 'de EquinÓcio
sita maís de sair de casa. gue assim se entrosa muito bem com as outras obras do
autor. Até os motivos e concepções aqui ele repete, re-
3 começa a enriquecer vertiginosamente e, velando mais uma vez as suas constantes idéias fixas e
- Joaquim
dentro em breve, fundará uma grande cidade junto a uma pondo em ação os mesmos componentes de seu universo'
jazida de carvão. A cidade será administrada pelo poeta
Massillon e terá toda a assistência dos demônios, sendo ty Desse modo, a concepção determinista da existên-
- marca de seu estilo presente em todos os seus ro-
cia.
um modelo de ambiente progressÍsta, onde só reina a
76 77
lnances, também ocorre em Equinócio. O casamento é Aliás, como dissemos, nem mesmo o diabo causa
uma Íatalidade. Um homem se une a uma mulher por- medo. Ele encarna valores positivos desejáveis pelo ho-
que assim estava traçado e ele nenhum poder tem para mem. Sua descrição é feita sempre em termos afetivos
rmpedir que as coisas aconteçam. e tudo dele, até o rabinho, deixa de lrazer a conotação
Todavia, esta é uma visão estritamente humana e do feio ou horripilante. Todos os que tratam com ele
talvez por isso falsa. O próprio Diabo ensina a Joaquim julgam-no generoso e simpático. Satanás é comparado
que o destino não existe, as coisas é que são inexplicá- mesmo a Cristo e se os homens o consideram perverso
veis em virtude do mistério da vida. A vida é um vazio é porque não o conhecem bem. Como declara Armanda,
misterioso, como afirrna Olga. E, diante desse mistérÍo, o Diabo é um bom camarada. Se falam mal dele, Íazem
a única explicação para o homem é o destino. Se ele o mesmo com Jesus Cristo.
conseguisse entender a vida, ter um ou dois sentidos a Poderíamos continuar estas considerações, enÍocan-
'mais para perceber a realidade menos limitadamente, as do outros aspectos do satanismo de José Alcides em
coisas não lhe pareceriam Íalvez submetidas à força do Equinocio. Mas cremos já ter dito o suficiente para opô-
destino. lo ao demonismo macabro e aterrador de Os verdes abu'
E chegamos a uma nova dedução. A impossibilida- tres da colina. São duas perspectivas contrastantes, dois
de humana de interpretar o absurdo da morte é respon- pólos de seu universo cujo centro é sem dúvida a morte
sável pelo senso do fatalismo ou visão determinista das e a loucura. A morte sempre associada ao místico, exa-
coisas. É também responsável pela criação dos mitos que minada em todas as suas facetas.
funcionam como uma espécie de consolo ou ponto de
apoio. AssÍm, todos os mitos e demônios são frutos de
uma visão fatalista e tudo volta ao mesmo ponto. Tivesse 6 Faremos um estudo pormenorizado sobre a morte
o homem outras possibilidades de encarar o mistério, os na- análise dos livros que organizam a trilogia "Te,mpo
demônios talvez nem seriam lembrados. dos mortos". Entretanto, a cada instante somos Íorçado
a entrar em alguns aspectos desse tema, tal a riqueza
de sugestões que ele apresenta em todas as produções
5 Acreditamos, pois, que o Íatalismo motivado peta do autor.
-
concepção do absurdo é o grande gerador do fantástico, Assim, om Editor de insônia, a morte é vista sob o
do místico e do de,moníaco em José Alcides pinto. Ele ângulo do grotesco, principalmente no conto "Avelino".
não se cansa de criar mitos, de ser atraído pelo extra- É'examinada sob o prisma do humor negro no conto "He-
sensorial. Em Equinócio, os seres desse mundo estranho, rança", em que as personagens nos parecem desuma-
fora da consciência humana, nem sempre são espíritos nas mas autêntÍcas como reÍlexos do real.
cjo rnal ou demônios. Às vezes, as invocações de Arman- Devemos frisar, porém, que José Alcides Pinto ainda
da são captadas por Íaunos, duendes das florestas, es- não conseguiu realizar-se plenamente como contista. De
píritos gaÍatos que, quando materializados, foram boê- qualquer modo, os contos até então publicados deixam
mios, fanfarrões ou índios. Ao se movimentarem, pare- transparecer aqui e acolá os seus componentes místicos.
cem uma legião de demônios mas não geram nenhuma Basta observarmos, por exemplo, a presença da morte L

a.preensão. como constante em praticamente todos eles.


d
78 I
79
I
Há pouco, citamos o conto l'Avelino", onde o misti- O animal poderia ser um demônio na óptica do nar-
cis,mo estampa a imagem do grotesco com a gradativa rador. Um demônio associado à loucura, como os verdes
destruição do cadáver de um beato por bichos que lhe abutres da colina. Um animal que corrói as vísceras e ater-
saíam dos olhos, nariz e ouvidos. roriza pelo olhar. Mas em essência esse mesmo demônio
O narrador exagera na apresentação do quadro, poderia ser o diabo humanizado e subserviente. Um sím-
atingindo o máxirno de irônico e horripilante. Faz uma bolo do desejo de fuga de uma vida sem nexo. Ou a cer-
crítica à hipocrisia, tomando como referencial um homem teza de, que tudo é uno, homem e demônio, deus e o dia-
externa,mente devoto e puro, mas no íntimo cheio de mal- ho, vida e morte.
dades. A crença no castigo dos céus, numa Íorça que
comanda tudo, é outro tema do conto. Avelino é carco-
mido em virtude de sua própria hipocrisia. Ele era, usan-
do a expressão evangélica, apenas um "sepulcro caiado".

Apareceram, também, piolhos moles e


gordos pelas orelhas. Brilhavam nas pesÍa-
nas. Fervilhavam debaixo das axilas. Saiam
pelos punhos do háb;to. (p. 27)

Nos demais contos, i'dênticos elementos costumam


ocorrer, fixando o terna da morte ou da desvalorização
humana. Há, neste sentido, um conto intitulado "Animal",
cirjo título já é fortemente indicial. Trata de uma empre-
gada doméstica cujos hábitos de bicho chegam a carac-
terizar um estado de loucura: a empregada lambe os sa-
patos do patrão, engatinha, rosna etc.
Neste contexto, imagens surreais provocadas pelo
,'nedo e quase próximas do fantástico são percebidas ern
passagens como a seguinte:

Ando, ultimamente, cheio de terror.


lmagino-me, à noite, possuído pelo animal
comendo-me as vísceras, domÍnando-me
com seu olhar surdo. Pálpebras fibrosas,
abanando-me o rosto. Dedos absurdos aca-
riciando pés, boca, tórax, à procura de um
carinho híbildo. (pp. 21-221

80 81
A Morte como Fotolidode

1 A visão determinista da existência


eo- apego ao sobrenatural.2 A estru-
-
turação Íormal de Estação da morte e sua
aproximação com os outros livros do
"Tempo dos mortos". 3 A densidade
- de uma an-
narrativa como significante
gústia interminável. 4 O flash-back e a
-
técnica da livre associação. 5 Um li-
rismo macabro mas essencialmente - hu-
,mano. 6 Um fatalismo estranhamente'
cristão, um- passo a caminho do fantás-
tico. 7 O misticismo na forma do mi-
- o
lagre e sentimento paradoxal de der-
rotismo.
1 Estação da morte é o primeiro livro escrito com o
-
intuito de compor a trilogia "O Tempo dos mortos". Aí
já se vêem anunciados os títulos de outros dois livros
(O robô fam;nto e O segredo) que não chegaram a ser
escritos e/ou Íoram substituídos por O sonho e O enigma.
O autor distancia-se da maturidade literária revela-
da em Os verdes abutres da colina, mas consegue estru-
turar uma obra de características profundamente huma-
nas e universais. Trata-se, como bem assinala o crítico
Assis Brasil, de um "romance sofri'do, cuja linguagem ex-
prime o mundo de alguns personagens no anÍiteatro da
morte: Um hospital."
Nota-se, no livro, em primeiro plano, uma técnica de
apresentação, usada, outrossim, em O sonho. Consiste
num recurso descritivo através do qual o escritor pre-
tende familiarizar o leitor com um ambiente de depressão
e pavor perante o fantasma da morte. O hospital é visto
Íiguradamente como um monstro que devora as pessoas,
um monstro que nunca se satisfaz. São imagens bem su-
cedidas as que José Alcides Pinto consegue produzir e
;á suEerem uma cosmovisão determinista da existêncía.
Os fatos acontecem porque devem realmente acontecer,
Ninguém tem o poder de transÍormá-los, já que tudo é
traçado pelo Destino. A vida humana não guarda nenhum
sentido diante das forças misteriosas que podem de uma
hora para outra extingüi-la. Tudo existe apenas para con-
Íirmar o absurdo, o inexplicável, o confuso. E é talvez a
inaceitação dessa verdade que faz o novelista Íugir para
o domínio do Íantástico, buscando apegar-se ao sobre-
natural para tornar-se um pouco menos inseguro. Daí re-

85
sulta naturalmente em toda sua obra uma característica' encontra-se abalado pela cena que presenciou e nega-se
contrastante: a inaceitação da idéia de morte e a certeza a dizer qualquer coisa, antes da hora da morte' Depois,
de outros planos 'de vida. pe. Hugo visita o engenheiro que construiu o hospital,
o famoso Dr. Brás, personagem também de O sonho e
2 * Quanto à sua organização, o livro é dividido em C enigma. O construtor está morrendo e pede orações
duas partes intituladas respectivarnente "O hospital" e para que um milagre aconteça.
"A morte". Combinando-se os dois títulos, tem-se "Hos- Também queremos destacar o capítulo sobre o des-
pital da morte", expressão que já conota a ironia e pes- penseiro, herói de O enigma. Já ficam delineados alguns
simismo do autor diante de sua temática preferida: o traços que serão desenvolvidos oo romance nele basea-
absurdo da vida humana. Todavia, o termo "hospital" é do. Por exemplo: o namoro com a lavadeira, o ambiente
substituído, com vantagem, pelo vocábulo "estação" para de trabalho caraclerizado pela praga de ratos que des-
,:onotar uma parada na estrada da vida. O hospital seria tróem as provisões, o molho de chaves fechado na mão,
a estação (parada) Íinal, a última oportunidade para se a referência à filha da lavadeira etc. O capítulo guarda
rneditar a respeito do absurdo da vida e da morte. E é características de um conto que mereceu expandir-se em
justamente isto que faz o narrador-personagem, ao longo romance. Em essência traz quase tudo o que posterior-
do romance: ele reÍlete amargamente sobre as pessoas, mente seria apresentado. Tiramos, pois, a conclusão de
as coisas e as idéias. que Esfagão da morte contém embrionariamente os ou-
Ainda com respeito à estruturação da obra em si, tros dois livros e muitos que poderiam também ter sido
nota-se de imediato que, à semelhança de Vldas Secas, escritos.
cs capítulos são titulados e alguns constituem verdade!- É interessante ressaltar que, por esses dados, os ro-
ros contos, perfeitamente destacáveis do contexto nove- mances que compõem a trilogia "Tempo dos mortos" se
lístico. Assim é o primeiro: um doente, fingindo dormir, situam na mesma Íaixa cronológica, na mesma época, ou
assiste à relação carnal de um médico do hospital com seja, no ano de 1964. Com eÍeito, nos três livros há refe-
Alda. O cirurgião julga o doente clinícamente morto e, rência direta à cena dos ,momentos agÔnicos do enge-
por isto, não vacila em apossar-se sadicamente da mu- nheiro, o que, sem dúvida, garante uma certa unidade
Iher que, é fácil presu,mir-se, sem dúvida é esposa ou de ação, em prejuízo da autonomia de cada um dos ro-
amante do moribundo. Na descrição da cena, observa-se mances. Apenas parece que em Estação da morte a açáo
uma ironia quase machadiana. O doente apenas finge que se processa um pouco depois do que nos outros roman-
dorme, mas o cirurgião garante a AIda que não há pro- ces, uma vez que o Dr. Brás já é apresentado como mor-
blemas. Alda, porém, receia que esteja sendo observada, to. (CÍ. p. 108) Mas não só a época é coincidente. O am-
teme as conseqüêncías futuras. É nesse momento de ten- biente é também o mesmo, isto é, o Hospital dos Servi-
são que a ironia chega a provocar o riso do leitor: ati- dores do Estado, no Rio de Janeiro. Os mesmos quartos,
ram um lençol no rosto do paciente, clinicamente morto, as mesmas camas, tudo é igual nas três obras'
para que ele nada veja! (Cf. p. 18) Com referência à caracterização do tempo cronoló-
No capítulo segundo, entra em cena o capelão do gico, há em EsÍação da morte indicaçáo precisa de que
hospital, o mesmo que estará presente nos outros doÍs a ação se passa em 1964, quando o narrador alude à si-
romances da trilogia. Vem confessar o doente, mas este tuação política do Brasil. (Cf . p. 74 e ss.) Entretanto,
87
B6
I
esta data funciona como um referencial de pouco valor, 3 Voltando à análise da técnica .de estruturaçáo, ob-
à medida que a obra adquire marcas de atemporalidade. -
servamos que em Estação da morte a ação se processa
Por outro lado, a visão do tempo interior das personagens muito lentamente. Há muita densidade narrativa, o que
passa a conotar quase uma parada no Íluxo temporaÍ, estabelece um clima de certa monotonia, perÍeitamente
como se tudo estacionasse. condizente com a temática e o ambiente enfocados. O
Trata-se de uma ação cujo tempo é um presente narrador vai transmitindo os elementos que comporão a
continuado, um tempo que não parece Íluir. A persona- estória em pequenas doses. E até os dados indiciais, res-
gem tem a sensação de que o relógio parou e o seu dia ponsáveis pela interpretação da obra, pretendem deixar
subjetivo, por exemplo, na véspera da operação, deixa ambigüidades no leitor e só muito depo;s são confirma-
de ter vinte e quatro horas para dar a impressão de sé_ clos. Assim, somente na página 69 é que se tem a cer-
culos de angústia. Esta indicação de que o tempo esta- teza de que Alda é mulher do narrador.
cionou encontra*se repetidas vezes no romance, confi_ Abrimos parênteses para mostrar ain'da como há
gurando uma densidade de açâo raramente conseguida constantes intersecções nas produções literárias de José
na ficção brasileira. Alcides Pinto, mesmo com as obras que não se encaixam
AÍirmamos há pouco que a coincidêncía de tempo numa das trilogias. Dessa forma, o nome da esposa do
e espaço prejudica a autonomia das três obras. Apesar rrarrador-personagem em EsÍagão da morte é o mesmo
disso, há algumas características Íormais que nos permi_ em O cr,'ador de demônios. Nesta novela, o narra,dor é i

tem considerá-las três narrativas distintas, embora per_ um nordestino que sempre está comparando o sertão com
Íeitamente imbrÍcadas pela temática. Assim, por exemplo, o ambiente do sul. Alda, sua mulher, enlouquece depois t

ao contrário das outras duas, EsÍação da morte é uma de ter perdido em três semanas o pai, a irmã e sua única
narrativa em primeira pessoa. O narrador-personagem é tia. AIda se suicida, deixando uma carta para o advoga-
um doente hospitalizado, sem nenhuma esperança de do em que pedia o internamento de seu marido num
cura. O foco narrativo escolhido pelo autor oÍerece des_ l"rospital de loucos.
sa maneira um traço de confessionalismo ou intimismo A ação, por conseguinte, tem neste ponto alguma di-
que possibilitam um tom menor, uma espécie de desa_ ferença em relação ao romance EsÍaçâo da morte. Mas
baÍo lento, conÍigurando uma personagem em estado de há muitos pontos comuns. Assim, O criador de demônios
aniqu!lamento total. e tarnbém uma narrativa em primeira pessoa, caracteri-
[t/as há muitos elementos comuns nos três roman_ zadamente com Íeição de diário íntimo, à maneira de
ces. Até mesmo cenas se repetem com as mesmas per- Li'ma Barreto. As frases são entrecortadas, como a indi-
sonagens ou com outras. Assim, o protagonista de Esta_ ciar soluços do narrador, há constantes rupturas dos pa-
ção da morte enamora-se de lolanda, uma servente do drões sintáticos e ausência de paragrafação. Ao contrá-
hospital. Flepete-se o mesmo com o herói de O sonho, rio de todos os outros livros, O criador de demônios se
como teremos ocasião de assinalar. A mesma paisagem estrutura num só parágrafo, corno se a extensão quilo-
á também freqüentemente descrita. E a reÍerência direta métrica deste paráçiraÍo fosse signiÍicante do próprio es-
à torre do relógio (Cf. p. 69) já prepara o leitor para o i

tado de angústia interminável. Angústia que gera a lou-


papel de personagem que o relógio da Central desempe- cura como escape ou sobreposição a uma realidade con-
nhará em O sonho. ilitante consigo mesma.
8B 89
I

I
lgual atmosÍera existe nos livros do "Tempo dos mor- e de outras personagêns ó qi:e se delineia a cena de seu
tos". Em O criador de demônios, entretanto, a loucura ingresso no hospital, acompanhado de sua mulher. O lei-
traz conotações diversas, já que o sistema proposto é tor, então, passa a viver o drama do doente, a vestir o
um universo de terror em que o fantástico constitui a pijama, a sentir-se esquelético, a odiar a esposa que
nota prevalente. As crises alucinatórias do protagonista, zoir:rbou de seu aspecto Íranciscano.
de vez em quando, estampam imagens surrealistas que Outro exemplo de f/ash-back é a descrição do pri-
definem telas marcadas pelo pavor em face do tétrico e meiro encontro com a turma de internos da enÍermaria'
cio horripilante. Citemos uma cena em que o realismo E assim a narrativa se prccessa numa linearidade fre-
cru do autor consegue bem fixar um quadro de terror: qüenternente cortada pela intromissão de fatos ocorridos,
cujo eÍeito maior será o de pÔr o intérprete atento para
Foco a lanterna. Descubro Uma urna certos dados indiciais necessários a uma boa análise e
Íunerária. Era indiscutível a presença de compreensão.
vida naquele lugar pelo menos durante a lVIais um traço Íorrnai que bem deÍine o Ciscurso nar-
metade de um século. O ntofo caiava as rativo de José Alcidos Pinto é o emprego da técnica da
paredes. A espessura do pó no chão. A le- associação livre. Quase sempre não chega a realizar a
g.'ão dos morcegos. O pó, sobre a urna, era enumeração caótica ou inconseqüência, tão presente nos
de camadas Íão densas como se Íosse de- Íiccionistas modernos. Como tivernos ocasião de assina-
positado de propósito. Depois de remover Iar, este procedimento é, via de regra, marcado pela es-
a última camada dei com uma chave. I . . . / tiuturação de frases curtas, às vezes monorrêrnicas, as-
Levantei a tampa de uma vez, partindo as sociadas semanticamente na base de termos cujos sig-
dobradiças enterrujadas. Uma máscara mor- nificados mantêm alguma relaÇão de semelhança, conti-
tuária jazia no tundo. (p. 62) güidade ou ímplicação.
Comentemos logo um exemplo bastante expressivo:
Tudo isto estabelece um Íeixe de impressões que
põem o leitor em contato direto com o estranho e fixam O relóg:o da Central acende os mosfra-
a dens;dade narrativa da novela. Em Esfação da morte dores, os ponfelros gigantes abertos em
a densidade ocorre em outro sentido, mas com o mesmo cruz. Cristo crucificado. Calvário. (p" 73)
objetivo: o de descrêver um quadro de depressões ines-
gotáveis, enquanto houver vida. Bela imagem. A llvre associação engendrou a me-
táfora rica de aspectos sensoriais e aÍetivos. Nías a me-
4 Quanto à apresentação e distribuição dos núcleos táfora imediatamente se transÍormou em símbo!o: o re-
-
cia narrativa, percebemos uma certa linearidade de ação, lógio representa metonimicamente o tempo e, portanto,
Ínâs o autor utiliza com freqüência a técnica do tlash- a duração da vida. Dentro da própria vida (o relógio) está
back com bons resultados expressivos. Por exemplo, em a morte (os ponteiros em cruz). A morte como sofrimen-
Estação da morte, só depois de colocar o leitor bastante to, como condenação (Calvário).
familiarizado com o hospital, descrevendo atitudes das Esta sensação de estar condenado é devida ao am-
atendentes e narrando parcelas da vida do protagonista biente do hospital e se repete em muitas passagens dos
90 91
antíteses. Um lirisnio macabro, se assim podemos dízer,
três romances. É uma sensação de espera constante do mas essencialmente humano. Observemos a conotação
momento Íinal, do último suspiro, espera em que o doen-
i's tempo de de angústia, que nos lembra Dostoievsky, na passagem
te tem que aprender a matar o tempo
braços abertos em cruz". - seguinte:

A técnica da livre associação se encontra pratica- O tempo passa ou não passa. Lá Íora
rnente em todas as obras de José Alcides. Observemos
a gente envelhece sem sentir, mas aqui, dÓi
dois exemplos retirados de O criador de demônios: como uma terida. Uma Íerida aberta no co-
a) Movo-me com tanta lentidão, como se o tem- ração. Se se pudesse escolher, optar, se se
po não contasse. lvlatusalém. (p. 21) pudesse.,. Se não exÍsÍlsse o regulamen-
to, decidir-me-ia por um quarto situado nou-
b) Entretanto, arrasto-me Ierdo, apesar das asas. tro ângulo, onde a ianela não abrisse para
Ícaro. (p. 59) o tempo.
Em ambos os casos, os mitos de Matusalém e de
O tempo contado nos pontelros do re-
lôgio, mostradores acesos. lvlas ninguém po-
ícaro, mitos da longevidade e do desejo de voar, respec-
de escolher, optar. O regulamento proÍbe.
tivamente, se associam aos enunciados anteriores por um
O regulamento, mais importante que o dire-
processo de paraÍantasia. Por vezes, o recurso se liga a
tor. Aqui acabam-se os direiÍos do cidadão;
outros procedrmentos até mesmo gráficos, como a cena
que automaticarnente recorda uma página de Vladimir
a liberdade. O regulamento prescreve re-
pousa; o regulamento impõe, ordens de rei,
l{abckov, aquela em que o nome de Lolita é repetido em
ditador poderoso. (p. 74)
todas as variações. Eis a passagem de O criador de de-
ntônios:

Por aí se vê que o hospital é para o protagonista


Excitação insuportável. lsa! /sal isaaa
uma espécie, de "casa dog mortos", uffi antro de angús-
aaa. . . Perco f orças. Fôlego. Letras for-
tia, onde o tempo pesa como chumbo. O realismo das
mam escala musical. Sobem e descem: for-
descrições muitas vezes chega a ser tão Íorte que pode
migas num terreno acidentado. Nuvem de
contaminar a mente do leitor de idéias derrotistas.
mosqu.tos zumbidores; lsaisaisalsaisaisaÍsai
saisaisaisaisaisaisaisarsaisalsaisa. (p. 50)
, Neste sentido, o capítulo intitulado "Angústia" é de
um lirismo pungente, quase sufocante. O doente, na vés-
pera de sua cirurgía, espera o tempo passar, olhando o
5 O conteúdo poético da imagem do relógio asso-
-
ciado ao Cristo na cruz traduz um misticismo aparente-
relógio da torre. Em tu'do, o sílêncio, o "pesado silêncio
dos mortos". E o vento uívando nos vãos do hospital. O
mente para'doxal, uma vez que conflitante com o senti-
cioente observa, espera, angustia-se. E essa angústÍa é
mento de desespero e inaceitação da morte. lvlas é sem
transmitida literariamente por uma série de recursos, en-
dúvida essa tensão, esse desequilíbrio, o que dá sentido
tre os quais se ressaltam as frases curtas, incisivas, e as
à própria vida das personagens. E assim o romance vai
repetições.
ganhando lirismo através do poder das metáforas e das
oa
g2
I
t

De fato, o texto gira em torno das mesmas impres- branco. Retira-se silencioso. A lavagem mar-
sões: o silêncio envolvente, os mostradores do relÓgio cada para as duas da madrugada. O tan-
acesos, o uivar do vento. Tais impressões se repetem tasma dá as palavras, ordens de rei, dÍta-
fanto, que o quadro de angústia se estabelece bem na dor poderoso. (p. 68)
mente do leitor.
Ao fim do capítulo, para conÍigurar-se mais o sofri- O capelão é também símbolo da morte, é sinal de
mento de Artur (nome do protagonista ignorado pelo lei- mau presságio. Quando um doente vai ser operado, e an- I

tor até a descrição dos momentos que antecedem à cena tes consente em confessar-se, com toda certeza morrerá
aa cirurgia), sua mulher tenla revelar-lhe o adultério que na mesa de operação. A batina preta do pe. Hugo o trans-
praticou. Contudo, ele, de tão angustiado, torna-se apá- Íorma num "Íantasma vestido de preto" ou num urubu, I
tico. E perdoa a esposa, na certeza de que amanhã não como se lê em algumas Passagens.
estará mais vivo. Até as enfermeiras são percebidas como seres de
um universo de assombrações. Novamente utiliza o nar-
6 A morte é, dessa maneira, vista como uma fatali- rador a técnica da livre associaçáo, com a superposição
- O hcmem, um ser insignifícante, que nada pode
dade. da imagem imponderável do Íantasma que desliza:
eontra ela. Mas o fatalisrno do narrador é estranhamente
místico, como já tivemos ocasião de frisar. O homem é O vulto branco da enfermeira de plan- I

I
um joguete nas mãos de Deus. Quando Artur grita de- tão desliza pelos corredores: f antasma.
I
sesperadamente que não quer nem po,de morrer, pe. Hugo (p. 117)
friamente responde que a existência independe da von- i
tade humana e que há uma força superior regendo o Cremos que esta mesma interpretação é válida para I

universo. outros fantasmas do universo literário de José Alcides.


Esta concepção de morte gera o medo, o pavor, a Os módicos e as enfermeiras, pelas roupas brancas, e o t

assombração, resuitando daí até o receio .de pronunciar capelão, por sua batina preta, se transformam surrealis-
a palavra "câncer" (CÍ. p. 67), como se a "palavra terrí- ticamente em fantasmas, donos dos destinos dos homens
vel" trouxesse a própria doença. A morte é tão inexpli- que aguardam a morte. Citamos um trecho de O enÍgma, I

r,ável que o homem não pode conformar-se com a idéía onde encontramos muita aproximação com os que acima i

cle sua ocorrência. E nessa concepção configura-se um transcrevemos: I

mundo de mitos, de conflitos interiores, de visões. Fa* I


I

cilmente se poderia'dar um passo em direção ao fantás* Passam os fantasmas, em pares, muita


tico através dessas visões. Até o médico lembra, pelo
l
próximos, às vezes com o braço sobre o om'
seu traje, a palidez da morte. Ele, ao mesmo tempo que bro uns dos oufros, demonstrando a intimi-
representa uma esperança, é o instrumento do terror, um dade da amizade. Desaparecem num mur-
sÍmbolo da morte. múrio quase inaudível, ou se escoram nas
colunas, deixando ver apenas o contorno de
Retira-se o fantasma que dá ordens. O suas imagens. Outros fantasmas chegam,
fantasma Írio, gelado, o fantasma vestido de voam e volteiam em torno dos primeiros pa-

94 95
i

res,' e, de súbito, uma multidão de fantas- simples demais; era so tocá-lo com os de-
mas enche o pát;o, r??as suas vozes são como dos, apalpá-lo como fez São Tomé. Os ci-
o murmúrio da brisa na folhagem da árvo- rurgíões puderam f azer isso. Eles viram, to-
Íe. Um Íantasma, vestido de preto, pode caram, recanheceram, mas toi tão íorte a
quebrar, de repente, a paz reinante. As per- verdade que ticaram atordoados, cegros, e
nas ÍorÍas e trôpegas espantarão a farân- esse des/urnbramento, ao invés de reanímá-
dula dos fantasmas brancos, que logo voa- los, causou-lhes grando medo. Preferiram
rão pelas escadas ou tomarão o elevador silenciar. Mas, o milagre gritou em Íodas as
mais próximo e alcançarão as enÍermarÍas. direções e se fez rçconhecer em todas as
(pp. 71-72) partes. E pôde ser comprovado uma sema-
na depois. Pode ser ainda por rneses, anos
Neste contexto, tudo passa a ser indício ou instru- seguidos. Não há mais Íerida alguma no duo-
mento de um poder desconhecido, pronto a qualquer ins- deno, dores, incômodas; apenas a cicatriz
tante para destruir a vida. na pele, o sinat nítido que o milagre deixou.
{p. 177)
7 Mas a mesma força misteriosa que esmaga o ho-
- pode
.rem salvá-lo milagrosamente. Desaparece então a 'É curioso como, ao ínvés de fechar o livro com uma
revolta da personagem com o surgimento do misticismo nota de otimismo, já que tinha ocorrido o milagre, trans-
na forma do milagre. Artur ia ser operado, crente de que nnite o narrador em seu último depoímento palavras .de
morreria. Todos os médicos e,stavam certos disso. Mas amargura. Justamente para confirmar que nem mesmo o
ele ainda nutria alguma esperança muito remota de so_ rlilagre dá senticlo à vida humana. E assim o sentimento
brevivência e, como encarava o pe. Hugo como símbolo de derrotismo persiste corno a reconhecer a insignificân-
da própria morte, não consentÍu em conÍessar-se. E acon- cia do homem diante do insondável, do misterioso, do
tece o milagre. A reflexão do protagonista é de crença sobrenatural.
total numa "Íorça extraordinária, desconhecÍda,,.
Vejamos como o misticismo toma essas conotações
no trecho abaixo:

O tempo teria que parar por um mo-


mento um momento eterno, para que o
milagre-aconÍecesse. E o milagre aconteceu.
O milagre triunfou contra a heresia dos mé-
dicos, de todos. O milagre que iá se havia
prenunciado na luz interior dos 'grãos de
arroz, nas flssuras rosadas da carne, no co_
lorido da abóbora, nas cores da maçã, no
brilho cintilante dos talheres. O mitagre era
,96
97
O Enigmo do Amor e do Morte

1 A morte: sonho e enigma. 2 A ex-


-
pressão -
sensorial em busca do realismo.
3 A corporificação da morte. 4 O
- entre os abismos da vida e da-mor-
amor
te. 5 Um cenário monótono de objetos
-
sem essência. 6 A solidão: apatia dian-
te do inevitâvel. -7 A loucura: única de-
fesa contra o enigma.-

I
1 A trilogia "Tempo dos mortos' se fecha com um
-
romance que segue o mesmo conteÚdo temático discutido
na análÍse anterior. O próprio tÍtulo já o aproxima dos
outros dois livros, uma vez que os termos possuem es-
feras semânticas bastante fronteiriças. Todo sonho não
deixa de ser um enlgma, na medida em que se situa na
zona do estranho e inexpllcável. De igual torma, a morte
é um enigma, um Íato incompreensível para a inteligên-
cia humana. Vê-se, pois, que, a partir dos títulos, os li-
vros formadores da trilogia estão indissoluvelmente rela-
cionados.

A mesma concepção da morte é retomada para afir-


mar mais uma vez o caráter enigmático da vida humana.
E esta, sendo um enigma, nada mais é do que um sonho.
no sentido de que o real perde toda a sua importância e
cigniÍicaçáo. De tudo, a nota insistente de um pessimismo
derrotista seguída da negação dos valores humanos.
Num confronto dos três livros, "diríamos que EsÍação
da morte é o que transmite mais amargura, mais pessi-
mismo. É um romance onde o trágico se associa ao irô-
nico. O sonho é o mais lírico. O tema da morte é explo-
rado alegoricamente, à base de sugestões e impressóes.
A enigma é o mais objetivo, talvez por isso o mais rea-
lista, onde os procedimentos descritivos se impõem.

2 Assim sendo, alguns recursos de linguagem colo-


-
cam este último romance num plano diverso, sobretudo
por uma intensificação dos aspectos imaginativo-senso-
101
riais que transmitem, num realismo cruel, o horror do Ele é descrito na imobilidade de sua postura, a Íu-
hospital e da morte. mar um charuto até queimar os lábios, a inquietar-se com
Um leitor impressionável por certo não lerá o livro os ratos Íamintos e o cheiro ativo de Írutas podres' O es-
inteiro, como tivemos oportunidade de constatar entre critor aproveita todas as sensações visuais, olfativas ou
alunos nossos. De Íato, o poder de persuasão do autor cinéticas, em busca do realismo mais fiel, para descre-
concita o intérprete a viver um ambiente que só causa ver seu herói como peça de um ambiente'
rspugnância e, neste contexto, uma concepção niilista E assim o Despenseiro, embora guarde característi-
da existência é comunicada em to.da a sua profundidade. cas gerais, comuns a todos os indivíduos que executam
O valor máximo da obra reside nos processos sen- e sua profissão, embora seja realmente um tipo, logo al-
soriais habilmente utilizados através da escolha de uma cança marcas de uma personagem dinâmica, rica de co-
adjetivação adequada e da repetição, quase irritante, dos notações.
mesmos recursos verbais ou estruturas frasais.
Dessa Íorma, a partir da página de apresentação que, 3 Falamos que a preocupação em valorizar os ele-
à semelhança dos outros dois romances, antecede à in- -
mentos sensoriais, conferindo à obra um cunho nitida-
triga, o analista sente o vigor da adjetivação e dos pro- mente descritivo e impressionista, é a constante em O
cessos imagísticos em, por exemplo, "dedog nervosos,', enigma. E essa valorização chega ao ponto 'de transfor-
"h-rorrões de tinta negra e manchas disformês", "dedos mar a morte de nome abstrato em concreto, por meio
grossos, trancados como ferrolhos", "o suor borbulha nas do animismo ou emprego 'de verbos dinâmicos' Ela, pa-
que
axilas" etc. Não se trata de uma adjetivação de caráter radoxalmente, é um ser, um ser estranho e ÍatÍdico,
encantatório, peculiar à literatura romântica. Aqui o adje- atemoriza os homens e toma o lugar deles e existe neles:
trvo, de carâler óptico e descritivo, contenta-se com me-
dir e delimitar uma situação, mostrando provavelmente o A morte passa diarÍamente à sua Írente,
caminho difícil de uma nova arte do romance. envolvida em tençÓis muito alvos, fechados
Por outro la,do, a apresentação motiva a leitura da em seus embrulhos calados, misÍeriosos e
obra pela própria alusão ao enigma da carta que o Des- sern o menor sentido. (P. 1B)
penseiro conserva e teme em ler integralmente. Ele será
o centro da narrativa, não só como personagem-tipo mas A morte é como uma criatura que Pas-
principalmente como condutor de uma série de símbolos sa, um vulto qualquer, não faz muita dife-
subjacentes a uma intriga quase nula. rença. Apenas vai deitada, sem força para
Seus traços físicos e morais já foram em essência se mover com os PróPrios Pés. (P. 19)
objeto de um dos capítulos de, Estação da morte. Agora,
contuclo, torna-se relevante, além do tipo que enca:,na, a Ou então, como dissemos e repetiremos a propósito
ccncepção da eÍemeridade da vida e a conseqüente falta da caracterizaçáo do Dr. Brás, ela é um inimigo inven-
de nexo em todos os atos humanos. Ninguém melhor do cÍvel que parece divertir-se com a desgraça humana'
que um homem "acostumado com a morte, vendo-a de A imaginação sensorial do autor é' porém, mais agu-
perto, tocando-a com os próprios olhos" para transmitir çada na personificação dos detalhes ambientals. Aqui en-
esta mensagem. tra em jogo uma série de recursos sinestésicos e de cru-
102 103
I
I

zamentos alógicos de adjetivos com


substantivos que de_ ingênua, pois, enquanto ele ridiculamente tenta sobrevi-
finem precisamente uma atmosfera tétrica
em que a sen- ver, a morte o espreita na poltrona vazia, ao lado da ca-
sação do cheiro ativo do io.dofórmio e âs
conotações do beceira de sua cama. Nenhuma consideração pela inte-
branco predorninam. Com efeito, em quase
ginas, reitera-se, intensificando-se, a
todas as pá_ ligência privilegiada, pela capacidade criativa do enge-
sensação Cos odo- rrheiro.
res fétidss, do cheiro de éter, e a referência
ao branco, Frisa o narrador ironicamente:
sempre associado à mcrte, nruitas vezes em
expressões
depreciativas, como .,embrulhos brancos,,, que
aÍirmam Logo mais será um deÍunto um de'
a própria desvalorização do homem em face do desco-
Íunto comum como os dernaís
-embrulha-
rihecido. -
do em lençois muito alvos e exalando um
De igual modo, consegue o narrador, através
do po_ odor violento de iodofÓrmio. Será empurra'
der da metáfora, Íocalizar o vaivém das enÍermeiras
con- do para a necrópole, com impacto, por cau'
cebídas como instrurnentos da própria morte.
Lances des_ sa do desnívet do calçamento, como os de-
critivos dinâmicos se sucedem, criando para o Íeitor
uma mais, com a d,'Íerença de que o corpo será
imagem irônica do ambiente, o que se pode
constatar na colocado numa maca de rodas macias, de
cena da morte do Dr. Brás
borracha, das que se usa/n para os enÍer-
mos que ocupam os apartamenÍos. Mas não
. Ás abelhas fnajs assan hadas voltaram
às colmeias, dispersaram_se em sua azáÍa_
haverá outra diterença. (p. 64)
ma rotineira. Mas não se pôde evitar que o
4 Mas, se bem que a idéia da morte se torne o cen-
zunzum de suas asas ficasse modulando
no -
tro de tudo, o amor se intromete nas preocupações do
espaÇo um nervosa concerta, tudo ind..can-
Despenseiro. EIe pensa em Joana, a filha da lavadeira, e
do que elas esperavam, apenas, um peque_
isto é um índice para se supor que a carta enigmática
na descuido do regulamento, e na primeira
se relacione com um caso amoroso entre os dcis. Seria
apürtunidade se dariam ao ataque. (p. 60)
uma ingenuidade se o narra'dor confirmasse expressa-
!

inente esta suposição, porque todo o caráter de ambi- I

A morte do engenheiro se transforma, portanto, num


güidade, condizente com o próprio título do romance, sê I
dos motivos centrais do romance. Considerado
um gênio esvaziaria repentinamente. I
pela precisão dos cálculos e previsão
dos pormenores O Despenseiro recorda-se da filha da lava'deira, pen-
I
i

menos relevantes, o Dr. Brás não poderia logicamente I

fulminado pelo Íantasrna da morte como os


ser sa na possibilidade de realizar com ela uma vida em co-
demais ho- mum. Há muito tempo, fora amante da lavadeira, época
rnens. Esta idéia curiosa põe o leitor novamente
tato com o alógico na vigilância que o engenheiro
em con_ em que nutria por Joana uma afeição paternal. Agora, po-
pas_ rém, essa afeição tomava outros rumos, Joana estava
sou a prestar, a Íim de vencer a própria morte. gie
vigiava por todos os cantos do quarto, não permitindo
a rnoça, preparada para o amor, e talvez desejasse cons- t

que ela surgisse inopinadamente. [Vlas a tituir com ele uma família" Vinte anos 'de rotina, vendo I

fatalidade não os mortos serem transportados nas macas de rodas que l

estabelece distinções. A vigilância do Dr.


Brás é inútil e rilham irritantemente, poderiam ter outra sorte. O Des-
104
105
i
i
I
penseiro vê que sua vida não teve objetÍvo nern signifi- rnorava. O leítor apressado em conhecer a estória po-
cação e só um amor simples e puro, como o que alimenta deria saltar as descrições, muitas das quais de caráter
pela Íilha da lavadeira, seria capaz de lhe dar algum puramente ornamental. lsto não acontece com o novo ro-
entusiasmo. mance. Se o leitor desprezar as descrições, corre o risco
de chegar ao fim do volume sem nada ter li'do.
A morte, como a v:da, não fazia senti- A preocupação do e,scritor é, pois, a de apresentar
do; mas o amor, enÍre esÍes dois ablsrnos, os objetos e gestos, sem preocupar-se com seu signifi-
aparecia como o anjo da guarda, fulgla ale- cado. Os objetos e gestos se impõem por sua presença
gre, radiante como uma estrela ao nascer e não por sua essência. Eles estão aqui antes de serem
da noite. Era por essa coÍsa misteriosa e tlualquer coisa. E assim estarão inalteráveis, presentes
inevitável que o homem lutava e procurava para sempre e como que troçando de seu próprio sen-
dar sentido ao que não tinha sentido. (p. 39) tido. Os objetos podem perder sua instabilidade e seus
segredos, despojando-se dos Íalsos mistérios, da interio-
E, reÍletindo no amor, no amor Íatal como a morte, ridade suspeita que se convencionou chamar de "alma
ele permanece em sua cadeira cativa, fumando o seu romântica das coisas".
charuto. A imobilidade o obriga a pensar em todos os
detalhes do ambiente e é justamente neste ponto que o 6 Estas descrições, no caso do romance de José Al-
narrador alcança a maior autenticidade. Há uma riqueza - estabelecem um cenário de monotonia, intensifi-
cides,
de pormenores descritivos, mais do que em qualquer ou- cada pela repetição incessante dos mesmos aspectos.
tro texto realista. O herói se encontra diante das coisas Esta monotonia caracteriza a própria solidão humana. E,
mais simples e banais, como a chama de um isqueiro ou associada ao binômio amor x morte, a solidão parece ser
o papelucho de seda cinza que envolve o charuto. decorrência da própria morte, uma espécie de apatia di-
arrte .do inevitável. A certeza da morte e a falta de nexo
5 valorização do detalhe remonta a Honoré de
- Talrecebe
Balzac, novo tratamento em Flaubert e se torna
no amor levam o homem a um estado de solidão depri-
mente.
uma constante nos adeptos do nouveau roman. Alain Rob- Nc romance em análise, a solidão também se torna
be-Grillet, em defesa desse princípio, aÍirma que o lugar enigmática. Decorre da hesitação entre amar e esquecer,
e o papel da descrição mudaram completamente. A des- o que explica o medo de abrir a mão onde se encontra
ct'ição tinha a finali'dade de situar as linhas gerais de o segredo, a carta misteriosa. A mão fechada do Des-
um cenário ou de esclarecer alguns elementos particular- penseiro passa a ser símbolo de sua escravidão, de sua
mente reveladores. Pretendia reproduzir uma realidade prisão. Para libertar-se das idéias inquietantes, seria su-
pré-existente. Ao contrário, a tendência atual tem o ob- iiciente abrir a mão, distendê-la, espalmá-la "à frente da
jetivo de enfocar os objetos mais insignificantes, o que testa, afastando da mente o passado da mulher, e nunca
leva o leitor comum a não encontrar sentido nesta lite- mais voltar a fechar-se sob os elos, os nós dos dedos
ratura do olhar. No romance tradicional, o cenário se grossos e perros como ferrolhos" (CÍ. p. 37)
lornava a imagem do homem: cada móvel ou objeto de Apesar de tudo parecer tão simples, o medo impede
uma casa representava um outro eu do herói que nela uma decisão libertadota, o que pode ser interpretado,
106 107
nrais uma vez, como uma tentativa de penetrar na es- alguma coisa, se de repente tudo se reduz a cinzas? 'É
sência humana, de mostrar que o homem é um apavo- nessa perspectiva que a demência do Dr. Brás Íunciona
como um sintoma da revolta do homem face à impotência
'ado diante do real e se obriga a conservar todas as coi-
sas como verdadeiros enigmas. lvlesmo que ele se es- de agir contra os desígnios do além. O Dr. Brás trans-
iorce em sentido contrário, as coisas inexplicáveis se fe- Íorma-se, dessa maneira, em personagem-símbolo. Ele re-
cham em sua mão e a vontade é fraca para colocá-lo presenta a revolta humana decorrente do desejo incons-
rir.rre delas e tazê-lo Íeliz. ciente de atingir a imortalida,de no plano corporal.
São muitas as passagens utilizadas para comunicar
esta mensagem. Em todas, ressalta-se o pormenor sig-
- A defesa
7 contra este estado de coisas é necessa-
riamente a loucura. Pela loucura, o homem se transporta nificativo, a riqueza ou exagero na apresentação dos tra-
para um universo diÍerente, em que os Íatos do real per- ços que chegam a estruturar quase descrições caricatu-
dem sua signiÍicação. O fantástico facilmente,se instaura rais e irônicas. Citemos um lance da cena em que o Dr.
na visualização de seres estranhos, na percepção de vo- Brás eÍetua os cálculos para ludibriar a morte:
zes sussurrantes que, pelo mênos, não exigem explica-
ção lógica. O real se funde ao imaginário num mundo Armado de um esquadro, de réguas mi-
êm que os Íantasmas são percebidos juntamente com os limetradas, um bloco de papel quadricula-
acontecimentos mais rotineiros: do e uma caixa de lápis de Íodas as cores,
o engenheiro fez um levantamento completo
O vôo rasante dos fantasmas não lhe dos objetos do apartamento em que se en-
tirou também a atenção do firmamento. por contrava, depois traÇou linhas paralelas e ho-
um momento apenas, um momento fugaz, rizontals, linhas verticais e sínuosas, e trou-
pensou em arrumar seu futuro com a filha xe o papel para perto dos olhos e, com a
da lavadeira, quando sentiu o cheiro do ca- régua milimetrada, se pôs a íazer pontos
íé vindo da cozinha e observando um par que Íiguravam os obietos, e a lÍgar esses
de fantasmas passar, um apoiado ao ombro mesmos pontos a outros pontos, que se mul-
do outro. (p. 73) tiplicavam na supertície do papel garatuia-
do, numa proliferação incontida. (p. 65 e 6ô)
Assim ocorre com o Despenseiro. À custa de tanto
meditar sobre a falta de nexo da existência, ele começa
a dar sinais de alienação ,mental, a viver sob o ,'jugo de Paradoxalmente, porém, depois de vencer a morte,
uma força poderosa, como a de um gênio,,. (CÍ. p. a2) o Dr. Brás mandaria construir o seu próprio caixão e mor-
Simbolicamente, a mensagem é a mesma dos outros ro- reria. Jeria provado que o homem ,é capaz de tudo e
rnances do autor, ou seja, a de que só a loucura liberta cjono do seu destino. Só morreria quando quisesse real-
o homem deste mundo incompreensível. mente, nunca por força de agentes estranhos. Assim se
A alíenação às vezes se fundamenta na inaceitação conceberia a dimensão da verdadeira liberdade.
da morte como um fenômeno necessário e imprevlsível. Mas as doenças mentais também são interpretadas
Afinal, que sentido têm os desejos humanos de edificar à luz do satanismo do narrador. O Despenseiro traria um

108 109
demônÍo dentro do seu corpo, o mesmo demônio que
tomara conta de sua família, entrando no sangue de seus
antepassados. Seria uma outra tentativa de entender a
realidade caótica da mente humana, tentativa que, em Os
yerdes abutres da colina e João Pinto de Alaria, o autor
abraça com mais segurança para compor o seu universo
de duendes, monstros e, encarnações do Mal.

A LibertoÇõo pelo Sonho

1 O sonho no "Tempo dos mortos".


2 - A ave como símbolo da libertação
- ou de um desejo inconsciente de
total
destruição. 3 O mito da ave que vai
e volta. 4 -O sonho inconseqüente de
amar e a -monótona espera da morte. 5
Morte, sexo e loucura. 6 Uma visão
-surreal da morte. 7 -
As aberturas para
-
uma interpretação plurívoca.

110
1 Morte e sonho ensejam idéias de libertação, de
- para um universo de símbolos fora do domínio da
evasão
consciência humana. Os doís motivos estão, por conse-
guinte, associados e, taivez por isso, no caso da produ-
ção estética de José Alcides Pinto, o livro O sonho fun-
crona como urn apêndice ou prolongamento da mensagem
comunicada em EsÍação da morte.
Já registramos algumas semelhanças entre os dois
romances e ainda teremos ocasião de assinalar outras.
Assim, sob uma perspectiva formal, O sonho tem um iní-
cio idêntico ao verificado ern Esfação da morte, ou seja,
uma apresentação que lembra a técnica utilizada por Ado-
nias Filho: antes da trama, o aiitcr situa o ambiente, dan-
'jo uma visão panorâmica do que poderá constituir o ro-
mance.
Trata-se, como em outros livros, de um ambiente hos-
pitalar. O leitor de antemão já pressente que as perso-
nagens comporão urn universo de monotonia e depres-
são. Esta monotonia é transmitida de imediato pelo jogo
de repetições das mesmas estruturas frasais e pela se-
leção de um léxico devidamente apropriado para este
objetivo.
Semelhantemente ao que se verifica em O enigma,
cujo herói é conhecido como o Despenseiro, aqui tam-
i:ém o protagonista é anônimo, um rapaz qualquer" Em
C, enigma, inoidentalmente, o nome é mencionado já bem
perto do desfecho do romance, tal como ocorreu em Es-
tação da morte. Não pretendemos discutir se o recurso
é válido, mas pensamos que a alusão ao nome perde toda

113
:

a sua função, Íace à tipificação da personagem. Quase inseto do tamanho de uma mosca. O preto quase inexis-
ao Íim da intriga, que significado tem o saber-se que o tente contra um azul imenso, "um pequeno ponto difícil
protagonista se chama João? O nome não encarna, pois, de localizar na amplidão azul". (p. 22) Já se descobre
nenhum valor e parece-nos mesmo escolhido arbitraria- assim uma das conotações da ave: a libertação. A ave
mente. De qualquer forma, cremos que o desinteresse sería inlcialmente um ponto que busca o infinito, o abso-
pelos nomes das personagens significa, entre outras coi- luto, a ânsia do próprio protagonista.
sas, uma tentativa de identiÍicação delas com o leitor ou Utilizando uma técnica descritiva, bem própria do
lalvez com o próprio autor-narrador. Fensamos também chamado nouveau roman, o autor se detém na observa-
num desejo de transmitir um cunho de universalidade à ção pura e simples do vôo da ave. Mas o leitor pressente
obra, já que esta aborda problemas humanos e estes se que a descrição começa a adquirir outros objetivos, a
refletem no aqui-e-agora de qualquer tempo e lugar' partir do momento em que a ave comeÇa a ser vista como
Alíás, esta tendência universalizante faz-se presente um símbolo. Através da metaÍorizaçáo (a ave passa a ser
nos romances da trilogia ora em análise por alguns pro- um inseto, uma mosca), já se percebe o caráter simbo-
cedimentos comuns, tal o caso do emprego do presente lógico que o autor tenciona estabelecer. O símbolo ga-
do indicativo no intuito de eternizar o drama das perso- nha novas dimensões quando a ave-mosca é personifi-
nagens e transferi-lo para o tempo do leitor. cada: "o seu coração, é certo, está pleno de júbilo" e
"talvez possua alguma razão para pensar assim". (Cf. p.
2 Passemos, porém, ao exame de alguns motivos do 22) Estas novas dimensões da metáfora preparam o lei-
- Os primeiros enunciados
Iivro. descritivos Íixam logo um tor para a descoberta de outras conotações que, sem
clima de agouro: dúvi.da, conseguirão dotar a obra de um grau de aber-
tura muito elevado.
A ave voa contra o céu. íÉ uma ave No capítulo segundo aparece o mesmo refrão: "A
preta, alongada no corpo e nas asas muito ave voa contra o céu." E dizemos refrão porque esta téc-
finas. (p. 21) nica de repetir as mesmas frases, alem de outros valores,
conÍere ao romance um cunho nitidamente poético. Há
O adjetivo preta e o predicado voa contra um céu, um ritmo interno resultante da própria estruturação dos
mais tarde caracterizado como "azul, brilhante e fixo parágrafos, da adjetivação, da valorização dos aspectos
como um tecido de seda", indiciam uma intromissão nos fonológicos. E nesse ritmo as repetições ganham maior
domínios do Íantástico que, algumas páginas adiante, se signiÍicado.
torna indiscutível com a idéia de que a ave sopra o tem- Mas, apesar do reÍrão, logo depois a ave voa em
po nos ponteiros do relógio da torre, apressando a hora direção ao mar, atraída pelo abismo das águas proÍun-
da morte dos doentes. das. Persiste, porém, a mesma preocupação em opor o
Trata-se de uma imagem carregada de um matiz sen- ponto minúsculo (ave) ao incomensurável (céu ou mar).
sorial muito forte, sobretudo pelo valor da antítese: o De outro lado, o narrador tenta situar o rapaz como
preto contra um azul brilhante. personagem-observador do vôo da ave. O rapaz, em suas
O procedimento antitético não pára ai. A ave, indo lucubrações filosóficas, identifica-se com a ave. A vida
de encontro ao céu, torna-se um ponto minúsculo, um desta e paralela à dele. Há, pois, uma superposição de
114 115
planos descritivos. O descritor Íocaliza o vÔo da ave mas guém que tem laços de consagüinidade com o rapaz. Po-
também dirige sua atenção para o rapaz que, por sua vezi derá ser o pai, a mãe ou a irmã.
está divagan'do sobre a ave e sobre si mesmo, refletin- E o clima de mistério e de morte se acentua com
do-se nela" nova irnagem: a ave se desfaz em gota de lágrima ou de
O fantástico ou, pelo menos, o alegórico, começa a yela. As conotações são evidentes, uma vez que vela e
ganhar terreno Íace às divagações do protagonista. Sua lágrima lembram infalívelmente a hora do momento agô-
condição de jovem solitário lhe permite internalizar uma nico.
série de valores comunicados alegoricamente como no
seguinte parágraÍo: 3 É bastante significativo o fato de que esta mesma
-
ave de O sonho esteja em outras obras do autor. Aliás,
É agora do tamanho de uma andorinha, muito antes de ele revelar-se como romancista, a ave jér
uma ave cor de palha, do tamanho de uma existia em seu universo literário, sendo inclusíve objeto
andorinha; e continua reduzindo-se, grada' de um poemeto clue faz parte do livro Concreto: Estru-
tivamente, até atingir o tamanho de uma tura visual / gráf ica. Consíste num curto poema cuja pre-
mosca, um inseto cor de palha, do tamanho tensão maior é o aproveitamento da motivação sonora
de uma mosca; e chega assim à proporção existente na reiteração do fonema /v/ para ilustrar so-
exata de um quarto de pílula, ou uma gota noramente o próprio vôo, num vaivém interminável. O
de lágrima, e nesse momento escorre pela autor joga com tempcs verbais iniciados pela consoante
superÍicie curva do espelho, se dilui, desa- lv/, como "voa", "vai" e "volta" e, organizando alitera-
parece. (p, 25) ções, provoca realmente a imagem ou visualização do
vôo. Objetiva, portanto, um total ajuste entre as cama-
das Íonológica e semântica do texto poético, permitindo
Vê-se aqora que a ave bem pode representar para que o leitor se interrogue se aquela ave possui algum
o tapaz um desejo inconscÍente de auto-destruição. 'É a signiÍicado mais profundo.
imagem da própria vida que se esvai aos poucos, até Respondemos que este sentido subjacente se pleni-
nadificar-se. A suspeita de mau augúrio indiciada logo fica no contexto geral das obras de José Alcides se o
no inÍcio com a imagem da ave preta passa a ser con- analista correlacionar o termo em questão com o maior
fírma'da progressivamente. Já no terceiro capítulo há uma número de outros componentes que o identificam. De
alusão ao "hospital atulhado de doentes". E sucede o Íato, já o dissemos diversas vezes, os mitos ou valores
maravilhoso: a metamorÍose da ave em lágrima, median- do universo do autor se repetem sem cessar e se con-
te a progressão indicada na passagem acima transcrita, taEiam mutuamente, de tal forma que todos adquirem co-
além de conotar o sofrimento que sem dúvida será es- notações comuns. Freqüentemente, termos que referen-
tampado no decorrer do romance, é simbolicamente uma cialmente são antitéticos se contaminam, permutando
lágrima que alguém derramou. seus vatrores sêmicos. A bivalência é, por conseguinte,
O campo agora já é totalmente alógico e poético. De uma regra do díscurso de José Alcides Pinto. O que sim-
íato: a imagem da ave é pura ilusão, puro símbolo da boliza o Bem pode, de um momento para outro, conotar
,morte, da libertação. A ave é uma lágrima vertida por al- a maldade, o que certamente confunde o intérprete de-
116 117
sejoso de encontrar lógica em todas as informações. ltlas são pode ser perfeitamente interpretada dessa forma. A
a coerência do escritor reside paradoxalmente no ilogis- ave deixa momentaneamente o simbolismo da gota de
mo, já que trabalha com o tema do absurdo e vive o lágrima ou de vela para transfigurar-se ou transubstan-
absurdo, na certeza de que nada explica o Íenômeno ciar-se numa agulha. Não queremos dizer que o sentido
existencial. referencial do substantivo Íica obliterado, mas sim que
Desta certeza brota o seu pessimismo e ânsía de há uma certa ambigüidade ou polissemia na expressão
evasão para o fantástico, na intenção de sondar o abso- em análíse.
luto. Ele abre os braços para o inÍinito e, nesta atitude, O louco desejo do rapaz é correspondido pela en-
a ave que visualiza atinge o seu pleno signiÍicado. O vôo fermeira. E o encontro irresistível dos dois corpos atinge
da ave que se transforma num simples ponto, num pingo um ponto de lirismo sensual em que o tema do sexo li-
de ponto, representa a nadiÍicação de tudo o que parece gado à idéia da morte se configura. Os dois amantes qua-
ter existência factual. Em suma, um negativismo que ex- se se devoram,'os lençóis se mancham de sangue. Só
pressa o resultado de uma reflexão acerca do mistério então sabemos que o rapaz, condenado à morte naquele
da vida. hospital, vive sem nenhuma esperança de cura.
A ave é assím um mito suficiente para representar Esta técnica de inÍormar muito pouco e em peque-
todo o universo do autor. E com tal atributo ela figura nas doses pode gerar uma certa monotonia para o leitor.
em diversas obras, às vezes substituída pelos "pássaros Contudo, tal monotonia se adequa perfeitamente ao am-
azuis" ou pelos "verdes abutres". Com efeito, torna-se biente descrito, ambiente de tédio em que as coisas sem-
quase uma obstinação o anseio do infinito caracterizado, pre são as mesmas. Até a ave cumpre rigorosamente o
por processos inconscientes, nas imagens dos pássaros seu ritual de circular a torre dos relógios ao entardecer
que povoam o mundo fantástico. São aves agourentas de todos os dias. Os doentes não conseguem explicar,
como os corvos ou abutres, mas simultaneamente sedu- mas se perguntam: "Por que todos os dias, a essa mes-
zem pela beleza poética e capacidade evocatória. ma hora, ela vem com suas involuções negras soprar
nos ponteiros do relógio para que a noite desça e encha
4 Fixando-nos mais detidamente na análise de O so- de angústia a mente dos que sofrem?,, (Cf. p. 32)
- notamos que a trama se Íorma aos poucos, sem ofe-
nho, A ação se processa, pois, de modo bastante lento
recer nenhuma peripécia que confira uma certa dinami- como em Estação da morte. Os dados, além de poucos,
cidade à ação. Os dados forneci,dos para a composição vão sendo informados muito devagar. Assim, no sétimo
da estória são escassos, porque a preocupação maior do capítulo é revelado o nome da enfermeira. Débora é jo_
autor é descrever um ambiente. Os elementos acionais e vem e bonita, tem menos de dezessete anos e isto au-
as características das personagens se sucedem com mui- menta a surpresa do rapaz que Íica enciumado ao vê-la
ta cautela, criando uma atmosfera de expectativa. Assim, caminhar ao lado do médico, fato que gera o agrava_
no quarto capÍtulo, o rapaz é tomado de desejos afrodi- mento de sua doença.
síacos por uma enfermeira do hospital, no instante em A cena do amor carnal entre o rapaz e a enÍermeira
que esta se curva para apanhar uma "agulha que voou". aos poucos perde sua realidade para configurar-se ilu-
Entre parênteses: a agulha relacionada com o verbo sória, fruto da imaginação ou do estado alucinatório de
"voar" sugere um relacionamento com a ave. A expres- um doente às portas da morte. Esta dúvida se transfere
118
119
i-i'ftjo;.:L

para o intérprete e a obra começa a adquirir maior am- Nunca é demais repetir que a presença da morte é
bigüidade, requisito indispensável, segundo Umberto Eco, uma constante nos livros de Jose Alcides. Aliás, três pa-
para a produção da arte. A mesma dúvida instaura o mí- lavras definem com precisão e objetividade toda a Íic-
tico e, à proporçáo que o discurso prossegue, ocorre a ção do autor: morte, sexo e loucura.
lntromissão do misticismo com a atitude de Débora diante A loucura está presente ern todos os romances. Em i

do Cristo. Ela espera um milagre, a cura do amante. Mas Estação da morte, o protagonista, deitado na cama do
isto pode ser interpreiado .dentro do contexto onírico e hospital, conta os dedos dos pes e das mãos, indefinida- I

assim tudo ficaria no clomínio do ilusório. mente. Em O eniEma, o Dr. Brás, com a slta man,a de
Entendemos, portarito, que a relação carnal descrita cálculos infinitesimais para a construÇão do ediÍício, ten-
não passou de um sonho da rapaz solitário. Daí o título ta prender a morte. Em João Pinto de A/laria, o avarento,
do romance. Todavia, a técnica emprega,da pelo autor per- extasiado como morto num estado de alienação total,
mite a hesitação do leitor" Além do mâis, o título pode deixa ao Íim de tudo sua Íortuna inteira para os pobres.
muito bem não se reÍerír somente ao idílio clo rapaz, Em O criador de demônios, as alucinações da persona-
mas a todos os demais elementos Íuncionais da narra- gem são descritas a cada página E assim sucessiva-
tiva, incluindo a própria ave e to,da a sua simbologia. mente.
Dessa maneira, a atmosfera de sonho invade o ro- Em suma, observando com atenção, vemos que na
mance inteiro. O rapaz, ao acordar, sente-se Íebril e realidade todos os romances do autor apresentam o tema
diante de Débora, ao mesmo tempo em que vacila se o da alienação como fuga de um mundo inexplicável.
que vê é uma situação de fato ou se está delirando. De O mesmo ocorre em relação ao sexo e à morte. O
tudo, a mensagem de libertação é uma constante até o sexo se associa à loucura, como se o seu significado (a
Íim da primeira parte. reprodução da espécie) fosse realmente uma loucura, já
É, entretanto, uma libertação através das ilusões do que a vida é um absurdo. Pcr isso, a gravidez de Dé-
amor e da certeza de morte iminente. Esta certeza con_ bora Íunciona corno símbolo no contexto da obra. lnter-
pretada, significaria que a vida humana é absurdamente
duz o protagonista â um sentinrento de espera inquie-
tante que o faz apático, cÍclica. O rapaz vai morrer, porém a natureza permite
que o soÍrimento dele continue em outro ser. E assim
indef in idamente.
5 *- l\o começo da segunda parte entra em cena uma
Às vezes, o sexo toma proporções estranhas, como
nova personagem: o Dr. Brás. Ele aguarda a hora de mor-
no romance Os verdes abuÍres da colina. Não obstante,
rer. E logo se adquire a cerÍeza de que o Dr. Brás é o em to,das as obras ele se associa à loucura e à morte,
mesmo engenheiro construtor do hospital que aparece
formando um sistema de valores interpenetráveis. O sexo
nos romances A enigma e Estação da morte.
é alienação e fuga, a loucura é também escape e a morte
A trama do idílio (sonho) do rapaz com a enfermeira é o ponto de convergência dos dois conceitos, não dei-
cede lugar, portanto, à descríção dos últimos momentos xando de ser uma loucura pelo Íato de ser arracional.
da vida do engenheiro. Em O en;gma, esta mesma cena
é Íocalizada com mais pormenores e num díscurso bem 6 A morte, dessa forma, é vista como algo inexpli-
mais expressivo. - absurdo, Íatal. E, no domínio do surreal, ela toma
cável,
120 12',1
forma de ser, embora seja a própria negação do ser. Muito Mais adiante, o autor não deixa dúvidas de que pre-
signiÍicativa é a passagem que abaixo transcrevemos, em tende mostrar um ambiente estranho, incompreensíve{
que a reiteração do adjetivo negro e a antropomorfose da para nossas perspectivas, salvo se o tomarmos êm um
morte retratam bem essa quase obsessão do novelista senti'do figurado. Foi o Dr. Brás quem trouxe a morte e a
pelo alémtúmulo: depositou na poltrona. Foi uma aventura banal, tão acos-
tumado estava ele com a morte. Penetramos, sem dúvi-
A, morte chegava como se Íosse urna da alguma, no universo do fantástico mais uma vez.
visita e se senÍaya na poltrona (a senhora A segunda parte do livro se limita praticamente à
bem sabe, aquela poltrona que lhe ficava à morte do engenheiro e ao velório em que a viúva e a
esquerda da cabeceira); a morte a/i se sen- filha repassam algumas características da personalidade
tou e abriu um livro. Um livro grosso e ne- ,do morto. Há, pois, um total esquecimento da seqüência
gro, de letras muito graúdas, também ne- fática proposta na primeira parte, como se o caso do
gras. Tudo era negro, desde o véu que a rapaz com a enfermeira constituÍsse uma estória autô-
envolvia da cabeça aos pés (a morte asse- noma, um conto por assim dizer.
melha-se, em tudo, a uma viúva) e começou
a ler num sussurro imperceptlvel. (p. 55) 7 Ao iniciar a terceira parte, o leitor espera que as
- estórias convirjam para um ponto comum,
,duas à seme-
Esta concretizaçâo da morte tem, entre outros, o lhança do que fez José Lins do Rego em Fogo lttlorto e
efeito apelativo de causar no intérprete a sensação da Rachel de Queíroz em Dôra, Doralina, a Íim de que o
presença do estranho, levando-o a refletir mais demora- romance tenha uma certa unidade.
damente sobre o seu próprio sentído vivencial. Mas, como E, de fato, a ave novamente volta a ser o objeto de
expressão ou forma estética, ela corresponde a uma apre- atenção, a personagem central do romance. Sabe-se, en-
ensão do real em que a intuição é capaz de deformar a tão, que o rapaz está num quarto vizinho ao do falecido
imagem ou concepção vulgar dos Íenômenos. engenheiro e o aposento deste é agora ocupado por um
Por outro lado, essa visão, no ato de transferir-se velho que muito se inquieta com o vôo da ave.
para o plano do surreal, acarreta um processo de sim- O novo vizinho do rapaz tenta com este dialogar
biose entre a esÍera do concreto e as concepções racio- sobre a ave, porém não há ambiente para interaçáo. O
nalmente abstratas e vice-versa. Deixa de haver distinção rapaz se fecha até quando o novato vê a enÍermeira e
categorial dos fenômenos e os mecanismos de percep- diz que a conhece. Ele então se interessa e fica sabendo
ção reduzem a um mesmo nível fatos de ordem logica- que Débora em outro hospital tinha o nome de Nara. Com
mente diversifica.da. Nesta atitude, a antropomorÍização o tempo, o rapaz e o novato se tornam amigos, dialogam
das coisas e dos conceitos objetiva uma identificação do constantemente a respeito da ave. Débora ou Nara agora
próprio ser humano com os elementos que o cercam ou está com o ventrê crescido, todos sabem de seu estado
causam terror. E o terror sempre conÍigura um ambiente de gravidez.
estranho, onde as forças que dirigem os homens se con- O romance termina abruptamente. O rapaz será ope-
cretizam e se aÍirmam perante eles para convencê-los de rado, um irmão reza junto a ele, confortando-o. Tudo sem
sua insignificância. desfecho delineado. Tudo a ser imaginado pelo leitor

122 123
§H/t",trjü !
I

que, dependendo da vivêncía artística, pode decepcio-


nar-se ou crer-se diante de uma obra bem realizada. Res-
salte-se, porém, que o menos importante para José Al-
cides é a estória em si. O que ele pretende valorizar é a
forma, a simbologia das personagens, a estruturação do
romance mediante uma série de procedimentos como a
repetição, a antítese, o animismo etc. Sua obra torna-se Conclusõo
uma "obra-projeto", em que a participaçáo do leitor é o
elemento essencial na sua conÍiguração.
Resta-nos, finalmente, considerar mais um signiÍica- Chegando ao término de nossa interpretação, que-
do profundo do romance, encerrado nos próprios valo- remos repassar alguns pontos que nos forneçam um co-
res que a ave, como personagem, consegue encarnar. A nhecimento sintetizado do universo complexo do autor.
ave, que diminui gradativamente até um pingo de ponto, Afirmamos que sua obra literária pode ser definida
é o proprio símbolo da morte, da libertação total. E a em três palavras: sexo, morte e loucura. E de fato assim
imagem da gota de lágrima pode conotar que a ave está o é. Mas estes vocábulos atraem uma multiplicidade de
dentro do protagonista, representa todo o seu universo elementos que, de repente, percebemos uma teia conÍu-
de sofrimento. Há, pois, umâ projeção do interior para o sa de valores em constante choque e assimilaçáo.
exterior ou vice-versa. Com isso, não se sabe ao certo Esses três motivos se sujeitam a uma concepção fa-
em que dimensão deve ela ser interpretada: como ave talista da vida, decorrente da cerleza de que tudo é em
visível, voando ao anoitecer de todos os dias em redor essência absurdo. A morte é fatal, o amor é fatal, a lou*
da torre do relógio, ou como algo interior, imaterial, que cura é fatal. Nada na vida humana tem sentido e a única
se materializa na Íorma de uma lágrima. Esta ambigüi- maneira de evitar o suicídio é viver o absurdo, num es-
dade constitui, sem dúvida, um dos melhores achados tado de alienação total ou de sonho.
poéticos do autor. Mas este rnesmo determinismo Íorjado por uma óp-
tica pessimista estabelece, outrossim, as bases da espi-
ritualidade. A existência terrena é apenas prenúncio de
um mundo sobreposto, que diríge todos os destinos da
humanidade. É um mundo onde as Íorças do Bem e do
Írlal estão em luta incessante e, de vez em quan'do, se
víngam de suas derrotas, ao castigar a terra com enchen'
tes ou secas devastadoras.
As leis desse universo sâo diferentes das conhecidas
pela percepção sensorial e, por isso, parecem conÍusas
ou misteriosas. Lá Deus e Satã habitam lado a lado, os
conceitos de castigo e beatificação se uniÍicam, o gro-
tesco é o belo e tudo não passa de uma só unidade den-
tro de uma aparente multiplicidade.

124 125
Dois planos se fundem numa só visão: o plano do
real e o do ilusório. Todavia, em última análise, o ho-
mem, consciente de sua impossibilidade de interpretar os
mistérios e amargurado por sentir-se só diante da imen-
s!dão, não distingue o real do imaginário e as coisas se
tornam mais confusas ainda. EIe é incapaz de saber se
as imagens captadas, são produtos do sonho ou se exis-
tem como afirmação de valores.
Criam-se dessa forma densas mitologias, imbricadas
tão fortemente no misticismo que se torna impossívei
separar o mítíco do espiritual. Seres estranhos e amor-
Íos se projetam, estabelecendo na mente humana o pa-
vor do anúncio das desgraças. É um misticismo proÍético
que se centra nas visões apocalípticas dos castigos para
SUMÁRIO
uma humanidade corrompida e injusta. Os mortos de Hi-
roxima ressuscitarão para destruir os seus carrascos. Os i,
abutres da colina continuam a chocar as grandes ninha-
lntrodução 7
das, os demônios permanecem atuando nos corpos dos
homens e com estes realizando pactos. A formação do universo mí(s)tico 11
Contudo, a maldição é apenas o outro lado da ilu-
minaçâo. E por isso o milagre ocorrerá, mesmo que nin-
Os componentes surreais 23

guém queira nele acreditar. O milagre é a beatificação do A divinização do sexo . 33


homem que despreza os bens materiais. O milagre é a
A maldição do sexo 51
cura da doença quando não existe mais nenhuma espe-
rança. O milagre é a própria vida. A humanização do demônio ... 73
Tudo volta ao ponto inicial se meditarmos que a
morte como fatalidade é princípio e Íim do absurdo re-
A morte como fatalidade 83

dondo que não tem princípio nem fim. Todas as coisas O enigma do amor e da morte 99
são e não são, estão aqu! apenas na perspectiva da
mente humana, incapaz de refletir até sobre si mesma.
A libertação pelo sonho 111

Este, o universo simples e confuso de José Alcides Conclusão 125


Pinto. Quem penetrar ne!e, aceitando as suas teis, terá a
cerleza de haver descoberto um mundo estranho e de
valores inesgotáveis. E talvez queira ser, à maneira do
autor, uma das personagens desse mundo. Um dos mitos
oo absurdo, angustiado por sentir-se só numa multidão
de seres sem forma ou signiÍicado"

126

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