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EDITORA@ ~C..ORTE"Z
AUTORES
ASSOCIADOS (l ~tDITORA
COLONIZA~ÁO E CATEQUESE

A catequi~ foi recebida pelos


indios como mensagem colonial. Desde
a primeira hora se identiftcou o traba-
lho dos padres com o trabalho do 10-
vemador e dos colonos. A convenio
crista se fez converslo de costwnes. As
verdades da fi serviram de código, su-
blimando a crueza dos fatos. Apesar
da ótica triunfalista em que foram redi-
gidos os depoimentos ele nossa prim.ei-
ra história da Iareja, pcxJemos perceber
a existencia de suas ·ror98S qualitativá-
mente bem distintas que tinham entre
si poucos pontos de contato. O escam-
bo talvez tenha sido a 6.nica ponte res-
peitadora do dinamismo próprio de ca-
da cultura. A ampli~ dos interesses
mercantis portugueses, no entanto,
rompeu o compasso natural em que se
travavam os contatos e, pela for~ mi-
litar, imp6s as novas formas de conta- COLONIZACAO E CATEQUESE
to: sujei~ e aldcam.ento. Com isto,
tiveram-se em vista tlo-somente as me-
tas colonizadoras, ainda que sobre elas
pairasse o códi¡o de comunica91<>.
Desta forma, a catequir.a~ cumpriu
um papel colonial, nlo como de fora,
como uma fo~ simplesmente aliada,
mas, mais do que isto, como urna for~
realmente intqrada a todo o processo.
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org
COLEºÁO EDUCAQAO CONTEM~ORANEA
,. Série: Memória da Educa~io
Conselho editorial
.
Antonio Joaquim Severino, Casemiro dos Reis Filho, Dermeval José Maria de Paiva
Saviani, Gilberta S. de Martino Jannuzzi, Joel Martins, Maurício
Tragtenberg, Moacir Gadotti, Miguel de La Puente, Milton de
Miranda e Walter E. Garcia.

Copidesque: Marlene Crespo

Produ~io editorial: Helen Diniz

Revisio: Glória Coelho I

COLONIZAQAO E CATEQUESE
1549-1600

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada


sem a autoriza~ao expressa do Autor e dos editores.

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EDITORA AUTORES ASSOCIADOS/ CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 387 - Tels.: (011) 864-0111 e 864-6783
05009 - Sao Paulo - SP
.
Impresso no Brasil EDITORA@) ~CORTEZ
1982
AUTORES \.1
ASSOCIADOS ~El)ITORA
/
CIP-Brasil. Cataloga~a.o-na-Publica~lo
Cimara Brasileira do Livro, SP
Paiva, José Maria de.
Pl68c Coloniza~o e catequese, 1S49-1600 I José Maria de
Paiva. - Slo Paulo : Autores· Associados : Cortez,
1982.
(Col~o educa~o contemporinea : Série
memória da educa~o)
Bibliografia.
1. Brasil - · Coloniz.a~o 2. Catequese -1greja Ca-
tólica 3. indios da América do Sul - Brasil l. Titulo.
CDD-980.41
82-0704 -981.021
Índices para catálogo sistemático:
l. Brasil .: Coloniza~a.o : História 981.021
2. Brasil : Índios : Catequese : Civiliza~o 980.41
3. Coloniza~lo : Brasil : História 981.021
4. indios : Brasil : Catequese : Civiliza~lo 980.41

A
Casemiro dos Reís Filho,
urna homenagem do Autor .
ÍNDICE

Prefácio . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Introdu~áo . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .....
. 11

Capítulo I Fé e Império no contexto quinhen-


tista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Capítulo II Predominancia dos interesses mer-


cantis sobre os interesses religiosos 29
O sistema colonial mercantilista . . 29
A ética colonial e os esfor~os pela
supressáo da escravidáo . . . . . . . . . . 32
A náo-radicalidade do jesuíta . . . . . 38
A questáo da sujei~áo . . . . . . . . . . . . 41
A predominancia nos fatos . . . . . . . . 46
Concluindo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

Capítulo III O papel da catequese dos índios no


processo da coloniz~áo . . . . . . . . . . . 51
l. A práxis catequética . . . . . . . . . . . 53
Pastoral salvacionista . . . . . . . . . . . . 54
Pastoral legalista . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Pastoral litúrgico-devocional . . . . . . 65
7
A instrumentalizacáo dos meninos
,. pregadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 I

Concluindo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
2. O conteúdo da catequese .. .' ... 76
A racionalizacáo . . . . . . . . . . . . . . . .. 77
Pregacáo
. , crista "versus" pregacáo
d os paJes ...................... . 80
PREFACIO
3. A forma da catequizacáo ...... . 83
A aldeia ........................ . 87
O governo ...................... . 90 A .descoberta e a incorporacáo do território brasi-
A transformacáo dos costumes ... . 92 leiro, no ambito da civilizacáo ocidental e crista, sao
partes do desdobramento da Revolucáo Comercial, ·dos
Concluindo ..................... . 97 séculos XIV e XV, que deu origem a formacáo sócio-cul-
Conclusáo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 tural capitalista. A europeizacáo da América Portuguesa,
como de resto, de toda a América Latina, esteve nos
Bibliografia ........ " ....................... . 106 . últimos séculos ligada estreitamente a expansáo univer-
salista do capitalismo que aos poucos vai deixando de ser
europeu para ser mundial, sem perda de seus mecanis-
mos originários de dominacáo e exploracao.
. O livro do professor José Maria de Paiva registra o
marco inicial da impla:pta~ao da europeizacao da Amé-
rica Portuguesa. Todo o processo nestes últimos 5 sé-
culos esteve estritamente ligado a expansao do capitalis-
mo. Oeste modo, a compreensao da educacao só poderia
completar-se articulando os momentos de desenvolvi-
mento sócio-cultural _com as estruturas educacionais
implantadas. Ambos os fenómenos sao complementares:
educacáo e expansáo dos mecanismos de dominacáo do
capitalismo no Brasil. Assim, colonizacao e catequese,
como foram estudadas pelo autor, recompóem a visáo
a
global,. indispensável compreensáo do fenómeno histó-
nco de nossa evolucáo sócio-cultural. Trata-se de traba-
lho que estuda o período inicial da nossa História.
1549/1600 - É a fase de implantacao da coloniza-
cáo. O papel da catequese dos índios no processo de co-
8 9
I

loniza~ao fica demonstrado em ·s uas rela~óes com as tra-


..di~óes portuguesas e compreende-se melhor e mais pro-
fundamente o desempenho da catequese na cria~áo, con-
serva~áo e sobrevivencia da sociedade colonial ·brasileira.
Chega-se, assim, aintimidade das rela~óes entre religiáo
e todo o processo de coloniza~áo: diríamos, coloniza~áo
das mentes dos colonizadores.
Cremas que o trabalho do professor José Maria de
Paiva contribuí de modo significativo para os estudos da INTRODU~ÁO
chamada Cultura Brasileira, específicamente para o
aprofundamento da História da Educa~áo Brasileira.
O conhecimento da realida-de brasileira presente
Campinas, 7 de novembro de 1981 implica conhecimento das origens e do desenvolvi-
mento dos valores aquí cultivados. Embora denominados
Casemiro dos Reís Filho ~uitas vezes·com os mesmos nomes usados albures, "pa-
ra grande d~sespero dos historiadores" ,1 os costumes e os
valores se constroem segundo urna história única, sin-
gularizandó-se entre muitas histórias semelhantes. O
percurso desta trajetória permite a compreensáo, dada
no momento presente, daquilo que chamamos comumen-
te de realidade. Apesar de o estado atual da realidade
ex-por (isto é, por em aberto, por presente) tudo, exige-
se do espectador, que ao mesmo tempo é participante, tim
esfor~o de re-presenta~áo, fazendo vir a tona todos os
elementos que incidiram, uµia vez, em seu caminho. Isto
concorre para a elucida~áo do momento presente, para
a compreensáo do tipo de inter-relacionamento vigente
em nossa sociedade. Enquanto as Ciencias Sociais bus.:
cam esta compreensáo a partir dos dados imediatamente
perceptíveis, a História se debru~a sobre o passado, pro-
curando as raízes que persistem atuando em nosso coni-
portamento. As qualidades da cultura, eis como denomi-
naría o objeto da pesquisa histórica! Qualidades no seu
significado substantivado, como constituinte do singu-
lar de cada sujeito. As qualidades da cultura brasileira
* José Maria de Paiva iniciou sua atividade docente na Puc de Campinas
e fez seu mestrado n_a Unicamp, sob minha orienta~áo. Atualmente é professor .
da Universidade Federal de Vi~osa (MG). . 1. Marc BLOCH, lntrodu~ao a História, p. 35.

10 11
foram se fazendo no embate das culturas que aqui .se Fincada que foi nossa cultura - portuguesa e mais
~ ent~echocaram, através das situacóes novas aqui pro- tarde, brasileira - nos valores da religiao crista, d~sem­
duz1das. De.ste processo fixou-se um determinado tipo penhou ~ ~at~quese u~ papel sem par na conservacao
de co~porta~ento, tornado heranca social. É, pois, de e sobrevivenc1a da soc1edade, informando-lhe o estilo e
suma
, importancia
. acompanhar o processo desde suas organizando-a idealmente. Esses valores funcionam pa-
raizes para ass1nalar seus contornos seus matizes sua radigmaticamente, ou condenando ou reforcando ou ex-
tonalidade. Cumpre, portanto, em be~efício do mo~ento tinguindo.
pres.ente, procurar na História os componentes de nossa · Enten~emos por catequese toda acao pastoral da
real1dade, de modo a enfrentá-la e dirigi-la com melhor I~e~a: a ·doutrinacao propriamente dita, a pastoral li-
conhecimento de causa. turgico-devocional, o comportamento das pessoas e das
instituicóes eclesiásticas. Trata-se, na verdade, da cate-
A delimitacao da abordagem traz sempre consigo quese tal qual se realizou efetivamente e nao de uma
s~rios embar~cos, pois, pretendendo clarear o conjunto, catequese teórica, universal, uniformemente transmitida
f1xa-se em um aspecto. Vista do ponto de vista do" tempo para todos os povos, indiferentemente.
cria a de~imitacao a ilusao de urna criacao "ex nihilo": A catequese, tal qual a .d efinimos acima, nao pode
A metodologia de trabalho tem que tomar consciencia ser tomada como tarefa de urna Igreja distinta da gente
destas condicóes, ~uperando suas limitacóes e oferecen-
do pontos de apoio valiosos para o domínio da realidade. -
portuguesa que aqui se assentou, senao como urna das
. ,
expressoes ma1s caracter1sticas de sua cultura. A distin-
Poderíamos dividir, "grosso modo", nossa história c~o, que h?je fazemos, entre Estado e Igreja era·impen-
e~ História Colonial, Império e República, aparecendo savel no seculo XVI: Estado e Igreja se fundiam numa
a1 a Colonia como urna unidade monolítica. Pareceu- sociedade· única, "sui generis". Cristianizacao e aportu-
nos, contudo, muito artificial englobar sobo mesmo no- guesamento sáo tarefas sinónimas, indissociáveis e
me de Colonia tanto o momento do estabelecimentó identificáveis entre si. Se escolhemos como tema de nos-
quanto o da reproducao. Situamos o estabelecimento sa pesquisa-o papel da catequese dos índios no processo
desde a descoberta até os albores do século XVII quando, da colonizacáo, nao foi para contrastá-la comas demais
C?m a exploracao organizada da cana-de-acúcar, SO- a influencias, como se a catequese constituí~e influencia
_c1edade. aqui residente firmou um modo próprio de ser. a parte, mas por se achar latente e ativa em todas as
O período de estabelecimento, embora relacionado dire- de~ais. Neste sentido, a catequese, pela vinculacáo es-
tamente com as tradicóes culturais de Portugal, se ca- ~reita com toda a cultura portuguesa do século, pode ser
racterizou pelas experiencias novas, típicas da nova si.;. analisada como importante fator de colonizacao e dadas
tuacao. Esta novidade se realizou em todos os setores a.S circunstancias, como instrumento de imposicio cul-
. da vida humana, quer nas crencas, valores, normas e tural, sendo recebida assim pelos índios. Trabalharemos,
costumes, quer na arte da defesa, da exploracao econó- pois, coma catequese em termos da funcáo por ela de·
mica da terra, da construcao das casas e das cidades,. sempenhada no contexto colonial quinhentista. Esta
quer no trato com os indígenas, na administracao pública funcionalidade se póe, aqui, como hipótese de trabalho.
e na distribuicao da justica, quer ainda na prática re- Fazemos História, história da cultura. Procuramos
ligiosa. conl)ecer a fisionomia própria adquirida pela sociedade
12 13
brasileira fisionomia esta que realca, no presente, as nizacáo presente da experiencia. O historiador trabalha,
,. caracterí~ticas individuais do grupo em questao. A His- pois, com estruturas que seu tempo póe. Podemos situar
2

tória com efeito nao é a ciencia do passado,ª levantando o tempo do historiador como ultrapassando um pouco os
os fatos, alinha~do-os em ordem de sucessao,. ofer~cendo limites de sua própria existencia, ou, a medida que es-
explicacóes causais. Um servico muito útil mas ~ao ~e­ tabelecermos critérios adequados, estendendo esses li-
nos dispensável, dado que a experiencia mostra a sac1e- mites. Sua primeira tarefa é distinguir as diferentes es.;
dade que se vive muito bem sem conhecimento algum de truturas postas, os diferentes tempos. A História, no
História. A História é ciencia do presente. Primeiro, por- sentido de transcurso no tempo, é indizível, dada a sin-
que se dá no presente. O que nós denominamos passado gularidade das fatos; náo se resume: re-assume-se, vive-
nada mais é do que nós mesmos sabendo-nos-em-proces- se de outra forma. A História-ciencia cumpre fazer a
so-de-transformagao. Toda modificacao é absorvida pelo recomposicao, primeiro como acá.o organizativa presen-
momento seguinte e, só enquanto tal, subsiste. Isto nos t.e; segundo, tentando, por comparacáo, o máximo de fi-
permite a divisáo do tempo, ou seja, da realidade em delidade ao sentido original.
passado, presente _e futuro·.. Estas subdivi~ó.es, cont~do, Nossa pretensáo é fazer urna História que organize
sao meras abstracoes de nossa mente anal1t1ca, medidas e unifique a vida humana através dos séculas, sem mui-
descritivas da experiencia que ternos de nosso ser-pre- ta fragmentacáo e sem muito artificialismo. Observar as
sente. Estas medidas configura~am, no entanto, de tal permanencias, que estruturam a vida social, mesmo assi-
modo a realidade que esta parece.naturalmente cindida. nalando sua contínua e quase imperceptível modifica-
Feitas as reservas, podemos trabalhar utilmente com cao, parece-nos critério adequado para a análise histó-
elas por serem a linguagem comum. Se a História, po- rica. Este critério é decorrencia dos princípios estabele-
rém', se debruca sobre o passado, nao é numa atitude cidos sobre a realidade. Moldamos retrospectivamente o
arqueológica, mas sobre a totaliqade do presente,. para passado. O critério das permanencias possibilita a obser-
além das aparencias imediatas. Nao podemos, po1s, ter vacáo das modificacóes - suaves modificacóes, as mais
a ilusao de recuperar o passado, dé encontrar os fatos das vezes- até o ponto de se reconhecer a serventia dos
tais como aconteceram, os fatos puros, os dados objeti- paradigmas usados. A abordagem histórica torna-se,
vos. Sobre estes fatos náo versa a História.
4
~ssim, urna aproximacáo por afastamento: é como outro
A segunda razáo do que estamos. demonstran~o ~ que trazemos até nós o passado e fazemo-lo, conosco;
óbvia: a História náo se dá sem histonador. Este nao e presente. A graduacáo das permanencias nos permite a
um ente abstrato mas um ser vivo, membro de um grupo periodizacáo da história.
social. Como lugar-tenente do seu grupo, assumindo as Isto nos impóe conclusóes concernentes a metodo-
organizacóes do universo feitas pelo seu grupo segu~do logia a ser empregada. Náo nos é possível comprovar ex-
os próprios interesses práticos, isto é, em resumo, part1n- perimentalmente o objeto de nosso estudo, tal como faz
do do seu presente é que o historiador faz a História. Ele o físico em seu laboratório: os sucessos ficam irremedia-
reorganiza as experiencias passadas em funcao da orga- velmente para trás. 5 Náo ternos tampouco a ilusao de
2. Antonio Muniz de REZENDE, Educa,iío e Ser-no-mundo, p. 78 ss.
3. Marc BLOCH, op. cit., p. 25. 5 . Manuel F ERNANDEZ ALVAREZ, Evolución del pensamiento his-
4. lbidem, p. 25. · tórico en los tiempos modernos, p. 76.

14 15
encontrar dados puros, de reproduzir o passado em sua· téria e sua disciplina de distribuicao, pela claridade da
~ originalidade, de interpretá-lo como o interpretaram os língua, que expóe a odisséia dos jesuítas do Brasil. Era
próprios agentes. Conhecer e compreender o passado é uma licao prática de metodologia, pela exata citacáo
situá-lo no tempo, no único tempo, o tempo presente. das fontes, seu exercício crítico e sua ampla utilizacáo,
É desta posicáo que fazemos História. A História é, se- pela moderada doutrina que interpretava, a luz da sua
guramente, uina defesa prática, em benefício do grupo filosofia da vida, a obra jesuítica".6 Como diz o mesmo
social que a produz. Neste contexto pergunta-se pela historiador, "podem alegar que se tratava de urna obra
objetividade da História. Aquí, como em qualquer cien- 'oficial' da Companhia de Jesus". Nao há dúvida de
cia, a objetividade se reduz a termos de metodologia que a obra reflete sua origem. Nao é, contudo, este o
de trabalho, segundo os critérios científicos mais com- seu defeito. O trabalho de Serafim Leite se ressente de.
provados, ainda náo eliminados. · urna crítica ideológica que indique as razoes, senao ver-
A reconstrucáo do passado exige o·recurso a todas dadeiras, ao menos possíveis dos fatos historiados. Inú-
as fontes possíveis. Isto náo significa, evidentemente, meras passagens demonstram que o autor se identifica
que do arrolamento das fontes surja, "ipso facto", a His- com a posicao dos primeiros jesuítas, aliados naturais
tória. A reconstrucao obedece a uma hipótese a ser tes- do estamento dominante. Assim, quando fala da exclu-
tada, que, no caso, é a instrumentalidade e funcionalida- sao dos escravos, da escola, escreve: ''É sabido que os
. de colonial da catequese. Nem todo fato passado interes- Portugueses, e é esta urna das suas glórias, nunca fize-
sa a reconstrucao proposta pela hipótese: urna selecao ram distincáo de racas nas terras que a Providencia
se impóe. Recolhemos o maior número possível de fon- confiou a sua colonizacáo. Os jesuítas, portugueses e
tes e comentários e tentamos a plausibilidade de nossa brasileiros, muito menos. Se náo se admitiram nas esco-
hipótese. A comparacao dos resultados de sua aplicacáo las do Brasil os escravos, a razáo foi a mesma que atinge
nos dá a chave de sua utilidade e validade. hoje a grande massa do proletariado; nao o permitiam
as circunstancias económicas da terra, nem os senhores
Ninguém, que analise a influencia dos jesuítas na compravam escravos para os mandar estudar". 7
História ·do Brasil, pode passar sem urna leitura da Bis· ¡ .

tória da Companhia de Jesus no Brasil, do P. Serafim . . Quando fala do trabalho indígena nas fazendas je-
Leite SJ, editada pela Livraria Portugália e pela Civili- suíticas, escreve: ''Ós tndios da América náo conheciam,
zacao Brasileira. Dos dez tomos, que compreende a obra, antes do descobrimento, nem o arado, nema nora, nem
os dois primeiros sao relativos ao século XVI. O trabalho os quadrúpedes de tir.o para as lavrancas. ( ... ) Comos
de Serafim Leite se beneficiou do acesso a todas as fon- Portugueses exercitaram todas as indústrias agrícolas e
tes conhecidas, sendo, por isto mesmo, riquíssimo em em particular com os jesuítas chegaram a realizar em-
informacóes. A organizacao dos temas permitiu urna presas hidráulicas, de grande envergadura, represas,
ampla visáo dos acontecimentos. Com razao, dela escre- canais, etc. u ~ 8

ve José Honório Rodrigues: ''Nunca a historiografía de


língua portuguesa conheceu maior monumento, pela di- 6. José :1fon6rio RODRIGUES, Jornal do Brasil, 11/ 08/57, c. 5, p. 2.
mensao do saber factual reunido, pela competencia da 7.
p. 91.
Seraf1m LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil (l.º v.),
execu~ao qa pesquisa, pela composicao ordenada da ma- 8. Ibidem, p. 183.

16 17
Quando diz da incorporacao jurídica dos índios, Semelhante observacao deve ser feita com .relacáo
" querida por Mem de Sá, escreve: "Esta igualdade na aos índios, objeto da catequese. Nossa pesquisa abrange
justica era a incorporacáo jurídica dos índios ao sistema todo o trabalho dos jesuítas e estes já estavam espalha-
legal dos colonizadores. A experiencia, porém, demons- dos praticamente por toda a costa, desde Pernambuco
trou que eles, devido .a seu atraso mental, náo estavam até Sáo Vicente, passando pela Bahia, Ilhéus, Porto Se-
ainda preparados para tal incorporacáo".9 guro e Espírito Santo. Assim, recolhemos as observacóes
Desta forma o julgamento que Serafim Leite faz dos missionários, notando da parte deles a mesma orien-
nao pode servir de orientacáo. Pelo contrário, há que se tacao doutrinária, moral e pastoral e o mesmo juízo
evitar segui-lo, para poder sentir o outro lado da His- quanto a.repercussao junto aos índios. Englobamos a
tória. tantas düerentes n.ac5es, com culturas próprias, sob um
Deste outro lado intérpr.e te melhor foi a publicacáo mesmo denominador, tal qual o fizeram os portugueses
da Comissáo de Estudos de História da Igreja na Amé- quinhentistas, mesmo quando dizendo seu nome. Nao
rica Latina - CEHILA, feíta pela Editora Vozes de Pe- foi lapso. Reconhecemos a impropriedade deste procedi-
trópolis. Seu segundo volume tem o título de História mento. Se o utilizamos foi porque eremos que nao pre-
da lgreja no Brasil e traz como subtítulo: "ensaio de judicaria . a análise do papel da catequese dos índios no
interpretacao a partir do povo". A perspectiva que seus processo da coloniz~ao. Com efeito, nao foi nosso intui-
autores adotaram coincide com a nossa. A Teología ·d a to estudar como uma determinada nacao indígena rece-
Libertacáo, que, há anos, lancou seu primeiro manifesto beu a mensagem religiosa mas, em outra perspectiva,
conclamando a Igreja a fidelidade radical as suas ori- como a mensagem .religiosa atendeu aos objetivos da
gens, despertou o interesse de doutores e pastores. Tam- colonizacao.
bém os historiadores retomaram os dados e refizeram a A .pesquisa se limitou, também, a catequese dos
leitura dos fatos. . índios: quis refletir a receptividade que entre eles teve
Nossa pesquisa cinge-se ao primeiro século da colo- a mensagem evangélica pregada a sombra da cruz por-
nizacao ou, mais precisamente, a sua segunda metade: tuguesa. Este estudo parte, realmente, da acao missio-
1549-1600. O primeiro marco assinala a data da missao nária, a qual coube a iniciativa do projeto de catequiza-
jesuítica, com a chegada, aBahía, de Manuel da Nóbre- cao, analisando suas diversas formas e correspondente
ga e seus cinco companheiros. O segundo marco é sim- recepcao pelos índios. Quis considerar o caminho de ida
plesmente um ponto de referencia, indicativo da fase ·do e volta, ou seja, da comunicacao, que é o ·que de fato
estabelecimento da colonizacao. Poderíamos ter colocado pretende a catequese. ·
1549-1564, fase melhor estudada neste ensaio. Preferi- O caminho de ida se viu prejudicado pela total falta
mos, contudo, englobar todo o período subseqüente, por- de sensibilidade para o problema da aculturacáo, por
quanto é nele que se resolve a questao da liberdade dos parte dos jesuítas e demais portugueses. Nao estamos
índios, pedra de escolho da catequese jesuítica, e ainda fazendo um juízo sobre as razóes disto: estamos sim-
por nele se enquadrar o testemunho de Fernao Cardim, plesmente afirmando o fato. Por esta causa nao se pen-
cronista da viagem do visitador Gouveia. Estas as razóes sou, tampouco, no problema que os teólogos, hoje, exa-
que nos levaram a urna demarcacao mais ampla. minam com cuidado e a que chamam de enculturacáo,
9. Ibidem: texto de S. LEITE supracitado.
º1:1 seja, a adaptacáo da genuína mensagem da f é a
19
18
outras culturas que náo a européia. Esta posicáo implica ·
,. o reconhecimento de que muitas coisas, tidas como
de fé, nada mais sáo que expressoes culturais de urna
determinada sociedade. Tanto um quanto outro proble-
ma, por náo terem sequer sido abordados, refletem hoje
o papel colonizador que a catequese acabou executando
no período assinalado. É, neste momento, que reforca-
mos a afirmacáo já feita de que a funcáo da História é
organizar o passado em funcáo do presente. 1º Por isto CAPÍTULO l .. .
eremos estar fazendo urna tarefa muito atual. ..
· O caminho de volta, este, quase podemos dizer que FÉ E IMPÉRIO NO CONTEXTO QUINHENTISTA
nao houve. Manuel da Nóbrega, refutando-o no seu
Diálogo sobre a conversáo do Gentío, afirma: .
Por vos fazer a vontade, vos contarei que já vimos índios desta A imagem de um mundo indiviso se. nos afigura
terra com mui claros sinais de terem verdadeir~ f é no cora~io e boje como urna espécie de sonho ou estória encantada.
amostrarem-no por obra, nao somente dos meninos que criamos
conosco, mas também dos outros grandes de mui pouco tempo Ternos, contudo, necessidade de captar-lhe as condicóes
convertidos. 11 de existencia e seu significado. Acostumados a um mun-
E cita Pero Lopes, sua mulher, suas duas filhas, do pluralista, em que as partes parecem gozar de auto-
Cayobi, Fernáo Correa. Nós, no entanto, tomando a fé determinacáo, . tendemos a interpretar o mundo qui-
no significado literal que Lumen Gentium, por exem- nhentista como se se tratasse de urna juncáo conven-
plo, ensina, estamos mais inclinados a ouvir Gabriel cionada de setores tao diferentes, quais o da fé e o do
Soares de Sousa, o qua! afirma que, se deixados oito império, ou seja, o da Igreja e o do Estado. O jesuíta,
dias fora da conversacao dos padres, os índios já náo que aqui lancou as sementes da pregacao cristá, via o
mais viveriam cristámente. Com isto estamos dizendo seu mundo com olhos contemporaneos, sob a ótica do
que aquilo que os missionários quiseram comunicar náo século. Sua acao se regia pela visao do "orbis christia-
chegou aos índios. Estes náo tinham condicóes cultu- nus", que era a visao de todos os homens do seu tempo.
rais para recebe-lo. Assim mesmo, receberam alguma Ao ana.lisarmos esta acao, ternos que ter presente esse
coisa, talvez o que Gilberto Freyre ·chamou de catoli- univer&?, de modo a nao deformarmos, por deficiencia
cismo sociológico. 12 Daí surgiu urna prática sustentada de conhecimento,. os fatos verificados. Nosso juízo náo
por explicacáo mágica. Os costumes cristaos, i.e., portu- pode substituir os fatos e suas motivacaes, contextuan.:
gueses, estes sim, os fudios assimilaram, ao fio da espa- do-os em nossa presente experiencia. - Como se deram
da. Foi o que operou, com eficácia, a catequese coloni..; evang~lizacáo e colonizacao, como entenderam os je-
zadora, assistindo o estamento dominante. suítas sua prqpria miSsáo, como sentiram o problema
da conversáo do indígena? - Questües como estas tem
10 . Lucien FEBVRE, Combates por la Historia, p. 245. que·ser respondidas segundo a visáo quinhentista.
11 . Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 244.
12 . Gilberto FREYRE, "Catolicismo Sociológico", Fo/ha de S. Paulo, O "orbis christianus" é urna imagem cristá medi~·
13/ 09/78, c. '-}, p. 3. val do mundo .. Fundou-se na crenca de que o mundo é
20 2J
'\
\ vam impregnar até a raiz pela fé; pela forma cristá de
,. ~e Deus, cujo representante na terra é a Igreja Cató- 1 entender a realidade. Na base de tudo estava a crenca
lica. Este Deus, por ser verdadeiro, exigia que todos o firme de que o orbe era essencialmente cristao.
reconhecessem. e lhe prestassem culto. A verdade abso- A universalidade deste orbe se viu ameacada com a
luta! ei~ o princípio e o fim do "orbis christiánus". Papa descoberta de regióes enormes, brutas, selvagens, "natu-
e reis t1nham por missáo precípua tirar-lhe os óbices, rais", ~ujas populacóes náo falavam língua crista, nao
estender e sustentar a fé, fazer reinar a graca de Deus. conheciam a Deus, em tudo destoando dos fiéis. Afron-
A. verd.ade se impoe por títulos próprios: náo há por onde tava-se a verdade! Era preciso que se dominassem as
d1scuti-lo. Era determinacáo divina que aqueles, a quem forcas adversas, sob o jugo do espírito do mal e se lhes
deputara como chefes, cumprissem coma unidade da fé,
anunciasse a salvacáo. A missao aos infiéis - Ínfiéis nao
com sua universalidade. A fé era a verdade a adesáo a
por terem renegado a f é mas por náo a terem conhecido
verdade: importava, pois, trazer todos a el~. Ela era a
ai~da--:- era dever de todos, porquanto era todo o seu
ordem instituída por Deus. Fora dela tudo o mais era .
universo que se estremecia como desafio nascente. Ha-
aberracáo, anomia, injúria. O natural, agora, é que o
sobrenatural desterre a natureza e "que até os confins via urgencia de anunc~ar a Palavra da salvacao, para
q~e, crendo, fossem batizados e ingressa~sem no mundo
do mundo cheguem as suas palavras". 1 A natureza era a
verdadeiro, e náo cren40, .fossem castigados e escravi-
negacáo da verdade mais evidente - Deus entre os
zad~s. ~im submetidos, haveria lugar para a implan- ·
h:omens - e implantacáo da desordem. Cumpria anun-
ta~ao de uma ordem, legal, institucionalizada; apresen-
ciar a verdade, em todo o lugar e sempre. Mais impor-
ca da graca cobrindo novamente todas as regioes da
ta~te, porém, era impo-la, faze-la viger. Este era o
terra, garantindo-se desta forma a unidade do orbe cris-
re1~0 de Deus que já se constrói nesta terra; por conse-
táo. Era a sua mesma sobrevivencia que impunha a
gu1nte, devia se identificar comos reinos existentes. Daí _
co~quista, pela for~a das armas, em guerra santa, guer-
se compreende a i:ocáo do Sagrado Império, orbe cristáo,
ra Justa, para declarar aos índios o seu direito de se tor-
e a sua construcao. A época, porém, que estudamos o
Sagrado Império já se desmembrara em Estados nacÍo- narem cristáos, de se salvarem. Os direitos humanos do
nais, legando a eles, assim mesmo, a desincumbencia "orbis christianus" eram, com efeito, direitos de s.e r cris-
t~o,. direitos estes que ninguém podía restringir, 'm as
destas responsabilidades maiores. Nao havia dualismo.,
social: de um lado a sociedade civil e de outro a socie- d1reitos estes, tambem, que ninguém podia recusar. Daí
~ "compelle eos intrare".2 Náo se pergu_ntava, a esta
dade religiosa. Nao! A fé informava todos os gestos hu-
epoca, se os ouvintes tinham condicáo de entender o
~an~s, indicando SU8; razáo última, Deus, mas nem por
isto t~rava-lhes o carater de humanos: compreendia-o ~ que se passava, táo evidente era a necessidade da cris-
tianiza~áo, táo evidente a naturalidade da sobrenature-
respe1tava-o. Destarte devia o rei governar, o comercian-
te tratar, o soldado conquistar, o navegante descobrir za. O impo:tante era a execucáo aparente, legal, pública,
terras, o padre pregar ao rei, ao comerciante ao soldado da anexacao dos novos territórios, compreendido éviden-
ao navegante e abencoá-los, cada um co~tinuando ¿ t~m~~te o batismo dos seus habitantes. A acáo externa
~1gn1f1cava (era sinal de) a conversáo : a realidade se
seu ofício. Fosse qual fosse o ofício, todos eles se deixa-
.
2. Lucas 14, v. 23.
1. Salmo 18, v·. 5.
23
22
tornava outra, ainda que náo se percebesse de imediato El-Rei (D. Joáo III), que esteja em glória, desejou a Companhia
em suas terras, esperando por ministério dela cumprir com muitas
,. toda a sua conseqüencia. Urna vez ·batizados, os a tos obriga~óes que a Coroa tem, nao só como Rei, mas ainda como
que contradissessem a fé cristá expressariam táo-somen- Prelado, por ser ele e os seus descendentes Mestres de Cristo,
Santiago e A vis, por cuja razáo é pastor espiritual em todas as
te distorcáo individual da vontade e náo mais disfor- Indias e terras de sua Conquista, e em muita parte do Reino. a
n:1i~ade total da realidade, disformid~de coletiv~. Dispo.. ..
s~coes especiais se ativariam para sanar a situacáo indi- Dom Joáo III, com efeito, náo fazia literatura quan-
vidual, mas a ordem estaria preservada. Salvava-se o do dizia a Tomé de Sousa:
orbe ?1:istáo, preservava-se sua estrutura, permanecia
o equ1l1brio. . A principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas tcrras-
do Brasil foi para que a gente dela se convertesse a nossa santa
Esta visáo regeu toda a obra da colonizacáo. É um fé católica. 4
erro a tribuí-la a um ou a outro setor da sociedade por-
~Uguesa - ~os jesuítas, por exemplo - como também
Junto aos índios, para quem f oram expressamente
e um erro afirmar que o estamento mercantil dominan- mandados, os jesuítas desincumbiam El-Rei deste seu
~e a r~descobriu e a manipulou segundo .s eus próprios
ofício de pastor e, por isto, eram também por ele sus-
1nteresses. Todos-os fatos deste período e desta empresa tentados, da mesma forma que os capitáes e outros fun-
devem ser vistos a luz da visáo imperante do "orbis cionários reais desincumbiam-no de outros ofícios e por
christianus'', respeitada a especific~dade das tarefas. A ele· eram sustentados. Por isto mesmo ternos que con-
ordem, no seio da sociedade portuguesa, já estava insti .. siderá-los, aos jesuítas, ;h.omens de sua sociedade, cum-
tucionalizada. Por isto mesmo a tónica da pregacáo, que prindo com urna tarefa estabelecida por essa sociedade,
lhe era dirigida, recaía sobre a fidelidade individual ao segulldo seus moldes. Eles náo foram instauradores de
cumpr~mento dos mandamentos com vistas a própria
urna nova ordem social, olhando-se do lado portugues,
salvacao. Esta se revestía de caracteres individualistas , mas fundadores, junto aos índios, da mesma ordem so-
dada a premissa de que a salvacáo coletiva já tinha sido cial que os enviou. Náo haverá conflito no que diz res..
operada, já estava átuando. Por aquí se entende a co- peito aordem instituciopalizada, preconizada pelo "orbis
1

participacáo da Igreja, mormente do clero - jesuítas christianus". Os confliros, de ambito sempre interno, se
incluídos - em todos os passos desta giga.Iitesca obra, daráo entre o cumprimento e o náo cumprimento dos
sem um projeto universal inovador: repetía-se simples.. postulados da ordem. É a partir deste ponto de vista que
mente a assistencia religiosa, reprovando o pecado. e devemos reler os documentos do século e fazer a crítica
incentivando as obras pias meritórias~ Cumpriam-se dos ·comentários, para náo incorrermos em parcialidade. ·
mecanicamente as tarefas: ninguém questionava o sis- Náo se trata de ser pró ou contra os jesuítas, mas de
entende~ os móveis da colonizacáo-e sua efetivacáo his-
tema edificado pelo "orbis christianus".
tórica. Náo há lugar, por exemplo, para urna questáo
Os jesuítas náo se puseram fora do sistema. Pelo como "hollestidade" dos jesuítas face aos objetivos espe-
contrário, este explica muito bem toda a sua pastoral. cíficos de 1sua missáo evangeli.zadora: mais importante
Desde o primeiro passo. Com efeito, foram mandados,
por El-Rei, a quem, soba autoridade do papa, ·incumbía 3. Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 38x
a extensáo da fé: · 4. Regimento de Tomé de Sousa.

24 25
que sabe-los fiéis pregadores da mensagem religiosa é dadeira soltura". 8 "Admirável a divina Providencia que
" sabe-los "funcionários" de urna ordem estabelecida e se serve de meios tao humildes (a sede de metais no-
querendo se estabelecer. . bres) para levar a cabo obra táo portentosa (a conver-
sáo dos índios)". 9 A conversao pela sujei~ao foi a fór-
, . É sob esta luz... que se deve repensar o problema teo-
mula prática que traduziu a Fé e o Império em terras
logico da conversao pela sujei~áo. Torna-se mais com-
brasilicas. Foi um meio necessário, nao na alusao a dor
pree~sível, embora nao menos inaceitável para nós, todo
com que se teria operado, mas no sentido de ter sido
o ª!ª pela cristianiza~ao da nova terra. Isto era o que ·imposto pelas próprias circunstancias. Por ela a própria
se 1mpunha, podendo a prepara~ao ser mais breve ou natureza se redimía, exorcizavam-se as for~as do mal
mais longa, mais rígida ou menos rígida. O fim devia recolhiam-se as benesses do "orbis christianus". '
ser alcan~ado. Se nao bastassem as palavras, urgia im-
por outros meios que "preparassem o camiilho· do Senhor O conhecimento desta concep~ao crista medieval
e endireitassem as suas estradas, pois que a humanidade válida ainda para o Portugal quinhentista, é a chav~
inteira haveria de ver a salva~ao que vem de Deus".5 para a interpreta~ao da empresa colonial. Já nao tem
Daí a interven~ao de outros grupos da mesma sociedade ela dois grandes objetivos, como se pretendeu, de colo-.
evangelizadora: sujeitava-se o índio e oferecia-se ao je- nizar e de evangelizar. A unidade do mundo, verdadeir6
suíta o campo nivelado: · universo, fundada sobre a realidade de Deus, obrigava
papa e príncipes a manuten~ao da fé e a luta pela sua
Parece-nos agora que estáo as portas abertas nesta Capitanía implanta~ao em territórios onde ela fos8e renegada ou
para .ª conversao dos. gentíos, se Deus nosso Senhor quiser dar ainda desconhecida. Se permanecesse quebrada, pela
mane1~a, com que seJa!_ll p~stos debaixo do jugo, porque para
este genero de gente nao ha nielhor prega~áo do que espada e infidelidade, a unidade, pór-se-ia em risco o equilíbrio
vara de ferro, na qual mais que em nenhuma outra, é necessário social, quando nao o próprio equilíbrio cósmico. Impu-
que se cumpra o compelle e os intrare. 6
nha-se a regenera~áo. de todas as partes da terra ' com
Porque entrando a justi~a com eles, com espada nua e campal o que lucrariam \ náo só os cristaos - mantendo-se a
g_uerra, por boa indústria do Senhor Mem de Sá, Governador, ordem e a conseqüente paz - mas sobretudo os gentíos.
f1cam de paz; e como a tem corporalmente, nós trabalhamos de
a dar espiritualmente; e por este meio se há feíto tanto fruto Esta regenera~áo se fazia mediante a conquista territo-
quanto V . R . poderá lá entender por cartas. 7 . rial, único meio de abalar eficazmente as estruturas da·
antiordem. Com a for~a militar, vinham os sacerdotes.
A sociedade portuguesa se jubilava com estes feitos:. miss~onários e todas as demais camadas da sociedade
"Os próprios indígenas deviam se sentir alegres da sorte crista. Agiu-se movido por esta concep~ao, totalitária. no
que lhes tocara, pois embora os seus corpos ficassem em mais profundo sentido porque visava implantar a única
alguma sujei~áo, isto era pequena coisa em compara~ao
das suas almas, que eternamente haviam de possuir ver- '
' ..
8. Os textos citados nesta nota e na seguinte nao se referem expressa·
~ente aos índios .do Brasil. Nao tive dúvida em acomodá-los porque traduzem
fielmente a maneira comum de pensar dos portugueses quinhentistas. O texto
5. Lucas 3, vv 4-6. a que se refere a nota, foi extraído de Maurício GOULART A. escravid¡fu
6_. José de ANCHIETA, Cartas, lnformac<J~s. Fragmentos Históricos e A.fricana no Brasil, p. 50. '
Sermoes, p. 179. 9 · Apud Joseph HOEFFNEJt, La ética colonial española del siglo de
7. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. III, p. 160. oro. Cristianismo y dignidad humana, p. 176.

26 27
totalidade: o "orbis christianus". Por isto mesmo náo
,. tiveram seus realizadores nenhuma sensibilidade pelo ..
problema intercultural e náo deixaram fazer-se ouvida
a voz dos "bárbaros". Fé e Império, Servico de Deus e
Servico Meu, irmanados na mesma totalidade, presidi-
ram a empresa colonial.

CAPITULO 11

PREDOMINANCIA DOS INTERESSES MERCANTIS


SOBRE OS INTERESSES RELIGIOSOS

A grande empresa colonial se operou segundo as


concepcóes do "orbis christianus". A sociedade portu-
guesa, como um todo, dirigiu seus passos. Isto náo quer
dizer que o orbe cristáo te.n ha diferenciado as tarefas
específicas, as motivacóes singulares. Há lugar para se
perguntar. que grupo prevaleceu sobre os demais, que
interesses predominarám, salvaguardando embora os
princípios fundamentais da concepcáo cristá vigent~.
Este capítulo pretende analisar as mútuas relacóes
entre os interesses mercantis e os interesses religiosos,
como fito de situar bem o contexto em que se operou a.
catequese dos índios.

O SISTEMA COLONIAL MERCANTILISTA

Já se tornou lugar-comum, boje, dizer-se que a his-


• tória de nossa colonizacáo tem que ser estudada como
um capítulo da história mercantil européia do século
XVI. Nossa economia e nossa sociedade se organizam,
em suas estruturas e em suas atividades, voltadas para
a realizacáo dos interesses do comércio europeu, via Por-
tugal.1 "O principal obje.to das doacóes (d~ capitanias)
1. Caio PRADO JR., Forma,áo do Brasil Contemporaneo, p. 22.

29
28
consistia em promover a agricultura, ( . .. . ) asaim como modo a que a sua comercializa~áo promovesse estímulos
~ o privilégio, outorgado ao donatário, de só ele fabricar a originária acul!lula~áo burguesa nas economías euro-
e possuir moendas e engenhos de água, denota ser a la- péias. Náo se tratava apenas de produzir para o co-
voura do a~úcar a que se tinha especialmente em II\ira mércio, mas para urna forma especial de comércio: o
introduzir." 2 O regime, conferindo amplos poderes e di- comércio colonial é, mais urna vez, o .sentido último (ace-
reitos patrimoniais e, até 1549, também jurisdicionais, lera~áo da acumUla~áo primitiva de capital) que coman-
ao capitao latifundiário, criava urna situa~áo de depen- - da todo o processo de coloniza~áo. Ora, isto obrigava ~
dencia orientad.a para a grande produ~áo. Visava-se alto economías a se organizarem de molde a permitir o fun-
lucro e este só podia se obter com altos negócios: imp:u- cionamento do sistema de explora~áo colonial, o que
nha-se a monocultura monopolizada. A economía ·da impunha a ado~áo de formas de trabalho compulsório
colonia tinha que favorecer o crescimento mais rápido ou na _sua forma limite, o escravisino." ª
possível da economía metropolitana. Isto ~e conseguiu Desta forma se compreende que, desde as primeiras
através do plantío e da industrializa~áo da cana-de-a~ú­ expedi~óes, se tenham praticado o salto e o resgate. Sem
car. Fernando Antonio Novaes escreve: ''Toda a estrutu- olhar para trás, para iguais práticas feítas entre mouros
ra~áo das. atividades económicas coloniais, bem como a e negros africanos, entende-se facilmente a introducáo
forma~áo social a que servem de base, definem-se nas deste hábito entre nós, dadas as condi~óes e os objeti-
linhas de for~a do sistema colonial mercantilista, i.e., vos da empresa colonial: a coloniza~áo do Brasil foi
nas suas conexóes com o capitalismo comercial. E de pensada e realizada em funcáo da producáo, para · o
fato, náo só a concentra~áo dos fatores produtivos no enriquecimento da coroa e do estamento mercantil do-
fabrico das mercadorias-chave, nem apenas o volume e minante. Náo se abriam brechas de modo a se engros-
o ritmo em que eram produzidas, mas também o próprio sarem as fileiras dos homens ricos: estes já vinham ricos
modo de sua produ~áo define-se nos mecanismos do do Reino e vinham para aumentar mais ainda sua rique-
sistema colonial. E aqui tocamos no ponto nevrálgico: a za. Os demais vinham ou se lhes acre&centavam para o
coloniza~áo ( ... ) organizava-se no sentido de promover seu servico. Este era o ponto de vista dos colonizadores.·
a primitiva acumula~áo capitalista nos quadros da eco- A lógica do empreendimento é transparente: o lucro,
nomia européia ou, noutros termos, estimular o progres- que se visava, só podía ser ·obtido através da _g rande pro·-
so hurgues nos quadros da sociedade ocidental. É esse du~áo concentrada em poucas máos e realizada a custos
sentido profundo que articula todas as pe~as do sistema: baixos. Náo havia, pois, lugar para muitos.
assim, em primeiro lugar, o regime do comércio se desen-
volve nos quadros do exclusivo metropolitano; daí a Esta foi, em verdade, a história da colonizacáo, já
produ~áo colonial orientar-se para aqueles produtos in-
no século XVI: "Em fins dos 500 já havia colonos de 40,
dispensáveis ou complementares as ecQnomias centrais; 50, e 80 mil cruzados de seu. Mais de cem colonos pos-
enfim, a produ~áo se organiza de molde a permitir o fun~ suíam em 1584 de 1.000 a 5.000 cruzados de rendas, e
cionamento global do sistema. Em outras palavras, náo alguns de 8 a 10.000. Naturalmente, tal abastanca exigía
bastava produzir os produtos com procura crescente nos o esforco de dezenas e centenas de trabalhadores; ~ua
mercados europeus: era indispensável produzi-los de
3 . Fernando Antonio NOV AES, Estrutura e Dinamica do Antigo Sistema
2. Joáo Lúcio . de AZEVEDO, Épocas de Portugal Económico, p. 235. Colonial. Cadernos Cebrap. 17, p. 27. ·

30 31
condicáo necessária era, pois, urna ínfima minoria de timidade da forma, distinguindo-se entáo formas justas,
colonos, formando grandes exploracóes." 4 A luta do de formas injustas. Toda guerra justa gerava escravi-
estamento mercantil, desde a primeira hora presente zacáo justa. A guerra justa era aquela que o príncipe
nas pessoas dos capitáes latifundiários, consistia em declarava justa. Com efeito, o papa o encarregara da
manter urna sociedade fechada, reduzida a dois segmen- evangelizacáo dos índios e, como recompensa, lhe atri-
tos: os senhores e os outros. O esquema mesmo da colo- buíra o monopólio do tráfico comercial com o novo
nizacáo urgia tal ordem de coisas e náo havia como mundo. O príncipe comissionara o catequista que, em
modificar a situacáo sem que se desmoronasse toda a seu nome, prega e converte. O convertido, pórém, seria
sua possibilidade. excessivamente tentado se persistissem as condicóes
A Coroa náo tinha condicóes práticas de proibir a anteriores: por isto o príncipe intervém e estabelece go-
caca ao índio e sua conseqüente escravizacáo, primeiro, verno e administracáo. Em defesa dos convertidos, faz
porque havia necessidade urgente de máo-de-obra abun- guerra aos seus contrários e os_submete. A outros, os
dante, o que Portugal náo podia suprir, dada sua rala submete pelo ultraje ao Deus verdadeiro ao ofender a
densidade populacional;~ segundo, porque a empresa,. lei natural: comendo carne humana, por exemplo; náo
da qual era ela própria capitá, exigia máo-de-obra ba- andando vestidos; tendo mais de urna mulher. A outros,
rata, ou, dados os objetivos da acumulacáo primitiva de os submete a título de compensacáo pelos ingentes gas-
capital, máo-de-obra escrava; terceiro, porque, náo es- tos com a empresa evangelizadora-colonizadora. A ou-
tando os índios do Brasil afeitos aos princípios estru- tros, por outros títulos. Os argumentos sobre a justica
turais da cultura e da sociedade portuguesa, nenhuma da guerra e conseqüente cativeiro se baseavam numa
diferenca fazia obrigá-los a trabalhar por nada ou tra- premissa duvidosa: a iustica do "status quo" social. Mas
balhar p~r coisa pouca. Impunham os fatos a escravidáo. náo nos interessa, aqui, considerar a ambigüidade do
critério adotado: o importante é observar que se con-
A ~TICA COLONIAL E OS ESFOR~OS PELA SUPRESSAO tornam todos os obstáculos morais e legais e se dá razáo
DA ESCRAVIDAO , para o empreendimento planejad~. Aceito um princípio
•'
justo de escrav~zacáo, está aberta a porta para seu esta-
Já havia, eontudo, a essa época, um consenso em belecimento em bases sólidas. A luta, doravante, se resu-
torno deste tema. Náo se discutia mais sobre a legitimi- _ mirá em enquadrar os fatos sob os princípios justifica-
dade da escravidáo, em geral: os mais abalizados douto- tivos. A luta entre jesuítas e colonos, os primeiros
res da Igreja julgavam-na natural, quer por deficiencias defendendo ao máximo a liberdade dos índios, e os se-
intelectuais, quer pela degradacáo do pecado, quer por gundos forcando ao máximo s.e u cativeiro justo, será
razóes de cativeiro. A discussáo girava em tomo a legi- urna mera questáo de enquadramento: entre eles me-
diará a Coroa (a primeira interessada), a que enviou
4 . Caio PRADO JR., Evolu,áo Política do Brasil, p. 23.
tanto a uns como a outros; é ela quem decidirá. A luta
5 . "Em 1527 a soma total dos fogos em todo o ReinQ andava por du- deixa de ser fundamental para ser casuística. O esta-
zentos e oitenta mil quinhentos e vinte e oito; dando a cada um destes um
número de quatro indivíduos, a popula~áo do Reino seria naquele ano de mento-mercantil já se regozija: o máximo que pode per~
1.122.112 habitantes. Com este pessoal exíguo, que nao bastava para enche-lo, der é num ou noutro caso; os princípios lhe garantem o
ia Portugal povoar o mundo. Como conseguí-lo sem atirar-se a mesti~agem?"
Capistrano de··ABREU, Capítulos de História Colonial, p. 45 .- sucesso.

32 33
"Para explorar a terra, El-Rei contratou, em 1502, critério de "tempos convenientes".' A leitura do texto
.. o tráfico do pau-brasil e escravos, com Femando de No- nos permite interpretar esta conveniencia em consonan-
ronha e urna companhia de comerciantes." 6 O comér- cia com "os danos até agora feitos" e coma certeza da
cio de pecas indígenas já se outorgara também aos ca- vitória. Os tupinambás, que fizeram guerra a Francisco
pitáes donatários nas cartas de doacáo. Sua finalidade Pereira Coutinho, destruindo-lhe as fázendas, estes po-
era o lucro nas vendas. Logo, porém, se percebeu que deráo ser modelarmente castigados pela morte (alguns
a u tilizacáo do braco indígena traria 1ucros maiores que principais seriam enforcados) e pelo cativeiro ("aquela
os da venda. Assim Pero de Goes, já em 1545, mantém parte deles que vos parecer que abasta para seu castigo
escravaria e Martim Afonso de Sousa, diz-se, tinha neste e exemplo de todos"). O perdáo estará sujeito ao reco-
mesmo ano cerca de tres mil em suas terras. Desta for- nhecimento de sujeicáo e vassalagem e com encargo de
ma os fatos antecederam a justica. Tomé de Sousa che- darem cada ano alguns mantimentos para a gente da
ga, em 1549, com seu Regimento. 7 Nele ordenava El-Rei: povoacáo. Igual procedimento será, mais tarde, reco-
" mendado a Mem de Sá com relacáo aos caetés que, anos
Eu sou ínformado que nas ditas terras e povoa~s do Brasil bá
algumas pessoas que tem navíos e caravelóes, andam nel.es de antes, acabaram com o bispo.9 Sáo casos tí.picos de
urnas capitanías para outras e que, por todas as vías e ma'neiras guerra justa. O~ próprios jesuítas concordam com me-
que podem, salteíam e roubam os gentíos que estáo de paz e
enganosamente os metem nos ditos navios e os levam a vender didas semelhantes. Sua luta é contra aqueles colonos e
a seus inimígos e a outras partes e que por isso os ditos gentíos capitáes - mais do que nunca acobertados por "tempos
se levantam e fazem guerra aos cristáos e que esta foi a principal convenientes" - que continuam a atividade preadora,
causa dos danos que até agora sao feitos. E porque cumpre muito
a servi~o de Deus e meu prover-se nisto de maneira que se evite, através de manhas e enganos, incitando os índio~ a
hei por bem que daqui em diante pessoa alguma de qualquer guerras· intertribais para se beneficiarem dos resultados.
qualidad~ e condi~áo que seja, nao vá saltear nem fazer guerra
aos gentl~s por terra nem por mar, em seus navíos, nem em Há apelos constantes a El-Rei. Este toma medidas buro-
outros quaisquer sem vossa licen~a ou do capitio da capitanía cráticas, como esta que mandou a Mem de Sá·:
de cuja jurisdi~áo for, posto que os tais gentíos estejam levantados
a
e de guerra·; o qual capitao nao dará- dita licen~a senáo nos
Eu sou informado que, geralmente, nessas partes, se fazem cativei:.
tempos que lhe parecerem convenientes e a pessoa de que confie ·
que fará o que devem e o que lhe ele ordenar e mandar. E indo r95 injustos, e correm os resgates com título de extrema necessi-
algumas das ditas pessoas sem a dita licen~a ou excedendo o modo dade, fazendo-se os vendedores país dos que vendem, que sio as
9ue o ~ito capitáo lhe ordenar quando lhe der a dita licen~a. coisas com que as tais vendas podiam ser licitas, conforme ao
mcorrerao em pena de morte natural e perda de toda sua f azenda, assento que se tomou. ~ Nio havendo as mais das vezes as ditas
a metade para a rendi~áo dos cativos e a outra metade para quem causas, antes pelo contrário intercedendo f or~a. manhas, enganos,
o acusar. s com que os induzem facilmente a se venderem, por ser gente
bárbara e ignorante, e por este negócio de resgates e cativeiros
injustos ser de tanta importancia, e ao que convém prover com
Tratava-se de implantar nova justica na terra, a . brevidade, vos encomendo que com o Bispo e o Padre Provincial
cargo do governo geral. Doravante a justica na guerra da Companhia, e o Padre Inácio de Azevedo e Manuel da N6-
brega e o Ouvidor Geral; que lá está, e o que ora vai, consulteis
estará condicionada a urna licenca do capitáo. É bem e pratiqueis, neste caso, e o modo que se pode e deve ter para
verdade que esta licenca está condicionada a um vago atalhar aos tais resgates e cativeiros. 10

9 . Voltava a Portugal D. Pero Femandes, primeiro hispo do Brasil,


6. Alexandre MARCHANT, Do Escambo a Escravidáo, p. 37. quando sofreu naufrágio. Salvo em terra, foi morto pelos caetés, ele e toda
7 . O Regimento de Tomé de Sousa foi dado aos 17 de dezembro de a sua gente, no ano de 1556.
1548. Por maís de cem anos foi a Carta Magna que orientou a política colonial.. 10. José de ANCHIETA, Cartas, lnforma,óes, Fragmentos Históricos e
O original se conserva no Conselho Ultramarino, em Lisboa, Códice 112.. · Sermoes. Apud Serafim LEITE, História dá Companbia de Jesus no Brasil,
8. Regimento de Tomé de Sousa. t. 11, p. 198.

34 35
A Mesa da Consciencia fora favorável a cativeiro consiste em que só o monarca pode doravante autorizá-
~ justo em dois cas.os: o da guerra justa e o da venda, por la. No ano ·seguinte restringe-se a descida de índios aos
quem de direito, em caso de grande necessidade. Mas, padres da Companhia, resguardando-se todos os direi-
pelo visto, as coisas nao tinham melhorado-. Em 1570 tos a liberdade no trato comos portugueses. A Lei Aurea
Dom Sebastiao decreta urna nova lei, declarando justa dos índios data de 1609. Confirma-se:
a guerra que ele ou seu governador estipularem como que ficavam livres, segundo o direito, e seu nascimento natural,
tal ou a guerra feíta "aqueles que costumam saltear os todos os índios das partes do Brasil, sem distin~ao alguma entre
portugueses, ou a outro.s semelhantes". 11 Em 1574, a batizados e nao batizados, que vivessem ainda como gentios,
conforme seus ritos e cerimonias.
Junta reunida na Babia, repetindo as determina~oes Que os religiosos da Companhia de J esus, por serem os mais
anteriores, estabelece· que, ~ara ter efeito de legitimi- bem aceitos dos gentios,. que deles faziam grande crédito e con-
fian~a. e pelo conhecimento e exercício que tinham da matéria
dade, se passasse antes pela alfandega. A Junta de 1581 fossem ao sertao, para os domesticar e assegurar em sua liber-
resolve: "O que se deve propor a S.M. acerca dos índios dade, encaminhando-os no que lhes convém, assim nas coisas
tocantes a sua salva~ao como nas da vida ordinária e comércio
é o seguinte: que se fa~a lei que daqui em diante ne- precavendo-os dos enganos e violencias com que os capitáes do-
nhum índio do Brasil possa ser escravo" .12 El-Rei náo natários e moradores costumavam traze-los
.
do. mesmo sertao. 14
atende a recomenda~áo e renova a lei de 1570. É impor-
tante, contudo, anotar como concebe a descida pacífica J?esta forma termina o capítulo da liberdade (los
de índios: · índios. Nao que se abolisse de urna vez por todas a escra-
vidao indígena: o casu:fsmo original justificaría ainda
(E com os que foreJil ao gentio) irao dois ou tres ·Padres da
Companhia de Jesus,' que pelo boro crédito que tem entre os gen- muita irregularidade. O que importa, porém, notar é a
tios, os persuadirao mais facilmente a virem servir aos ditos seus
vassalos em seus engenhos e fazendas, sem for~a nem engano,
mediacao <:la Coroa nos conflitos entre jesuítas e colo-
. declarando-lhes que lhes pagarao seus. servi~os, conforme ao meu .nos. Os arranjos jurídicos sao sempre contornados por
Regimento e que, quando se quiserem tirar dos engenhos ou arranjos fatuais. "A justi~a nesta terra é remissa", já
fazendas onde estiverem, o poderao fazer, sem lhes ser feita for~a
obs~rvava Pero Cor.reia. '):'emos que observar dois movi-
15
alguma; e, d,epois de vindos os ditos Indios do sertao, hei por
bem que se nao repartam entre os ditos moradóres, sem serem
presentes a isso o dito meu Governador, Ouvidor Geral e os mentos paralelo~ em oposicáo as determina~oes escritas:
Padres que foram nas tais arma~6es, ou outros da mesma Com- 1.0 : a necessidade premente que tinha de bra~os a em-
panhia, os quais procurarao que a dita reparti~ao se fa~a mais
a gosto e proveito dos Indios que das pessoas por quem se repar- presa colonial; . 2. 0 : o monopólio, pela Coroa, do tráfico
tirem, nao os' constrangendo. a servir em contra suas vontades. 13 negreiro, em curso, a -cujos interesses se opunha o trá-
fico indígena, monopólio dos paulistas. O negro veio
. Soba aparencia de favorecer a causa defendida pe-
los padres da Companhia, El-Rei os compromete com salvar o índio. Mudou-se apenas de termo: náo se mu-
os interesses maiores do estamento mercantil, garantin- dou a situa~ao. Carlos Lacerda, prefaciando, em 1943,
do, com sua participa~ao, o fluxo de mao-de-obra para Do Escambo a Escravidio, de Alexander- Marchant, es-
engenhos e fazendas. Em 1595, revogam-se todas as leis crevia: "Se se trata de explicar o advento do tráfico de
ante.riores e se permite ainda a guerra justa: a novidade escravos negros, a fórmula· é simples: como os índios
/

11 . Serafim LEITE, op. cit., p. 207 14. ,Apud Wilson MARTINS, História da Inteligencia Brasileira, t. l,
12. Ibídem, p. 210. . ¡>. 80.
13. lbidem, p. 211. 15. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 435.

36 37
( ... ) nao representassem valor económico na produ~áo \ tivo, grande obj~tivo: a produ~ao em larga escala, que
"colonial . . . " 16 · \ compensasse os interesses da acumula~áo primitiva do
E Fernando Ant9nio Novaes: "Mas na "preferencia" ~apital. Tudo o mais se ordenava em fun~áo disto tam-
pelo africano revela-se - eremos - mais urna vez a bém a vida daqueles que eram tidos por máo-d~obra.
engrenagem do sistema mercantili~ta de coloniza~ao; e Mas esta falta de radicalidade era muito mais efeito da
esta se processa ( ... ) num sistema de rela~éies tenden- co~junt~ra soci~l do que qualquer outra coisa. Os je-
tes a promover a primitiva acumula~ao capitalista na suitas nao quest1onaram essa estrutura social: os fun-
fuetrópole: ora, o tráfico negreiro abria um novo e impor- damentos teológicos e jurídicos do "orbis christianus"
tante setor de comércio colonial, enquanto que o apre- er~m considerados dogmáticos. Cumpria cristianizar o
samento dos indígenas era um negócio interno da coló- un1verso,.segundo os moldes vigentes. Por isto, os jesuí-
nia".11 tas respe1ta~am a ordem estabelecida e partiram dela.
Quer dizer, a gloriosa luta pela liberdade dos índios Seu papel nao ia além de questionar a legitimidade dos
obedeceu exclusivamente aos ditames do estamento mer- casos particulares. Ora, a ilegitimidade particular nao
cantil e aos seus interesses. Vagando entre princípios afetava, como vimos, senao secundária e isoladamente
que respeitavam a legitimidade de uma escravidáo e a o estado de cristandade: redi_mia-se com penas partí~
imperiosa necessidade de máó-de-obra por parte dos co- culares.
lonos, só náo se esvaiu totalmente porque outra escra- Os colonos, sim, tinham urna posi~áo clara e defini-
vidao a substituiu. A ética foi perdendo, com os fatos, da: os índios deviam estar sujeitos aos seus (dos colo~
sua razáo de ser. . nos) interesses, quer cedendo suas terras, quer traba-
1

lhando e guerreando em seu ~r. Os índios, como a


A NA.0-RADICALIDADE DO JESUITA naturez~ vegetativa e animal - muitos colonos nao
queriam tomar conhecimento da bula úSublimis Deus"- 18
AÓs jesuítas faltou urna posi~áo clara e radical no -, estavam a seu servi~o. Nao que os colonos afrontas-
tocante a liberdade dos índios. A sutileza jurídica, de sem os princípios do "orbis christianus": julgavam estar
raízes européias, nao há dúvida, mas de sustenta~áo pr~s~ando servi~o a Deus pelo simples ·c ontato com os
eclesiástica - entre os grandes teólogos distinguiam-se, crIStaos, que eles proporci,óJlavam aos índios. E, em qual-
·por exemplo, Gregório de Valencia, Luís de Molina, quer necessidade, tinham recurso a confissáo. Os jesuí-
Francisco Súarez, Alfonso Salmerón, todos jesuítas - t.as se negavam a absolve-los, a menos que, arrependidos,
com que defendiam suas posi~éies casuísticas, irtfirmava 11bertassem os escravos mal tidos. Debalde.
sua a~ao global. Náo se trata agora de impingir aos ~s clérigos desta , terra tem mais ofício de
demonio que de clé-
jesuítas do século XVI urna crítica forado tempo. Com rigos: porque, alem de seu mau exemplo e costumes, querem
razáo, pensamos, a falta de radicalidade permitiu que
os índios fossem escravizados e dizimados máos dosas 18 . Bula de Paµlo 111, com data de 2 de junho de 1537. Nesta Bula o
papa afirma que ouvira dizer que, no Novo Mundo, se tratava aos índios como
colonos depredadores da natureza. Havia um único obje- a brutos . animais ou pior ainda. E declara: "Os ditos índios e todas as mais
gentes que daqui . em di!lnte ~ere~ a notícia dos cristaos, ainda que estejam
fora da fé de Cnsto, nao estao privados nem devem se-lo de sua liberdade
16. Alexander MARCHANT, op. cit., p. 9. nem do dominio de seus bens e que nio devem ser reduzidos' a servidao". Apud
17. Fernando Antonio NOV AES, op. cit., p. 31. J. ACCIOLI e B. AMARAL, Memórias Históricas da Bahía.

38 39
contrariar a doutrina de Cristo e dizem publicamente aos homens
( . : . ) que podem ter os salteados, pois que sao caes, e outras
¡ se lhes manifestava clara: o jesuíta estava sujeito, tam-
co1sas semelhantes. 19 bém ele, a um mais fo rte. Era urna li~áo vivida, urna
/ li~áo experimentada. Desta forma a a~ao missionária
Estava aberto o confronto entre jesuítas .e colonos. do jesuíta se lhes afigurava como instrumento da colo-
Se, de um lado, os jesuítas negavam absolvi~áo aos sal- niza~ao, ainda que nao tivessem condi~ao de estruturar
teadores de índios, estes, por sua vez, revidavam da um argumento deste tipo. A experiencia, contudo, dis-
forma que podiam: pensa argumentos.
E os .senhores sao tais q~e UDS lhes mandam que nao venham a O jesuíta nao assumira urna posi~ao radical e se
doutrma; e outros lhes d1zem que nao há senao viver a vontade viu a bra~os comos abusos do colono. O colono assumiu
oeste ?1uº?º• que no outro a alma nao sente; outros lhes dizem
qu~ nos nao sabemos o que lhes dizemos, que eles sao os verda- urna posi~áo radical e se viu a bra~os comos princípios
deiros, que lhes falam verda~e; outros lhes dizem muitos vitupérios formais da lei, que o jesuíta defendia. Ambos defen-
de nos para nos desacreditar com toda a gentilidade o que
muitas vezes acontece. 20 · ' dendo a mesma cultura portuguesa, direta ou indireta-
Se queremos alguma hora fazer ou dizer alguma · coisa sobre
mente; defendendo os ·mesmos valores, defendendo a
estes escravos injustamente cativos quando se acolhem a nós os própria sobrevivencia, pendente desta cultura. Uns e
outros se achavam irmanados por interesses fundamen-
A '
que ~s ~em por seus escravos ou escravas nos amea~am, dizendo
em publ:co e pelas pra~as que nos farao e acontecerao, e que nos
que1marao as casas, e que nós, os das roupas largas, nio somos tais, embé>ra em posi~áo contrastante. A presen~a do
bons para nada. 21 índio náo lhes foi ocasiáo para um confronto de cultu-
Por náo querer absolver os donos de escravos injus- ras, mas simples e pobre ocasiao para o confronto das
tamente tomados, "commota est universa gens contra próprias posi~óes dentro da mesma cultura portuguesa.
nos", chora Nóbrega. 22 Criou-se, assim, um impasse. O índio surgiu, para ambos, como objeto: um objeto
Os índios, objeto de toda a discussáo, viam nos je- novo que devia ser estudado, classificado e integrado
suítas aquela - por~áo da sociedade portuguesa que os culturalmente e ocupar um lugar dentro do já estabele-

protegia ainda contra os· abusos. A falta, porém, de urna cido. Este objeto nada tinha para dar, apenas para re-
práxis constante e igual, de um comportainento cujos c~ber. Jesuíta e colono, apesar das manifestas divergen-
resultados se -repetissem uniformemente ou, em outras .
cias, trabalhavam a mesma imposicao cultural. Esta
palavras, o fato de as vezes terem exito e as vezes terem unidade final de objetivos nao tira da luta os aspectos
insucesso os jesuítas· - os índios náo podiam perceber polemicos: ao contrário, caracteriza-os como caminhos
as sutilezas jurídicas do justo e do injusto - nao lhes possíveis para a integra~ao almejada. A nao-radicalida-
permitia urna confian~a total nos missionários. Sen- de do jesuíta se encontrou coma radicalidade do colono
tiam ser maior a for~a do governador1 do capitáo e do no respeito para com os fundamentos propostos pela
colono. O próprio jesuíta era usado por eles para a des- concep~ao do "orbis christianus". Estes, permanecendo
~id~ de índios e, por fim, ludibriado como os próprios
intq_cáveis, impediam aprioristicamente qualquer ino-
va~ao.
md1os. Desacreditava-se, assim, a sua ·missáo. A li~áo
'
A QUESTÁO DA SUJEICA.O
19 . Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 89.
20. Manuel da NóBREGA, loe. cit., p. 158. Conquistaré sujeitar. Nao há lugar para urna dis-
21. C~RTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. l, p. 437.
22. Ib1demf p. 455. cussáo ética sobre a justi~a da conquista: .ela, pelo con-
40 41
trário, é o fundamento para a determinacáo e aplicacáo J gentíos. Os j~uítas náo duvidaram em apelar para mo-
:I?s c~itérios de jus~ica. A, fur:damentacáo da conquista,¡ tivos económicos, aos quais El-Rei se sentia muito mais
Jª o vimos, estava ligada a ideia, plenamente vigente no sensível, a fim de conseguir a situacáo por eles julgada
Portugal quinhentista, do "orbis christianus". A sujei- favorável a sua própria empresa. Para entendermos a
cáo poderia se fazer a moda feudal, como se tentou nas posicáo dos jesuítas no tocante a sujeicao dos índios,
feitorias da Africa. Aqui, porém, tratando-se de urna nada melhor que a exposicáo de motivos feíta por Nó-
cultura onde nao existía igual organizacao da economía, brega:
impunha-se urna sujeicáo escravizadora, por fazer mais Depois que o Brasil é descoberto e povoado, tem os gentíos mortos
e comidos grande número de cristaos e tomadas muitas naus e
rapidamente dos índios instrumento de producao. Com navios e muita fazenda. E trabalhando os cristáos por dissimular
a sujeicao impunham-se governo, administracao, regi- estas cousas, tratando com eles e dando-lhes os resgates com
que eles folgam e tem necessidade, nem por isso puderam fazer
me, modo de vida novos. A sujeicao impunha a cultura deles bons amigos, náo deixando de matar e comer como e quan-
e os objetivos portugueses. do puderam. E se disserem que os cristáos os salteavam e trata-
vam mal, alguns o fizeram assim e outros pagariam o dano que
Ela podia ser feita por via pacífica ou por meio de estes fizeram ; porém há outros a quem os cristáos nunca fizeram
guerra. Ambos os meios foram usados. A guerra náo mal, e os gentíos os tomaram e comc;ram e fizeram despovoar
muitos lugares e f azendas grossas. E sáo tao cruéis e bestiais,
trazia propriamente problemas éticos com respeito ao que assim matam aos que nunca lhes fizeram mal, clérigos, frades,
cativeiro. Por outra, os índios estavam acostumados a mulheres de tal parecer, que os brutos · animais se contentariam
delas e nao lhes fariam mal. Mas sáo estes tao carniceiros de
ela, tendo nela um dos suportes de sua própria cultura. corpos humanos, que, sem exce~áo de pessoas, a todos matam
Os prisioneiros de guerra eram reduzidos a escravos, e comem, e "nenhum beneficio os inclina nem abstém de seÜs
maus costumes, antes parece e se ve por experiencia, que se
embora sua nocao de escravidao nao compreendesse o ensoberbecem e fazem piores, com afagos e bom tratamento. A
trabalho produtivo. O simples fato de os portugueses prova disto é que estes da Babia sendo bem tratados e doutri-
lhes fazerem guerra nao devia assustá-los, porquanto nados, com isso se fizeram piores, vendo que se náo castigavam
os maus e culpados nas mortes passadas, e com severidade e
podiam ver nos portugueses aliados dos seus contrários. castigo se humilham e sujeitam.
Os costumes, estes sim, introduzidos pelos portugueses Depois que S . A . mandou Governadores e justi~a a esta
terra, nao houve saltearem os gentíos nem tomarem-lhes o seu
com relacao as seqüelas da guerra, afetavam tremenda- como antes, e nem por isso deixaram eles de· tomar muitos navios
mente a cultura indígena: era o caso da escravidáo para e matarem e comerem muitos cristáos, de maneira que lhes con~
vém vivcr em povoa~óes fortes e com muito resguardo e armas,
o trabalho, do aldeamento em promiscuidade com outras e náo ousam de se estender e espalhar pela terra para fazerem
nacóes, numa forma de vida que nao lhes era nem um fazendas, mas vivcm nas fortalezas como fronteiros de mouros ou
turcos, e nio ousam de povoar e aproveitar senáo as praias, e
pouco conhecida, ·da pregacao e da prática de novos náo ousam f azer suas fazendas, cria~óes, e viver pela terra dentro~
costumes, da desagregacao familiar-tribal, etc. Mas, que é larga e boa, em que poderiam vi ver abastadamente, .se o
gentío fosse senhoreado ou despejado, como poderia ser com
para os portugueses, era a sujeicáo urna questao de segu- pouci> trabalho e gasto, e teriam vida espiritual, conhecendo a
ranca e de exito na colonizacao. Por isto vinha ela orde- seu criador e vassalagem a S . A . e obediencia aos cristáos, e tod_os
viveriam melhor e abastados · e S.A. teria grossas rendas nestas
nada em documentos oficiais. rerras. -
Este gentio é de qualidade que nao se quer por bem, senao
Motivos de ordem catequética urgi~m também a por temor e sujei~io, como se tem experimentado e por isso, se
sujeicao. Náo era só o hábito do nomadismo que levou S . A . os qucr ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve
os jesuítas a esta opiniao; era também seu reduzido nú- fazer estendcr os cristaos pela terra adentro e repartir-lhes o
servi~o dos Indios 8queles que os ajudarem a conquistar e senho-
mero para atender a tantas centenas de aldeias; era a rear, ci:>mo se faz em outras partes de terras novas, e náo sei
dificuldade de conservar a fé e os costumes em meio aos como se sofre, a gera~ao portuguesa que entre todas as na~óes

43
42
é a mais temida e obedecida, estar por toda esta costa sofrcndo seja pregada. Mais adiante voltaremos a este texto para
e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do mundo.
Os que mataram a gente da nau do Bispo se podem logo cas- analisar os . aspectos práticos dos aldeamentos. Neste
tigar e sujeitar e todos os que estao apregoados por inimigos dos passo nos interessa mostrar como se encaminhou na
cristaos e os que querem quebrantar as pazes e os que tem os
escravos dos cristáos e nao os querem dar e todos os mais que prática a questáo da sujeicáo. Convém notar que Nó-
nao quiserem sofrer o jugo. justo que lhes derem e por isso se brega defendia os pontos de vista defendidos por todos:
alevantarem contra os cristaos. Sujeitando-se o gentio, cessarao
muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrú- se a Coroa nao mandara a sujeicáo dos Indios até entáo
pulos, porque terao os homens escravos legítimos, tomados em era porque náo havia condicóes. Foi realmente com o
guerra justa, e terao serví~ e vassalagem dos Indios e a terra se
povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A . terá muita terceiro governador geral que a empresa foi levada sis-
renda nesta terra, porque haverá muitas cria~ e muitos en- tematicamente avante. As razóes para a sujeicáo, Nó-
genhos, já que nao baja muito ouro e prata.
Depois desta Babia senhoreada será fácil cousa sujeitar as brega as declara com propriedade. A única forma de se
outras capitanías porque somente os estrondos que lá fez a fazer ouvida a pregacáo cristá era a conformacáo dos
guerra passada os fez muito medrosos e aos cristaos deu grande
animo, tendo-o antes mui caído e fraco, sofrendo cousas ao gentío índios ao regime portugues: que se iizesse esta o quanto
que. é vergonha dize-lo. antes, pois só assim "rtosso Senhor ganhará m·u itas al-
( . .. )
Este parece · também o melhor meio para se a terra povoar mas". A sujeicáo querida náo era sinónimo de escravi-
de cristaos e seria melhor que mandar povoadores pobres, como zacáo. Talvez fosse ocasiáo, pois muitos índios reagiriam
vieram alguns e por nao trazerem com que mercassem um escravo
com que come~assem sua vida nao se puderam manter e assini e seria a hora de se terem "escravos legítimos, tomados
foram f or~ados a se tornar ou morrerem de bichos e parece. em guerra justa". Em princípio ela se realizaria como
melhor mandar gente que senhoreie a terra e folgue de aceitar
nela qualquer boa maneira de vida como fi:zeram alguns dos que· situacáo de dependencia das tribos como um todo face
vieram com Tomé de Souza, tendo muí pouca razao de se con- ao Estado portugues: os indivíduos preservariam sua
tentarem dela naquele princípio, quando nao havia senao tra-
balhos, fornes e perigos de Indios, que andavam muí soberbos e liberdade em relacáo aos colonos, ainda que a seu ser-
os cristaos muí medrosos e por isso muito mais, se virem os vico: "mande (S.A.) repartir-lhes o servico dos índios
Indios sujeitos, f olgaráo de assentar na terra. .aqueles que os ajudaram a conquistar e senhorear". Só
Nem parece que para tanto gentío haverá míster muita gente,
porquanto, segundo se já tem experiencia dele por outras partes, desta forma, pela sujeicáo, seria possível a obra da
poucos · cristaos bastarao e pouco custo e porventura que com colonizacáo.
pouco mais do que S.A. gasta em os 'trazer a f é por paz e amor
·e outros gastos desnecessários, bastaria para sujeitar toda a costa Sujeicáo e aldeamento eram correlatos na mente
com ajuda dos moradores e de seus escravos e Indios amigos, dos jesuítas. Nóbrega, na seqüencia do texto citado,
como se usa em todas as partes desta qualidade. 28
explicita as leis que se lhes havia de dar. Isto signüica
Esta argumentacáo é dirigida náo a El-Rei ou a uma nova organizacáo social, modelada sob medida,
algum alto funcionário da corte, mas ao provincial de para o aportuguesamento rápido e eficaz. Este era, de
Portugal. Nóbrega usa naturalmente de razóes com que fato, o modo comum de sentir dos portugueses, colonos
concordaria também o provincial. Ele apresenta como ou jesuítas. Para estes a catequese só lucrava com isto.
injuriosa e prejudicial aos portugueses, i.e. , ao estamen- Vários textos confirmam a presente tese. Anchieta, por
to dominante, a liberdade dos índios tal como estava. exemplo, escreve:
Propóe que sejam sujeitados ("vassalagem a S.A. e obe- Vindo para aqui muitos cristáos, sujeitarao os gentíos ao jugo de
diencia aos cristáos") de modo que os lucros do ~sta­ Cristo, e assim estes serao obrigados a fazer aquilo a que nao é
mento se garantam e frutüiquem e que a doutrina !hes possível levá-los por amor. 24

23. Manuel da NOBREGA, op. cit., p. 279. 24. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11, p. 106.

45
E vendendo-se e resgatando-se (os índios), muitos se convertem a
E ainda: nossa santa fé e por esta causa seria muito de servi~o de Deus
deixar de se fazer (cativeiro). ( ... ) E no que toca ao resgate
Parece-nos agora que estáo as portas abertas nesta Capitania para dos escravos se deve ter tal moder~io que nao se impe~a de
a conversio dos gentios, se Deus nosso Senhor quiser dar maneira, tudo o dito resgate pela necessidade que as fazendas dele tem,
com que sejam postos debaixo do jugo, porque p-ara este genero nem se pcrmitam resgates manifestamente injustos. 21
de gente nao há melhor prega~áo do que espada e vara de ferro,
na qual, mais que em nenhuma outra, é necessário que se Deve-se frisar a necessidade justificadora do res-
cumpra o compelle e os intrare. 26
gate e, ainda, o adjunto adverbial "manifestamente".
Neste terreno todos se davam as máos: tratava-se, As fazendas sáo razáo suficiente para violar os· princi-
com efeito, da consecu~áo dos objetivos maiores, condi- pios éticos, defendidos pela teología. Também o Gover-
~áo para a realiza~áo das tarefas específicas. É a partir nador (Tomé de Sousa) acentua a prioridade dos inte-
da sujei~áo que se poderá pensar num trabalho siste- resses mercantis. É Nóbrega quem o relata. Ele,
mático de imposi~áo cultural, a cargo sobretudo da querendo defender a liberdade de alguns índios saltea-
catequese. dos, vai conversar como Governador e
como ele faz tudo com muito conselho e alguns do seu conselho
A PREDOMINANCIA NOS FATOS também tem os índios em casa, é de parecer que nao se toque
nisso pelo prejuízo que virá a muitos homens e que melhor é
estarem cm sujei~áo e que sirvam as fazendas; e que isto é mais
Convém explicitar através de textos e fatos a predo- serví~ de El-Rei e bem da terra e dos moradores dela; e de
outra maneira, como isto toque a quase todos, será grande mal
minancia dos interesses mercantis sobre os interesses para a terra. E outras razaos semelhantes. 28
religiosos no processo de coloniza~áo como um todo. Há,
nos documentos oficiais, urna paridade entre uns e ou- Segundo o governador - tomemo-lo como homem
tros. Coloniza~áo e evangeliza~ao aparecem como dua.S sensato, como dele diz o mesmo Nóbrega - era melhor
metas independentes e de igual proje~áo. O próprio mo- deixar as coisas como estavam: a própria evolu~áo dos
delo dos textos oficiais o configura: acontecimentos é o melhor juiz deles; prevalecería o que
·'Se ajustasse melhor a realidade. No caso a escravidáo,
Considerando eu quanto servi~o de Deus e meu proveito, e bem ainda que injusta, estava atendendo aos objetivos, e
de meus Reinos e Senhorios e dos naturais .e súditos deles é ser
a minha costa e terra do Brasil mais poupada do que até agora querer saná-la, naquele momento, traria prejuízos maio.;.
foi, assim para se nela haver de celebrar o culto e oficios divinos res ainda, desservindo a El-Rei. Por trás de tudo isto
e se exaltar a nossa santa fé católica com trazer e provocar a
ela os naturais da dita terra, infiéis e idólatras, como pelo muito estava o interesse económico dos conselheiros do Gover-
proveito que se seguirá a meus Reinos e Senhorios e aos naturais nador, dos colonos, e da própria Coroa. Nóbrega nio
e súditos deles desta dita terra povoar e aproveitar, houve por
bem . .. 26 ~oncorda com o argume~to e denuncia adiante que nao
'
e com pecados que se resolveráo os problemas da terra.
Anchieta transcreve, nas Informa~óes, um trecho Mas concluí, também ele, com um argumento econO-
de urna ca~ta de El-Rei (1574) onde se le: mico, válido para ele segundo se pode depreender de
todo o contexto de seus escritos:
25 . CARTAS JESUJTICAS, t. 111, p. 179.
26 . Carta de doa~io de 50 léguas de terra do Brasil a Francisco Pereira 27. José de ANCHIETA, Primeiros Aldeamentos na Bahía, p. 31.
Coutinho. Apud J. ACCIOLI e B. AMARAL, Memórias Históricas e Políticas da
Bahía, p. 190. 28. Manuel da NOBREGA, op. cit., p. 1' 1.

46 .47
A mim parecía-me que nao se devia deixar de fazer r~io e missáo, empenharam-se na consecucáo dos objetivos
justi~a igualmente, por todas as suas razóes, porque a co1sa em
.. que a nio há favorece Nosso Senhor: e por muito maior bem
próprios. No entanto, observadas urna ao lado da outra,
tenho da terra dar a cada um o que é seu, do que com pecados, coube a catequese um papel paradigmático, na prática
de que nunca sairio, sustentá-la: e creio que ~ntáo dariio os nem sempre respeitado ou, antes, respeitado nos 'tero-
engenhos mais a~úcar e mais dízimos a Sua Alteza. 29
.pos convenientes".
Muitas passagens dos documentos jesuíticos revelam
a predominancia efetivada: os jesuítas domesticam a CONCLUINDO
máo--de-obra .. para os engenhos e fazendas; abencoam
as guerras dos índios aliados; sáo abrigados a ceder seus A descoberta do Novo Mundo forcaria a reproducáo
interesses catequéticos em benefício dos interesses mer- da mesma sociedade ibérica. Um elemento novo, o índio,
cantis da Coroa; subjugam sua influencia e seu crédito indiscriminadamente referido, poderia alterar sensivel-
junto aos jnµios, em proveito dos mesmos interesses. A mente o estilo da velha sociedade. A concepcáo de uni-
questáo da entrada pelo sertáo de Sáo Vicente a cami- verso entáo vigente, mais do que nunca defensora do
nho do Paraguai é ilustrativa. Todas as razóes missio- "Um só Senhor, urna só fé, um-- só batismo" ,ªº cortou
nárias ordenavam a entrada até os carijós. O conselho pela raiz qualquer possibilidade de urna consciente con-
provincial já se determinara a fav~r. Faltava a licenca tribuicáo intercultural. O índio do Brasil, no caso da
do Governador (Tomé _de Sousa). Este, a pretexto dos colonizacáo portuguesa, tornou-se puro objeto da acáo
perigos do gentio, proíbe-lhes a entrada, enquanto El- social dos colonizadores. Exigiu-se dele que colaborasse
Rei náo decidisse ''alargar". Duas razóes económicas nessa obra. A colonizacáo consistia, na prática do dia-
imediatas urgiram, contudo, a medida: 1.0 o comércio a-dia, em derrubar o pau-brasii e traze-lo .a té o mar, em
castelhano, que naquele ano já rendera cem cruzados; amassar barro para a construcáo das casas portugue-
2.º o caminho do Paraguai era tido como a entrada para sas, no amanho da terra para o plantio da cana-de-
as minas de ouro e prata e, por conseguinte, enquanto acúcar, no trato do engenho - todas, obras servis em
El-Rei náo tivesse, ele próprio, condicóes de explorá-las, -·que o braco forte transformasse a paisagem natural.
_náo se permitirla a ninguém que o fizesse. A entrada Mas a mesma sociedade que explorava a producáo de
dos missionários seria pretexto e ocasiao para entradas gente tao bruta e selvagem, sentiu-se na obrigacáo de
clandestinas. conformá-los com suas próprias crencas · na interpre-
Quais os efeitos destas circunstancias sobre a cate:. tacao da realidade. Isto, ainda que visto apenas do lado
quese, é o que analisaremos no terceiro. cap}tulo:.. Ela se portugues, é bastante conflituoso, pois ao mesmo tempo
transformou em instrumento da colon1zacao, nao por- ·que rµantinha o índio em estadó de prestac-áo de for~a
que os interesses mercantis triunfaram sobre ela, sim- ariimal, queria elevá-lo ao estado de sobrenatureza, onde
plesmente; mas porque urna e outra realizavam, a seu a graca descobre ao homem profundezas incompatíveis
modo, os mesmos objetivos sagrados do "orbis chris- coma situacao animal. Os dois grupos, colonos e jesw-
tianus". Dando-se as máos, nao confundiram as missóes tas, especializados num e noutro campo, descobriram
específicas. Sabendo estar cumprindo com a grande experimentalmente a incongruencia da forma de apro-

30. Carta aos Efésios, 4, v. S.


29 . lbidem, p. 161.
49
48
ximacáo do gentio. Daí a necessidade pragmática· de
" radicalidade. Náo a tiveram os jesuítas e acabaram se
confarmando com os fatos, "jogando pérolas aos por-
cos".ª1 Tiveram-na os colonos e suportaram que aos
seus escravos fosse feita a catequese, embora lhes pare-
cesse inútil e prejudicial. A instalacáo do regime de es-
cravidáo expressava a predominancia dos interesses
mercantis sobre os interesses religiosos-catequéticos. O
próprio esforco de suavizacáo significava o reconheci- : CAPÍTULO 111
mento da forca maior que, ela sim, determinava os ru-
mos da colonizacáo. Urna só era a solucáo fatua! possí- O PAPEL .DA CATEQUESE DOS tNDIOS NO
vel: o atrelamento dep-a enorme forca disponível, aos PROCESSO DA COLONIZAQAO
objetivos mercantis do estamento dominante, náo só a
título do seu empenho pela civiliza~áo da terra e .pela
manutencáo dos próprios missionários, mas sobretudo Passamos .ao estudo da catequese em sua efetiva.;
por causa dos títulos em débito para comos financiado- cáo. Já ficou dito -que por catequese se entenderá· toda
res internacionais da empresa colonial. E isto foi feíto. a acáo pastoral da Igreja: a doutrinacáo expressa, a
prática devocional e o próprio comportamento dos cris-
táos. Este estudo náo pretende avaliar a genuinidade
da doutrina ou da pastoraI nem, tampouco, historiar o
desenvolvimento da Igrej_a, mas observar o seu p~pel
no processo de coloniz~áo,. ou seja, no processo em que.
a sociedade brasileira quinhentista, em condicóes esp~'
cialíssimas, fundou o seu modo de ser. O que preten-_.
demos fazer é analisar a funcionalidad~ de urna acáo,
a catequese, dentro de um contexto, a coloniza~io. Nao
se trata, pois - repetimos~, de julgar a catequese em
.. '
funcáo dos interesses da IgreJa-instituicáo ou face a
Teologia, mas de descrever o que e como ela operou
no meiq social em que se realizou.
Nosso trabalho se limita a catequese dos índios:
náo abordaremos específicamente a catequese dos por-
tugueses nem a dos escravos negros. Em princípio, a
catequese pregava a mesma doutrina e o mesmo com-
portamento, para índios e para colonos e para africanos~
Na prática, porém, reduzia o índio a condicáo de grupo
31 . Mateus, 7, v. 6. inferiorizado dentro da sociedade portuguesa. Por ela
so 51-
'

o índio foi sendo despojado de sua própria cultura, para trabalho braca!, participacáo das guerras, mudanca de
'" atender aos intere~es maiores do estamento mercantil costumes, doutrinacáo. Evidentemente náo tinham ca-
portugues. A catequese do índio gozava, neste sentido, pacid:ade de raciocínio crítico para perceber o uso inde-
de urna atencáo especial por parte do rei·: o que nos vido da catequese, pelos portugueses. 1 Por isto mesmo
legou urna série de documentos. Por outro lado, ela de- a catequese se lhes tornou a expressáo de sua confor-
lineia bem o contraste entre as duas culturas em jo~o, , macáo com a vontade dos invasores. A própria forma
·a indígena e a portuguesa. Por esta razáo torna-se ela de abordagem e aproximacáo usada pelos portugueses,
verdadeiro laboratório histórico, antropológico e socio- com o passar do tempo, traduzia em termos palpáveis
lógico. esta licáo: mandavam a frente os missionários, com
palavras doces, falando a linguagem do bem; em caso
o estamento tinha um objetivo, como vimos: con- de recusa, punham:-se os missionários na .retaguarda
quistar máo-de-obra. - . Precisava que se convertesse? (estandarte nas máos), e falavam a linguagem do mal,
- Em teoria~ náo. Na prática do século, porém, isto era a linguagem da.S armas; urna vez sujeitados os índios,
uma exigencia evidente. O estamento precisava dos mis- voltavam novamente os missionários da retaguarda, e
sionários para atingir seu próprio objetivo. Pela cate- pregavam a doutrina. A catequese foi, assirh, reduzida,
quese, ainda que náo se comunicasse a vivencia com pelo código de comunicacáo estabelecido a duras pe-
Deus - sua razáo de ser -, inculcavam-se os valores nas, ao papel de senha, urna senha especial - é vei:-
da cultura portuguesa. Desta forma a catequese, como ·dade -, que nao só dava entrada a comunidade do
tal, se tornou conflitiva. Os missionários náo chegaram dominante mas obrigava mesmo a sua assimilacáo.
a tomar consciencia dest~ utilizacáo da catequese. Ti- Passou a náo ter valor em si, e tornou-se um referen- .
nham por ideal introduzir os índios na fé crista, o que te. O termo final era o aportuguesamento, segundo os
lhes parecía significar a necessidade de seu aportugue- interesses predominantes.
samento. ~te aportuguesamento náo se realizava pla-
tonicamente: tratava-se de arranjar um lugar e um É desta catequese, de aspectos táo conflituosos,
papel para os índios dentro da sociedade portuguesa. que pretendemos analisar os passos, os argumentos, a
Náo custa imaginar que lugar e papel lhes estavam des- mensagem, os resultados. Faremos como que tres cor-
tinados. Seu objetivo primordial era a conversáo crista, tes neste processo, analisando primeiramente a práxis
conquanto os colonos continuassem vendo na catequese catequética, em seguida o conteúdo .catequético e, fi- _
urna instrumentalizacáo dos índios para seus fins mer- nalmente, a forma da catequizacáo. ·
cantis.
Os índios, por sua vez, náo tinham condicóes de dis- l. A PRAXIS CATEQU:E:TICA
tinguir e classificar os diversos tipos de acá.o que
sofriam - colonizacáo e evangeliza~áo, por exemplo -, Por práxis catequética entendemos aquilo que se
nem a diversidade de objetivos dos diversos grupos: fez como catequese e a maneira .pela qual isso se fez.
governo, colonos, missionários. Recebiam o impacto da
colonizacáo como urna totalidade que os retirava do 1 . O termo "indevido" já comporta um julgamento nosso sobre o cóm-
seu sossego e os punha em nova situacáo, exigindo-lhes portamento portugues.

52. 53
.Perguntamo-nos: Que é que os jesuítas · fizeram zadas era motivo de alegria nao no céu apenas, mas
~ como catequese? Abordaremos alguns exemplos: a .pre- também na terra:
Aqueles (meninos que, batizados, morreram) eram os que desta
gacao, a prática devocional. - Como é que os jesuítas terra estavam determinados para o céu; e antes que a malí~ia os
fizeram isso? Consideraremos a pastoral jesuítica como mudasse, os Ievou o Senhor. s
uma pastoral enraizadamente salvacionista, expres- O seguinte relato é bastante ilustrativo:
sando-se através de uma pastoral do medo, uma pasto- Estava um índio dQCnte nesta aldeia e viu-se tao mal que parecía
ral legalista, uma pastoral devocionista. Terminaremos a todos que morria. Falou-lhe o P.e Gaspar Louren~o se q\leria
com uma análise sobre a instrumentalizacao dos meni- ser cristio: ele secamente respondeu que nao quería se-lo. Voltou
o padre a replicar sobre isto; ponto-lhe diante a glória do paraíso
nos pregadores. e as penas do interno, e que em mui breve (das duas) uma: ~!:1
se fazia filho · de Deus e herdeiro da glória ou servo perpétuo do
diat>O· e morador do inferno. Nao aproveitou, entáo, de nada para
PASTORAL SALVACIONISTA fazer-se cristao, parecendo-lhe (coisa mui comum entre eles) que
·. com isto ·porventura o matariam. Foi-se o padre desconsolado,
avisando todavia a seus filhos (um dos quais é catecúmeno e o
A obra evangelizadora dos jesuítas, fündada na outro, cristáo) que olhassem wr ele e o convencessem do batismo.
Nio pouco depois de sua ida, veio unt filho seu a chamar ao
concepcáo de mundo crista, entáo vigente, pautou-se padre, dizendo: "vem acudir a meu pai que morre e pede que o ba-
pela preocupacáo da salvacáo: o momento que vivemo~ tizes"~ ·P oi.o padre correndo e encontrou-o inconsciente e depois que
voltou a si lhe disse: se era verdade que queria ser cristao?
é transitório mas grave em responsabilidade, dele de- Respondeu que era sim, e que quería que o batizasse.
pende ou a vida eterna ou a condenacáo; o caminho do Ora (disse o padre), como me dizias que nao querias?
O índio se desculpou que náo estava em si, repetindo: "Se meus
mal é convidativo, mas suas conseqüencias sao terríveis; filhos sao cristáos, como nao queres tu que também o seja? Por
o caminho do bem, caminho da salvacáo, é a Igreja: isto batiza-me e, assim, possa ir para o céu."
Nao, dizi~ o Padre Gaspar Louren~o, que dizes agora isto com o
fora dela, ninguém se salva. Seu ofício de pregadores, medo que te pus do infemo, aonde te haviam de levar os demó-
desempenhavam-no os jesuítas num estilo milenarista nios se nao fosses batizado; se cu vir cm ti melhores mostras e
melhor vontade, te batizarei, pois nós só costumamos faze-lo senáo
e messianico: O Senhor está aí, náo há tempo a perder! a quem o pede de cora~áo. .
Sáo abundantes os textos jesuíticos que traduzem esta Vendo-o o Padre nestas condi~óes, lhe declarou o que havia de
crer e confessou--0 e moveu-o a ter contri~ao de sua vida passada.
forma de pensar. Por isto mesmo, como alguém que Feito isto, tomou a lhe perguntar <;> Padre se quería que o b1a._
vasculha os .montóes de lixo a espera ele algum achado tizasse. ~·,. ·
Disse-lhe o índio: "Já 'té disse há muito que sim".
precioso, os j~suítas correm as aldeias, anunciam a men- Disse-lhe: "Por amor de quem"?
Diz: "Por amor de Deus"1
sagem da satvacáo, procuram em cada canto alguém "Para que''? ,/
que es~eja . morrendo e, cumpridas as mínimas exigen- "Para ir para o céu". Estando nestas conversas disse: "Batiza-me
cias, ~atiza edá gracas a Deus pela alma que, dessa que me. quero ir desta vida".
E os filhos instavam, dizendo: "Padre, batiza-o, e depressa: cuidado
vez, náo foi para o inferno. Por razóes de que tratare- para qúe ele nio morra sem o batismo. Bem ves que ele te pede
com, boa vontade". ·
mos adiante, a ordem era esta: batizar os adultos só em E o Padre o batizou.•
';
artigo de morte. 2 Nestas circunstancias o esforco era Este relato mostra o conteúdo da pregacáo, ao leito
multiplicado: nao havia mais tempo a perder senao de morte: ou a glória ou o infemo. Havia uma agravan-
era a alma que se perderia. A morte de criancas bati-
3; Serafim LEITE (org.), Novas Cartas Jesuíticas, p. 164.
4. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 111, p. 401.
2. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 111, p. 290.
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai 55
54 www.etnolinguistica.org
te: náo havia tempo bastante para decidir. O próprio / identificar com cada manifestacáo da natureza em meio
.. padre reconhece ·que usara do amedrontamento; torna a qual o homem vive. ~ duro estar se libertando, a cada
a repetir "o que havia de crer" e lhe dá o batismo. A momento, em direcáo a Deus. - A urna certa altura, a
resposta final do moribundo encerra a licáo: - Para alma desesperada grita:
que o batismo? - "Para ir para o céu! "
Eles mentem! Sao malévolos. O padre me batizou, sim. Bu
Enquanto se vive nesta terra, a condicáo é de luta, renunciei a todos os meus hábitos, ouvindo as palavras do sacer-
pela salvacáo. É todo o universo que está em pé de dote. Sou cristáo. Sou batizado. 6
guerra, mais ainda aqui, onde a natureza indómita pa-
rece desafiar a graca, mantendo enormes regióes sob Um caminho estava aberto:
seu domínio. Mas a luta da natureza é apenas urna Confiai em vosso criador, amando-o, acatando sua leí, obedecendo
imagem da verdadeira luta que se trava,· esta, ao nível mais a ele e ao sacerdote, vosso mestre, executando as palavras. 7
do sobrenatural, interminável e surpreendente. Deus '

e o Diabo parecem lutar em pé de igualdade, embora se Era preciso ser cristáo, deixar-se batizar, ingressar
garanta de início a vitória divina. Mas, em se tratando na Igreja dos portugueses, ingressar em sua sociedade:
do homem, nem o próprio Deus pode garantir a vitória. ali e.stava a salvacáo. Fora dali, a condenacáo. Boa hora
O diabo náo perde ocasiáo para ativar sua incrível a da vinda dos partugueses! Quem anuncia isto é o
capacidade de persuasao. A hora da morte se descreve missionário, porta-voz da sociedade, que chegara se
como um momento fugaz, em que o homem comprpme- impondo pela forca, destruindo sua primitiva condicáo.
te para sempre o seu destino e, quem sabe, para o pior. O índio nao tinha opcáo: ou se sujeitava ou era escravi-
Ali, porém, está o sacerdote (jesuíta), com todo o arse- zado; ou se aliava e se salvava ou nác? se aliava e se
nal necessário para vencer as insídias diabólicas: a condenava. O batismo abría as portas para esta socie~·
Igreja é a tábua da salvacáo, a Igreja ·portuguesa. dade. Destarte, a preg~áo jesuítica tinha um dúplice
caráter salvacionista: salvava o índio do inferno, pon-
Vamos buscar nosso Padre que nos há de ordenar agora nossas
vidas e apartar-nos do caminho ·do demonio. 1\ do-o no céu; e, salvava-o de sua situacáo inferior, intro-
duzindo-o na sociedade portuguesa. Difícilmente se
Todo este tema é vivamente teatralizado por An- poderia discernir entre uma e outra salvacáo. O batismo
chieta: a alma, já a · caminho do céu, é cercada por em artigo de morte denota a violencia cultural que
demonios insidiosos que a querem levar, acusando-a de sofriam os índios: era tal a potencia dos invasores que,
pecados cometidos. Ela contesta. Invoca a Nossa·Senho- mesmo náo tendo mais nada a perder, ainda assill)
r~. Um anjo a salva e expulsa os demonios. O drama tinham medo de perder aquilo que os portugueses afir-
humano se configura em poucos termos: de um lado, mavam ir acontecer depois da morte. Eles, os portu-
Deus, a Virgem, os Santos e os. Anjos; de outro, os de- gueses, é que entendiam de salvacáo.
monios. Cada grupo parece ter urna só atividade: con- . A pastoral salvacionista facilmente tomou a figura
quistar o homem. Este tjve no dilema: - virtude ou do medo e do castigo.. A salva~áo era um parto laborioso
pecado e. ~ . condenacáo? O pecado, porém, parece se
6. José de ANCHIETA, Poesias, p. 627.
s. Jbidem, p. 404. 7. Ibídem, p. 638.

56 57
de que, por isto mesmo, se tinha medo: só com outro seus feit1ceiros souberam que os padres tinham poder de
..medo se podía vencer. De sua eficiencia náo duvidavam lancá-la a quem lhes aprouvesse. Com isto explicavam a
os jesuítas: morte de recém-batizados e por isto se afastavam do
Venham estes gentíos ao verdadeiro conhccimento formidine poe-
batismo. Os jesuítas, agindo em contrário, pregavam e
nac, pois nao querem virtutis amore. s mandavam que p_regassem sobre a morte:
Por experiencia vemos que por amor é muito dificultosa ·a · sua A ordem que (os meninos) tem é esta: a noite
os padres que
conversáo, mas, como é gente servil, por medo f azem tudo. 9 tomam conta deles lhes dio medita~io sobre a morte ou o juízo
ou coísas semelhantes; e pela manhá madrugam e vio pelas casas
Incutia-se o castigo como presenca constante do dos negros e gentíos e pegam-nos na cama e ali lhes pregam
sobre. a morte e o inferno. 13
deus policial: a doenca e a morte sobretudo, mas
também a forne, a derrota sáo expressóes e também Uns vinham para pedir saúde, outros nos rogavam que nao lhes
punicáo do erro cometido. Este te:qia é dominante. déssemos a morte, com medo de nós, porque a eles parecia que
dávamos a morte. 14
Infunde-se, por ele, o sentimento de uma fiscalizacáo
permane~te, oculta _ e todo-poderosa. O castigo maior, Desta grande mortandade tomaram os outros ocasiáo, por per-
suasáo dos f eiticeiros, ·a fugirem dos Padres, dizendo que lhes
náo na boca do catequista, mas no processo de ·con- botavam a morte, e a temerem-nos, e por medo fazem quanto
secucáo dos objetivos, é a sujeicáo, a escraviza~áo. lhes pedem. 15
Qualquer que seja ele, o castigo paira como instrumento
da conversáo, fosse ela inicial ou arrependimento dos Desta e de· outras formas a catequese missionária
pecados. Todos os funcionários da salvacáo: jesuít~, tentava impor sua verdade. Mas o próprio ambiente em
governador, e até o próprio Deus, usam do, castigo e do que ela se fazia _apavorava, já pela simples presenca do
medo para atingir seus objetivos: invasor, ali ao lado, · já pela falta de resistencia da cul-
tura indígena. O missionário participava dos castigos
E pensamos que será princípio de um bom castigo e para os outros
gentíos grande exemplo, e quem sabe se por medo se converterio que o governador mandava, como aquele em qué ·o
mais depressa do que o fariam por amor, tao corrompidos sio indio foi despedacado aboca de um canháo, e sua figura
nos costumes e distantes da verdade. 10
se revestía do poder .de -ameaca. A salvacáo, que ele
Nos últimos dias· fizemos alguns cristáos. Destes, alguns voltaram brandia diante dos índi~~_,,~ ~estruindo-lhes a inocencia
a seus costumes. Querendo. o Senhor castigá-los, foi tanta a mor-
tapdade entre eles qtie f oi coísa estranha, mor mente pelos filhos da crenca numa vida feliz,·após a morte, introduzia a
e fithas menores. 11 dicotomia racional da cultura européia, abalando-lhes
Os 'que querem se batizar já sabem que, se nio viverem cristi- a seguranca e o equilíbrio sócio-cultural. Há razóes de.
mente. Nosso Senh~r os castigará muito. 12 sobra para justificar a pastoral salvacionista dos jesuí-
tas: o tque importa, .porém, é perceber-lhe as conse-
A morte era um assunto de que os indios náo gosta- qüencias fatuais junto aos indios. Os fatos náo voltam
vam. Pediam aos padres que náo lhes falassem dela. Por atrás nem pelas melhores justificativas das razóes que
-os engendraram. A salva,cáo terminou . em condena~io.
8. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11 p, 9.
9. Ibídem, p. 27.
10. Ibídem, t. 1, p. 158. 13. lbidem, p. 416.
11 . lbidem, p. 303. 14. lbidem, p. 379.
12 . lbidem, p. 317. IS. lbidem, p. 39S.

58 59
A falta de rei, que os jesuítas sentiram como desfavo- valores náo lhes chegam como valores, mas deformados,
rrável a catequese,16 acabou sendo favorável, facilitando como outros,. e, portanto, náo realizando, a nao ser
o seu domínio. ·, externamente, as intencoes projetadas. Com isto, o índio
Da pastoral do medo fazem parte ainda certas prá- é minimiz~do, inferiorizado, pelo próprio missionário.
ticas de caráter ardiloso pelas quais, fingidamente, cor:.. Sob o pretexto de sua bestialidade e ignorancia, falta-
rigiam os jesuítas os costumes dos índios. Encontra.;· se-lhe como respeito. Isto se concretiza no ." status" que
mo-las coni freq-üencia. Assim' certá feita ' um índio se lhe reserva no seio da nova sociedade, sem voz e sem
. _,
cr1stao percebeu que o pajé viera assistir a sua mulher justica. Com o tempo o índio aprende. a discriminar a
enferma. Pela manhá vai este índio ao padre e lhe modalidade de comportamento a ser empregada nesta
conta o que se passou. () padre _lhe diz: vai para tua ou 'naquela ocasiáo. A ocasiáo é caracterizada pelo
casa, e , ' interlocutor~ outro índio, o padre, o capitáo, o colono, o
' • • 1

governador. E, 8$Siln, assimilava o aprendizado das


eu me farei de zanga<to e te repreenderei diante de tua mulher e diferencas sociai~.
parentes. Tu, suporta-<:> bem pois eu sei que és bom. 17
1
, A pastoral salvacionista, em qualquer urna das suas
~ foi o :padre a sua casa, e o repreertdeu
por causa de express0es, mais do que uma mensagem colonialista;
su~ mulher, a qu~l ficou tao arrependida que se confes-
encerra o próprio ato da· colonizacáo.
sou. Urna outra vez, ná() conseguindo o que queriam,
os padres fingiram que queriam ir-s·e embora.1 ª Outra PASTORAL LEGALISTA
vez, um missionário inst~ui o índio sobre como agradar
ao superior: A concepcáo de mundo oferecida pelo "orbis chris-
tianus" explicitava· a ordenacáo do universo através de
Consolei-o com palavras suaves, encarecendo-lhe, porém, seu leis; que se reduziam todas· a leí, que Deus era. O con-
pecado. E, por ver suq firmeza e constancia, lhe disse: se fores e fronto entre a concepcáo cristá e o comportamento dos
te puseres de joelho1t diante do Padre, pedindo-lhe perdao e
tomares urnas discipli~as e te fores a~oitando pela ·atdeia fico índios, visto pelos jesuítas, agucava o sentido da ordem.
por fiador que ele te perdoará. 19. '
A ordem era urna só: a instauracao do reino de Deus. Os
índios afrontavam-na, prendendo-se a hatureza. Ora,
O que cumpre observar em tudo isto é a catequese segundo Anchieta, a própria natureza tem suas leis e
em ato, o gesto realizado que tem, de per si, uril valor nema el.as respeita. o índio, bárbaro. "Ele agora foi !an-
catequético maior ·que o das palavras. O padre é posto cado para algum~ coisa que está fora e além da natu-
como autoridade sobre bens difíceis de se manipular, reza: a alegalidade. A distincáo mais profunda, a última
como por exemplo o relactonamento com Deus, o pecado, reducao possível na análise náo é a dupla Natureza/
o achar-se-bem, o exito,. etc. Os novos costumes sáo Cultura e, sim, Lei/Alegalidade (ou: Repressáo/Desor-
introduzidos a troco de def-0rmacáo, ou seja, os :novos ganizacao, Ordem/Desordem). A Lei deve ptevalecer~ o
processo político-militar e as práticas institucionais
16. Ibídem, p. 321. . pedagógicas da Compa:hhia de Jesus teráo como inte-
17. C~RTAS DOS PRIMEI~os JESUITAS DQ-:SRASiL. t. 111, p. 409. grante de seu núcleo principal de objetivos impor e fazer
18. Ib1dem, p. 37. . ·
19. Ibidem, p. 43. valer Regras e Normas que afastem as populacóes ·do
60 · 61
Demonio e a aproximem de Cristo." 2º Nóbrega, neste · mando o comportamento dos homens a ordem absoluta.
"ponto, mostra-se intransigente: Os jesuítas náo eram de todo independentes. Isto se
refletia no seu trato com o indígena. Seu comportamento
A lei, que lhes hao de dar, é defender-lhes comer .carne humana
e guerrear sem licen~a do Govemador; fazer-lhes ter uma só dependía de pessoas misteriosas, que nunca apareciam,
mulher, vestirem-se, pois tem muito algodao, ao menos depois e que detinham todo o poder. Muitas vezes o missionário
de cristáos; tirar-lhes os feiticeiros, mante-los em justi~a entre si deve ter dita aos seus catecúmenos: já mandei pedir
e para com os cristaos, faze-los viver quietos sem se mudarem
para outra parte, se nao f or para entre cristáos, tendo terr~ licenca mas ela ainda náo chegou.
repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companh1a
para os doutrinarem. 21 Será éousa muito conveniente haver do Papa ao menos ps poderes
que ternos do Núncio e outros maiores . . . e assim também que
Cumpria retirá-los da jurisdicáo do demonio e inse- a lei positiva nao obrigue ainda este gentio, até que vao apren-
dendo de nós por tempo, sel. jejuar, confessar cada ano e outras
ri-los na comunidade crista ou, pelo menos, emprestar- coisas semelhantes. 24
lhes o figurino cristáo, de modo que ao menos o território
fosse legalizado. Esta preocupacáo fundamental iria se Ao · provincial de Portugal Nóbrega expóe suas dú-
converter em mil e urna fórmulas na vida cotidiana. A vidas: confissáo por intérprete, presenca dos catecúme-
própria organizacáo interna da Companhia refletiria nos em toda a missa, · uso de cantos e instrumentos
esta orientacáo: a Companhia, com efeito, nasceu orga- musicais indígenas, pregacáo a moda indígena, corte de
nizada. Basta ver a obrigatoriedade dos relatórios, das cabelo também a sua moda, a nudez impeditiva do
prestacóes de canta, das licencas necessárias, das cartas batismo e da freqüencia aos sacramentos; a guerra dita
· de edificacáo, etc. Basta ver o controle numérico que justa aos índios por andarem nus. O tema da escravi-
executavam os jesuítas a respeito dos índios convertidos, dáo, este volta muitas vezes em forma de consulta. E
das confissóes ouvidas, das comunhóes distribuídas, dos entre todos, talvez igualado apenas pelo tema prece-
casamentos feitos. Serafim Leite cita alguns dados do dente, está a questáo do casamento dos índios.
movimento sacramental entre 1584 e 1590: "Em 1584,
freqüentaram os sacramentos, na igreja do colégio da O gentio desta terra, como nao tem matrimonio verdadeiro com
animo de perseverarem toda a vida, mas tomam urna mulher é
Bahia, 5~742 pessoas ... " 22 apartam-se quando querem, de maravilha se achará, em . urna
povoa~áo e nas que esta-o ao derredor perto, quem se possa casar
Baeta Neves explica de duas maneiras esta ordem dos que se convertem-,- legítimamente, ~ nossa fé, sem que baja
de coisas: "A segunda razáo é interna ao pensamento impedimento de consangüinidade ou afinidade, ou de pública
jesuítico e se liga a necessidade de tudo contabilizar honestidade. E este nos é o maior estorvo que ternos nem os poder
por cm estado de gra~a; e por isso nao lhe ousamos dar o sacra-
para náo deixar espacos vazios que poderiam vir a ser mento do batismo, pois é for<;ado ficarem ainda servos do pecado.
penetrados pelas forcas do mal".23 Será necessário haver de Sua Santidade nisso larguez.a destes direitos
positivos e, se parecer muito duro ser de todo o positivo, ao menos
A preocupacáo pela Lei se traduzia na preocupacáo seja de toda afinidade, e seja tio com sobrinha, que é segundo grau
pelas leis: tuda tinha que estar regulamentado, confor- de consangüinidade, e é cá o seu verdadeiro casamento. A sobri-
nha, digo, da parte da irma, porque a filha do irmao é entre
eles como filha e nao se casam com as tais. E posto que tenhamos
20 .- Luiz Felipe BAETA NEVES. O Combate dos Soldados de Cristo na poder de dispensar no parentesco de direito positivo com aqueles
Terra áos Papagaios, p. 47. que antes de se converterem já eram casados, conforme nossas
21 . CARTAS DOS PRIMEIROS. JESUITAS DO BRASIL, t. 11, P~ 447. bulas e o direito canonico, isto nao pode cá haver lugar, porque
22 . Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. U,
p. 287.
23 . Luiz Felipe BAETA NEVES, op. cit., p. 47. 24 . CARTAS DOS .PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 124.

62 63
·nao se casam para sempre viverem juntos como outros infiéis, e
se disto usamos alguma hora, é f azendo-os primeiro casar in lege A medida que a vida das aldeias vai se organizando
naturae e depois se batizam. Nestas coisas estamos mui atados e as características legalistas váo se impondo. A prega~á¿
desejamos ver a clareza e um largo poder .25
visa a forma~áo de urna Igreja institucionalizada, com
E Rui Pereira acrescenta um dado interessante: seus chefes, suas normas, seus rituais, seus templos.
Este simples fato da ordena~áo é um ato catequético: .
E assim os casamos a todos, cada um com sua mulher, com todas introduz os índios numa vivencia voltada para o que
as ~ondi~óes requisitas, para serem matrimonios in lege naturae,
perante testemunhas, e feíto disso assento em um livro.26 mandam as regras, em-contraste com a vida desorde-
nada onde "somente fazem o que lhes dita a vontade".28
A preocupa~áo pela legitimidade do casamento era A lei, a ordem tomam conta da prega~áo, da catequese,
táo grande que já no catecismo se traz uma resenha, em da vida cotidiana, em todos os seus matizes.
vinte e quatro itens, dos -impedimentos matrimoniais,
em portugues e ero tupi. 21 É bom notar que este cate- PASTORAL LITORGICO-DEVOCIONAL
cismo foi impresso só em tupi e apenas esta parte mere-
ceu tradu~áo paralela. Os documentos náo trazem a Os índios náo tinham deuses nem ídolos mas tinham _
explica~áo que os jesuítas teriam dado aos índios sobre seus ritos, sua "santidade" e em honra dela canta.vam,
o casamento "in lege naturae" e o casamento cristáo bailavam e comiam. Seu ritual era bastante sóbrio. O
"in lege gratiae", nem sobre os impedimentos. O fato é mundo portugues, e mais propriamente a Igreja, chega-
que, nestes assuntos, nenhuma explica~áo satisfaria o ram com um sem-número de devo~óes: missa, comu-
índio, pois estaria radicada nos valores de urna outra nháo, confissáo, batismo, un~ao dos enfermos, crisma,
cultura, para ele inacessível. casamento, procissóes, ora~óes, penitencias, ben~áos,
rezas, relíqui~, medalhas, imagens, "agnus-dei", água_-
benta, santos e anjos, e mil outras. Tratou-se de urna
25 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESU1TAS DO BRASIL, t. 11, p. 277.
26 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESU1TAS DO BRASIL, t. 111, p. 295. verdadeira invasáo. Tudo isto serviu .de instrumento .de
27 . "Desde os primeiros tempos jesuítas se cuidou de traduzir para o tupi evangeliza~áo e catequ~se; entrou na pastoral ·dos jesuí-
um resumo do catecismo cristao. Em S. Vicente o lrmao Pero Correia, 'o melhor
língua do Brasil' (Nóbrega), escreve a Suma da Doutrina Crista. Na Bahia, em tas. Vejamos, pelo menós de algumas, como influíram
1574, o Padre Leonardo do Vale, 'príncipe dos línguas do, Brasil', traduz a na 'conversáo dos índios e na manuten~áo de sua fé.
Doutrina Crista, escrita em 1571 pelo P.e Marcos Jorge em fQrma de perguntas
e respostas; e também a prepara~áo para a confissáo, batismo e morte, além
de um confessionário. Em 1575, a Congrega~áo Provincial, na Bahia, pede a
impressao da Doutrina Cristii. Em 1586, o P.e Gouvea recomenda que se tenha Batismo
no livro das casas a Doutrina e o Diálogo. Em 1592, a Congrega~ao torna a
solicitar a impressáo da Doutrina Cris,tii juntamente com a Arte de Gramática Comecemos pelo batismo, que é o rito de entrada na
do P.e José de Anchieta. O P.e Mar~al Beliarte sublinha: 'Quarenta anos há
que se compós'. Foi dada· autoriz.a~áo para ambas as obras. A informa~áo de Igreja. Em carta de 10 de agosto de 1549, logo, pois, de
Agostinho Ribeiro (setembro de 1594) refere-se a 'estes livros de gramática e ·sua chegada, escreve Nóbrega: ·
diálogos, compostos pelo padre José de Anchieta'. A licen~a do S. Ofício (Lisboa, ·
17/ 12/ 1594) declara: 'podem-se imprimir estes livros de Gramática e Diálogos .. . ' Dos que achamos mais seguros, batizamos já cem pessoas pouco
De fato, em 1595, foi impressa a Arte de Anchieta, nao porém os Diálogos. Só mais ou menos, e come~amos na festa do Espírito Santo, que é
em 1618 saiu, por fim, um catecismo 'composto a modo de diálogos por Padres tempo ordenado pela lgreja. E baverá bem seiscentos ou setecentos
Doctos, bons línguas da Companhia de J esus. Agora novamente consertado, catecúmenos para batizar cm breve, os quais aprendem todos muito
ordenado e acrescentado pelo P.e Antonio D'Araújo, Teólogo da mesma Com-
panhia'." Antonio d'Araújo, Catecismo na Língua Brasílica, Rio de Janeiro,
PUC, 1952. --_::• .:.. 28. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. II, p. 294.

64 65
,.
bem, e alguns andam já atrás de nós pelos caminhos, perguntando- encontramos relatos de 250, 120, 549, 400 e tantos, 1.152
nos quando os havemos de batizar com grande desejo, prometendo
viver como nós lhes dizemos.29 batizados.ª~ Entre 1558 e 1566, calcula Serafim Leite,
batizaram-se entre doze a quinze ·mil índios.86
Dois anos mais tarde, a 2 de agosto de 1551, Anto-
nio Pires escreve: Sobre o uso pastoral do batismo devemos observar
dois pontos: 1.0 a urgencia dos costumes cristáos e cor-
Muitos dos gentíos pedem a água do batismo, mas o Padre Nóbrega respondente abandono dos usos gentílicos; 2.0 o próprio
ordenou que primeiro se lhes f a~am os catecismos e exorcismos,
até que conbe~amos neles firmeza e que de todo o cora9áo creiam rito executado.
em Cristo, e também que primeiro emendem seus maus costumes.30
A transforma~áo dos costumes, analisada a parte,
E um ano após, em carta a El-Rei, de 2 de julho de tem no batismo o símbolo de sua realiza~áo: o batismo
1552, escreve outra vez Nóbrega: era a confissáo pública do abandono dos costumes
Alguns se fazem cristáos depois de muito provados, e vai-se pondo
antigos e aceita~áo dos costumes novos. O que a trans-
em costume de ou serem bons cristáos ou apartarem-se de todo da forma~áo de costumes significou, de fato, para o índio,
ncssa conversa9áo. E os que se agora batizam os apartamos em
urna Aldeia, onde estáo os cristaos, e tem urna igreja e casa nossa,
isto significou, de fato, o batismo. Os textos sáo por
onde os ensinam, porque nao nos parece bem batizar muitos em demais insistentes para se duvidar disso: mesmo que o
multidao, porque a experiencia ensina que poucos vem a lume, e
é maior condena~áo sua e pouca reverencia do sacramento d(l
missionário náo quisesse id~ntificar o batismo como
batismo3-11 porta para a sociedade portuguesa, era assim que os
índios o percebiam. Toda vez, com efeito, que a sujei~ao
No mais, batizam-se apenas crian~as ou moribun- baixava sobre eles, pediam imediatamente padres que
dos. Os adultos tem que dar provas de perseveran~a nos os doutrinassem. O batismo chegou, realmente, aos íri-
novos costumes. Batismo e costumes sáo, na prática, diÓs com um significado colonialista de sujei~áo branda.
urna e mesma coisa. Por volta de· 1561 iniciam-se os ba- Era o diploma de adapta~áo.
tizados em massa. É verdade que a situa~áo é outra: ~ .

estamos na fase dos aldeamentos. O segundo aspecto a destacar é o próprio rito;


confere-se ao batizado um nome. "Ora, o fato de nomi-
E ternos um soleníssimo batismo preparado. Poderá ser que chegue nar as pessoas é. dado por urna imposi~áo da ideologia:.
e até que passe de quatrocentos e cinqüenta.82
Assim que, preparados e feitos os catecismos com a solenidade e religiosa cristá: ao 'passar' .para o cristianismo, as pes-
ceriaionias de costumes, batizou o Padre Provincial desta primeira soas devem ser semelhantes aos cristáos,. mas náo de
vez a 163 almas. ( .. . ) Batizou o Padre Provincial desta segunda
visita a 113. (E numa outra aldeía). . . do primeiro batismo solene urna semelhan~a qualquer (de todo o genero humano),
que fez, batizou a 173.33 e sim algo que especifique sua condi~áo de membro de
urna comunidade ungida pelo Verbo. Se,. como vimos, a
E os batismos continuam: noutra ocasiáo, no mes-
mo ano, o bispo batiza a 530 de urna só vez 34 e, assim, língua é sagrada, como nomear irmáos por nomes exte-
riores, estranhos ao Código do Verbo?" ª1 O novo nome
29 . Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. S1.
30 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESU1TAS DO BRASIL, t. 1, p. 252.
31 . Ibídem, p. 346. 35. Ibídem, p. 474, 482-483.
32 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL t. III, p. 390. - 36. Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil, t. Il,
33. Ibídem, p. 405 ss. p. 277.
34 . Ibídem, p. 446. 37 . Luiz Felipe BAETA NEVES, op. cit., p. 47.

66 67
como que opera, segundo este Autor, urna dissolucáo parte dos portugueses em receber os batizados. Estes
"do indivíduo batizado, no seio da cristandade. Só isto já portugueses, é de se notar' pertenciam a camada domi-
bastaría para traduzir todo o significado do rito. No nante: hispo, governador, grandes proprietários, funcio-
entanto observamos, ainda, que o novo nome é um nome nários régios. Era nesta qualidade que eles apadrinha-
portugues. O índio recém-batizado deixa seu nome an- vam os novos cristáos, e náo como simples membros da
tigo, deixa de pertencer ao grupo inominável em língua comunidade cristá. Como tais, talvez se achassem in-
crista, e recebe um nome e um modelo: é Martim Afonso cluídos entre aqueles de cujo convívio os neófitos
de Sousa, é Pero Lopes (de Sousa), é Fernao Correia, devessem se afastar, segundo a asser~áo de Nóbrega:
Garcia de Sá, Bastiao de Ponte, Vasco Fernandes, Hen- Ternos por certo que quanto mais apartados dos brancos tanto
rique Luís, Sebastiao de Lemos, e, ainda, Inácio de mais crédito nos tem os índios. 40 '

Azevedo, Luís da Gra, Benedito, Francisco, Filipe, Gon-


~alo, e tantos outros. Os "modelos" sao os grandes: os ·c omunhao
que, dentre os portugueses, se impuseram primeiramen-
te pela for~a das armas e, depois, pela for~a das pala- A com~áo foi usada como instrumento discipli-
vras. Eles náo tem apenas urna fun~áo patronímica nar dos mais eficientes. A época, náo era costume co-
mas patronal~ recebendo os afilhados na família (isto mungar com freqüencia. Serafim Leite assinala: "A
aconteceu com os primeiros nomeados e continuou comunháo hebdomadária, naquele tempo, era coisa
sendo costume que governador, ouvidor, provedor e inaudita. Até os Ii;-máos só a tinham nos dias próprios
outros oficiais apadrinhassem os novos cristáos) e ga- chamados de comunhao".41 Só em 1573 foram os índios
rantindo-lhes um "status" na nova sociedade. Faz lem- admitidos a comunháo anual. E só se admitiam os me-
brar a "encomienda" espanhol~, segundo a fórmula lhores. A coI)lunháo era dada como premio de tima vida
régia: "A vos Fulano se os encomiendan en el cacique irrepreensível: "Os ·que se admitiani eram os primeiros
Fulano 50 ó 100 índios, con la persona del cacique, para em todo o genero de virtude".42 ·
que os sirváis dellos en vuestras granjerías y minas, y O batismo se afrouxara como instrumento de
enseñadles las cosas de nuestra ·Sancta fe catholica". 36 transformacáo. e perseveranca: ·a experiencia mostrara
que muitos, ou por falta de doutrinacáo suficiente ou
O jesuíta reagia assim: por fraqueza, voltavam atrás. Era preciso um remédio
E é muito para louvar a Nosso Senhor, e sinal de grande miseri-
para os que.estavam em perigo. A comunháo solene foi
córdia sua, ver fazer a este gentio, sem ninguém o constranger, introduzida:· Razóes espirituais náo faltavam que justi-
coisa ·tanto fora de seu uso e inclina~áo, como é ( ... ) estarem ficassem a parcimonia das escolhas, o rigor dos critérios,
muitos juntos havendo de perder cada um seu nome e fama de
principal ( . .. ). Mas, pela bondade de Nosso Senhor, um e outro a exigencia relativa ao comportamento. Serafim Leite
lhes é fá~il perder pelo nome de cristáos.39 conclui, ele próprio: "A ·-comunháo teve alguns efeitos
Mais do que as palavras rituais, a própria soleni- salutares além dos propriamente sac-ra:rrientais: quanto
dade falava aos índios uma mensagem de regozijo. por . a instrucáo religiosa, porque exigindo a doutrina, só
38. Joseph HOEFFNER, lA ética colonial española del siglo de oro, p. 40 . Man'!lel da NóBREGA, op. cit., p. 154.
290. 41. Serafirll LEITE, op. cit., t. U, p. 288.
39. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 111, p. 476. 42 . Ibidem.

68 69
\
para poderem comungar, a apren~iam com diligencia; de relíquias ou inauguracáo de relicários, em batismos
"quanto a virtude em geral, porque os que se admitiam ou comunhóes solenes, nas missas novas, erecáo ou
'eramos primeiros em todo o genero de virtude'; e até visitas de aldeias, havia sempre procissáo festiva. ( ... )
quanto a civilizacao material, porque, vivendo os índios \Repique dos sinos, fogo de artifício, cavalhadas, teatros,
em malocas promiscuamente, 'os que comungam, para atas públicos dos estudantes, frondagens e flores, ser-
ter mais recolhimento e nao ver os excesso.s que se máo, confissóes, missa cantada. ( ... ) As procissoes ti-
fazem, pediam ao Provincial lhes desse licenca para ter nham, como se ve, muito de espetaculoso, como n~
casas para si, e a alguns se concedeu'; (sic!) e, sobretu- romarias portuguesas.'' 44
do, porque com o receio de lhes ser proibida a comu- As devocóes eram inúmeras: nenhuma tinha base
nhao, mantinham-se, em geral, parcos na bebida, coisa na tradicáo indígena, salvo a de S. Tomé, adaptada que
talvez a mais importante para se robustecer neles a fara ao qtie se contava de Zumé. O catecismo de Antonio
vontade, emancipando-se de táo arraigados hábitos". 43 de Araújo relata a vida de trinta e nove santos. A to-
Tornou-se, destarte, a comunháo um premio para os que ponímia brasileira assinala inúmeros santos como
melhor· se habituassem aos costumes portugueses. pa~ronos das vilas e aldeias, que já a essa época surgi-
ram: Assuncáo, Bom. Jesus, Conceicáo, Espírito Santo,
Santa Cruz, Santo André, Santo Antonio, Sáo Joáo, Sáo
Devo~óes
Miguel, Sáo Paulo,. Sáo Pedro, Sáo Sebastiáo, Sáo Tiago,
Em muitas devocóes adaptaram-se os jesuítas aos Monte Calvário, Sáo Francisco, Sáo Lourenco. A Virgem
costumes gentílicos; assim, as procissóes, táo ao gasto era cultuada sob muitos títulos: das Candeias, Visita-
dos índios na recepcáo ao pajé, por exemplo, se conver- cáo, Anunciacáo, Assuncáo, Apresentacáo, Purificacáo,
teram em instrumento pastoral de largo e constante da Vitória; do Rosário. Muitas devocóes eram fervoro-
uso. Em procissóes entrain os missionários pelas aldeias samente -celebradas, como a das 11.000 Virgens, Sao
dos índios· a pregar e qoutrinar. Em procissáo comemo- Maurício, Sáo Joáo Batista, Santos Anjos, Santas Almas,
ram-se os batismos, o~" casamentos, as festas-; fazem-se Reis Magos. Muitos objetos: relíquias, medalhas_,
pedidos, desagravam-~e as ofensas, congratula-se com "agnus-dei", cruzes, _fitas. Os índios deviam se sentir
~ vitórias. "A festa era grande: havia músicas, salmos perdidos em meio a um mundo táo novo e táo grande.
ou cancóes (f.evotas: faziam-se galantarias, divisas; le- Tuda soava como história maravilhosa, que só a reali-
vavam-se . 'g rinaldas na cabeca, diademas de penas; aade crua da proximidade portuguesa corporificava. Os
havia · fóguetes, 'tiros de espingarda e de camara'. Os santos favoreciam as batalhas dos portugueses: Sáo,
principais. pegavam as varas -do pálio, vestidos a portu- Sebastiáo participa da luta contra· os franceses; Brás
guesa, _ou· regiam a procissáo. Juntavam-se na Aldeia, Lourenco ·leva Sáo Tiago para luta igual. Anchieta; em
onde s~ realizava a procissáo, os cristáos das Aldeias seus teatros, faz os santos se interessarem pelos exitos .
vizinhas, com a sua correspondente cruz aleada. ( ... ) portugueses. úrsula, por exemplo, fala a seus colegas
No dia consagrado aos patronos das Aldeias, na funda- Maurício e Vital:
cáo das Confrarias ou festa dos seus patronos, a chegada 1
'

44. Serafim LEITE, op. cit., t. ll, p. 316.


43 . Serafim LEITE, op. cit., t. H, p. 289.
71
70
Se os nossos portugueses A INSTRUMENTALIZA<;AO DOS MENINOS PREGADORES
nos quiserem sempre. honrar,
.. sentiráo poucos reveses.
De ingleses e franceses Um dos recursos que os jesuítas empregaram na
seguros podem estar.45 catequese dos índios foi a prega~áo dos meninos. Inicial-
mente, tratou-se de meninos órfáos enviados de Portu-
Nas !utas contra os inimigos, como esta dos fran- gal. Nao tardou, porém, a se ajuntarerp. a eles meninos
ceses (1560), organizaram-se na Bahia procissóes propi- índios - que era o que queriam os padres - atraídos
ciatórias semanais, com ladainhas e disciplinas. O pela novidade portuguesa. Dom Joao III já previra este
mesmo se fez em Piratininga, durante a ida contra os método e o consignara no regimento de Tomé de Sousa:
tamoios e o assédio da vila (1561-1562).
E aos meninos porque neles imprimira melhor a doutrina, traba-
O sistema das devo~óes cristas era complexo demais lhareis por dar ordem, como se fa~am cristáos, e que sejam
para a simplicidade do universo indígena, onde nao ensinados e tirados da conversai;áo dos gentíos. ( ... ) E os meni-
nos estadio na povoa~áo dos portugueses e em seu ensino folgaria
havia deuses nem ídolos por quem morrer. De um lado de se ter a maneira que vos disse. 46
podemos por o Deus trino, a Virgem e os Santos, os
Anjos; de outro lado, o homem que se socorre dos sacra- E assim se procedeu. Relatando a Santo Inácio o
mentos, dos ritos, das preces, das práticas. O mundo de trabalho dos meninos, escreve o P.e Pero Doménech: ;
lá, onde está a salva~áo, parece inacessível, tal a gran- .
deza. de Deus e de sua corte celeste~ O homem, porém; Destes meninos enviou El-Rei o ano passado sete ao Brasil· para
atrair os filhos daqueles gentios. Tenho carta deles do grandíssimo
pode alcan~á-lo se cumprir os mandamentos, praticar fruto que lá fazem; de maneira que, quando um destes nossos
boas obras, e usar dos recursos de que dispóe já aqui. meninos sai fora, se ajuntam mais de duzentos meninos dos
gentios, e o abra~m e riem com ele fazendo-lhe muita festa,
Isto ensina o jesuíta ao índio. 0 índio ve, nao ·apenas e váo a casa dos meninos para aprender a doutrina, e depois vio
o jesuíta, mas até os valorosos santos descerem aos a suas casas para mostrar e ensinar a seus pais e irmáos.4 7
campos de batalha em. favor dos portugueses. As devo-.
~aes, tomadas singularmente ou tomadas como um con- Em carta de agosto de 1552, os próprios meninos
junto, impóem a supremacia portuguesa. O sistema contam sobre sua atividade apostólica: os me.ninos por.;',
global repete a divisáo da ordem social, distinta em dois tugueses, dirigidos pelos padres, contactavam os meni-·
estamentos estanque.~~ só pela misericórdia e por gra~a nos índios; ensinavam-lhes a doutrina, os usos e costu-
é que o estrato inferior consegue sobreviver. Ensina-se mes e convidavam-nos a se ajuntarem a eles. Os jesuítas
sub-repticiamente, a validade da ordem estabelecida e os recolhiam em suas casas, onde quer que estivessem,
condena-se toda ·veleidade de altera~ao nela. Assim to- e completavam sua educa~ao. Através dos meninos-ór-
madas, as devo~óes representaram efetivamente um fáos cativavam-se os meninos índios e através dos
esfor~o de imposi~áo e domina~áo cultural por parte da meninos índios chegava-se até os adultos. Mas nao era
sociedade portuguesa. O próprio estilo de religiosidade fácil o trabalho. Como passar dÓs anos os missionários
inculcado aos índios revela o arquétipo colonial em chegaram a conclusáo de que
funcionamento.
46. Regimento de Tomé de Sousa.
45 . José de ANCHIETA, Poesías, p. 386. 47 . CARTAS DOS PRl~EIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 214.

72 73
se tivessem com que e muita renda, ajuntaríamos todos os jovens familiar. A quem se propusera a transformac~o d?s
e os doutrinaríamos na f é, e os velhos iriam se gastando em seus
maus costumes e os jovens ficariam na posse da terra, e se faria índios em cidadaos portugueses,51 melhor me10 nao
urna nova cristandade.48 havia que a destruicao "in radice" dos impedimentos.
. A raíz era a organiza~ao familiar e tribal. A instrum-en-
O trabalho com a juventude era mais gratificante. talizacao dos meninos-pregadores contribuiu, assim,
As escolas estavam cheias. As criancas sentiam vontade para a imposicáo da cultura portuguesa.
de vir, segundo depoimento dos jesuítas.49 Sua educacao
era rigorosa: era preciso realizar a nova cristandade e, CONCLUINDO
por isto, evitar a convivencia diuturna entre pais e filhos.
Ternos também em casa conosco alguns filhos dos gentios, que A práxis catequética, que viemos analisando, ,t~az
atraímos a nós de diversas partes. Estes apartam-se tanto dos urna só licao: sua vinculacao com todo o contexto socio-
costumes dos pais, que, passando aqui perto de nós o pai dum, e
visitando o filho, .este muito longe esteve de lbe mostrar qualquer cultural imperante. A integra~ao dos jesuítas ao esta-
amor filial e terno, de maneira que só por pouco tempo, contra mento dominante fez com que agissem pastoralmente
vontade, e obrigado por nós, é que falou com o pai; e outro,
estando já há muito separado dos pais indo de caminho urna vez segundo as concep~óes e interesses deste estamento; ~
com os nossos Irmaos pela Aldeia que a mae habitava, e dando- universo das a~óes humanas reflete suas cren~as bas1-
lhe estes licen~a de a ir visitar se quisesse, passou sem saudar a
mae; deste modo póem muito acima do amor dos pais o amor cas. O jesuíta e, mais· além dele, toda a Ig;,eja qu~hen­
que nos tem. Louvor e glória a Deus.50 tista estava aliada aos "donos do poder , atraves da .
conc~p~ao do "orbis christianus". Nao havia po~i~ili­
O que ofereciam os jesuítas aos meninos, de modo dade de urna distincáo real entre as tarefas espec1f1cas
que rejeitavam sua própria origem e aderiam a gente de cada grupo e os princípios !undament~is ?~ª con-
portuguesa? Nao se trata, evidentemente, de um fato cepcao. Perseguindo a realizacao destes pr1nc1p1os, cada
isolado do contexto, mas a ele se prende e por ele se grupo acreditava estar cumprindo reta~ente co~ suas
explica. Todas as nacóes indígenas estavam conhecendo mais sérias obrigacóes. Os jesuítas agiam, assim, na
a presenca portuguesa e reconhecendo sua dominacao. pastoral, procurando a realizacao do, Re~no de De~. O
Mesmo recusando sua participacao, os índios percebiam maior problema consistiu em que os in.dios - por v1v~­
sua impotencia final frente ao invasor. Os jesuitas se rem outra cultura - náo tinham condicóes de nao
apresentavam como aquela porcao portuguesa que pro- perceberem a total identificacao ~os obj,eti~os .do~ I?ª-
punha métodos brandos e amistosos de adaptacao. A dres e colonos nao mais em fun~ao do orb1s chr1st1a-
dominacao nao se fazia violenta e desta forma podia nus" mas e~clusivamente em funcao dos interesses
atrair. Os pais davam seus filhos como forma de parti- merc~ntis dominantes. Cada passo, que os jesuítas per-
cipacao da sociedade que se instalava e os filhos, educa- fazem ao encontro do índio, traduz a necessidade de ele
dos a portuguesa, rejeitavam os pais, por nao participa- servir docilmente a gente portuguesa. Desta forma, sua
rem, eles também, dos costumes novos. A catequese dos a~ao se tornou subsidiária, e~bora ~ecessária. P~e~­
meninos tinha como primeiro fruto a desagrega~ao se-ia perguntar se, com isto, nao_desVIrt'!-aram os 1esu~­
tas a práxis pastoral. Esta questao foge a nossa pesqu1-
48 . Ibídem, p. 447.
49. Serafim LEITE, op. cit., t. 11, p. 25 ss.
50 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11, p. 11_0. 51. Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 154 ss.

74 75
sa. É, no entanto, sumamente importante chegar a A "tradu~ao" da mensagem religiosa é que possibili-
,. conclusao que, de fato, tratando-se do arasil quinhen- tará, em tese, a conversáo e a verdadeira fé. Seria ne-
tista, a pastoral a cargo dos jesuítas serviu diretamente cessário, aqui, um estudo das fórmulas apresentadas aos
aos interesses do estamento mercantil portugues. índios, para captar até que ponto os "rodeios" permiti-
ram aos índios o conhecimento da mensagem. Nao exis-
2. O CONTEODO DA CATEQUESE te um estudo crítico do catecismo do P.e Antonio de
Araújo, nem mesmo tradu~áo. Nao pudemos, póis, avaliar
O conteúdo da catequese feita aos índios era a dou- diretamente a transposi~áo que se fez de um universo
trina crista: seus dogmas, seus princípios morais, sua cultural para outro. O catecismo, por exemplo, conser-
espiritualidade. va em ·p ortugues expressoes como Santíssina Trindade,
Espírito Santo, Santa Igreja Católica, Santos, Virgem
E O : que principalmente pretendemos é que saibam o que toca aos Maria, Missa, Purgatório. Houve um ponto de estrangu-
artigos da fé, a saber, o conhecimento da SS. Trindade e os
mistérios da vida de Cristo que a lgreja celebra, e que saibam, lamento. Talvez possamos detectá-lo indiretamente atra-
quando lhes f or perguntado, par conta des tas coisas, o qual ternos vés dos documentos deixados. E este estudo, de qualquer
em mais que saber as ora~óes de memória.1>2·
maneira, estará na base de toda análise das fórmulas
Nao nos cabe, neste capítulo, estudar o conteúdo da catequéticas.
doutrina crista, a nao ser enquanto veiculado aos índios. Nóbrega escreve, já depois de bastante experiencia:
Apenas deste ponto de vista, e nao como sistema doutri-
nário~ focalizaremos o conteúdo catequético. O conteúdo Como nao sabem que coisa é crer nem adorar, nao podem entender
a preg_a~ao do Evangelho, pois ela se funda em fazer crer e adorar
é tomado, pois, no próprio ato de comunica~ao, enquan- a um só Deus e a esse só servir; e como este gentío nao adora
to conteúdo voltado para o interlocutor. A catequese, nada, nem ere nada, tudo o que lhe dizeis se fica em nada..f>4
com efeito, só se realiza na medida em que alguém ouve:
o ouvinte é a exata medida da sua realiza~ao; o que nao A RACIONALIZA~AO
o alcan~a, o que o ultrapassa em sua capacidade de per-
cep~ao, nega a própria razáo de ser da catequese. As- A prega~áo cristá exige urna resposta: creio. Exige
sim, se esta se executa através de um código lingüístico a fé. "Que cousa é a fé?", pergunta o catecismo do P.e
inacessível, a mensagem recebida acaba se identificando Marcos Jorge. 55 "É um dom de Deus na alma, com o
com o mágico, com o misterioso, negando seu próprio qual eremos firme e catolicamente tudo o que Deus nos
conteúdo expresso. tem revelado, segundo a Santa Madre Igreja no-lo ensi-
na.'' 56 O catecismo náo diz o que é crer, respondendo re-
Tem mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar a nossa
fé, mas contudo damos-lha a entender o melhor que podemos e
algumas coisas lhes declaramos por rodeios. Estao muito apegados 54. Ibídem, p. 22L
com as coisas sensuais. Muitas vezes me perguntam se Deus tem 55. A este catecismo faz referencia a nota 27. Este catecismo foi impresso,
cabe~::\, e corpo, e mulher, e se come, e de que se veste, e outras pela primeira vez, em 1571. Há na Biblioteca Nacional um exemplar bilíngüe
coisas semelhantes. 53 editado, em 1624, em portugues e congues. O catecismo, entao editado, passara
já ,pelas maos de Marcos Jorge e Ignacio Martinz, sendo "de novo traduzido na
lingoa do Reyno do Congo por ordem do P.e Mattheus Cardoso, Theologo, da
52 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. TI, p. 314. Companhia de Iesu".
53. Manµel da NOBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 66. 56. Marcos JORGE, Doutrina Cristaa, p. 27 v.

76 77
dundantemente a pergunta. Ternos que interpretá-lo catequese quinhentista era urna inicia~ao a fé crista,
~ segundo as versóes da época. "Crer nao é outra coisa tal qual esta era conhecida e professada.
senao um fortíssimo apegamento e firmíssimo senti- A razáo, dis~anciando sujeito de objeto, estabele-
mento que nosso entendimento alumiado por Deus dá cera um mundo a parte, estruturado por conceitos, um
as causas por ele reveladas." 57 O ato de fé se torna aces- mundo sem vicissitudes, permanente, verdadeiro. Este
sível a todo mundo, desde que Deus alumie o entendi- a
caráter de imobilidad~ conferido verdade gerou a pe-
mento. Do ponto de vista teológico, nao se oferece pro- dagogia da doutrina~áo: o mundo já estava pronto; tra-
blema a que o índio creia. A experiencia de Nóbrega, no tava-se, agora, simplesmente de declará-lo aos que che-
entanto - e tratava-se de urna experiencia comum aos g~vam. Nesse sentido, é importante observar as expres-
jesuítas da missao -, dizia que o índio "nao sabe que soes usadas: "Declaro-lhes", "pregar a doutrina" "ins-
coisa é crer". 58 truir". Os catecismos da época se chamavam co~ efei-
to, Doutrina: a catequese tinha por fim inst;uir e dou-
A fé crista talvez possa se tornar comunicável dentro
trinar, pois as verdades, objeto de urna doutrina~ao, já
de qualquer cultura - nao nos cabe abordar estaques-
estavam prontas. Estes conceitos que compunham o sis-
tao. O fato é que a f é crista, tal qual era concebida no
tema racional de nossa cultura eram inacessíveis aos
século XVI, nao se adaptava de forma alguma a cultura
índios. A fé ficou condicionada a capacidade de abstrair.
indígena. A fé se revestira de urna forma racionalizada·
' Ora, isto faltava a ele. Nóbrega, depois de onze anos de
o crer se tornara um a to intelectual. Por isto Antonio
trabalho, o testemunha:
Pires pooe escrever:
Porque conforme estes sao brutais, se nao vao doutrinados, quando
Aviso-vos aos que para cá (desejais vir, que nao sao necessárias pequenos, dos grandes nunca homem se satisfaz da sua f é nem
cá) vossas letras, porque nao há ( cá quest0es que disputar nem da sua contri~áo, para os batizar, ainda a hora da mort~ nem
dúvidas sobre) a Fé.59 tem capacidade para entender o que se lhes prega, tanto que algum
de nós, por sua bruteza, f oi de opiniáo nao se dever batizar
nenhum deles.60
A f é se revestira de urna forma racionalizada. A
razao, tomada nao como faculdade de entendimento mas Exigia-se do indio urna demonstra~ao de fé a que ele
como organiza~áo do universo, é um (1) modo de captar nao podia assentir. "E náo poderiam a mais ser levados e
a realidade, próprio da cultura ocidental. Trata-se com compe~idos do que a assistencia do culto e a repeti~ao
efeito de um modo, de urna compreensáo do universo, de mecan1ca dos atos e gestos do ritual submetendo-se
urna leitura. Os índios tinham outro modo, outra com- ma1s -
. pela compressao do que pela cren~a,
' aos batizados'
preensao, outra leitura. A fé crista se comprometera e casamentos e mais atos religiosos." 61 O saber original
coma razáo e a razao coma fé: nao havia urna forma da fé, que compreende o con-viver com Deus, ficou redu-
carreta de se pensar senáo através da razao; nao havia zido a decorar. A profissáo de fé, a um som. Os missio-
urna verdade sobre que pensar senáo através da fé. A nári~s,. con~udo, esperavam que, como correr do tempo,
a prat1ca f1rmasse neles a convic~áo e, enquanto isto,
57 . Frei Bartolomeu dos MÁRTIRES, Catlzechismo ou Doutrina Chris-
tiía, p . 6. ,
58 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. m, p. 361. 60 . Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 388.
59 . Ibídem, p. 308. 61 . Waldemar FERREIRA, Hist6ria do Direito Brasileiro, t. 11 p. 118.

78 79
era lícito exigir deles o comportamento correspondente-,. voz como de menino, e, junto da caba~a lhes diz - que nio
curem de trabalhar.
~ Desta forma a. catéquese contribuía, mais urna vez, - náo váo a r~a. que o mantimcnto por si crescerá e que
para o aportuguesamento dos índios. O simples fato de nunca faltará que comer,
ela se realizar, exigindo urna fixa~áo no mun~Q concei- - e que por si virá a casa;
- e que as aguilhadas irá.o acabar;
tual da fé, instrumentava os índios para a assimila~áo - e as frechas irá.o ao mato por ca~a para o seu senhor;
da cultura portuguesa, através da forma de pensar e de - e que hao de matar muitos dos seus contrários e cativaráo
falar. muitos para os seus comeres;
- e promete-lhes larga vida;
- e que as velhas se hao de tornar mo~as;
- e que as filhas que as deem a quem quiserem.
PREGA<;A.O CRISTA "VERSUS" PREGA<;AO DOS PAJ:bS - e outras coisas semelhantes lhes diz e promete com que os
engana. De maneira que creem haver dentro da caba~a alguma
coisa santa e divina, que lhes diz aquetas .coisas as quais creem.
A catequese dos padres náo foi aceita tranqüilamen- E acabando de falar o feiticeiro, come~am a tremer, princi-
te. As dificuldades náo eram apenas lingüísticas: como palmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo, que
vimos, tratava-se de um embate de culturas. Os índios parecem endemoninhadas, como de certo o sáo, deitando-se em
terra e escumando pelas bocas; e nisto lhes persuade o feiticeiro,
náo assistiram passivos a domina~áo da terra: eles se que entáo lhes entra a santidade, e a quem isto náo faz, tem-lho
a mal.
defendiam em todos os sentidos e, quando náo o podiam,. E depois lhe oferecem muitas cousas.64
fugiam. 62 Os movimentos messianicos,63 "tanto na forma
de rejei~áo pura da nova religiáo, quanto na forma de Os pajés pregavam as tradi~óes,
confirmando sua
sincretismos"' atestam a oposi~áo que eles fizeram a organiza~áo social presente, ainda que sob os véus de
nova prega~áo. O pajé representava tudo o que os índios urna realiza~áo completa. O discurso messianico, com
criam e, nesta fun~áo, sustentavam a cultura. Contra efeito, diz respeito ao agora, em sua perfei~áo. O mis-
eles, sobretudo, agem os jesuítas: - Que pregavam os sionário ouve esse discurso e o contesta: trata-se de um
·pajés? "engano"', de engana~áo; o verdadeiro saber é ele, mis-
sionário, quem possui: é o saber cristáo, que interpreta
Esta gentilidade a nenhuma coisa adora, nem conhecem a fielmente a ·organiza~áo do mundo por Deus. O saber do
Deus. ( ... ) Somente entre eles se 1azem urnas cerimonias da
maneira seguinte. pajé reflete a desordem e encobre a verdade: executa na
De certos em certos · anos vem uns f eiticeiros de longes terras, terra a fun~áo do diabo. Por isto os missionários o com-
fingindo trazer santidade. E ao tempo de sua vinda lhes mandam
alimpar os can:Unhos e váo-nos receber com dan~as e festas, batem, restaurando a ordem. É a salva~áo que se imp0e,
segundo o seu · costume, e antes que cheguem ao lugar, andam as agora sob outro angulo: a destrui~áo do saber que con-
mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as
faltas que fizeram a seus maridos, e urnas a outras, e pedindo fronta o Saber e a destrui~áo daquela organiza~áo so-
perdáo delas. cial vigente, que confronta a ordem cristá portuguesa.
Em chegando o feiticeiro com muitas festas ao lugar, entra numa Nóbrega expóe este ponto de vista:
casa escura, e. póe uma caba~a, que traz, cm figura humana, em
parte mais conveniente para os seus enganos, e mudando a sua Trabalhei por me ver com um feiticeiro, o maior desta terra. o
qual todos mandam chamar para curar as suas enfermidades.
Perguntei-lhe in qua potestate haec faciebat se tinha comunica~io
62. Florestan FERNANDES, "Antecedentes indígenas: organiza~io sociál com Deus, que fez o Céu e a terra e reinava nos Céus, ou com
das tribos tupis", in História Geral da Civiliza~áo Brasileira. Ver capítulo 2.0 •
63 . Eduardo HOORNAERT et alii. História da lgreja no Brasil, t. 11,
p. 391. 1 J! . 64 . Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 62.

80 81

o demonio, que estava nos infernos? Responden-me com pouca co1lheciam ao Criador delas, e que também nao as mostrava aos
vergonha que ele era Deus e que havia nascido Deus e apresentou- cristaos, porque ofendiam o Criador, mas que se eles cressem em
me ali um a quem dizia ·ter dado saúde e que o Deus dos ·c éus era Deus que Deus lhas daría. Ora, sucede que depois de come~arem a
seu amigo, e lhe aparecía em nuvens e trovóes, e em relampagos, ser cristaos, deu Nosso Senhor mina de ferro na sua terra e eles
e em outras coisas muitas. mesmos assim o pregam uns aos <?Utros. 68
Trabalhei, vendo tio grande blasfemia, por ajuntar toda a Aldeia
com altas vozes aos quais desenganei e contradisse o que ele dizia, Come~aram a pregar a moda dos pajés. A moda dos
por muito espa~o de tempo, com um bom língua, que ali tinha, o pajés come~aram a fazer suas entradas nas Aldeias, sen-
qual falava o que eu lhe dizia em alta voz com sinais de grandes
sentimentos que eu mostrava. da festivamente recebidos pelos índios:IJ9 Desta forma
Viu-se ele confuso. E fiz que se desdissesse do que tinha dito e acreditava o jesuíta destruir a cren~a. no poder do pajé.
emendasse a sua vida e que eu rogaría a Deus que lhe perdoasse.
Entre esta gente, que presente estava, vi alguns mancebos e mulhe- Em termos religiosos, corria o risco de estar apenas
res a maneira de pasmados do que lhes eu contava das grandezas mudando o tom da mensagem; em termos estratégicos,
de Deus. Depois me pediu este que o batizasse, que quería ser
cristáo. E agora é um dos catecúmenos.65 no entanto, estava impondo a nova ordem e assumindo
as fun~óes de dire~ao. A cada passo dos seus documentos
"Na verdade o que é preciso fazer é 'desmascarar' o encontramos a interven~ao militar assistirido a prega-
pajé; decifrar o seu código maligno e exibi-lo como mem- ~ao contra os pajés. A adapta~ao da linguagem foi vio-
tiroso e falacioso para os indígenas. Desmascarado, mos- lenta. A substitui~ao dos funcionários, pajé por jesuíta,
traría seu rosto verdadeiro: o do Demonio, que impin- equivalía a declara~ao de guerra total a ordem encon-
giu aos 'índios', como 'saber', urna coisa que ele náo pode trada. O recurso catequético, de que lan~ou mao o je-
transmitir porque para tanto nao tem poderes." 66 Este suíta, humilhava, pela impotencia de rea~áo, a cultura
ato de desmascarar, de desenganar, corresponde ao ato indígena, fazendo-a se render. Os benefícios desta pre-
de por na verdade. É isto que Nóbrega executa. O jesuíta ga~ao recaíram, nao sobre a comunidade crista que se
se torna o pajé da nova ordem. E anuncia: "Deus vos pretendia fundar, mas sobre o estamento mercantil que
envia a verdadeira santidade, que é a cruz! Deus tem buscava subjugar, conformar e, nao, fazer crer.
vida para os que nele crerem!" 67 E nomeavam as coisas
que Deus dava: sol, chuva, dia, noite e muitas outras. 3. A FORMA DA CATEQUIZA~AO
E curavam os doentes, prometiam vitória nas guerra.s
(portuguesas), infundiam esperan~a, garantiam a feli- Já se mostrou acima a teoria que justificou a uniao
cidade. Aos que lhes aderissem Deus darla nao só o céu
como tambétn a terra: entre coloniza~ao e evangeliza~ao, entre coloniza~ao e
conversao. Agora cabe demonstrá-la através dos fatos,
Estes días passados, quando lhes come~aram a pregar a f é, davam- i1ao mais soba ótica do portugues colonizador, mas sob
lhe certeza que se acreditassem em Deus que nao somente lhes a ótica do índio colonizado. Disto, contudo - e aí está
daria Nosso Senhor as grandes coisas celestiais que para os seus
tinha, mas que neste mundo em suas terras e lugares lhes daría o problema-, nao ternos documentos. o índio nao fez
muitas coisas que estavam escondidas que eles traziam debaixo dos
pés, as quais Deus nao quería que eles conhecessem, porque nio
como o jesuíta! Os fatos nos chegaram, pois, as máos,
filtrados pela interpreta~áo dominante. Se ela falsifica,.
65. Ibídem, p.· 56.
66. Luiz Felipe BAETA NEVES, O Combate dos Soldados de Cristo na 68. Serafim LEITE (org.), Novas Cartas Jesuíticas, p. 174.
Terra dos Papagaios, p. 93. 69 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUlTAS DO BRASIL, t. 1, p. 319; t.
67 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, .P· 143. III, p. 404.

82 83
o outro executava. Encontramos, entáo, impressóes je-
M. Bloch sugere que se pergunte quem falsificou, com suíticas vazadas nestes termos: "Todos estes que tratam
,. que interesse, que sociedade estava por trás para permi- conosco, dizem que querem ser como nós" 7 5 "e os índios
tir tal falsificacáo. 10 Urna leitura enviesada dos textos estáo metendo-se no jugo de boa vontade"; 76 e "parece
jesuíticos poderá nos permitir, ainda, urna ap·roximacáo que de cada vez o· faráo (se ajuntar numa aldeia) de
da realidade tal qual era sentida pelo índio. melhor vontade, por verem por obra que ·no espiritual e
A catequizacáo se fez sempre acompanhar da colo- temporal tem em nós pais piedosos". 77 O índio se domes-
nizacáo, náo apenas como urgencia da transformacáo ticava e comecava a agir como cristáo: deixa de comer
dos costumes, mas como forca militar em acáo. carne humana, casa-se cristámente, náo faz guerra aos
E lá (em Ilhéus) deu-se tao boa mao que em menos de dois
seus contrários, veste-se, fixa-se numa aldeia, deixa suas
meses que lá esteve (o governador) deixou os Indios sujeitos e tribu- bebedeiras e desonestidades, rechaca seus pajés; é cristáo
tários e restituiráo mal tudo que tinham feito assim aquele presente mais exemplar que o próprio portugues e, desta forma,
como todo o passado, e obrigados a refazerem os engenhos, e nao
comerem carne humana, e receberem a doutrina quando houvesse ''o paraíso se .enche de almas brasilicas nestes nossos
padres para lha dar. De maneira que já agora a gera~io dos Tupi- dias, glória ao Senhor". 78
niquins, que é muito grande, poderá também entrar no Reino dos
Céus.71 Na verdade, porém, a reacáo se fazia e os pajés a
lideravam. Agiam como podiam: exercendo urna forca
O índio náo tinha capacidade de distinguir entre· moral muito grande,79 pregavam que o batismo matava
atos religiosos, dos missionários e atos coloniais, dos ca- e que os padres traziam a morte; ªº anunciavam o adven-
pitáes e colonos. Por mais que os missionários lhe disses- to de urna era feliz;ª 1 impediam e dificultavam a conver-
sem: "Se teus lábios confessam que Jesus é o Senhor e sáo de sua gente; 82 desonravam e vituperavam os con-
se teu coracáo ere que Deus o ressuscitou dos mortos, vertidos; 83 pregavam contra os jesuítas, dizendo que eles
tu estarás salvo",12 a mensagem captada era a da sujei- queriam converter os índios para faze-los seus escra-
cáo. Quando a forca impunha a sujeicáo, a primeira rea- vos: 84
cáo dos índios era, com efeito, pedirem padres que os A maior parte destes ( . . . ) fez outras moradas nao longe daqui,
doutrinassem: onde agora vívem, porque ultra de eles nao se moverem nada as
coisas divinas, persuadiu-lhes agora urna diabólica imagína~áo, que
Continuou (o governador) a castigar os delinqüentes com muita esta lgreja é feita para sua destrui~ao em a qual os possamos
prudencia e temperan~a. de mancira que edificasse e nao des- encerrar; e aí, ajudando-nos dos Portugueses, matar aos que nao
truísse, e f oi causa de todos se sujeitarem a lei e jugo que lhes sao batizados e aos já batizados fazer nossos escravos. Isto mesmo
quiseram dar, ~ assim de muí longe se mandam ofe.recer que lhes dizem outros tndios, sel. que os ensinamos para que a eles,
lhes mandem Padres que os doutrinem, que querem am1zade com
os cristáos e trocar seus costumes pelos nossos.73
75 . Ibidem, t. 1, p. 111.
76. Ibídem, t. 11, p. 452.
Desta forma assimilaram eles que o governador au- 77. Ibídem, t. 111, p. 481.
torizava o ensinamento dos jesuítas 74 e o que um queria,· 78. lbidemt p. 390. .
79. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 248;
t. JI, p. 367.
80. lbidem, t. I, p. 379, 415.
70 . Marc BLOCH, lntrodufáo a História, p. 80. 81 . lbidem, p. 153.
71 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 111, p. 240. 82. lbidem, p. 277.
72 . Romanos, 1O, 9. 83 . Ibídem, p. 252 SS, 382; t. 11, p. 270, 370 SS.
73. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11, p. 470. 84. lbidem, t. 1, p. 181.
74. Ibídem, p. 270.
85
84
filhos e mulheres, fa~amos cativos; e sao eles de tal natureza e Observamos, por outro lado, que a catequese náo
condi~ao que mais creem a qualquer mentira dos seus, que a
,. exigia uma transformacáo total dos costumes, mas ape-
quanto lhes pregamos; e se lhes diz isto algum dos seus feiticeiros,
a que chamam pajés, nenhuma cousa tem por mais verdadcira, nas daqueles que náo se conformavam com os parame-
ainda que destes nenhum ouse vir aqui senáo ocultamente, porque
os repreendemos mui gravemente.8~ · · tros portugueses. Assim, por exemplo, a guerra intertri-
bal foi esconjurada, mas náo foi suspenso o costume de
Este texto é incisivo: demonstra bem a consciencia guerrear: doravante a guerra só seria permitida se em
que, a sua p:ioda, tinham os pajés e os outros índios. benefício da causa portuguesa. As semelhancas eram
Mostra o estado de. perseguicáo, sentida e infligida, em motivo de elogio e chegou-se a dizer de alguns índios
que viviam ("nenhu_m ouse vir aqui senao ocultamen- que tinham muitas coisas "amigas da lei natural" ;93 as
te", "nós os repreendemos mui gravemente"), a conexao dessemelhancas ·e ram taxadas de erros, vícios, mons_. ·
que faziam entre evangelizacao e colonizacao ("esta truosidades. Náo se percebeu que esta classificacáo era
Igreja é feita para sua destruicáo ... ajudando-nos dos estranha a cultura indígena; que o equilíbrio e a inte-
Portugueses"), a reacáo dos índios ("persuadiu-lhes ago- gra~ao dessa cultura se mantinham independentemente
ra urna diabólica imaginacao", "isto mesmo lhes dizem desta classificacao. Semelhanca e dessemelhanca erani,
outros índios"), e, ainda, a lideranca _dos pajés ("se efetivamente, medidas portuguesas, pelas quais os por-
lhes diz isto algum dos seus. feiticeiros, a que chamam
tugueses olhavam as demais culturas como se a sua
pajés, nenhuma cousa tem por mais verdadeira"). Pela
boca dos próprios jesuítas chega até nós a consciente - a crista - fosse a universal, por direito e necessida-
desolacao dos índios diante da .amedrontadora mole da de; e que, por conseguinte, nas dessemelhancas os índios
colonizacao. estavam apenas se desviando do certo para o errado.
De fato, ainda que colhendo alguns frutos de sua Urgindo a transformacao dos costumes dessemelhantes,
acao, os jesuítas se queixam das dificuldades da conver- a catequese se revelava perfeitamente como instrumento
sáo do gentio, de que a acáo dos pajés, se nao era a cau- da colonizacáo. Sua mensagem aparecia, pois, como uma
sa, era com toda a certeza expressao e estímulo. 86 Assim, mensagem imperialista de subjugacao sócio-cultural e
dizem que os índios nao tem capacidade para a fé; 87 que como tal foi captada pelo índio.
estao mais próximos dos brutos animais que dos ho-
mens;88que sáo inconstantes; 89 que náo estáo maduros; 9 º
que voltam atr~ tao logo se afrouxe a sujeicáo - o que A ALDEIA
era verdade. 91 E finalmente se fixam na posicáo de que
só com sujeicáo e aldeamento é possível fazer alguma Esta forma, que a catequizacáo tomou, matriz de
coisa. 92 tudo quanto se imprimiu na mente indígena, se materia-
lizou na instituicao da aldeia. "Sem ela", diz Serafim
85 . Ibidem, t. II, p. 366. Leite, "a catequese seria uma quimera; os índios nem se
86. lbidem, t. 1, p. 220, 268.
87. lbidem, t. II, p. 147; t. III, p. 361. purificariam de supersticoes, nem deixariam de guerrear
88 . Ibidem, p. 114.
89 . lbidem, p. 320; t. lll, p. 45. e comer uns aos outros. Era preciso modificar o seu sis-
90 . Ibidem, t. II, p. 131. •
91 . lbidem, t. 111, p. 305.
92. lbidem, t. 1, p. 12; t. 11, p. 401, 450; t. 111, p. 255. 93 . lbidem, t. I, p. 153; t. 11, p. 16.

86 87
\
tema social e económico". 94 "Pero Rodrigues", provincial meios de subsistencia, segundo as necessidades da colo-
"que foi na última década do século XVI, "feita a expe- nia, bem como serViá:< de reserva aquartelada para a de-
riencia de meio século, sintetiza o fruto das Aldeias, nes- fesa e o ataque. Impedia, por outro· lado, as fraquezas
tas quatro vantagens: proveito para os índios que se da inconstancia, os ataques· de traicáo, o nomadismo es-
civilizam e salvam; proveito temporal dos Portugueses, téril, a influencia dos pajés. Garantia a paz! A verdade
nas guerras contra os estrangeiros, que mais temem as é que os índios nao estavam acostumados ªºsistema por-
frechas dos índios que os arcabuzes dos brancos; provei- tugues, táo distoante de sua cultura: viviam em peque-
to contra os negros, de cuja multidáo é para temer náo nas comunidades, tendo talvez na guerra o principal su-
ponham alguma hora em aperto algumas Capitanias; porte de seu modo de vida; prezavam a liberdade como
proveito dos moradores, a quem servem por soldada con- norma de relacóes, a ponto de nao ter propriamente
forme o regulamento de El-Rei" .911 chefes senáo nas guerras, emergindo entáo como princi-
A catequese através de missóes volantes tinJ;la mui- pal aquele que demonstrasse mais bravura; mudavam-se
tos inconvenientes: havia muitas tribos, muito noma- constantemente e nestas mudancas muitas vezes se re-
dismo, muito poucos padres; estes corriam mil perigos partiam; viviam comunitariamente a propriedade dos
de toda sorte, inclusive de perseveranca no espírito reli- bens; sua maior honra era pelejar contra seus contrá-
gioso; o batismo se tornava ineficaz; os portugueses in- rios e, derrotando-os, levar em cerimonial a marte, co-
terferiam facilmente na vida dos índios. O fruto era . mendo de sua carne. A tudo isto a forma da catequizacáo
pouco e urgia racionalizar as atividades, de modo que o veio fundir, a través da aldeia, criando um outro índio,
saldo fosse positivo. A eficiencia se diz resultado dos mé- que, agora, "nada mais tinha de índio", na expressáo de
todos empregados. O jesuíta resolve, entáo, inverter o Anchieta 96 e que tampouco tinha de portugues. O pro-
processo: em vez de abrir-se sem limites em direcáo as cesso de desintegracáo sócio-cultural encontrou na al-
aldeias indígenas, ele as reduz a urna aldeia crista. Fica deia o elemento catalisador por excelencia, experimen-
em casa, portas abertas, pisando terreno conhecido. Esta tando o índio na própria carne a identificacáo da men-
atitude só é compreensível e executável se a forca mili- sagem religios~ com sua sujeicáo e o despojamento de
tar estiver .perta, compelindo a entrada. Por isto os sua cultura.
aldeamentos só prosperaram a época de Mem de Sá. A E é muito para louvar a Nosso Senhor e sinal de grande mise-
acá.o catequética urgía, da parte dos índios, urna mudan- ricórdia sua, ver fazer a este gentío, sem ninguém o constranger,
causa tanto f ora de seu uso e inclina~áo, como é ajuntarem se de
~ª de cultura. Os missionários viam na aldeia o ambien- diversas partes, tendo em pouco o seu trabalho de f azer casas e
te melhor para a consecucáo deste objetivo: a aldeia ro~as de novo, afora o haver de deixar as mancebas e o beber
supérfluo; e, além disso, estarem muitos juntos, havendo de perder
congregava os índios, prontos para atender ao chamado cada um seu nome e fama de principal e ficarem muitos debaixo
da campainha e a pregacáo da doutrina, ªº sinal para de um só, o que eles nao sentem pouco, e além disso perdem a
fama de quigre ibás, que quer dizer valentes e ditosos em guerras,
o trabalho e ao toque de recolher: tudo permanecía sob e de comedores de escravos, grande felicidade entre eles. Mas, pela
controle. Garantía a sistematizacáo da producao dos bondade de Nosso Senhor, um e outro lhes é fácil perder pelo nome
de cristáos e· gente que tem igrejas em suas terras e tem por desdi-
tosos aos que disto carecem.~7
94. Serafim L°EITE, História da Companhia de Jesus no _Brasil, t. Il.
p . 43. 96. CARTAS DOS PRIMEIROS JESU1TAS DO BRASIL, t. 11, p. 82.
95. Ibidem, p. 59. 97. Ibidem, t. 111, p. 476.

88 89
país conforme lhes parece; e, finalmente, cada um é rei em sua . ,
O GOVERNO casa e vive como quer.99
A língua deste gentio toda pela costa é urna, carece de tres letras,
A análise do regime das aldeias nos permitirá aqui- sel. nao se acha nela f, nem l nem r, coisa digna de espanto,
latar a equivalencia da evangelizacáo e da cplonizacáo porque assim nao tem f é, nem lei, nem rei, e des ta maneira vivem
sem justi~a e desordenadamente.100
aos olhos dos índios. Abordaremos dois tópicos, a saber, o
governo e a transformacáo dos costumes. agora está.o sujeitos a um único chefe, imposto, sob o
Mem de Sá instituiu o pelourinho, conferindo o car- mando dos padres. É-lhes dada urna lei, negadora toda
go de meirinho a um índio, agora "principal", subordi- ela de sua cultura: náo podem comer carne humana,
nando-o aos jesuítas. Náo fez vila igual a dos portugue- náÓ podem guerrear sem licenca, nao podem ter ma~s
ses, faltando camara as suas aldeias. o padre geral que urna mulher, nao podem andar nus, ao ~en?s dep<:1s
estranhou o fato de terem os jesuítas o govemo das de ·cristáos, náo podem conservar seus f e1t1ce~ros,. nao
aldeias e retirou-lhes esta incumbencia, chegando mes- podem mudar de domicilio; devem viver em 1ust1ca e
mo a proibir a residencia nelas. O provincial obedeceu receber a doutrina. Estes sao os "benefícios da catequese
só quanto a primeira parte e, ainda assim, por um tem- e civilizacáo": a expressáo é de Serafim Leite. º A .d~sci­
1 1

po. O problema, com efeito, nao era de fácil solu~áo, plina férrea dos jesuítas doma agora seus best1a1s e
muito menos a distancia. A instituicáo de capitáes de selvagens costumes1º2 e os transforma em mansos súdi-
aldeia portugueses mostrou, pela margem de abusos, que tos de Sua Majestade:
o _governo jesuítico era ainda a melhor maneira de se
resolver a questáo. Foi por isto que El-Rei, em 1605, lhes tem extraordinário amor, crédito e respeito aos padres, e nada
fazem sem seu conselho e assim pedem licen~a para qualquer
entrega governo e administracáo. O comentário de Se- coisa por pequena que seja, como se fossem novi~. 1 00
rafim Leite náo devia estar distante da opiniáo comum Tem meirinho que lhes distribui justi~a. Ninguém sai da aldeia
entre os jesuítas quinhentistas: sem licen~.1°4

esta igualdade na justi~a (querida por Mem de Sá) era a incorpo- "Os aldeamentos deram lugar a uma legislacáo es-
ra~ao jurídica dos tndios ao sistema legal dos colonizadores. A
experiencia, porém, demonstrou que eles, devido a seu atraso pecial, que regularizava ·9s, bens ·p róprios dos índios,, a
mental, nao estavam· ainda preparados para tal incorpora~áo. ( ... )
Os tndios, na infancia da civiliza~ao, colocados num regime de
separacáo deles dos portugueses e mamelucos, .º come~­
tutela, semelhante a de filhos-famílias, se por um lado sentiam cio entre uns e outros, o regime de trabalho, a h1erarqu1a
restringida a sua personalidade, beneficiavam por outra de certa
imputabilidade na delinqüencia; e, portanto, diminuída a respon-
administrativa, baseada na estrutura jurídica das insti-
sabilidade, abrandava-se o tratamento penal.96 tuicóes municipais portuguesas, unitárias e centraliza-
. ..
doras, notando-se, contudo, já alguma diferenca prove-
Desta forma foram eles admitidos na sociedade por-
tuguesa, sob regime especial. Eles, que 99 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL,, t. .II. p. 114.
100. Pero de Magalhaes de GANDAVO, Tratado da Provincia do Bra~
Nao estáo sujeitos a nenhum reí ou chefe e só tem nalguma estima sil, p . 182. . ·¡ 1
aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte. ( . .. ) Nao 101. Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Bras1, t. _ ,
há quem os obrigue pela for~a a obedecer; os filhos obedecem aos p. 233. 1 160
102. CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL,/· , p. ·
103 . Femáo CARDIM, Tratados da Terra e Gente do Brasi , P· 9
98. Serafim LEITE, op. cit., t. TI, p. 76 e 82. 104. Manuel da NóBREGA, Cartas do Brasil e mais escritos, p. 296·

91
90
niente das novas exigencias, da realidade e condicaes Eu lhe disse que nao tinha vindo para cá fazer os cristaos gentios,
,,t erritoriais, económicas e sociais da terra." 105 senao a acostumar os gentíos a ser cristáos, o que nao acontecerá
si radicitus non degollaren o velho homem cum actibus suis e se
Que podiam pensar de tudo isto os índios? O gover-· vestirem do novo, qui secundum Deuum creatus est. ( ... )
no náo é urna entidade abstrata; é, aqui, a imposicáo .... Tenho provido que nao se fa~a mais (confissao por intérprete) e ·
sucessiva de um regime de vida que difere radicalmente dado ordem com que todos se confessem, com mandar e pór
penas aos maridos portugueses para que ensincm as mesti~s,
de sua _?rganizacáo social própria, produzindo sua desa- suas mulheres, a falar portugues, porque enquanto nao o falarem
gregacao e decorrente desintegracáo cultural a falta dos nao deixam de ser gentíos nos costumes.100
poucos elementos que integravam sua cuitura. Aqui
importa realcar o instituto governo, algo inteiramente Os jesuítas gastavam mais tempo em corrigir os
novo p·a ra os índios, representando o poder subjugador costumes do que em pregar a mensagem da salvacáo. De
e comandando ~ realizacáo de seus postulados. Em se- sua parte, os índios, para mostrar que queriam ser cris-
gundo lugar~. este governo· náo estava voltado para os táos,. prometiam antes de mais nada que queriam viver
interesses indígenas, mas para os interesses da coloniza- como eles lhes diziam. 1º1 E isto lhes exigía uma renúncia
cáo, urgindo a adaptacáo deles aos objetivos desta em- dos hábitos culturais mais arraigados.
presa. Em terceiro lugar, o govern9 das aldeias era de- A primeira radical transforma~áo pedida era o apar-
sempenhado direta ou indiretamehte pelos padres, luga- tar-se dos que nao queriam se converter. Dom Joáo III
res-tenentes do goyemador, o que náo escapava a expe- já o determinara no Regimento de Tomé de Sousa. A se-
riencia dos indígenas.· A catequizacáo ficava, pois, com- grega~áo dos índios para junto dos portugueses náo deu
prometida por tanta uniáo com a coloniza~áo, e a "audi-· certo, porém: o mau exemplo servia de contratestemu-
tio fidei", a recep~áo ,da mensagem, ficava conspurcada nho. Era preciso criar-lhes urna redoma, aonde mal che-
na fonte. . gassem as más influencias. Foi a aldeia dos índios. A dis-
ciplina foi o estilo da nova educa~áo: o horário se achava
distribuído, da manhá a noite. Também as tarefas.
A TRANSFORMACAO DOS COSTUMES
Modifica-se o tipo de trabalho: antes, caca e pesca, talvez
Um segundo tópico do regime das aldeias é a exigen- um pouco de lavoura, de acordo sempre comas necessi-
cia de transformacáo dos costumes. É bom 'lembrar que dades imediatas. Agora, a agricultura, de acordo comas
esta análise é feita d-0' ponto de vista da funcionalidad e necessidades da colonia. Baeta Neve.s observa que "a
da catequese com· respeito ao processo da colonizacáo. agricultura é uma forma de controle da natureza; pode-
Interessa, pois, mostrar a transformacáo dos costumes se prever, com relativa previsáo, seus resultados. ( ... )
como exigencia da catequizacáo. Este tipo de afirmac.áo A agricultura conhece ritmos fixos: as planta~óes (cada
aparece, com efeito, em quase todas as páginas jesuíti- urna delas) tem 'esta~óes' específicas. Há momentos co-
cas. J á vimos seus postulados. Agora vemos sua atuacáo. nhecidos para semear, podar, colher, queimar. Há terras
Cito apenas um texto, que, por sinal, nao procede desta mais adequadas a um ou outro elemento agrícola. Enfim,
fonte, para testemunhar sua evidencia aépoca a que nos clima, solo, disposi~áo de lavouras, divisáo do trabalho,
referimos. O texto é do primeiro hispo do Brasil: tudo isso representa ordem, divisao, previsáo, constancia,

105. Serafiln LEITE, op. cit., t. 11, p. 46 106 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 360 ss.
107 . Ibidem, p. 139, por exemplo.
92 93
fixa~áo. Tudo is to é civiliza~áo" .108 Os índios aprendem a Urna segunda transforma~ao diz respeito a organi-
za~ao da familia. Antonio Pires escreve:
"'domar a natureza e, assim, aprendem a domar anatureza
própria. Aprendem a preparar o futuro. 109 As tarefas sáo N isto só pode quem souber destes Indios conhecer o muito que
dadas também aos homens, contra seus costtimes anti- Deus obra entre eles; porque, tendo eles por uma das maiores
cou.sas t~r muitas mullieres, - porque toda a sua honra é ter
gos. A divisáo de trabalho portuguesa passa a orientar a m~1t?s filhos - se contentam já com urna; e nas aldeias onde
ocupa~áo. Os índios "nao conheciam, antes do descobri- ~~s1d1mos estáo com urna só casados em lei de natureza, e correm-se
Ja quando lhes perguntam quantas tem, de dizerem que tem mais
mento, nem o arado, nem a nora, nem os quadrúpedes de uma.113
de tiro para as lavran~as. ( ... ) Com os Portugueses
exercitaram todas as indústrias agrícolas e em particular Tanto os casamentos "in lege naturae" quanto os
com os jesuítas· chegaram a realizar empresas hidráuli- "in lege gratiae" sao registrados em livro.114 Uns e outros
cas, de grande envergadura, represas, canais, etc. ( ... ) estabelecem a família monogamica crista e destroem os
Utilidade pública e civilizadora evidente". 11º Nao eram ~ostumes gentios. Os índios, só agora, adquirem "estabi-
evidentemente os índios que estavam interessados em l1dade e diferencia~áo familiar" .115 A imposi~áo da mo-
tanta aprendizagem! Eles passaram a ajudar na cons- nogamia, a título de pureza dos costumes, teve por efei-
tru~áo das vilas: casas, ruas, estradas, pali~adas; a f azer to a desagrega~áo social, "racionalizando" o parentesco,
o transporte por terra e por água. Gabriel Soares de Sou- as rela~6es sociais, o relacionamento sexual. 116 Impedi-
sa elogia sua habilidade para os ofícios de carpinteiros, dos de se comportarem "naturalmente", impelidos a se
serradores, oleiros, carreiros, lenhadores, e para todos os comportarem "estranhamente" ( estrangeiramente), eles
ofícios de engenhos de a~úcar, bem como para criarem devem ter se sentido perdendo as raízes.
vacas. Também as mulheres aprendem logo qualquer Estáo tao sujeitos que nao dáo importancia nem a pais nem.. a
ofício comas portuguesas.111 A ordem, com efeito, era o parentes.117
·-.
trabalho: náo se permitía a ociosidade. O trabalho, além
· ·de muito necessário (para os portugueses), exercita a Também a guerra intertribal foi proscrita: "que náo
disciplina da vontade, e, trab~lhando a soldada, rendia matassem os contrários senáo quando fossem a guer-
proventos. (Como isto nao devia significar para o índio!), ra" .118 Desta forma atingiu-se também a antropofagia
por eles praticada como "glória e honra qué Ihes deixa-
O fato é que em cinco anos, entre 1549 e 1553, produzi-
ram seus avós": "Praeterea, que náo comessem carne
ram os índios por volta de 1.400 toneladas de farinha, das humana, vício tao torpe acerca de Deus e dos homens"
quais dois ter~os procediam do mesmo lugar.112 Náo se
(ibídem). Há aquí dois problemas catequéticos: - o que
tratava de simples diletantisn10.
113 . CART~S DOS PRIMEIROS JESU1TAS DO BRASIL, t. 111, p. 315.
108 . Luiz Felipe BAETA NEVES, O Combate dos Soldados de Cristo na 114 . Ver, ac1ma, pastoral legalista. Ver também CARTAS, t. 111, p. 315.
T erra dos Papagaios, p. 131. 115 . Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. 11,
109 . Ver Jean de Lf;:RY, Viagem a Terra do Brasil, p. 125. p. 85.
11 O. Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, t. I,_
. 116 . . Florestan FERNANDES, "Antecedentes Indígenas: Organiza~áo So-
p. 138. cial das Tribos Tupis", in História Geral da Civiliza~áo Brasileira, capítulo 2.º.
111 . G abriel Soares de SOUSA, Tratado Descritivo do Brasil em 1587,
117 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 1, p. 252.
p. 313.
112 . Alexander MARCHANT, Do Escambo a Escravidáo, p. 122. 118 . Ibídem, t. 11, p. 382.

94 95
justificava a guerra dos portugueses, que náo justifica- As primeiras se afirmam dogmaticamente. As segundas
"va a guerra dos índios? Segundo, os mesmos padres, que se derrogam. Assim, a introje~áo dos valores cristáos
proibiam em nome de Deus a guer:a. i~t~rtribal, aben- servia a causa da coloniza~áo.
~oavam-na quando se tratava de in1c1at1va ·portugue-
sa.119 Nóbrega, mais de urna vez, fala de guerras de que CONCLUINDO

participavam os índios; sobas ben~áos dos padres, bem
como de a~óes de gra~as pelas vitórias. Aqui, típicamen- A catequiza~áo foi recebida pelos índios como men-
te, o jesuíta se reveste das fun~óes do pajé, aos olhos dos sagem colonial. Desde a primeira hora se identificou o
convertidos: o que era um costume desqualificado adqui- trabalho dos padres com o trabalho do governador e dos
re qualifica~áo e pode ter lugar. A identidade dos ritos, a colonos. A conversáo cristá se fez conversáo de costumes~·
mágica da . opera~áo talvez passassem despercebidas, As verdades da fé serviram de código, sublimando a crue-
mas sua justificativa, a for~a, era duramente experi- za dos fatos. Apesar da ótica triunfalista em que foram
mentada. redigidos os depoimentos de nossa primeira história da
Outro problema conexo diz respeito a antropofagia Igreja, podemos perceber a existencia de suas for~as
combatida e parece náo ter sido até agora considerado: qualitativamente bem distintas que tinham entre si pou-
- como teriam os índios recebido a mensagem religiosa cos pontos de contato. O escambo talvez tenha sido a
de um deus-comida, se os mesmos pregadores desta dou- única ponte respeitadora do dinamismo próprio de cada
trina combatiam a tradi~áo do homem-comida? Se este cultura. A ampliacáo dos interesses mercantis portu-
era já vício táo torpe, quanto náo seria o primeiro? Por gueses, no entanto, rompeu o compasso natural em que
outra, náo estava Anchieta sublimando - é verdade que se travavam os contatos e, pela for~a militar, impós as
semelhantes termos eram comuns aos motetes medievais novas formas de contato: sujei~áo e aldeamento. Com
- os mesmos motivos que os índios aduziam para seus isto, tiveram-se em vista táo-somente as metas coloniza-
banquetes antropofágicos, e náo era assim que os índios doras, ainda que sobre elas pairasse o código de comuni-
assimilavam a doutrina~áo de Anchieta, ao escrever ou cacáo. Desta forma, a catequizacáo cumpriu um papel
ao ouvirem: colonial, náo como de fora, como urna forca simplesmen-
Su carne y sangre real
te aliada, mas, mais do que isto, como u.ma for~a real-
les dejó de que comiesen, mente integrada a todo o processo.
para que siempre viviesen
con su pastor eternal,
y en él se convirtiesen,120

O que nos importa é a fun~áo que, junto aos índios,


exerciam estas doutrinas. As atitudes dos padres produ-
ziam urna só li~áo: as coisas sáo boas se procedem dos
portugueses e sáo más se atestam sua origem indígena.

119 . Ibídem, t. 1, p. 257; t. 111, p. 465 .


120. José '<le ANCHIETA, Poesías, p. 419.

96 97
A

CONCLUSAO

No contexto portugues quinhentista de unidade ori-


ginária entre a fé e o poder político - este se identifi-
cando também com a direcáo dos negócios económicos
- compreende-se que a pregacáo da religiáo tenha feito
parte de todo um conjunto de recursos usados para a
consecucáo dos grandes objetivos assinalados pelo esta-
mento dominante para a sociedade. Náo se deve, com
efeito, analisar o processo colonial como um empreendi-
mento do comércio ao qual se tenha associado a Igreja,
um a busca do ouro, outro a busca das almas. 1 o homem
portugues, conscientemente uno pela instauracáo do
Reino dos Céus neste tempo, náo chegou ao uso da razáo
esclarecida e, por conseguinte, náo soube dissociar o es-
catológico, do presente; o espiritual, do temporal; o
religioso, .do económico; a fé, do império. Para ele náo
havia prioridade entre um e outro, ·tanto assim que os
próprios missionários usavam de argumentos económi-
cos como meios para a salvacáo. Nós, que para nossa uti-
lidade fazemos a História, separando conceitual e real-
. mente um do outro, voltamos ao passado com a no.ssa
b·agagem, e tentamos assinalar-lhe as raízes. Neste sen-
tido, des-cobrimos o economicismo e o coronelismo 2 de

1 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. l, p. 346.


2 . Com estes termos, queremos significar que faz parte da essencia da
religiao tradicional o caráter economico e político: a religiao se realiza no
económico e no político e, também, no "religioso". Os homens do dinbeiro e

99
nossa religiáo tradicional; julgamos os atos e os méto- lh~sos: espelhos, contas, facas, tesouras, panos, etc. De-
aos empregados no encontro intercultural; ternos condi- po1s lhe pediu algo em troca: trabalho, mulheres contrá-
~áo de indicar conflitos e acompanhar-lhes o desenvol- rios, comida, pau-de-tinta, etc. Ele náo podia ;econhe-
vimento. cer as despropor~óes do trato: náo tinha o conceito de
valor e~onómico. Pelo comércio entrou a corru~áo de
A IMPOttNCIA DO INDIO sua soc1edade e rl:e sua cultura. Quando nao se fez por
?;m~ fez-se pe~a for~a. Assim, por exemplo, o principal
A catequese serviu de instrumento para a imposicáo Ja nao era mais .º "v~ente e ditoso em guerra", mas o
dos usos e costumes portugueses. O destinatário desta que carre~va maIS ob1etos de troca. Viver bem já náo era
a~ao foi o índio. Ele, em todos os sentidos, sofreu a a~áo: andar ma1s de trezentas milhas só para sentir o prazer e
teve voz passiva porque as for~as adversas eram incom- a docura dos ritos antropofágicos, 5 mas fixar-se na terra
paravelmente maiores. Ele sabia que se lhe exigia mu- para que a· producáo tivesse efeito. Viver em "familia"
dan~a dos costumes e sabia também o quanto isto Ihe já náo era ter seis ou sete mulheres, a vontade, mas
3
atingia as tradi~oes. Se cedeu, náo foi porque quis: foi ap~rtar-se ~estes cos~umes e ser amigo dos padres. E
por impotencia. É isto que significa o "desejo" que tinha· ass1i:n por ?~nt~. :1tras do comerciante veio o guerreiro
de receber doutrina, de seguir os mesmos costumes cris- e ve10 o m1ss1onar10. Aquele pelas armas, este pelas pa-
táos. Faltavam-lhe condi~é5es de debelar o intruso que lavras e pela disciplina. Urna leitura do teatro anchieta-
estava se impondo. Náo podia fazer do portugues-invasor !1º ~ostra o processo de desviriliza~áo por que passou o
um contrário como os outros contrários e dar-lhe guerra. ind1~, retirado da intimidade de sua cultura e exposto
O contrário era da mesma raca e da mesma cultura,4 publ1camente, sem defesa, as investidas da cultura in-
estava eminentemente presente, a cada gesto, a cada vasora e dominante. Beber vinho a noite roubar dese-
passo, a cada momento; era o seu estímulo de vida social. jar mulher, fazer esposas pecarem, comet~r deson~stida­
Em linguagem "contrária", todos se entendiam. Com o des, espre~tá-las, esconder os pecados grandes, prezar o
portugues náo se dava o mesmo. Este veio como dife- nome ant1go, abandonar a aldeia, ficar sem ouvir missa,
rente, nem amigo nem contrário. Simplesmente, veio. comer carne todos os dias, rocar e plantar nos dias san-
Diante dele o índio náo tinha pontos de contato que per- tos, falar mentiras, maledicencias dancar e adornar-se
manecessem inabaláveis: estremecía sua integra~áo só- tingir-se de vermelho, empenar o' corpo, pintar as per~
cio-cultural. Veja-se, por exemplo, o trato comercial. O nas, fazer-se negro, fumar, curandeirar, enfurecer-se,
índio desconhecia o comércio, a época do descobrimento. andar.,,.,,, matando,
. comer um ao outro, amancebar-se, ser
O portugues veio e com ele come~ou a escambar. Num esp1a?c: e1~ de quanta coisa deve agora o índio se.esqui-
primeiro momento caíram-Ihe do céu presentes maravi- var: entao seus olhos se abriram e conheceram que
estavam nus". 6 Já náo há mais tranqüilidade: ou ele
do poder exercem urna fun~áo específica e importante, porquanto simbolizam m~gra para bem longe da costa ou, por nao ter outra
a materialidade do Reino de Deus, "que já está no meio de vós" (Le. 17, 21).
Preferí º . termo "coronelismo"' porque, ·e mbora de origem posterior, designa
sa1da, se convence de que o portugues, afina!, náo é táo
com prec1sáo o papel que o governador, os capitaes e os colonos exerceram no
tocante a religiáo.
3 . CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11, p. 383. 5· CARTAS DOS PRIMEIROS JESUITAS DO BRASIL, t. 11, p. 113.
4. Ver Introdu~áo. 6. Genesis, 3,8.

100
101
válidos para todos os continentes. 7 Do ponto de vista
¡uim, e se poe sobas ordens do jesuíta. O pe~idp de d~u­ colonial, ela respeitou a ordem estabelecida, pregando
trina é declara~ao da impotencia a que se v1u reduz1do. conforma~ao e executando-se ero separado: para portu-
gueses, de um lado, para índios, de outro; para senhores,
de um lado, para escravos, de outro. As incongruencias
A A~AO DO JESUITA entre o dito e o feito se manifestaram de pronto. A· ver-
dade se identificou como poder; o amor cristáo univer-
o instrumento de ajustamento cultural usado pe~a sal excluiu os nao-portugueses e foi causa de guerras;
coloniza~ao foi, sobretudo, a a~ao do jes~íta. Es~a ~~ª? a guerra d.o portugues era legal e lícita e a guerra inter-
tinha um sentido religioso, ela toda; faz1a referencia a
tribal era alegal e ilícita; os índios tinham que observar
constru~ao do Reino de Deus em me,io aos habitan~es d-0 os preceitos e os portugueses agiam livremente; os cos-
Novo Mundo. O Reino .de Deus, porem, se amolda a for- tumes portugueses eram bons .e os costumes indígenas
ma~ao típica, com que vinha carregado o jes~íta.' só discordantes eram mau.s.
explicável aluz do momento histórico que a IgreJ~ viyeu Come~a, entao, o jesuíta a concentrar o índio em
no. século XVI. O jesuíta veio, mandado pelo prmc1pe, grandes aldeias, a vesti-lo a européia, a segregá-lo nas
irmanado aos homens do governo, aos projetos do go- planta~óes, a aplicar-lhe a legisla~ao penal portuguesa,
verno, a ideologia do governo. A salva~ao, de que ele era a abolir suas guerras, sua organiza~ao familiar e tribal. 8
portador, vinha do alto, em duas J?lataformas: a ~eal e a A .mao do guerreiro achatava qualquer pretensao de
divina. A cren~a arraigada, de que ambas eram msepa- espontaneidade e a mao do jesuíta derramava o bálsamo
ráveis, moldou os resultados de todo o seu trabalho de do conforto espiritual, justificando a for~a como cami-
evangeliza~ao. nho escolhido por Deus para a salva~ao. Em termos
Deste jesuíta o índio brasileiro nao era interlocutor: religiosos, talvez seja verdadeira a conclusao de Gabriel
ele nao falava! Nao tinha como falar diante de um es- Soares de Sousa: "Nao há nenhum que viva como cris-
tranho, como esse, que vinha, além do mais, escuda~o tao tanto que se apartam da conversa~ao dos Padres
por guerreiros poderosos. Diálogo interc~lt.u:al nao oito dias". 9 Mas o que realmente importava era a intro-
je~ao dos costumes.
houve nem mesmo se vislumbrou sua poss1b1l1dade. A
religi~o foi entregue pronta (o máximo que se fez foi Com ~fe!to, a religiao querida pelo estamento, para
alguma contemporiza~ao com efeito inoperante) e a atender aos seus interesses maiores, era a que bastasse
prática dos mandamentos rigorosamente exigida. Sua para sustentar o estilo de vida portugues. Nao havia ne-
pastoral compreendeu postulados totalitários: a igno- cessidade _de{·pureza de religiao. Esta ficava como para-
rancia profunda do índio, a substitui~ao de suas cren- metro, a fim de manter o real. O real bastava para os
~as e costumes, a intimida~ao por conceitos doutrinais
e pelo recurso a for~a, incluindo . sujei~ao; promessas 7 . O Catecismo de Marcos Jorge, escrito em 1571, foi adotado pelo
-
messianicas e a forma~ao das novas gera~oes.- Padre Luís da Gra em 1574. Foi literalmente traduzido para o congués, o
que demonstra que, no pensamento do clero da época, o conteúdo tinha caráter
universal.
Nao houve lugar para urna catequese adaptada a 8 . Gilberto FREYRE, Casa-Grande & Senzala, p. 110.
situa~ao real do catequizando. Do ponto de vista teoló- t. 11.
9 . Apud Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil,
gico, ela pareceu dever fazer-se em termos universa.is,
103
102
fins da coloniza~ao. Esta posi~áo era contestada pelo perior ( ... ) agregando a si os elementos inferioresn.10
jesuíta, mas debalde. Os princípios mesmos do "orbis Reconstituir a História implica situar o jesuíta na
christianus" a justificavam: ele tinha que continuar ·' alian~a como estamento dominante, identificando obje-
pregando para por ordem e, ao mesmo tempo, tinha que tivos mercantis e objetivos religiosos, tal qual o percebeu
aceitar as falhas individuais como contingencias dentro o índio catequizando, senao em termos conceituais, com
da ordem. Por seu turno, a cristianiza~áo· náo era pro- toda certeza na experiencia cotidiana.
blema do índio: Este a assimilou, de fato, como compo- Foi isto o que tentamos neste ensaio: oferecer urna
nente de todo o processo da colo11izacao. O portugues, contribuicao ao estudo deste grande tema, qual é o do
outra tivesse sido sua formacao histórica, poderia ter processo da colonizacao portuguesa do Brasil. O enfoque
colonizado sem cristianizar. Foi, contudo, como portu- aqui dado, de urna leitura colonial da catequese qui-
gues que era, que ele urgiu a cristianizacao. Desta for- nhentista, beneficiou-se do recurso constante as fontes.
ma, todo o processo de imposicao cultural foi filtrado Isto permitiu um delineamento mais claro da hipótese
pela religiáo crista, tal qual era vivida pela sociedade e evitou afir~a~oes gratuitas. Este enfoque, por ser um,
portuguesa e emendada pelos padres. precisa ser completado por outros estudos, como, por
É nesse clima que se faz o processo de aculturacao. exemplo, sobre a catequese dos portugueses, a cateque- .
É sob este prisma que deve ser estudada a catequese. se dos negros africanos, a influencia. das cren~as indí-
Nao se trata de saber simplesmente o que se pregou e genas sobre a formacao do catolicismo brasileiro, a
se ensinou: isto se encontra nos documentos; mas de espiritualidade popular, a prática religiosa nos enge-
saber como esta pregacao e ensinamento caíram sobre nhos e fazendas, e outros. Ternos certeza de que a des-
os ouvintes. A catequese, no proce.sso de formacao cul- coberta das "raízes do Brasil", ainda que as exponha
tural, mais do que temário de pregacao, foi e tem que a acao causticante de novas "estamentos", conduzirá a
ser vista como o conjunto dos fatores em jogo. Há ra- um melhor entendimento da realidade que vivemos.
zoes fatuais muito mais influentes que a simples enun- Esta foi a motiva~áo do presente trabalho, este o seu
ciacao verbal. O comportamento cristao dos colonos, por objetivo.
exemplo, adaptando a letra da lei as suas conveniencias,
fez surgir· urna praxis crista diferente e, mesmo, aposta
a doutrina. Assim, o índio recebeu influencias distin-
tas. A opiniáo oficial do jesuíta prevaleceu, na medida
em que significou identidade de objetivos coma empre-
sa .mercantil.
É, pois, de se estranhar urna história da catequi-
zacao quinhentista que nao leve em consideracáo a for-
ma pela qual o índio, destinatário dela, a recebeu. Se se
aceitam todos os princípios pelos quais o estamento do-
minante ·da sociedade portuguesa se impós as nacoes
aqui encontradas, realmente nao pode haver outra his-
tória senao a do "dinamismo latente da civiliza~áo su- 10 . Ibídem, .P· XIII.

104 105
18 . SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Sao
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selho Federal de Cultura, 1972.

Maria da Glmia Gohn

A democracia nao é apenas um credo ou ent!o um


discurso vazio. Ba é fruto de discussao e debates,
envolvendo voc~ e seus vizinhos, os quais juntos
podem solucionar problemas comuns.
Reivindica~oes Populares Urbanas
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai de Maria da Glória Gohn.
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Além de tra~r a evoluc;llo histórica das Sociedades
Amigos de Bairro, esse livro nos permite compreender
a natureza e a dinamica interna do movimento.

Um lan~mento da Cortez Editora:


sempre um bom livro que leva a pensar.
108
USAID e a EDUCAc;Ao BRASILEIRA
CLASSE OPERARIA, SINDICATOS E JOSÉ OLIVEIRA ARAPIRACA.
PARTIDO NO BRASIL 192 p.
RICARDO ANTUNES
188 p. Edic;lo Ilustrada "No ano fiscal de 1969, (. .. ) a parte na despasa total
da assisténcia técnica sobo programa da USAID foi
Este livro aborda justamente um período chave para a de 137 por cento da parcela dos EUA."
compreensao do Brasil de hoje. Da Revoluc;ao de 30 a Esses dados nos dllo urna pálida idéia do que
Alian~ Nacional Libertadora (1935) muitas representa o acordo MEC-USAID, cujo resultado pesa
transforma~6es ocorreram: os sindicatos foram até hoje sobre os ombros da populac;llo estudantil.
atrelados ao Estado, o aparecimento da figura do Vocé nao pode deixar de ler USAID e a
pel~go, os conceitos cooperativistas de Vargas EDUCACAO BRASILEIRA de José Oliveira
principalmente o seu reformismo pelo alto. Arapiraca, a nao ser que prefira nao saber o que
É muito importante ver como a classe operária reage acontece.
a estas transforma9(5es e de que modo ela se Sobre o livro afirma Moacir Gadotti: "cada vez mais a
organiza. O autor realizou um minucioso atternativa pedagógica identifica-se com a alternativa .
levantamento das diferentes correntes de pensamento política. A resposta ao imperialismo deve ser global. ~
do operariado e de que modo elas atuavam. o que se pode concluir do trabalho de J. O.
CLASSE OPERARIA, SINDICATO e PARTIDO Arapiraca, que, ao mesmo tempo em que nos alerta
constitui um texto fundamental a todos, pois as sobre a presen~ do colonizador, hospedado no nosso
questé5es nele colocadas ainda nao foram superadas. sistema educacional, nos oferece precioso subsrdio
(CUT, jornada de 8 horas, etc .). O livro traz para buscar alternativas."
fotografias da época .
..

''Mémória da Edu~''
Esta s&le visa recuperar a signi-
fi~ histórica da edu~,
entendida como dimenslo essea-
cial do desenvolvimento polltico
das sociedades, através da reto-
mada objetiva e rigorosa dos fa-
tos que constituiram seus vários
momentos e através de um esfor-
~ de interpret~ critica de
seus vários momentos.
Dedicando-se muito especial-
mente aanálise da educa.9io bra-
sileira, busca explicitar a fecun-
didade de seu passado para a
compreenslo do momento atual
de suas manifesta~ e para a
proj~ de seu futuro, recupe-
rando assim a nossa memória e
nossa historiedade•

,
.

l
Impressao e Acabamento
MILES! EDITORA LIDA.
Rua 21 de Abril, 1.154 - Fone: 292-6480
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