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DIMAS MACEDO

Va ng ua r d i sta,
insubmisso, de-
sobediente e ino-
vador na cria-
ção de processos
ficcionais e na
restauração da

A FACE DO ENI GM A
linguagem poéti-

ca, José Alcides


Pinto é conside-
rado o mentor
do Movimento
Concretista No
Ceará, e o seu
r e p r e s e n ta n t e
mais destacado,
sendo, por isto
mesmo, auspicio-
so a sua trajetó-
ria literária, ini-
ciada, aliás, com
um livro que o
poeta posterior-
mente rejeitou./
Dimas Macedo.
LIVROS DO AUTOR

Poesia
A Distância de Todas as Coisas, 1980
Lavoura Úmida, 1990
Estrela de Pedra, 1994
Liturgia do Caos, 1996
Vozes do Silêncio, 2003
Sintaxe do Desejo, 2006
O Rumor e a Concha, 2009

Crítica
Leitura e Conjuntura, 1984
A Metáfora do Sol, 1989
Ossos do Ofício, 1992
Crítica Imperfeita, 2001
Crítica Dispersa, 2003
Ensaios e Perfis, 2004
A Letra e o Discurso, 2006
Crítica e Literatura, 2008

Ensaio
Lavrenses Ilustres, 1981
Marxismo e Crítica Literária, 2001
A Face do Enigma, 2002
Política e Constituição, 2003
A Brisa do Salgado, 2011
A FACE
DIMAS MACEDO

do enigma
JOSÉ ALCIDES PINTO
E SUA ESCRITURA LITERÁRIA

ILUSTRAÇÃO:

G ERALDO J ESUINO DA C OSTA

SEGUNDA EDIÇÃO
© 2012 by Dimas Macedo.
1ª Edicação: Instituto da Gravura/Imprensa Universitária
fortaleza, 2002.

EDITORES

Dimas Macedo
Geraldo Jesuino

Conselho Editorial

Inez Figueredo
José Telles
Jorge Pieiro
Raymundo Neto
Pedro Henrique Saraiva Leão
José Alcides Pinto ( In Memorian)

1ª edição

A Face do Enigma: Alcides Pinto e sua Escritura Literária


Fortaleza, Instituto da Gravura do Ceará, 2002.

Revisão
Vianey Mesquita

Projeto Gráfico e Capa:


Geraldo Jesuíno

Dados Internacionais De Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Regina Célia Paiva da SIlva CRB -1051

M 141f Macedo, Dimas


A Face do enigma: José Alcides Pinto e sua escritura
literária / Dimas Macedo. - 2.ed. Fortaleza: Imprece, 2012.
92p. il
Inclui Bibliografia
ISBN : 971-85-8126-004-4
1. Pinto, José Alcides - Crítica e Interpretação. 2 Literatura Cearense
- Crítica e Interpretação. I. Título.
CDD: B869.09
928.69
Para

Geraldo Jesuino da Costa,

discípulo fervoroso de Alcides Pinto.


PREFÁCIO DA 2ª EDI çÃO

A primeira versão deste esboço literário


de Alcides Pinto foi escrita em maio
de 1994, para o projeto Personagens da
Cidade, da Fundação Cultural de Fortaleza.
Esclareci então a Cláudio Pereira, na época
dirigente máximo daquela Fundação, que
não iria agredir a imagem de Alcides Pinto
escrevendo um livrinho pífio como aqueles
que vinham sendo publicados.

Falei igualmente que o meu trabalho


extrapolaria o reduzido número de páginas
que ele havia sugerido. E que eu não
concordava com os recursos gráficos com
que a coleção era apresentada.
Após a conclusão do livro, entreguei uma cópia
ao Eduardo Eloi e lhe pedi algumas ilustrações para o
cordel que escrevera sobre Alcides Pinto, em 1983, e que
decidi seria parte integrante do projeto.
E o resultado, tendo em vista a primeira edição
(Fortaleza, Instituto da Gravura do Ceará, 2002), foi o
conjunto de xilogravuras de Abelardo Brandão, Augusto
Amaral, Eduardo Eloi, Francisco de Almeida, Hélio
Rola, Hilton Queiroz, Nauer Spínola, Nilvan Auad,
Roberto Galvão, Sebastião de Paula, Sérgio Lima e
Silvano Tomaz.
Harmonizadas com a escritura do livro, e com
a iconografia de JAP, pela criação e o talento gráfico
de Geraldo Jesuino, tudo resultou num livro bastante
apreciado pelos meios editoriais do Ceará.
Nesta nova edição foi conservado unicamente o
texto original do ensaio, suprimindo-se as gravuras
e a iconografia do poeta, por ser esta, no momento, a
exigência que a este lançamento se impõe.

Fortaleza, junho de 2011

Dimas Macedo
SUMÁ IO r

1 Roteiro Biográfico de Alcides Pinto11


1.1. Dados Preliminares 11
1.2. Formação Escolar 15
1.3. Adolescência e Maioridade 17
1.4. Intermezzo Pernambucano
1.5. No Rio de Janeiro 22
1.6. Formação Universitária 24
1.7. Funcionário Público 28
1.8. Retorno a Fortaleza 32
2 A Obra Literária de Alcides Pinto 39
2.1. Dados Preliminares 39
2.2. A Obra Literária de JAP 43
2.3. O Ficcionista 46
2.4. O Ensaísta e o Poeta 49
2.5. O Silêncio Branco 53
3 Bibliografia de Alcides Pinto 57
4 Bibliografia Sobre Alcides Pinto 63
5 A Face do Enigma - Adriano Espínola 65
6 Cantiga de Amigo - Eleuda de Carvalho 72
7 Enigma Literário - Felipe Araújo 75
8 Os Labirintos De Uma Escritura - Carlos Augusto Viana 79
A Face do Enigma 11

ROTEIRO BIOGRÁFICO
DE ALCIDES PI nTO

a) DADOS PRELIMINARES

Filho de pais marcadamente sertanejos, da


zona norte do Estado, nasceu o nosso biografado
no distrito de São Francisco do Estreito, muni-
cípio de Santana do Acaraú, aos 10 de setembro
de 1923. Na pia batismal tomou o nome de José,
o mesmo do pai e em louvor do Santo, padroeiro
do Ceará.
Da Ribeira do Acaraú, pois, procede esse
grande escritor cearense, filho de José Alexan-
dre Pinto e de Maria do Carmo Pinto. O pai:
poeta, comboieiro, cigano, curtidor de couro e
lavrador. A mãe: dona de casa, criando a prole
numerosa, dezessete ao todo – treze homens e
quatro mulheres. Oito, dentre eles, no entanto,
faleceram nos primeiros anos de vida, ceifados
por adversidades as mais variadas.
12 Dimas Macedo

Dona Maria do Carmo não teve tempo de estudar.


Não assinava o nome e, por isto, nunca votou, sendo
esta a primeira graça que Deus lhe concedeu, segundo
a interpretação do filho romancista. E quando lhe
perguntavam como aguentava a impaciência do marido
– sempre tenso e a destilar implicâncias –, respondia: “Eu
nunca tive sol e nunca tive lua”, palavras que sempre
calaram na alma do futuro escritor, pois reconhece que
nelas uma sentença de dor estava escrita e que a ele
competia decifrar esse grande enigma divino.
José Alexandre Pinto, segundo documentos aos
quais tive acesso, nasceu no povoado de Alto dos Angicos,
nome primitivo de São Francisco do Estreito, aos 26 de
agosto de 1888, e faleceu em Sobral, aos 24 de fevereiro de
1975. Também da aldeia de Alto dos Angicos, conhecida
oficialmente por Parapuí, é originária a sua esposa Maria
do Carmo Pinto, nascida aos 26 de novembro de 1900, e
falecida em Massapê, aos 20 de outubro de 1969.
Na Igreja de Santana do Acaraú, segundo os
registros eclesiais da Diocese de Sobral, receberam-se
em matrimônio aos 15 de julho de 1915, nascendo dessa
união os seguintes filhos: Gerardo, Maria Gerci, Maria
Jurandir, Francisco, José Alcides, Mirian, Raimundinha,
Maria da Conceição e Maria do Socorro, afora, é claro, os
que morreram anjo, conforme registrei anteriormente.
O menino José Alcides puxara ao pai: magro,
briguento, comprido e desengonçado. Costumava
passar as tardes em cima de uma pedra ou correndo
pelos cercados como os bezerros ariscos. Carregava uma
escoliose congênita e a omoplata direita mais alta do que
a esquerda, “fora do eixo”, como costuma dizer quando
é abordado sobre o assunto.
A Face do Enigma 13

Birrento. Cabeça dura. Quando menino, apanhava


muito, porém jura que nunca deixou de dizer nome feio.
Tinha a mania de andar nu e sem chapéu em pleno sol
do meio dia, aquele que no sertão racha os miolos de
qualquer vivente. Em noites de lua gostava de contar as
estrelas e pastorear os astros e, às vezes, se distraía em
divagações planetárias. Costuma dizer que, já naquele
tempo, intuía a dimensão cósmica sobre o absurdo e
o desconhecido. Gostava também de atirar pedras nos
urubus, os quais encangava e andava com eles pelo
povoado Alto dos Angicos.
Esses terríveis abutres, assim como os morcegos
que costumava caçar na escadaria e no coro da igrejinha
do Estreito, e que ainda hoje, em profusão, sobrevoam a
pequenina vila de Parapuí, iriam povoar a imaginação de
Alcides Pinto pelos tempos afora e ganhariam, no futuro,
dimensões simbólicas de alta expressividade literária.
Nas tardes de verão, o menino Alcides se largava a
campear calangos pelas várzeas, distraindo-se também
com o urinar das reses, com o sexo dos animais, com o
calor da terra esturricada, com os cavalos aplacando o
cio das éguas, com o relinchar dos jumentos marcando
as dez horas da manhã de forma sempre invariável.
O cheiro do estrume e o aroma que despencava
do rabo das andorinhas, na Igreja de São Francisco do
Estreito, se fundiam em sua intuição com a essência do
barro sagrado de que falava o livro do Gênesis, que o
Padre Araken da Frota costumava recitar para os paro-
quianos, induzindo-os a que acreditassem na fragilidade
da vida e no perecimento da matéria.
Consta no registro eclesial de Alcides Pinto que
ele foi batizado na igrejinha de sua aldeia natal, aos 24
14 Dimas Macedo

de janeiro de 1924, tendo como oficiante do ato o Padre


Francisco Araken da Frota, então vigário da freguesia
de Santana, e como padrinhos Maria Laura Mendes
e Raymundo Mendes de Vasconcelos, que exerciam
funções de agricultores e pecuaristas naquela comuni-
dade sertaneja.
Também na igrejinha do Estreito recebeu Alcides
Pinto o sacramento do crisma, tendo como protetor e
padrinho o agricultor Rubens Rocha e como oficiante
o Bispo da Diocese de Sobral, Dom José Tupinambá
da Frota, tudo conforme certidão expedida em 08 de
abril de 1957 pelo Padre Joviniano Loyola Sampaio, que
curou a paróquia de Nossa Senhora de Santana na citada
década de cinquenta.
Já no tocante à ascendência de Alcides Pinto,
cumpre anotar que ele é descendente, em linha direta e
por via paterna, do Coronel Antônio José Nunes, nascido
em Cascais, Portugal, aos 24 de agosto de 1815, e falecido
no Estreito, aos 27 de julho de 1910, sendo referido pela
crônica histórica como um dos fundadores do povoado
de Parapuí. Antônio José Nunes, o garanhão luso, que
povoa boa parte da obra literária de Alcides Pinto, é
hoje uma personagem imortal da literatura brasileira,
ao lado de João Pinto de Maria, tio paterno de Alcides,
cujo modelo ele transformaria também em ficção, ao
escrever a novela João Pinto de Maria (Biografia de um
Louco), publicada no Rio de Janeiro pela Companhia
Editora Americana, em 1974.
Pelo lado materno descende José Alcides Pinto
da família Frota, mais especificamente do ramo que
fixou raízes em Massapê e em Coreaú, tendo o seu
avô materno, Francisco das Chagas Frota, sido por
A Face do Enigma 15

ele igualmente caricaturado, talvez como o arquétipo


humano mais bem trabalhado pelo romancista, o louco
Chico Frota de Trilogia da Maldição e de significativa
parte de sua produção ficcional.
Examinando-se o viés memorialístico e indiscu-
tivelmente autobiográfico da obra literária de Alcides
Pinto, pode-se afirmar que foram tensos os primeiros
anos de sua formação, equilibrando-se o menino entre
os transtornos de personalidade do avô materno, que
o levaram finalmente ao suicídio, e a instabilidade que
governava o ramo paterno da família.
Aliás, o traço genealógico e a antropologia
germinal e atávica, no caso específico de Alcides Pinto,
constituem os elementos distintivos mais curiosos da sua
engenharia ficcional. Rosa Cornélio de Jesus, a matriarca,
Maria Patrocínio de Jesus e Manoel Alexandre Pinto,
os avós paternos, Maria José Frota (Donana Cajazeiras)
e Francisco das Chagas Frota (Chico Frota), os avós
maternos, ao lado de Maria do Carmo Pinto (Loló) e José
Alexandre Pinto (André) são todos, indistintamente,
personagens da sua mitologia literária.

b) FORMAÇÃO ESCOLAR

Teve José Alcides Pinto como professora de


primeiras letras a D. Iaiá, mestra de tradicional família
do Acaraú: baixinha e enérgica, mas de fina educação,
temida pela austeridade dos seus eficientes métodos de
16 Dimas Macedo

ensino, mas estimada e querida pelos pais e por toda a


comunidade do Estreito.
Iniciava-se no ensino na Carta de ABC de Lande-
lino Rocha, a única adotada no ensino oficial, impressa
no Recife, em 1924, um ano depois do nascimento do
poeta, que data de 10 de setembro de 1923, segundo reza
o seu batistério, consignado pelo vigário da freguesia
de Santana, Padre Francisco Araken da Frota, que seria
transformado em personagem do seu primeiro romance,
intitulado O Dragão, e publicado em São Paulo, pelas
Edições GRD, em 1964. Na época, o Padre Araken
estava vivo e aparece no romance com o nome de Padre
Tibúrcio.
A segunda professora, a mulata Carminha
Amarante, era tuberculosa. Bebia ovos crus durante as
aulas. “Estatura média, guenza, cabelos pretos, olhos
secos de um brilho estranho”. A palmatória sobre a mesa
impunha a disciplina, que o menino José Alcides temia,
mas que adotava, às vezes, por questão de indisciplina
e pelo cultivo permanente da rebeldia.
José Alcides aprendeu a “regra de três” na Arit-
mética Elementar FTD e no Primeiro Livro de Leitura
de Felisberto de Carvalho, e comunicação e expressão
na Gramática de Gaspar de Freitas, como praticamente
todas as pessoas de seu tempo, não obstante os novos
métodos de ensino implantados no Estado durante o
Governo de Ildefonso Albano. Nada sabia, o menino, de
História ou Geografia, a não ser as coisas mais elementa-
res e as estórias orais sobre a colonização do rio Acaraú,
que muitos anos depois aproveitaria na feitura de um de
seus melhores poemas, intitulado O Acaraú – Biografia
do Rio, e publicado em Fortaleza, em 1979.
A Face do Enigma 17

Conhecia, no entanto, a História dos Doze Pares de


França que o pai recitava de cor, assim como os dissa-
bores da Princesa Teodora e a comovente aventura de
Juvenal e o Dragão, que ouvia da boca dos cantadores
na feira de Santana. Na classe, José Alcides, como todo
menino peralta, usava o espelhinho de bolso no dedão
do pé, apanhando sempre da professora e do pai por
conta de suas danações.
E assim foi crescendo o menino, ajudando o pai no
comboio, fazendo o serviço de arrieiro e trabalhando nas
ilhas, na diária, na semeadura e na apanha de grãos, no
roçado do campo e no cultivo da terra. Costumava mijar
no algodão para aumentar o peso e não raro se envolvia
em discussões na hora da partilha.
Com a prole numerosa, era sempre insuficiente
para o sustento da família o que o pai produzia. O
comboio de burros era alugado ao coronel José Lourenço
dos Espinhos, no arraial próximo a São Francisco do
Estreito. Com essa animália de trinta cabeças, seu Zé
Pinto, como era conhecido o pai do nosso romancista,
aumentava o ganha-pão da família e com o curtume e a
produção da lavoura completava os seus rendimentos.

c) ADOLESCÊNCIA E MAIORIDADE

Um dia apareceu na aldeia um homem conhe-


cido por Hermano Frota, comerciante em Senador Sá,
cunhado do seu Zé Pinto, irmão que era de sua esposa
Maria do Carmo Pinto, e disse par Dona Carminha
18 Dimas Macedo

Amarante o seguinte: “Vou me encarregar da educação


desse menino (referindo Gerardo Pinto, o filho mais
velho do casal) e espero que proceda e seja gente na
vida e que se encarregue no futuro da educação dos
irmãos”. E montou o menino na garupa da motocicleta, a
primeira que apareceu nos Angicos, promovendo diante
dos olhos do poeta a primeira arribada que presenciou.
A instalação da diáspora, no seio da família Frota
Pinto, começou a inquietar o seu patriarca, mormente na
proporção em que o crescimento da prole ia tornando
difícil a vida na aldeia. Esses acontecimentos motivaram
a transferência da família para Massapê, ali instalando
seu Zé Pinto o seu curtume de forma absolutamente
rudimentar. José Alcides e Francisco (Chico Pinto), o
caçula dos homens, foram estudar na Escola de dona
Maria do Carmo Carneiro, mestra de grandes méritos
e saber excepcional.
Em Massapê, paralelamente aos estudos, Alcides
Pinto passou a exercer a função de servente de pedreiro
e, logo em seguida, a de vendedor ambulante e de auxi-
liar de padeiro do seu Zé Pretinho.
Adolescente, povoado de rebeldias e inquietações,
em Massapê, Alcides Pinto iniciou-se nos mistérios do
sexo, no início de maneira elementar e promíscua e
depois com a sofreguidão própria dos que frequentavam
a rua das Madalenas, a zona meretrícia daquela impor-
tante cidade cearense, sendo a denominação Rua das
Madalenas e o seu ambiente o leitmotiv e o título do seu
primeiro romance, lamentavelmente jamais concluído
e cujos primeiros capítulos foram publicados no jornal
O Estado, de Fortaleza, em meados da década de 1940.
A Face do Enigma 19

Em 1939, presumivelmente, a família do Seu Zé


Pinto mudou-se para Fortaleza, onde Hermano Frota
de há muito estava trabalhando, como titular da sua
própria firma – Hermano Frota Comissões e Consigna-
ções. Assim, José Alcides Pinto foi trabalhar com o tio,
entrando também com o irmão Chico Pinto para o Liceu
do Ceará. Nessa época, Gerardo Pinto já fazia carreira
na Aeronáutica e os outros irmãos iam se arranjando
como Deus permitia.
Atuando, fundamentalmente, como copydesk e
free lancer em vários matutinos cearenses, mas com o
sangue de cigano sempre latejando, Alcides Pinto, ia,
paralelamente, escrevendo sonetos para os principais
jornais de Fortaleza, como O Nordeste, O Estado e o
Unitário. E ainda com o curso secundário por terminar,
resolveu tentar a vida no Rio de Janeiro, viajando com
um bilhete de 3ª classe do Lloyde Brasileiro, dado pelo
general Onofre Muniz Gomes de Lima, então aspirante
ao Governo do Estado.
José Alcides Pinto embarca com destino ao Rio de
Janeiro, em agosto de 1945, a bordo do Itanajé, tendo
por companheiro de viagem o grande crítico literário
cearense Braga Montenegro, que veio a descobrir já
em alto mar, sentado no convés. Além dos apetrechos
de viagem, raros e muitas vezes insuficientes, o poeta
levava no bolso um livro de sonetos organizado pela
professora Alba Frota, que passou a ser um breviário
nas mãos dos marujos, mas que se perdeu durante
o trajeto de bordo, um percurso muito pequeno, por
sinal, pois o poeta, seduzido pela paisagem do Recife,
ali desembarcou, por ocasião do atracamento do Itanajé.
20 Dimas Macedo

d) INTERMEZZO PERNAMBUCANO

Sem destino certo, José Alcides Pinto passou algum


tempo vagando pelo cais, sondando as possibilidades
da vida portuária e de como penetrar o corpo e a alma
da agitada Recife da década de 194o, indo com o tempo
alojar-se numa república da rua da Imperatriz, bem no
início da praça Maciel Pinheiro.
Ao desembarcar no Recife encontrou a Capital
Maurícia quase totalmente tomada por greves e agita-
ções. O clima efervescente desse caldeirão social lhe
devolveu em cheio o contato com os ideais socialistas
que o perseguiam desde a juventude. Assim sendo,
de logo assumiu o partido das reivindicações e das
candidaturas comunistas, participando ativamente, no
Recife, da campanha de Yedo Fiúza para presidente da
República, sofrendo, no momento, a primeira de uma
série de prisões e ameaças, que se repetiriam no Rio de
Janeiro, a partir de 1948.
No Recife, por intermédio de Mauro Mota, toma
contato com a poesia surrealista de Deolindo Tavares, a
qual passaria a exercer grande influência em sua forma-
ção estética e cultural, passando também a frequentar
com assiduidade o frescor do Solar de Apipucos, apro-
fundando com Gilberto Freyre os seus conhecimentos
sobre a formação social do Nordeste, de cujo realismo
fantástico e alegórico viria a ser um dos maiores expo-
entes na área da literatura.
Ali projeta o esboço de Noções de Poesia e Arte,
seu primeiro livro de poemas, que somente seria
A Face do Enigma 21

publicado em 1952, no Rio de Janeiro, assumindo com


essa atitude uma cosmovisão estética totalmente nova. E
no Instituto Joaquim Nabuco desenvolve pesquisas em
torno da Geografia urbana do Recife, atentando para a
miséria de seus mangues e para a proliferação de sua
marginalidade, resultando dessas observações dois dos
seus poemas mais importantes – As Pontes (Rio, Irmãos
Pongetti, 1955) e Os Catadores de Siri, publicado em
1966, pela Editora Leitura, do Rio de Janeiro, ambos a
lembrar a paisagem humana e a vida urbana do Recife.
O jornalismo e a literatura, assim, pareciam
funcionar no seu íntimo como uma força muito difícil
de domar. Isso o levou a arrefecer o impulso que de há
muito vinha nutrindo pela política, passando aos poucos
a flertar com jornalistas e intelectuais menos engajados.
Acionando os amigos escritores de Fortaleza, prin-
cipalmente os membros do Grupo Clã e da Sociedade
Cearense de Artes Plásticas, não foi difícil a Alcides
Pinto aproximar-se do poeta Mauro Mota e do círculo
de amizades que ele mantinha no Recife. Foi Mauro
Mota que o empurrou para o convívio com a redação
dos grandes jornais de Pernambuco, especialmente o
Jornal do Comércio, onde exerceu as funções de revi-
sor, e o Diário de Pernambuco, do qual foi repórter e,
posteriormente, editorialista.
E a Recife velha, durante o período que ali residiu,
foi por ele milimetricamente vasculhada, despejando-se
o poeta pelos seus bares e casas de cômodos, em busca
de lazeres fortuitos e de casos febris e amorosos, tais
como o que manteve com Maria das Neves Sobreira,
mãe de seu primeiro filho e por quem se ardia de calor
humano e de paixão. O seu destino de aventureiro e
22 Dimas Macedo

andarilho, porém, o levou finalmente ao Rio de Janeiro,


deixando para trás a amante e o filho que não vira
nascer, sendo esse um dos recortes mais doloridos de
sua imensa solidão de poeta.

e) NO RIO DE JANEIRO

Quando deixou Fortaleza, em 1945, o poeta e


jornalista Aluísio Medeiros lhe dera uma carta de
recomendação, apresentando-o ao escritor e líder
comunista Oswaldo Peralva, um dos dirigentes nacio-
nais do Partido. Com essa recomendação, José Alcides
pôde ingressar na Tribuna da Imprensa, onde trabalhou
poucos meses, tendo como companheiros de redação
Humberto Teles, já então advogado; o poeta Aydano do
Couto Ferraz e o romancista e poeta alagoano Aírton
Quintiliano, um dos baluartes do Partido e um de seus
principais teóricos.
No jornal, Alcides Pinto fez amizade com o
deputado federal Pedro Pomar, que o acolheu em seu
apartamento, no bairro de Laranjeiras, ali conhecendo
e privando do convívio de João Amazonas e do grande
líder operário e orador José Maria Crispim, ambos,
igualmente, com assento no Parlamento. Também no
apartamento de Pomar conheceu o escritor e grande
líder comunista Astrojildo Pereira, até hoje um dos
melhores biógrafos de Machado de Assis.
Nesta época também se tornou amigo de Prestes
e de toda a cúpula do Partido, aguçando-se mais uma
A Face do Enigma 23

vez em sua consciência os apelos e as reivindicações


socialistas, que viria a defender em Fortaleza, quando,
filiado à esquerda democrática, veio a disputar uma
vaga na Câmara Municipal dessa cidade, pela sigla do
Partido Socialista Brasileiro, em 1958.
Situado o Partido Comunista na clandestinidade,
após a sua cassação, aos 7 de janeiro de 1948, pelo Supe-
rior Tribunal Eleitoral, José Alcides Pinto passou a viver
sob forte poder de ameaça, sendo finalmente preso e
espancado, juntamente com outros companheiros, ao
sair do jornal O Mundo, dirigido por Geraldo Freitas,
obtendo liberdade dez dias depois, por força de habeas
corpus impetrado por Pedro Pomar.
Em meados de 1950, no entanto, convidado por
Prestes, recusou-se a participar da redação do Manifesto,
divulgado em 1º de agosto daquele ano, rompendo
estrategicamente com o Partido, mas mantendo laços
de amizade com Astrojildo Pereira e relações amistosas
com o crítico de arte Mário Pedrosa.
Sem trabalho e perseguido pela polícia, perdeu a
tutela de Pedro Pomar, então com o mandato de depu-
tado federal cassado, passando a dormir pelos bancos do
Passeio Público. Vasculhando, no entanto, os classifica-
dos do Jornal do Brasil, encontra disponível o emprego
de inspetor de alunos, no Colégio Pio-Americano, em
São Cristóvão, um dos maiores internatos do Rio de
Janeiro, ao qual se candidata, obtendo a colocação. Ali,
José Alcides Pinto termina o Curso Clássico, com o apoio
dos próprios alunos e com a ajuda do professor e escritor
paraibano Plínio Bastos, que lhe dava roupas e alguns
trocados para os dias de folga, uma vez que nada recebia
24 Dimas Macedo

do Colégio, pois trabalhava em troca da manutenção


dos estudos.
Acontecimentos significativos da trajetória do
poeta, experimentados nesse período de sua existência,
estão narrados em seu depoimento/ficção intitulado
Manifesto Traído, publicado em Fortaleza, em 1979.
Nesse romance, concebido e redigido em forma de
memórias, o escritor cearense deixou registrados os
percalços da sua condição humana e o dilaceramento
do seu imenso conflito interior.
Leciona, ademais, José Alcides Pinto, em passa-
gem outra da sua escritura literária que, durante esse
período da sua tormentosa existência, andava sempre
com o Jornal do Brasil seguro nas mãos, remoendo a
esquisita “mania de olhar os horóscopos, à procura da
sorte para os (seus) dias incertos”, remarcados no pensa-
mento em face da tortura e da solidão, afirmando que,
quando deixou o Colégio Pio-Americano, as misérias o
acompanharam e dele nunca mais se quiseram apartar
e que as foi encontrar no restaurante do Calabouço,
nos corredores da Faculdade e na União Nacional dos
Estudantes, da qual participou como dirigente.

f) FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA

Do Colégio Pio-Americano, o poeta saiu para a


Faculdade Nacional de Filosofia, filiada à Universi-
dade do Brasil, onde ingressou em começos de 1951,
recebendo, na oportunidade, do Diretório Acadêmico
A Face do Enigma 25

de citada Faculdade, o Diploma de Burro, que sempre


conservou em seu poder e está vazado no texto que se
lê a seguir:
“Guiados pela suprema e serena autoridade que
emana da onipotente soberania de nossa augusta posi-
ção e estribados nas mais simples normas que regem a
universal preponderância das classes intelectualmente
privilegiadas sobre a massa informe de irracionais e
rebaixando-nos de nossa posição, viemos de conferir
este Diploma ao Infeliz Calouro José Alcides Pinto como
prova indissolúvel e merecida da tenebrosa incapaci-
dade mental de que é portador o referido exemplar da
récua de infortunados Calouros de 1951”.
Pela Faculdade Nacional de Filosofia, o poeta
bacharelou-se em Jornalismo, colando grau aos 19 de
dezembro de 1953, sendo o seu diploma de Bacharel
expedido em 05 de janeiro de 1954, portando a assinatura
do professor Pedro Calmon, então Reitor da Universi-
dade do Brasil, o qual seria registrado na Diretoria de
Ensino Superior do Ministério da Educação e Cultura,
conferindo a Alcides Pinto as prerrogativas de jornalista
profissional.
Cinco dias após a sua formatura em Jornalismo,
isto é, aos 24 de dezembro de 1953, contrai José Alci-
des Pinto o seu primeiro e único casamento oficial,
com a colega de turma, Beatriz do Nascimento Pinto,
constando entre as testemunhas do enlace o jornalista
e crítico literário Fausto Cunha. A vida nova com a sua
Beatriz, no entanto, não foi tão feliz quanto a do poeta
Dante Alighieri, pois dela viria a separar-se pouco tempo
depois, nascendo dessa união a única descendente do
casal, Valéria Belkis do Nascimento Pinto, formada em
26 Dimas Macedo

Comunicação Social como o pai, e há anos residente em


Paris, onde desenvolve as funções de repórter fotográfica
e as de cineasta.
No ano anterior ao da sua formatura em jorna-
lismo, segundo anota Maria da Conceição Souza, no seu
livro José Alcides Pinto Bibliografado (Fortaleza, Editora
Henriqueta Galeno, 1977), José Alcides Pinto concluíra
o Curso de Especialização em Pesquisas Bibliográficas
em Tecnologia, promovido pelo Instituto Brasileiro de
Biblioteconomia e Documentação – IBBD, o que lhe
garantiu o título de Bibliotecário, profissão na qual se
bacharelou, mais precisamente aos 18 de dezembro de
1961, e não em 1951 como anotou a historiadora a que
me referi. Valendo também registrar que o Curso de
Pesquisas Bibliográficas em Tecnologia foi realizado
em 1950 e não no ano anterior ao da sua formatura em
Jornalismo.
Durante o ano letivo de 1952 o poeta frequentou o
Curso de História da América, oferecido pelo Departa-
mento Pan-Americano de Cultura da Universidade do
Brasil e ministrado pelos representantes diplomáticos
acreditados junto ao Governo Brasileiro, assinando o
seu diploma expedido aos 2 de março de 1953 tanto
o Presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade
Nacional de Filosofia, quanto o Diretor do Departamento
Pan-Americano de Cultura.
Os últimos diplomas não lhe serviram tanto
quanto os atributos da vocação de poeta, que a vida e o
sopro do espírito lhe ensinaram a praticar. O diploma
de jornalista lhe abriu as portas dos grandes jornais e
revistas e dos suplementos literários em que colaborou, a
exemplo de O Globo, Diário de Notícias, Diário Carioca,
A Face do Enigma 27

Diários Associados e Correio da Manhã, sem contar os


jornais de Fortaleza para onde continuou mandando
colaboração regular.
Abraça, portanto, a partir da década de 195o, o
jornalismo profissional, no Rio de Janeiro e no Ceará.
Na Última Hora trabalha como revisor e conhece o
cronista Antônio Maria e o teatrólogo Nelson Rodrigues,
tornando-se amigo desse último escritor, que lhe oferece
seu primeiro romance, publicado com o pseudônimo
de Suzana Flag.
Faz José Alcides Pinto amizade com os grandes
intelectuais do País, a maioria residente no Rio de
Janeiro, entre eles: Álvaro Moreira, Aníbal Machado,
Álvaro Lins, Ledo Ivo, Waldemar Cavalcante, Jorge
de Lima, João Cabral de Mello Neto, Adonias Filho,
José Condé, Armindo Pereira, Homero Homem, José
Louzeiro, Walmir Ayala, Nélida Piñon, Maria Alice
Barroso, Assis Brasil, Samuel Rawet e tantos e tantos
outros.
Entra para a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI) e para o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do
Estado do Rio de Janeiro, passando também a integrar
o Sindicato dos Jornalistas Liberais do mesmo Estado,
continuando, contudo, a trabalhar a sua produção
poética e ficcional, que viria a ser destacada por grandes
expressões da nossa literatura, como Sérgio Milliet, Pedro
Nava, Wilson Martins, Jorge Amado, Décio Pignatári,
Haroldo e Augusto de Campos, João Clímaco Bezerra,
Geir Campos, Antônio Olinto, Fausto Cunha, André
Seffrin, Hélio Pólvora, Sânzio de Azevedo, Alfredo Bosi,
Otto Maria Carpeaux, Fernando Py, Antônio Carlos
Secchin, Pedro Paulo Montenegro, F. S. Nascimento e
28 Dimas Macedo

Rachel de Queiroz. Aqui também merecendo alusões os


nomes de vários críticos estrangeiros que se pronuncia-
ram sobre a sua obra, como é o caso d Armand Guibert,
na França, e Fernando Namora, em Portugal.
Em 1964, com a publicação do seu primeiro
romance, O Dragão, pelas Edições GRD, de São Paulo,
capitaneada por Gumercindo Rocha Dória, José
Alcides Pinto despertou a atenção da crítica nacional,
amenizando, daí por diante, as dificuldades com que
anteriormente publicava seus livros de ficção ou poesia.
Esse ousado livro de Alcides Pinto, quando publi-
cado, provocou uma ruptura na longa ficção nacional,
agregando elementos novos na montagem do texto
literário, mediante cortes no linguajar da voz interior e
na busca do realismo mágico como forma de impacto e
renovação do chamado discurso regionalista.

g) FUNCIONÁRIO PÚBLICO

A instabilidade da vida jornalística levou o poeta


a buscar a comodidade do serviço público, já exercido
por vários colegas da área do jornalismo e da literatura.
Assim, por decreto de 19 de março de 1957, foi nomeado
para exercer o cargo de Bibliotecário-Auxiliar do Quadro
Permanente do Ministério da Educação e Cultura,
com lotação na Universidade Federal do Ceará, para
onde se transferiu trazendo na bagagem o estopim do
movimento concretista que veio detonar em Fortaleza,
sacudindo a pasmaceira da vida literária da Província,
A Face do Enigma 29

aqui redigindo, justamente em 1957, os originais de O


Dragão, seu primeiro romance publicado.
No campo específico do serviço público, no
entanto, desde 15 de agosto de 1957, Alcides Pinto já
vinha exercendo as funções de Redator, e não as atri-
buições para as quais havia sido nomeado. Na UFC,
inclusive, era responsável, de fato, pela redação do seu
boletim noticioso e pela feitura de atos oficiais cuja
redação lhe era confiada, sob a supervisão do poeta
Artur Eduardo Benevides.
No Ceará, segundo a documentação arquivada
na UFC, permanece por um período superior a quatro
anos, sendo, por Portaria de 6 de setembro de 1961,
removido para o Instituto Nacional do Livro – INL,
com sede no Rio de Janeiro, preenchendo assim a vaga
decorrente da transferência da servidora Zélia de Sousa
Oliveira. Em 13 de setembro, foi requisitado pelo Serviço
de Documentação do Ministério, onde passou a atuar,
na qualidade de responsável “por todos os escritos de
natureza literária”, ainda que de direito permanecesse
no cargo de Auxiliar de Bibliotecário.
Ali conhece Carlos Drummond de Andrade,
também funcionário do MEC, com quem passa a manter
convivência diária, aproximando-se dos poetas Joaquim
Cardozo e Oswaldino Marques, do desenhista Santa
Rosa, dos escritores Herman Lima e Paulo Mendes
Campos, dos críticos de arte Mário Pedrosa e Clarival
do Prado Valadares, assim como do arquiteto Lúcio
Costa – o laureado projetista da nova Capital Federal,
entre tantos homens de letras que frequentavam a sala
de Drummond.
30 Dimas Macedo

Consta ainda que durante o ano letivo de 1961,


talvez por exigência da própria função oficial que
exercia, Alcides Pinto frequentou, com assiduidade e
proveito, o Curso Superior de Biblioteconomia, a cargo
da Biblioteca Nacional, com uma bolsa de estudos que
lhe foi concedida, colando grau em 18 de dezembro de
1961, e coroando assim o Curso de Especialização em
Pesquisas Bibliográficas, que havia realizado no Rio de
Janeiro, em 1950, sob os auspícios do IBBD.
José Alcides, porém, exercia a Biblioteconomia a
contra gosto, pois nunca deixou de exercitar o Jornalismo
e as suas funções de escritor. E foi Rachel de Queiroz,
com a ajuda de Eugênio Gomes, quem o colocou no
quadro de redatores do Ministério, onde ficou encar-
regado das publicações do Serviço de Documentação,
junto à Imprensa Oficial, elaborando, outrossim, o
catálogo dos livros e periódicos publicados por aquele
Departamento, em colaboração com Edson Nery da
Fonseca e Xavier Placer, este considerado pela crítica
como um intelectual de grande valor, a quem devemos,
possivelmente, a melhor tradução de Uma Estação no
Inferno, o célebre poema de Artur Rimbaud, publicado
pelo Departamento de Imprensa Nacional, em 1952,
como parte integrante da coleção Cadernos de Cultura.
Os tempos de funcionário púbico, no Rio, foram
tempos difíceis para Alcides Pinto. Para um espírito
aberto à comunhão universal e à liberdade, parecia
impossível conciliar os entraves da vida burocrática com
os voos da imaginação criadora. As fugas para fora do
serviço público, às vezes, se faziam com artifícios os
mais astuciosos. Uma delas, talvez a mais mirabolante de
todas, ocorreu em inícios de 1966. É que José Alcides, em
A Face do Enigma 31

17 de outubro de 1965, escreveu, no Jornal do Comércio,


do Rio de Janeiro, um artigo sobre a obra cientifica
do Dr. Neves Manta, então Presidente da Academia
Nacional de Medicina e um dos maiores psiquiatras do
Brasil. Referido médico, na época, era Diretor da Casa de
Repouso Santa Helena, em Petrópolis, e com argumentos
que se foram tornando eloquentes, convenceu o Serviço
de Documentação do MEC de que o poeta necessitava
de uns certos ares serranos, por um tempo bastante
prolongado.
Desse período na Casa de Repouso Santa Helena,
lhe nasceram dois dos seus melhores romances: O Cria-
dor de Demônios (Rio, Edições GRD, 1967), e Entre o
Sexo: a Loucura/a Morte, também publicado no Rio, em
1968. Sobre a última longa ficção referida, escreveu José
Alcides Pinto o seguinte: “os personagens de O Criador
de Demônios são todos fictícios, frutos da imaginação.
Mas o ambiente físico é real – a Casa de Saúde Santa
Helena, em Petrópolis, onde estive internado, durante
trinta dias, com a intenção de escrever esse livro”.
As personagens dessa novela diabólica de JAP,
no entanto, não são assim tão fictícias, como se pode
à primeira vista imaginar. O Dr. Abílio Nunes, Dire-
tor Clínico da Casa de Saúde, é uma entidade real. E
quem leu esse relato ficcional de Alcides Pinto, onde o
demoníaco se conjuga com o recorte estético e decidida-
mente experimental da criação literária, sabe o quanto a
personificação textual do Dr. Abílio, corporificada nas
atitudes excêntricas de O Monstro, configura um protó-
tipo de Simão Bacamarte que tortura psicologicamente
os seus pacientes.
32 Dimas Macedo

Mausie, personagem de Entre o Sexo: a Loucura/a


Morte, e talvez a figura de mulher mais bem trabalhada
pelo romancista, também não é fruto da imaginação ou
do devaneio criativo, em nenhuma hipótese. O autorre-
trato de Mausie, dedicado a Alcides, bem assim alguns
dos seus desenhos decoraram, durante muito tempo, a
sala principal da residência do poeta, em Fortaleza. Na
vida real, Mausie não foi apenas personagem de Alcides
Pinto: “foi o amor mais louco” do poeta, em toda a sua
vida, segundo ele mesmo revela, e talvez o momento
em que o sexo, em sua obra, se torna o eixo máximo de
gravitação e de pulsão criadora.
Esses instantes mágicos da trajetória de Alcides
Pinto, que assinalam um momento ímpar da sua aven-
tura criativa, correspondem também aos seus últimos
anos no Rio de Janeiro, tempos em que o poeta residia
no bairro do Flamengo, nas proximidades do largo do
Machado, mais precisamente na rua Dois de Dezembro,
número 58, apartamento 102, e via a sua obra, auspi-
ciosamente, invadindo as páginas da história, de uma
maneira desafiadora.

h) RETORNO A FORTALEZA

Contabilizados os esforços de Rachel de Queiroz


e de Eugênio Gomes, o processo burocrático de readap-
tação do seu antigo cargo de Auxiliar de Bibliotecário
para o de Redator, iniciado em 12 de dezembro de
1963, ganhou sucessivos impulsos durante todo o ano
A Face do Enigma 33

seguinte, tendo em 8 de janeiro de 1964 sido expedida


pelo MEC declaração para que a UFC apressasse a
adaptação pretendida.
Finalmente, aos 25 de março de 1968, JAP trans-
feriu-se para a Delegacia Seccional do MEC no Ceará,
unidade administrativa então dirigida pelo professor
José Maria Campos de Oliveira, sendo enquadrado nas
funções de Técnico de Comunicação Social, permane-
cendo em referido posto pelo menos até 27 de junho de
1972.
Enquanto permanece no Rio, no entanto, parti-
cipa ativamente da agitação cultural da cidade, tendo
inclusive exercido as elevadas funções de Professor da
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, onde ingressou por concurso, desligando-se
dos referidos encargos em 20 de janeiro de 1970, quando
já desempenhava funções burocráticas em Fortaleza,
junto à Delegacia Regional do MEC, onde passou a ter
como colega de trabalho o crítico literário Dias da Silva.
Ter sido professor Universitário no Rio de Janeiro
é fato raramente mencionado nas notas bibliográficas
inseridas nas orelhas ou apresentações dos seus livros.
Isso talvez reflita a quase completa displicência do poeta
em atinar para assuntos dessa natureza, mas também
faz parte da rede de equívocos, armada por Maria da
Conceição Souza, sobre a trajetória de Alcides Pinto.
O seu afastamento voluntário da Escola de Comu-
nicação da UFRJ decorreu, certamente, à sua opção pela
Universidade Federal do Ceará, onde ingressou aos 3 de
fevereiro de 1970, como Professor da Faculdade de Ciên-
cias Sociais e Filosofia, com lotação no Departamento de
Comunicação Social, onde se encontrava, a 17 de junho
34 Dimas Macedo

de 1972, na condição de Professor Assistente, conforme


declaração do então vice-diretor da Faculdade, professor
Heitor Faria Guilherme.
Além da declaração do Professor Faria Guilherme,
o poeta sentiu a necessidade de guardar consigo um
atestado, no qual se comprova que ele possuía “idonei-
dade moral que o habilita para o exercício do magistério
no curso de Comunicação Social da Universidade Fede-
ral do Ceará”, passado em 27 de julho de 1972, pelo
professor Hélio Guedes de Campos Barros, decano
do Centro de Humanidades da UFC; Paulo Elpídio de
Menezes Neto, Diretor da Faculdade de Ciências Sociais
e Filosofia; e José Maria Moreira Campos, coordenador
do Primeiro Ciclo de Estudos da mesma Universidade.
No Departamento de Comunicação Social e Biblio-
teconomia, do Centro de Humanidades da UFC, passou
Alcides Pinto a lecionar, chegando inclusive ao cargo de
Coordenador do Curso de Comunicação Social, fazendo
parte também do conselho de redação da revista de sua
unidade de ensino.
Em 31 de dezembro de 1977, contudo, segundo
consta na sua Carteira de Trabalho, o poeta Alcides
Pinto, “de livre e espontânea vontade”, rescindiu o seu
contrato de trabalho com a UFC, passando a dedicar-se
inteiramente à feitura de sua obra literária e a cuidar dos
seus afazeres de agricultor e de criador em Santana do
Acaraú, onde adquirira, por compra, a fazenda Equi-
nócio, cujo nome imortalizou em uma peça de teatro,
encenada em Fortaleza, pela Comédia Cearense, sob a
direção de Haroldo Serra, em 1977, com grande sucesso
de público e bastante elogiada pela crítica.
A Face do Enigma 35

A fazenda Equinócio, contudo, não foi o único


refúgio de Alcides Pinto no Estreito. Ali, depois de
muitas andanças e demarches, e de muitas aventuras
humanas, fixou-se o poeta na fazenda Morro das Almas,
em cujo abrigo retomou a leitura dos grandes tratados
espirituais da cristandade, entre eles a História de Uma
Alma, de Santa Teresinha de Jesus, e os Exercícios Espi-
rituais, de Santo Inácio de Loyola.
A fazenda Morro das Almas, a rigor uma faixa de
terra que se ergue no caminho de uma colina, postada
à margem direita do rio Acaraú, exatamente na direção
frontal da igrejinha do Estreito, também funcionou como
sítio do poeta, antes da aquisição da fazenda titulada
Terras do Dragão, ambas relativamente próximas do
povoado de Parapuí.
Nos domínios do lugarejo Morro das Almas,
acha-se encravado o antigo cemitério de São Francisco
do Estreito, cujos escombros e inscrições tumulares o
poeta vasculhou em busca de suas origens, guardando
em seu poder lápide referente à memória do seu trisavô
paterno, Antônio José Nunes, o garanhão luso que
aplaca o cio das fêmeas na ribeira do Acaraú, de forma
sempre insaciável, enquanto personagem de Os Verdes
Abutres da Colina.
A influência dessas leituras talvez tenha exacer-
bado nele a busca do absoluto e do transcendente. Por
essa época, mais precisamente em meados da década de
1970, o poeta adotou o hábito de São Francisco de Assis,
e com ele desfilou pelos espaços públicos de Fortaleza
e Santana do Acaraú, aprofundando-se também na
mística de Santa Teresa d’Ávila e de São João da Cruz,
e adotando a oração e a renúncia como norma de vida.
36 Dimas Macedo

Dessa crise de despojamento, emergiu um José


Alcides Pinto totalmente novo, antenado com a dimen-
são erótica e escatológica do mundo, visão essa que iria
se cristalizar, principalmente, no seu livro de poemas
Relicário Pornô, de 1982.
Essas águas novas do seu relicário fluíam desde
1975, aproximadamente, momento em que o rio da sua
ficção é provisoriamente estancado. E as águas do poema
mais do que nunca jorraram da sua pena de artista
inquieto; Águas Premonitórias (1986), águas novíssimas
como as que desciam de O Acaraú – Biografia do Rio
(1979), levando o poeta ao encontro de sua sensibilidade,
por meio dos 20 Sonetos do Amor Romântico (1982),
depositando-se aí a Fúria (1986) de todos os deuses e
profetas, sendo essa a fase mais rica e intensa da sua
vocação de poeta maior, de místico torturado e de asceta,
de escritor e humanista perene.
Esse momento novo da sua produção como que lhe
devolveu a quietude que não encontrara no casamento
com Filomena de Alencar Pinto, mãe dos seus filhos
Paloma de Alencar Pinto e João José de Alencar Pinto,
este último professor de História no Rio de Janeiro, com
pós-graduação na mesma disciplina pela Universidade
de Paris.
Posteriormente, em regime de união estável, convi-
veu com Maria de Fátima Pereira de Andrade, numa
fase difícil da sua travessia, durante a qual produziu os
romances O Sonho e O Enigma e alguns dos seus melho-
res livros de poemas, entre os quais Os Amantes, de
1979. Da sua união com Maria de Fátima, lhe nasceram
os filhos Antonin Artaud de Andrade Pinto, Jamaica de
Andrade Pinto e Alexandra Maria de Andrade Pinto,
A Face do Enigma 37

sendo o primeiro nome aqui mencionado uma home-


nagem prestada por Alcides Pinto ao poeta, visionário
e dramaturgo francês Antonin Artaud, uma das suas
grandes admirações.
Vivendo em estádio pleno de maturidade, cultural
e espiritual, JAP sempre dividiu o seu tempo com os
amigos, em Fortaleza, e a sua fazenda Terras do Dragão,
em Santana do Acaraú, onde vivia a escrever uma aven-
tura literária sem fim, tendo falecido aos 2 de junho de
2008.
As suas excentricidades, que sempre acompa-
nharam a sua trajetória, fizeram de Alcides Pinto uma
espécie de mago a quem recorriam os escritores cearen-
ses de todas as idades.
Guardava o poeta em seu poder um objeto algo
inusitado, “uma réplica de disco voador ou de fóssil
sideral”, segundo ele mesmo argumentava. O estranho
achado, durante certo tempo, despertou a curiosidade
de especialistas e o assunto foi divulgado pela imprensa
de todo o País, especialmente pela revista Planeta, inte-
ressada, como sabemos, pela aparição de ovnis.
Um lunático, um fantasioso, um fanático de cartei-
rinha? Nem tanto. Talvez como Fernão Dias Paes Leme,
um caçador de esmeraldas; talvez como Percy Harrison
Fawcett, o célebre coronel britânico, tenha sido JAP um
torturado caçador de mitos e de mistérios insondáveis,
que somente os grandes poetas sabem divisar.
A Face do Enigma 39

A OBRA LITERÁRIA
DE ALCIDES PIN O t

a) DADOS PRELIMINARES

A obra de José Alcides Pinto representa


um marco da nossa tradição literária
moderna. E a seu respeito, é certo, foram
editados diversos estudos monográficos,
parecendo-me justo destacar, entre eles,
os livros: José Alcides Pinto Bibliografado,
de Maria da Conceição Souza (Fortaleza,
Editora Henriqueta Galeno, 1977); O
Universo Mí(s)tico de José Alcides Pinto,
de José Lemos Monteiro (Fortaleza,
Imprensa Universitária, 1979); e A Voz
Interior em José Alcides Pinto, do escritor e
psiquiatra Carlos Lopes (Fortaleza, Edição
do Autor, 1989).
40 Dimas Macedo

Outros trabalhos em versão definitiva podem ser


apontados, tais os casos de Fúrias do Oráculo, uma
antologia da sua obra literária, organizada por Floriano
Martins, com estudo crítico de Ivan Junqueira (Fortaleza,
Casa de José de Alencar/UFC,1996); e O Sagrado e o
Profano na Ficção de José Alcides Pinto, de Inocêncio de
Melo Filho, correspondendo este último à monografia
apresentada pelo autor no Curso de Investigação Lite-
rária da Universidade do Vale do Acaraú –UVA, como
requisito para obtenção do título de Especialista em
Literatura Brasileira, no patamar de pós-graduação.
Ensaios e teses acadêmicas sobre a sua obra conti-
nuam sendo publicados por escritores como Cassiano
Ricardo, José Louzeiro, Assis Brasil, Sânzio de Azevedo,
Adriano Espínola, Carlos Augusto Viana, Jose Telles,
Juarez Leitão, Leontino Filho, Rogaciano Leite Filho,
Márcio Catunda e Paulo de Tarso Pardal, inclinando-se
os dois últimos pela tessitura de projetos de maior
alcance, tendo Márcio Catunda escolhido abordar os
percalços da aventura humana do poeta (Na Trilha
dos Eleitos: Rio de Janeiro, Editora Espaço e Tempo,
1999), e Paulo de Tarso Pardal enveredado pela análise
de sua produção ficcional, escrevendo a dissertação de
mestrado: O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto,
defendida em outubro de 1998 no mestrado em letras
da Universidade Federal do Ceará, sob a orientação de
Teoberto Landim, e publicada pelas Edições UFC, em
1999.
Cabe ainda destacar a monografia: O Místico em
Equinócio, de Cássia Maria Bezerra Nascimento (Forta-
leza, Universidade Estadual do Ceará, 1999), elaborada
sob a orientação do professor Batista de Lima. E bem
A Face do Enigma 41

assim os textos de Nelly Novaes Coelho, que culmi-


naram no livro: Erotismo - Maldição - Misticismo em
José Alcides Pinto (Fortaleza, Imprensa Universitária,
2001), onde referida escritora esboça um estudo erudito
e criterioso sobre a obra desse grande escritor cearense.
Com cinquenta e cinco livros editados ou reedi-
tados, alguns dos seus contos foram traduzidos para o
inglês, o francês, o italiano e o espanhol, enriquecendo
ainda a sua fortuna literária a correspondência que
manteve ao longo de sessenta anos de literatura, com
escritores nacionais ou estrangeiros.
No tocante à escritura literária que elaborou,
cumpre esclarecer que a sua ficção parece ter sido
concebida em, pelo menos, dois sentidos diferentes,
identificando-se no primeiro o realismo mágico regio-
nalista da chamada Trilogia da Maldição, composta dos
romances O Dragão (1964), Os Verdes Abutres da Colina
e João Pinto de Maria (Biografia de um Louco), editados
os dois últimos em 1974; e, no segundo, a Trilogia Tempo
dos Mortos, cuja moldura literária invade os domínios
da narrativa introspectiva e psicológica, compreendendo
os romances: Estação da Morte (1968), O Sonho (1974)
e O Enigma, também publicado em 1974.
O autor possui ainda outros livros de ficção, os
quais, com muita propriedade, se inscrevem no campo
da literatura do terror, como é o caso do livro de contos
Editor de Insônia (1965) e da novela O Criador de
Demônios (1967), que retratam, no caso, espaços literá-
rios remarcados não apenas pelos arquétipos humanos
reprimidos, mas também e fundamentalmente pelos
delírios luciferinos e alucinatórios.
42 Dimas Macedo

Já o romance O Amolador de Punhais (1987) é


todo ele feito de imagens e sequências formais descon-
tinuadas, nas quais o desespero e o delírio se prestam
a remarcar os estratos privilegiados do palimpsesto.
Trata-se de um texto em que a busca incessante do
recorte estético, e assim também da camada óptica que o
antecede se querem a construção do seu próprio modelo
literário e estilístico.
Por outro lado, Entre o Sexo: a Loucura e a Morte
(1968) e A Divina Relação do Corpo (1990) posicionam-se
nos caminhos da relação erótica, da transgressão estética
e literária e da experimentação formal e vanguardista. A
loucura é o clima principal da primeira longa ficção aqui
mencionada; e a eroticidade, com forte poder diabólico
e vampiresco, constitui a temática de A Divina Relação
do Corpo.
Resta ainda dizer algo em torno de Senhora Maria
Hermínia – Morte e Vida Agoniada (Prêmio Nacional
Petrobrás de Literatura/1988), que compreende uma
saga recheada de muito misticismo e violência, veicu-
lada num texto que documenta o encontro de duas
forças aparentemente antagônicas: o cangaço e o misti-
cismo religioso, representado, o primeiro, pelo bando
de Lampião e seus asseclas, e o segundo pela figura
carismática do padre Cícero Romão, o Taumaturgo
de Juazeiro, e também pelo beato José Lourenço do
Caldeirão.
Na sua vasta bagagem literária e singular de
JAP, no entanto, há um livro que foge às classificações:
trata-se de Manifesto Traído (1979), trabalho que o autor
subintitulou de Memória/Depoimento: um misto de
autobiografia e ficção, mas que expressa, no fundo,
A Face do Enigma 43

um romance de trama existencial definida. Um texto,


por assim dizer, todo ele aberto à exposição da condi-
ção humana, no que ela possui de mais vulnerável e
questionador.
Narrado em forma de confissão ou de relato auto-
biográfico, e costurado, em suas intenções subjetivas,
com os fios da solidão e da memória, nele Alcides Pinto
deixou registrado um dos mais sérios depoimentos que
um escritor poderia prestar aos seus contemporâneos e à
posteridade, ainda que a interpretação que a personagem
principal faz de sua vida, e da vida de seu companheiro
de infortúnio – como faz questão de proclamar – ultra-
passe, às vezes, os limites da verossimilhança.
Manifesto Traído é um desses livros que o leitor
guardará por longo tempo na memória, dele extraindo
lições sábias e experiências longamente vividas para os
instantes amargos de cada dia, para as horas difíceis e
desesperadas da existência.

b) A OBRA LITERÁRIA DE JAP

Se até agora falei unicamente da ficção de José


Alcides Pinto, não é possível esquecer de que a sua
poesia não é menos importante quando inserida no
quadro geral da literatura brasileira, pois na sua cons-
trução poemática tudo descamba para a apreensão do
permanente e do eterno.
Vanguardista, insubmisso, desobediente e inova-
dor na criação de processos ficcionais e na restauração
44 Dimas Macedo

da linguagem poética, JOSÉ ALCIDES PINTO é consi-


derado o mentor do Movimento Concretista no Ceará,
e o seu representante mais destacado, sendo, por isto
mesmo, luminosa a sua trajetória literária, iniciada, aliás,
com um livro que o poeta ainda hoje rejeita.
Canto da Liberdade, em verdade, publicado pela
Typografia Moraes, de Fortaleza, em 1945, é um poema
que não paga um tributo sequer ao modernismo, mas
também não seria um texto de metrificação desprezível.
Trata-se de um poema rimado e posicionado contra a
opressão, o que é marca, aliás, da sua produção literária
e da sua norma de vida interior.
A sua construção poemática, como um todo,
transpondo uma linguagem clara e eloquente que a
tem permeado, apresenta pelo menos quatro princi-
pais matrizes temáticas, que são a lírico-amorosa, a
pornô-fescenina, a épico-social e a existencial-diabólica.
Exemplos da primeira orientação são os livros 20 Sone-
tos do Amor Romântico (1982) e Águas Premonitórias
(1986), sendo amostras talvez evidentes da segunda Os
Amantes (1979) e Relicário Pornô (1982).
No campo da problemática épico-social, dois
longos poemas merecem ser considerados: Os Catadores
de Siri (1966) e O Acaraú – Biografia do Rio (1979). Os
seus citadíssimos Cantos de Lúcifer (1954), bem como
grande parte de suas primeiras produções, poderiam
muito bem ser apontados como fazendo parte do último
enquadramento classificatório aqui sugerido.
Por outro lado, afora a opção por essa tipificação
de natureza exclusivamente temática, podemos igual-
mente divisar, no contexto de sua produção, toda uma
estética revolucionária e experimentalista, por meio de
A Face do Enigma 45

cujo desempenho o poeta deu evasão à ideia concretista


do poema, expressa em livros como Ordem e Desordem
(1982), As Águas Novas (1975) e Concreto: Estrutura-
-Visual-Gráfica (1956), sendo este, como sabemos, a sua
mais expressiva realização neste setor.
Sobre Relicário Pornô (Fortaleza, 1982), escrevi
certa feita o seguinte: “os seus poemas não deixam de
ser um desacato à falsa moral e aos preconceitos de uma
sociedade afogada na imoralidade dos seus próprios
costumes. A temática explorada pode parecer vazia e
contraditória para alguns, porém, antes de tudo, o seu
conteúdo o transforma num livro de impacto, escrito
por um poeta de pulso. Trata-se de um livro feito para
desmoralizar o imoral e, acima de tudo, parece todo ele
tecido qual escudo e projeto de defesa da velha moral
blasfemada”. E acrescentei em seguida: “Em Relicário
Pornô, JAP se mostra dominado por novas invenções
criativas, sem fugir de suas incursões demoníacas. Não
investiu, o poeta, num eros-pornô obsceno, como se
pode de início pensar. Pelo contrário, estamos diante
de um livro que fala também do absurdo existencial,
problemática estética e linha de pesquisa tão ao gosto
do autor de Manifesto Traído”
Fúria (1986) é um dos mais singulares poemas de
Alcides Pinto. Livro uno e plural a um só tempo, por
suas páginas perpassam a reformulação do corte criativo
e, com ela, o sopro novo que ilumina a substância e a
camada óptica de sua matéria literária. Trata-se de um
momento mágico da moderna poesia cearense e, mais
do que isso, de inventário artístico em que a obsessão
da forma não desqualifica o conteúdo que lhe é afeto e
correlato.
46 Dimas Macedo

O processo criativo do poeta, contudo, não se


resume apenas aos títulos aqui mencionados. Integram
ainda a sua bagagem os livros: Noções de Poesia & Arte
(1952), Pequeno Caderno de Palavras (1953), As Pontes
(1955), Ilhas dos Patrupachas (1960), Ciclo Único (1964),
Antologia Poética (1984), Guerreiros da Fome (1984),
Águas Premonitórias (1986), Nascimento de Brasília - A
Saga do Planalto (1987), O Sol Nasce no Acre (1992),
Poeta Fui (1993), Os Cantos Tristes da Morte (1994),
Silêncio Branco (1998), As Tágides (2001), O Algodão
dos Teus Seios Morenos (2008) e Diário de Berenice
(2008); afora, é claro, aquilo que escreveu em parceria
com outros escritores.
Todos os seus livros publicados, malgrado as
circunstâncias de tempo em que vieram a lume, as
quais, de plano, poderiam comprometer os créditos de
sua qualidade literária, configuram, ainda assim, inven-
tários de refinado aparato estético e estilístico, onde se
documenta uma vanguarda fescenina, lírico-amorosa e
com acentuada visão da problemática erótica e social.

c) O FICCIONISTA

Trilogia da Maldição, reeditado pela Editora


Topbooks (Rio, 1999), é um dos traços de maior relevo
da obra de Alcides, estando a merecer um pouco mais
de atenção da crítica, em face, sobretudo, do prêmio que
lhe foi atribuído pela Associação Paulista de Críticos de
A Face do Enigma 47

Arte, como o destaque máximo da literatura brasileira


em 1999.
Sobre essa curiosa trilogia, publiquei, no jornal O
Globo, do Rio, em 27.02.1999, o ensaio: “Uma Literatura
Com a Força da Maldição”, onde deixei consignado o
seguinte:
“Os críticos literários e os leitores mais desavisa-
dos, especialmente aqueles mais ou menos displicentes,
talvez se assustem um pouco com o que vou afirmar:
José Alcides Pinto, agora redescoberto pela Editora
Topbooks, é um dos grandes escritores brasileiros deste
século.
Cantos de Lúcifer (São Paulo, Edições GRD, 1966),
que enfeixa os seus poemas até então publicados, com
prefácio de Cassiano Ricardo, é um dos momentos altos
de sua produção literária; outro, é a edição de Fúrias
do Oráculo (Fortaleza, Programa Editorial da Casa de
José de Alencar, 1996), uma antologia crítica organizada
por Floriano Martins, na qual o poeta e o ficcionista
se revezam, exibindo cada um a seu modo a lucidez e
a reverência com que navegam no difícil domínio da
poesia.
O período que se estende entre esses dois
momentos extremos é o de consolidação de sua obra de
ficcionista, cujo ponto de partida é o romance O Dragão
(São Paulo, Edições GRD, 1964), primeiro volume de
uma trilogia que se perfaz com Os Verdes Abutres da
Colina e João Pinto de Maria (Biografia de Um Louco),
ambos publicados em 1974 e que agora aparecem reuni-
dos coincidentemente em sua 4ª edição.
Essa, agora compactada, Trilogia da Maldição é
um acontecimento marcante a iluminar o nosso cenário
48 Dimas Macedo

literário, bastando lembrar que na ficção de José Alcides


Pinto, na prosa de seus contos e romances, como bem
observou Ivan Junqueira, em O Fio de Dédalo (Rio de
Janeiro, Editora Record, 1998), “O poeta como que se
infiltra e às vezes reina quase absoluto”.
O leitor que já tenha se prestado ao deleite de
reverenciar a condição humana que o grande romance
fotografa, e que de alguma maneira tenha sido tocado
pelo realismo mágico e a plasticidade que a mais nobre
literatura revela, irá descobrir em Alcides Pinto uma
leitura motivadora e muito cativante.
Trilogia da Maldição vale, fundamentalmente,
como instância de representação da nossa prosa poética,
porém impõe-se, sobretudo, pela estilização e o recorte
fantástico com que as suas personagens são apresenta-
das. A literatura do maravilhoso, a herança do romance
latino-americano e a vertente da obra literária que vem
de Dostoiévski, que passa por Rimbaud e Baudelaire,
que incorpora o símbolo e a metáfora e os dilemas
existenciais e humanos que ressoam da obra de Albert
Camus e de Kafka, encontram com certeza em Alcides
Pinto um intérprete privilegiado.
São Francisco do Estreito, lugarejo perdido no inte-
rior do Nordeste, é o palco de encenação e de montagem
dessa prodigiosa Trilogia. E João Pinto de Maria é a
encarnação, a um só tempo humana e divina, por onde
passam os rituais sagrados e profanos da comunidade,
sendo, ademais, uma metáfora das mais distintas sobre
a avareza, possivelmente sem paralelo em nossa ficção.
Com exceção, talvez, do caso de Otto Lara Resende.
O fato de Os Verdes Abutres da Colina, inte-
grante de Trilogia da Maldição, ter sido adotado como
A Face do Enigma 49

livro-texto do vestibular da Universidade Federal do


Ceará, em 1999, diz de perto da necessidade de reedição
desse respeitável escritor. As orelhas de Adriano Espí-
nola, a apresentação de Ivan Junqueira, e o excelente
acabamento gráfico do volume são convites para que o
leitor mergulhe, desafiadoramente, na sua provocante
leitura”.
Referindo-se ao romance Os Verdes Abutres da
Colina, o escritor Ítalo Gurgel asseverou o seguinte:
“o gosto pelo experimental, pela emocionante busca
do novo fez de Alcides Pinto eu um poeta e ficcionista
extremamente criativo. Daí a ruptura de convenções. Daí
uma narrativa que alimenta estranha mania de romper
com a verossimilhança”.
Isto talvez diga tudo. Ou nada diga para Alcides
Pinto, que já afirmou, certa feita, que a literatura é o
pano de fundo da sua própria existência, isto é, a arte
literária em estado de realização humana e de mistério.

d) O ENSAÍSTA E O POETA

Prosseguindo na análise da obra literária de


JAP, cumpre-me agora registrar que o primeiro salto
qualitativo, verificado na sua produção, ocorre com a
publicação de Cantos de Lúcifer (1954), um conjunto de
poemas de concepção simbólica e de maturação poética
surreal, onde o poema em prosa recompõe o destino
plástico e criativo da própria poesia brasileira e onde o
50 Dimas Macedo

profano e o sagrado se misturam, com o acréscimo de


uma linguagem contundente.
O segundo salto acontece com a edição de
Concreto: Estrutura-Visual-Gráfica (1956), um livro de
apelo vanguardista e experimental, com o qual o poeta
se supera diante de toda a sua produção, com evolução
de fundo e de forma, o que não deixa de assinalar,
também, a ruptura com as suas inquietações e pesquisas.
Experimental e de vanguarda criativa, bem como
costurado de profundas implicações sociais é o livro
Os Catadores de Siri, publicado em 1966 e reeditado
em diversas oportunidades, onde o poeta fotografa a
miséria dos mangues do Recife, com seus habitantes
vivendo em condições desumanas.
Com a publicação de Os Catadores de Siri, José
Alcides Pinto recolhe a sua face de poeta num profundo
e prolongado silêncio, assim permanecendo até 1975,
ano da divulgação de As Águas Novas, um livro de
lapidação estética muito refinada e com o qual retoma
as orientações da chamada poesia concretista.
Entre 1967 e 1974, além de uma reedição de O
Dragão, em 1968, pelas Edições O Cruzeiro, do Rio de
Janeiro, José Alcides Pinto publicou nada menos de seis
novos romances, isto sem falar na novela O Criador
de Demônios, de 1967, e no livro de contos Editor de
Insônia, de 1965.
Trata-se de uma engenharia ficcional, mediante a
qual, perpassa todo um processo de insanidade, maldi-
ção, angústia e delírio existenciais, e de restauração
de uma problemática regional, por da sua dimensão
fantástica, vivencial e alegórica.
A Face do Enigma 51

O Diabo, que em sua produção poética aparece


como figura diluída, é por ele dimensionado na peça
de teatro Equinócio, publicada em 1973 e reeditada
em 1999, pela Imprensa Universitária da UFC. Além
de sugerir uma humanização do demônio e de propor,
como benéfica, a simetria com sua convivência, Alcides
Pinto procura nesse texto desestabilizar os limites possí-
veis entre o sagrado e o profano.
Comunicação: Ingredientes-Repercussão, de 1976,
constitui um volume de ensaios sobre comunicação
científica e popular, em cujas páginas busca o poeta
documentar a sua vivência com a chamada comunicação
social, “colocando-nos o autor diante do que se vem
chamando crítica da cultura”, segundo a observação
de Pedro Paulo Montenegro, para quem Alcides Pinto,
com a publicação desse livro, realizou uma obra válida e
atraente, “por sua utilidade e oportunidade” e também
“pelo estilo leve e escorreito”, que é a marca, como
sabemos, dos grandes criadores literários.
Filiado à corrente da chamada crítica impressio-
nista, Política da Arte (1981) é o livro no qual o autor
reuniu boa parte de sua produção. Não diria que o
ensaio literário é uma das suas melhores possibilidades,
senão que a crítica é o gênero de sua eleição profissional.
A crítica de arte que ele desenvolve, apesar de intensa,
não seria, ainda assim, desprovida de intuição, de brilho
e de lucidez exemplar.
Já na miscelânea Reflexões-Terror-Sobrenatural
(1984) questiona José Alcides Pinto o magistério e o
mistério da arte, a condição do humano nas diversas
perspectivas do existir e a sua inserção num universo
social que lhe é adverso. São textos infiltrados de densa
52 Dimas Macedo

atmosfera criativa e em cuja tessitura o poeta empregou


o seu melhor esforço literário.
Por último, esclareça-se que os seus poemas longos
constituem um ponto alto da sua escritura literária,
como o clássico Cantos de Lúcifer (1954), que despertou
o interesse de um crescente número de leitores, o mesmo
acontecendo com As Pontes (1955) e com o Projeto Rural
Para Hospedar o Poeta Artur Eduardo Benevides na
Fazenda Equinócio (1981), talvez o poema mais impor-
tante de toda a sua trajetória, ao lado, possivelmente,
de Os Catadores de Siri (1966) e Acaraú – Biografia do
Rio (1979).
Seria muito difícil ao crítico acompanhar a trajetó-
ria desse escritor multifacetado, cuja escritura abrange
quase todos os gêneros literários. É natural, pois, que
alguma coisa tenha ficado de fora, como é o caso dos
seus admiráveis Cantos de Lúcifer, título com o qual o
poeta denominou também a sua poesia reunida (Rio,
Edições GRD, 1966).
E os Cantos de Lúcifer confirmam, a meu juízo,
de forma admirável, a inquietação do poeta múltiplo
e uno que é José Alcides Pinto, pois tanto lhe apraz
o surrealismo, enquanto recorte óptico projetado na
movimentação da imagem; quanto, no setor formal,
pratica o poema em prosa; ou ainda quando penetra em
outras áreas da pesquisa linguística, como em “planetas
visuais”, a sua mais ousada viagem concretista.
Apreciando, certa feita, a poesia de Alcides Pinto,
Gilberto Amado não deixaria por menos: “Concretismo,
pós-surrealismo, qualquer que seja o rótulo, seus poemas
rápidos, intensos, são poesia ressonante, reveladora de
seu talento admirável”.
A Face do Enigma 53

Poucos escritores como ele abraçaram a litera-


tura com tanto denodo e obstinação. Disso, por certo,
promana a grandeza de sua obra, marcada pelo estigma
do realismo mágico e do absurdo, o que lhe valeu a
antonomásia de “Poeta Maldito”. E como bem o disse o
poeta e ensaísta Ivan Junqueira: “A verdade, contudo, é
que, tanto do ponto de vista estético quanto do ângulo
existencial, José Alcides Pinto escolheu a transgressão
como deusa e musa”.
Vivendo em estágio pleno de maturidade, cultural
e espiritual, JAP sempre dividiu o seu tempo entre os
amigos, em Fortaleza, e a sua fazenda Terras do Dragão,
em Santana do Acaraú, onde escrevia uma aventura
literária sem fim, até a data do seu falecimento.

e) O SILÊNCIO BRANCO

A maldição, que sempre se fez presente em sua


obra, em prosa ou em verso, em Silêncio Branco (1998)
aparece bastante atenuada, ressurgindo no livro tão-so-
mente o místico e o cristão primitivo.
O livro, logo de saída, mereceu a atenção dos mais
inteligentes críticos, como Wilson Martins, Ivan Junqueira,
José Louzeiro, Adriano Espínola, Anderson Braga Horta,
Juarez Leitão, Francisco Carvalho, Sânzio de Azevedo
e F, S. Nascimento. E o que mais eupoderia dizer desse
escritor de estatura maior, cuja linhagem criativa vem da
vertente dos poetas malditos, visionários ou iluminados?
Lautreamont, Artaud, Baudelaire, Rimbaud e Augusto dos
54 Dimas Macedo

Anjos estão entre os artistas que mais multifacetaram a sua


cosmoagonia poética, por meio de intertextualidades e de
influências sutis e seminais.
Gerardo Mello Mourão, depois da leitura de Silên-
cio Branco, escreveu um dos seus melhores textos sobre
a obra de JAP. E Wilson Martins, em artigo estampado
em O Globo, afirmou que “o poema Augusto Frederico
Schmidt, inserido em Silêncio Branco, está entre os mais
belos e nobres da nossa literatura”, sendo “a mais alta
homenagem jamais escrita não só a seu respeito, mas a
respeito de qualquer outro poeta”.
O certo é que esse seu volume de poemas deixou
a crítica e os seus leitores perplexos, pois ninguém
esperava que coisa melhor viesse a escrever o autor de
Silêncio Branco. As sugestões formais e o apuro estético,
no entanto, são elementos que iluminam a escritura de
Alcides Pinto e emprestam a esse conjunto de poemas
uma conotação muito singular.
O sobrenatural está presente em quase todas as
passagens do livro, e a nota de sobriedade remarca toda
a obra de forma exponencial e suprema, revelando-nos
um autor já apartado da rebeldia que dominou boa parte
de sua produção.
Já o sensualismo, uma constante em toda a sua obra,
no Silêncio Branco aparece sem a angústia que o caracte-
rizou no passado. O poeta agora está mais sereno, mais
calmo, mais “espiritualizado”, mas o sentido de sua poética
em pouco se modificou, pois que mudaram tão-somente as
formas de buscar a paz e a harmonia, tão perseguidas e tão
mal encontradas por esse escriba de Canaã e de Jerusalém.
A palavra pensada e medida, o sopro novo da
inventividade, a autenticidade que acompanha as
A Face do Enigma 55

nascentes de sua escritura, entre outros atributos, são


dados que se prestam a remarcar esse seu conjunto
de poemas. Daí o fato de a crítica já não lhe poupar
elogios. justos, aliás, como os de Antônio Carlos Secchin
que, acerca do Silêncio Branco, afirmou o seguinte: “O
livro todo é bom e, no conjunto, destacaria ainda mais
a primeira parte”.
José Alcides Pinto restaurou uma vertente literá-
ria antiga e apontou um caminho novo com o Silêncio
Branco: o do transcendentalismo poético, hoje tão
ausente da poesia brasileira.
Essa concepção poética de JAP encontra confluên-
cia com os poemas de Jorge de Lima, os da fase mística
ou, ainda, com os poemas de Alphonsus Guimarães ou
de Cruz e Sousa. E isto é o que há de melhor para a
poesia do autor, pois essa identidade é quem o liberta
e redime, fazendo do seu discurso, por vezes, uma
partitura universal e sensível.
Silêncio Branco está dividido em três partes.
Embora haja uma unidade temática e de linguagem, em
cada uma dessas partes, o poeta tenta uma visão do
mundo, do homem e da arte. Na primeira, me parece se
encontram os melhores poemas; na segunda, os poemas
mais intimistas, e, na terceira, a sua poética é totalmente
marcada pelo sentido da morte e do abismo, respiran-
do-se aí um clima marcadamente místico e confessional.
O que fica, porém, é uma surpresa para o leitor:
afinal, ele agora é dono do Silêncio Branco, o silêncio
da placidez e da maturidade, o silêncio de esplendor
estético e da magia literária de um poeta que sabe se
impor: pelo mistério do texto que exibe, pelo recorte
clássico e humano da sua vocação.
A Face do Enigma 57

BIBLIOGRAFIA
DE ALCIDES PI n TO

a) POESIA

Antologia dos Poetas da Nova Geração (de parceria com


Ciro Colares e Raimundo Araújo): Rio, Pongetti,
1950.

A Moderna Poesia Brasileira (Pref. de Álvaro Moreira):


Rio, Pongetti, 1951.

Noções de Poesia & Arte: Rio, Pongetti, 1952.

Pequeno Caderno de Palavras: Rio, Pongetti, 1953.

Cantos de Lúcifer: Rio, Pongetti, 1954.

As Pontes: Rio, Pongetti, 1955.

Concreto: Estrutura-Visual-Gráfica: Rio, Edição do


Autor, 1956.

Ilha dos Patrupachas: Rio, Livraria São José, 1960.


58 Dimas Macedo

Ciclo Único: Rio, Departamento de Imprensa Nacional, 1964.


Cantos de Lúcifer (poemas reunidos): Rio, Edições GRD, 1966.
Os Catadores de Siri: Rio, Editora Leitura, 1966; 2ª ed.: Fortaleza,
Edições Urubu, 1977; 3ª ed.: Fortaleza, Nação Cariri Editora,
1982; 4ª ed.: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto.
1984; 5ª ed.: Fortaleza, Casa de José de Alencar, 1996.
As Águas Novas: Fortaleza, Editora Henriqueta Galeno, 1975.
Os Amantes: Fortaleza, Editora e Gráfica Lourenço Filho, 1979.
O Acaraú – Biografia do Rio: Fortaleza, Editora Henriqueta
Galeno, 1979.
Oráculo de Delfos ou as Vinhas Amargas do Silêncio (de parceria
com Artur Eduardo Benevides): Fortaleza, Edições Clã, 1981.
Ordem e Desordem: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto,
1982.
20 Sonetos do Amor Romântico e Outros Poemas: Fortaleza, Nação
Cariri Editora, 1982.
Relicário Pornô: Fortaleza, Livraria Gabriel/Nação Cariri Editora,
1982; 2ª ed.: Fortaleza, Livraria Gabriel, 1983; 3ª ed.: Forta-
leza, Nação Cariri Editora, 1984; 8ª ed.: São Paulo, Edições
GRD, 2002.
Antologia Poética: Fortaleza, Secretaria de Cultura de Desporto,
1984.
Guerreiros da Fome: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto,
1984.
Fúria: Fortaleza, Livraria Gabriel Editora, 1986.
Águas Premonitórias: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto,
1986.
Nascimento de Brasília – a Saga do Planalto: Fortaleza, Nação Cariri
Editora, 1987.
A Face do Enigma 59

O Sol Nasce no Acre (Chico Mendes): Fortaleza, edição do autor,


1992.
Poeta Fui (Ora Direis): Fortaleza, Edigraff, 1993.
Os Cantos Tristes da Morte: Fortaleza, Editora Oficina, 1994.
Termo de Poesia (em parceria com Márcio Catunda e Mário
Gomes): Fortaleza, Editora Oficina, 1995.
Silêncio Branco: Fortaleza, Imprensa Universitária da UFC, 1998.
As Tágides: Rio, Edições GRD, 2001.
Poemas Escolhidos – I: Rio, Edições GRD, 2003.
Poemas Escolhidos – II: Rio, Edições GRD, 2006.
Diário de Berenice: Fortaleza, Imprece Editorial, 2008.
O Algodão dos Teus Seios Morenos: Fortaleza, Imprece Editorial,
2008.

b) ROMANCE

O Dragão: Rio, Edições GRD, 1964; 2ª ed.: Rio, O Cruzeiro, 1968;


3ª ed.: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1987; 4ª
ed.: Rio, Editora Topbooks, 1999.
Entre o Sexo: a Loucura/a Morte: Rio, Gráfica Record Editora,
1968.
Estação da Morte: Rio, José Álvaro Editor, 1968; 2ª ed.: Rio,
Editora Topbooks, 2007.
O Enigma: Fortaleza, Edições Quetzalcoatl, 1974; 2ª ed.: Rio,
Editora Topbboks, 2007.
O Sonho: Fortaleza, Editora Henriqueta Galeno, 1974; 2ª ed.: Rio,
Editora Topbooks, 2007.
60 Dimas Macedo

Os Verdes Abutres da Colina: Rio, Companhia Editora Americana,


1974; 2ª ed.: Fortaleza, Livraria Gabriel/Nação Cariri
Editora, 1984; 3ª ed.: Fortaleza, Edições UFC, 1999; 4ª ed.:
Fortaleza, Edições UFC, 1999; 5ª ed.: Rio, Editora Topbooks,
1999; 6ª ed.: Fortaleza, Edições UFC, 2000.
João Pinto de Maria – Biografia de um Louco: Rio, Companhia
Editora Americana, 1974; 2ª ed.: Fortaleza, Edigraff, 1991; 3ª
ed.: Rio, Editora Topbooks, 1999.
Manifesto Traído: Fortaleza, Editora e Gráfica Lourenço Filho
Ltda., 1979; 2.ª ed.: Fortaleza, Editora Forgrel, 1998.
O Amolador de Punhais: Fortaleza, Secretaria de Cultura e
Desporto, 1987.
A Divina Relação do Corpo: Fortaleza, Edição do Autor, 1990.
Senhora Maria Hermínia – Vida e Morte Agoniada – Prêmio Nacio-
nal Petrobrás de Literatura/1988:Fortaleza, IOCE, 1988; 2ª
ed.: Fortaleza, Imprensa Oficial do Ceará, 1988.
Trilogia da Maldição: Rio, Editora Topbooks, 1999.
Trilogia Tempo dos Mortos: Rio, Editora Topbooks, 2007.

c) CONTO

Editor de Insônia: Rio, Editora Leitura, 1965; 2ª ed.: Fortaleza,


Casa de José de Alencar/UFC, 1999.

d) NOVELA

O Criador de Demônios: Rio, Edições GRD, 1967.


A Face do Enigma 61

e) TEATRO

Equinócio: Fortaleza, Edições Quetzalcoatl, 1973; 2ª ed.: Forta-


leza, Imprensa Universitária da UFC, 1999.

f) ENSAIO

Comunicação: Ingredientes-Repercussão: Fortaleza, Imprensa


Universitária, 1976.

g) CRÍTICA LITERÁRIA

Política da Arte I: Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto,


1981.
Política da Arte II: Fortaleza, Banco do Nordeste, 1986.

h) MISCELÂNEA

Reflexões-Terror-Sobrenatural: Fortaleza, Secretaria de Cultura e


Desporto, 1984.
Fúrias do Oráculo (Antologia Crítica organizada por Floriano
Martins): Fortaleza, Casa de José de Alencar/UFC, 1996.
Diário de Sabedoria: Fortaleza, Editora Forgrel, 2006.
A Face do Enigma 63

BIBLIOGRAFIA
SOBRE ALCIDES P NTO i

CATUNDA, Márcio. Na Trilha dos Eleitos: Rio,


Editora Espaço e Tempo, 1999.

COELHO, Nelly Novaes. Erotismo - Maldição - Misti-


cismo em José Alcides Pinto: Fortaleza, Imprensa
Universitária da UFC, 2001.

LOPES, Carlos. A Voz Interior em José Alcides Pinto:


Fortaleza, Edição do Autor, 1989.

MACEDO, Dimas. A Obra Literária de José Alcides


Pinto: Fortaleza, Imprensa Universitária da UFC,
2001.

MACEDO, Dimas. A Face do Enigma – José Alcides


Pinto e sua Escritura Literária: Fortaleza, Instituto da
Gravura do Ceará, 2002.
64 Dimas Macedo

MELO FILHO, Inocêncio. O Sagrado e o Profano na Ficção de José


Alcides Pinto (monografia inédita): Sobral, Universidade do
Vale do Acaraú, 1995.
MONTEIRO, José Lemos. O Universo Mí(s)tico de José Alcides
Pinto: Fortaleza, Imprensa Universitária da UFC, 1979.
NASCIMENTO, Cássia Maria Bezerra. O Místico em Equinócio
(monografia inédita): Fortaleza, Universidade Estadual do
Ceará, 1999.
PARDAL, Paulo de Tarso. O Espaço Alucinante de José Alcides
Pinto: Fortaleza, Edições UFC, 1999.
PEREIRA, Nuno Gonçalves. A História da Comunidade da Antiga
Aldeia do Povoado de Alto dos Angicos de São Francisco do
Estreito: História, Literatura e Memória (monografia inédita):
Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2001.
SOUZA, Maria da Conceição. José Alcides Pinto Bibliografado:
Fortaleza, Editora Henriqueta Galeno, 1977.
A Face do Enigma 65

A FACE DO ENIGMA
ADRIANO ESPÍ n OLA
Poeta e Doutor em Literatura

É uma grande honra para mim tecer algu-


mas palavras de louvor e admiração a duas
figuras de minha estima e amizade: José
Alcides Pinto e Dimas Macedo. Por isso,
considero esta uma noite especial. Especial
na verdade para todos nós que aqui nos
reunimos em torno de um homem de
gênio e de um ensaísta e poeta de primeira
ordem, que a ele dedica um livro-álbum,
de bela feitura gráfico-literária, enfeixando
pesquisa biográfica, análise crítica, poesia
e ilustrações, como a simbolizar, através da
beleza plástica e conteudística do volume,
a excelência da criação artística do autor de
Cantos de Lúcifer.
66 Dimas Macedo

Afirmei que esta noite é especial também por


uma outra razão que não somente literária. É que o
homenageado fará oitent’anos, em 2003, e o livro de
Dimas Macedo surge, assim, como a primeira das
muitas manifestações, que se aproximam, de carinho e
reconhecimento voltados para o amigo, o mestre e irmão
em literatura, o poeta maior, José Alcides Pinto.
Esta noite representa, pois, uma dupla comemora-
ção: a do artista, com cerca de 50 obras, nos mais diversos
gêneros – poesia, romance, conto, ensaio, crítica, teatro
– e a do homem, que chega, glorioso, aos oitent’anos de
vida. Quando digo comemorar, quero ater-me ao étimo
da palavra, que significa memorar com, isto é, lembrar
conjuntamente, tornar a memória coletiva. Esta por certo
a aspiração máxima de toda grande obra artística, de
acordo com Borges, quando participa da memória da
raça, fazendo-se patrimônio comum, com seu universo
de símbolos, significados, gestos, notas ou traços que
forjam a identidade e a capacidade de criar de um povo.
Como assim ocorreu e ocorre com a obra de Camões,
em Portugal, com Walt Whitman, nos Estados Unidos,
com José de Alencar, Castro Alves e Jorge Amado, no
Brasil, só para citar alguns exemplos. Toda obra literária,
quando devidamente compartilhada, mercê de suas
qualidades estéticas e de um plus indefinível, torna-se
objeto permanente de comemoração: passa a pertencer
à memória coletiva. Como é o caso, entre nós, da obra
de José Alcides Pinto.
Dito isto, louvemos a iniciativa de Dimas Macedo,
materializada neste trabalho, A Face do Enigma (2002),
que exigiu o concurso de outros tantos talentosos amigos,
para que chegasse a resultado tão fino. Em primeiro
A Face do Enigma 67

lugar, gostaria de destacar aqui o projeto gráfico, a capa


e a formatação eletrônica realizados por este extraor-
dinário artista gráfico, desenhista e professor, Geraldo
Jesuíno da Costa, a quem o Ceará tanto deve, nestes
últimos 25 anos, ao elevar, nas oficinas da Imprensa
Universitária da UFC, o nível da produção gráfica de
numerosas obras literárias nossas, todas marcadas pelo
bom-gosto, elegância e criatividade. Como podemos
de pronto atestar em A Face do Enigma. Um livro que
realmente dá prazer aos olhos, ao tato e ao olfato. Sim,
porque um livro graficamente bem feito é cheiroso, é
sedutor no seu formato, é elegante e suave ao toque, em
tudo lembrando uma bela mulher. Com uma vantagem
adicional: podemos levar os dois para a cama...
Também o livro contou com a participação especial
do gravurista Audifax Rios e, sobretudo, dos xilógrafos
Abelardo Brandão, Augusto Amaral, Eduardo Eloy,
Francisco de Almeida, Hélio Rola, Hilton Queiroz, Nauer
Spíndola, Nilvan Auad, Roberto Galvão, Sebastião de
Paula, Sérgio Lima e Silvano Tomaz, os quais, com suas
criações na madeira ferida por golpes expressionistas,
ilustram com alta categoria as décimas heptassilábicas
de Dimas Macedo, em louvor de Alcides Pinto. E aí
está, quero crer, o sentido maior da participação desses
artistas no projeto, ao retomarem a tradição popular
nordestina/cearense de juntar os versos de cordel às
capas com desenhos talhados na madeira. Se é verdade
que predominam na xilogravura de cordel os temas
religiosos e míticos – herança medieval – numa tenta-
tiva inconsciente de conciliar o sagrado e o profano,
configurando um tempo mítico e visionário, marcado
pela dualidade vida e morte, sonho e realidade, começo
68 Dimas Macedo

e fim, segundo Bakhtine, os traços contrastivos de preto


e branco da xilogravura ilustram à perfeição esse mundo
e esse modo antitético de ver as coisas. Ora, no livro de
Dimas Macedo, os xilógrafos convidados se encontram
não só ilustrando, como manda a tradição, os versos
cordelistas de Macedo, mas também, por tabela, o
mundo mítico e visionário, sagrado e profano de José
Alcides Pinto.
Igualmente digna de nota a iconografia selecio-
nada pelo autor desta obra, representando o ambiente
rural, a família e amigos do poeta nascido em São
Francisco do Estreito, município de Santana de Acaraú.
Há, nesta seção, uma espécie de fotobiografia do poeta
maldito. Não só: contempla, ainda, o resgate fotográfico
de personagens que achávamos pertencentes apenas ao
seu universo ficcional. Curiosamente, as figuras de João
Firmo Cajazeiras e do padre Francisco Araken da Frota,
por exemplo, que ali aparecem, deixam de representar
pessoas empíricas e passam a compor, com muito mais
verossimilhança, a paisagem física e imaginária dos
personagens Grilô Firmo e do padre Tibúrcio, tal o
poder de impregnação criadora do autor de O Dragão.
Quanto à parte propriamente textual e literária,
destacam-se, no livro, o roteiro biográfico, a apreciação
crítica da obra, as décimas encomiásticas e a bibliografia
do inventor de A Ilha dos Patrupachas.
O levantamento da vida de José Alcides Pinto
aqui se revela minucioso, preciso e com um toque
novelesco na narrativa, de tal sorte que não sabemos,
a certos instantes, se Dimas está compondo a biografia
de um personagem fictício e lúcido, que se chama por
vezes José Alcides Pinto, ou se realiza a biografia de
A Face do Enigma 69

um homem real e louco, como João Pinto de Maria.


Pinto por Pinto, os dois se confundem, a ponto de um
não saber qual dos dois escreveu Os Verdes Abutres da
Colina. “Eu não escrevi este livro.”, diz um, enfático; e
o outro: “Mas quem o escreveria senão eu?”...
De qualquer modo, a narrativa de Dimas Macedo
se mostra, a nosso ver, como o melhor esforço biográfico
realizado até hoje sobre o homem – ou o personagem
? – José Alcides Pinto, se é que ele existe de fato, se é que
existe de se pegar, como diria Drummond a respeito de
um outro notável bruxo, Guimarães Rosa.
Em relação à abordagem crítica, Macedo atinge
momentos de grande penetração interpretativa, não
obstante o aspecto polifônico e multifário da obra
alcidiana. Por exemplo, entende Dimas classificar com
propriedade em dois sentidos diferentes a principal
produção ficcional do nosso querido José: a 1a.) voltada
para o realismo mágico regionalista, abrangendo a
Trilogia da maldição (os romances: O Dragão, Os verdes
Abutres da Colina e João Pinto de Maria – Biografia
de Um Louco) e a 2a.) dirigida para a introspecção
psicológica, onde se situa a Trilogia Tempo dos Mortos
( os romances: Estação da Morte, O Sonho e O Enigma).
Quanto à poesia do autor, Dimas classifica-a com
acerto em “pelo menos quatro principais matrizes
temáticas”: 1a.) a lírico-amorosa (20 Sonetos de Amor
Romântico, Águas premonitórias); 2a.) a pornô-fesce-
nina (Os Amantes e Relicário Pornô); 3a.) a épico-social
(Os Catadores de Siri, O Acaraú – Biografia do Rio) e
4a.) a existencial-diabólica (Cantos de Lúcifer), não
esquecendo de aludir a uma possível 5a. vertente:
a experimental-vanguardista, a exemplo dos livros
70 Dimas Macedo

Ordem e desordem, Águas Novas e Concreto: Estrutura


Visual-Gráfica.
No tocante às décimas, DM expõe seu talento
poético para louvar – dentro da melhor tradição popular
cordelista, acima aludida – o artista e a obra. Destacaria,
por seu poder de síntese descritiva, a seguinte décima:

Erótico e contemplativo
Exótico parece um monge
Seus versos ressoam ao longe
Seu canto é quase profético
Seu jeito quase esquelético
Lhe dá a dimensão de sábio
É um romancista hábil
Porém seu fazer artístico
Revela um poeta místico
Só no murmurar dos lábios.

Por fim, o atento autor de Leitura e Conjuntura


elenca, na exaustiva bibliografia, toda a produção
literária de JAP, mencionando até o poema Canto da
Liberdade (1945), raramente lembrado.
Meus amigos, gostaria de recordar aqui algumas
palavras, certamente insuficientes, que alinhei nas
orelhas do livro Trilogia da Maldição, publicada pela
editora Topbooks, em 1999, com as quais busquei deli-
near o perfil literário e humano deste agreste filho de
Orfeu, ora homenageado: “José Alcides Pinto, na excep-
cionalidade de seu gênio literário, é filho da grande mãe
lunar com as águas escuras do Acaraú; centauro de luz
A Face do Enigma 71

e sombra, cujo dorso de cristal impuro investe furioso


contra o sol e as estrelas fumegantes. Como Rimbaud,
mandou para o inferno as palmas acadêmicas dos márti-
res, os raios da arte bem feitinha e bem acabada, para
retornar à adolescência e à sabedoria primeira e eterna.
Ou para seu próprio nascimento. Pois, como ele diz, no
seu poema Fúria: ‘Nasci premonitório e vegetal como
uma ilha. E, sob a minha espinha, há todo um alfabeto
desconhecido enterrado (como um tesouro no fundo do
mar)’. Cabe a todos nós, leitores, decifrar esse alfabeto
desconhecido, dramático e belo da arte e da figura de
José Alcides Pinto”.
Posso lhes assegurar que, para tentar decifrar o
tesouro literário submerso de José Alcides, não há, - sem
desmerecer outros importantes trabalhos anteriores,
como os de José Lemos Monteiro, Nelly Novaes Coelho,
Floriano Martins e de Paulo de Tarso Pardal – não há,
repito, outro roteiro tão belo e seguro quanto este que
nos oferece agora o poeta e crítico Dimas Macedo, ao
contemplar A Face do Enigma e generosamente compar-
tilhá-la conosco.

Apresentação de A Face do Enigma,


em 10/12/2002, no Centro Cultural Oboé.
Publicada no DN Cultura, Fortaleza, 22.12.2002.
A Face do Enigma 73

CANTIGA DE AMIGO
r
ELEUDA DE CA VALHO
Jornalista e Mestra
Em Literatura Pela Ufc

A vida e a obra de José Alcides Pinto


contadas em prosa, verso e xilos. É o livro-
-álbum A Face do Enigma – José Alcides
Pinto e sua Escritura Literária (Fortaleza,
Instituto da Gravura do Ceará, 2002), do
escritor e crítico literário Dimas Macedo.
Além das gravuras e dos textos, há um
conjunto iconográfico do maldito poeta das
ribeiras do Acaraú. O lançamento acontece
hoje (10.12.2002), no Centro Cultural Oboé.
Meio monge, libertino e meio. Amante
das madalenas, todas, apaixonado por São
Francisco de Assis e Santa Terezinha.
74 Dimas Macedo

Urbano e sertanejo, surreal e memorialista, José


Alcides Pinto tem vida e obra expostas em A Face do
Enigma, novo livro do poeta e crítico literário Dimas
Macedo. A edição do Ingrav – Instituto da Gravura do
Ceará, com projeto gráfico de Geraldo Jesuíno. Além do
estudo em si, Dimas Macedo compôs uma loa em forma
de martelo (estrofe de dez linhas, cada qual com sete
sílabas), ilustrada por 12 xilogravadores. Além disso, o
livro contém bibliografia de e sobre Alcides Pinto, que
mostra a cara em fotos que o apresentam da infância até
quase indagorinha. Uma das imagens mais representati-
vas do dito é da época em que ele, num surto espiritual,
andava vestido com o hábito do santo de Assis: o falso
frade magríssimo segura um gato branco. Debaixo da
batina, a carne em brasa.
O livro com um roteiro sentimental do biografado,
desde aquela antiga aldeia do Alto dos Angicos, atual
São Francisco do Estreito, ribeiras do Acaraú, onde José
Alcides Pinto nasceu, em 1923. Alexandre, o pai, foi
comboieiro, poeta, cigano, curtidor de couro e lavrador.
A mãe, Maria do Carmo, dona de casa, 17 filhos, oito
finados ainda nos cueiros. Ela dizia, segundo Dimas
Macedo: “Eu nunca tive sol e nunca tive lua”. O menino
José, magro e corcunda desde sempre, era birrento,
cabeçudo, boca suja. Gostava de andar nu e sem chapéu,
contava estrelas e pastorava astros.
Ainda pinto-calçudo, tomou-se de espanto com
o suicídio do avô e a loucura de alguns parentes,
entre os quais o tio João Pinto de Maria, que virou
personagem de um livro homônimo. Inquieta-se ainda
com o voo rasantes dos urubus ao sol e os bandos de
morcego à noite. Na escola, dava mostras de seu lado
A Face do Enigma 75

sátiro: brechava as meninas com um espelhinho preso


no dedo pé.
O mundo estava em guerra quando o rapaz de 17
anos vem para a capital, onde moureja de copidesque
nos jornais. Depois, no Rio de Janeiro, forma-se jorna-
lista profissional e passa por todo o escalão do ofício.
Para chegar lá, toma uma passagem de terceira classe
no navio Itanajé, mas se deixa ficar na primeira parada,
em Recife. É freguês do solar de Apipucos, território
sagrado do mestre de Casa Grande & Senzala, Gilberto
Freyre. Da vivência pernambucana é que derivam os
poemas do seu livro Os Cantadores de Siri. Então, o Rio.
Zé Alcides escreve no jornal Tribuna da Imprensa e
se mete com o pessoal do Partido Comunista. Demitido,
preso e solto, pra dormir em bancos de praça. Presta
concurso para inspetor de alunos no Colégio Pio-A-
mericano, em troca de escola, comida e teto. Em 1951,
ingressa na Faculdade Nacional de Filosofia, de onde sai
bacharel em jornalismo. Em 1957, de volta a Fortaleza,
Zé Alcides lança o Manifesto Concretista. Se casa, tem
filho, separa, se junta.
José Alcides Pinto publica seu primeiro romance,
O Dragão, em 64. De volta ao Rio, publica Cantos de
Lúcifer, prefaciado pelo poeta modernista Cassiano
Ricardo. Cansado de tudo, o Zé finge-se (?) doido e
consegue licença para se internar na Casa de Repouso
Santa Helena, em Petrópolis. De lá, sai com duas
obras-primas: O Criador de Demônios e Entre o Sexo: a
Loucura/ a Morte. Em 1974, publica Os Verdes Abutres
da Colina. Ao arrepio da estabilidade, se demite da UFC,
enfia-se num hábito franciscano e vai para o sertão.
76 Dimas Macedo

Desde aí, ele só deixa sua fazenda Terras do


Dragão para algum evento literário na cidade e, velho
sátiro à beira dos 80 anos, cheirar o cangote das cabritas.
“O esquecimento do nome de José Alcides Pinto foi o
melhor prêmio literário que ele poderia receber. Mas
é também uma prova eloquente e inequívoca de sua
proscrição pelas elites cearenses e por todas as formas
conservadoras da hegemonia midiática”, afirma Dimas
Macedo, que define seu biografado como um “viajante
do tempo e da verdade, do esplendor estético e da paixão
humana transformada em verbo e escritura”. Apois.

O Povo,
Fortaleza, 10.12.2002.
A Face do Enigma 77

ENIGMA LITERÁRIO
r
FELIPE A AÚJO
Jornalista E Repórter Do
Caderno 3 Do Diário Do Nordeste

Em A Face do Enigma: José Alcides Pinto


e sua Escrita Literária (Fortaleza, Instituto
da Gravura do Ceará, 2002), Dimas Macedo
traça um roteiro da vida e da obra do autor
da Trilogia da Maldição.
A ideia vem desde 1994. Na época, convi-
dado pela Fundação Cultural de Fortaleza
para participar do projeto Personagens da
Cidade, o escritor e crítico literário Dimas
Macedo preparou a primeira versão do
que ele chama de “esboço literário” de
José Alcides Pinto. Maior que a dimensão
estabelecida para os livros da coleção,
78 Dimas Macedo

o trabalho não pôde ser aproveitado e acabou voltando


para a gaveta. “O livro ficou pronto pouco tempo depois
do prazo combinado, porém a editoração não se concre-
tizou, por razões ou inconveniências que até o momento
desconheço”, explica Dimas.
Cinco anos depois, em julho de 1999, o escritor
encontrou os originais que havia escrito num dos
arquivos eletrônicos da Procuradoria Geral do Estado.
“Concluí de logo que os originais impressos haviam sido
extraviados, por certo no trajeto entre a minha casa e as
dependências da Fundação Cultural de Fortaleza. Reim-
presso o material descoberto, cuidei, então, de preparar
a edição do volume”, conta Dimas Macedo. Três anos e
uma série de contatos depois, o livro finalmente ficou
pronto e recebeu o nome A Face do Enigma: José Alcides
Pinto e sua Escrita Literária.
Primeira publicação do Instituto da Gravura do
Ceará (Ingrav), o livro será lançado hoje (10.12.2002),
às 19hs, no Centro Cultural Oboé. A apresentação será
feita pelo poeta Adriano Espínola. “Esse livro é um
roteiro biográfico de José Alcides Pinto. Na verdade,
é o primeiro roteiro escrito sobre ele. Existem teses
acadêmicas sobre José Alcides, mas não existem
roteiros biográficos como o que eu escrevi”, explica
Dimas, que resgatou a longa trajetória do autor da
Trilogia da Maldição desde sua infância no distrito
de São Francisco do Estreito, em Santana do Acaraú,
até hoje.
“Quando eu comecei a escrever o livro e a conver-
sar com o José Alcides sobre sua vida, ele me pediu
apenas que lesse sua obra porque estava tudo em seus
livros”, conta. “É como se São Francisco do Estreito fosse
sua Macondo. Ele transforma as coisas mais simples e
insignificantes de sua família em personagens e aconte-
cimentos universais, carregados de valor literário. Para
mim, essa é sua maior virtude como escritor”.
Além do roteiro biográfico, Dimas também
dedicou um capítulo do livro para uma análise sobre a
obra de José Alcides. “Com cinquenta títulos editados
ou reeditados, alguns dos seus contos foram traduzi-
dos para o inglês, o francês, o italiano e o espanhol,
enriquecendo ainda a sua fortuna literária a corres-
pondência que manteve ao longo de sessenta anos de
literatura, com escritores nacionais ou estrangeiros,
estando o autor atualmente trabalhando na elaboração
de seu romance mais cobiçado, Panos Ardentes, com
o qual pretende coroar a trajetória da sua produção”,
avalia.
Nos últimos capítulos do livro, Dimas reuniu uma
iconografia de José Alcides Pinto – uma “reportagem
fotográfica” – e dedicou um conjunto de décimas
(estrofes de 10 versos de sete sílabas, bastante usadas
na literatura de cordel) ao escritor. “Ensaísta e teatrólogo
/ tem parte com o Satanás/ porém não se satisfaz/
com a obra que nos legou/ e diz que apenas esboçou/
parte de sua escritura/ e algumas partituras/ para tocar
ao piano/ antes de findar seus anos/ ou no reino da
iluminura”, escreve.
Ao longo do livro, que tem o projeto gráfico assi-
nado por Geraldo Jesuíno, Dimas utilizou xilogravuras
de Abelardo Brandão, Audifax Rios, Augusto Amaral,
Eduardo Eloy, Francisco de Almeida, Hélio Rola, Hilton
Queiroz, Nauer Espíndola, Nilvan Auad, Roberto
Galvão, Sebastião de Paula, Sérgio Lima e Silvano
Tomaz. “Esse é um livro coletivo. Ele, na verdade, foi
concebido para ser um objeto gráfico, daí o meu cuidado
com as ilustrações e com o seu designe”.

Diário do Nordeste,
Fortaleza, 10.12.2002.
A Face do Enigma 81

OS LABIRINTOS
DE UMA ESCRIT RA u
CARLOS AUGUSTO VIANA
Poeta e Crítico Literário
Editor do Dn Cultura

Dimas Macedo é Advogado e Mestre em


Direito, Procurador do Estado e Professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Ceará. Esses títulos, segundo ele, integram
a biografia de um outro Dimas, com o qual
o autor de Estrela de Pedra (1994) não está
muito de acordo, embora seja ele um militante
político sempre preocupado com a distribui-
ção da justiça e a efetividade da cidadania.
Costuma dizer que existe dentro de si próprio
uma polifonia de vozes e alteridades e que
com elas convive de forma harmoniosa,
mas às vezes também dissonante, buscando
preservar sempre a sua integridade e a sua
dignidade latentes.
82 Dimas Macedo

É o escritor do campo literário aquilo que o seduz


e o torna amante de si mesmo e do mundo que o cerca
e com o qual interage de maneira comunicativa e
aberta. A literatura e a existência para ele são realidades
indissociáveis, pois compõem a face de uma mesma
moeda: a vida em seu sentido itinerante como reflexo
da criatividade e das formas superiores do pensar e do
agir humanos.
Assim, enquanto aguarda a publicação do seu
livro Política e Constituição pela Editora Lúmen Júris
do Rio de Janeiro, que consolidará, por certo, a sua
dimensão de constitucionalista maduro, Dimas Macedo
se prepara para lançar, no próximo dia 10, às dezenove
horas, no Centro Cultural Oboé, com apresentação do
poeta Adriano Espínola, o livro-álbum de sua autoria
intitulado A Face do Enigma – José Alcides Pinto e Sua
Escritura Literária (2002), publicação ricamente ilustrada
por grande gravadores cearenses e que é também resul-
tado de uma edição primorosa do Instituto da Gravura
do Ceará – INGRAV, com projeto gráfico do professor e
artista plástico Geraldo Jesuíno da Costa.
Poeta e crítico literário preocupado com o estudo
da moderna literatura cearense, Dimas Macedo é
membro da Academia Cearense de Letras e integra o
conselho editorial e de várias revistas e suplementos de
cultura, no Ceará e em diversos Estados.
São de sua autoria A Distância de Todas as Coisas
(1980, 2a ed. 2001), Lavoura Úmida (1990, 2a ed. 1996),
Estrela de Pedra (1994) e Liturgia do Caos (1996), todos
de poemas. No campo da crítica ou do ensaio literário
é autor de Leitura e Conjuntura (1984, 2a ed. 1995), A
Metáfora do Sol (1989), Ossos do Ofício (1992) e Crítica
A Face do Enigma 83

Imperfeita (2001), sendo A Face do Enigma – José Alcides


Pinto e a Sua Escritura Literária o seu décimo primeiro
livro publicado.
Poemas e textos literários de sua autoria foram
vertidos para o inglês e o espanhol e publicados em
Portugal, Espanha, Inglaterra, Argentina e Estados
Unidos. Dimas é coautor de Viento Del Nordeste, publi-
cado pela Cátedra de Poética da Pontifícia Universidade
de Salamanca, em 1994. Pela coleção de ensaios críticos
do Museu-Arquivo da Poesia Manuscrita publicou
Marxismo e Crítica Literária (2001) e pela Editora Oficina
publicou, em 1997, Tempo e Antítese – A Poesia de Pedro
Henrique Saraiva Leão, tendo organizado para a Coleção
Alagadiço Novo da Universidade Federal do Ceará os
livros: Ficção Reunida (1994), de Durval Aires, e Ensaios
e Perfis (2001), de Joaryvar Macedo.

DN Cultura - Como nasceu A Face do Enigma?


Dimas – A Face do Enigma ainda não é o livro definitivo
que pretendo escrever sobre a vida e a obra do escritor
José Alcides Pinto, um dos nomes que mais influencia-
ram a minha formação literária. Mas nele, acredito, estão
os elementos biográficos indispensáveis para qualquer
projeto literário nessa área. A interpretação que fiz da
obra literária de JAP, segundo ele próprio, é aquela que
lhe tem mais agradado em meio a quase uma dezena
de livros sobre a sua personalidade literária.
O livro nasceu de uma provocação do Cláudio
Pereira, que em 1994 me pediu um perfil de cinco ou
seis página sobre Alcides Pinto para o projeto Perso-
nagens da Cidade da Fundação Cultural de Fortaleza.
Aceitei a encomenda com reservas, disse para o Cláudio
84 Dimas Macedo

Pereira que o meu texto extrapolaria o reduzido número


de páginas que ele me havia reservado e que eu não
aceitaria os recursos gráficos com que os livrinhos
vinham sendo apresentados. Ele, Pereira, aceitou o
desafio, mas o livro terminou não sendo publicado.
Munido de uma máquina fotográfica e de um caderno
de anotações, estive, inclusive, no povoado de São
Francisco do Estreito, em Santana do Acaraú – Ceará,
onde José Alcides Pinto nasceu e onde ambientou a sua
principal obra literária, a famosa Trilogia da Maldição
(Rio, Editora Topbooks, 1999), composta dos romances
O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e João Pinto de
Maria - Biografia de um Louco. A fotografia se mostrou
indispensável para a complementação da minha repor-
tagem e as imagens plásticas dos ilustradores também.
A Face do Enigma não é um livro singular. Ele
é plúrimo e plástico como a obra literária de Alcides.
É composto de textos, mas é complementado também
por uma iconografia selecionada e por xilogravuras
de grandes gravadores cearenses, tais como Aberlado
Brandão, Augusto Amaral, Eduardo Eloy, Francisco de
Almeida, Hélio Rola, Hílton Queiroz, Nauer Spínola,
Nilvan Auad, Roberto Galvão, Sebastião de Paula, Sérgio
Lima e Silvano Tomaz, e que se completam com uma
gravura de Audifax Rios.

DN Cultura – Dentre os percursos de Alcides Pinto,


qual o mais desafiador: a biografia ou a obra? Os dois?
Dimas – Os dois, indiscutivelmente. Não é fácil decifrar
Alcides Pinto ou a sua obra de poeta ou ficcionista. O
mito que ele construiu em torno de si mesmo e da sua
escritura literária é desafiador. É encoberto de máscaras
A Face do Enigma 85

e vernizes. Manipula malabarismos os mais variados.


Ilude. Arquiteta estéticas que o embelezam e deixa o
leitor aturdido. José Alcides Pinto é um mágico na arte
do despiste. Aceita o qualificativo de maldito, mas é,
no fundo, um místico torturado e um cristão selvagem
ainda em estado primitivo. Ele faz da sua obra um palco
de encenação da sua vida, e da sua vida ele faz uma
paródia da própria criação. Aliás, a criação e o juízo,
a alegoria da gênese e do apocalipse estão inteirinhas,
por exemplo, em Os Verdes Abutres da Colina, romance
cujo cenário é justamente o povoado de São Francisco do
Estreito, lugarejo que ele incorporou, definitivamente,
aos escaninhos da literatura brasileira.

DN Cultura – O que mais o fascinou na biografia de


JAP?
Dimas – Tudo, na vida e na obra de Alcides Pinto,
acontece de forma quase imprevisível. JAP é um ser
humano mágico e estranho. Porém humano, perdida-
mente humano, demasiadamente humano e hiperbólico.
Sabe tirar das coisas diminutas e do seu restrito universo
pessoal os matizes essenciais de sua obra. Fascinou-me
em sua biografia quase tudo o que descobri nas minhas
pesquisas, mas tocou-me fundamentalmente o seu
completo despojamento e o seu indiscutível poder de
renúncia. Chamou-me também a atenção a sua abertura
para a liberdade e para a graça, que é, a meu juízo, o
significado maior de toda a sua existência e de toda
a escritura que arquitetou. A sua mitologia literária é
talvez a coisa mais fascinante de toda a sua ficção.
DN Cultura – Por que o universo criador de JAP cons-
titui uma “mitologia literária”?
86 Dimas Macedo

Dimas – José Alcides costuma ser visto pelo público


como um poeta maldito. É o poeta maldito ou o grande
maldito da literatura cearense. E a sua obra de ficcionista,
não conta? Pois é justamente a sua ficção aquilo que mais
me interessa, em primeiro lugar. É nela que ele modela
as suas personagens mitológicas – o avarento João Pinto
de Maria, o louco Chico Frota, o garanhão luso Antônio
José Nunes, os quais ele reveste com os modelos com
que foram feitos os mitos de todos os tempos. É como se
ele, José Alcides, escrevesse pensando em seus familiares
e conterrâneos do Estreito, porém olhando para os efei-
tos especiais e de movimentação de imagens e sentidos
que os manuais de criação artística nos ensinam. Ele, no
entanto, é construtor da sua forma e do destino de todas
as suas personagens. José Alcides está em quase todos
e possivelmente entre todos os personagens que cria e
manipula. Ele ouve as suas vozes e as proclamas para
os leitores. Veste suas máscaras e se deita com eles na
varanda. Vasculha suas sepulturas. E mais: na sua peça
de teatro intitulada Equinócio propõe a todas as pessoas
uma convivência pacífica e benéfica com o Demônio.
Em A Face do Enigma, dissertando sobre essas cria-
turas estranhas que povoam os romances de Alcides Pinto,
afirmo que o traço genealógico e a antropologia germinal
e atávica, no caso específico da sua escritura literária,
constituem os elementos distintivos mais curiosos da sua
engenharia ficcional. E acrescento: “Rosa Cornélio de Jesus,
a matriarca, Maria Patrocínio de Jesus e Manoel Alexan-
dre Pinto, os avós paternos, Maria José Frota (Donana
Cajazeiras) e Francisco das Chagas Frota (Chico Frota), os
avós maternos, ao lado de Maria do Carmo Pinto (Loló) e
José Alexandre Pinto (André) são todos, indistintamente,
personagens da sua mitologia literária”.
A Face do Enigma 87

DN Cultura – JAP é autor de uma obra plural e


polifônica. Discorra sobre isso, esclarecendo onde essa
diversidade criativa se dá de forma mais acentuada: na
ficção ou na poesia?
Dimas – Em ambas. A polifonia, tal como teorizada por
Mikhail Bakhtin, é uma das maiores categorias que o
investigador pode utilizar para compreender a obra de um
gênio. A pluralidade de vozes é intensa em Alcides Pinto,
principalmente na sua ficção: a de Cristo, a do Demo, a dos
loucos e visionários, a dos seus ancestrais mitológicos. Não
existe em sua escritura um único eu interior que verbera.
Existe um teatro de transgressores e devassos, que pecam
para se fazerem arautos da concupiscência, mas que se
unem em busca da graça e do perdão. A voz de Deus,
em Alcides, no entanto, é a maior de todas as sinfonias
polifônicas. E é o sentido de Deus e a sua incessante busca
aquilo que ele apreende e nos ensina.

DN Cultura – Que traços aproximam a prosa e a poesia


de JAP? O que afasta uma da outra?
Dimas – A poesia de JAP reina em sua prosa de maneira
quase soberana. É difícil separar uma coisa da outra. A
sua prosa é uma antropologia germinal e visceral de si
mesmo. E a sua poesia é um diálogo com os grandes
sentidos do mundo e com a condição humana como
um todo. O império da carne e os apelos velados da
pulsão sexual reprimida. O impacto da sensualidade
sobre o destino do homem. A punição e o juízo final. A
busca permanente da liberdade e a pesquisa incessante
das formas. Eis alguns traços que aproximam a prosa
e a poesia de JAP. As formas e o viés estético como
culminância da obra literária.
88 Dimas Macedo

DN Cultura – Qual o principal legado de JAP para a


literatura brasileira?
Dimas – Pedro Henrique Saraiva Leão, que introduziu,
com Alcides Pinto, o concretismo no Ceará, costuma
dizer que JAP é o nosso Garcia Márquez. E é. Mas o que
ele é mesmo é o Alcides Pinto brasileiro. Um escritor
uno e inviolável dentro de si mesmo, como ele próprio
se proclama. O fantástico, tal como trabalhado em seus
grandes romances, é um legado imenso para a literatura
brasileira. Mas o viés autobiográfico e memorialístico,
revestido de máscaras estéticas e de despistes, é um
grande legado também.

DN Cultura– Por fim, o que gostaria de acrescentar


sobre A Face do Enigma?
Dimas - A Face do Enigma é um livro plástico, antes de
ser uma escritura literária. Tudo nele é sincrônico e se
completa. O texto, as fotos, as xilogravuras e o cordel
que é ponto de partida das ilustrações se integram.
Sempre sonhei fazer um livro desse jeito e outros
virão, no futuro, costurando esses elementos. A estética
de hoje é fundamentalmente isso: imagens, sentidos,
perspectivas cênicas, linguagem literária condensada e
pouco discurso no velório, pois o passado está morto e
a pós-modernidade é o futuro que já aconteceu.

Diário do Nordeste,
Fortaleza, 08.12.2002.
EDITORES
Dimas Macedo
Geraldo Jesuino
Conselho Editorial
Inez Figueredo
José Telles
Jorge Pieiro
Raymundo Neto
Pedro Henrique Saraiva Leão
José Alcides Pinto. ( in Memorian)

TÍTULOS PUBLICADOS

• Dicas Para Jovem Poeta (1998) • Oblívio da Ilusão (2007)


Padro Henrique Saraiva Leão Eduardo Pragmácio Filho
• Tragetória (2000) • Escritura do Tepo no Canto de Samuel Rawet
Pio Rodrigues (2007)
• Poesia concreta no Ceará (2001) Vládia Mourão
Pedro Henrique Saraiva Leão • Tempero (2007)
• As Plumas de João Cabral (2002) Amélia Rocha
Pedro Henrique Saraiva Leão • Bissextos (2007)
• Joaquim de Souza: O Byron da Canalha ou O Luiz Teixeira Neto
Castro Alves Cearense (2003) • Crítica e Literatura (2008)
Sânzio de Azevedo Dimas Macedo
• A Metáfora do Sol, 3ª ed. (2003) • As Areias Anlentes do Rio (2008)
Dimas Macedo André Lopez
• Circunstâncias (2003) • Os Canto do Luar (2008)
Pedro Henrique Saraiva Leão Rosa Firmo Bezerra
• Algumas Palavras, 2ª ed. (2003) • A Expressão Musical e o Direito (2009)
Dimas Macedo Diego Nogueira Macedo
• Poesias, 2ª ed. (2003) • O rumor e a Concha (2009)
Barbosa de Freitas Dimas Macedo
• Bibliografia - Roteiro Para Pesquisadores • Cinema, A Lâmina que Corta (2010)
(2004) Walter Filho
Dimas Macedo • Poemas Populares (2011)
• Recordel (2004) Zito Lobo
Virgílio Maia • Literatura Lavrense - Notas para sua História
• Estrela, Vida Minha ( 2004) (2011)
Inez Figueiredo Dimas Macedo
• O Tatuador de Palavras (2006) • Palavras por Aí, à Ventura (2011)
Fernando Siqueira Pinheiro Inez Figueredo
• Sintaxe do Desejo (2006) • Pesquisas de Direito Público (2011)
Dimas Macedo Dimas Macedo
• Poemamassado (2006) • A Face do Enigma (2012)
Pedro Henrique Saraiva Leão Dimas Macedo
• Transpondo os Umbrais da Academia (2007)
Noemi Eliza/ César Barros Leal
• Longa é a Noite (2007)
João Clímaco Bezerra

Av. 13 de Maio 1096/106


Fátima - Fort. - CE
60040-531
(85) 3088 9304
Esta Obra foi composta com a fonte Tex Gyre Pagella,
com o formato final de 14,0 x 21,0cm, contém 92
páginas. O miolo foi impresso em papel Pólen Bold
Novo 90g/m2 LD 66cm x 96cm. A Capa impressa no
papel Cartão Everest 265g/m2 66cm x 96 cm. Tiragem
de 500 exemplares, nos 89 anos de José Alcides Pinto.
Impresso no mês de janeiro de 2012
Fortaleza - Ceará
DIMAS MACEDO
Va ng ua r d i sta,
insubmisso, de-
sobediente e ino-
vador na cria-
ção de processos
ficcionais e na
restauração da

A FACE DO ENI GM A
linguagem poéti-

ca, José Alcides


Pinto é conside-
rado o mentor
do Movimento
Concretista No
Ceará, e o seu
r e p r e s e n ta n t e
mais destacado,
sendo, por isto
mesmo, auspicio-
so a sua trajetó-
ria literária, ini-
ciada, aliás, com
um livro que o
poeta posterior-
mente rejeitou./
Dimas Macedo.

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