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E MEMÓRIAS
DE ARAGUAÍNA
- TOCANTINS
Olivia Macedo Miranda de Medeiros
Vera Lúcia Caixeta
(Organizadoras)
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE
ARAGUAÍNA - TOCANTINS
Araguaína
2023
REITORIA
Airton Sieben
Eroilton Alves dos Santos
Superintendente de Infraestrutura SUMÁRIO
Reitor pro tempore Clarete de Itoz
Natanael da Vera-Cruz Gonçalves Araújo Superintendente de Tecnologia da Informação
Vice-reitor pro tempore Andressa Ferreira Ramalho Leite
Kênia Ferreira Rodrigues Superintendente de Comunicação
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Roberto Antero da Silva
Denise Pinho Pereira Diretor do Centro de Ciências
Pró-reitora de Planejamento, Orçamento Integradas (Cimba) - CCI
e Desenvolvimento Institucional Andressa Francisca
José Manoel Sanches da Cruz Diretora do Centro de Ciências Agrárias - CCA
Pró-reitor de Assuntos Estudantis Fernando Holanda Vasconcelos
Diretor do Centro de Ciências da Saúde - CSS
Warton da Silva Souza PREFÁCIO
Pró-reitor de Finanças e Execução Orçamentária Marco Aurélio Gomes de Oliveira
Martha Victor Vieira 5
Andréia de Carvalho Silva Diretor do Centro de Educação,
Pró-reitora de Gestão e Humanidades e Saúde- CEHS
Desenvolvimento de Pessoas Meirilane Leocadio APRESENTAÇÃO
Braz Batista Vas Diretora do Sistema de Bibliotecas da UFNT Olhares Cruzados: História, Memória e 11
Pró-reitor de Graduação Joana Marcela Sales de Lucena Representações Sobre Araguaína-TO
Rejane Cleide Medeiros de Almeida Coordenação da Editora Universitária - EDUFNT
Pró-reitora de Extensão, Cultura
e Assuntos Comunitários Do Presente ao Passado de um Ofício: rememorações
Conselho Editorial dos tropeiros de Araguaína e região 25
Adriano Lopes de Souza | Alesandra Araújo de Souza
César Alessandro Sagrillo Figueiredo | Joaquim Guerra de Oliveira Neto A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica
Mara Pereira da Silva | Rozana Cristina Arantes | Ruy Ferreira Da Silva
Cimba em Araguaína (1964-1974) 55
Projeto gráfico de capa e miolo: Zeta Studio
Um Novo Hospital para Araguaína: a OSEGO
e os avanços na área da saúde 71
Assistir ao necessitado e redimir os pecados:
as práticas religiosas e sociais das mulheres 91
presbiterianas em Araguaína
Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa
Funda” em Araguaína-TO 107
“Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”: a
história da Umbanda em Araguaína 127
ISBN:
Araguaína e a construção de uma identidade
na contramão da História (1978-1998) 149
O Espaço do Agronegócio no Município de
Araguaína (TO): a territorialização do capital 161
e sua relação com a agroindústria
Histórias de vida das empregadas domésticas de PREFÁCIO
Araguaína – TO: entre lutas, violências e resistências 179
Mercado Municipal da Cidade de
Araguaína: ensinando História 207
Perfil dos Professores de História da Educação Martha Victor Vieira
de Jovens e Adultos em Araguaína-TO 227
Professora do Curso de História da
História Local e Regional 247 Universidade Federal do Norte do Tocantins
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PREFÁCIO
As pessoas residentes na chamada Capital do Boi Gordo me 2008 e início de 2009. Em 2019, criou-se, por meio do Decreto
receberam com certa curiosidade, mas também com cordialidade, 13.856, a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT).
especialmente os estudantes universitários. A UNITINS funcio- Era um antigo sonho de realizar uma Universidade com mais
nava, de forma modesta, em um prédio escolar no movimentado autonomia que se concretizou, por meio de uma medida tomada
Bairro São João. O som dos ventiladores de teto, usados para no expirar do governo da presidente Dilma Rousseff, que sofreu
amenizar o calor causticante, demandava um esforço adicional da um questionado impeachment em 2016.
voz dos educadores. Em 2002, a instituição estava em processo
Assim como a Universidade mudou seu cariz, identidade e
de transição para federalizar-se. Havia uma grande tensão entre
estrutura, a cidade também passou por várias transformações ao
discentes e docentes. Os estudantes reivindicavam ir para um
longo do tempo. O seu primeiro nome, dado por não-indígenas, teria
prédio de melhores condições no Setor Jardim Paulista e fizeram
sido Livra-nos Deus, pelo medo que se tinham dos povos Karajás,
greves e manifestações para terem suas demandas atendidas. Para
que eram os moradores originários dessa região. Posteriormente,
desocupar a Universidade, os gestores chegaram a convocar a tropa
passou a chamar-se povoado do Lontra, fazendo referência a um
de choque. A atitude extrema indica a permanência da autoritária
rio local. Em 1948, quando pertencia à Filadélfia, recebeu o status
cultura política brasileira, que costuma querer resolver questões
de Distrito de Araguaína, elevando-se a município somente em
sociais de cima para baixo, mediante o uso da força física. Há
14 de novembro de 1958. A modernização e o incremento econô-
ética da convicção de sobejo no país, falta a muitos cidadãos
mico, com destaque para a agropecuária, vieram após a década
responsabilidade, sensibilidade e compromisso democrático.
de 1960, impulsionado pelas possibilidades abertas com a rodovia
Entre esperanças e frustações, no ano de 2003, ocorreram Belém-Brasília. Nos anos de 1970, Araguaína constava entre as
os primeiros concursos para a Universidade Federal do Tocan- principais cidades do estado de Goiás, por isso, com o êxito do
tins (UFT), sendo a Universidade de Brasília responsável pela Movimento Autonomista do Tocantins, foi cogitada como futura
implantação da federalização. Novos professores vieram de capital do novo Estado, que foi instituído em 05 de outubro de 1988.
diferentes regiões para ocuparem as vagas. Aqueles docentes da O crescimento urbano, corroborado com a migração (sobretudo de
UNITINS que tinham mestrado ou doutorado puderam concor- nortistas e nordestinos, e em menor proporção de pessoas do Sul,
rer aos cargos. Já os professores especialistas foram demitidos, do Sudeste e do Centro-Oeste), foi ocorrendo, gradativamente, de
exceto os que eram concursados pelo Estado. Foi uma transição forma horizontal e em meio aos antigos hábitos e tradições ligadas
institucional que gerou mágoas nos antigos trabalhadores. Com ao mundo rural, tais como o transporte de objetos por meio de
o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das carroças de cavalos, a tropeada, a cavalgada e os rodeios.
Universidades Federais (REUNI), introduzido por um decreto
Na última década, o setor de serviços melhorou bastante,
em 24 de abril de 2007, a estrutura do Campus de Araguaína foi
a circulação de pessoas aumentou e o trânsito piorou, tornando
melhorada. Mudou-se para um novo prédio, no setor Cimba, entre
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PREFÁCIO
necessário colocar mais sinaleiros, ampliar e modificar as vias os assuntos político-administrativos, privilegiando analisar a
públicas para comportar o número de veículos automotores. sociedade araguainense sob uma perspectiva epistemológica
Em 2002, creio que o único edifício que se destacava na cidade mais descolonial, dando visibilidade para outros protagonistas
era o Palácio das Acácias. Atualmente, vários imóveis verticais que foram esquecidos pela história tradicional, que se embasava
podem ser vistos na paisagem urbana araguainense. As opor- apenas na documentação oficial e desconfiava das fontes orais.
tunidades educacionais e de centros médicos a tornam um polo
Araguaína como uma sociedade de migrantes, possui um
atrativo, sobretudo para os habitantes das regiões sul do Pará
aspecto cosmopolita, que, inclusive, dificultou a construção de
e do Maranhão. A criação do Parque Cimba e da Via Lago, no
uma identidade única, como é apontado no capítulo de autoria
governo do prefeito Ronaldo Dimas, tornaram-se os cartões
dos historiadores Eugênio P. M. Firmino e Mirany C. Lopes.
postais, além de lugares de memória, da cidade que não quer
Não obstante a variedade de sotaques e de fenótipos, destacam-
parar de se desenvolver economicamente. Faltam apenas mais
-se traços culturais compartilhados pela maioria da população,
políticas públicas para as pessoas menos favorecidas, ampliar
tais como o apreço pela Cavalgada anual, o hábito de ir para
o saneamento básico, adquirir coleta seletiva, criar um museu
as praias de rio nas férias de julho, a prevalência do gosto pela
ou arquivo histórico, pensar meios de desenvolvimento susten-
música sertaneja nos bares, o famoso prato de chambaril, que
tável e aumentar os investimentos na área cultural, com vistas
se encontra em muitos cantos da cidade, e, especialmente, no
a um turismo de entretenimento. Falta ainda contar e dar mais
Mercado Municipal da região central.
publicidade aos diferentes estudos realizados sobre Araguaína.
Efetivamente, a leitura desta coletânea nos deixa com vontade
Nesse sentido, o presente livro, resultante de pesquisas
de saber mais sobre a constituição e sobre a representação histórica
feitas por discentes e docentes do curso de história e geografia
de Araguaína. Acredito que seria promissor um estudo interdisci-
do Campus de Araguaína, ao trazer narrativas sobre pessoas
plinar mais aprofundado das práticas culturais e da linguagem, por
comuns, como os tropeiros, as presbiterianas, os (as) traba-
meio de análises de narrativas escritas e orais, a fim de que possa-
lhadores da fábrica Cimba e do Mercado Municipal, as lava-
mos melhor conhecer e compreender o passado e o presente dessa
deiras, as empregadas domésticas, os (as) umbandistas, os (as)
cidade tão híbrida e plural. Recentemente, excelentes iniciativas
professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e outros
já foram tomadas nesse sentido, mas é preciso dar continuidade a
temas pouco explorados pelos estudiosos, como a investigação
esses projetos que tratam da história e da memória local.
sobre a Organização de Saúde do Estado de Goiás (OSEGO),
a territorialização do agronegócio e a construção da identidade
da “Princesa do Norte”, contribui para conferir visibilidade Araguaína, 27 de novembro de 2022.
à trajetória e à memória dos habitantes desta cidade. Chama
atenção o fato de que os capítulos desta coletânea não enfocam
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APRESENTAÇÃO
Olhares Cruzados:
História, Memória e Representações
Sobre Araguaína-TO
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
em Apologia da História: ou o ofício do Historiador (2002), com o recurso às recordações dos outros. Significativamente, a
coloca na boca de um filho a questão que orienta a escrita do memória de um é também a memória de vários sujeitos!
livro “Pai, para que serve a História?”. De certo, a produção
De qualquer forma, a memória social é uma força ativa,
historiográfica alimenta as memórias, as recordações e forta-
dinâmica e o que ela planeja esquecer é tão importante quanto o
lece as identidades locais e regionais. Ela nos diverte e distrai,
que ela deseja lembrar. Como afirma Fernando Catroga (2011, p.
mas, fundamentalmente, nos ajuda a compreender o presente e
7) “o passo que o homem dá para frente tem na pegada anterior
a projetar o futuro. Nesse sentido, conhecer parte das histórias,
a sua condição de possibilidade”. Esse caminhar vai deixando
das memórias das diferentes narrativas tecidas sobre os lugares
traços, eles são os sinais das pegadas do homem que o impedem
e as pessoas, segue na perspectiva do “dever de memória” que,
de ser só presente ou só futuro “o significado das pegadas de
certamente, garante a ligação do sujeito com o lugar.
quem passou é inseparável das interrogações que elas colocam a
Para Le Goff (1997, p. 139), a memória tem papel funda- quem vem”. Enfim, “ao darem futuro ao passado, os vivos estão
mental, pois, através dela, percebe-se a temporalidade, a sucessão a afiançar um futuro para si próprios” (CATROGA, 2012, p. 7).
de gerações, é, enfim, na relação passado presente que a popu-
O processo de construção da memória da cidade, normal-
lação urbana compreende a história da sua cidade, “como seu
mente, passa pelas diferentes narrativas sobre Araguaína. Nelas,
espaço urbano foi produzido pelos homens através dos tempos”.
encontram-se uma seleção de acontecimentos e de personagens.
Destarte, é pela memória que o sujeito consegue se situar na
Raillyn Barros (2019, p. 15) ressalta que, muito provavelmente,
cidade, perceber suas mudanças e permanências, vincar laços
foram os indígenas da “etnia Karajá, os primeiros humanos a
afetivos que propiciam a relação habitante/cidade, possibilitando
habitar a região onde tempos depois ‘batizou-se’ de Araguaína.
“ao morador de se reconhecer enquanto cidadão de direitos e
Este primeiro povoamento se instalou na região de floresta loca-
deveres e sujeito da história” (LE GOFF, 1997, p. 139).
lizada as margens do Rio Lontra, um importante afluente do Rio
Fernando Catroga (2011), ao tratar da recordação e do Araguaia”. Já o povoamento não indígena teria iniciado com a
esquecimento, afirma que existe um consenso acerca do papel chegada das famílias pioneiras, em especial, a família de João
da memória na constituição das identidades pessoais e sociais. Batista da Silva e sua esposa, Rosalina de João Batista, e filho,
De certo, todo cidadão está imerso na placenta da memória que migrantes que vieram do Piauí e se estabeleceram às margens
o socializa e é a partir daí que ele define tanto sua estratégia de do Rio Lontra, na década de 1870 (BARROS, 2019). Depois
vida, quanto os seus sentimentos de pertença e de adesão ao disso, várias levas de migrantes se deslocaram para a região. Os
coletivo. Ademais, a relação com o passado não decorre apenas primeiros moradores se dedicaram ao cultivo de cereais para a
da evocação de uma memória individual, particular e subjetiva, subsistência e, com objetivos mais lucrativos, iniciaram a cultura
uma vez que a recordação envolve outros sujeitos e se comprova do café como atividade predominante. Mas as dificuldades de
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
escoamento da produção, decorrentes da ausência de vias terrestres, Municipal nº 86, de 30 de setembro de 1953, o povoado foi elevado
que interligassem a região a outros povoados e cidades, fizeram a distrito. Sua instalação ocorreu em 1º de janeiro de 1954. Em
com que essa atividade fosse abandonada (ARAÚJO, 2000). 5 de maio de 1957, foi criada a Paróquia de Araguaína, Sagrado
Coração de Jesus, sendo designado o Padre Pacífico Mecozzi,
Araguaína, segundo informações oficiais, padeceu por causa
da congregação religiosa italiana “Pequena Obra da Divina
das precariedades no sistema de transporte, até meados de 1925.
Providência”, como pároco local. A Lei Municipal nº 52, de 20
Nesta oportunidade, chegaram também outras famílias, dentre as
de julho de 1958, autorizou o desmembramento do distrito de
quais estavam as de Manoel Barreiro, João Brito, Guilhermino
Araguaína, fixando seus limites. Finalmente, em 14 de novembro
Leal e José Lira. Esses moradores teriam dado um novo impulso
de 1958, pela Lei Estadual nº 2.125, foi criado o Município de
ao município e instituído o nome de “Lontra” para esta localidade
Araguaína, tendo sido instalado oficialmente em 1º de janeiro
(PREFEITURA DE ARAGUAÍNA, 2014). Todavia, divergindo-se
de 1959. (HISTÓRICO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE
dessa versão oficial, Araújo (2000) argumenta que a denominação
ARAGUAÍNA). Com a criação do estado de Tocantins em 1989,
do povoado como “Lontra” se deu poucos meses após a chegada
ela tornou-se a maior cidade do Estado e pretensa capital. Ficou
de João Batista da Silva, em 1876. O nome estava associado à
apenas com o título de capital econômica.
coincidência de a região se localizar às margens de um rio, onde
era frequente um mamífero, ambos denominados “Lontra”. A construção da Belém-Brasília (BR-153), inaugurada
no ano de 1960, atravessa os Estados de Goiás, Tocantins, Pará
A história oficial relata que o desenvolvimento do municí-
e Maranhão e aparece nas narrativas como marco decisivo no
pio está atrelado ao impulso dado pelas famílias pioneiras, que
progresso da cidade. A proposta inicial dessa rodovia foi pen-
contribuíram expressivamente para a abertura do comércio local,
sada ainda no governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961). A
instituição de festas religiosas e várias outras iniciativas que
responsabilidade da obra coube ao engenheiro Bernardo Sayão,
corroboraram para a criação da cidade. Para conhecer a história
que faleceu em 1959, sem ver a conclusão do seu trabalho. A
dessas famílias pioneiras e dessa região, há certos problemas
abertura desse meio de comunicação terrestre possibilitou “[...]
pela escassez de fontes escritas e falta de um arquivo na cidade
a expansão do capital na Amazônia Legal, abrindo espaço na
que reúna e organize os documentos oficiais e privados, oportu-
região para os grandes projetos agropecuários” (BORGES, 2002).
nizando acessar informações sobre o passado dessa localidade.
Toda narrativa implica seleção, recorte, em que sujeitos e
De qualquer forma, os documentos oficiais sublinham a
acontecimentos são visibilizados e outros, eclipsados. Percebe-se,
criação do município de Filadélfia, pela Lei Estadual nº 154, de
por exemplo, que lá no início do povoamento não há interesse
8 de outubro de 1948, cuja instalação ocorreu em 1º de janeiro
em revelar os modos de viver dos povos indígenas Karajá que já
de 1949, passando o povoado Lontra a integrá-lo. No mesmo ano,
ocupavam a região. Eles são vistos apenas como problema pelos
sua denominação foi mudada para Povoado Araguaína. Pela Lei
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
colonizadores. Estes são homens católicos que têm nomes e sobre- do Norte do Tocantins – e de seus professores. Contamos também
nomes e empenham-se em construir um templo, as outras religiões com uma contribuição do curso de Geografia e dois textos dos
de matrizes cristã ou afro-brasileira são eclipsadas, deixadas de ex-alunos do mestrado em Ensino de História, PROFHISTÓRIA.
fora da narrativa. Nas narrativas tradicionais, o progresso da região São textos curtos, elaborados dentro das normas acadêmicas, porém,
parece começar com a construção da Belém-Brasília, uma espécie com uma linguagem acessível para o grande público. A seleção foi
de marco fundador na concepção desenvolvimentista. Contudo, feita a partir das temáticas relacionadas com a cidade de Araguaína
antes da rodovia, como viviam os sujeitos, homens e mulheres de e a organização dos textos foi pensada com o objetivo de promover
formações e origens diversas? Como eram os meios de transportes? um olhar para a relação muito próxima entre História e memória
Como as pessoas, as mercadorias e as ideias circulavam? Como presentes nos textos que abordam uma diversidade de sujeitos,
as pessoas nasciam, cresciam, estudavam e cuidavam das suas sensibilidades, processos e subjetividades.
doenças? Entre as preocupações dos historiadores, estão tanto
Olívia de M. M. de Medeiros e Risney Morgana Souza
os grandes momentos, quanto os detalhes da vida cotidiana, a
Alencar, no texto Do Presente ao Passado de um Ofício: reme-
pluralidade de sujeitos e a riqueza das suas vivências.
morações dos tropeiros de Araguaína e região, ousam abordar a
Recentemente, Araguaína passou por mudanças importantes. temática da presença dos tropeiros e de uma cultura de tropeiragem
Algumas praças também foram modernizadas, a exemplo da Praça na formação de Araguaína e região entre as décadas de 1950 e
“Dom Orione” e transformou-se a antiga ruína da Companhia 1970 com base nos relatos orais dos tropeiros. Elas acreditam
Industrial da Bacia Amazônica (Cimba), em um parque ecológico, que o processo de rememoração feito por esses trabalhadores
no centro da cidade. Os restos abandonados e deteriorados do é capaz de lançar luzes sobre a cultura local. Nas décadas de
maior complexo industrial do antigo norte de Goiás, da década 1950 e 1960, as estradas eram poucas e poucos eram os que se
de 1960, compõem agora uma linda paisagem. Os escombros aventuravam a penetrar nesse extenso sertão. A falta de estradas
da antiga fábrica foram retirados da poeira do tempo, do meio era, sem dúvida, um grande empecilho para o desenvolvimento
lixo, dos antigos matagais e, para orgulho dos araguainenses, econômico e para o crescimento demográfico da região. Desse
constituem agora um espaço de lazer, de atividades físicas, de modo, as cidades que conseguiram maior destaque foram as que
ampliação da consciência ecológica e das memórias dos antigos estavam localizadas às margens do Rio Tocantins, o principal
moradores. Tornou-se “lugar de memória” na definição do his- meio de escoamento e importação de mercadorias. Todas essas
toriador francês Pierre Nora. dificuldades contribuíram para que alguns homens assumissem
o ofício de tropeiro. Aos poucos, eles começaram a fazer rotas
Este livro é, em grande parte, fruto das pesquisas dos estudantes
comerciais entre o interior e as grandes cidades, eram considerados
de graduação em História, da Universidade Federal do Tocantins
homens de confiança que, além das mercadorias, transportavam
(UFT), Campus de Araguaína, hoje UFNT – Universidade Federal
dinheiro e informações.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
Em A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba Vasni de Almeida e Nilza de Araújo Silva, no texto intitu-
em Araguaína (1964-1974), Neude Sirqueira dos Santos utiliza os lado Assistir ao Necessitado e Redimir os Pecados: as práticas
depoimentos orais como fontes para a história da fábrica Cimba. religiosas e sociais das mulheres presbiterianas em Araguaína,
Ela busca perceber quais as lembranças que os (as) trabalhadores tratam das diversas atividades desenvolvidas pelas mulheres dentro
(as) têm desse passado. Chamou a atenção da pesquisadora o fato e fora da Igreja. Essas atividades estão fortemente inseridas nos
de os/as testemunhos/as terem valorizado a fábrica como espaço demais aspectos da sociedade, ou seja, no social, no político e no
de formação de mão de obra, ou seja, de aprendizagem de uma cultural. Porém, mesmo constatando a ampliação das temáticas de
profissão. Certamente, toda memória é seletiva, é mutável, fruto investigação históricas, percebe-se que a participação da mulher
de uma construção social e das contingências do presente. no protestantismo brasileiro é pouco estudada. Nesse sentido,
o objetivo dos autores foi compreender o papel e as ações que
Mariseti Cristina Soares Lunckes e Valdivina Telia Rosa
as mulheres presbiterianas desenvolveram durante os seus dez
de Melian, no texto Um Novo Hospital para Araguaína: a
primeiros anos de organização societária em Araguaína.
OSEGO e os avanços na área da saúde, tratam da fundação
da Organização de Saúde do Estado de Goiás (OSEGO), em Dhaiana Dias Costa, Vera Lúcia Caixeta e Rosária Helena Ruiz
Araguaína, em 1970, através da ampliação do Hospital Mare- Nakashima, em Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda”
chal Emílio Ribas. Políticas públicas de saúde são implantadas, em Araguaína-TO, tratam das lavadeiras de roupas no riacho “Baixa
consolidando o desenvolvimento da região pela fixação de Funda”, afluente do córrego Neblina, na cidade de Araguaína-TO,
médicos na cidade. A OSEGO se insere nos avanços do campo na década de 1990. São mulheres pobres, não brancas que lutaram
hospitalar da medicina moderna em construção. A doença passa para manter o riacho no qual exerciam o ofício. Ao ouvi-las, as
a ser vista como um problema econômico, social e político. autoras atentaram para o fato de que elas não só falam com a voz,
Foucault (2004) defende que o nascimento do “hospital” foi mas também com as mãos, com os braços, com a cabeça e com os
uma medida tomada para organizar o espaço onde o indivíduo olhos. Ouvi-las torna-se uma forma de valorização dos seus saberes
passaria a ter um atendimento especializado e disciplinado, e práticas. Ouvi-las significa, também, fazer a crítica à hegemonia
surgindo, assim, uma medicina do espaço social. Novas de uma epistemologia eurocentrada presente na academia que,
práticas de saúde do Estado de Goiás são institucionalizadas historicamente, invisibiliza as mulheres e seus saberes.
e dinamizadas pela intervenção do Estado em regiões estra-
Sariza Oliveira Caetano Venâncio, no texto “Tinha mais
tégicas para o desenvolvimento do país, como era o caso de
de 200 centros por aqui”: a história da Umbanda em Araguaína,
Araguaína. Para garantir o projeto de crescimento econômico,
trata de uma temática esquecida, silenciada e negada na história
era necessário criar condições para o trabalhador comum ter
local – as religiões de matrizes afro-brasileiras. A pesquisa está
acesso aos serviços públicos gratuitos de saúde.
focada na Umbanda, uma religião brasileira, que resultou da
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
integração e síntese de religiões de tradições africanas, do cato- procurou construir essa “identidade”, e de que forma ela se
licismo e do kardecismo. Seu caráter híbrido lhe permite ter uma “caracterizou” no processo histórico regional. Com olhar atento,
capacidade de absorção e redefinição de traços religiosos diversos, os autores sublinharam as dificuldades enfrentadas nesse processo
passando pelos santos, rezas e benditos católicos, pelos orixás do de construção identitária, uma vez que a cidade é cosmopolita
Candomblé. Já os caboclos recebidos durante os trabalhos devem desde suas origens, sobretudo a partir da segunda metade do
ajudar as pessoas na terra através de conselhos e curas, a fim de século XX, momento esse denominado de “modernidade tardia”,
que consigam evoluir no plano espiritual, tornando-se espíritos de coincidindo justamente com a emancipação política municipal. Na
luz. Algo semelhante ocorre com alguns espíritos no kardecismo. segunda metade do século XX, vários são os fatos detectados que
ajudam a explicar o fortalecimento do fluxo de correntes migra-
Estas e outras especificidades das três religiões citadas fazem
tórias para a cidade, especialmente a partir da década de 1970.
parte dos mitos e ritos dentro da Umbanda. Mas a autora ressalta
que, nas casas visitadas em Araguaína, é comum encontrar traços Alberto Pereira Lopes e Delismar Palmeira Costa em O
do Tambor de Mina, religião afro-brasileira predominante no Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO): a
Maranhão, do Terecô codoense e da Umbanda nordestina, marcada territorialização do capital e a sua relação com a agroindústria,
pela tradição juremeira. Estes traços refletem as trocas culturais tratam de alguns aspectos que são sempre levados em consideração
ocorridas quando dos contatos entre grupos distintos vindos de pelos agentes capitalistas na hora da realização de seus investi-
diversos lugares para Araguaína. Enfim, a autora apresenta um mentos como as condições oferecidas pelos lugares. Nesse sentido,
levantamento sobre os principais terreiros da cidade, a história os quadros demográficos, infraestruturais, de desenvolvimento
dos seus dirigentes e dos primeiros umbandistas em Araguaína. social, além da própria virtualidade da extensão ecológica, são
considerados estratégicos. Buscou-se revelar a atual configuração
Eugenio Pacelli de Morais Firmino e Mirany Cardoso
da agroindústria no contexto local e internacional. Foi abordado
Lopes, no texto Araguaína e a Construção de uma Identidade
o processo histórico-geográfico de territorialização do agronegó-
na Contramão da História (1978-1998), utilizam como fontes
cio no município e, através de dados, revelada sua dinâmica no
a Revista Municipalista “Araguaína, a Princesa do Norte” e a
processo produtivo, enfocando suas competências na produção
Revista Reportagem para sublinhar o desejo do poder público,
alimentícia, embasado na dinâmica de sua agroindústria.
apoiado por alguns intelectuais da comunidade, na produção de
uma identidade local. De acordo com os autores, esse interesse Gabriela Silva Nogueira, Olivia Macedo Miranda de Medei-
está explícito nos discursos elaborados e veiculados pela imprensa ros e Euclides Antunes de Medeiros reconstroem, no capítulo
local escrita, por jornalistas, por políticos e intelectuais liberais Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína-TO:
no decorrer das décadas de 70, 80 e 90 do século passado. Esta entre lutas, violências e resistências, as experiências de mulheres
pesquisa teve por objetivo entender de que forma e por que se empregadas domésticas da referida cidade, destacando aspectos de
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO
suas memórias que remetem ao trabalho infantil, às lutas contra frágil. Em diálogo com os professores, ela levanta as especifici-
abusos sexuais, ao racismo e à escravização. Evidenciam também dades inerentes à Educação de Jovens e Adultos, entre elas, uma
as diversas resistências às opressões interseccionais sofridas por necessidade de formação específica por áreas de atuação. A partir
essas mulheres, opressões essas que contribuem para aprofundar as de aula-oficina, ela propõe um roteiro de história de vida dos estu-
experiências de exploração e de subalternização de suas subjetivi- dantes, pois, desde Paulo Freire (1987), é sabido da necessidade de
dades. Por outro lado, apesar de todos os processos de dominação, considerar os saberes dos educandos advindos das suas vivências.
o avanço das legislações e fiscalizações trabalhistas faz com que
Por fim, e não menos importante, Aletícia Rocha da Silva,
essas trabalhadoras domésticas vejam suas profissões com satisfação,
no texto História Local e Regional, trata do confronto da escrita
enquanto esperam chegar o momento da tão sonhada aposentadoria.
de uma história nacional versus história regional e argumenta
Jorge Luís de Medeiros Bezerra trata da aprendizagem sobre as motivações que levam o historiador a escolher suas
histórica a partir do Mercado Municipal de Araguaína-TO a temáticas. Se, de um lado, o estudo do Local e Regional se mostra
partir da metodologia da Educação Patrimonial no capítulo inti- mais ligado ao dia a dia dos envolvidos, por outro, há de pensar
tulado Mercado Municipal da Cidade de Araguaína: ensinando se essa definição está servindo como legitimação dos discursos
História. Sua preocupação central é com a beleza de se ensinar políticos hegemônicos dos grupos de poder de cada região. A
história fora da sala de aula. Como professor da rede privada de escrita historiográfica pode vir a assumir propósitos de criação
ensino na Escola SESI de Araguaína/TO, procurou propor um de uma dada memória e legitimação de poder sobre um espaço
ensino de História que possibilite um ensinar e aprender com ou território ou que pode acabar por simplesmente reproduzir tais
sentido para os estudantes da rede básica. discursos. Configura-se, neste ponto, os cuidados e a necessidade
de pensar desde a definição dos conceitos até a compreensão que
O texto Perfil dos Professores de História da Educação
o historiador assimila das palavras “local e regional”.
de Jovens e Adultos em Araguaína-TO da mestra Laila Cristina
Ribeiro da Silva trata do perfil dos professores de História da EJA Para nós, Histórias e Memórias de Araguaína – Tocan-
de Araguaína. Esta pesquisa nasceu de uma preocupação prática tins representou o desafio de inserção de novos sujeitos no rol de
sobre como melhorar o aprendizado histórico dos estudantes da produtores do conhecimento. Ele traz ao grande público, através
Educação de Jovens e Adultos (EJA), em Araguaína-TO1, uma de uma linguagem acessível a todos/as, as produções acadêmicas
vez que a erradicação do analfabetismo tem se dado de maneira dos alunos/as da UFNT, respaldadas pelos seus orientadores.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício
Os pesquisadores que escrevem sobre o norte de Goiás Atrás de lucros, mas também como irradiadores de prá-
relatam que a região de Araguaína enfrentou vários problemas ticas culturais, os tropeiros se transformaram em trabalhadores
em virtude do seu isolamento dos grandes centros urbanos. Entre centrais no desenvolvimento regional. Contudo, poucas são as
as décadas de 1950 e 1960, poucas eram as estradas e poucos pesquisas que abordam o tema e, quando o fazem, privilegiam os
eram os que se aventuravam a penetrar nesse extenso sertão. A aspectos que remontam apenas à dinâmica econômica, deixando
falta de estradas era, sem dúvida, um grande empecilho para o opacizados os aspectos culturais dessa importante atividade
desenvolvimento econômico e para o crescimento demográfico da humana. Trilhando caminho inverso ao dessa abordagem, pre-
região. Desse modo, as cidades que conseguiram maior destaque tendemos, nesse artigo, compreender e interpretar a constituição
nesse período foram as que estavam localizadas às margens do da memória dos tropeiros de Araguaína sobre as experiências
Rio Tocantins que, nessa época, era o principal meio de escoa- vividas nas velhas estradas do eixo tropeiro que interconectam
mento e importação de mercadorias. histórias de vidas à formação cultural da região.
Todas essas dificuldades contribuíram para que alguns Nesse sentido, esclarecemos que, nesse trabalho, o tom não
homens ambiciosos e corajosos despertassem para a possibili- é de crítica acerca dos relatos dos tropeiros, mas de compreensão
dade de assumir o ofício de tropeiro. Aos poucos, esses homens e interpretação dos sentidos atribuídos por eles aos modos pelos
começaram a fazer rotas comerciais entre o interior e as grandes quais viam seu ofício e como, na velhice, percorrendo-o desde a
cidades, e suas atividades não eram restritas apenas ao comér- infância, o veem no presente. Por outras palavras, perseguimos
cio de produtos, eles também eram considerados homens de esse tempo perdido, um tempo que se foi, um tempo fragmentado
confiança que, além das mercadorias, transportavam dinheiro e pela interferência do presente, mas que, por meio da perspectiva
informações. De acordo com Maristela Gumieiro: da História Oral, permite o encontro de uma “verdade”, pois é
o depoente que detém a verdade: a sua verdade.
O tropeiro é o empresário do transporte, o Seguindo essa perspectiva, optamos pela história de vida
alocador de serviços que melhor se adaptou as como metodologia, tendo em vista que são os tropeiros com quem
péssimas condições dos antigos caminhos goianos,
conversamos pessoas de idade muito avançada, interrompê-los com
bem com às longas distâncias que separavam
Goiás dos seus centros abastecedores. Indo ou
perguntas e/ou direcioná-los em demasia atrapalharia a coerência do
refluindo do litoral, transportando mercadorias relato. Além disso, entendemos que a história de vida tem encantos
importadas e, também, produtos da terra, o que os outros procedimentos não têm, tais como a possibilidade
tropeiro se arriscava num duro cotidiano, atrás que os entrevistados têm de amarrar os fios de sua história com
de lucros que certamente viriam se os negócios
maior liberdade, mostrando a existência de um narrador em cada
fossem bem administrados. (1991, p. 94).
tropeiro. Nas palavras de Waldir Ferreira de Abreu,
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partir da década de 1880, foi conhecido como “Livre-nos Deus”, Segundo Oliveira, Paulo Evangelista, migrante nordestino,
em função tanto dos ataques constantes dos animais selvagens chegou ao povoado Lontra já trabalhando em meio às tropas,
quanto dos grupos indígenas que percorriam as águas e as mar- conduzindo boiada do Nordeste até a região do rio Tocantins.
gens do Rio Lontra. Mesmo que, inicialmente, tenha tido um Muitos outros também tiveram essa experiência, porém nem
nome que provocava medo, a partir da década de 1940, a região todos na condição de tropeiro, mas montados em mulas com
de Araguaína, incluindo aí as povoações de Pé do Morro, hoje suas mudanças e filhos. Esse é o caso do Sr. Emílio Ferreira,
cidade de Aragominas, e Murici, atual Muricilândia, passou a conhecido por Zequinha, que diz ter atravessado Piauí e Mara-
atrair levas populacionais, principalmente de nortistas e nordes- nhão até chegar ao Morro da Velha, antigo povoado Pé do Morro,
tinos, em busca ora de melhores oportunidades na vida, ora de norte de Goiás:
fugir da seca, respectivamente.
Os tropeiros e suas famílias vinham para a região de Em 1953, nóis trazia, eu, mais a muiê, e otras
pessoas, quatro burro, e tudo que nóis possuía
Araguaína guiados por suas tropas. As mudanças dessas pes-
vinha nas cargas e os mínino vinha apertado
soas com suas famílias eram feitas, muitas vezes, em lombo de nas cangaias... Mais...agora..num sei direito se
burros, como narra Luciene Camilo de Oliveira (2013, p. 37) em era 53, no cumeço, ou 52, lá por dezembro, tava
Arribação nordestina: representações e memórias de migrantes chuveno poco, graças a Deus, sinão aduecia tudo
em Araguaína e região (1950-1970): os meninos. Mais eu vim pra trabaiá na roça,
mais chegando... foi diferente... (ZEQUINHA,
entrevista oral, julho de 2013).
Quando Paulo fez a migração para o antigo
norte goiano, este processo se deu por etapas. A
Um senhor de 82 anos, Zequinha é um dos primeiros
este respeito ele diz o seguinte: ‘eu fui trabalhar
cum esse moço, graças a Deus trabalhei três povoadores da região de Aragominas, quando ainda era chamada
ano cum ele, passei por muitas cidades no Piói Pé do Morro ou Morro da Velha. Sua memória, no momento da
[Piauí], travessei pru Maranhão do outro lado entrevista, algumas vezes falhava, mas ele conseguia, mesmo
do Grajaú’. Ele vai narrando suas mudanças,
de forma entrecortada, dar sentido aos acontecimentos que ia
falando das várias cidades do Piauí em que
ele passou com “este moço que trabalhava contando. Em determinado momento da conversa, ele diz que
vendendo burro e gado zebu”. Depois diz que sua vida mudou quando chegou à região, pois não encontrou
migrou para o estado do Maranhão, afirmando possibilidade de “ter uma terra”, o que fez com que começasse
que fixou moradia nesse estado [norte de Goiás] com o “negócio de burros”:
por acaso, pois entendia que ‘era o destino, o
destino mesmo’.
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para si mesmo: “a gente vei por causa da chuva né? Né?”. Dessa Paulino expressa sua surpresa em relação ao clima da
época, Zequinha lembra como os animais ficaram saudáveis, região, mas, ao contrário de Zequinha, vê na chuva e no tempo
mas em contrapartida recorda da dificuldade de locomoção com chuvoso uma forma de empreender seu comércio, mesmo que
a tropa em razão da irregularidade dos terrenos, o que causava de um modo diferente. Ele reconhece a dificuldade, mas supera
prejuízos aos tropeiros. esses pontos empreendendo um novo ramo de negócio. As
trajetórias que levaram estes sujeitos ao ofício de tropeiro são
No mesmo sentido, segue a narrativa do Senhor Antônio
variadas, tendo em comum o fato de exercerem essa atividade
Paulino, outro migrante nordestino que se mudou para o povoado
nas mesmas redondezas: Araguaína e região de Babaçulândia,
do Murici, atual cidade de Muricilândia, no ano de 1959, que
Muricilândia e Aragominas.
também tinha “uma tropinha pequena pra carregar miuança”.
Paulino mudou para esse lugar que fica a dez quilômetros do
Pé do Morro, aos 21 anos, e era “casado de novo”, ou seja, era O LUGAR DOS TROPEIROS NO
recém-casado. Segundo ele: DESENVOLVIMENTO REGIONAL
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O crescimento da região tanto do ponto de vista popula- relacionada à reputação de sua tropa e, por oposição, um tropeiro
cional, quanto do ponto de vista da produção, foi o momento sem tropa não devia ser respeitado. Infelizmente, não temos ele-
ideal para a valorização do trabalho do tropeiro. Mas aqui é mentos suficientes para dar continuidade a esse ponto específico
interessante observar que todos os tropeiros com quem conver- da discussão, mas podemos inferir que a tropa de um tropeiro era
samos ocupavam a posição de dono da tropa, ou seja, não eram mais que seu meio de vida: era a forma pela qual ele se apresen-
apenas empregados, única exceção foi o senhor Zequinha, que tava para a sociedade da época, inclusive, porque quanto maior
não quis comentar sobre o tempo em que era apenas empregado. e melhor fosse sua tropa, mais o tropeiro era requisitado para
grandes viagens, para negócios com pessoas economicamente
Se compararmos a recusa de Zequinha em falar sobre o
importantes na região e, consequentemente, podia ampliar seus
tempo em que era apenas empregado com as representações do
recursos. O senhor Noé, um dos tropeiros com quem conversa-
camarada – empregado em uma comitiva de tropeiragem e que
mos, trabalhou tropeando arroz, produto muito importante no
quase nunca recebia salário – como um trabalhador inferior e
processo de acumulação de capital na década de 1960, na região
indigno de confiança, é possível que haja uma relação entre essa
de Araguaína e Babaçulândia. Segundo ele,
ideia de indignidade do homem que não é dono de sua própria
tropa. Sobre o orgulho e o cuidado com sua tropa, os tropeiros
não escondem que esse é um domínio importante do ofício. E quando trabaei de tropa um dia, foi pouco dia
[...], minha tropa também era muito pequena só
Antônio Paulino diz o seguinte:
era três burro é pouco. A tropa do Antoi era seis
burro, do meu irmão, a minha só era três, mais
eu trabaei um diinha. Daqui eu num trabaiei
Minha tropa no cumeço era pequena, não
até Babaçulândia, só trabaei comprando arroz
passava de seis animal, mais quando o negócio
aqui nesses entrocamento, raposa, ribeirão de
foi milhorano, aí eu comprei uns animal bunito,
areia, coco taviano, aqui pur perto. Raposa é
pelo ruço, anca larga, umas fêmea prontinha pra
um lugar por nome raposa, é ali, você conhece
inxertar. Era uma tropa boa. Tinha gente que
daqui pu coco? Bem? Quando você entra pende
vinha de longe procurá um burrinho ou uma
pra Babaçulândia agora ali próximo depois da
mulinha das minha cruza. Antes de eu mudar
ferrovia é o primeiro corgo. Isso não foi assim que
de ramo e eu tinha uma tropa de mais de 20
cheguei já foi com uns dez anos mais ou menos
animal. Era uma burrada respeitada. (ANTÔNIO
que tava aqui, a gente saía tendo às vezes já tinha
PAULINO, entrevista oral, julho de 2013).
o arroz tratado, quando ia daqui de manha, de
noite tava aqui ou di tarde us arroz não era batido,
Ter uma “tropa boa” significava ter um número razoável às vezes quando a gente tratava eles ia bater o
de animais de qualidade, o que, pela fala de Paulino, aumentava arroz, o arroz tá pronto no outro dia, você vem
panhá o que comprou, pur exemplo, e deixou
a reputação do tropeiro. Ou seja, a reputação do tropeiro estava
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outro a pessoa fazendo outros arroz pra gente mexer cum arroz. No cumeço, comprava nas
comprar né, e comprava lá e vendia aqui, aqui roça e vendia na máquina, depois que vi que
tinha o Tentem, tinha a máquina, isso que eu tô tava dando bom [dinheiro]. Eu fiz um negócio
te falando mais pra cá já tinha o Tentem com essa cum o Santólio que vendia pano e encomendei
máquina bem aqui, o Tentem era um cearense pano de bater arroz. Ele trazia pro comércio de
veio chamado Manuel Tentem, ele era o dono fazenda [secos e molhados] dele, eu levava pras
da máquina de arroz, quando o Tentem morreu, roça, vendi pro povo que plantava o arroiz e
antes de morrer ele deu o lote pus pade [padres] comprava deles o arroiz, né? Era bom pra eles
ele fez uma igrejinha primeiro piquenininha, ficou qui num precisava ir na cidade compra e era
frequentando a igrejinha, depois ele deu pus bom pra mim que tinha dois negócio num só.
padi e os padi foi e levantaram a Igreja grande, (ANTÔNIO PAULINO, entrevista oral, julho de 2013).
a esposa dele chamava Mariquinha. (NOÉ GONÇALVES
LESSA, entrevista oral, março de 2014).
Antônio Paulino é um dos homens que, partindo do ofício
de tropeiro, conseguiu atingir uma posição econômica confor-
No relato de Noé aparecem alguns aspectos importantes: em
tável. Na década de 1970, comprou caminhões e fazendas e,
primeiro lugar, ele diz que sua tropa era pequena, tinha apenas três
com a divisão do estado de Goiás, transferiu-se para a cidade de
(03) animais, mas seu irmão tinha mais seis (06), mesmo assim,
Anápolis, embora a cada ano, no mês de julho, retorne ao norte
ele afirma que trabalhou comprando arroz. Em segundo lugar, ele
para a temporada de praia do Araguaia. Mas seu caso não pode
mesmo diz “só trabaiei [como tropeiro] com arroz”, o que nos leva
ser generalizado, a maioria dos tropeiros vivia de forma bem
a crer que esta era sua atividade principal. Em terceiro, o arroz que
mais modesta e rememora seu passado, também, como de uma
comprava era vendido diretamente para o dono da máquina, que era
luta árdua pela manutenção da família.
o atacadista. Esse, por sua vez, vendia para os grandes cerealistas
de Anápolis à época. Em suma, pela descrição do senhor Noé,
podemos inferir a inserção dessa atividade no ciclo econômico TRADIÇÃO, FAMÍLIA E CULTURA DE TROPEIRAGEM
regional e, principalmente, podemos ver que essa atividade tinha
um papel importante para o crescimento de Araguaína. Quanto Manoel Messias Lopes conta como o ofício de tropeiro era traba-
à inserção dos tropeiros nas atividades comerciais na região de lhoso, mas, ao mesmo tempo, relata como o negócio prosperava:
Araguaína, o senhor Antônio Paulino enriquece essa discussão:
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atravessei nadando vim bater aqui. Se eu ti falar Quando tive mais animal, o negócio miorou. Aí a
que não tinha uma casa construída, a casa que gente dividia a tropa, era tudo junto o dinheiro,
tinha construída era a casa du Salumão Cardoso, o ricibido e pago era dividido por nois três. Mais
casa de adobu cuberta de telha dessa telha a gente pegava serviço diferente, as veiz. Nóis
feita aqui mermu essa telhazinha curraleira e dava certim... certim... nunca brigamo. Mais
um resto dessas casas na Cônego João Lima depois que meu irmão casou ele quis trabaiá
tudu era cercada cum talo de coco e a gente sozim. Acho que foi a muiê dele que intrusou.
passava era aberrando assim purquê nu meião Num sei. Ficô eu mais meu cunhado. Nóis ia
da rua ninguém guentava a fundura da areia pro lado do introcamento de Babaçulândia
e as cubertura era a paia de babaçu ou telha busca ligume [produtos da lavoura] pra vendê
dessas telhinha comum aqui era assim em aqui no Pé do Morro e no Murici. Isso durou até
Araguaína. (JOSÉ RIBAMAR LOPES, entrevista não tê mais jeito de tocar tropa... (ZEQUINHA,
oral, março de 2014). entrevista oral, julho de 2013).
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passô chegamo no garimpo e ganhamo nosso ô tu que tava cum ela Paulino? Sabia que a onça
dinheiro. No normal uma viagem dessa custava tava rastano o burro, mais era nada... quando
oito dia, essa daí demorou uns 15. (ZEQUINHA, chegamo bem pertinho engatilhado era uma
entrevista oral, julho de 2013). ariranha grudada na perna do burro.... Eita! o
tiro foi só certero...O burro fico muito tempo
mancando, mais curô. O coro da ariranha quem
Zequinha esclarece que, sem a família naquela ocasião,
tem, hein Paulino? Tu num lembra? Dessa veiz
ele teria tido prejuízo, mas a situação vivida por ele tem um foi pur poquim. (PEIXOTO PAULINO, entrevista
elemento importante da cultura da tropeiragem: a aventura. oral, julho de 2013).
São chuvas, dias e dias acampados nas matas, animais da tropa
que desaparecem, riscos de animais selvagens. Cada uma des-
As aventuras nas estradas desertas nos tempos em que a
sas possibilidades faz desse trabalho uma atividade destinada
maioria dos caminhos era de tropeiragem são uma forma cultural
àqueles que têm “espírito de correição”, ou seja, para os afeitos
que diz respeito ao povoamento da região. Esse ambiente das
às viagens, às temporadas longe de casa. Peixoto Paulino, tio de
estradas também está presente na narrativa de Arlindo Dias da
Antônio Paulino, viajou com esse último durante alguns anos
Silva, um senhor de 79 anos, cuja mente lúcida revela um pouco
na década de 1960. A memória de Peixoto, um senhor 68 anos,
do cotidiano estradeiro.
filtrou muitos dos acontecimentos vividos na época de tropeiro
e parece ter retido aqueles aspectos mais aventureiros:
Nunca viajei só não, e mexi com boiada depois
das carguinha que eu mexi mais o Antõe da
Alvina e aqui não viajei de pé não, mais no
Numa viagem, tu lembra, Paulino, foi duro...
Marabá, no Pará, eu viajei purque o burro
[gargalha] a burrada piada pra num fugi purque
cansava, e não tinha outro ou viajava de pé ou
tava sem madrinha, aí piamo e fumo pras
ficava ai, e deixava lá embaixo, mais não largava
rede. A lua saiu e tudo quetou de noite. Só um
boiada aí quando voltava, apanhava o burro,
piado de curuja. Aí os animal cumeçou a ficá
era aconteceu foi muitas vez, oh, mais eu sufri,
disinqueto e Paulino levantô e me chamô e
também eu passava o dia e não via ninguém
nóis foi vê pensado sê onça, era lugar de onça.
não, não tinha gente cuma hoje não. (ARLINDO
A gente tava na bera do Lontra no Araguanã,
DIAS DA SILVA, entrevista oral, janeiro de 2014).
né, Paulino? Tu se alembra do lugar certim, era
de cima ou dibaixo de Carmolândia. Dicima,
né, isso dicima. Corremo pru lugá onde tava Nas andanças pelo sertão, Arlindo relembra as dificuldades
a burrada, chegamo lá e vimo um animal na
berrinha do rio. Só tinha uma ispingarda, era eu
que enfrentou na época em que trabalhava como tropeiro, os
momentos de dificuldade que viveu ao percorrer as estradas tropei-
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício
ras, ainda, na década de 1960. Em sua narrativa, aparecem alguns Arlindo, ao relembrar suas atividades quando era tropeiro,
traços da cultura e dos valores dos tropeiros. Por um lado, conta menciona os perigos que enfrentou para conseguir transportar
que poupava os animais cansados dos longos trechos de estrada as cargas em cima dos burros por entre rios de fortes corren-
ruim, evidenciando a relação de dependência e, às vezes, talvez, tezas e em lugares onde não havia pontes. Ao relembrar essas
de afetividade, que tinha com a tropa, pois “sempre voltava para dificuldades, a palavra que marca o relato desse senhor é
apanhar o burro”, mesmo depois de longos trechos andando a pé; sofrimento, para ele a vida de tropeiro significou sofrimento,
por outro, fala da solidão das estradas quando se era um tropeiro e esse sofrimento, ele revela, levou-o a abandonar o ofício.
de poucos animais, sem comitiva. Por fim, não ver ninguém nas Arlindo fez uma escolha e não parece guardar arrependimentos.
estradas era sintoma do despovoamento da região, que ainda na Cumpriu seus compromissos enquanto exerceu o ofício, mas
década de 1960 procurava os meios de ampliar sua demografia. abriu mão da vida de tropeiro, pois o sofrimento era para ele
insuportável. Assim como Arlindo, Zequinha também zelava
A distância da família e o silêncio das estradas lhes causava
por seus compromissos, porém diferentemente daquele, sua
sofrimento, mas, mesmo assim, ele era um homem de palavra,
função de ofício terminou somente com a chegada da velhice.
“não largava boiada”, ou seja, não deixava de entregar o que tinha
sido contratado para fazer. Dentro desse contexto de rememorar as
dificuldades, o senhor Arlindo, com a saúde já bastante desgastada Depois que criei os fii...tudo foi na escola, só não
istudô quem num quis, mais eu tenho neto doto,
pelo tempo, empreende mais uma vez o esforço de lembrar e revela:
médico em Goiânia. Naquele tempo, eu apanhei
de meu pai pra largâ de querê ir na iscola. Hoje
tem qui ir. Sufri muito, desde piquininim, levava,
Só pegava o coco aqui na Babaçulândia levava no Norte, duas légua a comida pro meu pai na
pra Araguaína, chegava lá despejava e jogava aí roça e voltava pra pegar água na cacimba mais
dentro de casa e tornava voltar pra traz buscar uma légua todo dia. Era burro de carga. Daí casei
mais, era três dia de viagem rapaiz, três dia de e vim pra bera do morro trabaiá cum burro,
animal, mais era porque o reberão era cheiu sufria por isso nunca judiei, porque bicho também
demais, eu nu quis mai não de jeito nenhum um é vivente. Meus fii num sufreu assim. Cuma
sufrimento. Tem reberão brabo, o correntão é eu. (ZEQUINHA, entrevista oral, julho de 2013).
esse reberão, e quando eu passava lá ficava com
a língua branca. Passa todo o saco na canoa aí
passava os trem depois, passava os animais era Esse é o final da conversa que tivemos com o senhor
aí que botava a carga e tornava caminhar pra Zequinha. Neste momento, seus olhos, já opacos pelo tempo,
frente, que lá pur dentro d’água num passava estavam brilhando pela lágrima que ele resistiu em verter.
não, se entrasse lá murria tudo. (ARLINDO DIAS
Seus dias de trabalho duro terminaram, hoje vive confortavel-
DA SILVA, entrevista oral, janeiro de 2014).
mente com sua esposa em uma casa na cidade de Filadélfia.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício
Alquebrado pelo tempo e pelo esforço, sua voz modulada, expressar nos inquietou e, no fim da conversa, perguntamos: “Seu
assim como as dos outros depoentes, traz a marca de uma vida Paulino, pro senhor o que é ser tropeiro”?”. Sua resposta foi
de lutas, cuja memória madura extravasa em uma paciente
reconstituição feita por um sujeito plenamente consciente da
Sabe qui eu num sei. Faiz muito tempo. Ajudamo
tarefa que desenvolveu. muito no disinvolvimento da região, mais
nossa época já acabou faiz tempo. Eu mesmo,
Muito do que foi narrado pelos tropeiros são imagens da
se fosse hoje, não sei, não me lembro como
cidade de Araguaína, os produtos comercializados e os negó- cumeçar. É otro tempo. Ninguém lembra de
cios organizados. Morando há muitos anos em Anápolis-GO, nóis mais. (ANTÔNIO PAULINO, entrevista oral,
Antônio Paulino baseia sua narrativa na contribuição que os julho de 2013).
tropeiros deram ao desenvolvimento econômico de Araguaína
e do Tocantins como um todo. Talvez seja verdade que pouquíssimos são aqueles que
lembram/reconhecem a importância dos tropeiros do norte
de Goiás, talvez seja verdade que a identidade desse ofício,
O comércio que os tropeiros fazia quando ainda
não tinha estrada, ou carro, foi grande. Hoje não tão importante para a cultura regional, tenha se perdido no
seria o que é sem eles. Naquele tempo, todas tempo: um tempo que, talvez, já tenha de fato passado. Por
as mercadoria vinha de fora e nóis trazia tudo: outro lado, a oportunidade de colher dessas mentes lúcidas,
do remédio até a máquina de costura da Bahia.
mesmo que presas em corpos alquebrados, uma representação
Araguaína foi crescendo, crescendo, pra hoje
tá nesse disinvolvimento. Depois do Tocantins, dos tropeiros pelos próprios tropeiros é uma forma de enri-
então, né, milhorô muito o recurso. (ANTÔNIO quecer o debate historiográfico sobre a memória e, também,
PAULINO, entrevista oral, julho de 2013) uma forma de registrar a presença desses sujeitos no mundo,
ainda que de forma fugidia.
Paulino aqui revela uma visão da tropeiragem como determi-
nante para a economia regional, no que ele tem razão. Há, ainda, dois CONSIDERAÇÕES FINAIS
aspectos importantes de serem registrados: (a) sua memória nesse
momento foi re/organizada em função de um exercício comemora- Nas conversas com os antigos tropeiros, a questão da contri-
tivo do progresso comercial e econômico da cidade de Araguaína buição para o desenvolvimento do norte de Goiás na região de
e região, cuja tarefa foi, também, um trabalho dos tropeiros; (b) o Araguaína aparece com intensidade. Atuando nessa região entre
senhor Paulino se apresenta como alheio a esse processo ao dizer: as décadas de 1950 e 1970, suas histórias não são folclóricas ou
“Hoje não seria o que é “sem eles”. Ele diz “sem eles” e não “sem se referem às relações de dominação, são suas histórias de vida,
nóis”, como se não se visse mais como tropeiro. Essa forma de se
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remodeladas em função do presente, mas firmadas no rememorar dessa cidade. Araguaína, sem dúvida, é tributária do trabalho
dos tempos antigos. árduo desses homens que, contribuindo para o desenvolvimento
econômico da região, abriram caminho com suas tropas para
Os tropeiros entrevistados eram donos de suas tropas, o
a transformação cultural do que hoje conhecemos como o
que, de um lado, apontou a existência de uma relação afetiva entre
estado do Tocantins.
tropeiro e tropa, além do significado intrínseco da relação entre
“ser um tropeiro dono de tropa” e a dignidade do ofício. De outro
lado, nos deu aquela sensação de que existe uma lacuna enorme RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS
a ser preenchida nos estudos sobre o ofício da tropeiragem, pois
nem todos os tropeiros eram donos de tropa, havendo aqueles • Antônio Paulino, nascido em 16/09/1938, em Grajaú- MA.
que dominavam o ofício, mas trabalhavam como empregados. Entrevista concedida em 21 de julho de 2013.
Desses últimos, a memória oral não nos deu notícia, pois todos • Arlindo Dias da Silva, nascido em 01/12/1935 em Araguaína,
os tropeiros com quem conversamos se apresentaram como entrevista concedida em 29 de janeiro de 2014.
donos de tropas. • Emílio Ferreira, conhecido como Zequinha. Nascido em
05/02/1931, em Picos - PI. Entrevista concedida em 12 de
A perspectiva escolhida pelos velhos tropeiros para narrar
julho de 2013.
sua história nos deu a dimensão da reelaboração dos significados
• José Ribamar Lopes, nascido em 13/02/1932, em São João dos
que, de um lado, se reportaram aos sofrimentos e às relações
Patos - MA, entrevista concedida em 02 de fevereiro de 2014.
familiares fortalecidas com o exercício desse ofício; de outro
• Manoel Messias Lopes, nascido em 01/06/1939, em São João
lado, este muito mais forte, remontava às suas contribuições para
dos Patos - MA, entrevista concedida em 10 de março de 2014.
o desenvolvimento e crescimento de Araguaína, o que, de certa
• Noé Gonçalves Lessa, nascido 20/05/1920, em Novo Exu -
forma, é um retorno ao paradigma do progresso, só que nesse
PE, entrevista concedida em 06 de março de 2014.
caso colocando o tropeiro como uma engrenagem importante
• Peixoto Paulino, nascido em 28/05/1945, em Grajaú MA.
do processo de modernização.
Entrevista concedida em 21 de julho de 2013.
Preenchida com o que era significativo para eles no
presente, a memória desses tropeiros é cheia de lembranças REFERÊNCIAS
por meio das quais recuperam um tempo e um modo de viver ABREU, Waldir Ferreira. História de vida como metodologia de pesquisa: o
que, de outra forma, estariam perdidos para sempre. Por isso, relato de vida de um menino de rua da praça da república em Belém do
Pará. Revista Margens Interdisciplinar, v. 1, n. 2, 2004, p. 41-55.
acreditamos ter sido relevante ter (re)construído o que foi pos-
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 3 Ed. São Paulo:
sível das memórias dos tropeiros de Araguaína e região, pois Companhia das Letras, 1994.
nesses relatos estão presentes parte da história da formação
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
INTRODUÇÃO
1 Este texto é parte da monografia intitulada “Fábrica Cimba como local da forma-
ção da mão-de -obra” orientada pela professora Dra. Vera Lúcia Caixeta. Para a
realização dessa análise, foram utilizadas seis entrevistas com duas mulheres e
quatro homens, idosos, moradores de Araguaína, para contar suas histórias de
vida. Nascidos entre os anos de 1932 e meados de 1955, todos elas nasceram
na zona rural, assim como a maioria da população brasileira naquela época. As
entrevistas foram cedidas pela coordenação do Projeto Cimba, uma parceria
entre o Colegiado de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins e a
Secretaria de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de Araguaína-TO, que, durante
um ano, patrocinou seis alunos/bolsistas para fazer o levantamento e entrevistar
os antigos trabalhadores da Fábrica Cimba. O projeto foi realizado no ano de 2016.
Todos os entrevistados ficaram cientes que seus depoimentos seriam usados para
a realização de trabalhos acadêmicos e autorizaram sua utilização. Enfim, todas
as entrevistas foram gravadas e transcritas e estão no Centro de Documentação
História – CDH, da UFNT, Campus Araguaína, Unidade Cimba.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)
fábrica Dirce S/A, depois, em 1964, assumida e ampliada pelos esses aqui, o Gaúcho, né? Deu muito emprego pro povo, muita
irmãos “Boa Sorte”, Benedito e Ademar Vicente Ferreira, tendo profissão [...], mas de tudo saiu daí, soldador, eletricista, pedreiro,
funcionado até sua falência, ocorrida após o assassinato do Ademar de tudo saiu” (ERNANE, 2016).
Vicente Ferreira, em 1974. O empreendimento industrial marcou
Os antigos trabalhadores do complexo industrial dizem ter
a vida de homens e mulheres que trabalharam na fábrica ou de
ouvido várias histórias sobre os patrões. Mas, ao significar esse
gente que simplesmente morava nas suas proximidades. Além da
passado, eles valorizam a oportunidade de trabalhar e manter
fabricação de óleo e sabão de coco babaçu, o complexo industrial
suas famílias, pois, além do salário, eles compravam no armazém
contava com uma máquina de beneficiamento de arroz, oficina,
da fábrica. Então, ao mesmo tempo em que há um silenciamento
serraria e marcenaria (com cerca de 150 operários), e pessoal de
sobre acontecimentos negativos relacionados aos patrões, há os
“rua” (oito caminhoneiros e 16 ajudantes) (SILVEIRA, 2009).
que ressaltam os aspectos positivos, o fato de a fábrica formar
Enfim, a unidade fabril Cimba aparece como uma das maiores
uma mão de obra industrial.
empregadoras de mão de obra da região no período.
De acordo com seu Guilhermino, as pessoas ouviam
Para contar um pouco da história da fábrica, é preciso dizer
falar da fábrica e vinham de outros lugares “como Piauí, Pará e
que, na década de 1950, ocorreu a instalação da fábrica Dirce
Maranhão por ouvir histórias sobre o município que tinha uma
S/A na cidade de Araguaína, responsável pela fabricação de óleo
fábrica que pegava muita gente, pagava bem e ainda tinha as
extraído das amêndoas do coco babaçu. A matéria-prima é obtida
terras que podia cultivar então eu vim do São Felix do Pará”
na cidade e arredores, que contam com grandes babaçuais. Na
(GUILHERMINO, 2016). Josefa, ex-operária na estamparia da
década de 1960, a fábrica Dirce S/A passa a ser propriedade dos
fábrica, afirma que seus patrões eram os homens mais influentes
irmãos “Boa Sorte”, Benedito e Ademar, e troca de nome para
da época, assim ela relata que:
CIMBA.2 A planta fabril foi ampliada e aumentou-se o trabalho
na extração do óleo e de sabão de coco babaçu. Sobre Ademar
Vicente Ferreira, um dos testemunhos disse que ele foi um grande Naquele tempo, o mandachuva [...] eram eles,
homem, deu emprego pra muita gente. “Na época, aqui, só tinha eles eram quem dominavam a cidade. Se um
funcionário fosse preso, eles interditavam essa
rua todinha e mandavam a polícia soltar, se não
2 A cidade de Araguaína, no início da década de 1960, tinha uma área de 9.672 km2, soltassem, o negócio iria ficar feio. Mas não
com uma população estimada em 10.826 habitantes, sendo que cerca de 2.382
pessoas residiam na zona urbana e a 8.844 viviam no meio rural (IBGE, 1960). Na
ficava nada, porque eles se chegassem lá, podia
década de 1970, esse número teve um grande aumento, quando a população ser quem fosse que fosse preso por qualquer
da cidade passou a ser de 37.915 pessoas, com cerca de 17.529 no meio urbano e crime perigoso, falasse assim: “É da Boa Sorte,
20.386 no campo. Após uma década, o município já tinha uma população de 72.069
é? Então solta”. Era assim, eles tinham que soltar
habitantes, 48.024 residiam na cidade e 24.045, no meio rural. Desse modo, durante
um período de 20 anos, a cidade teve um crescimento demográfico de 665% e de (JOSEFA, 2016).
2012% de aumento no número de pessoas no meio urbano (IBGE, 1960; 1970).
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)
trabalhadores, quanto nos moradores da Rua 02 de Julho. É a sirene níveis de aplicação, de alvos; ela é ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do
que regula os horários de trabalho e descanso dos trabalhadores da poder, uma ‘tecnologia’” (FOUCAULT, 1997, p. 189).
fábrica, bem como dos moradores do seu entorno. Assim, a saudade
Como resultado dessas técnicas e práticas de poder sobre
que acalenta é a mesma que inspira e também denuncia a falta de
os corpos, fabricam-se “indivíduos úteis”. As reflexões de Fou-
preocupação com os recursos naturais de outrora.
cault permitem discernir e analisar a formação de mão de obra,
garantindo a “submissão das forças e dos corpos”, a “docilidade”
A FORMAÇÃO DO (A) OPERÁRIO (A) e a “utilidade de todos os elementos do sistema” (1997, p. 191).
Assim, a formação da disciplina implica necessariamente o
Na fábrica, havia muitos cargos de confiança e várias funções, domínio do corpo, que se reflete nos gestos, nas atitudes, na
como marceneiro, operador de máquinas, de estamparia entre postura, na escolha da melhor maneira de se fazer, de se colocar,
outras. Dentre os empregados, havia desde os adolescentes até de agir, de operar, de portar-se, de usar e canalizar as energias,
pessoas mais idosas, todos desempenhando funções de acordo de utilizar os membros para o trabalho do tipo fabril.
com a necessidade da produção. Muitos trabalhadores prestavam
Reflete-se aqui sobre o propósito dos empresários da
serviço à fábrica indiretamente, é o caso dos madeireiros que
fábrica Cimba em transformar o camponês, o artesão, o traba-
trabalhavam na exploração da madeira e das quebradeiras de coco,
lhador rural, a dona de casa, em operários industriais. Pensamos
que recolhiam e enviavam os cocos para serem processados na
nas estratégias que tornaram essas mudanças possíveis. Assim,
fábrica. Porém, o mais importante aqui é pensar na constituição
é preciso transformá-los, adaptá-los tecnicamente com novas
de uma mão de obra disciplinada.
habilidades e conhecimentos, novos valores e posturas, para que
Pelo depoimento de Dona Josefa, sabe-se que o tempo da possam aceitar a disciplina fabril. Do sucesso dessa empreitada
fábrica é regulado pela sirene. Não tivemos acesso ao regulamento dependia o bom funcionamento da fábrica, a utilização eficiente
da fábrica, nem sabemos se, de fato, existiam regras escritas, dos maquinismos e a maior produtividade dos trabalhadores.
mas, certamente, elas eram conhecidas pelos operários. Nossos
Destarte, a produção da disciplina no interior da fábrica é
entrevistados deram a entender que o trabalho na unidade fabril
fruto da ação conjunta de mecanismos espaciais, funcionais e de
era diferente do trabalho nas fazendas e em casa. Mas como for-
um sistema de penalidades e premiação. “A disciplina”, segundo
mar um trabalhador disciplinado? Nas análises de Foucault, os
Foucault (1997, p. 130) “procede em primeiro lugar à distribuição
mecanismos disciplinares são pensados como técnicas de saber
dos indivíduos no espaço. Para isto, utiliza diversas técnicas”. A
e práticas de poder. Assim, a “disciplina”, é definida como: “Um
primeira delas é a “cerca”, algo que separa o espaço físico fechado
tipo de poder, uma modalidade de exercê-lo, que comporta todo
da fábrica dos outros espaços sociais. A fábrica chama a atenção
um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de
pela organização de sua planta, pelos maquinários modernos e,
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)
especialmente, pelo número de trabalhadores. Segundo relatos de dadas pelos gerentes. Desse modo, Josefa descreve os setores e
seu Guilhermino, “De quinhentos a seiscentos, era essa base. E as seções pelas quais passou:
lá no campo trabalhando também. Não me lembro bem, sei que
era muita gente” (GUILHERMINO, 2016). De acordo com seu
A primeira era a marcenaria, depois fui para
João Mourão, a fábrica contava com diversos departamentos de
a estamparia, depois fui para a máquina que
trabalho, ele relata que: fazia óleos levinha, aquelas latas grandes. Fui
trabalhar. Fazer as latas, e depois parei de fazer
latas, eu fui pra um lugar onde o óleo passava
Ela era uma empresa madeireira, ela tinha serraria na refinaria, aquelas torneirinhas, aí botava uma
que serrava e exportava madeira para fora. Ela lata debaixo de cada litro, aí tinha uma torneira,
tinha fábrica de óleo. Ela tinha mais fábrica de arribava aquele cabo, e os óleos entravam nas
sabão, tanto o sabão de barra como em pó. E (…) latas. Quando enchia, a gente tornava puxar,
a indústria era produtiva. Ela tinha um depósito puxar pra lá. Cada um tinha uma função, um
de açúcar a granel, o açúcar era produzido em pra encher, outro pra puxar a lata, outra pra
outra cidade do Goiás e trazido pra cá, porque tampar, outros pra colocar nas caixas, sabe? Aí
aqui não tinha, eles eram também usineiros saí dali e fui pra estamparia, não fazia sabão,
(JOÃO MOURÃO, 2016). eu carimbava o sabão. Era tipo um... tipo uma
pista, mas aquela pista era uma mola por baixo
cheio de sabão, eu tinha que estar lá na frente
A madeira era vendida para a exportação “[...] produzia com o carimbo pra carimbar cada barrinha, por
móveis pra vender aqui dentro da cidade de Araguaína. Ela fazia que elas vinham um monte juntas, eu tinha que
portas e portais pra vender estocado, pra exportação. Nós fazia tam-tam-tam, sabe? Trabalhei quase um ano
cruzeta, aquelas cruzetas que bota num poste de luz, pra fora, sentada na cadeira carimbando. Aí eu troquei,
eu tava ali e me botaram na catação de arroz.
naquela época, pra Goiânia” (JOÃO MOURÃO, 2016).
Era uma carreira bem grande de madeira ao
redor assim e longe e o arroz descia assim e era
No interior da fábrica havia a divisão em seções bem
mulher por um lado e por outro, forrado de um
definidas e, nelas, a relação direta e imediata no controle e fisca- monte de saco de estopa por baixo, cada uma
lização dos chefes sobre os subordinados. Eram diversas funções com uma colher tirando aquela escolha. Por
distribuídas em vários setores como caldeiraria, refinaria, serraria, exemplo, nós três aqui, outros três ali, aquele
estamparia, saboaria, marcenaria, oficina e armazém, além do que eu não pegasse o outro já pegava, então
era cheio de mulher de um lado e do outro
setor de transportes. No interior de cada uma delas, estavam as
mocinha...trabalhei seis meses, depois saí e
seções. Os funcionários mudavam de setores ou de funções de fiquei trabalhando em um armazém, varrendo,
acordo com a necessidade da produção, tudo dependia das ordens limpando, armazém de tudo (JOSEFA, 2016).
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)
Outro mecanismo importante no processo de formação as necessidades na produção e desempenho profissional. Eles eram
disciplinar é a própria organização do setor produtivo. Como foi serventes e auxiliares dando suporte em quase todas as áreas da
referido no depoimento de dona Josefa, o espaço fabril era dividido produção. Já os motoristas, operadores das máquinas e mecânicos
em quatro setores, fabricação, oficinas, transporte e armazém, ocupavam um espaço privilegiado dentro da empresa pelas necessi-
sendo que havia, dentro deles as subdivisões, as seções, que se dades constantes de seus serviços e, especialmente, pela ausência de
assemelhavam às do modelo taylorista. A seção era formada por mais trabalhadores especializados na área. Eles eram remunerados
máquinas racionalmente dispostas, seguindo a lógica do processo de forma diferenciada: “Naquela época, o salário mínimo era cem
produtivo. A disposição das máquinas pelas seções seguia a cruzeiros, havia diferença no salário. Os profissionais ganhavam
sequência de operações que definiam as funções de cada operário, mais e quem trabalhava à noite também” (JOÃO MOURÃO, 2016).
como apareceu no depoimento. Assim, a produção da disciplina
passa a ser inerente à distribuição espacial das máquinas e ao Os trabalhadores que tinham alguma profissão já
desempenho funcional dos operários. O andamento da produção formada recebiam mais que os empregados sem
obriga a presença ininterrupta, a atenção contínua e o trabalho experiência, sabe, né? Nós trabalhávamos o dia
todo, só parava para almoçar. Com experiência
constante do operário, como ressaltou dona Josefa. Assim, sua
era bem visto na fábrica, faziam de tudo para
permanência na seção e na sua função passou a ser um requisito que nós não saísse, pois naquele tempo nem
necessário à organização da produção fabril. tinha muita gente que sabia mexer com trator,
serradeira, esses trem que tinha lá na fábrica,
Como já explicou Foucault (1997), a disciplina molda, fabrica por isso, muitos vinham de lá de bem longe de
os corpos. Nesse sentido, a execução e a repetição de tarefas simples, outras cidades (ALDOMIRO, 2016).
como carimbar o sabão de dona Josefa, durante várias horas diárias,
semana após semana, mês após mês, sem interrupção, terminaram Havia as hierarquias de funções e salários dentro da fábrica.
por moldar gestos, automatizar posturas e procedimentos. A longo Do ponto de vista da organização da produção, segmentava-se
prazo, o trabalho fabril influiu no desenvolvimento de determinados pelo grau de competência que ia das tarefas mais simples às
membros (mãos, braços, dedos) para executar com precisão sua mais complexas. Havia ainda uma assimetria determinada por
tarefa. Aos poucos, há um ajuntamento entre o corpo e a função, critérios de poder e prestígio, perceptível nas falas do seu João
determinando a melhor maneira de realizar a tarefa e a agilidade Mourão. Essas classificações implicam a questão salarial e o
para carimbar as barras de sabão. fato de apenas os chefes morarem na vila, ou seja, define-se a
posição social de cada indivíduo. Outra hierarquia era constituída
Os operários com qualificação estavam divididos pelos
pela escala de salário, a mais segmentada possível. De qualquer
setores de fabricação, transporte e oficinas; os sem qualificação
forma, a existência do salário mínimo permite a identificação
estavam presentes em todos os setores, sendo alocados conforme
dos operários e a comparação com os demais.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
possibilidades de escuta das vivências dos antigos trabalhadores Um Novo Hospital para Araguaína:
da fábrica Cimba.
a OSEGO e os avanços na área da saúde
FONTES/DEPOENTES
Aldomiro – entrevistado em 2016. Valdivina Telia Rosa de Melian
Antônio – entrevistado em2016. Mariseti Cristina Soares Lunckes
Ernane – entrevistado em2016.
Guilhermino Santos de Mesquista – entrevistado em 2016.
José Mourão – entrevistado em 2016.
Josefa Serapião (Zefinha) – entrevistada em 2016.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembrança de velhos. 2ed. São Paulo. INTRODUÇÃO
EDUSP, 1987.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1997. O campo de pesquisa sobre a história da saúde e das doenças
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 5 ed., 2003. no Brasil ganha visibilidade com a publicação, em português,
GIRALDIN, Odair (Org). A (Trans) Formação Histórica do Tocantins. Goiânia, da coletânea As doenças têm História, de Le Goff (1991). O
UFG, 2002.
avanço neste campo de pesquisa ocorre desde a década de 1970.
IBGE. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IBGE, censos demográficos: 1960,
70, 80, 91, 2000, 2007, 2010. Acesso: www.ibge.gov.br Internacionalmente, há os manifestos da Nova História, em 1974,
MACHADO, Luzia Cruz. Minhas Lembranças. Araguaína, Acalanto. 2006. tendo como precursores Jacques Le Goff (1995) e Pierre Nora
PORTELLI, Alessandro. Formas e significado na História Oral: a pesquisa (1995). Além deles, Jacques Revel (1995) e Jean-Pierre Peter
como um experimento em igualdade. Proj. História. São Paulo. 14, fev/1997. (1995) apresentaram as possibilidades do adoecer como objeto
______. O que faz a história oral diferente. Proj. História. São Paulo. 14,
de pesquisa para os historiadores, pois “a doença é quase sem-
fev/1997.
pre um elemento de desorganização e de reorganização social”.
SILVEIRA, Marcos César Borges da. Herdeiros de Sísifo: Trabalho e
trabalhadores no norte do antigo Goiás (1960-1975). Tese de doutorado, Publicada no Brasil em 1976, a trilogia História: novos problemas,
2009. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. História: novos objetos, História: novas abordagens amplia as
discussões no âmbito da história social e cultural.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
foi influenciado por Foucault, que problematiza a função do do Hospital Marechal Emílio Ribas. Políticas públicas de saúde
Hospital na organização e controle dos comportamentos sociais. são implementadas, consolidando o desenvolvimento da região
(AGRA, 2014, p. 40-53). Entre os trabalhos recentes realizados pela fixação de médicos na cidade. A problematização das fontes
sobre o tema saúde e doenças, destaca-se o livro Uma história orais construídas com base nas entrevistas com médicos, traba-
brasileira das doenças, organizado por Nascimento, Carvalho lhadores da saúde e moradores da cidade, permite apresentar
e Marques (2006), que reúne vários volumes que refletem sobre parte da história desta unidade hospitalar considerando o campo
as doenças como um fenômeno social e histórico. Relatos de de estudo econômico e da saúde. O hospital se torna local que
médicos, cronistas e literatos são evidenciados com o trabalho medicaliza e higieniza ao buscar curar o doente.
do historiador, pois ele procura dar visibilidade a esse campo de
Assim, a OSEGO de Araguaína se insere nos avanços do
pesquisa sobre a história das doenças e saúde1.
campo hospitalar da medicina moderna. A doença passa a ser
Atualmente, um grupo de historiadores da ANPUH busca, vista como um problema econômico, social e político. Novas
através de encontros regionais e nacionais, consolidar e atualizar as práticas de saúde do Estado de Goiás são institucionalizadas e
discussões sobre esse campo. Programas de pós-graduação dina- dinamizadas pela intervenção do Estado em regiões estratégicas
mizam as discussões interdisciplinares. Em 2014, a Universidade para o desenvolvimento do país.
Federal de Goiás (UFG) promoveu o 1º Colóquio sobre a História
da Saúde e Doenças em Goiás, cuja discussão se pautou nas novas
POLÍTICA, ECONOMIA E SAÚDE
perspectivas historiográficas. Dentro do contexto das colocações
acima, a pesquisa sobre a primeira unidade hospitalar de saúde
Cavalcante (1999) e Giraldin (2002) afirmam que as verbas
pública de Araguaína torna-se relevante e se insere no campo
liberadas pelo governo privilegiavam o setor agropecuário em
de discussões sobre saúde, doenças e instituições hospitalares.
detrimento do setor da saúde. Segundo Cavalcante (1999), a
Em 23 de março de 1970, a Organização de Saúde do Estado região norte, especialmente Araguaína, era contemplada ape-
de Goiás (OSEGO)2, chega a Araguaína através da ampliação nas no contexto da atividade agropastoril, o que provocou um
poder de acumulação para a cidade no setor, evidenciando que
1 Entre 2014 e 2016, o projeto História e Fontes, da pesquisadora Mariseti Cristina não havia uma política de direcionamento para o setor de saúde.
Soares Lunckes, foi direcionado aos estudos dos riscos, do corpo e das doenças
dos policiais militares do antigo norte goiano com a colaboração dos bolsistas
PIBIC Carlos Patrick dos Reis e Adriano dos Anjos Alves, no plano de trabalho No
cotidiano do trabalho policial: as enfermidades, a saúde e os riscos (1977-1987) e Corpos e hospitalar em todo o Estado. As unidades mistas de saúde foram criadas pela
degenerados, os policiais militares de baixa patente e as narrativas sobre o alcoolismo autarquia em diferentes municípios de Goiás e também eram conhecidas como
no batalhão Tocantins (1997-1987) de Carlos Patrick dos Reis. OSEGO. O Decreto-lei 3.109-A, de 28 de dezembro de 1988, autoriza, em seu Art.
2 A OSEGO foi criada em 14/11/1963 pela Lei Estadual nº 4.920. O Art. 1º definia: Autar- 1º, a OSEGO a constituir unidades administrativas da Secretaria de Estado de Goiás.
quia estadual vinculada à Secretaria do Governo do Estado, com sede em Goiânia Fontes. Legislação estadual - Secretaria de Estado da Casa Civil. (Disponível em: http://
e jurisdição em todo o Estado. Finalidade: prestar assistência médica, sanitária www.casacivil.go.gov.br/pagina/ver/5364/legislacao_. Acesso em: 18 nov. 2017).
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
De acordo com Treiger (1979) e Paiva e Teixeira (2014), saúde pertencentes ao Instituto Nacional de Previdência Social
a falta de uma política de distribuição mais igualitária dos (INPS)4 ou então deveriam procurar atendimento nos hospitais
recursos foi questionada pelo Movimento Sanitarista Brasi- filantrópicos (CAMARGO, 2002, p. 41). Faltava integração no
leiro3, objetivando mudanças nas políticas de saúde pública. Os atendimento, como também nos recursos destinados à saúde
profissionais da área elaboraram um documento intitulado Pelo entre as diversas regiões. A região Sudeste era privilegiada, pois
Direito Universal à Saúde, servindo de base para as propostas recebia os recursos hospitalares destinados pelo governo. A região
de mudanças na política de saúde pública no país que possibili- Norte, como as restantes, ficava à margem desses incentivos.
tassem o desenvolvimento social.
A cidade de Araguaína, nesse período, tinha uma sede
Paralelamente ao projeto de crescimento econômico, do INPS5 que atendia especialmente seus beneficiários, ou seja,
era necessário criar condições para o trabalhador comum ter as pessoas portadoras de carteira de trabalho assinada ou que
acesso aos serviços de saúde. Homens e mulheres saudáveis fossem dependentes de um beneficiário. A saúde não era, no
dinamizariam o processo de implantação do capitalismo e do tão contexto nacional, uma prioridade. Ela estava sempre ligada a
preconizado milagre econômico. Faz-se necessária, então, uma uma forma de interesse político, ou seja, fazia parte de um elo
política de integração das ações dos serviços de saúde pública, para desenvolver outro setor ou vice-versa. De acordo com Gas-
evitando a dicotomia entre as ações dos serviços de saúde e as par (2002, p.89), desde a metade da década de 1960, o hospital
ações dos serviços de assistência médica. Eram entendidas como público Marechal Emílio Ribas, construído em Araguaína, foi
serviços de saúde pública as atividades de vacinação e vigilância um incentivo para acalmar os movimentos separatistas da região
epidemiológica e como ações de serviços de assistência médica, Norte de Goiás e os movimentos sociais do Araguaia, apesar de
aquelas que visavam ao tratamento de pacientes com tuberculose suas instalações serem inadequadas. O hospital público Marechal
ou com hanseníase, por serem considerados graves problemas de Emílio Ribas, construído na década de 1960, com instalações
saúde pública. Esses atendimentos, na maioria das vezes, eram inadequadas, tinha quarenta leitos para atendimentos ambula-
feitos em postos de saúde. Por sua vez, os casos de pressão alta ou
outra modalidade de “mal-estar” não eram tratados nestes centros 4 Para Camargo (2002), o atendimento através de convênios começou nos anos de
1930. Nessa época, foi criado o Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAP). Mas era
de saúde, pois eram casos para a rede particular ou unidades de só para pessoas que trabalhavam e tinham carteira assinada. Cada categoria de
assalariados tinha seu IAP (bancários, marítimos etc.). Devido a essa diversidade,
houve uma fusão dos IAP, dando origem ao INPS, em 1966.
3 O Movimento Sanitarista foi conduzido por profissionais da saúde na década de 5 O INPS possibilitou o desenvolvimento do complexo médico-industrial na política
1970, organizando o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), em 1976. Seu de saúde: “A política de saúde no período de 1964 a 1974 desenvolve-se com base
objetivo era lutar pela saúde para todos. A Associação Brasileira de Pós-Graduação no privilegiamento do setor privado, articulada às tendências da política econômica
em Saúde Coletiva (ABRASCO), também fez parte do contexto de mudanças na implantada. Suas principais características foram: a extensão da cobertura previ-
saúde brasileira num período de mudanças na política do Regime Militar (LIMA e denciária, a ênfase na prática médico-curativa orientada para burocratização do
SANTANA, 2006). CEBES e ABRASCO constituíram, na época, espaços de resistência setor, a criação do complexo médico-industrial e a diferenciação do atendimento
e críticas às políticas públicas de Estado em relação à saúde (NUNES, 1985). a clientela” (BRAVO, 2004. p 27).
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
toriais, um médico militar do Batalhão Tocantins de Araguaína, de 1965, é evidente o destaque de um modelo de atenção médica
o Dr. Carlos Engelsing, sua esposa, enfermeira, e uma auxiliar principalmente curativa, especializada, de elevado nível tecno-
de enfermagem, Valdina Rocha6. lógico, dependente da ‘indústria da saúde’, e de elevado custo”7
(NUNES, 1985, p. 46).
Observa-se que o Estado busca conter os conflitos sociais
pela implementação do hospital que medica e cura o corpo A saúde na década de 70 foi administrada de forma secun-
doente, ao mesmo tempo em que busca um local de cobertura dária, tendo em vista que a política capitalista estava compro-
previdenciária com o INPS, sendo este o hospital particular D. metida com a agroindústria. Um capitalismo agroexportador era
Nélcia, do médico Túlio Neves, fundado em 1968. A Casa de prioridade para os investimentos direcionados pelo governo a
Caridade Dom Orione estava iniciando suas atividades ambu- qualquer região. Acreditava-se que o desenvolvimento econômico
latoriais, passando a ser hospital conveniado com a OSEGO traria, automaticamente, melhores condições de saúde para a
e o INPS a partir de junho de 1976. Neste período, o governo população. Em relação às politicas de saúde, o Brasil acatou as
militar faz convênios com diferentes instituições hospitalares e conclusões e resoluções da III Reunião de Ministros da Saúde
financia, através do INPS, a construção de hospitais privados, das Américas, que sugeria a adoção da regionalização e integra-
visando aumentar a oferta de leitos hospitalares para atender os ção dos serviços de saúde, uma vez que o país apresentou um
trabalhadores da previdência social e estender os atendimentos planejamento econômico, mas não tinha um planejamento social
aos trabalhadores rurais (SARRETA, 2009, p. 146). Um governo para as especificidades regionais no que se refere à problemática
que busca legitimidade para as suas práticas ditatoriais na asso- da saúde (MOTA, 1979, p. 07).
ciação da previdência com a saúde e a educação, aliada à par-
Houve um avanço nas discussões sobre a saúde preven-
ticipação da iniciativa privada. Um modelo de saúde curativa e
tiva pela criação da Superintendência de Campanhas de Saúde
especializada, aos modos da indústria da saúde e do capitalismo
Pública (SUCAM)8. Campanhas preventivas foram difundidas
monopolista. Um modelo de saúde criticado pelos defensores
da medicina preventiva, pública e social e não das práticas do
7 Com a reforma universitária de 1968, ocorreram críticas às práticas de saúde do
“médico hegemônico” (NUNES, 1985). “modelo médico hegemônico” e saúde curativa. Ampliam-se as discussões sobre
saúde preventiva pública e social (NUNES, 1994, p. 5-21). Observa-se que, em Ara-
Sarreta (2009), ao citar Nunes (1985), escreve que as guaína, o modelo médico hegemônico prevalece com a ampliação de hospitais.
“Nos anos de 1970, essa política enfrenta permanentes conflitos entre os interesses
abordagens fenomenológicas da década de 1970 ampliaram os antagônicos apontados pelo setor estatal, empresarial e a própria emergência do
movimento social da saúde: o movimento sanitário” (SANTOS, 213, p. 235).
estudos no campo da saúde, especialmente a relação do médico
8 Em 1970, o Ministério da Saúde criou a Superintendência de Campanhas de Saúde
com os demais profissionais e o papel dos hospitais. “A partir Pública (SUCAM) e deu início a diversas campanhas: de Erradicação da Malária, de
Controle de Doenças de Chagas, de Controle da Peste e de Controle de Filarioses.
Estas campanhas foram executadas pela SUCAM, sendo uma iniciativa de saúde
6 A Srª. Valdina Alves Rocha veio do Estado de Mato Grosso juntamente com sua preventiva direcionada para a região Amazônica. A SUCAM, quando da criação,
família e trabalhou na Associação PROVIDA. absorveu o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNER), criado em 1941,
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
principalmente na região norte. Segundo Oliveira (2005)9, as sença do Estado e da ordem na cidade. Os pistoleiros deviam ser
campanhas desenvolvidas pela SUCAM eram bem divulgadas combatidos com investimentos também em segurança pública.
na cidade de Araguaína e bem recebidas pela população por ser O Estado cria estratégias para a chegada e consolidação das
esta uma região endêmica de febre amarela, doença de chagas e, medidas econômicas e permanência de médicos na cidade, assim
sobretudo, malária. Como hospital público, a OSEGO se inseria como de outras pessoas e instituições.10.
no atendimento das doenças endêmicas do norte de Goiás, da
A atividade que mais se destacava na cidade era o comércio.
região sudeste do Pará e do sul do Maranhão.
Carmelita do Carmo (2005)11, moradora da cidade e comerciante,
As citadas campanhas eram realizadas de forma criteriosa. salienta o quanto se fazia necessária uma política de saúde pública
O controle era rigoroso. De seis em seis meses, eram feitas eficaz. Segundo a depoente, todos os seus filhos nasceram de
borrifações nas casas. Das pessoas com sintomas de febre, dor parto natural, com a colaboração da enfermeira Vanda Teixeira
de cabeça e frio, os “guardas” da SUCAM colhiam o sangue Vale12. Relatou que muitas pessoas, vítimas de acidentes, malária
na lâmina e enviavam para o laboratório, que ficava na sede da e febre amarela morriam por falta de atendimento. Ressaltou
SUCAM, em Tocantinópolis. O resultado era entregue no prazo ainda que, com a criação da primeira unidade de saúde mista,
de trinta dias. Se fosse positivo, os medicamentos eram gratuitos, a OSEGO, a cidade ganhou mais credibilidade e se expandiu.
e o paciente era acompanhado pelos servidores da SUCAM até Com a melhora do sistema de saúde, os investidores começaram
receber alta. Afirma Oliveira (2005) que a SUCAM disponibili- a direcionar seus recursos para o comércio e também para as
zou muita gente para fazer as campanhas na região Norte, tendo áreas rurais, fazendo da cidade um polo econômico.
como foco o combate à malária, o que possibilitava um processo
Segundo Lemos (2005), na década de 70, com a instalação
de ocupação populacional da região de forma mais efetiva.
da Unidade de Saúde Mista (OSEGO), o hospital Marechal Emí-
Segundo Peixoto (2005), para Araguaína, todos vinham lio Ribas foi reestruturado. Até então contava com 40 leitos de
com o objetivo de ascensão, especialmente os que queriam a
posse da terra. Havia também os pistoleiros, que representavam 10 Influenciado pelo regime militar, sob o comando do Exército Brasileiro, a partir
um entrave para a vinda dos médicos. A ênfase dada às práticas de 1968 a organização do Batalhão Tocantins de polícia militar foi importante
para a construção do espaço social do norte goiano. As redes de “micropoderes”
de pistolagem constrói argumentos para a necessidade e a pre- instaladas no interior da corporação militar atingiram as pequenas comunidades
com suas normas disciplinares, repressão e vigilância para a imposição da ordem
e do projeto de nação na região (ver resultado do projeto PIBIC A influência do
e a Campanha de Erradicação e Controle da Malária (CCEM), criada em 1958. Em Regime Militar e do Exército Brasileiro no interior do Batalhão Tocantins do norte
1991, foi criada a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que absorveu a SUCAM goiano (1968-1970) disponível na biblioteca da UFNT, Campus Araguaína.
e os demais programas de saúde existentes na época. (MOTA, 1979, p. 69). 11 Comerciante desde a década de 60. Proprietária do estabelecimento comercial
9 Enoque Gonzaga Oliveira é ex-servidor da SUCAM, que trabalhou em Araguaína Armazém Presidente.
na década de 70 e, atualmente, está lotado no Centro de Controle de Zoonoses 12 Primeira enfermeira de Araguaína, trazida pela 1ª Igreja Batista na década de 70.
(CCZ) da mesma cidade. Atualmente reside em Palmas-TO.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
agropecuária. Araguaína sempre foi autônoma, só deixava a do saber médico com o poder político para a dinamização e
desejar no que se referia à saúde. Por isso, os próprios médicos implantação de um projeto de saúde que atendesse a exigências
faziam doações para manter a OSEGO funcionando. de uma região que entrava em contato com as transformações
oriundas do capitalismo moderno.
É o saber médico coordenando as ações sociais na comu-
nidade, ajudando a construir um novo espaço social, tendo como Segundo Cavalcante (1999), o crescimento econômico
objetivo a continuação da OSEGO, pois acreditava-se que era um também chegou a Araguaína, mas foi direcionado para a
projeto dinamizador para a saúde. Assis ressaltou também que o agropecuária, concentrando recursos em detrimento do setor
Hospital Dona Nélcia teve importante participação na história da da saúde. Dentro desse contexto, percebe-se uma contradição
saúde de Araguaína, mesmo sendo privado. Para ele, o hospital nas medidas políticas desenvolvidas no Brasil, especialmente
D. Nélcia “foi o coirmão da OSEGO”, até que, com a criação do em Araguaína. Como cidade polo regional, crescia no plano
Estado do Tocantins, em 1988, houve a fusão dos dois hospitais, econômico, mas as políticas públicas de saúde eram incipien-
dando origem ao Hospital de Referência de Araguaína. tes. Para a autora,
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína
a serviço dos interesses políticos e econômicos na região que, na BRASIL, Diário do Congresso Nacional, (Seção I), Ano XXX, nº 129, de 9 de
outubro de 1976, p10199-10200 e
maioria das vezes, não atende a população, que fica à margem deste
CAMARGO JR.; Kenneth Roche de; MATTOS, Ruben Araújo de. Políticas de
processo de modernização econômico e da saúde em Araguaína. O
saúde no Brasil Ministério da Saúde. GESTHOS – Gestão Hospitalar:
saber médico é relevante, pois coloca um profissional como trans- Capacitação a Distância em Administração Hospitalar para Pequenos e Médios
formador do espaço social, principalmente no interior do Brasil. Estabelecimentos de Saúde. Módulo I: Os Sistemas de Saúde e as
Organizações Assistenciais. Brasília: Ministério da Saúde, 2002.
Uma cidade em expansão, que conta com a “intervenção” do saber
CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. Tocantins: o movimento
médico, tende a se modernizar e, com isso, atrai mais investidores separatista do norte de Goiás: 1821-1988. Goiânia: UCG, 1999.
e novos moradores, o que, na época, era o que mais interessava a CHAUL, Nasr Nagib Fayad. Caminhos de Goiás: da construção da decadência
Araguaína, que já despontava como cidade polo. aos limites da modernidade.2 ed. Goiânia:UFG,2002.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados
das mulheres presbiterianas na cidade de Araguaína, TO. Ao reverendo Ashbel Green Simonton, na cidade do Rio de Janeiro,
apresentar as atividades que desenvolviam na igreja, esperamos ainda em 1859. Simonton foi enviado ao Brasil pela Junta de
contribuir para fazer emergir não as mulheres silenciadas, mas Missões Estrangeiras, dos Estados Unidos. Este clérigo atuava
as que buscam ser ouvidas e chamadas a participar no interior principalmente como vendedor de Bíblias. Em 12 de janeiro de
do campo protestante. As mulheres presbiterianas exercem 1862, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana no Brasil, no Rio
diversas atividades dentro e fora da Igreja. Essas atividades não de Janeiro. (MENDONÇA, 1984). Fator que em muito contribuiu
estão limitadas ao campo religioso - muito pelo contrário, estão para a expansão do presbiterianismo no Brasil foi a instalação de
inseridas nos demais aspectos da sociedade, ou seja, no social, uma missão da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos,
no político e no cultural. Mesmo que recentemente os estudos na cidade de Campinas – SP. Essa missão deu total assistência
de natureza histórica tenham se voltado para a temática, perce- religiosa aos imigrantes confederados, estabelecidos na cidade de
be-se que a participação da mulher no protestantismo brasileiro Santa Bárbara – SP, desde meados da década de 1860. Do final
é pouco estudada. do século XIX até a primeira metade do século XX, os presbi-
terianos espalharam igrejas e escolas em várias regiões do País.
Nosso objetivo aqui é compreender o papel e as ações
que as mulheres presbiterianas desenvolveram durante os seus Para organizar as atividades femininas presbiterianas no
dez primeiros anos de organização societária em Araguaína. Brasil foi criada, em 11 de novembro de 1884, em Recife, PE, a
Esperamos que as informações aqui apresentadas possibilitem primeira Sociedade Auxiliadora Feminina, SAF, cuja finalidade
novas investigações e abordagens sobre os trabalhos sociais era “realizar estudos bíblicos e arrecadar fundos para auxiliar
desenvolvidos pelas mulheres do campo protestantes. pessoas carentes e a Igreja” (Revista SAF em Revista, ano 47,
2001). Entendemos a forma associativa das presbiterianas como o
embrião de práticas de empoderamento das mulheres protestantes
AÇÕES RELIGIOSAS FEMININAS PRESBITERIANAS
no Brasil. Segundo Guerrero, o conceito de empoderamento se
trata de “mecanismo pelo qual as pessoas e as coletividades vão
Para compreendermos melhor a história da mulher na Igreja
progressivamente tomando controle de seus próprios assuntos,
Presbiteriana em Araguaína, é necessário nos reportarmos a his-
de sua vida e seu destino”. As mulheres presbiterianas ousaram,
tória do presbiterianismo. A Igreja Presbiteriana surgiu no século
ainda nos anos finais do século XIX, ter o controle de suas prá-
XVI, em consequência das reformas religiosas propostas por João
ticas em uma sociedade na qual os papéis femininos ainda esta-
Calvino em Genebra, na Suíça. Da Suíça, a Igreja Presbiteriana
vam restritos ao espaço doméstico. As mulheres presbiterianas
espalhou-se pelos Países Baixos, França, Escócia e Inglaterra.
acreditavam que uma das maneiras de valorizarem as mulheres
No Brasil, o presbiterianismo fincou suas raízes somente como um todo seria atuando na defesa da sua dignidade, o que
na segunda metade do século XIX, por meio das atividades do as tiraria do anonimato, do esquecimento.
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fortalecer suas igrejas quanto pela possibilidade que franqueavam cidas como obreiras e trabalhadoras, recebendo uma infinidade de
no sentido de dar visibilidade à participação feminina em uma homenagens, elas correm o risco de, ao se escrever a história do
sociedade cujos poderes sociais se concentravam nos homens. protestantismo, caírem no esquecimento.
Para Louro (2001), quando as mulheres assumiram a condição de
Todavia, a mulher sempre participa ativamente na Igreja.
professoras, no final do século XIX, fizeram isso numa batalha
A partir da organização das primeiras igrejas presbiterianas, o
de duas frentes: uma para se definirem e outra contra a defini-
trabalho feminino foi criando consistência e se consolidando como
ção dos homens sobre elas. A representação dos homens sobre
sociedades auxiliadoras, cujos objetivos principais eram, entre
as mulheres, mesmo sobre aquelas que começavam a disputar
tantos, a educação espiritual, a ação social e a evangelização.
as profissões até sob o mando masculino, não diferia muito do
que compreendiam ser o papel feminino na esfera doméstica. A Ao percorrermos a história das mulheres presbiterianas,
representação masculina sobre as mulheres professoras como no âmbito nacional, constatamos que, de 1884 a 1940, as suas
extensão da maternidade seria uma das definições a ser combatida organizações chamavam-se apenas Sociedades de Senhoras.
pelas mulheres educadoras do protestantismo. Somente a partir de 1941 é que houve a mudança de nome para
Sociedades Auxiliadoras Femininas. Isso ocorreu visando alcançar
a participação das moças, que com sua juventude e dinamismo,
A SOCIEDADE FEMININA AUXILIADORA
PRESBITERIANA EM ARAGUAÍNA
muito poderiam contribuir para o crescimento da Igreja.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados
pobres e necessitados, visitar os enfermos, ajudar no desenvol- Nos períodos de festas, as mulheres se prontificavam para o
vimento da igreja e ensinar as mães a cuidar da família e do lar”. serviço filantrópicos, sempre seguido de uma atividade religiosa.
As atividades mais recorrentes da SAF em Araguaína, nos dez Em 1968, elas se prepararam para o socorro aos necessitados,
anos iniciais, deram-se no campo de evangelização, no auxílio novamente nos festejos natalinos, decidindo “ajudar algumas
aos necessitados, na organização de ‘cultos do bebê’. O trabalho pessoas pobres no natal com roupas, usando o dinheiro em caixa,
filantrópico realizados pelas mulheres sempre foi uma marca com a ajuda das pessoas que tivessem o desejo de cooperarem”
das presbiterianas em Araguaína. Percebemos que elas tencio- (ATA DA SAF, nº 28, de 25.10.1968).
navam seguir os passos das grandes personagens femininas do
Outro trabalho realizado constantemente pela SAF em
cristianismo. Segundo Reily, as mulheres “cristãs efetivamente
Araguaína foi a organização de bazares para venda de roupas
participaram da obra essencialmente apostólica, a de testemunhar
e calçados usados, com o intuito de proporcionarem oportuni-
e de plantar igrejas. O autor lembra de “[...] Dorcas que, cheia de
dades de compra por pessoas carentes, pois os produtos eram
boas obras e esmolas deitou as bases da evangelização de Jope”
“vendidos por um preço simbólico”. (ATA DA SAF nº32,
e de Lídia, que de “vendedora de perfume, tornou-se centro de
27.02.1969).
irradiação do evangelho em Filipos”. (1997. p. 80).
Dessa forma, as mulheres presbiterianas contribuíram, em
Fiéis a esses princípios, as mulheres presbiterianas busca-
muito, para o desenvolvimento da igreja na cidade. Quando elas
ram praticar as heranças da filantropia, legadas pelas heroínas
se colocaram a serviço da igreja em obras consideradas “sociais”,
do cristianismo. Entre as práticas filantrópicas estavam as visitas
estavam, na verdade, incorporando a tese de que todos devem
aos encarcerados. (ATA DA SAF, nº 18, 27.11.1967). Da mesma
se ajudar mutuamente, um dos preceitos bíblicos basilares para
forma, as atividades socorro às pessoas carentes estavam sempre
o cristianismo.
na mira das mulheres presbiterianas em Araguaína:
Se as mulheres atuam tanto em prol da igreja, uma ques-
tão que se coloca a quem tenta narrar a sua história: elas são
[...] em sessão ordinária sob a Presidência de
reconhecidas pelos trabalhos que desenvolvem, principalmente
D. Faustina Reis, no templo, às dez horas e
dez minutos do dia sete de dezembro de mil
em suas igrejas de convívio? Para Duncan Reily, as atividades
novecentos e sessenta e nove (…) foi resolvido realizadas por mulheres, durante muito tempo, foram vistas com
usar o dinheiro em caixa para comprar alimentos desconfiança. Elas tiveram que lutar muito para exercerem os
para serem doados a algumas famílias carentes, ministérios que almejavam:
por ocasião do natal, e que no momento da
entrega fosse realizado um culto (ATA DA SAF
nº 41, 07.12.1969).
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados
Na maioria das vezes, os ministérios femininos e disse: Deixa-me beber um pouco da água do
não foram reconhecidos, foram contestados seu cântaro. E ela respondeu: Bebe, meu senhor.
e proibidos, mas as mulheres já portavam a Então com presteza abaixou o seu cântaro sobre
suspeita de que isso não era certo, desconfiavam a mão e deu-lhe de beber (BÍBLIA SAGRADA.
e agiam, na busca de uma forma através da Gênesis 24: 16 a 18; ATAS DA SAF, 1966-1976)
qual pudessem cumprir a vocação a que foram
chamadas” (1997, p. 09).
Outro texto bíblico muito utilizado era o referente à sunamita
que se preocupava em ser hospitaleira para ajudar um profeta:
Os espaços de reconhecimento das atividades das pres-
“Construamos um pequeno quarto no alto e coloquemos ali uma
biterianas ainda estão em construção, o que não as impedem
cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada. Assim poderá se
de se desdobrem para cumprirem os papéis para os quais estão
hospedar ali quando ele vier nos visitar” (BÍBLIA SAGRADA.
capacitadas. Uma outra questão que fica para quem analisa as
II Reis 4: 10, ATAS DA SAF, 1966-1976).
ações femininas em igrejas protestantes: quais são os referenciais
bíblicos, teológicos ou culturais que norteiam tais práticas? No A partir dos exemplos bíblicos, as mulheres presbiterianas
que se refere a participação da mulher no presbiterianismo, é realizavam atividades que atendiam as pessoas em todas as suas
fácil constatarmos a presença, no imaginário coletivo, as repre- as necessidades, usando seu potencial criativo para descobrir em
sentações das grandes personagens femininas da Bíblia Sagrada. cada situação uma oportunidade de prestar serviço igreja que
As narrativas bíblicas das ações de profetizas, de rainhas, de pertenciam. As mulheres presbiterianas da SAF gostavam de dizer
mulheres do povo, definem a manifestação das atitudes de ordem que tinham consciência que nem idade, nem condição financeira
moral e comportamental. Nas atividades religiosas e filantrópicas, e nem nível intelectual impediam o trabalho que desenvolviam.
emergem toda a moralidade dos exemplos bíblicos. Nesse sentido, Podemos afirmar que os princípios bíblicos conferiam a essas
o exemplo de Rebeca, que demonstrou presteza em ajudar um ações um caráter identitário.
estranho, oferecendo água para aliviar o cansaço da viagem, é
Uma das formas de Igreja Presbiteriana de Araguaína reco-
muito utilizado nas reuniões de mulheres. O texto abaixo era
nhecer as atividades realizadas pelas mulheres é a prestação de
lido como inspiração introdutória das reuniões que analisamos.
homenagem. Na comemoração do Dia da Mulher Presbiteriana,
que vem sendo comemorado desde 1941, o Boletim Dominical,
A moça era muito atraente, virgem, a quem de fevereiro, de 2009, publicou a seguinte texto:
homem algum havia conhecido intimamente.
Ela desceu à fonte, encheu o seu cântaro e subiu
de volta. Então o servo correu-lhe ao encontro
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Lavadeiras de Roupas do Riacho
“Baixa Funda” em Araguaína-TO
INTRODUÇÃO
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No primeiro momento da pesquisa foram mapeadas algumas parece fundamental para entender o presente”. Ademais, “o
lavadeiras da “Baixa Funda”. Depois do contato inicial, foram relato pessoal não apenas como exclusivo de seu autor, mas
marcadas as entrevistas, estas foram realizadas nas casas das capaz de transmitir experiências coletivas” (ALBERTI, 2008,
participantes a partir de um roteiro previamente elaborado que p. 163). Assim, “a história oral é hoje um caminho interes-
procurava dar conta da trajetória de vida das mulheres relaciona- sante para conhecer e registrar múltiplas possibilidades que
das à profissão de lavadeira. Depois de gravadas, as entrevistas se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de
foram transcritas e analisadas. diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade”
(ALBERTI, 2008, p. 164).
Para a elaboração e análise das entrevistas, recorremos
aos autores da história oral. Alessandro Portelli (1997) ressalta O estímulo para a pesquisa adveio também da necessi-
a importância das fontes orais para o conhecimento histórico. dade de elaboração de uma visão e prática condizentes com
Para ele, ela possibilita ter informações dos povos iletrados e a inserção das mulheres como sujeitos históricos, rompendo
também dos grupos sociais cuja história escrita é ou falha ou com relações tradicionais do gênero e de raça. A crítica à
distorcida. De fato, a história oral dá vida às histórias não ofi- epistemologia eurocentrada intensificou-se a partir da criação
ciais. Michel Pollack (1992, p. 2) sublinha que os “elementos do grupo modernidade/colonialidade que pensa o processo de
constituídos da memória individual ou coletiva são em primeiro incorporação forçada da América Latina no sistema do mundo
lugar, os ‘acontecimentos’ vividos pessoalmente, e em segundo, capitalista. Como sublinha Enrique Dussel (1999), o decolonial
os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade”. De implica uma nova compreensão das relações globais, no qual a
fato, ouvir as lavadeiras nos impeliu a refletir sobre as histórias modernidade ocidental eurocêntrica, o capitalismo mundial e
negadas, a invisibilidade das mulheres pobres e trabalhadoras o colonialismo são uma trilogia inseparável. Desde essa visão
na história local. Foi por meio dessa metodologia que ousamos eurocêntrica, a modernidade ocidental é assumida como mito
romper com os “silêncios” da história e das lutas específicas das que definiu a superioridade dos europeus sobre os outros con-
mulheres lavadeiras de roupas. siderados bárbaros.
Além de ressaltar o caráter dialógico da metodologia Para o peruano Aníbal Quijano (2015), o padrão de poder
da história oral, os autores ressaltam a capacidade da escuta, capitalista eurocentrado estruturou-se “em relações de domi-
do encontro com o outro, de “vivenciar outras experiências” nação, exploração e conflito na disputa pelo controle de quatro
(ALBERTI, 2004, p. 18). Porém, a memória é um processo âmbitos da existência humana, a saber: trabalho, autoridade
ativo de criação de significações (PORTELLI, 1997, p. 33), coletiva, subjetividade e intersubjetividade, sexo, seus recursos
que parece ter uma função explícita. De acordo com Ferreira e produtos” (COSTARD, 2017, p. 165). Assim, a colonialidade
(2006, p. 201), “estudar o que é esquecido e o que é lembrado do poder se inscreve na esfera do controle de todos os âmbitos
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
da existência humana. Ela inventa e introduz a classificação da moderno colonial do gênero como uma lente para aprofundar
população em termos de raça, reposiciona relações de inferiori- a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial. Ela
dade e superioridade, desumaniza parte dela. também questiona a lógica da colonialidade do saber que provoca
a exclusão, negação e subalternização epistemológica-cognitiva
A partir das reflexões de Quijano, compreende-se que o
dos sujeitos e organizações sociais que têm historicamente resis-
padrão mundial se sustentou na ideia de raça, que impulsionou uma
tido à modernidade capitalista e estão em tensão com essa lógica
classificação racial/étnica. Essa classificação colocou em situação
(LUGONES, 2014). Segundo ela, esses sujeitos e organizações
de inferioridade os povos conquistados e dominados, seus traços
pré-modernas ou “tradicionais” possuem “conhecimentos, rela-
fenotípicos, suas descobertas mentais e culturais, além de seus sis-
ções, valores, práticas ecológicas, econômicas e espirituais são
temas de conhecimento (QUIJANO, 2015). María Lugones (2008),
logicamente constituídas em oposição a uma lógica dicotômica,
embora acolha parte da proposta de Quijano sobre a colonialidade,
hierárquica, ‘categorial’” (LUGONES, 2014, p. 936).
aponta que a raça não é o único determinante da configuração da
colonialidade do poder, mas também o gênero, portanto, a hete- A referida teórica feminista chama a atenção para a
rossexualidade. Ela critica a interpretação de Quijano sobre o sexo necessidade de recuperar as experiências das mulheres afetadas
super biologizado, binário e heterossexual e o gênero, a que se refere, pelo racismo, pelo classicismo, pela heterossexualidade e pela
tem a ver com um tipo de relacionamento humano reservado ao geopolítica. Trata-se de pensar uma epistemologia e uma meto-
homem branco europeu possuidor de direitos e a sua companheira, dologia feminista que questiona a lógica masculina da ciência
que serve ao propósito de sua reprodução como espécie. Nesse (CURIEL, 2018, p. 42). Nesse sentido, a raça, o gênero, a classe,
sentido, Quijano teria partido de uma suposta superioridade dos etc, são “constitutivos da episteme moderna colonial, não são
homens sobre as mulheres pressupondo uma distribuição patriarcal simples eixos de diferença, mas são diferenciações produzidas
do poder, ou seja, marcada pelas relações eurocêntricas. Ora, para pelas opressões imbrincadas que o sistema colonial moderno
Lugones “a modernidade organiza o mundo ontologicamente em produziu” (CURIEL, 2018, p. 45).
termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis” (LUGO-
Faz-se necessário reescrever a história a partir das trajetórias
NES, 2014, p. 935). Nesse sentido, tanto a raça quanto o gênero
silenciadas, das subjetividades reprimidas e dos conhecimentos
e a classe são produtos do capitalismo, foram inventados juntos
negados. Essas novas perspectivas vão fraturando as posições
(COSTARD, 2017, p. 166). Assim, “A colonialidade do poder, do
eurocêntricas ao garantir visibilidade social e acadêmica para
ser e do conhecimento, portanto, é o lado sombrio da modernidade”
novos sujeitos e seus saberes. O poeta popular Gesilvaldo de
(CURIEL, 2018, p. 40).
Sousa Oliveira, morador do Bairro Santa Terezinha escreveu
Para Lugones (2014, p. 935): “ver mulheres não brancas um poema que revela a experiência, a opressão e a resistência
é ir além da lógica ‘categorial”’. Por isso, ela propõe o sistema das mulheres lavadeiras.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
No poema, ele responsabiliza o poder público pela explo- das pessoas com a “beira”. Assim, a partir da beira “Baixa
ração, exclusão social, destruição do córrego da Baixa Funda e Funda”, ele cria várias imagens associativas com a “beira do
pelo apagamento das memórias das lavadeiras. Além disso, ele abismo”, “beira da morte”, “beira da baixa estima”, “beira
denuncia a manipulação dos moradores, pelo poder público, com d’água farofa”, beira “da baixa memória”, “beira da desapro-
cesta básica ao mesmo tempo em que, cinicamente, compactua priação”, “beira do baixo nível”, “beira da baixa consciência”,
com os empresários que jogam esgoto na água e se apropriam todas essas imagens negativas das “beiras” são utilizadas para
das terras e destroem as nascentes sem considerar as pessoas e revelar a profunda exclusão social daqueles que são desuma-
os modos de vida do lugar: nizados pelo sistema. Trata-se de um grito, de uma denúncia
da comunidade que resiste frente a todos os demando locais.
Porém, a resistência passa não só pela denúncia, mas também
Na beira da baixa da égua marginalizados e
pelo não esquecimento dos sujeitos como Dona Maria da “Baixa
excluídos, medida sem régua na beira do abismo,
moradores, alagamentos, cesta básica, cinismo Funda”, a lavadeira mais famosa do lugar.
na beira da baixa renda, eternos analfabetos
braçais, realidade? Ou lenda? Na beira da morte
sobrevivência, obstáculo, equilíbrio, sorte; na beira MULHERES LAVADEIRAS DA “BAIXA FUNDA”
da baixa estima pais de famílias desempregados,
enchem a cara de pinga, na beira d’água farofa, As lavadeiras ainda estão ausentes da história da cidade. Ara-
trouxa, cacete, roupa suja, cagada; na beira
guaína está situada em uma área territorial de 4.000,416 km²,
da baixa memória esqueceram dona Maria
lavadeira, personagem central dessa história; possui uma população estimada de quase 180.000 habitantes,
na beira da estrada desapropriação, área de é a segunda maior cidade do Tocantins (IBGE/ Cidades 2020).
risco, grilagem de terra, cilada; na beira do Com 64 anos de existência, é um polo dos setores comerciais,
baixo nível, promessas de melhorias, situação hospitalar e educacional da região. Há mais de 30 anos que
pior é impossível; na beira da baixa consciência,
jogaram esgoto na água, destruíram a mata, e
a cidade conta com os cursos de Licenciatura em História e
queimaram o capim; na beira da Baixa Funda, Geografia. Porém, ainda é uma cidade carente do seu passado.
lá em casa não tem água em abundância, mas, Como se sabe, o passado é sempre disputado através das nar-
aqui abunda. (GESIVALDO DE SOUSA OLIVEIRA, rativas para dar significado e direção para os grupos sociais
artista e poeta local, sem data).
no presente.
Ao denunciar a situação de expropriação dos bens No artigo sobre as lavadeiras baianas intitulado Lavadeiras
comuns, como o acesso ao riacho, o poeta revela parte das de roupa do Rio: geografia humanística e memória, a autora
subjetividades subalternas. Ele estabelece importante relação Nádia Sampaio (2013) discute a importância da relação das
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
lavadeiras de roupa com o ambiente do rio. Nessa pesquisa, as “MINHA MÃE LAVAVA ROUPA NA BAIXA FUNDA”
mulheres ressaltam o rio como um lugar cheio de significados
e memórias, elas defendem que o rio deve ser preservado não Minha mãe lavava
apenas pelo aspecto ecológico, mas pela relação de identidade. roupa na Baixa Funda
e ela tinha o córrego
Ou seja, o espaço não se constitui apenas como um ambiente não só como um ganha
físico, mas como algo que carrega em si “signos” que lhe são pão, mas como espaço
atribuídos. Ademais, ao recordar o modo de vida e a maneira de lazer, pois era o lugar
que colocavam a fofoca
de se comportar, agir, viver em comunidade, permite-se o em dias, riam, tomavam
desenvolvimento de uma “memória coletiva” que é relembrada, banho e brincavam. A
vivenciada e contada, a fim de que essa memória social das lava- gente fica triste em saber
que isso não existe mais.
deiras não seja esquecida, apagada e invisibilizada da história Choro, pois lembro que
(SAMPAIO, 2013). a Baixa Funda era o
lugar que eu e meus seis
Sampaio (2013) buscou perceber os significados que as irmãos íamos.
pessoas atribuem aos espaços em que estão inseridas e como (ÂNGELA MARIA DA
SILVA, 2020).
percebem os objetos que as cercam. Sendo assim, o rio, além
de espaço físico, é também simbólico, a relação com ele marca
As narrativas da Ângela são movidas pela razão e pelo
a vida das pessoas e das comunidades ribeirinhas. De certo, o
afeto, pelo conhecimento e também pela intuição. É a partir do seu
artigo, ao ressaltar a relação das pessoas com os lugares, nos fez
próprio olhar, que a narradora revela, com sentimentos, emoções
pensar nas lavadeiras da “Baixa Funda” em Araguaína-TO. Atual-
e razão, o passado de lavadeira da sua mãe e dela própria: “Minha
mente, com o crescimento desordenado dos espaços urbanos da
mãe lavava roupa na Baixa Funda”, ela era uma lavadeira, tinha
cidade, ocorre o avanço do desmatamento dos afluentes que dão
uma profissão que exigia trabalhar fora de casa, lá na beira do
origem às nascentes e, por isso, têm-se perdido muitos riachos
riacho, daquela atividade ela retirava a subsistência da família, o
que eram de suma importância para as pessoas que tinham suas
“ganhão pão”. Esse “saber fazer”, geralmente pouco valorizado,
vidas ligadas a esses espaços. Então, esses “lugares de memó-
exigia conhecimentos específicos sobre essa arte passados de
ria” não são apenas espaços físicos, mas locais de preservação
geração a geração e constantemente atualizados ali, na beira da
de costumes, de tradições e de identidades, hoje transformados
Baixa Funda, no contato e cooperação entre as mulheres.
pelas obras de concreto para viabilizar o tráfego de automóveis
e a especulação imobiliária. Para Ângela, o ofício de lavar roupas incluía trabalho para
a mãe e lazer para os filhos. Já que a mãe lavadeira levava as
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
Minha mãe chamava Maria Dedisse Fernandes eu me lembro dela direitinho o rosto dela era
Araújo ela faleceu em 2014 ela era baixinha, bem magro, bem sofrido a casa dela não foi ela
morena clara, parda né!? Criou cinco filhos lavando que construiu foram às irmãs da creche Nossa
roupa, era separada. Lavava e passava agente Senhora do Perpétuo Socorro, antes não tinha
trazia da casa das pessoas na cabeça, lavava a creche tinha era a casa das irmãs foram elas
e secava depois entregava. Ela criou todos os que construíram a casa da Maria “Baixa Funda”
filhos lavando roupa na Baixa Funda. Eu desde (MARIA DA GUIA OLIVEIRA DIAS, entrevista
pequena com sete anos, comecei a ajudar ela, oral, 2020).
até quando eu me casei em 1989 minha mãe
ainda lavava roupa. (VITÓRIA RÉGIA FERNANDES
Várias eram as mulheres lavadeiras da “Barra Funda”
ARAÚJO, entrevista oral, 2020).
entre elas estavam dona Dedisse, dona Deusdite, dona Tina
e dona Maria e Maria “Baixa Funda”. Todos esses nomes de
Maria da Guia Oliveira Dias ressalta que as lavadeiras lavadeiras são importantes, elas não devem ser alvo da amnésia
pegavam as roupas sujas das casas, faziam uma trouxa com um social porque ocuparam importante função social, longe dos
lençol, colocavam na cabeça e desciam para o riacho. O valor estereótipos de mulher frágil, reclusa no espaço doméstico,
pago pela trouxa de roupa limpa era baixo, então, as mulheres dependente dos maridos e/ou companheiros. Todas trabalhavam
tinham que lavar muitas trouxas para garantir o alimento na muito e ganhavam pouco.
mesa. Porém, ela ressalta que existiu uma lavadeira negra,
pobre, mãe solteira que trabalhava todos os dias da semana, ela Ao que parece, Maria “Baixa Funda” representa a maioria
parece representar todas as Marias lavadeiras da Baixa Funda. das mulheres lavadeiras de roupas do lugar. Todas mulheres, a
Nesse sentido, maioria pretas, analfabetas e com muitos filhos. Elas eram mulhe-
res que viviam nas tantas beiras que o poeta ressaltou. Porém,
apesar das enormes dificuldades, elas alimentavam o sonho de
Existia uma mulher que lavava roupas todos criar bem os filhos e garantir-lhes um futuro. Como disse uma das
os dias, então foi apelidada de Maria “Baixa
nossas colaboradoras, filha de lavadeira: “Ela criou todos os filhos
Funda”, ela era uma mulher preta, de estatura
baixa e tinha 4 filhos e não era casada. Quando lavando roupa na Baixa Funda.” Para além de colocar o alimento
ia lavar roupa não levava farofa como às outras na mesa, as lavadeiras lutaram para construir o futuro. Talvez,
lavadeiras e sim uma garrafa de pinga. Ela era ao poeta, tenha faltado a dimensão da beira chamada esperança.
bem magrinha todo dia ela ia parra Baixa Funda
ela lavava roupa para quem pagava, lavava para Para Djamila Ribeiro (2015), não há como pensar as desi-
o rico e para o pobre, ela lavou até para a mamãe gualdades sociais no país sem considerar o racismo e sexismo
quando a mamãe ganhou minha irmã caçula
como “elementos estruturantes”. De certo, a ciência moderna
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
universalizou uma forma única de conhecimento nascido da das coloridas para lavá-las cada uma a seu tempo e a seu modo.
razão/reflexão que desqualificou a experiência feminina. Esses O mesmo se fazia com relação às roupas finas que deveriam ser
saberes foram considerados antítese da ciência, e, por isso, invisi- separadas das grossas, as grandes das pequenas etc. Para cada
bilizados, desqualificados e estereotipados. Porém, um exército de monte de roupas já separadas, exigia-se uma técnica um modo
mulheres, geralmente não brancas, pobres e periféricas garantiam diferente de lavar. Nem todas as roupas podiam ser batidas na
as roupas limpas antes da ampla utilização da máquina de lavar tábua, nem todas podiam ser esfregadas com força, algumas
em Araguaína e região, como a Maria da “Baixa Funda” que precisavam ser secadas no sol quente, outras, deveriam ser pro-
trabalhava sem folga, sem descanso, movida por uma garrafa tegidas dele etc., ao final do dia, todas as roupas deveriam estar
de pinga. Seu corpo pequeno, magro e resistente era esquentado limpas, dobradas e em “trouxas” para serem devolvidas e sem
pelo sol e pela aguardente. estragos, lá se vão as lavadeiras com suas “trouxas” de roupas
limpas na cabeça.
Através das narrativas das mulheres lavadeiras, temos
acesso à percepção do mundo por aquele/a que vivencia, que Para além da trouxa de roupa na cabeça, as lavadeiras da
experimenta sensações, emoções, dores e alegrias. No “mundo “Baixa Funda” são representadas pelo cacete na mão. Mas qual
das lavadeiras”, elas não aceitavam abandonar a água corrente a finalidade de um cacete de madeira nas mãos das lavadeiras?
do riacho pela água encanada que chegava em suas casas. Como
lavadeiras, elas levavam uma vida com muitas tarefas a serem
E tinha uns cacetes pra poder lavar a roupa
realizadas desde o nascer do dia até a noite, com as trouxas de tinha um cacete bem redondinho aí povo até
roupas na cabeça a caminho do riacho, com as crianças gritando brincava oh não mexe com as mulheres lá da
e brincado nas águas, com o bate papo com as comadres e conhe- Baixa Funda que elas são tudo armadas de
cacete. Cleber vendeu todas as terras para o
cidas enquanto lavava as roupas, com as implicâncias e rusgas
Zico, aí vários tempos o Zico morou na casa a
entre elas, numa sociabilidade própria daquela função social casa era grande eles até derrubaram ali onde
exercida pelas mulheres do lugar. No processo da lembrança fica aqui o Santa Luzia onde eu moro. Derrubou
provocado pela necessidade de narrar o vivido, as mulheres a casa porque vendeu para o Zicão Magal que
lavadeiras vão dando significando ao passado e lutam contra a era administrador da Antarctica. Ele disse que
ia acabar com a Baixa Funda, nós ganhávamos
amnésia social que impede a lembrança sobre as muitas Marias
a vida trabalhando de lavadeira aí ele disse que
da “Baixa Funda”. não, mas eu tenho um projeto eu vou fazer a
represa bem funda e vou fazer o lugar aí ele
Entende-se que trocar o riacho pela água encanada signi- fez a represa bem funda e fez aquele concreto
ficava abandonar parte dos seus saberes. De certo, arte e técnica (ÂNGELA MARIA DA SILVA, entrevista oral, 2020).
estão presentes nessa atividade secular. Separar as roupas brancas
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
As lembranças enriquecem a narrativa com nomes, mulheres lavadeiras e sua importante função social. Sobre esse
acontecimentos, saberes e fazeres das lavadeiras, mas também processo de expropriação dos lugares de uso comum e do saber
fazem aparecer a indignação das nossas colaboradoras. A “Baixa fazer das lavadeiras prevaleceu o silêncio.
Funda” era um lugar de uso coletivo, mas que tinha que ser
constantemente defendido com cacetes. Eles eram utilizados
FINALIZANDO...
para a sua defesa pessoal, contra os animais e contra os assédios
sexuais e morais dos próprios homens, mas também para bater
No caso específico das lavadeiras de roupas da “Baixa Funda”,
nas roupas, de certo, faz parte da arte e técnica aprendidas pelas
todas mulheres trabalhadoras, sem recursos financeiros e sem
mulheres e que foram passadas de geração em geração. Mas o
possibilidade de proteger o seu espaço coletivo do riacho, o
cacete também é símbolo de luta e de resistência feminina. Com
que brotou das suas lembranças foi o sentimento de revolta,
o cacete defendia-se as roupas e também os seus corpos dos
indignação, frustação e tristeza. A saudade de um passado na
invasores. Com seus cacetes elas também tentaram defender o
“Baixa Funda” foi substituída pela dor daquelas que se percebem
lugar da apropriação privada. Porém, a “Baixa Funda” tornou-se
desconsideradas e expulsas do lugar, já que os homens ricos,
propriedade privada e seu uso coletivo foi proibido. Enfim, essa
provavelmente brancos, que se tornaram proprietários daquele
imagem da lavadeira com a “trouxa” de roupa na cabeça e o
espaço, logo o destruíram. “A gente fica triste em saber que isso
porrete na mão diz muito sobre as mulheres e as especificidades
não existe mais. Choro, pois lembro que a ‘Baixa Funda’ era o
das lutas travadas pelas Marias da “Baixa Funda”.
lugar que eu e meus seis irmãos íamos” (ÂNGELA MARIA
Como ressalta Costard (2017, p. 171), “Somente a compreen- DA SILVA, 2020).
são da construção social das diferenças possibilita o potencial
Pensar decolonialmente implica desnaturalizar as rela-
crítico para efetivamente transformar a realidade que produz
ções historicamente hierarquizadas e proporcionar a abertura
as desigualdades”. Ela está dizendo que é preciso denunciar a
para outras histórias. De certo, são histórias marcadas pelos
assimetria social do poder na construção social das diferenças
sentimentos, pelas alegrias e tristezas das mulheres lavadeiras
e das hierarquias. Normalmente, as mulheres não brancas são
na sua relação com as águas e com as outras mulheres, em
expropriadas dos usos coletivos das águas e das terras. Na década
especial, com as mães lavadeiras que utilizavam o local para
de 1990, as mulheres perderam o controle sobre o lugar. Os
garantir a subsistência da família. Assim como ressaltam Costa
homens, poucos, compraram, desmataram e venderam o entorno
e Grosfoguel (2016, p. 21), o que parece ser central no projeto
da Barra Funda. Diante da resistência das lavadeiras, um pro-
político-acadêmico da decolonialidade “é o reconhecimento de
prietário prometeu fazer uma represa, com local adequado para
múltiplas e heterogêneas diferenças coloniais, assim como as
as lavadeiras continuarem a lavar as roupas, o que não acorreu!
múltiplas e heterogêneas reações das populações e dos sujeitos
Enfim, procedeu-se também ao apagamento das memórias das
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO
à colonialidade”. Na memória das lavadeiras, nada pode dar CURIEL, Ochy. Rumo à construção de um feminismo descolonizado. Ciudad de
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
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INTRODUÇÃO
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS “Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”
são recorrentes nesses estudos sobre a região: separação de Goiás, A HISTÓRIA DA UMBANDA EM ARAGUAÍNA
construção da BR-153, chegada e instalação da Congregação
“Pequena Obra da Divina Providência” na cidade de Araguaína, Durante a pesquisa sobre a história da região e da cidade,
sua fundação e suas transformações sociais e econômicas. encontramos, na historiografia e nos relatos de memorialistas,
relações entre a construção da cidade e movimentos religiosos.
Do ponto de vista religioso, foram feitas diversas pesquisas
As principais relações estabelecidas dizem respeito à chegada
sobre os Orionitas, os Batistas e a Assembleia de Deus. Contudo,
dos padres orionitas e seu trabalho voltado à saúde e educação,
sobre as religiões afro-brasileiras pareceu-nos haver certa negação
à presença no setor educacional dos batistas e ao conflito interno
e silenciamento sobre a presença das denominações religiosas
ocorrido na Assembleia de Deus/Ministério SETA (Serviço
pertencentes a tal matriz, especialmente por parte da população
de Evangelização Tocantins e Araguaia), atual CIADSETA3,
araguainense. Ao questionar diversas pessoas da cidade sobre
que resultou na divisão da igreja e na criação do Ministério
onde poderíamos encontrar algum terreiro em Araguaína, a res-
CADETINS (Convenção das Assembleias de Deus do Estado
posta “aqui não tem isso não” foi e é comumente ouvida por nós.
do Tocantins). Porém, não eram somente essas igrejas de matriz
Analisando a frase, podemos perceber que o tempo ver- cristã que fizeram e fazem parte da história de Araguaína, as
bal que as pessoas empregam é o tempo presente. O que nos religiões afro-brasileiras também.
leva a poder interpretá-la de duas formas: a) atualmente não
Durante o processo de mapeamento das casas religiosas
existem terreiros em Araguaína, mas no passado, existiram;
afro-brasileiras na cidade de Araguaína feito por nós a partir de
b) Araguaína não tem, nem nunca teve terreiro e quem sabe
2011, deparamo-nos com diversos dirigentes que se auto iden-
nunca terá. Outros elementos que se agregam à linguagem das
tificavam como pertencentes à religião de Umbanda. Embora
pessoas são os sinais corporais (de espanto e repúdio) e a ênfase
notemos certas influências de outras religiões de mesma matriz
na resposta. Esse conjunto de signos verbais e não verbais pode
(Tambor de Mina, Terecô, Candomblé e Jurema) nos rituais e em
ser lido como referência à interpretação “b” proposta por nós.
entrevistas com os dirigentes, decidimos, por fim, compreender
Mas não descartamos a possibilidade da interpretação “a”, uma
o povo de santo dessa cidade como querem ser vistos, ou seja,
vez que muito se tem dito pelo povo sobre santo2 de Araguaína,
como umbandistas. Procuramos, em um primeiro momento,
sobre a quantidade de terreiros que havia na cidade e como
levantar dados que nos ajudassem a traçar a história dos primei-
tem diminuído. Mesmo com a tentativa de esconder e negar a
ros umbandistas em Araguaína e, logo em seguida, apresentar
presença dos terreiros, descobrimos depois que “aqui” — em
aqueles dirigentes já falecidos.
Araguaína — “tinha” e “tem isso” sim!
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS “Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”
Muito tem sido escrito sobre o surgimento da Umbanda4. região, as trocas, negociações e relações entre os diferentes se
Apesar de divergências de datas, seu marco fundacional está intensificam, possibilitando a construção de novas experiências,
no início do século XX e há um consenso de que ela é uma significados e práticas.
religião brasileira por excelência, resultado da integração e
Na procura dos terreiros, encontramos primeiramente
síntese de religiões de tradições africanas, do catolicismo e
a Tenda Espírita Umbandista Santa Joana d’Arc, no centro da
do kardecismo. O caráter híbrido da Umbanda lhe permite ter
cidade. De acordo com a documentação da tenda, seu registro
uma capacidade de absorção e redefinição de traços religiosos
de fundação data de março de 1979, mas, segundo relatos da
diversos. Os santos católicos estão presentes no altar e nas
dirigente, Valdeci Pereira Reis, e de seu esposo, Osmar, eles
paredes, assim como as rezas e os benditos em seus rituais.
já estariam na cidade trabalhando desde 1978. Dona Valdeci é
Cada orixá do Candomblé é agregado a uma linha da Umbanda,
maranhense, mas, antes de sua vinda para Araguaína, ela e a
entre sete, como a entidade principal da linha correspondente.
família viveram em Ananás, depois em Araguatins, onde come-
Em geral, os caboclos recebidos durante os trabalhos devem
çou a ser desenvolvida espiritualmente. Embora tenha iniciado
vir para “trabalhar”, ou seja, para ajudar as pessoas na terra
seu desenvolvimento na Umbanda na cidade tocantinense, com
através de conselhos e curas, a fim de que consigam evoluir no
um dirigente paraense, foi em Nazaré-MA, com José Bruno de
plano espiritual, tornando-se espíritos de luz. Algo semelhante
Morais, que ela foi batizada.
ocorre com alguns espíritos no kardecismo. Essas e outras
especificidades das três religiões citadas fazem parte dos Quando questionamos sobre a presença de outros terreiros
mitos e ritos dentro da Umbanda. Mas é importante ressaltar quando de sua chegada, Dona Valdeci nos informou que o senhor
que não são só essas três religiões que podem ser adaptadas, José Rodrigues já se encontrava na cidade com seu salão, assim
negociadas e hibridizadas pela Umbanda. como Ana Terezinha do Nascimento de Jesus (Terezona), Luís
Maranhão, Osmar, Pescocinho, Zefinha, Maria dos Reis, João
Nas casas visitadas em Araguaína, é comum encontrar
Raimundo, Dedé, Gama, Felinha e Pedro da Carroça. Destes,
traços do Tambor de Mina, religião afro-brasileira predominante
estão vivos José Rodrigues e Pedro da Carroça. Tivemos contato
no Maranhão, do Terecô codoense e da Umbanda nordestina,
com José Rodrigues e Luís Maranhão. Pedro da Carroça foi
marcada pela tradição juremeira. Acreditamos que esses traços
entrevistado por Cleyton Gomes de Almeida.
presentes nos terreiros da cidade reflitam as trocas culturais
ocorridas quando dos contatos entre grupos distintos vindos Pedro nasceu no Maranhão, na cidade de Caxias, em 1954
de diversos lugares para Araguaína. Sabemos que, quando há e com apenas nove anos veio para a cidade de Araguaína. Mas foi
processos intensos de migrações, como o que aconteceu na antes de sua vinda que, ainda na infância, ele começou a ter sinais
de mediunidade, o que era tido por sua família como “loucura”
4 Camargo (1961); Concone (1987); Ortiz (1991); Prandi (1995; 1996); entre outros. ou “agitação”. Pedro reforça em entrevista concedida a Almeida
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(2020) que a família o levou aos benzedores a fim de solucionar especial os que utilizam tambor, os trabalhos na Tenda Santa
seus males. Foi em Nazaré-MA, através de Zé Bruno, umbandista Bárbara começam sem hora exata para terminar, mas nunca
famoso no sul do Maranhão, que Pedro soube que era médium presenciamos trabalhos que fossem além da meia-noite. Mesmo
e que necessitava trabalhar para se ver saudável. Com 18 anos tendo chegado por volta de 1963, José Rodrigues, assim como
ele começa a trabalhar, mas somente já com aproximadamente outros dirigentes, é enfático ao dizer que o mais velho da região,
40 anos ele monta sua casa como dirigente principal. ainda vivo naquele momento, era Luís Maranhão. Ele sempre foi
mencionado por outros dirigentes como um “bom feiticeiro5” ou
Seu salão era no Bairro São João, ao lado de sua resi-
realizador de “bons trabalhos”.
dência. Ali ele trabalhou com desenvolvimento de médiuns e
giras por quase duas décadas e só parou suas atividades por Quando o conhecemos, Luís Maranhão não trabalhava
questões de saúde. Almeida (2020) ressalta que “O fato de ter mais com salão, médiuns ou gira, apenas dava consultas com
fechado o salão não quer dizer que Pedro abandonou a religião, auxílio de baralho e bola de cristal num pequeno cômodo de sua
ele continua como praticante, mas trabalha timidamente em um casa no Setor Tereza Hilário. Luís Maranhão Souza, que nasceu
quarto reservado em sua casa. Nesse local reservado, realiza em Uruçuí-PI, em 25 de abril de 1940, narrou os males físicos,
seus cultos e atende pessoas que procuram sua ajuda” (p. 24). segundo ele, também espirituais, que sofreu quando criança,
Assim como Pedro, José Rodrigues encerra seus trabalhos por as promessas e os tratamentos feitos para sua cura. Na década
questões de saúde física. de 1960, disse, ele e sua família se encontravam na região que
viria a ser Araguaína. Foi ali que conseguiu achar alguém que
José Rodrigues, dirigente da Tenda Santa Bárbara, nasceu
o ajudasse a resolver seus problemas, um senhor por nome de
em São João-PI, em 1943. Em 1955, ele e a família foram para
Raimundinho, que vivia numa região chamada Jussara, ao sul
Nazaré do Bruno-MA para tratá-lo espiritualmente. Ali ele
do que hoje é a região de Araguaína, enquanto Luís Maranhão
permaneceu por quase cinco anos, período em que ficou sendo
morava no Centro Novo, região oposta à de Raimundinho. Esse
desenvolvido na Umbanda. Ele contou que, ao sair de lá, foi
senhor era de Mearim-MA, mas há muito tempo vivia no Norte
para São Paulo à procura de emprego, mas logo regressou para
do então Goiás, e embora tenha curado Luís Maranhão, não
Floriano-PI, onde ficou sabendo das oportunidades de emprego
foi com ele que o dirigente se desenvolveu espiritualmente na
em Araguaína.
Umbanda. Assim ele narra sua experiência:
Zé Rodrigues, como também é conhecido, tem seu salão
de Umbanda na Rua das Jaqueiras, Bairro Araguaína Sul. Ele 5 Ressaltamos que, apesar de o termo feiticeiro não ser usado como autodefinição
por nenhum dirigente – sendo o feiticeiro sempre o outro e uma categoria de
abre seus trabalhos toda sexta-feira a partir das 20h. Ainda acusação (FERRETTI, 2001, p. 166) –, os dirigentes da cidade reconhecem a eficácia
que a Confederação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) ou não das magias realizadas por quem eles acreditam ser feiticeiro, podendo,
assim, classificá-los como bons ou ruins, segundo os resultados de seus trabalhos,
faça exigência para os trabalhos irem somente até as 22h, em ainda que sejam para o bem ou para o mal.
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de santo de Araguaína, é o caso narrado, de forma confusa, por homens e mulheres adentram os salões nos dias de rituais ou
padre Remígio, sobre uma mulher que estava grávida e parece mesmo diariamente na esperança de serem curados de doenças
ter procurado ajuda de algum dirigente umbandista para fazer o físicas e espirituais através de rezas, oferendas, banhos e ben-
parto dela ou um aborto. Padre Remígio enfatiza que acabaram zimentos ou na esperança de obter conselhos dos santos ou de
deixando-a jogada na porta da igreja sangrando, e eles tiveram seus zeladores para inquietudes de cunho emocional, financeiro,
que socorrê-la. O fato de a mulher ter procurado um terreiro existencial etc.
para resolver qual fosse seu problema nos mostra as dificuldades
Esse viés assistencialista é analisado por José Henrique
enfrentadas na região no que se refere ao sistema de saúde público.
Motta de Oliveira (2007) como a “fonte de todas as bênçãos” da
Se as outras igrejas chegavam com discursos e práticas doutrina espírita kardecista. Ele mostra como esse assistencialismo
de um evangelismo mediado pela educação e saúde, os terreiros é transformado em caridade nos centros espíritas e nos terreiros
focalizam sua assistência à população através das consultas com através de serviços de ajuda mútua e para a comunidade. É a
as entidades incorporadas nos dirigentes, oferecendo conselhos partir dessa influência que a Umbanda passaria a assumir um
e curas no plano físico e espiritual. Em entrevista dada para o caráter de religião assistencialista, em que “os espíritos trazem
quadro “O que vi da vida7”, do programa televisivo O Fantástico, palavras de consolo, proporcionando lenitivos para os males físi-
o cantor e compositor Zeca Pagodinho, assumidamente frequen- cos e espirituais” (OLIVEIRA, 2007, p. 94). Na mesma direção,
tador de terreiro, ajuda-nos a compreender o assistencialismo apontam os estudos de Ricardo Oliveira de Freitas (2009):
destes terreiros. Quando narrou as dificuldades vividas na sua
infância em razão da falta de dinheiro na família, ele recordou Terreiro de umbanda caracterizou-se pela oferta
que, muitas vezes, fora atendido nos terreiros com consultas de doações e pela prática do assistencialismo e
e remédios quando estava doente, porque, afinal, “médico de caridade, característicos do “fazer o bem sem
olhar a quem” praticados pelo kardecismo e pelo
pobre é pai de santo”.
catolicismo brasileiros. Tomou como “missão”,
Partindo dessa ideia, podemos compreender por que em “obrigação” ou compromisso determinado pelos
“encantados” (para além da razão explicativa da
muitos rituais assistidos por nós diversas pessoas vão especial-
vida prática) a tarefa de realização de atividades
mente para consultar com os dirigentes ou com suas entidades. que caracterizariam o trabalho de ajuda mútua,
Compreendemos, também, a grande quantidade de pessoas que articulação, negociação, doação, recepção,
se acercam da casa dos pais de santos durante as manhãs e tar- retribuição e troca (FREITAS, 2009, p. 214).
des para consultar com eles. Seja individualmente ou em casal,
Assim, a cura de doenças, cuidados com saúde, conflitos
7 Programa exibido em 7 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.youtube. amorosos, problemas com desemprego, entre outros problemas,
com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acesso em: 24 jun. 2016.
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levam diversas pessoas a procurar a assistência umbandista atra- os problemas enfrentados e os desafios vividos ficaram para ser
vés de consultas com os dirigentes em transe, sendo as entidades narrados sobre a vida dos que ainda estão vivos. Os problemas
responsáveis pela solução dos problemas ou ainda com o próprio parecem ser encarados como atribulações a ser superadas para
dirigente puro8, ou seja, sem estar incorporado. haver purificação espiritual desses dirigentes. No caso dos que
já morreram, a morte parece cumprir essa tarefa purificadora.
Juntamente com Valdeci, ou anteriormente a ela, outros
dirigentes já se dedicavam ao atendimento à população araguai- Aqueles referidos na memória oral dos terreiros, em
nense. Até o presente momento, foram obtidos relatos sobre 26 especial pelos dirigentes citados, transmitidos a nós através da
dirigentes que estavam em atividade em Araguaína e já faleceram. oralidade, são: Maria Matos, Terezona, Zefinha, Maria dos Reis,
Os dados que se seguem (nomes e outras informações) foram Felina, Balbino, Zé Pretinho do Tucum, Olindina, Raimunda
recolhidos em conversas formais (gravadas) e informais com Batista, Nikita, Maria José, Mauro, Osmar, Ataíde, João Rai-
alguns dirigentes, em especial Dona Valdeci, José Rodrigues, mundo, Gama, Dedé, Pescocinho, Raimundinho, Brasil, Mestre
Nazareno e Luís Maranhão, fichas cadastrais da confederação Euclides, Francisquinha, Cícero Caetano e Cego do Bambu. É
e pela revisão bibliográfica. Apesar de não termos conseguido difícil precisar a data de chegada a Araguaína dessas pessoas.
recolher as mesmas informações questionadas sobre todos, pois Mas, com base em relatos de Dona Valdeci e Luís Maranhão,
nossos informantes nem sempre tinham estreito contato com os podemos levantar algumas hipóteses. Se Luís Maranhão conta
que morreram, chamou nossa atenção o fato de que todos são ter chegado à região em meados da década de 1950, já encon-
lembrados por seus “bons trabalhos”, “por trabalharem bem”. trando Maria Matos com salão em atividade, podemos acreditar
Essas afirmativas podem ter uma multiplicidade de compreen- que ela tenha chegado à região entre o fim da década de 1940
sões: podem se referir ora ao fato de uma gira ter início, meio e e início da seguinte. Segundo alguns informantes, ela seria
fim, ora a outro tipo de organização ritual, mas coerente para o natural de Marabá-PA. O dirigente Osmar parece ter chegado à
dirigente que assiste, ora ao fato de um trabalho, uma cura ou cidade mais ou menos no mesmo período que Luís Maranhão,
outra atividade ser realizada com êxito, enfim, ora ao universo uma vez que este afirma que aquele era contemporâneo seu no
binário cristão (bem/mal), sendo um “bom trabalho” uma opo- terreiro de Maria Matos, tendo sido os dois desenvolvidos por
sição aos trabalhos de “magia negra”. ela. Osmar teria fechado seu salão na cidade e ido embora para
Xinguara, Pará, onde acabou por ser assassinado. A sua ida para
Independentemente do significado desse passado para cada
o Pará pode nos indicar algum vínculo anterior com esse estado,
narrador, as memórias selecionadas para serem transmitidas ao
permitindo assim seu retorno.
público externo aos terreiros são sempre positivas. Como veremos,
Assim como os já citados, acreditamos que dirigentes
como Nikita, Maria José e Maria dos Reis tenham chegado a
8 Sem estar incorporado.
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Araguaína no início dos anos 1970. Tal hipótese se sustenta no de médiuns da cidade. Não sabem dizer ao certo a quantidade
fato de que Dona Valdeci, ao se mudar para a cidade, em 1978, de dançantes da casa dela, mas podemos imaginar que esse
conta que essas pessoas já se encontravam ali e que não tinham número superasse a casa dos 30, uma vez que, quando com-
muito tempo de residência na região. Dona Maria José teria che- parados com os das tendas de Nikita e Maria José, que tinham
gado de Tocantinópolis e Maria dos Reis, mesmo sendo esposa quase 25 médiuns trabalhando com elas, os informantes dizem
de José Rodrigues à época, não teria vindo com ele do Piauí. Em que o centro de Olindina “nem se comparava com o delas” em
entrevista feita com José Rodrigues, ele nos contou que chegou quantidade de pessoas na gira.
sozinho à cidade, por volta de 1968, e só então se casara.
Entre os homens, temos uma diversificação nos trabalhos
A chegada de Mauro também parece datar da década realizados. Entre os nove, cinco trabalhavam com gira: Osmar,
de 1950. Em uma das visitas feitas à casa de Dona Valdeci, João Raimundo, Dedé, Raimundinho e Brasil. João Raimundo
conhecemos uma senhora consulente do centro que nos con- era médium de Terezona. Com seu falecimento, ele assumiu
tou que era natural do Maranhão e chegara à cidade por volta o salão, mas dizem que, logo após, ele fechou a gira e passou
de 1957, 1958. Ela disse que, quando chegou, ouvira falar de a trabalhar somente na mesa. Raimundinho e Brasil eram os
Mauro, o que nos leva a crer que ele já estava instalado em dirigentes que mais tinham médiuns em seus centros, ao que
Araguaína havia alguns anos. De onde Mauro teria vindo, não tudo indica, pareciam superar o centro de Olindina nesse que-
soubemos; assim como muitos dos dirigentes falecidos. Mas, sito. Dizem que o de Raimundinho era o “mais famoso entre
pelas informações recolhidas sobre alguns deles — Maria Matos os ricos da cidade”.
e Terezona serem do Pará, Olindina e Dedé, do Maranhão, e
Fora os dirigentes que trabalhavam com gira, havia quem
João Raimundo ser do Piauí — e com base nos dados sobre a
trabalhava só com mesa: Gama, Mestre Euclides e Cego do
forte migração para a região nas décadas de 1960 e 1970 de
Bambu. Gama foi o mais famoso dos umbandistas de mesa da
pessoas provenientes desses três estados, acreditamos poder
cidade e dizem que todos gostavam dele dentro da Umbanda
levantar a hipótese de que os outros dirigentes poderiam ser
araguainense e os de fora também. Disseram que era muito
também oriundos de tais regiões.
querido pelos políticos da região, o que parece verdade, pois,
É interessante observar que, nesse grupo, todas as diri- após sua morte, a rua onde residia teve o nome alterado para
gentes trabalhavam com salão e tinham grande quantidade de o dele: Rua Gama. Tanto ele como o Cego do Bambu são des-
médiuns. A tenda de Terezona é lembrada por sua organização, critos como “bons cientistas” por trabalharem com “ciências
dizem que era bem arrumada e comportava 300 pessoas na assis- ocultas”. Dona Valdeci explica que esses trabalhos são aque-
tência9. Olindina era a dirigente do maior salão em quantidade les feitos de forma secreta, sem a presença de ninguém. Não
necessariamente se trataria de “coisa ruim”. O fato de serem
9 Pessoas que vão aos terreiros para consultar ou somente assistir.
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“bons cientistas” é explicado pela mesma dirigente com base também que Raimunda não tinha tambor no salão dela e “recebia”
na compra de materiais feita por eles na loja de artigos para Príncipe Légua e Índia Perpétua durante os trabalhos. Quando
umbanda dela. Ela dizia que eles compravam banhos, pembas, visitou o terreiro onde Maria dos Reis trabalhava, ela ainda era
perfumes etc.: “somente coisas certas para os fins certos”. Dos casada com José Rodrigues.
que trabalhavam com mesa, parece que só Mestre Euclides
Outras relações e vínculos entre os dirigentes foram apa-
incorporava durante as consultas. Ele dizia “receber” padre
recendo no decorrer da pesquisa: Luís Maranhão e Osmar foram
Cícero e Maria Madalena. Os outros jogavam cartas para os
desenvolvidos por Maria Matos; Maria dos Reis foi esposa de
consulentes, mas sem estar em transe.
José Rodrigues; João Raimundo foi médium de Terezona. Des-
Mauro é um caso à parte entre os umbandistas aqui des- cobrimos que Felinha era médium de uma dirigente cuja tenda
critos. Ele não tinha salão, não tinha mesa e – dizem – nem altar. está atualmente fechada e que Maria dos Santos, por sua vez,
Vivia numa chácara onde recebia as pessoas que quisessem ser fora iniciada por Luís Maranhão. Mesmo com essas relações
ou ter suas propriedades benzidas. Luís Maranhão disse que mais diretas entre os dirigentes, notamos que as visitas entre as
ele fazia muito trabalho, despacho para assuntos de dinheiro e casas de Umbanda em dias de trabalhos ou datas festivas não
amor. Também disse que sabia que ele realizava, incorporado, eram nem são hábitos comuns na cidade.
os benzimentos e despachos, mas não soube informar com quais
Acreditamos ser necessário apontar a localização desses
entidades Mauro trabalhava.
dirigentes em Araguaína. Ao contrário do que se poderia ima-
Dona Valdeci conheceu boa parte dos dirigentes de tendas ginar, eles estavam, a maioria, na região considerada central
de Araguaína em razão do trabalho de seu esposo como repre- da cidade. O Bairro São João parece ser o bairro com maior
sentante da CEUB e pode assistir a rituais realizados por quatro concentração de terreiros, pois ali estavam dirigentes como
deles: Terezona, Dedé, Raimunda Batista e Maria dos Reis. Foi Terezona, Nikita, Maria José, João Raimundo e Gama. Nas
justamente por causa dessas visitas que Dona Valdeci pode nos imediações do São João, temos o setor central, onde trabalha-
contar, por exemplo, que Terezona trabalhava com Umbanda vam Raimundinho e Raimunda Batista. Na região da Feirinha
Omolokô10 e com Mina de Cura11 e que tinha como principais (Vila Aliança), estava Dedé e nas proximidades do Cemitério
entidades Jarina, João da Mata e Zé Raimundo de Légua. Contou São Lázaro estava Osmar. No Bairro Neblina, trabalhavam
Mestre Euclides e Cego do Bambu. Maria Matos tinha seu salão
10 Omolokô ou Omolocô é um culto afro-brasileiro que admite, no mesmo ambiente,
num local conhecido antes como Escondido, atual região do
práticas do Candomblé e da Umbanda. Há o culto aos orixás de forma semelhante, Bairro JK, onde Zefinha residia e também trabalhava. Brasil
mas não idêntico ao Candomblé; e aos caboclos, às crianças, aos exus, às pomba-
-gira, pretos velhos etc., como ocorre na Umbanda. tinha seu salão num bairro que era seu homônimo. Na saída da
11 Esse é um ritual muito específico da Tenda Santa Joana d’Arc com forte influência cidade em direção ao Rio Jacuba, onde está o bairro Patrocínio,
da pajelança maranhense e paraense.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS “Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”
trabalhavam Mauro e Olindina. Foi no Bairro Araguaína Sul Acreditamos que um dos fatores que contribuíram para
que Maria dos Reis começou a trabalhar com José Rodrigues a pouca quantidade de umbandistas apresentada pelo IBGE
e onde abriria seu salão após se separar dele. Nesse mesmo na cidade, além da metodologia de amostragem utilizada por
bairro, ainda era possível ouvir os tambores de Felinha. esse instituto, seja o fato de que muitos umbandistas, quando
questionados sobre qual seria sua religião, tenham se declarado
Com exceção de alguns terreiros, como o da dirigente
“espíritas” ou “católicos”. É certo que cada pessoa que vivencia
Terezona, cujo salão João Raimundo assumiu após a morte dela,
essas religiões encontra justificativas distintas para não se auto
os demais tiveram suas portas fechadas após o falecimento de
declararem como povo de santo. Duas explicações são as mais
seus fundadores porque não havia quem os conduzisse.
recorrentes: medo de sofrer perseguição e violência; e/ou por
Intriga-nos a quantidade de médiuns que se tinha nos se considerarem também como pertencentes a outras religiões.
salões mencionados e a redução de casas e umbandistas na Assim, compreendemos por que os dados do censo de 2010 se
cidade. No Censo de 1991, 39 pessoas se declaravam perten- distanciam – e muito – daqueles encontrados por nós, uma vez
centes à Umbanda e ao Candomblé. Em 2000, esse número que sabemos, através das observações feitas em diversos ter-
chegou a zero, mas volta a ter certa expressão, 14 pessoas, no reiros, que a quantidade de umbandistas na cidade apresentada
Censo de 2010. Sobre a categoria Umbanda, utilizada pelo pelo censo corresponderia somente à quantidade de médiuns de
IBGE, o Censo apresenta que, em 1991, ninguém se declarava uma das casas visitadas.
pertencente a essa religião. Mas o levantamento de 2000 aponta
Vale ressaltar a importância de pesquisas acadêmicas tanto
57 pessoas se declarando umbandistas. Esse número caiu para
para a visibilização do povo de santo na região, como para o
14 no censo seguinte.
confronto com os dados de institutos de estatística. Além disso,
as pesquisas possibilitam que os membros das religiões de matriz
Tabela I – População total residente em
africana se (trans)formem enquanto sujeitos históricos e sociais,
Araguaína por religiões afro-brasileiras
e vejam possiblidades de viver e expressar sua religiosidade de
CENSO 1991 CENSO 2000 CENSO 2010 forma aberta.
População total 103.315 113.143 150.484
Umbanda e CONSIDERAÇÕES FINAIS
39 — 14
Candomblé
Umbanda — 57 14 Com base no exposto, sobre a importância e representatividade
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). que o povo de santo tinha na cidade de Araguaína, indagamos:
onde estaria a grande quantidade de médiuns que as casas fecha-
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS “Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”
das tinham? O dirigente José Rodrigues é quem nos indicou um mações sobre outros que fizeram parte da história do povo
caminho: “um bocado morreu, outros foram embora, e o lugar de santo de Araguaína, quer trabalhassem com mesa ou com
foi crescendo e o povo não”. Por intermédio de outros dirigentes, salão. Acreditamos que, por se tratar de uma religião que tem
soubemos que muitos também se tornaram evangélicos. Em sua base na oralidade, esse levantamento feito até o momento é
conversas trocadas e ouvidas em algumas casas, percebemos somente a introdução de uma história que está para ser contada.
também a dificuldade de trabalhar com os jovens, ou seja, os
dirigentes mais velhos queixam-se da imaturidade e da falta de
REFERÊNCIAS
interesse e responsabilidade da juventude; não acreditam que
ALMEIDA, Cleyton Gomes de. Trajetórias socioespaciais de dirigentes
queiram pensar em religião e nas obrigações que vêm com ela,
umbandistas em Araguaína-to (1959-1970). Dissertação (Mestrado em
daí a resistência de algumas casas quando o assunto é a iniciação Estudos de Cultura e Território) – Universidade Federal do Tocantins,
de médiuns mais jovens. Vale ressaltar que além das obrigações Araguaína-TO, 2020.
rituais inerentes a todas as religiões afro-brasileiras em geral CAMARGO, Cândido Procópio F. de. Kardecismo e Umbanda – Uma
interpretação sociológica. São Paulo: Pioneira, 1961.
e à Umbanda, em particular, as dificuldades e os problemas
CONCONE, Maria Helena V. B. Umbanda, uma Religião Brasileira. São Paulo:
enfrentados na vida cotidiana contribuem para a não aceitação FFLCH/USP, CER, 1987.
ou desistência dessas religiões. FANTÁSTICO. O que vi da vida. Programa exibido em 7/8/2011. Disponível
em: <http://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acessado em:
Por fim, vemos que a epígrafe deste trabalho nos oferece um 24/6/2016>. Acesso em: 10 de maio de 2018
panorama da presença da Umbanda em Araguaína logo após sua FERRETI, Mundicarmo. Encantaria de “Barba Soeira”. São Paulo: Siciliano, 2001.
criação, em 1958. Zé Rodrigues ainda é enfático sobre o número FREITAS, Ricardo Oliveira de. Quando o voluntariado é axé: a importância
de terreiros na época: ele chegou a nos contar que “tinha mais das ações voluntárias para a caracterização de uma religião solidária e de
resistência no Brasil. In: GOMBERG, Estelio; MANDARINO, Ana. (Orgs.).
de 200 centros por aqui” (VENÂNCIO, 2013). O valor dado pelo Leituras afro-brasileiras: territórios, religiosidades e saúdes. Salvador:
dirigente corresponde menos a um número exato do que a uma EDUFBA, 2009.
ênfase na quantidade de terreiros na cidade. IBGE: banco de dados. Disponível em <http://www.ibge.gov.br>. Acesso
em: 26 jun. 2016.
Como lidamos com uma religião de tradição oral, ainda OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma
que mediada por uma instituição da tradição escrita, como é análise comparativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o
Estado Novo. Dissertação. (Mestrado em História Comparada). Universidade
o caso da confederação, é difícil precisar a quantidade exata
Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2007.
de terreiros. Mas, segundo dados colhidos com os dirigentes ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade
vivos e com o fiscal Osmar, conseguimos, como foi apresen- brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.
tado, não somente relatos do que possivelmente tenham sido PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: Para uma sociologia dos
os primeiros umbandistas da cidade, como os nomes e infor- cultos afro-brasileiros. Revista USP. São Paulo, dez./fev. 1995/1996, pp. 64-83.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
INTRODUÇÃO
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)
a uma realidade heterogênea social e cultural. Este é o caso de a essa confluência intercultural entre migrantes e a sociedade
Araguaína, em que os discursos representados no interior de local “original”, também descendentes de pessoas oriundas
conteúdos socioculturais, decorrentes da presença constante de de outras regiões que aqui chegaram mais cedo, ou seja, dos
migrantes de várias partes do país, no período compreendido descendentes dos primeiros habitantes exógenos.
entre 1978 e 1998, mudaram totalmente a estrutura local. Com
Em sua obra, “A identidade cultural na pós-modernidade”,
isso, Araguaína foi imaginada, nas representações dos discursos
Hall (2001) nos informa que, após a Segunda Guerra mundial,
oficiais e não oficiais, sem diferenças, sem conflitos substanciais
houve, no mundo todo, um impulso cada vez maior das migrações,
num espaço social em constante (re)construção, sendo que todos
e com ela, o declínio das identidades culturais, que passaram
que aqui chegavam, no referido período, foram recebidos como
a ser, cada vez mais, fragmentadas, fluidas, instáveis devido a
“bem-vindos”, sendo este, portanto, um dos traços da suposta
esse deslocamento que acabou produzindo uma grave “crise de
identidade local.
identidade” para o indivíduo, que entra em choque ao se deparar
com outras culturas totalmente diversas, distintas da sua. Dessa
O COSMOPOLITISMO COMO UM DOS OBSTÁCULOS forma, ele tenta resistir, mas acaba fazendo concessões como se
PARA A CRIAÇÃO DE UMA IDENTIDADE LOCAL adquirisse uma nova identidade por razões imperiosas exigidas
pelas circunstâncias impostas pelo exercício do poder cultural
A ocupação e a formação do espaço social correspondente que promove, através do seu discurso, a invenção de uma rea-
ao município de Araguaína se processou a partir de ondas lidade plástica, uniforme, que faz com que o sujeito se perceba
migratórias advindas, desde o final do século XIX, das regiões e se defina como “unificado”, com um só perfil, com uma só
norte e nordeste do Brasil. Durante o período de 1978 a 1998, personalidade. Entretanto, para o sujeito, sua ideia de ser, de
percebe-se a continuidade de correntes migratórias para o pertencimento, continua unificada na expressão linguística, na
munícipio, atraídas por fatores diversos, inclusive pelos dis- religião, no costume, nos hábitos, nas tradições e no sentimento
cursos representacionais referentes a esta cidade, sobretudo de lugar. Em razão do contato, do choque com a nova realidade,
aqueles contidos na ideia e no movimento pela criação do surgem os comportamentos e as atitudes conflituosas em que
estado do Tocantins, que afirmavam a certeza meritória de o sujeito é interpelado, persuadido por uma cultura estranha,
que Araguaína seria a sede do poder político estadual, por já diferente da sua, e para se manter como tal ante esta nova situa-
ser considerada, diga-se de passagem, “o polo econômico”, ou ção, ele, muitas vezes, recorre à tentativa de fazer recortes e
“a capital econômica” do “antigo norte goiano”, atual estado tentar colar traços daquilo que ele considera sua cultura própria
do Tocantins. Neste sentido, Gurgel (1998) nos informa que (que também lhe fora imposta) na cultura com a qual agora se
foram chegando pessoas de várias regiões brasileiras. E isso defronta (e negocia!).
resultou numa formação cultural diversificada, plural, devido
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)
Assim, um dos obstáculos encontrados ou uma das ARAGUAÍNA: SUA LUTA E SEU ESFORÇO NA
dificuldades enfrentadas pelos araguainenses para forjar uma PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE LOCAL
identidade única para si é o fato de a cidade ter sido cosmopo-
lita desde suas origens, sobretudo a partir da segunda metade Nos discursos elaborados localmente, os conflitos e as resistên-
do século XX, momento esse denominado de “modernidade cias são negados em nome de uma suposta hegemonia cultural
tardia”, no qual a crise das identidades é mais aguda, coinci- nortista e nordestina, e Araguaína é representada como a “terra
dindo justamente com a emancipação política municipal. Na acolhedora”, a “terra da união” e da “integridade social”, onde
segunda metade do século XX, vários são os fatos detectados todos vivem em perfeita harmonia. Ressalte-se, entretanto, que
que ajudam a explicar o fortalecimento do fluxo de correntes falar de uma hegemonia cultural, seja ela qual for, não significa
migratórias para esta cidade, especialmente a partir da década simplesmente descrevê-la, mas criá-la, e isto não se faz sem que
de 1970. haja conflitos, enfrentamentos, choques de interesses, tramas,
estratégias, jogo e simulações.
Resumidamente, podemos apontar a própria emancipação
política em 19581, a construção da BR-153, o fortalecimento e a As representações da cidade, que dá a todos um espaço,
modernização da pecuária através da adoção de novas tecnologias uma oportunidade para progredir, parece ser uma estratégia,
na criação de gado, dos incentivos e dos programas oficiais do uma forma de chamar a atenção do migrante para envolvê-lo,
governo federal para a região Norte do país, o garimpo de Serra fazê-lo esquecer a identidade antiga e tornar-se araguainense,
Pelada, a luta pela criação de uma nova unidade para a federação, partícipe da grande “família”, ajudando-o a construir sua his-
a implementação de uma universidade estadual na cidade etc. tória local. Isso, às vezes, acontece porque a própria condição
socioeconômica do sujeito necessita que ele vá à luta pela sobre-
No bojo de tudo isso, observa-se que o trabalho de constru-
vivência e, nessa luta, ele simula “ser”, ao procurar construir
ção de uma única identidade para Araguaína é feito na contramão
uma identidade na contramão da história, capaz de pensar em
da história contemporânea pós Segunda Guerra Mundial, pois
conformidade com o discurso que implica uma unidade social,
no momento em que ela se inicia, com a própria instalação do
que lhe é passada e que Hall (2001) define como sendo o jogo
poder municipal em 1959, as identidades vivenciam, em âmbito
das identidades, em que a identidade muda conforme o sujeito
global, uma crise profunda e de natureza desagregadora, mas
é interpelado ou representado.
não sem conflitos, resistências e traumas de toda ordem.
No editorial da Revista Municipalista “Araguaína, a Prin-
cesa do Norte”, publicada em 1986, a população araguainense,
em sua maioria, é, segundo dados estimativos do Instituto
1 Araguaína emancipou-se oficialmente em 14 de novembro de 1958, com a Lei
estadual número 2.125, e sua instalação ocorreu em 1º de janeiro de 1959. Tendo Brasileiro de Geografia (IBGE), originária de estados vizinhos
coo primeiro prefeito o Sr. Casimiro Ferreira de Oliveira. (HALUM, 2008, p. 54)
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)
da região Norte (Pará) e Nordeste (Piauí, Maranhão, Ceará, consideramos o marco que sublinha a importância da criação
Bahia etc.), Sudeste e Centro-Oeste do país (Minas Gerais, do Estado do Tocantins e atribui, tanto ao tocantinense como
Mato Grosso e São Paulo). Os nativos, os primeiros habitantes ao araguainense, uma nova identidade. Com base nos discursos
da região têm origem nas etnias indígenas. Estes dados levam destacados nas revistas mencionadas anteriormente, observa-se
a crer que Araguaína é uma cidade cosmopolita, onde homens que o movimento em prol da criação do novo Estado trouxe,
e mulheres ocupam espaços “promissores” no sentido de cons- de forma bastante acentuada, um importante fluxo migratório
truir uma vida com oportunidade, comodidade, progresso e para a cidade, para este espaço social onde os sujeitos se depa-
modernidade. A revista mostra também que Araguaína é a ram com diferentes culturas, todas formadas e transformadas
cidade que mais cresce no estado goiano nas décadas de 70 no interior da representação, isto é, de um saber particular que
e 80 do século passado, especialmente por conta da chegada produz sentido sobre as coisas do mundo. Assim, as identida-
de dezenas de novos moradores, o que provocou, na época, des que antes eram centradas, coerentes e inteiras, agora estão
um crescimento desordenado acompanhado do surgimento e deslocadas pelo processo de globalização, nos planos externos e
do acúmulo de novos problemas sociais, principalmente na internos. Com a fragmentação do sujeito, é impossível construir
zona urbana. uma identidade única para sujeitos sociais diversos vivendo na
diversidade e na adversidade da história.
Em outro artigo publicado na Revista Reportagem (1983,
p. 69), identifica-se um crescimento “benéfico” da população, No caso de Araguaína, está claro que esse processo de
proporcionado por investidores desde que se cogitou a divisão deslocamento e descentralização do sujeito que aqui também
do Estado de Goiás. Inclusive porque Araguaína foi conside- ocorre parece realizar-se, para alguns, pela invenção de sím-
rada uma das cidades “que receberam maior fluxo migratório bolos e imagens positivas que evidenciam nos enunciados a
procedente de várias partes do Estado como também de outras importância da cidade, com o objetivo de chamar a atenção
regiões do Brasil”. Exemplo disso, no mundo das empresas, foi e atrair o migrante trabalhador e empreendedor. Embora isto
a instalação, em 1979, de uma filial das Organizações Jaime deixe transparecer que não existe uma única identidade local,
Câmara na cidade, uma extensão de sua matriz instalada na percebem-se indícios na sua realidade cultural de um processo
capital de Goiás. paradoxal e contraditório, voltado para a construção de uma
única identidade na contramão da história, consequente do
Contudo, entende-se que, nesses discursos há uma
processo migratório, antes e depois da criação do Estado do
exaltação e um enobrecimento dos símbolos locais em meio à
Tocantins. Nos discursos analisados, as relações de diferença
população, revelando, assim, mecanismos que procuram dar
e de conflitos não prevalecem porque são dissimulados, o que
sustentação ao processo de construção identitária de Araguaína,
mais aparece é a imagem de uma cidade construída como um
mesmo que na contramão de sua história nesse período que
todo homogêneo e harmonioso.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)
melhor. Ao buscar, nesses símbolos referenciais para explicar o dissimulados por toda a região. É sob esse ritmo de mudanças
processo de construção de uma identidade local, entende-se que que se desenvolve o trabalho paradoxal de construção de uma
esse processo caracterizou e adquiriu uma dimensão histórica, identidade para esta cidade no período mencionado.
social, econômica e cultural que mudou e transformou estruturas
Analisando o processo de construção de uma identidade
existentes num determinado espaço e tempo histórico. E isto
única para Araguaína, no período de 1978 a 1998, identifica-se
nos faz pensar que essa identidade foi inventada, organizada e
também nos discursos elaborados a presença de práticas ideoló-
impressa simbolicamente no mundo social, na vida cotidiana e
gicas usadas pelo poder público para legitimar a visão positiva de
no senso comum, através do discurso representado pelas lingua-
uma cidade não apenas promissora, mas, inclusive, responsável
gens escrita, histórico-institucional, política e artística da época.
do ponto de vista social, ao mesmo tempo em que delegava uma
função assistencialista em relação ao cuidado de seus adolescen-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tes, jovens e idosos através de programas assistenciais. A cidade
era vista de modo diferente das outras porque dava prioridade
Imagem tecida historicamente, Araguaína se imagina como ao bem-estar social para toda a população sem excluir ninguém.
tendo uma identidade própria na medida em que ela procura
No discurso de engrandecimento local, elencaram-se as
reconhecê-la como tal. Isto é, na medida em que os discursos
representações e as imagens dadas pelas belezas naturais, pelo
procuram legitimar as representações elaboradas sobre traços
solo rico e fértil, por aquelas elaboradas tanto no grande contexto
espaciais e culturais puramente locais.
da luta pela criação do Estado como no contexto pós-criação do
A expansão econômica e a incorporação ao capitalismo, Tocantins, com a pecuária e outras atividades produtivas demar-
especialmente a partir dos anos 1970 e 1980, em decorrência do cando as especialidades socioeconômicas da cidade. Portanto, a
Projeto Carajás, incentivaram a penetração em massa de frentes invenção de símbolos e a construção de representações servem
migratórias na região, oriundas de várias partes do país, atraídas para confirmar a grande importância da cidade, sob todos os
ainda por políticas de incentivos por parte do governo federal. pontos de vista, como aquela que acolhe e dá oportunidade para
Além dessa política de incentivo governamental, observa-se o os que desejam fazer parte desta grande “família” cultural.
Movimento de Criação do Estado do Tocantins que, durante
seu apogeu, afirmava, no discurso apresentado em Araguaína,
REFERÊNCIAS
que esta cidade seria inexoravelmente a sede do poder político
estadual, e isso ajudou a atrair investidores de outras regiões, HALL, Stuart. As culturas Nacionais como comunidades imaginadas. In.: A
identidade Cultural na Pós-Modernidade.5. Ed. Rio de Janeiro: Editora DP&A,
provocando o reforço do fluxo migratório dos Estados vizinhos, 2001. p. 47-65.
ampliando a multiplicidade de culturas e os conflitos abertos e
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
INTRODUÇÃO
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
mesmo que de forma sucinta, e como se encontra atualmente, Os grandes investimentos em infraestruturas iniciados no
levando em consideração o valor econômico das atividades governo de Juscelino Kubitschek, que visavam à integração do
inerentes a esse processo. território nacional através das redes, principalmente por meio da
construção de rodovias, adentraram a região Norte do país onde
ainda não havia um desenvolvimento econômico capitalista seme-
O valor é uma construção espaço-temporal
distintiva que depende do desenvolvimento de lhante ao verificado nas regiões Sudeste e Sul da nação até meados
toda uma gama de práticas espaço-temporais do século XX. Como pudemos notar, Araguaína foi beneficiada
(incluindo a territorialização da superfície da terra por essa política, aumentando sua importância e sua participação
por meio de direitos de propriedade e da formação
econômica no âmbito das relações capitalistas de produção, pois o
de Estados, bem como o desenvolvimento de
redes geográficas e sistemas de troca para o município saiu do isolamento, segundo Pereira (2013).
dinheiro e as mercadorias, incluindo a própria
Entretanto, não se pode afirmar que o município tenha tido
força de trabalho) (HARVEY, 2004, p. 149).
um desenvolvimento totalmente sadio no que diz respeito à sua
equipagem de infraestruturas verificadas na cidade, enfrentando
Araguaína, em sua história ocupacional e política quando
problemas internos de organização, segundo Pereira (2013).
ainda era conhecida como povoado “Lontra”, pertencera pri-
Atualmente, a cidade tem uma função regional bem estabelecida,
meiramente ao município de São Vicente do Araguaia, atual
mas com grandes deficiências na organização dos arranjos espa-
Araguatins. Tempos depois, passou a fazer parte do município
ciais urbanos. Como fala Pereira (2013, p. 113), “Faltam praças,
de Boa Vista do Tocantins, atual Tocantinópolis. Em 1948, a
rede de saneamento básico, asfalto com qualidade, arborização,
localidade passa a se chamar de fato Araguaína, em home-
calçadas niveladas para o Portador de Necessidades Especiais se
nagem ao Rio Araguaia, e também foi nesse mesmo ano que
locomover, falta rigor no cumprimento das normas de trânsito etc.”
passou então a fazer parte do município de Filadélfia. Em
1953, o povoado é elevado à categoria de distrito de Filadélfia A localidade, depois de certo período (1960-1990), passa a
e, finalmente, no ano de 1958, ocorreu sua emancipação polí- ter todos os pré-requisitos para a territorialização do capital fun-
tica com a criação do município de Araguaína. Atualmente, diário de forma mais incisiva do que já estava em curso. Já tinha,
Araguaína conta com apenas um distrito, que é a sua sede, à época, sobretudo a partir de 1990, uma estrutura demográfica
já que, em 1991, os distritos de Aragominas, Muricilândia e considerável que lhe garantia um excedente de mão de obra, uma
Araguanã, que antes faziam parte de sua extensão territorial, região próxima e ainda alguns lugares longínquos que lhe fornecem
se emanciparam e foram elevados à categoria de municípios, matérias-primas, como no caso do abate de animais e, ainda, uma
segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e rede de infraestruturas que lhe serve de suporte, como, por exemplo,
Estatística (IBGE). a BR-153, as redes de comunicação e informação e, por último, o
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
município tem um mercado amplo que absorve sua produção, seja da agroindústria, já que a região próxima da cidade e alguns
local ou até mesmo internacionalmente. A localidade adquire todas municípios do Pará aparecem como os grandes fornecedores de
as condições para a acumulação (HARVEY, 2005), sendo um bom gado. Araguaína, dessa forma, exerce a função de polo atrativo
exemplo a produção de carne bovina, que é exportada até para o e processador dessa produção, segundo Dias (2014).
Oriente Médio, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento
Com relação à agricultura, pode-se afirmar que sua con-
Indústria e Comércio Exterior (MDIC) (2015).
tribuição para a dinâmica econômica capitalista do município
A pecuária local se dedicou, principalmente, à criação de é quase irrelevante, inexistindo até hoje a produção de soja. O
bovinos de forma extensiva, que é, sem dúvida, o segmento de Quadro 3 mostra as principais culturas temporárias e seus últimos
atividade rural mais notável no município e na sua região próxima. números disponíveis para acesso. Talvez um dos motivos para a
Isso talvez explique o título de “Capital do Boi Gordo”. Ver-se-á inexistência de uma agricultura forte seja a preferência moldada
mais adiante que esse título também se deve à grande quantidade ao longo de vários anos pela pecuária extensiva, pois o mercado
de bovinos abatidos nos frigoríficos da cidade, podendo eles ser sempre está aquecido no âmbito nacional e/ou internacional.
de origem local ou não.
Se comparado o número de bovinos do município em
2012 com o quantitativo da população, que nessa época girava
Quadro 1 – Quantitativo dos maiores rebanhos de Araguaína (TO)
em torno de 150 mil habitantes, verifica-se uma superioridade
BOVINOS SUÍNOS GALINÁCEOS de cerca de quase 48% a mais de cabeças de gado em relação ao
ANOS MILHARES DE MILHARES DE MILHARES DE número de pessoas, ou seja, para cada habitante existia, mais ou
CABEÇAS CABEÇAS CABEÇAS menos, 1,4 cabeças de gado, à época.
2012 222.700 4.900 206.750
2013 223.985 5.164 235.473
Quadro 2 – Produção e área plantada das principais
2014 226.770 4.700 295.120 culturas temporárias de Araguaína (TO)
Fonte: Organizado pelos autores com base em informações
do IBGE – Produção da Pecuária Municipal. ARROZ FEIJÃO MANDIOCA MILHO
ÁREA ÁREA ÁREA ÁREA
ANOS PRODUÇÃO PRODUÇÃO PRODUÇÃO PRODUÇÃO
PLANTADA PLANTADA PLANTADA PLANTADA
(T) (T) (T) (T)
O Quadro 1 mostra os quantificadores dos maiores rebanhos (HA) (HA) (HA) (HA)
Embora não sejam números tão exorbitantes se comparados a 2014 450 855 200 125 700 15.400 800 1.520
outros municípios do estado que estão no topo, não significa dizer Fonte: Organizado pelos autores com base em informações
do IBGE– Produção Agrícola Municipal.
que o abate de gado de corte não seja a atividade mais relevante
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
O Quadro 4 mostra as principais culturas permanentes, a criação do Sindicato Rural de Araguaína (SRA), que foi um
que, muito embora não sejam tão significativas economicamente grande passo para a expansão das atividades pecuaristas e da
para o município, contribuem também para a variação da produ- agricultura no município. Para Dias (2014, p. 67), “[...] a principal
ção e, de modo particular, servem para atender o mercado local, função do SRA é fomentar a valorização econômica, política e
que, apesar de ser alvo de produtos advindos de fora (mercado cultural da pecuária em Araguaína e região [...]”. O sindicato
local), ainda persiste mesmo que de forma pequena e, às vezes, fora criado oficialmente em 1967, quando o município tinha nove
de modo tradicional. anos de emancipação política, mostrando sua vocação desde o
início para as atividades do setor primário. O referido sindicato
Juntamente com as culturas temporárias, as culturas perma-
é um dos atores responsáveis pela organização que viabiliza a
nentes abastecem, em pequenas proporções, alguns supermercados
territorialização do capital no campo araguainense. Atualmente,
que recebem produtos de gênese camponesa em sua quase que
este sindicato é nada mais que um dos disseminadores das ideias
totalidade para a revenda. As feiras livres também são lugares
elitistas da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que
onde essa produção é comercializada, sendo a feira da Praça
visa ao fortalecimento progressivo da monocultura e à precari-
do Mercado Municipal a mais antiga e tradicional da cidade. O
zação da agricultura camponesa até sua ruína. Isso fica evidente
programa “Compra Direta”, gerido pela Prefeitura Municipal,
nas ações desse sindicato sempre conectadas aos interesses dos
também participa na aquisição desses produtos e os destina aos
grandes fazendeiros em detrimento dos interesses dos campo-
programas assistenciais de distribuição de cestas básicas.
neses da região, sendo exemplos os leilões, as festas elitistas e
as propagandas em meios informacionais.
Quadro 4 – Dados das principais lavouras permanentes de Araguaína (TO)
ÁREA VALOR DA
A AGROINDÚSTRIA DE ARAGUAÍNA (TO)
PRODUTIVIDADE
COLHIDA PRODUÇÃO
LAVOURAS 2014
2014 2014
(KG/HA)
(HA) (REAIS) Diante do que já foi exposto, abordar-se-á, a partir de agora, a
BANANA 145 6.897 900.000 agroindústria araguainense, um segmento de grande notoriedade
COCO-DA- na economia local. Sua configuração se faz, principalmente,
118 15.297 1.354.000
BAÍA
pelo ramo dos frigoríficos, sendo a exportação de carne a maior
LARANJA 81 15.802 640.000
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados
fonte de receita na balança comercial com o exterior, tanto de
do IBGE – Produção Agrícola Municipal. forma restrita ao agronegócio ou mesmo levando em conta todo
o restante da produção do município de um modo geral. Deve-se
No contexto histórico, outro intensificador do processo ter em mente que a agroindústria está umbilicalmente ligada às
de territorialização da agropecuária que pode ser analisado é atividades do setor primário, muito embora faça parte do setor
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
secundário do processo produtivo, tal fato se devendo à existência O Quadro 5 apresenta uma noção de quanto a agroin-
daquilo que os autores denominam “complexo agroindustrial”, dústria frigorífica é significante para a economia financeira
uma espécie de casamento entre a indústria e a agropecuária, do município, pois apenas as carnes congeladas já somavam,
segundo Mazzali (2000). Essa é uma característica marcante da em 2015, o equivalente a 80,21% do total das exportações
agricultura capitalista. da localidade, isso porque se utilizou apenas essa linha da
produção. Já as carnes frescas ou apenas refrigeradas e miu-
Para Mazzali (2000, p. 26), “O termo ‘Complexo Agroin-
dezas somavam mais 14,46% neste mesmo ano, ou seja, as
dustrial’ designaria o próprio modelo através do qual se processou
primeiras (carnes congeladas) juntamente com estas últimas
a modernização da agricultura, cuja dinâmica esteve na própria
(carnes frescas, refrigeradas e miudezas) somam quase 95% do
integração técnica e de capitais agricultura-indústria”. Assim,
total das exportações de Araguaína para o comércio exterior.
tem-se uma união de dois segmentos antes dicotômicos e que agora
Esta produção está sempre ligada à agroindústria frigorífica,
fazem dessa articulação uma fonte de acumulação de capital e,
sobretudo com relação aos bovinos, com apenas uma pequena
por conseguinte, de criação de uma elite, qual seja, de uma classe
parcela de suínos.
social abastada que se dedica aos dois ramos em polimerização
em detrimento da classe assalariada e do sujeito social camponês. A produtividade considerável em destaque não se deve
somente àquilo que se chama área territorial do município, mas
Como é possível observar no Quadro 5, o setor de produção
também à ação de sua região próxima, ou seja, aos municípios
frigorífica de bovinos tem grande destaque nas exportações do muni-
de seu entorno. Entretanto, ainda assim, essa produtividade não
cípio. Araguaína exporta para o exterior, em sua totalidade, apenas
seria tão hegemônica dentro do estado do Tocantins, caso Ara-
carne bovina, não havendo outros produtos na balança comercial.
guaína, através de sua especialidade (processamento de carne
bovina), não extrapolasse os limites daquilo que se denomina
Quadro 5 – Números das exportações de carne bovina
região próxima. O município intercambia com outras cidades do
congelada nos últimos anos em Araguaína (TO)
estado do Pará, principalmente, para manter sua produção de carne
QUANTIDADE RENDIMENTO
PARTICIPAÇÃO bovina constantemente forte. Não seria isso uma ruptura com
TOTAL NAS
ANOS EM EM
EXPORTAÇÕES a conceituação tradicional de região? Sim, pois, na atualidade,
TONELADAS US$
(%) para fazer parte de uma zona de influência não precisa necessa-
2015 24.135.465 89.075.400 80,21 riamente estar próximo, sendo as redes as grandes responsáveis
2014 23.663.672 104.026.613 81,10 por essa articulação. As redes, por seu turno, são apenas uma
2013 22.232.180 89.997.838 76,38 parte do espaço banal.
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados do MDIC
– Balança Comercial dos Municípios: 2013, 2014, 2015.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
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PAÍSES PARTICIPAÇÃO EM
ano de 2015, foi exportada para a África 27,90% da produção,
TOTAL EM US$
DESTINATÁRIOS PORCENTAGEM (%) principalmente para países do norte africano, onde predomina o
China 15.695.805 14,13 Islamismo. No mesmo bojo e no mesmo ano, foi exportada para
Irã 15.082.980 13,58 o Oriente Médio 20,84% da produção, significando que quase
a metade da produção de carne de Araguaína está destinada ao
Chile 9.905.599 8,92
mercado de países de orientação mulçumana (MDIC, 2015).
Argélia 5.278.505 4,75
Vietnã 4.416.287 3,98 Desse modo, acredita-se que a dinâmica do agronegócio
local se dá mais precisamente pelas articulações da agroindús-
Líbano 3.136.435 2,82
tria, principalmente pelo ramo dos frigoríficos. Sua relação com
Emirados Árabes
Unidos
2.839.364 2,56 o mercado interno acontece não só pela venda de carne, mas,
principalmente, pela dependência de meios de produção, maqui-
Malásia 2.139.732 1,93
narias e matérias-primas vindas de outras partes do território,
Outros Países 6.388.820 5.76
que viabilizam o processo produtivo, que, por sua vez, se dedica
Total 111.046.968 100
a atender as demandas do mercado externo.
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados do
MDIC – Balança Comercial dos Municípios: 2015.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O município exporta para o exterior, em sua totalidade,
uma significativa parcela da carne processada em seus frigorí- Sendo assim, atualmente, o município de Araguaína se encontra
ficos, inexistindo nos dados oficiais qualquer outro produto de inserido no processo de reprodução do capital do agronegócio.
exportação que não esteja relacionado à agroindústria frigorífica, Isso se deve ao processo de territorialização desse capital que,
sendo que a maior porcentagem, quase 100% da produção, se por seu turno, não ocorreu de forma emergencial, mas ao longo
resume a carne bovina (Quadro 5). Esta produção está sendo de décadas, tendo servido para massificar essa atividade no
direcionada principalmente para o exterior, sendo o consumo cotidiano econômico da localidade por meio de práticas de ati-
local não condizente com o quantitativo produzido. vidades econômicas, tais como a pecuária, o abate de bovinos e
o comércio de implementos agrícolas, por exemplo.
O Quadro 6 mostra a considerável parte da produção de
carne araguainense exportada para países do norte da África e Acredita-se também que esse processo de territorialização
asiáticos, em sua maioria de religião mulçumana, ou seja, exigem não teria alcançado êxito sem as devidas contribuições das estru-
que, no processo produtivo, algumas normas sejam cumpridas, turas estatal, econômica e política, uma vez que, em Araguaína,
como regras de higiene e rituais religiosos na hora do abate. No a agropecuária geralmente está associada a pessoas que são,
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)
ao mesmo tempo, atores econômicos e atores políticos. Assim, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Produção da
Pecuária Municipal:2012, 2013, 2014. Disponível em: <http://www.ibge.gov.
verifica-se que a agroindústria é uma importante vertente dessa
br/home/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016.
forma de reprodução do capital no sítio urbano de Araguaína,
______. Produção Agrícola Municipal:2011, 2012, 2013, 2014. Disponível em:
pois são notáveis os empreendimentos inerentes a esse segmento, <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016.
visto que abriga inúmeros frigoríficos, os maiores responsáveis MAZZALI, Leonel. O Processo Recente de Reorganização Agroindustrial: do
pela manufatura da carne bovina produzida no município e em complexo à organização “em rede”. São Paulo: Editora UNESP, 2000. (Coleção
Prismas).
outras regiões.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR
(MDIC). Balança Comercial dos Municípios:2013, 2014, 2015. Disponível em:
Conclui-se que esses conjuntos de atividades desenvolvidas
<http://www.mdic.gov.br/sitio/>. Acesso em: 28 de março de 2016.
em Araguaína só contribuem para a acentuação das desigualdades
PEREIRA, Aires José. Leitura de Paisagens Urbanas:Um estudo de Araguaína
entre os homens. O fortalecimento da relação patrão-empregado – TO. 2013. 312 f. Tese (Doutorado em Geografia) -Universidade Federal de
e a subjugação camponesa conduzem diretamente à maior contra- Uberlândia, Uberlândia, 2013.
dição desse modo perverso de produção, que é o fato de a riqueza
ser socialmente produzida, enquanto sua apropriação se dá de
forma individual pelo empresário. O capitalismo se desenvolve
segundo essa contradição, que se evidencia em Araguaína de
forma clara pela territorialização do capital do agronegócio.
REFERÊNCIAS
DIAS, Reges Sodré. As Atividades do Agronegócio em Araguaína: entre
espacialidades urbanas e novas/velhas desigualdades sociais. 2014. 79 f.
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Histórias de vida das empregadas
domésticas de Araguaína – TO:
entre lutas, violências e resistências
INTRODUÇÃO
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No contexto mais amplo, o trabalho doméstico no Brasil Segundo Cota (2016), exercido em sua maioria por mulheres
tem seu marco histórico desde o período colonial, mais precisa- negras escravizadas até o século XIX, o trabalho doméstico tanto
mente no período escravocrata, no qual a atividade doméstica é um trabalho, quanto um ofício, sendo marcado por processos de
era também trabalho das pessoas escravizadas, mas sendo dominação e estigmatização. Atualmente, o trabalho doméstico
esse exercido principalmente pelas mulheres negras. Fátima da está sendo relacionado com as opressões do capitalismo. Heleieth
Silva (2017, p. 414), em seu texto intitulado Ensaio da história Saffioti (1978) destaca que o trabalho doméstico é considerado
do trabalho doméstico no Brasil: um trabalho invisível, afirma uma atividade à margem do capitalismo: trabalho improdutivo,
que o trabalho desenvolvido pela empregada doméstica era “de sendo este considerado um espaço de reprodução e não produ-
mucamas, amas de leite, costureiras, aias, pajens, cozinheiras, ção, ou seja, uma forma não-capitalista de trabalho. Contudo, ao
também cuidavam dos filhos dos senhores, transmitiam recados, considerarem o trabalho doméstico como excluído das relações
serviam à mesa, recebia as visitas e etc.”. Por outras palavras, a de produção capitalista, operam-se duas situações: de um lado
inclusão dessas pessoas escravizadas dentro das casas grandes a extração da mais-valia dessas trabalhadoras é ampliada; de
dos engenhos, tinha como finalidade desenvolver atividades outro lado, as opressões sofridas se aprofundam ao articular às
como arrumar a casa, lavar as roupas, cozinhar, dar o banho dimensões de exploração a dominação.
naqueles que integravam a família dos senhores de engenho,
Quando analisamos as articulações entre exploração e
dentre outros afazeres que caracterizavam o início do trabalho
dominação dentro do sistema capitalista, é necessário discu-
doméstico no Brasil.
tirmos também as opressões interseccionais vivenciadas por
Na obra Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, essas trabalhadoras domésticas, opressões essas marcadas
trajetórias e regulamentação, os autores reiteram que: por recortes interseccionais tais como raça, etnicidade, idade,
classe social e gênero. De fato, as opressões interseccionais
surgem desde o processo de colonização do Brasil, mostrando
[...] Entretanto, as relações de subordinação e
dependência impostas pelos senhores daquele também os diferentes eixos de poder e dominação e até mesmo
período não eram uma exclusividade das escravas as violências simbólicas existentes no trabalho doméstico;
de casa, era um tipo de relação que recaía sobre ou seja, as opressões interseccionais estão presentes histo-
todos os tipos de criados, mesmo que fossem
ricamente na sociedade brasileira evidenciando seu caráter
estes criados libertos, pobres livres negros,
mestiços ou a minoria branca. É importante desigual e violento.
ressaltar que até meados do século XIX, todo o
Entretanto, Helena Hirata (2014), citando Sirma Bilge
trabalho doméstico era provido pela escravidão,
fosse no campo ou na cidade (COTA, 2016, p. 01 (2009, p. 70), destaca que “o enfoque interseccional vai além do
apud VIECELI; WUNSCH e STEFFEN et al., 2017, p. 7). simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opres-
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TRABALHO DOMÉSTICO: INFÂNCIAS E anos, autodeclara-se parda e não tem filhos. Também nascida
ADOLESCÊNCIAS VIOLENTADAS em Araguaína (TO), começou a trabalhar como doméstica aos
15 anos na cidade de Aragominas (TO), porém aos 20 anos veio
Foram entrevistadas três mulheres1 que exercem a profissão para Araguaína trabalhar como doméstica em uma residência
de empregada doméstica na cidade de Araguaína - Tocantins, onde, além de cuidar da casa, ainda cuidava dos filhos do casal.
às quais foram atribuídos os seguintes nomes fictícios: Kássia,
Essas mulheres saíram de casa ainda meninas para tra-
Olga e Beta. Suas idades variam entre 51 e 59 anos, as três
balharem como babás, lavadeiras, passadeiras; exercendo o
são solteiras e apenas uma das entrevistadas não possui filhos,
trabalho de empregadas domésticas, partilhavam da obrigação
no caso, Beta. A primeira entrevistada, Kássia, de 52 anos, se
de ajudar no sustento de suas famílias. De fato, na vida dessas
autodeclara branca e tem uma filha. Nascida no município de
mulheres, o trabalho doméstico veio acompanhado do trabalho
Araguaína, cidade pertencente ao antigo norte goiano até 1988,
infantil, pois, desde muito cedo, elas se viram obrigadas a seguir
quando o estado de Goiás foi dividido, criando-se o atual estado
esse caminho. Sobre o trabalho doméstico infantil, é importante
Tocantins; morou até os 15 anos no município de Aragominas
registrar que as memórias dessa época, quando essas mulheres
(TO). Kássia começou a trabalhar como doméstica aos 14 anos.
tinham entre os 10 e 15 anos, são lembranças marcadas pelo
Após o seu primeiro trabalho em Aragominas, veio trabalhar em
paulatino afastamento do lar e do aconchego materno, como
Araguaína na casa de um bancário; na sequência, foi trabalhar
podemos observar nos seguintes relatos:
na casa de uma mulher, saindo em 2015, e hoje trabalha em uma
outra residência há mais de sete anos.
Ih, eu comecei foi cedo, comecei com… com uns
A segunda entrevistada, Olga, de 56 anos, autodeclara-
dez, onze anos, porque minha mãe passava muita
-se preta e também possui uma filha. Nascida no município de dificuldade aí ela arrumava pra gente trabalhar
Araguaína (TO), começou a trabalhar com 12 anos na casa dos com os vizinho. A vizinha do lado, a gente
vizinhos de sua família, situação na qual lavava e passava roupas lavava roupa pra ela, carregava água, porque a
gente carregava água pra muito longe… e aí foi
e cuidava da casa, dentre outras atividades. Aos 17 anos, foi para
indo né? Lavava roupa, passava… Aí comecei
Brasília (DF) para trabalhar como empregada doméstica e cuidar trabaiando em casa mais longe, mais distante e
de um bebê. Hoje, aos 56 anos, ainda trabalha no mesmo ofício, aumentando mais o serviço né?… porque antes
pois, devido ao atraso em assinar a carteira de trabalho, ainda era só o básico, aí fui lavando roupa, passando,
cuidando de casa aí… até quinze ano.
não conseguiu se aposentar. A terceira entrevistada, Beta, de 57
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ainda narra que sua primeira experiência, aos 14 anos de idade, são marcados desde a infância pela exaustão e ela reverbera em
foi péssima. Começou na casa de um policial, cuja família era mentes por meio dos estresses físico e mental.
constituída por mulher e três filhos, porém ficou nessa residência
Ainda sobre Kássia, após sair desse trabalho, ela conseguiu
pouquíssimo tempo: “fiquei uma semana lá, foi péssimo, porque
outro serviço como doméstica, porém não seria em sua cidade,
lava louça era no córrego, eh… lavava roupa tudo era no córrego
perto de sua família. Agora, ela teria que migrar de Aragominas,
assim, foi ruim!”. (KÁSSIA, entrevista oral, fevereiro de 2022).
onde residia, para Araguaína, perfazendo uma distância de 35,52
Quando a interroguei sobre o porquê de o trabalho ser ruim, km entre as duas cidades. Trabalharia e moraria com uma outra
ela foi enfática: “porque as costas dói, tinha que ficar envergada família, para a qual além de realizar todo o trabalho da casa teria
sentada numa taba, não era igual lavar louça na pia, além da patroa que cuidar dos filhos do casal. A entrevistada relata que viveu
que era muito exigente queria tudo brilhando.”. Ou seja, articulada dias de horrores nessa época, agora já com 16 anos. Ela narra que
às dificuldades enfrentadas por ter que trabalhar ainda menina e dis- sofreu diversos tipos de violências, que ocorriam principalmente
tante de casa, havia a exaustão provocada pela exploração excessiva: quando se recolhia para dormir, após um longo dia de trabalho:
ter que lavar às margens do rio reforçava os níveis de exploração;
a repetição das tarefas e as demandas e caprichos da patroa, que
Um dia eu acordei com ele me tocando, eu
“queria tudo brilhando”. Todos esses fatores juntos foram decisivos fiquei uma semana não precisou de mais de
para Kássia abandonar o trabalho nessa residência logo no início. um dia… Toda noite ele ia no quarto, nas outras
No relato de Olga, a partir de sinais expressos nas entonações de vezes eu só via ele nu, ele não tocava em mim,
sua voz, foi possível perceber como esse primeiro local de trabalho mas aí numa outra vez eu acordei ele tava me
tocando… Eu tinha que dormir de collant, porque
foi estressante para ela: a palavra ruim, destacada com ênfase em eu achava que assim ia impedir dele tocar em
sua fala extrapola o sentido básico de algo desagradável e nos leva mim. Um dia acordei com ele tocando na minha
a refletir sobre o grau de opressão e exploração a que crianças e genitália, quase morri…”. (KÁSSIA, entrevista
adolescentes são submetidas. oral, janeiro de 2022).
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A partir do relato de Olga, podemos perceber que a con- Durante esse período de sua vida, Olga enfrentara, além
dição de trabalho doméstico em que se encontrava evoca traços do trabalho exaustivo, a condição de cárcere, ocasionando um
e características semelhantes às do passado escravista, ademais, sentimento de desespero e revolta. A entrevistada relata que sua
ela passara por processos de exploração, dominação e violência primeira tentativa de deixar a chácara, quando pediu demissão,
simbólica. A patroa exercia sobre Olga diversas exigências e foi negada: a empregadora desprezava seus pedidos de demissão
imposições, estabelecendo, sobretudo, restrições e proibições, e até mesmo seu desejo de querer deixar o lugar. Teixeira, Saraiva
além de dificultar o contato com os familiares da trabalhadora. e Carrieri (2015, p. 166) afirmam que, “quando as empregadas,
Ao me contar essa história e o desfecho dela, observei que nela ao contarem sua história de vida, se referem aos lugares que
havia uma sensação de alívio, finalmente o pesadelo havia ter- já viveram, há uma referência sentimental a eles atribuída por
minado. Ela narra: acontecimentos e sensações que ficaram em suas memórias.”.
No caso de Olga, nota-se um sentimento de revolta por ter sido
Aí quando foi um dia eu tava falando pra ela mantida aprisionada naquele lugar e, ao mesmo tempo, uma
né, eu disse aí a senhora me leva lá no ônibus sensação de alívio e liberdade, pois finalmente ela pôde retornar
porque eu não dou conta de ir só e eu quero ir para casa.
mimbora eu quero ter notícias da minha mãe,
que eu não tenho notícia da minha mãe. Aí As experiências relativas ao trabalho análogo à escravidão
ela foi e falou que de lá eu não saia. Quando não raro vêm acompanhadas de racismo. Assim, quando per-
ela falou assim aí o fi dela ia chegando e foi
guntamos a Olga se ela já havia enfrentado racismo, obtivemos
perguntando “Uai porque que ela não pode
sair?” Aí ela foi e falou: “Não, é maneira de falar”. a seguinte resposta: “Já! Já até faleceu, que Deus a tenha onde
Mas não era não, já era a segunda vez que ela tiver. Ela era mãe da minha patroa, não era nem minha
ela dizia pra mim que de lá eu ia sair que ela patroa não. Ela só me chamava: ‘Essa Negra. Não gosto desta
não ia deixar eu sair de lá. [Patroa]: “Eu gostei
negra’”. Em seguida, questiono como ela se sentia quanto ao
muito de seu serviço, você não vai sair daqui!”
[Olga]: Não mais eu não quero ficar! [Patroa]:
tratamento recebido:
Não, aqui não tem disso não, cê só sai se eu
quiser! Não tinha como pedir ajuda, minha
Não eu levava era na brincadeira porque de
vontade era gritar mas não podia, porque a
racismo né?
vizinha da minha mãe, que arrumou pra mim
ir, também tava junto com isso. Foi sufoco,
mas graças a Deus eu consegui sair de lá. Foi Aí eu falava pra minha patroa eu falava: nossa…
o filho dela que me ajudou a sair. (Entrevista Óh meu Deus do céu mas a Dona Ana ela não
oral, fevereiro de 2022). gosta de mim. Aí ela dizia: Olga leva lá isso aqui
pra minha mãe! Eu dizia: A Dona Ana*3 não gosta
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O resto era dos pratos dele que tava lá. Ela [patroa]
É tanta coisa que a gente escuta né? (Entrevista disse assim: “Você é muito é mal-agradecida, da
oral, fevereiro de 2022). onde que você veio? Tinha comida todo dia?”. Eu
disse: tinha! todo dia minha mãe ela trabalhava
lavando roupa, mas todo dia ela tirava da boca
Compreendemos que, apesar de Olga entender que as dela, ela cansou de levar comida do serviço dela
falas da senhora e o seu tratamento eram racistas, até um certo que era pra ela almoçar, ela levava pra nois em
casa. Num levava o resto não, levava o pratinho
momento de seu relato ela demonstrava encarar a situação de prontinho pra nois comer em casa… (Entrevista
“forma descontraída”. Contudo, quando, ao final da narrativa, oral, fevereiro de 2022).
ela abaixa a cabeça, suspira e fala: “É tanta coisa que a gente
escuta né?”, naquele momento, percebemos que as falas e o
As expressões de Olga, enquanto relatava o ocorrido,
comportamento da patroa feriam Olga e ainda a machucavam.
eram de repulsa e indignação, havia também um sentimento de
Episódios de racismo dentro do trabalho doméstico é algo bastante
humilhação:
comum, principalmente em decorrência da herança escravista
ainda associada a esse tipo de trabalho. Em consonância com
Quando eu cheguei lá, nossa senhora, num
isso, Pereira (2011) afirma que a atual situação da mulher negra é
gosto nem de me lembrar. Ai, a mulher era
fruto de raízes históricas. Além dessa vivência, sem se dar3 conta, muito violenta, ela só falava aos gritos com a
gente. Tudo que a gente fazia ela saía passando
3 Com o intuito de preservar a imagem e a integridade do citado, identificamos a mão, mandando a gente limpar de novo, dizia
apenas por “Dona Ana”.
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No caso, é o habitus que define a perspectiva e percepção Por outro lado, apesar de haver esse sentimento de satisfação
dessas trabalhadoras de que “gostam de seus trabalhos enquanto em relação aos seus trabalhos, compreendemos que, por conta
empregadas domésticas”. Todavia, podemos observar que, por da dominação que é exercida sobre elas, suas percepções acerca
trás desse sentimento de realização em decorrência das mudanças da subalternização que sofrem em seus respectivos trabalhos
das condições de trabalho – direitos trabalhistas e previdenciários são comprometidas.
–, além das boas relações com as patroas, evidenciam também
Quando interrogo Olga sobre se ela sente que seu trabalho é
como essas mulheres, em decorrência também do habitus, não
tido como inferior para algumas pessoas, ela responde que: “Sim,
percebem o grau de dominação e exploração no qual a profissão
sinto! Porque, assim, as pessoas diminuem a gente!”. Enquanto
de empregada está submetida.
ela me fazia suas afirmações, percebi em suas expressões que
Beta, por exemplo, afirma que “apesar de não ser fácil ela não entendia o porquê de algumas pessoas menosprezarem
devido às questões de saúde e por não ser mais tão jovem, gosta e inferiorizarem o trabalho doméstico, pois, segundo ela com-
do que faz” (Entrevista oral, fevereiro de 2022). Assim, podemos preende, seu ofício é digno como qualquer outro.
observar que o trabalho doméstico na vida dessas mulheres faz
Contudo, observei que a desvalorização e estigmatização
parte também da construção de suas identidades. Kássia diz que
em relação ao trabalho doméstico, por parte de algumas pessoas
gosta do que faz mesmo sendo um serviço por vezes desvalorizado:
com as quais as trabalhadoras convivem, contribuem também
“Eu gosto de trabalhar, é difícil, mas eu gosto...” Olga afirma
para que elas entendam que, apesar de gostarem do que exercem,
que: “Eu gosto! Não sei... é porque é o que eu sei fazer, né? Mas
essa atividade sofre um estigma negativo.
eu gosto e eu gosto principalmente quando eu tô cozinhando,
né? Eu gosto de cozinhar!” (Entrevista oral, fevereiro de 2022). Seja como for, a compreensão partilhada por essas
Com um enorme sorriso, ela diz que ganha o dia quando o filho mulheres trabalhadoras domésticas é a de gostarem de seus
da patroa elogia sua comida. trabalhos, sendo importante destacar que esse “gostar” se
relaciona diretamente às situações atuais de seus empregos
Nesse sentido, quero destacar que, ao final das entrevistas,
e das relações com os empregadores, como destaca Beta:
perguntei sobre o que elas sonhavam em ser antes de trabalharem
“Ah, hoje eu gosto, a pessoa com quem eu trabalho é muito
como domésticas. Observei que todas pararam, pensaram e sorri-
boa.”. Além disso, seus sonhos antigos de seguirem profissões
ram timidamente, e então me falaram: policial, bancária e freira.
diversas foram substituídos por outros: hoje sonham com
Todas riam e diziam ser um sonho bobo e distante, mas ao mesmo
a aposentadoria.
tempo imaginavam-se vivendo aquilo. Dessa maneira, apesar da
vida ter tomado rumos diferentes e seus trabalhos serem mais
marginalizados, elas defendem o quão importante é o seu ofício.
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a metodologia da educação patrimonial apresenta significados dade de Araguaína, convertendo o Mercado Público municipal
para a vida prática dos alunos. Para tanto, estudamos os espaços em um epicentro e irradiador desses elementos culturais em
do Mercado Municipal de Araguaína buscando compreender constante ebulição.
como diferentes espaços podem ser utilizados como recursos
Desde a antiguidade, o mercado é parte essencial da vida
para dinamizar o ensino de História na sala de aula. Um estudo
dos cidadãos. Entre as diversas obras arquitetônicas de Roma, por
de campo foi realizado com os alunos da 1ª série do ensino médio
exemplo, se destaca o Forum Romanum, lugar onde os cidadãos
da Escola SESI de Araguaína-TO, em 2016. As aulas/oficinas
tinham contato com a vida pública através das mais variadas
foram propostas a partir das fases da metodologia da educação
funções que esse recinto desempenhava, contendo desde os
patrimonial (observação, registros, exploração e apropriação)
templos de culto, como também prédios de justiça. Através das
levando em consideração o Patrimônio Cultural e os lugares sig-
assembleias e dos discursos feitos por oradores inflamados, o
nificativos1 encontrados dentro do espaço do Mercado Municipal.
cidadão romano ficava a par do que acontecia na cidade, pois o
O Mercado Público Municipal de Araguaína foi fundado em Forum Romannum recebia “multidões ainda maiores que eram
1978, período em que o município de Araguaína ainda pertencia atraídas para o centro, a fim de comprar, de fazer o culto, de
ao Estado de Goiás, em um contexto de grande efervescência trocar boatos, de tomar parte como espectadores ou atores em
política e de agravamentos econômicos, durante o governo presi- negócios públicos ou em processos privados” (MUMFORD,
dido pelos militantes, representados na figura do General Geisel 2004, p. 245).
(1974 – 1978). Surgem então os mercados, sendo estes espaços
Depois de séculos do fim do Império Romano e a perca
para atividades comerciais como também para trocas culturais.
da importância que o comércio teve em favor da economia de
Essas trocas culturais se dão a partir do contato com os subsistência, no século XI os mercados públicos ressurgem, tendo
diversos produtos que ali podem ser encontrados: comidas típicas, sua história associada ao desenvolvimento urbano, pois foram as
artesanatos, remédios medicinais, doces caseiros, enfim uma feiras e os mercados que proporcionaram grandes transformações
gama de gêneros que traduz o modo de vida e a subjetividade sociais, econômicas e paisagísticas, uma vez que vários núcleos
do seu produtor, propiciando o saber fazer como um elemento da urbanos (burgos) surgiram em torno das atividades comerciais
cultura imaterial peculiar do município que, em trocas culturais dando origem a novas instituições, como os bancos e de um novo
com outros Estados, ao longo do tempo, vem formando a identi- segmento social (burguesia).
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(FILGUEIRAS, 2006). Dessa forma, o mercado é visto não tização dos conceitos de patrimônio cultural, perpassando pela
apenas um centro abastecedor, mas um ambiente de forte inte- importância da história, memória e identidades. Entendemos os
ração social. O mercado é o “centro natural da vida social, pois bens patrimoniais presentes no Mercado Municipal como fontes
está no centro de uma vida de relações” (BRAUDEL, 1985, p. que possibilitam a imersão e reflexão sobre o passado a partir
18). Através de relações cotidianas podem se estabelecer uma de referências do presente. Iniciamos as atividades de educação
série de elementos, tais como hábitos alimentares, vestuários, patrimonial, seguindo-se a metodologia de Evelina Grunberg
entre outros que caracterizam o cidadão através dos hábitos que, através de seu Manual de atividades práticas de educação
de consumo. patrimonial (2007), divide a educação patrimonial em quatro
fases: observação, registro, exploração e apropriação.
De certo, o Mercado Público Municipal pode ser com-
preendido como um espaço social onde se encontram diversos Simultaneamente, aos alunos foram entregues papel, caneta e
agentes sociais com variadas formas de expressar seu modo de prancheta para que fizessem as devidas anotações sobre as observa-
viver e de observar o mundo, acabando por se tornar um ponto ções e registros dos bens culturais selecionados. Nessa perspectiva,
de encontro entre as diversas culturas que compõem o mosaico fora solicitado que anotassem tudo que chamasse a atenção.
da cultural local, pois as feiras e os mercados públicos podem
ser vistos não apenas pelo seu viés econômico, mas como um Figura 1 – Professor e alunos na área externa do Mercado
Municipal de Araguaína, em fase de observação da
epicentro cultural, pois nesses espaços, diversos modos de vida oficina de educação patrimonial (05/2016)
são representados através dos produtos que carregam as impres-
sões dos agentes sociais que os conceberam.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína
Para as autoras Evelina Grunberg, Maria de Lourdes Figura 2 – Placa de fundação do Mercado Público
Pereira Horta e Adriane Queiroz Monteiro (1999), a observação Municipal. Araguaína – TO (05/2016)
O grupo A, composto por doze alunos, ficou interessado em Figura 3 – Placa da reforma do Mercado Municipal de Araguaína (05/2016)
fazer o levantamento do histórico do Mercado. Então, iniciaram
suas atividades de reconhecimento do espaço colhendo informações
através de registros fotográficos e anotações no caderno de campo.
A primeira observação que o grupo fez ao entrar na parte mais
antiga do Mercado foi sobre a placa de inauguração do Mercado
Público Municipal de Araguaína na década de 1970, mais especifi-
camente no ano de 1978. A placa contém informações como nome
do governador de Goiás, ministérios de governo, superintendência
de desenvolvimento do centro oeste e secretarias de estados. Dados
que, se analisados, apresentam o contexto político e econômico do
estado e as políticas públicas do governo militar brasileiro para a
região do norte goiano. Essa história era desconhecida para a maioria
dos alunos. A partir dessa observação, organizamos a próxima fase
denominada exploração, na qual os alunos se propuseram a estudar
mais sobre a história do estado. Esse despertar para a história local Fonte: V. D. C. (2016).
é importante já que os alunos não têm conteúdos de história local
ou regional no currículo.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína
A segunda placa reproduzida na Figura 3, faz referência à e lembrou-se da vovó? A memória está relacionada com as
entrega da reforma do Mercado Público Municipal cuja reinau- nossas formas de nos alimentar, pois a alimentação pode ser
guração aconteceu em 14 de abril de 2011. A placa possibilita vista como uma das primeiras formas de socialização. Assim,
algumas informações sobre o cenário político da cidade. os alunos foram desafiados a lembrarem de algo que estivesse
ligado à comida, assunto sobre o qual todos tinham história
O grupo B optou por trabalhar com o “mundo dos sabores”
para contar de uma viagem, de uma reza, de um casamento
através dos temperos e das comidas típicas. Na fase de observação
ou de um aniversário. O historiador e antropólogo Genilson
e registro, elas tentaram fazer entrevistas com alguns comercian-
Nolasco faz referência a Maciel (2006), que trata a culinária
tes, porém, não tiveram sua permissão. Aceitaram apenas tirar
como “um resultado de um processo histórico que traz em
fotografias e anotar as informações dos feirantes.
si elementos das mais diversas procedências que aqui foram
Figura 4 – Parte interna do Mercado Público Municipal. modificados, mesclados e adaptados” (MACIEL, 2006, p.
Expositor de temperos e alimentos (05/20016) 93, apud NOLASCO, 2013, p. 104). Maciel ainda cita Lemos
(2006) que trata do alimento com um artefato, cuja elabora-
ção foi resultado de conhecimentos acumulados e passados
por gerações.
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Figura 5 – Banca de remédios caseiros – Mercado Através da observação e do registro, realizados de forma
Municipal de Araguaína (05/2016) concomitante, os estudantes entraram em contato com um tipo
de conhecimento que poucos tinham ouvido falar, o uso dos
remédios caseiros. Poucos sabiam de sua existência e muitos
falaram que essa prática era feita pelos seus avós. Um grupo
de alunos gostou da temática, e, juntamente com o professor
de biologia, no laboratório da Escola SESI, estão mapeando as
plantas medicinais da região.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína
do ensino da história é desenvolver nos alunos uma consciência tos, foi possível perceber que os alunos passaram a enxergar
histórica que são as “operações mentais com as quais os homens o Mercado com um “espaço de aprendizado”, o que pode ser
interpretam suas experiências da evolução temporal de seu mundo demonstrado através de frases como: “Nunca imaginei estudar
e de si mesmo, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, história na feira.”, ou “Professor, temos que estudar outros pon-
sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2001, p. 57). tos da cidade!”, ou ainda, “Estudar fora da sala tornou a aula de
história mais viva!”.
Durante a visita, um dos alunos questiona: “... por que
não estudamos História sempre assim? Ficamos presos tanto ao Outras colocações puderam ser percebidas também na
conteúdo do livro que não aprendemos nada sobre nós mesmos, produção de texto que foi realizada, na qual um dos alunos
nossa cultura e gente!” (Y. P., 2016). Percebe-se que eles come- sublinhou: “Com a pesquisa feita no Mercado Municipal de
çam a dar sentido ao estudo da História, porque a mesma passa Araguaína, fizemos várias descobertas e uma delas foi a de remé-
a ter significado e fazer parte do seu cotidiano. Dessa forma, a dios caseiros que são trazidos de outras regiões, ou até mesmo
Educação Patrimonial e o Ensino de História enfatizam uma produzidos pelos próprios vendedores.” (V.N.M., 2016). Disse
aprendizagem significativa e transformadora. Significativa no ainda que: “Quando olhamos para o mercado de forma crítica
sentido de mostrar ao aluno que o ensino de História faz uma percebemos mais que um lugar barulhento, cheio de pessoas e
leitura e uma interpretação do homem no tempo e no espaço e é mercadorias, percebemos que ele faz parte da história do Brasil,
transformadora por proporcionar uma reflexão de si e do contexto e da nossa própria história.” (V., 2016).
que o cerca, indo além dos conteúdos programáticos oficiais.
O Mercado Municipal foi ressignificado pelos alunos. Eles
Depois de realizadas as fases de observação e registro passaram a ver o espaço não apenas pela sua dinâmica econômica,
dos objetos culturais escolhidos pelos alunos, atividades essas percebendo-o como um lugar de diferentes saberes, contatos e
realizadas no mercado e no entorno dele, iniciamos a terceira de relações de poder. Essa percepção pode ser notada quando
fase da educação patrimonial denominada exploração. Para Horta os alunos afirmaram que o medo dos mercadores (feirantes) em
(1994), a exploração é o momento de análise, questionamento, não aceitarem as entrevistas e nem mesmo em serem fotografa-
hora de interpretar o que foi pesquisado tendo como foco o dos acabariam silenciando esses personagens e colocando-os à
desenvolvimento de um olhar crítico sobre o que foi observado margem da história. Um aluno sintetizou no seu texto que:
e registrado. Essa nova etapa de trabalho iniciou-se na sala de
aula com abertura de uma roda de conversa, na qual cada grupo Trabalhar com o levantamento cultural do mercado
tinha a liberdade de compartilhar as experiências de campo, bem foi uma ótima experiência para nós alunos. Com
como as dificuldades encontradas, expondo o que mais chamou as entrevistas podemos imaginar a evolução do
mercado que através dos anos foi juntando culturas
a atenção durante as duas primeiras fases do projeto. Nos rela-
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína
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Figura 7 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica. Figura 9 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica
Figura 8 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica Figura 10 – Quarta fase da Educação Patrimonial: produção de textos
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
diversos ‘patrimônios’ cada qual contando um pouco de nossa Perfil dos Professores de
História. Não existe um único ponto de vista para a História de História da Educação de Jovens
uma localidade.” (V.L., 1°A, 2016). Enfim, fica a lição: não basta e Adultos em Araguaína-TO
apenas ensinar o conteúdo, mas observar como ele é percebido,
elaborado e apropriado pelos alunos.
Laila Cristine Ribeiro da Silva
REFERÊNCIAS
BRAUDEL, Fernand. Os Jogos das Trocas: Civilização material, economia e
capitalismo, séculos XV-XVIII, tomo 2. Tradução Maria Antonieta Magalhães
Godinho. Lisboa: Cosmos, 1985. (Coleção Rumos do Mundo).
FILGUEIRAS, Beatriz Silveira Castro. Do mercado popular ao espaço de
vitalidade: o Mercado Central de Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado
em Planejamento Urbano e Regional. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro: 2006. INTRODUÇÃO
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Brasília, DF: IPHAN, 2007.
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HORTA, M.L.P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Guia básico de educação
patrimonial do IPHAN. Brasília; Petrópolis: IPHAN, 1999. 2019) revelam o quantitativo de 11,3 milhões de analfabetos entre
NOLASCO, Genilson Rosa Severino. As faces do patrimônio cultural. In: a população de 15 anos ou mais no Brasil. O número corresponde
PEDREIRA, Antônia Custodia (Org.). As diferentes faces e interfaces do a 6,8% dessa população. No ano de 2018, segundo o Instituto
patrimônio: registros para preservação e memória. Porto Nacional – TO,
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
2013.
(Censo/INEP, 2018), o total de 3.598.988 brasileiros estavam
NORA, Pierre, Entre memória e História: a problemática dos lugares,
Tradução Yara Aun Khoury, Revista Projeto História. V. 10 (1993). Jul/Dez, matriculados na Educação de Jovens e Adultos. Essa estatística
1993, p. 07-28. “não deixa dúvida quanto à baixa efetividade das estratégias
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e de governo para a elevação da escolaridade da população [...]”
perspectivas. Tradução Neil R. da Silva. Martins Fontes: São Paulo, 2004.
(VENTURA, 2017, p. 149). Ainda se soma a tais fatores, o
QUEIROZ, Moema Nascimento. A Educação Patrimonial como Instrumento
de Cidadania. Revista Museu. Disponível em www.revistamuseu.com.br/ número considerável de evasão e abandono escolar, o que agrava
artigos. Acessado em 06 de julho de 2016. o quadro de marginalização e negação ao direito à educação e
RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011. à cidadania plena.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
(SEDUC-TO), ressalta que o Estado do Tocantins oferta, desde Figura 6 – Grau de instrução no município de Araguaína
o ano de 1996, a modalidade educacional EJA. O documento
diz estar alicerçado em fundamentos e concepções de uma
educação problematizadora: “A Educação de Jovens e Adultos
tem no ideário freireano sua gênese, no qual o processo educa-
tivo parte do exame crítico da realidade e da possibilidade de
sua superação” (TOCANTINS, 2008, p. 37). Nesse sentido, as
ações educativas devem ser percebidas como uma ação social
que “considere as relações escola-comunidade e o retrato cultu-
ral” capazes de produzir “uma prática educativa articuladora da
teoria com a prática”, tendo o educando como sujeito do processo
(TOCANTINS, 2008, p. 41). Ainda de acordo com as Diretrizes
Curriculares estaduais, no Tocantins:
228 229
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
A categoria trabalho é o referencial mais forte que permeia Oferecer no mínimo 60% (sessenta por cento)
a necessidade de manutenção e retorno do estudante da EJA das matrículas de Educação de Jovens e Adultos,
na forma integrada à Educação Profissional,
na realidade municipal de Araguaína. Fica evidente de que se nos Ensinos Fundamental e Médio (ARAGUAÍNA,
trata de uma educação para trabalhadores e, por esse motivo, PME, 2015, p. 87, grifo nosso).
o Conselho Municipal Araguainense de Educação aprovou a
implantação, no currículo escolar, de uma disciplina chamada O traço marcante do trabalho, presente na política insti-
Iniciação à Qualificação Profissional, na intenção de salvaguar- tucional da EJA, talvez possa ser entendido em sua perspectiva
dar esse referente político-pedagógico e tecnicista que marca a reducionista, haja vista que uma abordagem profissionalizante
Educação de Jovens e Adultos. por si só não é capaz de definir todas as demandas e heteroge-
As duas metas especificadas no Plano de Educação neidades que compõem a formação dos sujeitos. Nesse sentido,
(Metas 09 e 10) para o desenvolvimento do ensino, também destacamos a ausência, no Plano Municipal de Educação, de
fazem referências a essa característica e delineia as ações que conteúdos mais próximos dos alunos e de metodologias mais
se espera alcançar: participativas. Os próprios jovens e adultos são membros de
coletivos sociais, raciais e de gênero que precisam ser inseridas
dentro do universo dos planos das políticas públicas.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
Dados do IPEA 2015 revelam que a média de anos de qualquer menção específica ao profissional que desenvolve
estudo das pessoas de 15 anos de idade ou mais, segundo cor/ seu trabalho nessa modalidade de ensino. Conforme dados da
raça e localização do domicílio, na região Norte, era de 7,8 anos Secretaria Municipal de Educação (SEMED)2, no ano de 2018,
de estudos para negros e pardos, em contrapartida, 9,0 anos o município de Araguaína contou com 35 escolas e 10 delas
para a população branca. Já em relação ao gênero, os números ofertaram a modalidade EJA na zona urbana, solidificando um
do IBGE/PNAD 2001 constataram que 11,5 dos declarantes do trabalho com o 1º e 2º segmentos. Nestas escolas, atuaram 60
gênero masculino são analfabetos em oposição a 11,0 do gênero profissionais de diferentes formações, atendendo a um total de
feminino, conforme o gráfico abaixo: 971 estudantes matriculados.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
focar na trajetória educacional: 1- Lugar de origem; 2- Início da As informações obtidas especificamente sobre o perfil dos
vida estudantil; 3- O distanciamento da escola; 4- A vida como professores que se tornaram interlocutores desta pesquisa podem
lugar de aprender; e 5- Reencontro com a escola. ser conferidas no Quadro 15.
A segunda fase da pesquisa tratou da aplicação das oficinas Quadro 1 – Perfil dos profissionais do ensino
pelo professor participante e da produção da trajetória de vida de História da EJA em Araguaína
dos estudantes. A terceira e última fase deste trabalho, consistiu
5. HÁ QUANTOS
na realização de um novo encontro de formação continuada para 4. QUAL O ANOS VOCÊ
a análise coletiva dos relatos dos alunos. Por fim, organizamos 3. COMO SEU NÍVEL DE OBTEVE O
1. SEXO 2. IDADE VOCÊ SE ESCOLARIDADE NÍVEL DE
Eixos Temáticos articulados com as vivências e interesses locais, CONSIDERA? (ATÉ A ESCOLARIDADE
GRADUAÇÃO)? ASSINALADO
em uma proposta de interação das trajetórias de vida com o ANTERIORMENTE?
currículo escolar da EJA. Até 24 Branco Há 02 anos
Feminino 04 01 01 Pedagogia 04 01
anos (a) ou menos
De 25
PERFIL DOS PROFISSIONAIS DO ENSINO Masculino 01 01 Preto (a) 01 História 01 De 03 a 07 02
a 29
DE HISTÓRIA DA EJA EM ARAGUAÍNA Outro -
De 30
02 Pardo (a) 03 De 08 a 14 01
a 39
De 40
No ano de 2018, havia 11 professores de História distribuídos em a 49
01 De 15 a 20 01
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
profissional que atua em várias instâncias da prática educativa, público, conforme aponta Silva (2004, p. 231), tem “a função de
direta ou indiretamente, ligadas à organização e aos processos voltar-se para a superação dos mecanismos de exclusão presentes na
de transmissão e assimilação ativa de saberes [...]”. Dessa forma, sociedade e incorporados pela escola em seus princípios educativos
o desempenho de atividades trabalhistas se manifesta de modos e na sua organização cotidiana”.
diferentes, legitimando, inclusive, a docência em diversos níveis6.
Ao tratar da formação dos docentes da disciplina de
Schimidt alerta que precisamos “entender que o conhecimento
História na EJA de Araguaína, é preciso considerar múltiplos
histórico não é adquirido como um dom” (2004, p. 54), o que
aspectos que incidem sobre a graduação inicial. As respostas do
implica dizer que se exige formação na área específica.
questionário aplicado sobre esse quesito, constantes no Quadro
Outro fator de destaque trazido pelos dados é o gênero 2, indicaram as seguintes informações:
feminino. Como aponta Faria Filho (2005) sobre a feminização
Quadro 2 – Formação dos profissionais do ensino
do magistério,
de História da EJA em Araguaína
9. VOCÊ
PARTICIPOU
[...] a atuação no magistério pelas mulheres, 8. INDIQUE A DE ALGUMA
18.VOCÊ
independente da classe social, é permeada de 6.EM QUE UTILIZADA OS
7. DE QUE MODALIDADE ATIVIDADE
TIPO DE CONHECIMENTOS
muitos significados, desde a conciliação dos INSTITUIÇÃO
FORMA VOCÊ DE CURSO DE DE
ADQUIRIDOS
REALIZOU PÓS-GRADUAÇÃO FORMAÇÃO
afazeres da casa, ao ‘protagonismo feminino’ VOCÊ FEZ O NAS ATIVIDADES
O CURSO DE MAIS ALTA CONTINUADA
com a entrada no mercado de trabalho, até ter SEU CURSO DE FORMAÇÃO
SUPERIOR? TITULAÇÃO QUE NOS
SUPERIOR? CONTINUADA EM
o ‘poder’ de ganhar o pão de cada dia (apud VOCÊ POSSUI: ÚLTIMOS
SALA DE AULA?
FEITOSA, 2017, p. 9). DOIS
ANOS?
Especialização
Pública
03 Presencial 03 (Mínimo de 360 03 Sim 04 Quase sempre 01
Federal
Mas, certamente, a feminização do magistério reflete as horas)
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
Professor/a 3: Na verdade falta mais formação Professor/a 3: Mas também nem sempre dá para
continuada que trabalhe as disciplinas né! Todo ano usar o que é repassado em formação... Claro que
tem encontro, mas são poucos para os problemas sempre é conhecimento, mas tem que servir para
que a gente enfrenta. as necessidades do dia a dia [...].
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...
próprio conceito de grupo, o que pode ser observado no comen- ensino fundamental completo. Disponível em: <https://agenciadenoticias.
ibge.gov.br/>. Acesso em: 14 jun. 2019.
tário anteriormente descrito pelo/a Professor/a 2: “Eu até achei
IBGE [cidade]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
que tinha entrado na sala errada, porque a formação hoje tem
<https://cidades.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 dez. 2019.
poucas pessoas, geralmente a formação é com o grupo todo IMBERNÓN, Francisco. Formação Continuada de Professores. Tradução de
que dá aula na EJA”. A noção de grupo pré-constituída pelo Juliana dos Santos Padilha. Porto Alegre: Artmed, 2010.
participante da pesquisa, referenciava a todos os funcionários INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira. Sinopse
Estatística da Educação Básica 2017. Brasília: Inep, 2018. Disponível em:
das escolas que participavam habitualmente dos encontros de
<http://inep.gov.br/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica>. Acesso em:
formação organizados pela Secretaria Municipal. O “novo” 01 dez. 2019.
grupo que passou a se formar para a concepção deste trabalho, IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Disponível em: <http://
redimensionava-se para um número menor e com a característica www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_
content&view=article&id=1226&Itemid=68>. Acesso em: 15 fev. 2019.
específica da docência no ensino de História na EJA.
MARTINS, Raquel Silveira. Os Fóruns de EJA como espaço de formação
continuada de professores: análises por meio de grupos de discussão.
Formação Docente, Belo Horizonte, v. 05, n. 08, p. 92-108, jan./jun. 2013.
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2016: 51% da população com 25 anos ou mais do Brasil possuíam apenas o
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
INTRODUÇÃO
246 247
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional
A trajetória dos estudos de História Local e Regional está de urbanização e formação de uma classe industrial no estado
ligada ao surgimento da Nova História, na França, em 1929, o de São Paulo, de forma que apaga outros processos históricos
que possibilitou uma nova concepção de objetos, fontes e docu- que ocorriam nas regiões Centro-Oeste ou Norte do Brasil ou
mentos no métier historiográfico. No Brasil, pesquisas nesta área até mesmo nas pequenas cidades interioranas.
cresceram a partir dos anos 1970. Segundo Bittencourt (2005,
p. 161), essa ampliação se deve, sobretudo ao esgotamento das
A EXPANSÃO DOS ESTUDOS REGIONAIS E LOCAIS
macroabordagens focadas em análises gerais. A autora pontua que:
248 249
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional
a definição de local e regional este acolheu na sua pesquisa e política e geográfica visto que, no ano de 1980, por exemplo, este
na sua vivência. Se, de um lado, o estudo do Local e Regional ainda não existia. Na época da criação da rodovia Belém-Brasília,
se mostra mais ligado ao dia a dia dos envolvidos, por outro, há um fato importante para a história das migrações e construção de
de pensar se essa definição está servindo como legitimação dos cidades no Tocantins, esta região era chamada de Goiás. Logo,
discursos políticos hegemônicos dos grupos de poder de cada não se pode escrever uma história local e regional de qualquer
região, visto que a escrita historiográfica pode vir a assumir cidade nascida após a criação da famosa rodovia no Tocantins e
propósitos de criação de uma dada memória e legitimação de fazer menções de memórias de mais de trinta anos sem correr o
poder sobre um espaço ou território ou que, feita sem a devida risco de anacronismo. Nenhum morador desta terra se declararia
reflexão, pode acabar por simplesmente reproduzir os discur- tocantinense. Afinal, existia o próprio estado do Tocantins. No
sos dos vencedores. Configura-se, neste ponto, os cuidados e entanto, alguns textos escritos logo após a criação do estado do
a necessidade de pensar desde a definição dos conceitos até a Tocantins, elogiam o clamor popular pela emancipação, pela
compreensão que o historiador do local e regional assimila das afirmação de uma identidade puramente tocantinense. Assim,
palavras “local e regional”. chamamos atenção para que a História Local e Regional venha
a ser feita deixando bem claro que região é um termo referente
Em uma definição etimológica, a palavra região deriva do
ao território, visto como um espaço de luta e disputas políticas.
latim “regere”, cuja tradução é controlar, dominar, reger, gover-
nar. Também deriva da mesma a expressão “régia”, referente ao A necessidade de assumir uma postura crítica frente ao
poder dos reis. Logo, região é a área que não se estrutura e não documento oficial, em se tratando de investigar lugares resultantes
se mantém sem o exercício de poder e fiscalização. A palavra de divisão territorial e as identidades que se querem negar ou
Regere também deu origem ao vocábulo “regional”. Claramente, admitir em determinado espaço, é levantada por Durval Muniz
o termo região tem sentido associado ao aspecto físico, geográfico de Albuquerque Junior, no texto Um Quase Objeto: algumas
ou espontâneo. Portanto, ao se falar de identidade regional, por reflexões em torno da relação história e região (2015).
exemplo, já temos em mente que a identidade foi alicerçada na
memória coletiva e social, logo, o sentimento de regionalidade
Quando o historiador consulta a documentação
apresenta um modo constituinte e estruturante bastante comum
oficial e assume acriticamente a divisão territorial,
ao de identidade se estivermos levando em conta uma região pelo as identidades espaciais que a organizam e
viés do oficial e governamental, ou seja, a regionalidade surge atribui a ela dados sentidos, como, por exemplo,
a partir de um esforço de construção. a de serem expressões de identidade nacional,
regional ou local, o historiador pode estar se
Tomando-se o estado do Tocantins como “região”, fica deixando capturar pela rede de poderes e de
explícito como o termo se refere a uma categoria absolutamente interesses que levantaram à guarda e à organização
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional
Para o autor, a região é um objeto em fuga, que se busca HISTÓRIA LOCAL E REGIONAL NO TOCANTINS
capturar e definir infinitamente. Faz parte da necessidade humana,
pelo menos na cultura ocidental, de possuir, limitar e controlar a Até 1988, o estado do Tocantins, ou antigo norte goiano, era defi-
terra. A região é inventada e reinventada como parte da neces- nido pelo IBGE1 como integrante da macrorregião Centro-Oeste
sidade utópica de criar a identidade e a diferença. Afinal, se sou e na data precisa de 05 de outubro de 1988 passou a pertencer à
tocantinense, isso implica dizer que não sou maranhense e nem região Norte. Acontece que uma mudança destas significa muito
pernambucana e quem não se declara tocantinense é diferente além do câmbio de uma nomenclatura, ela mexe com séculos
de mim. Uma invenção que se apoia em várias outras manifes- de enraizamento de regionalidade e identidades construídas por
tações de aspecto cultural, sendo a própria cultura arquitetada um sistema que gerou divisões, debates e até espaço para pre-
e sustentada, de acordo com o antropólogo estadunidense Clif- conceito e xenofobia. O sentimento de pertencimento a uma das
ford Geertz (2008), por um conjunto de símbolos e significados cinco regiões foi um processo de construção que Albuquerque
coletivos que reproduzimos para sermos aceitos no grupo social, Junior detalha na sua tese de doutoramento e livro A Invenção
estando o homem, assim, preso a esta teia de significados que do Nordeste e outras Artes, nos quais analisa como o processo
ele mesmo ajudou a tecer. A região, neste contexto, almeja de nordestinização foi construído em uma parte do país através
estabelecer a área física de atuação e validade destes símbolos da música, obras literárias, estudos sociológicos, cinema e teatro
e significados culturais. de modo a afirmar a diferença daquela parte do país de todas as
outras. Ou seja, de como se criou uma região.
Levantadas estas questões, Albuquerque Junior defende que
o historiador tenha a prerrogativa de definir sua própria região e
questionar limites impostos politicamente. Ora, o nosso trabalho 1 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão responsável pela
divisão regional do território brasileiro. Para reunir estados em uma mesma região
é feito em um local que a região e a identidade mudaram nos são utilizados critérios como semelhanças nos aspectos físicos, econômicos,
últimos anos. Por exemplo, o estado do Tocantins já foi Norte culturais, humanos e sociais. A divisão em vigor foi estabelecida no ano de 1970,
definida por cinco Regiões: Norte, Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional
O nosso local, especificamente nas cidades fundadas a tes. Uma vez que, para esses povos, divisões políticas estatais
partir da década de 1960 no estado do Tocantins, é um território resultantes de disputas de representações, não fazem sentido.
em que se pode perceber a plasticidade e liquidez das identidades. A exemplo do povo Karajá que tem como eixo de vivência
Primeiro que muitos dos imigrantes ainda não se consideram o rio Araguaia, no qual constroem as aldeias às margens do
tocantinenses. Quando perguntados de onde são, a resposta sempre rio e seguem acompanhando o regime de cheias e melhores
remete à terra natal: sou maranhense, sou piauiense, sou mineiro. pontos de pesca ao longo do ano. Para a cosmovisão dos
Declarações que ouvimos de pessoas que, mesmo morando há brancos, este rio atravessa quatro estados da federação. Mas
trinta, quarenta ou cinquenta anos aqui, se orgulham da origem teria alguma pertinência para estes povos, que concebem as
“nordestina”, esta também criada e muitas vezes caricaturada. águas do Araguaia como o próprio sangue que corre em suas
Portanto, se o ensino de História pode contribuir para reforçar as veias, definir se aquela parte do rio está no Tocantins, Goiás,
identidades e regionalidades, ele serve também para questioná-las Pará ou Mato Grosso? Igualmente para a população branca e
e mostrá-las em sua multiplicidade. ribeirinha do Tocantins, que pesca no rio e cada margem já
representa um município diferente. Em muitas áreas, é o rio
Diante disso, temos algumas considerações sobre a nossa
Araguaia a fronteira natural entre os estados do Tocantins e
definição de região. O território onde ficam as cidades de Colinas
Pará. Então, para as pessoas em ambas as margens, qual seria
do Tocantins, Guaraí, Araguaína e outras cidades do entorno,
a diferença entre o modo de vida paraense ou tocantinense?
tem grandes semelhanças com o território maranhense (definido
Não parece um tanto mais admissível definir o Araguaia como
Nordeste), paraense, (Norte) e Goiano (Centro-Oeste). A seme-
a região desses ribeirinhos?
lhança deriva-se do ajuste que os povos fizeram para habitar as
terras da bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins. Faz-se pertinente A definição de local é ainda mais ambígua, afinal todo
lembrar que nossos habitantes originais são os povos indígenas lugar é um local. Se o historiador estiver em qualquer uma
de diversas etnias que vivem nesta terra. Da mesma forma, os das cidades do Brasil com população de mais de um milhão
primeiros ciclos de exploração feitos pelos portugueses se davam de habitantes, não há razão para negar que este faz História
pela bacia Araguaia-Tocantins. Assim, povos das fronteiras dos Local. Entretanto, presume-se que a alcunha de História Local
três estados dividem uma história de migrações e povoamento só ocorre quando é feita em regiões menores. Resta prevenir
muito comuns. Povos que construíram seu espaço de vivência qualquer presunção de que este tipo de trabalho seja feito
muito antes que alguém ou algum órgão chegasse e dividisse, com um olhar de depreciação ante ao nacional e internacional
limitasse e nomeasse como macrorregião, estado, cidade. quando o historiador trata das cidades do interior. Cuidemos
em admitir também como “local” o lugar de onde fala o his-
Essas divisões geram ainda divergências porque temos
toriador e constrói sua História Local. Ideia defendida pela
terras indígenas que não podem ser divididas por esses limi-
historiadora Maria da Conceição Meireles Pereira:
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS
Vasni de Almeida
Professor Associado II da Universidade Federal do Tocantins, UFT,
Campus Porto Nacional, Curso de História. Docente do Programa
de Pós-Graduação em História das Populações Amazônicas –
PPGHISPAM e bolsista produtividade da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Tocantins – FAPT. E-mail: vasnialmeida@uft.edu.br
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