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HISTÓRIA

E MEMÓRIAS
DE ARAGUAÍNA
- TOCANTINS
Olivia Macedo Miranda de Medeiros
Vera Lúcia Caixeta
(Organizadoras)
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE
ARAGUAÍNA - TOCANTINS

Olivia Macedo Miranda de Medeiros


Vera Lúcia Caixeta
(Organizadoras)

Araguaína
2023
REITORIA
Airton Sieben
Eroilton Alves dos Santos
Superintendente de Infraestrutura SUMÁRIO
Reitor pro tempore Clarete de Itoz
Natanael da Vera-Cruz Gonçalves Araújo Superintendente de Tecnologia da Informação
Vice-reitor pro tempore Andressa Ferreira Ramalho Leite
Kênia Ferreira Rodrigues Superintendente de Comunicação
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação Roberto Antero da Silva
Denise Pinho Pereira Diretor do Centro de Ciências
Pró-reitora de Planejamento, Orçamento Integradas (Cimba) - CCI
e Desenvolvimento Institucional Andressa Francisca
José Manoel Sanches da Cruz Diretora do Centro de Ciências Agrárias - CCA
Pró-reitor de Assuntos Estudantis Fernando Holanda Vasconcelos
Diretor do Centro de Ciências da Saúde - CSS
Warton da Silva Souza PREFÁCIO
Pró-reitor de Finanças e Execução Orçamentária Marco Aurélio Gomes de Oliveira
Martha Victor Vieira 5
Andréia de Carvalho Silva Diretor do Centro de Educação,
Pró-reitora de Gestão e Humanidades e Saúde- CEHS
Desenvolvimento de Pessoas Meirilane Leocadio APRESENTAÇÃO
Braz Batista Vas Diretora do Sistema de Bibliotecas da UFNT Olhares Cruzados: História, Memória e 11
Pró-reitor de Graduação Joana Marcela Sales de Lucena Representações Sobre Araguaína-TO
Rejane Cleide Medeiros de Almeida Coordenação da Editora Universitária - EDUFNT
Pró-reitora de Extensão, Cultura
e Assuntos Comunitários Do Presente ao Passado de um Ofício: rememorações
Conselho Editorial dos tropeiros de Araguaína e região 25
Adriano Lopes de Souza   |  Alesandra Araújo de Souza
César Alessandro Sagrillo Figueiredo  |  Joaquim Guerra de Oliveira Neto A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica
Mara Pereira da Silva  |  Rozana Cristina Arantes  |  Ruy Ferreira Da Silva
Cimba em Araguaína (1964-1974) 55
Projeto gráfico de capa e miolo: Zeta Studio
Um Novo Hospital para Araguaína: a OSEGO
e os avanços na área da saúde 71
Assistir ao necessitado e redimir os pecados:
as práticas religiosas e sociais das mulheres 91
presbiterianas em Araguaína
Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa
Funda” em Araguaína-TO 107
“Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”: a
história da Umbanda em Araguaína 127
ISBN:
Araguaína e a construção de uma identidade
na contramão da História (1978-1998) 149
O Espaço do Agronegócio no Município de
Araguaína (TO): a territorialização do capital 161
e sua relação com a agroindústria
Histórias de vida das empregadas domésticas de PREFÁCIO
Araguaína – TO: entre lutas, violências e resistências 179
Mercado Municipal da Cidade de
Araguaína: ensinando História 207
Perfil dos Professores de História da Educação Martha Victor Vieira
de Jovens e Adultos em Araguaína-TO 227
Professora do Curso de História da
História Local e Regional 247 Universidade Federal do Norte do Tocantins

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES 259

Neste ano de 2022, eu completei duas décadas de residência


em Araguaína. Tenho a sensação de que o tempo passou veloz,
implacável e sorrateiro feito um ladrão. Na memória forasteira,
ficaram poucos rastros das primeiras impressões, agora já reelabo-
radas, quando não inundadas pelas águas do Lete. Este livro que
aborda os aspectos históricos desta hospitaleira cidade, por meio
de testemunhos orais, trouxe-me à lembrança que, ao receber o
convite, por e-mail, para trabalhar na Universidade Estadual do
Tocantins (UNITINS) foi a primeira vez que eu ouvi falar do nome
Araguaína. Na ocasião, perguntei a um professor se conhecia este
lugar, e ele me respondeu que era o município mais importante
do Estado do Tocantins. A expectativa de melhores condições
de vida fez com que o meu espírito aventureiro, tipicamente
ibérico, se animasse a deixar o costumeiro habitat do Sudeste e
Sul do Brasil e cruzasse as fronteiras terrestres desconhecidas
em busca do jovem eldorado nortista.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PREFÁCIO

As pessoas residentes na chamada Capital do Boi Gordo me 2008 e início de 2009. Em 2019, criou-se, por meio do Decreto
receberam com certa curiosidade, mas também com cordialidade, 13.856, a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT).
especialmente os estudantes universitários. A UNITINS funcio- Era um antigo sonho de realizar uma Universidade com mais
nava, de forma modesta, em um prédio escolar no movimentado autonomia que se concretizou, por meio de uma medida tomada
Bairro São João. O som dos ventiladores de teto, usados para no expirar do governo da presidente Dilma Rousseff, que sofreu
amenizar o calor causticante, demandava um esforço adicional da um questionado impeachment em 2016.
voz dos educadores. Em 2002, a instituição estava em processo
Assim como a Universidade mudou seu cariz, identidade e
de transição para federalizar-se. Havia uma grande tensão entre
estrutura, a cidade também passou por várias transformações ao
discentes e docentes. Os estudantes reivindicavam ir para um
longo do tempo. O seu primeiro nome, dado por não-indígenas, teria
prédio de melhores condições no Setor Jardim Paulista e fizeram
sido Livra-nos Deus, pelo medo que se tinham dos povos Karajás,
greves e manifestações para terem suas demandas atendidas. Para
que eram os moradores originários dessa região. Posteriormente,
desocupar a Universidade, os gestores chegaram a convocar a tropa
passou a chamar-se povoado do Lontra, fazendo referência a um
de choque. A atitude extrema indica a permanência da autoritária
rio local. Em 1948, quando pertencia à Filadélfia, recebeu o status
cultura política brasileira, que costuma querer resolver questões
de Distrito de Araguaína, elevando-se a município somente em
sociais de cima para baixo, mediante o uso da força física. Há
14 de novembro de 1958. A modernização e o incremento econô-
ética da convicção de sobejo no país, falta a muitos cidadãos
mico, com destaque para a agropecuária, vieram após a década
responsabilidade, sensibilidade e compromisso democrático.
de 1960, impulsionado pelas possibilidades abertas com a rodovia
Entre esperanças e frustações, no ano de 2003, ocorreram Belém-Brasília. Nos anos de 1970, Araguaína constava entre as
os primeiros concursos para a Universidade Federal do Tocan- principais cidades do estado de Goiás, por isso, com o êxito do
tins (UFT), sendo a Universidade de Brasília responsável pela Movimento Autonomista do Tocantins, foi cogitada como futura
implantação da federalização. Novos professores vieram de capital do novo Estado, que foi instituído em 05 de outubro de 1988.
diferentes regiões para ocuparem as vagas. Aqueles docentes da O crescimento urbano, corroborado com a migração (sobretudo de
UNITINS que tinham mestrado ou doutorado puderam concor- nortistas e nordestinos, e em menor proporção de pessoas do Sul,
rer aos cargos. Já os professores especialistas foram demitidos, do Sudeste e do Centro-Oeste), foi ocorrendo, gradativamente, de
exceto os que eram concursados pelo Estado. Foi uma transição forma horizontal e em meio aos antigos hábitos e tradições ligadas
institucional que gerou mágoas nos antigos trabalhadores. Com ao mundo rural, tais como o transporte de objetos por meio de
o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das carroças de cavalos, a tropeada, a cavalgada e os rodeios.
Universidades Federais (REUNI), introduzido por um decreto
Na última década, o setor de serviços melhorou bastante,
em 24 de abril de 2007, a estrutura do Campus de Araguaína foi
a circulação de pessoas aumentou e o trânsito piorou, tornando
melhorada. Mudou-se para um novo prédio, no setor Cimba, entre

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PREFÁCIO

necessário colocar mais sinaleiros, ampliar e modificar as vias os assuntos político-administrativos, privilegiando analisar a
públicas para comportar o número de veículos automotores. sociedade araguainense sob uma perspectiva epistemológica
Em 2002, creio que o único edifício que se destacava na cidade mais descolonial, dando visibilidade para outros protagonistas
era o Palácio das Acácias. Atualmente, vários imóveis verticais que foram esquecidos pela história tradicional, que se embasava
podem ser vistos na paisagem urbana araguainense. As opor- apenas na documentação oficial e desconfiava das fontes orais.
tunidades educacionais e de centros médicos a tornam um polo
Araguaína como uma sociedade de migrantes, possui um
atrativo, sobretudo para os habitantes das regiões sul do Pará
aspecto cosmopolita, que, inclusive, dificultou a construção de
e do Maranhão. A criação do Parque Cimba e da Via Lago, no
uma identidade única, como é apontado no capítulo de autoria
governo do prefeito Ronaldo Dimas, tornaram-se os cartões
dos historiadores Eugênio P. M. Firmino e Mirany C. Lopes.
postais, além de lugares de memória, da cidade que não quer
Não obstante a variedade de sotaques e de fenótipos, destacam-
parar de se desenvolver economicamente. Faltam apenas mais
-se traços culturais compartilhados pela maioria da população,
políticas públicas para as pessoas menos favorecidas, ampliar
tais como o apreço pela Cavalgada anual, o hábito de ir para
o saneamento básico, adquirir coleta seletiva, criar um museu
as praias de rio nas férias de julho, a prevalência do gosto pela
ou arquivo histórico, pensar meios de desenvolvimento susten-
música sertaneja nos bares, o famoso prato de chambaril, que
tável e aumentar os investimentos na área cultural, com vistas
se encontra em muitos cantos da cidade, e, especialmente, no
a um turismo de entretenimento. Falta ainda contar e dar mais
Mercado Municipal da região central.
publicidade aos diferentes estudos realizados sobre Araguaína.
Efetivamente, a leitura desta coletânea nos deixa com vontade
Nesse sentido, o presente livro, resultante de pesquisas
de saber mais sobre a constituição e sobre a representação histórica
feitas por discentes e docentes do curso de história e geografia
de Araguaína. Acredito que seria promissor um estudo interdisci-
do Campus de Araguaína, ao trazer narrativas sobre pessoas
plinar mais aprofundado das práticas culturais e da linguagem, por
comuns, como os tropeiros, as presbiterianas, os (as) traba-
meio de análises de narrativas escritas e orais, a fim de que possa-
lhadores da fábrica Cimba e do Mercado Municipal, as lava-
mos melhor conhecer e compreender o passado e o presente dessa
deiras, as empregadas domésticas, os (as) umbandistas, os (as)
cidade tão híbrida e plural. Recentemente, excelentes iniciativas
professores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e outros
já foram tomadas nesse sentido, mas é preciso dar continuidade a
temas pouco explorados pelos estudiosos, como a investigação
esses projetos que tratam da história e da memória local.
sobre a Organização de Saúde do Estado de Goiás (OSEGO),
a territorialização do agronegócio e a construção da identidade
da “Princesa do Norte”, contribui para conferir visibilidade Araguaína, 27 de novembro de 2022.
à trajetória e à memória dos habitantes desta cidade. Chama
atenção o fato de que os capítulos desta coletânea não enfocam

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APRESENTAÇÃO

Olhares Cruzados:
História, Memória e Representações
Sobre Araguaína-TO

Vera Lúcia Caixeta


Olivia Macedo Miranda de Medeiros

Os escritos que aqui se apresentam têm em comum uma rela-


ção muito próxima entre História e memória. História vivida e
memória que se lembra. Este jogo plural, ora tenso, ora apazi-
guador, produz sonoridades, polifonias, expostas ou silenciadas,
experiências múltiplas de citadinos de Araguaína ou acolhidos
por ela. O chão que descortina ganha a forma de cidade, repre-
sentação clássica desde a antiguidade. Conhecer e reconhecer este
espaço multifacetado são necessidades do cidadão, sujeito que a
literatura representa tradicionalmente como portador de direitos
e deveres. Não obstante, entre cidade e cidadão nem sempre há
correspondências de interesses, de valores, de práticas sociais,
de expectativas futuras, muito menos de recordações comuns.
Isto porque a cidade quase sempre é uma representação que se
impõe. O que se deve lembrar? O que se deve esquecer? Quem
decide estas questões cruciais?

Neste entreato, a aventura da produção do conhecimento


levada a cabo pelo historiador deve ser explicitada. Marc Bloch,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

em Apologia da História: ou o ofício do Historiador (2002), com o recurso às recordações dos outros. Significativamente, a
coloca na boca de um filho a questão que orienta a escrita do memória de um é também a memória de vários sujeitos!
livro “Pai, para que serve a História?”. De certo, a produção
De qualquer forma, a memória social é uma força ativa,
historiográfica alimenta as memórias, as recordações e forta-
dinâmica e o que ela planeja esquecer é tão importante quanto o
lece as identidades locais e regionais. Ela nos diverte e distrai,
que ela deseja lembrar. Como afirma Fernando Catroga (2011, p.
mas, fundamentalmente, nos ajuda a compreender o presente e
7) “o passo que o homem dá para frente tem na pegada anterior
a projetar o futuro. Nesse sentido, conhecer parte das histórias,
a sua condição de possibilidade”. Esse caminhar vai deixando
das memórias das diferentes narrativas tecidas sobre os lugares
traços, eles são os sinais das pegadas do homem que o impedem
e as pessoas, segue na perspectiva do “dever de memória” que,
de ser só presente ou só futuro “o significado das pegadas de
certamente, garante a ligação do sujeito com o lugar.
quem passou é inseparável das interrogações que elas colocam a
Para Le Goff (1997, p. 139), a memória tem papel funda- quem vem”. Enfim, “ao darem futuro ao passado, os vivos estão
mental, pois, através dela, percebe-se a temporalidade, a sucessão a afiançar um futuro para si próprios” (CATROGA, 2012, p. 7).
de gerações, é, enfim, na relação passado presente que a popu-
O processo de construção da memória da cidade, normal-
lação urbana compreende a história da sua cidade, “como seu
mente, passa pelas diferentes narrativas sobre Araguaína. Nelas,
espaço urbano foi produzido pelos homens através dos tempos”.
encontram-se uma seleção de acontecimentos e de personagens.
Destarte, é pela memória que o sujeito consegue se situar na
Raillyn Barros (2019, p. 15) ressalta que, muito provavelmente,
cidade, perceber suas mudanças e permanências, vincar laços
foram os indígenas da “etnia Karajá, os primeiros humanos a
afetivos que propiciam a relação habitante/cidade, possibilitando
habitar a região onde tempos depois ‘batizou-se’ de Araguaína.
“ao morador de se reconhecer enquanto cidadão de direitos e
Este primeiro povoamento se instalou na região de floresta loca-
deveres e sujeito da história” (LE GOFF, 1997, p. 139).
lizada as margens do Rio Lontra, um importante afluente do Rio
Fernando Catroga (2011), ao tratar da recordação e do Araguaia”. Já o povoamento não indígena teria iniciado com a
esquecimento, afirma que existe um consenso acerca do papel chegada das famílias pioneiras, em especial, a família de João
da memória na constituição das identidades pessoais e sociais. Batista da Silva e sua esposa, Rosalina de João Batista, e filho,
De certo, todo cidadão está imerso na placenta da memória que migrantes que vieram do Piauí e se estabeleceram às margens
o socializa e é a partir daí que ele define tanto sua estratégia de do Rio Lontra, na década de 1870 (BARROS, 2019). Depois
vida, quanto os seus sentimentos de pertença e de adesão ao disso, várias levas de migrantes se deslocaram para a região. Os
coletivo. Ademais, a relação com o passado não decorre apenas primeiros moradores se dedicaram ao cultivo de cereais para a
da evocação de uma memória individual, particular e subjetiva, subsistência e, com objetivos mais lucrativos, iniciaram a cultura
uma vez que a recordação envolve outros sujeitos e se comprova do café como atividade predominante. Mas as dificuldades de

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

escoamento da produção, decorrentes da ausência de vias terrestres, Municipal nº 86, de 30 de setembro de 1953, o povoado foi elevado
que interligassem a região a outros povoados e cidades, fizeram a distrito. Sua instalação ocorreu em 1º de janeiro de 1954. Em
com que essa atividade fosse abandonada (ARAÚJO, 2000). 5 de maio de 1957, foi criada a Paróquia de Araguaína, Sagrado
Coração de Jesus, sendo designado o Padre Pacífico Mecozzi,
Araguaína, segundo informações oficiais, padeceu por causa
da congregação religiosa italiana “Pequena Obra da Divina
das precariedades no sistema de transporte, até meados de 1925.
Providência”, como pároco local. A Lei Municipal nº 52, de 20
Nesta oportunidade, chegaram também outras famílias, dentre as
de julho de 1958, autorizou o desmembramento do distrito de
quais estavam as de Manoel Barreiro, João Brito, Guilhermino
Araguaína, fixando seus limites. Finalmente, em 14 de novembro
Leal e José Lira. Esses moradores teriam dado um novo impulso
de 1958, pela Lei Estadual nº 2.125, foi criado o Município de
ao município e instituído o nome de “Lontra” para esta localidade
Araguaína, tendo sido instalado oficialmente em 1º de janeiro
(PREFEITURA DE ARAGUAÍNA, 2014). Todavia, divergindo-se
de 1959. (HISTÓRICO DA PREFEITURA MUNICIPAL DE
dessa versão oficial, Araújo (2000) argumenta que a denominação
ARAGUAÍNA). Com a criação do estado de Tocantins em 1989,
do povoado como “Lontra” se deu poucos meses após a chegada
ela tornou-se a maior cidade do Estado e pretensa capital. Ficou
de João Batista da Silva, em 1876. O nome estava associado à
apenas com o título de capital econômica.
coincidência de a região se localizar às margens de um rio, onde
era frequente um mamífero, ambos denominados “Lontra”. A construção da Belém-Brasília (BR-153), inaugurada
no ano de 1960, atravessa os Estados de Goiás, Tocantins, Pará
A história oficial relata que o desenvolvimento do municí-
e Maranhão e aparece nas narrativas como marco decisivo no
pio está atrelado ao impulso dado pelas famílias pioneiras, que
progresso da cidade. A proposta inicial dessa rodovia foi pen-
contribuíram expressivamente para a abertura do comércio local,
sada ainda no governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961). A
instituição de festas religiosas e várias outras iniciativas que
responsabilidade da obra coube ao engenheiro Bernardo Sayão,
corroboraram para a criação da cidade. Para conhecer a história
que faleceu em 1959, sem ver a conclusão do seu trabalho. A
dessas famílias pioneiras e dessa região, há certos problemas
abertura desse meio de comunicação terrestre possibilitou “[...]
pela escassez de fontes escritas e falta de um arquivo na cidade
a expansão do capital na Amazônia Legal, abrindo espaço na
que reúna e organize os documentos oficiais e privados, oportu-
região para os grandes projetos agropecuários” (BORGES, 2002).
nizando acessar informações sobre o passado dessa localidade.
Toda narrativa implica seleção, recorte, em que sujeitos e
De qualquer forma, os documentos oficiais sublinham a
acontecimentos são visibilizados e outros, eclipsados. Percebe-se,
criação do município de Filadélfia, pela Lei Estadual nº 154, de
por exemplo, que lá no início do povoamento não há interesse
8 de outubro de 1948, cuja instalação ocorreu em 1º de janeiro
em revelar os modos de viver dos povos indígenas Karajá que já
de 1949, passando o povoado Lontra a integrá-lo. No mesmo ano,
ocupavam a região. Eles são vistos apenas como problema pelos
sua denominação foi mudada para Povoado Araguaína. Pela Lei

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

colonizadores. Estes são homens católicos que têm nomes e sobre- do Norte do Tocantins – e de seus professores. Contamos também
nomes e empenham-se em construir um templo, as outras religiões com uma contribuição do curso de Geografia e dois textos dos
de matrizes cristã ou afro-brasileira são eclipsadas, deixadas de ex-alunos do mestrado em Ensino de História, PROFHISTÓRIA.
fora da narrativa. Nas narrativas tradicionais, o progresso da região São textos curtos, elaborados dentro das normas acadêmicas, porém,
parece começar com a construção da Belém-Brasília, uma espécie com uma linguagem acessível para o grande público. A seleção foi
de marco fundador na concepção desenvolvimentista. Contudo, feita a partir das temáticas relacionadas com a cidade de Araguaína
antes da rodovia, como viviam os sujeitos, homens e mulheres de e a organização dos textos foi pensada com o objetivo de promover
formações e origens diversas? Como eram os meios de transportes? um olhar para a relação muito próxima entre História e memória
Como as pessoas, as mercadorias e as ideias circulavam? Como presentes nos textos que abordam uma diversidade de sujeitos,
as pessoas nasciam, cresciam, estudavam e cuidavam das suas sensibilidades, processos e subjetividades.
doenças? Entre as preocupações dos historiadores, estão tanto
Olívia de M. M. de Medeiros e Risney Morgana Souza
os grandes momentos, quanto os detalhes da vida cotidiana, a
Alencar, no texto Do Presente ao Passado de um Ofício: reme-
pluralidade de sujeitos e a riqueza das suas vivências.
morações dos tropeiros de Araguaína e região, ousam abordar a
Recentemente, Araguaína passou por mudanças importantes. temática da presença dos tropeiros e de uma cultura de tropeiragem
Algumas praças também foram modernizadas, a exemplo da Praça na formação de Araguaína e região entre as décadas de 1950 e
“Dom Orione” e transformou-se a antiga ruína da Companhia 1970 com base nos relatos orais dos tropeiros. Elas acreditam
Industrial da Bacia Amazônica (Cimba), em um parque ecológico, que o processo de rememoração feito por esses trabalhadores
no centro da cidade. Os restos abandonados e deteriorados do é capaz de lançar luzes sobre a cultura local. Nas décadas de
maior complexo industrial do antigo norte de Goiás, da década 1950 e 1960, as estradas eram poucas e poucos eram os que se
de 1960, compõem agora uma linda paisagem. Os escombros aventuravam a penetrar nesse extenso sertão. A falta de estradas
da antiga fábrica foram retirados da poeira do tempo, do meio era, sem dúvida, um grande empecilho para o desenvolvimento
lixo, dos antigos matagais e, para orgulho dos araguainenses, econômico e para o crescimento demográfico da região. Desse
constituem agora um espaço de lazer, de atividades físicas, de modo, as cidades que conseguiram maior destaque foram as que
ampliação da consciência ecológica e das memórias dos antigos estavam localizadas às margens do Rio Tocantins, o principal
moradores. Tornou-se “lugar de memória” na definição do his- meio de escoamento e importação de mercadorias. Todas essas
toriador francês Pierre Nora. dificuldades contribuíram para que alguns homens assumissem
o ofício de tropeiro. Aos poucos, eles começaram a fazer rotas
Este livro é, em grande parte, fruto das pesquisas dos estudantes
comerciais entre o interior e as grandes cidades, eram considerados
de graduação em História, da Universidade Federal do Tocantins
homens de confiança que, além das mercadorias, transportavam
(UFT), Campus de Araguaína, hoje UFNT – Universidade Federal
dinheiro e informações.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

Em A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba Vasni de Almeida e Nilza de Araújo Silva, no texto intitu-
em Araguaína (1964-1974), Neude Sirqueira dos Santos utiliza os lado Assistir ao Necessitado e Redimir os Pecados: as práticas
depoimentos orais como fontes para a história da fábrica Cimba. religiosas e sociais das mulheres presbiterianas em Araguaína,
Ela busca perceber quais as lembranças que os (as) trabalhadores tratam das diversas atividades desenvolvidas pelas mulheres dentro
(as) têm desse passado. Chamou a atenção da pesquisadora o fato e fora da Igreja. Essas atividades estão fortemente inseridas nos
de os/as testemunhos/as terem valorizado a fábrica como espaço demais aspectos da sociedade, ou seja, no social, no político e no
de formação de mão de obra, ou seja, de aprendizagem de uma cultural. Porém, mesmo constatando a ampliação das temáticas de
profissão. Certamente, toda memória é seletiva, é mutável, fruto investigação históricas, percebe-se que a participação da mulher
de uma construção social e das contingências do presente. no protestantismo brasileiro é pouco estudada. Nesse sentido,
o objetivo dos autores foi compreender o papel e as ações que
Mariseti Cristina Soares Lunckes e Valdivina Telia Rosa
as mulheres presbiterianas desenvolveram durante os seus dez
de Melian, no texto Um Novo Hospital para Araguaína: a
primeiros anos de organização societária em Araguaína.
OSEGO e os avanços na área da saúde, tratam da fundação
da Organização de Saúde do Estado de Goiás (OSEGO), em Dhaiana Dias Costa, Vera Lúcia Caixeta e Rosária Helena Ruiz
Araguaína, em 1970, através da ampliação do Hospital Mare- Nakashima, em Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda”
chal Emílio Ribas. Políticas públicas de saúde são implantadas, em Araguaína-TO, tratam das lavadeiras de roupas no riacho “Baixa
consolidando o desenvolvimento da região pela fixação de Funda”, afluente do córrego Neblina, na cidade de Araguaína-TO,
médicos na cidade. A OSEGO se insere nos avanços do campo na década de 1990. São mulheres pobres, não brancas que lutaram
hospitalar da medicina moderna em construção. A doença passa para manter o riacho no qual exerciam o ofício. Ao ouvi-las, as
a ser vista como um problema econômico, social e político. autoras atentaram para o fato de que elas não só falam com a voz,
Foucault (2004) defende que o nascimento do “hospital” foi mas também com as mãos, com os braços, com a cabeça e com os
uma medida tomada para organizar o espaço onde o indivíduo olhos. Ouvi-las torna-se uma forma de valorização dos seus saberes
passaria a ter um atendimento especializado e disciplinado, e práticas. Ouvi-las significa, também, fazer a crítica à hegemonia
surgindo, assim, uma medicina do espaço social. Novas de uma epistemologia eurocentrada presente na academia que,
práticas de saúde do Estado de Goiás são institucionalizadas historicamente, invisibiliza as mulheres e seus saberes.
e dinamizadas pela intervenção do Estado em regiões estra-
Sariza Oliveira Caetano Venâncio, no texto “Tinha mais
tégicas para o desenvolvimento do país, como era o caso de
de 200 centros por aqui”: a história da Umbanda em Araguaína,
Araguaína. Para garantir o projeto de crescimento econômico,
trata de uma temática esquecida, silenciada e negada na história
era necessário criar condições para o trabalhador comum ter
local – as religiões de matrizes afro-brasileiras. A pesquisa está
acesso aos serviços públicos gratuitos de saúde.
focada na Umbanda, uma religião brasileira, que resultou da

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

integração e síntese de religiões de tradições africanas, do cato- procurou construir essa “identidade”, e de que forma ela se
licismo e do kardecismo. Seu caráter híbrido lhe permite ter uma “caracterizou” no processo histórico regional. Com olhar atento,
capacidade de absorção e redefinição de traços religiosos diversos, os autores sublinharam as dificuldades enfrentadas nesse processo
passando pelos santos, rezas e benditos católicos, pelos orixás do de construção identitária, uma vez que a cidade é cosmopolita
Candomblé. Já os caboclos recebidos durante os trabalhos devem desde suas origens, sobretudo a partir da segunda metade do
ajudar as pessoas na terra através de conselhos e curas, a fim de século XX, momento esse denominado de “modernidade tardia”,
que consigam evoluir no plano espiritual, tornando-se espíritos de coincidindo justamente com a emancipação política municipal. Na
luz. Algo semelhante ocorre com alguns espíritos no kardecismo. segunda metade do século XX, vários são os fatos detectados que
ajudam a explicar o fortalecimento do fluxo de correntes migra-
Estas e outras especificidades das três religiões citadas fazem
tórias para a cidade, especialmente a partir da década de 1970.
parte dos mitos e ritos dentro da Umbanda. Mas a autora ressalta
que, nas casas visitadas em Araguaína, é comum encontrar traços Alberto Pereira Lopes e Delismar Palmeira Costa em O
do Tambor de Mina, religião afro-brasileira predominante no Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO): a
Maranhão, do Terecô codoense e da Umbanda nordestina, marcada territorialização do capital e a sua relação com a agroindústria,
pela tradição juremeira. Estes traços refletem as trocas culturais tratam de alguns aspectos que são sempre levados em consideração
ocorridas quando dos contatos entre grupos distintos vindos de pelos agentes capitalistas na hora da realização de seus investi-
diversos lugares para Araguaína. Enfim, a autora apresenta um mentos como as condições oferecidas pelos lugares. Nesse sentido,
levantamento sobre os principais terreiros da cidade, a história os quadros demográficos, infraestruturais, de desenvolvimento
dos seus dirigentes e dos primeiros umbandistas em Araguaína. social, além da própria virtualidade da extensão ecológica, são
considerados estratégicos. Buscou-se revelar a atual configuração
Eugenio Pacelli de Morais Firmino e Mirany Cardoso
da agroindústria no contexto local e internacional. Foi abordado
Lopes, no texto Araguaína e a Construção de uma Identidade
o processo histórico-geográfico de territorialização do agronegó-
na Contramão da História (1978-1998), utilizam como fontes
cio no município e, através de dados, revelada sua dinâmica no
a Revista Municipalista “Araguaína, a Princesa do Norte” e a
processo produtivo, enfocando suas competências na produção
Revista Reportagem para sublinhar o desejo do poder público,
alimentícia, embasado na dinâmica de sua agroindústria.
apoiado por alguns intelectuais da comunidade, na produção de
uma identidade local. De acordo com os autores, esse interesse Gabriela Silva Nogueira, Olivia Macedo Miranda de Medei-
está explícito nos discursos elaborados e veiculados pela imprensa ros e Euclides Antunes de Medeiros reconstroem, no capítulo
local escrita, por jornalistas, por políticos e intelectuais liberais Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína-TO:
no decorrer das décadas de 70, 80 e 90 do século passado. Esta entre lutas, violências e resistências, as experiências de mulheres
pesquisa teve por objetivo entender de que forma e por que se empregadas domésticas da referida cidade, destacando aspectos de

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS APRESENTAÇÃO

suas memórias que remetem ao trabalho infantil, às lutas contra frágil. Em diálogo com os professores, ela levanta as especifici-
abusos sexuais, ao racismo e à escravização. Evidenciam também dades inerentes à Educação de Jovens e Adultos, entre elas, uma
as diversas resistências às opressões interseccionais sofridas por necessidade de formação específica por áreas de atuação. A partir
essas mulheres, opressões essas que contribuem para aprofundar as de aula-oficina, ela propõe um roteiro de história de vida dos estu-
experiências de exploração e de subalternização de suas subjetivi- dantes, pois, desde Paulo Freire (1987), é sabido da necessidade de
dades. Por outro lado, apesar de todos os processos de dominação, considerar os saberes dos educandos advindos das suas vivências.
o avanço das legislações e fiscalizações trabalhistas faz com que
Por fim, e não menos importante, Aletícia Rocha da Silva,
essas trabalhadoras domésticas vejam suas profissões com satisfação,
no texto História Local e Regional, trata do confronto da escrita
enquanto esperam chegar o momento da tão sonhada aposentadoria.
de uma história nacional versus história regional e argumenta
Jorge Luís de Medeiros Bezerra trata da aprendizagem sobre as motivações que levam o historiador a escolher suas
histórica a partir do Mercado Municipal de Araguaína-TO a temáticas. Se, de um lado, o estudo do Local e Regional se mostra
partir da metodologia da Educação Patrimonial no capítulo inti- mais ligado ao dia a dia dos envolvidos, por outro, há de pensar
tulado Mercado Municipal da Cidade de Araguaína: ensinando se essa definição está servindo como legitimação dos discursos
História. Sua preocupação central é com a beleza de se ensinar políticos hegemônicos dos grupos de poder de cada região. A
história fora da sala de aula. Como professor da rede privada de escrita historiográfica pode vir a assumir propósitos de criação
ensino na Escola SESI de Araguaína/TO, procurou propor um de uma dada memória e legitimação de poder sobre um espaço
ensino de História que possibilite um ensinar e aprender com ou território ou que pode acabar por simplesmente reproduzir tais
sentido para os estudantes da rede básica. discursos. Configura-se, neste ponto, os cuidados e a necessidade
de pensar desde a definição dos conceitos até a compreensão que
O texto Perfil dos Professores de História da Educação
o historiador assimila das palavras “local e regional”.
de Jovens e Adultos em Araguaína-TO da mestra Laila Cristina
Ribeiro da Silva trata do perfil dos professores de História da EJA Para nós, Histórias e Memórias de Araguaína – Tocan-
de Araguaína. Esta pesquisa nasceu de uma preocupação prática tins representou o desafio de inserção de novos sujeitos no rol de
sobre como melhorar o aprendizado histórico dos estudantes da produtores do conhecimento. Ele traz ao grande público, através
Educação de Jovens e Adultos (EJA), em Araguaína-TO1, uma de uma linguagem acessível a todos/as, as produções acadêmicas
vez que a erradicação do analfabetismo tem se dado de maneira dos alunos/as da UFNT, respaldadas pelos seus orientadores.

1 O aprendizado histórico é uma das dimensões e manifestações da consciência


histórica. É o processo fundamental de socialização e individualização humana e Boa leitura!
forma o núcleo de todas estas operações. A questão básica é como o passado é
experienciado e interpretado de modo a compreender o presente e antecipar o
futuro (RÜSEN, 2011, p. 39).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

REFERÊNCIAS Do Presente ao Passado de um Ofício:


ARAÚJO, Claudivan Santiago de. Araguaína história e atualidade. Araguaína,
2007. rememorações dos tropeiros
BORGES, Barsanufo Gomides. A rodovia Belém-Brasília. Revista Educação & de Araguaína e região
Mudança. Anápolis-GO, N. 09 out., jan./ dez. 2002.
Disponível em: http://revistas.unievangelica.com.br/index.php/
revistaeducacaoemudanca/article/viewFile/478/476. Acesso em: 25 out. 2017.
Olivia Macedo Miranda de Medeiros
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Risney Morgana Souza Alencar
Zahar, 2002.
CATROGA, Fernando. Os Passos do Homem Como Restolho do Tempo:
Memória e Fim do Fim da História. Coimbra: Almedina, 2011.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 5 ed., 2003.
LUNCKES, Mariseti Cristina Soares. A partir das margens do Lontra. Jornal do
Tocantins. Suplemento Araguaína 48 anos. p.02, 14 nov. 2006. Entrevista.
PREFEITURA DE ARAGUAÍNA, on-line. História. Disponível em: <http://www. INTRODUÇÃO
araguaina.to.gov.br/portal/páginas.php?p=turismo>, acesso em 14 out. 2017
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: EdUnicamp,
2007. Este artigo é um extrato do trabalho monográfico “Tropeiros e
SILVA, Raillyn Barros da. Apresentação: Araguaína. Uma História em tropas: ao som de cascos, de cincerros e de narrativas” (2014),
Transformação. In: SILVA, Cleube Alves da; SILVA, Raillyn Barros da. A escrito por Risney Morgana Souza Alencar e orientado pela
Transformação Histórica de Araguaína. Palmas: Nagô, 2019.
coautora desse artigo, professora Dra. Olivia Macedo Miranda
de Medeiros Defendido em 2014 no curso de História da UFT
– Araguaína, o referido trabalho buscou rever, por meio da
problematização de diversas linguagens – no caso literatura,
memórias escritas e relatos orais – a presença dos tropeiros e
de uma cultura de tropeiragem na formação regional do norte
de Goiás e da cidade de Araguaína, entre as décadas de 1910 e
1970. Entretanto, para esse artigo, optamos por circunscrever a
abordagem aos relatos orais dos tropeiros que vivem e exerceram
o ofício em Araguaína e região entre as décadas de 1950 e 1970,
pois o processo de rememoração feito por esses trabalhadores é
capaz de lançar luzes sobre a cultura local.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

Os pesquisadores que escrevem sobre o norte de Goiás Atrás de lucros, mas também como irradiadores de prá-
relatam que a região de Araguaína enfrentou vários problemas ticas culturais, os tropeiros se transformaram em trabalhadores
em virtude do seu isolamento dos grandes centros urbanos. Entre centrais no desenvolvimento regional. Contudo, poucas são as
as décadas de 1950 e 1960, poucas eram as estradas e poucos pesquisas que abordam o tema e, quando o fazem, privilegiam os
eram os que se aventuravam a penetrar nesse extenso sertão. A aspectos que remontam apenas à dinâmica econômica, deixando
falta de estradas era, sem dúvida, um grande empecilho para o opacizados os aspectos culturais dessa importante atividade
desenvolvimento econômico e para o crescimento demográfico da humana. Trilhando caminho inverso ao dessa abordagem, pre-
região. Desse modo, as cidades que conseguiram maior destaque tendemos, nesse artigo, compreender e interpretar a constituição
nesse período foram as que estavam localizadas às margens do da memória dos tropeiros de Araguaína sobre as experiências
Rio Tocantins que, nessa época, era o principal meio de escoa- vividas nas velhas estradas do eixo tropeiro que interconectam
mento e importação de mercadorias. histórias de vidas à formação cultural da região.

Todas essas dificuldades contribuíram para que alguns Nesse sentido, esclarecemos que, nesse trabalho, o tom não
homens ambiciosos e corajosos despertassem para a possibili- é de crítica acerca dos relatos dos tropeiros, mas de compreensão
dade de assumir o ofício de tropeiro. Aos poucos, esses homens e interpretação dos sentidos atribuídos por eles aos modos pelos
começaram a fazer rotas comerciais entre o interior e as grandes quais viam seu ofício e como, na velhice, percorrendo-o desde a
cidades, e suas atividades não eram restritas apenas ao comér- infância, o veem no presente. Por outras palavras, perseguimos
cio de produtos, eles também eram considerados homens de esse tempo perdido, um tempo que se foi, um tempo fragmentado
confiança que, além das mercadorias, transportavam dinheiro e pela interferência do presente, mas que, por meio da perspectiva
informações. De acordo com Maristela Gumieiro: da História Oral, permite o encontro de uma “verdade”, pois é
o depoente que detém a verdade: a sua verdade.

O tropeiro é o empresário do transporte, o Seguindo essa perspectiva, optamos pela história de vida
alocador de serviços que melhor se adaptou as como metodologia, tendo em vista que são os tropeiros com quem
péssimas condições dos antigos caminhos goianos,
conversamos pessoas de idade muito avançada, interrompê-los com
bem com às longas distâncias que separavam
Goiás dos seus centros abastecedores. Indo ou
perguntas e/ou direcioná-los em demasia atrapalharia a coerência do
refluindo do litoral, transportando mercadorias relato. Além disso, entendemos que a história de vida tem encantos
importadas e, também, produtos da terra, o que os outros procedimentos não têm, tais como a possibilidade
tropeiro se arriscava num duro cotidiano, atrás que os entrevistados têm de amarrar os fios de sua história com
de lucros que certamente viriam se os negócios
maior liberdade, mostrando a existência de um narrador em cada
fossem bem administrados. (1991, p. 94).
tropeiro. Nas palavras de Waldir Ferreira de Abreu,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

A história de vida é uma dessas técnicas usadas


dar origem a interpretações apressadas. Não
na pesquisa pelas ciências humanas. No campo
basta simpatia (sentimento fácil) pelo objeto da
das ciências sociais, o método da história de vida
pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão
tem-se destacado como uma das modalidades
sedimentada no trabalho comum, na convivência,
mais adequadas para se fazer ouvir os discursos
nas condições de vida muito semelhantes. Não
dos despossuídos. É bom ressaltar que a história
bastaria trabalhar alguns meses numa linha de
de vida consiste na história de uma vida ou
montagem para conhecer a condição operária.
acontecimento tal qual a pessoa vivencia ou
O observador participante dessa condição
vivenciou. Assim, não é necessária a verificação
por algum tempo tem, a qualquer momento,
da autenticidade absoluta dos fatos, pois o
possibilidade de voltar para sua classe, se a
que interessa [...] é o ponto de vista do sujeito.
situação se tornar difícil. (1994, p. 38).
O objetivo desse tipo de estudo é justamente
aprender e compreender a vida conforme ela
é relatada e interpretada pelo próprio autor.
Por mais objetivo que tente ser, todo relato é O sujeito da memória, a pessoa que rememora, tem uma
sempre uma construção imaginativa – que pode relação afetiva com o passado e, quanto mais avançada for sua
ser mais ou menos próxima à realidade – da idade, maior a presença do passado no presente, porém essa
situação vivenciada. (2004, p. 42). presença é organizada de forma não linear, na qual as lacunas
dificilmente podem ser preenchidas. Alguns de nossos tropeiros
Esse jogo entre proximidade da realidade e, ao mesmo também se encaixam nesse caso, pois suas lembranças parecem
tempo, da imaginação, evidencia quão difíceis de apreensão são estar muito ligadas ao passado mais distante, aos acontecimen-
os traços da memória, pois a produção da narrativa de oralidade é tos da infância e da juventude, enquanto os acontecimentos e
um trabalho conjunto entre pesquisador e sujeito. Ao reconstruir experiências da vida adulta são lacunares. Entretanto, mesmo
as memórias dos velhos, das mulheres e de homens paulistanos, a que lacunares, seus relatos de vida reapresentam a constituição
partir do marco da Revolução de 1930, Ecléa Bosi, em Memória sociocultural de Araguaína e região, segundo uma ótica viva
e Sociedade, afirma que que pode nos ensinar muito sobre a relação passado/presente
de nossa cidade.
Uma pesquisa é um compromisso afetivo,
um trabalho ombro a ombro com o sujeito
OS “CHEGANTES” E AS TRAJETÓRIAS DA TROPEIRAGEM
da pesquisa. E ele será tanto mais válido se o
observador não fizer excursões saltuárias na
situação do observado, mas participar de sua Antes de ser chamado de Araguaína, o povoado do qual se origi-
vida. A expressão ‘observador participante’ pode nou a cidade recebeu o nome de povoado Lontra e, antes disso, a

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

partir da década de 1880, foi conhecido como “Livre-nos Deus”, Segundo Oliveira, Paulo Evangelista, migrante nordestino,
em função tanto dos ataques constantes dos animais selvagens chegou ao povoado Lontra já trabalhando em meio às tropas,
quanto dos grupos indígenas que percorriam as águas e as mar- conduzindo boiada do Nordeste até a região do rio Tocantins.
gens do Rio Lontra. Mesmo que, inicialmente, tenha tido um Muitos outros também tiveram essa experiência, porém nem
nome que provocava medo, a partir da década de 1940, a região todos na condição de tropeiro, mas montados em mulas com
de Araguaína, incluindo aí as povoações de Pé do Morro, hoje suas mudanças e filhos. Esse é o caso do Sr. Emílio Ferreira,
cidade de Aragominas, e Murici, atual Muricilândia, passou a conhecido por Zequinha, que diz ter atravessado Piauí e Mara-
atrair levas populacionais, principalmente de nortistas e nordes- nhão até chegar ao Morro da Velha, antigo povoado Pé do Morro,
tinos, em busca ora de melhores oportunidades na vida, ora de norte de Goiás:
fugir da seca, respectivamente.

Os tropeiros e suas famílias vinham para a região de Em 1953, nóis trazia, eu, mais a muiê, e otras
pessoas, quatro burro, e tudo que nóis possuía
Araguaína guiados por suas tropas. As mudanças dessas pes-
vinha nas cargas e os mínino vinha apertado
soas com suas famílias eram feitas, muitas vezes, em lombo de nas cangaias... Mais...agora..num sei direito se
burros, como narra Luciene Camilo de Oliveira (2013, p. 37) em era 53, no cumeço, ou 52, lá por dezembro, tava
Arribação nordestina: representações e memórias de migrantes chuveno poco, graças a Deus, sinão aduecia tudo
em Araguaína e região (1950-1970): os meninos. Mais eu vim pra trabaiá na roça,
mais chegando... foi diferente... (ZEQUINHA,
entrevista oral, julho de 2013).
Quando Paulo fez a migração para o antigo
norte goiano, este processo se deu por etapas. A
Um senhor de 82 anos, Zequinha é um dos primeiros
este respeito ele diz o seguinte: ‘eu fui trabalhar
cum esse moço, graças a Deus trabalhei três povoadores da região de Aragominas, quando ainda era chamada
ano cum ele, passei por muitas cidades no Piói Pé do Morro ou Morro da Velha. Sua memória, no momento da
[Piauí], travessei pru Maranhão do outro lado entrevista, algumas vezes falhava, mas ele conseguia, mesmo
do Grajaú’. Ele vai narrando suas mudanças,
de forma entrecortada, dar sentido aos acontecimentos que ia
falando das várias cidades do Piauí em que
ele passou com “este moço que trabalhava contando. Em determinado momento da conversa, ele diz que
vendendo burro e gado zebu”. Depois diz que sua vida mudou quando chegou à região, pois não encontrou
migrou para o estado do Maranhão, afirmando possibilidade de “ter uma terra”, o que fez com que começasse
que fixou moradia nesse estado [norte de Goiás] com o “negócio de burros”:
por acaso, pois entendia que ‘era o destino, o
destino mesmo’.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

As formas e meios pelos quais muitas pessoas entraram


Então, sem terra, que eu achei que ia ser fácil ter,
nessa atividade variavam de pessoa para pessoa e, em alguns
tive que trabaiá com tropa, era só meus quatro
burrimm... que eu trazia do Piauí, foi de muita casos, parecia ser “coisa do destino”, como disse Paulo Evangelista
sirvintia. Foi até mió assim.... [suspiro longo] só acima. Ou seja, se dava em razão das circunstâncias, algumas
que nesse tempo eu trabaiava pros outros, era delas regidas pelo acaso, como foi a situação do senhor Zequi-
assim: os burro era meu e a viagem [o dono nha que, em um dado momento, quando seu patrão foi embora
do negócio, que empreitava o comércio ou o da região por razões pessoais, teve a oportunidade de se tornar
transporte] era de outro, dexa eu ver... era um
chefe de uma comitiva.
tal de Zé Luís, home bom. Eu só cuidava do meu
animal... e ganhava poquimm...poquimm. Um dia, Outro que não tinha o ofício de tropeiro como primeira opção
teve um disintendimento com o Zé Luis cum um é o Senhor Noé Gonçalves Lessa que, nascido em 1923, na cidade
home que num lembro a graça [nome] por causa
de Exu-PE, chegou a Araguaína no ano de 1951. Assim ele narra:
duma carga nada... por coisa duma moça...sabe
como é né... [risos] mas num sei não. O Zé Luis
noiteceu e num amanheceu e eu fiquei fazeno
Eu cheguei [com] trinta e três de idade, mais
as vez dele. Daí foi até mió mermu... panhei que fosse trinta e dois, por aí assim de idade,
ganhá um dinheirimm. (ZEQUINHA, entrevista nessa data eu num trabaei de tropa, eu trabaei
oral, julho de 2013). de rocinha botano rocinha daqui pra culá, de
roça cumo até agora, quando parei [pois] num
Tornar-se tropeiro, para Zequinha, não era a primeira tenho mais força né? (NOÉ GONÇALVES LESSA,
entrevista oral, março de 2014).
opção, pois era agricultor no Piauí e pretendia continuar a
cultivar a terra no norte de Goiás. Contudo, por razões que não
quis expor, não conseguiu um pedaço de terra para plantar e
teve de atuar no ofício de tropeiro. Zequinha fala que trocar Noé primeiramente se envolveu com o trabalho na
a função de lavrador pela de tropeiro “foi até mió”, mas, ao lavoura, plantando pequenas áreas com as quais sustentava
dizer que não conseguiu manter a atividade da agricultura, a família, e foi com base nesta atividade, que começou a tro-
emite um longo suspiro, parecendo haver nele um saudosismo, pear, “comprando arroz aqui nesses entroncamentos” (Noé
ou então um desgosto em relação ao fato de ter interrompido G. Lessa, entrevista oral, março de 2014). No caso de Noé,
seu trabalho “na roça”. Por outro lado, o “incidente” com seu o trabalho na roça somente foi interrompido quando ele “já
patrão, Zé Luís, deu a ele a oportunidade de assumir a chefia não tinha forças” em razão da idade e, ao afirmar que sempre
dos negócios da tropeiragem e, desde então, passou a ganhar trabalhou na roça, percebemos haver certo orgulho em relação
dinheiro com o ofício. a isso, como se sua dignidade e identidade de sertanejo, de

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

nordestino, estivessem relacionadas ao fato de não abandonar


o cultivo da terra. Quando chequei aqui tava chuveno, chuva
ralinha, não tinha estrada nos fomos abrino
Por sua vez, Zequinha, apesar de dizer que sua vida havia no facão, os homi com os facão e as muiê e
melhorado muito após assumir o negócio das tropas, deixou vis- os menino maior nas rédea dos animal. Era
tudo mata fechada, mais dava pra vê o alto do
lumbrar em sua fala certa mágoa ou, ao menos, uma tristeza por
morro... era bunito... bunito dimais... era muita
não ter podido continuar cultivando a terra. Esses sentimentos gente mais nóis, muita famia, seguino... Era de
que emergem na fala desses tropeiros são parte dos laços afetivos longiii que a gente chegava... pra cumeça ali....
que mantêm com o passado, de antes ou de durante o tempo em No premero ano chuvia dimais... a gente não tava
que trabalharam no caminho das tropas. Segundo Bosi, é através custumado... era bom, mais o sol quase num se
via. No Norte [nordeste] era outra coisa tempo
dessas memórias que podemos fazer descobertas inesperadas,
claro. Mais num to recramando nada... a gente
porque eles carregam em suas memórias muitas lembranças vei por causa da chuva né? Né? [Longo Silêncio]
sobre vários aspectos da realidade que são confrontados com Eita! mais os animal viçou, ficou gordo os burro
sua própria consciência do presente: e os cachorro, e uns porco que eu troquei em
uma viagem de palha que fiz. Mas era lama
dimais, as tria [trilhas] escorregava dimais e os
O vínculo com outra época, a consciência de burro, os meu não, de gente conhecida caiu nas
ter suportado, compreendido muita coisa, pirambeira. Que lá era lugar de morro, né, de
traz para o ancião a alegria e uma ocasião subida e dicida... Mas teve um meu que quase
de mostrar sua competência. Sua vida ganha quebrou uma perna, mais num foi nada não
uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, (Zequinha, entrevista oral, julho de 2013)
ressonância. [...] A conversa evocativa de um
velho é sempre uma experiência profunda.
Repassada de nostalgia, revolta, resignação A imagem do morro conhecido como Morro da Velha, aos
pelo desfiguramento das paisagens caras, pela pés de onde a cidade de Aragominas se situa, ficou registrada na
desaparição de entes amados, é semelhante a
memória de Zequinha como lugar bonito, mas os sentimentos
uma obra de arte’’. Porque o trabalho da obra
é trabalho do pensamento perpassado pelo que essa beleza evoca parecem ser de saudade e de nostalgia
afeto. (BOSI, 1994, p. 220). em relação ao nordeste, que havia ficado para trás. Além disso,
quando Zequinha aponta o contraste entre o sol do nordeste e o
céu turvo do norte de Goiás, outra imagem evocada é a da região
A memória, sem dúvida, é um esforço vivo e faz imagens
como um lugar lúgubre, o que entra em choque com sua com-
das paisagens sociais percorridas, como a primeira imagem do
preensão de que tinha saído do Nordeste justamente em função
Pé do Morro que ficou impressa na mente de Zequinha:
da falta de chuva. Talvez seja por isso que pede uma confirmação

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

para si mesmo: “a gente vei por causa da chuva né? Né?”. Dessa Paulino expressa sua surpresa em relação ao clima da
época, Zequinha lembra como os animais ficaram saudáveis, região, mas, ao contrário de Zequinha, vê na chuva e no tempo
mas em contrapartida recorda da dificuldade de locomoção com chuvoso uma forma de empreender seu comércio, mesmo que
a tropa em razão da irregularidade dos terrenos, o que causava de um modo diferente. Ele reconhece a dificuldade, mas supera
prejuízos aos tropeiros. esses pontos empreendendo um novo ramo de negócio. As
trajetórias que levaram estes sujeitos ao ofício de tropeiro são
No mesmo sentido, segue a narrativa do Senhor Antônio
variadas, tendo em comum o fato de exercerem essa atividade
Paulino, outro migrante nordestino que se mudou para o povoado
nas mesmas redondezas: Araguaína e região de Babaçulândia,
do Murici, atual cidade de Muricilândia, no ano de 1959, que
Muricilândia e Aragominas.
também tinha “uma tropinha pequena pra carregar miuança”.
Paulino mudou para esse lugar que fica a dez quilômetros do
Pé do Morro, aos 21 anos, e era “casado de novo”, ou seja, era O LUGAR DOS TROPEIROS NO
recém-casado. Segundo ele: DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Essas localidades, especialmente Araguaína e Babaçulândia,


Minha chegada na rigião foi um susto, nunca apresentavam, nessa época, entre 1950 e 1960, uma fase de
tinha inxergado tanto mato; e era difícil dimais
crescimento considerável e, com o aumento da população, a
entrar e sair de lá [...] atolero horrivi. Tropeiro
sem experiênça matava burro, perdia carga. carência de produtos aumentava, fazendo com que a atividade de
Atolero horrivi. Sabe [o] qui é atolero, né? Nu transporte fosse muito requisitada. Sobre isso Zequinha declara:
meio do aguaceiro, era dificultoso. Mais eu
trabaiava bem nesse tempo, purquê tudo
mundo caricia de alguma coisa. Até remédio Num oia qui eu buscava de um tudo. Quando era
eu buscava de madrugada no Joãozinho da perto eu buscava arroiz, milho, farinha... quando
farmácia pra doente. Aí num tinha carro não, era longe, aí eu já tinha mais de deiz burro e
um jipe, oi lá. Era de tropa ô intão era de pé. Eu madrinha boa, eu trazia pano pros vestidos, seda
num vim prá cá pra ser dono de tropa nada, javanecha [javanesa], remédio só pra dor, pra
vim cum a intenção de pôr cumércio de seco dô de dente era dimais, isso lá por 57. Depois de
e de fazenda [todo gênero de produtos], mais 60, aí teve um tempo que a gente buscava só
aí quando cheguei vi que o povo só comprava arroiz, puxada das roça pra Araguaína e depois
de mim se eu intregasse. Intão meu cumércio o camião tirava pra Anápulis. Esse tempo eu
passou a ser nas costa da burrada, daí eu fiz foi gainhei uns cobre bom. (Zequinha, entrevista
passá a gostar na chuvaiada (ANTÔNIO PAULINO, oral, julho de 2013).
entrevista oral, julho de 2013).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

O crescimento da região tanto do ponto de vista popula- relacionada à reputação de sua tropa e, por oposição, um tropeiro
cional, quanto do ponto de vista da produção, foi o momento sem tropa não devia ser respeitado. Infelizmente, não temos ele-
ideal para a valorização do trabalho do tropeiro. Mas aqui é mentos suficientes para dar continuidade a esse ponto específico
interessante observar que todos os tropeiros com quem conver- da discussão, mas podemos inferir que a tropa de um tropeiro era
samos ocupavam a posição de dono da tropa, ou seja, não eram mais que seu meio de vida: era a forma pela qual ele se apresen-
apenas empregados, única exceção foi o senhor Zequinha, que tava para a sociedade da época, inclusive, porque quanto maior
não quis comentar sobre o tempo em que era apenas empregado. e melhor fosse sua tropa, mais o tropeiro era requisitado para
grandes viagens, para negócios com pessoas economicamente
Se compararmos a recusa de Zequinha em falar sobre o
importantes na região e, consequentemente, podia ampliar seus
tempo em que era apenas empregado com as representações do
recursos. O senhor Noé, um dos tropeiros com quem conversa-
camarada – empregado em uma comitiva de tropeiragem e que
mos, trabalhou tropeando arroz, produto muito importante no
quase nunca recebia salário – como um trabalhador inferior e
processo de acumulação de capital na década de 1960, na região
indigno de confiança, é possível que haja uma relação entre essa
de Araguaína e Babaçulândia. Segundo ele,
ideia de indignidade do homem que não é dono de sua própria
tropa. Sobre o orgulho e o cuidado com sua tropa, os tropeiros
não escondem que esse é um domínio importante do ofício. E quando trabaei de tropa um dia, foi pouco dia
[...], minha tropa também era muito pequena só
Antônio Paulino diz o seguinte:
era três burro é pouco. A tropa do Antoi era seis
burro, do meu irmão, a minha só era três, mais
eu trabaei um diinha. Daqui eu num trabaiei
Minha tropa no cumeço era pequena, não
até Babaçulândia, só trabaei comprando arroz
passava de seis animal, mais quando o negócio
aqui nesses entrocamento, raposa, ribeirão de
foi milhorano, aí eu comprei uns animal bunito,
areia, coco taviano, aqui pur perto. Raposa é
pelo ruço, anca larga, umas fêmea prontinha pra
um lugar por nome raposa, é ali, você conhece
inxertar. Era uma tropa boa. Tinha gente que
daqui pu coco? Bem? Quando você entra pende
vinha de longe procurá um burrinho ou uma
pra Babaçulândia agora ali próximo depois da
mulinha das minha cruza. Antes de eu mudar
ferrovia é o primeiro corgo. Isso não foi assim que
de ramo e eu tinha uma tropa de mais de 20
cheguei já foi com uns dez anos mais ou menos
animal. Era uma burrada respeitada. (ANTÔNIO
que tava aqui, a gente saía tendo às vezes já tinha
PAULINO, entrevista oral, julho de 2013).
o arroz tratado, quando ia daqui de manha, de
noite tava aqui ou di tarde us arroz não era batido,
Ter uma “tropa boa” significava ter um número razoável às vezes quando a gente tratava eles ia bater o
de animais de qualidade, o que, pela fala de Paulino, aumentava arroz, o arroz tá pronto no outro dia, você vem
panhá o que comprou, pur exemplo, e deixou
a reputação do tropeiro. Ou seja, a reputação do tropeiro estava

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

outro a pessoa fazendo outros arroz pra gente mexer cum arroz. No cumeço, comprava nas
comprar né, e comprava lá e vendia aqui, aqui roça e vendia na máquina, depois que vi que
tinha o Tentem, tinha a máquina, isso que eu tô tava dando bom [dinheiro]. Eu fiz um negócio
te falando mais pra cá já tinha o Tentem com essa cum o Santólio que vendia pano e encomendei
máquina bem aqui, o Tentem era um cearense pano de bater arroz. Ele trazia pro comércio de
veio chamado Manuel Tentem, ele era o dono fazenda [secos e molhados] dele, eu levava pras
da máquina de arroz, quando o Tentem morreu, roça, vendi pro povo que plantava o arroiz e
antes de morrer ele deu o lote pus pade [padres] comprava deles o arroiz, né? Era bom pra eles
ele fez uma igrejinha primeiro piquenininha, ficou qui num precisava ir na cidade compra e era
frequentando a igrejinha, depois ele deu pus bom pra mim que tinha dois negócio num só.
padi e os padi foi e levantaram a Igreja grande, (ANTÔNIO PAULINO, entrevista oral, julho de 2013).
a esposa dele chamava Mariquinha. (NOÉ GONÇALVES
LESSA, entrevista oral, março de 2014).
Antônio Paulino é um dos homens que, partindo do ofício
de tropeiro, conseguiu atingir uma posição econômica confor-
No relato de Noé aparecem alguns aspectos importantes: em
tável. Na década de 1970, comprou caminhões e fazendas e,
primeiro lugar, ele diz que sua tropa era pequena, tinha apenas três
com a divisão do estado de Goiás, transferiu-se para a cidade de
(03) animais, mas seu irmão tinha mais seis (06), mesmo assim,
Anápolis, embora a cada ano, no mês de julho, retorne ao norte
ele afirma que trabalhou comprando arroz. Em segundo lugar, ele
para a temporada de praia do Araguaia. Mas seu caso não pode
mesmo diz “só trabaiei [como tropeiro] com arroz”, o que nos leva
ser generalizado, a maioria dos tropeiros vivia de forma bem
a crer que esta era sua atividade principal. Em terceiro, o arroz que
mais modesta e rememora seu passado, também, como de uma
comprava era vendido diretamente para o dono da máquina, que era
luta árdua pela manutenção da família.
o atacadista. Esse, por sua vez, vendia para os grandes cerealistas
de Anápolis à época. Em suma, pela descrição do senhor Noé,
podemos inferir a inserção dessa atividade no ciclo econômico TRADIÇÃO, FAMÍLIA E CULTURA DE TROPEIRAGEM
regional e, principalmente, podemos ver que essa atividade tinha
um papel importante para o crescimento de Araguaína. Quanto Manoel Messias Lopes conta como o ofício de tropeiro era traba-
à inserção dos tropeiros nas atividades comerciais na região de lhoso, mas, ao mesmo tempo, relata como o negócio prosperava:
Araguaína, o senhor Antônio Paulino enriquece essa discussão:

Meu pai era quem pegava o dinheiro, nesse


Na década de 60, o arroz era bom negócio. tempo eu era solteiro, trabalhava pra ele, o
Depois que milhorei minha tropa, cumecei a Balbino morava em frente assim ele tinha uns

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

com meios advindos da atividade de tropeiragem; a segunda


dez burro, ele e o menino dele tropiava coco
é que, no “sítio comprado”, começaram a produzir sua própria
babaçu, arroz, milho, aqui eu trabaei uns dois
anos. Lá no Maranhão, eu trabalhei muito de mercadoria de venda; a terceira, parece que o ofício do tropeiro
tropeiro, lá eu puxava algodão, puxava tudo, nois era uma atividade baseada na tradição familiar.
comprou um sítio de cana no sucruizim [distrito
de Araçulândia, município de Wanderlândia] Quanto à compra do sítio, inferimos que está ligada ao
mudemu pra lá trabalhava no sítio de cana, desejo de produzir seus próprios produtos e, assim, assumir todas
aí nois fabricava pinga e rapadura, eu saía e ia as etapas do comércio, pois ser tropeiro na região era mais que
vender lá na Gameleira no rumo de Ananás,
transportar mercadorias de outrem, era constituir um comércio
trabaei muito de tropa, levava pinga pra mata
pra dentro, rapadura tudo pra vender chegava em torno do transporte em que compra-transporte-venda seria
lá meio dia a diferença era só incher o saco e o ciclo fechado do tropeirismo. Nesse ciclo fechado, estava
jogar em cima da tropa e cair pra trás, e aí chuvia envolvida boa parte do núcleo familiar.
naquela época chuvia muitu cada burro era
cuberto de uma lona para cubrir a sacaria não Os irmãos Lopes, por exemplo, trabalhavam juntos e
moiava não, tinha vez que eu chegava oito, nove tinham aprendido esse ofício de seu pai, o senhor Adelino Lopes
horas da noite lascado nessas instradinhas ruim
Sousa, que possuía uma grande tropa e, por diversas vezes, alugou
me perdia, na frente achava a estrada de novo.
Uma vez me perdi daqui pu Lontra. (MANOEL animais para mascates do Maranhão. A tradição familiar, nesse
MESSIAS LOPES, entrevista oral, março de 2014). caso, foi passada de pai para filho e, por isso, Manoel Messias faz
questão de registrar que nada recebia de seu trabalho enquanto
era solteiro, pois trabalhava ainda como aprendiz do pai. Seu
Antes de casar, como era costume, os rapazes que traba- irmão, José Ribamar, exercia as mesmas atividades que Manoel
lhavam com os pais não recebiam diretamente por seus serviços. Messias com outra parte da tropa:
Na verdade, o pai recebia e dividia como achasse mais adequado.
Manoel Messias abre sua fala registrando sua dependência do
Daqui pra Babaçulândia, eu levava rapadura,
pai, para, em seguida, afirmar que sempre trabalhara bastante, levava pinga muitas veiz o dia todo daqui pra
desde menino, tropeando diversos produtos de um lugar para Babaçulândia, trevessava o [rio] corrente uma
outro. No Maranhão, tropeava algodão, no norte de Goiás, mais vez eu fui com as carga de pinga vendi, quando
voltei o corrente tava chei e a ponte era uma
propriamente no povoado de Sucruiuzinho, atual distrito de Ara-
pinguela, a água tava cubrindo a pinguela
çulândia, trabalhava com a cana no sítio que sua família havia assim quase um metro pra cima e eu trevessei
comprado. Três questões nos chamam atenção. A primeira delas cum a bagagem todinha nas costa ia lá deixava
é o fato de a família ter comprado um terreno possivelmente um bucadu, voltava aí jogava os burru nágua

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

atravessei nadando vim bater aqui. Se eu ti falar Quando tive mais animal, o negócio miorou. Aí a
que não tinha uma casa construída, a casa que gente dividia a tropa, era tudo junto o dinheiro,
tinha construída era a casa du Salumão Cardoso, o ricibido e pago era dividido por nois três. Mais
casa de adobu cuberta de telha dessa telha a gente pegava serviço diferente, as veiz. Nóis
feita aqui mermu essa telhazinha curraleira e dava certim... certim... nunca brigamo. Mais
um resto dessas casas na Cônego João Lima depois que meu irmão casou ele quis trabaiá
tudu era cercada cum talo de coco e a gente sozim. Acho que foi a muiê dele que intrusou.
passava era aberrando assim purquê nu meião Num sei. Ficô eu mais meu cunhado. Nóis ia
da rua ninguém guentava a fundura da areia pro lado do introcamento de Babaçulândia
e as cubertura era a paia de babaçu ou telha busca ligume [produtos da lavoura] pra vendê
dessas telhinha comum aqui era assim em aqui no Pé do Morro e no Murici. Isso durou até
Araguaína. (JOSÉ RIBAMAR LOPES, entrevista não tê mais jeito de tocar tropa... (ZEQUINHA,
oral, março de 2014). entrevista oral, julho de 2013).

Zequinha trabalhava com seu irmão e seu cunhado fazendo


José Ribamar relata a aventura que era ir de Araguaína
o transporte de produtos da lavoura, mas também faziam viagens
para Babaçulândia fazer as entregas, uma verdadeira epopeia,
para mais longe em direção a Xambioá, abastecendo o Garimpo
atravessando a nado, junto com as tropas, os rios que transbor-
de Cristais do Boqueirão. Nessas viagens, que à época eram rea-
davam na época das chuvas. Mas nossa atenção se volta para
lizadas por estradas de terra difíceis de transitar no “inverno”,
o fato de descrever os produtos que levava para Babaçulândia,
a contribuição da família era importante:
esclarecendo como era o círculo comercial familiar: envolvia
o trabalho no sítio, onde plantavam a cana, faziam a rapadura
no engenho e destilavam a cachaça. Todos esses produtos eram No inverno de 68, acho qui era 68, fumo levar
comercializados pelos membros da família que, assim como muita mercadoria prum barracão de cristal no
Manoel Messias, levavam sua mercadoria pela região para boqueirão. Era um trabaio danado. Fumo na
entregar ao consumidor final. tropa toda, vinte e tanto animal carregado. Chico
[irmão] e Geraldo [cunhado] e mais três home
Nessa época, de fato, era muito comum ter muitos membros pra ajudar cum a tropa. Pegamo uma chuvona
de treis dia, deitamo acampamento e ficamo
da família trabalhando com a tropa. Zequinha diz que, assim
esperando estiá. Sorte qui não tinha carne verde
que se estabeleceu em Pé do Morro, trouxe seu irmão e seu tio [carne fresca], mermo assim teve feia a coisa. A
para trabalhar com ele. No começo, trabalhavam juntos, pois a burrada durmia piada e nois ainda tinha que
tropa era pequena: vigiá, pra onça num pegar. Se era só de nois
tinha dado conta não, mais quando a chuva

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

passô chegamo no garimpo e ganhamo nosso ô tu que tava cum ela Paulino? Sabia que a onça
dinheiro. No normal uma viagem dessa custava tava rastano o burro, mais era nada... quando
oito dia, essa daí demorou uns 15. (ZEQUINHA, chegamo bem pertinho engatilhado era uma
entrevista oral, julho de 2013). ariranha grudada na perna do burro.... Eita! o
tiro foi só certero...O burro fico muito tempo
mancando, mais curô. O coro da ariranha quem
Zequinha esclarece que, sem a família naquela ocasião,
tem, hein Paulino? Tu num lembra? Dessa veiz
ele teria tido prejuízo, mas a situação vivida por ele tem um foi pur poquim. (PEIXOTO PAULINO, entrevista
elemento importante da cultura da tropeiragem: a aventura. oral, julho de 2013).
São chuvas, dias e dias acampados nas matas, animais da tropa
que desaparecem, riscos de animais selvagens. Cada uma des-
As aventuras nas estradas desertas nos tempos em que a
sas possibilidades faz desse trabalho uma atividade destinada
maioria dos caminhos era de tropeiragem são uma forma cultural
àqueles que têm “espírito de correição”, ou seja, para os afeitos
que diz respeito ao povoamento da região. Esse ambiente das
às viagens, às temporadas longe de casa. Peixoto Paulino, tio de
estradas também está presente na narrativa de Arlindo Dias da
Antônio Paulino, viajou com esse último durante alguns anos
Silva, um senhor de 79 anos, cuja mente lúcida revela um pouco
na década de 1960. A memória de Peixoto, um senhor 68 anos,
do cotidiano estradeiro.
filtrou muitos dos acontecimentos vividos na época de tropeiro
e parece ter retido aqueles aspectos mais aventureiros:
Nunca viajei só não, e mexi com boiada depois
das carguinha que eu mexi mais o Antõe da
Alvina e aqui não viajei de pé não, mais no
Numa viagem, tu lembra, Paulino, foi duro...
Marabá, no Pará, eu viajei purque o burro
[gargalha] a burrada piada pra num fugi purque
cansava, e não tinha outro ou viajava de pé ou
tava sem madrinha, aí piamo e fumo pras
ficava ai, e deixava lá embaixo, mais não largava
rede. A lua saiu e tudo quetou de noite. Só um
boiada aí quando voltava, apanhava o burro,
piado de curuja. Aí os animal cumeçou a ficá
era aconteceu foi muitas vez, oh, mais eu sufri,
disinqueto e Paulino levantô e me chamô e
também eu passava o dia e não via ninguém
nóis foi vê pensado sê onça, era lugar de onça.
não, não tinha gente cuma hoje não. (ARLINDO
A gente tava na bera do Lontra no Araguanã,
DIAS DA SILVA, entrevista oral, janeiro de 2014).
né, Paulino? Tu se alembra do lugar certim, era
de cima ou dibaixo de Carmolândia. Dicima,
né, isso dicima. Corremo pru lugá onde tava Nas andanças pelo sertão, Arlindo relembra as dificuldades
a burrada, chegamo lá e vimo um animal na
berrinha do rio. Só tinha uma ispingarda, era eu
que enfrentou na época em que trabalhava como tropeiro, os
momentos de dificuldade que viveu ao percorrer as estradas tropei-

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

ras, ainda, na década de 1960. Em sua narrativa, aparecem alguns Arlindo, ao relembrar suas atividades quando era tropeiro,
traços da cultura e dos valores dos tropeiros. Por um lado, conta menciona os perigos que enfrentou para conseguir transportar
que poupava os animais cansados dos longos trechos de estrada as cargas em cima dos burros por entre rios de fortes corren-
ruim, evidenciando a relação de dependência e, às vezes, talvez, tezas e em lugares onde não havia pontes. Ao relembrar essas
de afetividade, que tinha com a tropa, pois “sempre voltava para dificuldades, a palavra que marca o relato desse senhor é
apanhar o burro”, mesmo depois de longos trechos andando a pé; sofrimento, para ele a vida de tropeiro significou sofrimento,
por outro, fala da solidão das estradas quando se era um tropeiro e esse sofrimento, ele revela, levou-o a abandonar o ofício.
de poucos animais, sem comitiva. Por fim, não ver ninguém nas Arlindo fez uma escolha e não parece guardar arrependimentos.
estradas era sintoma do despovoamento da região, que ainda na Cumpriu seus compromissos enquanto exerceu o ofício, mas
década de 1960 procurava os meios de ampliar sua demografia. abriu mão da vida de tropeiro, pois o sofrimento era para ele
insuportável. Assim como Arlindo, Zequinha também zelava
A distância da família e o silêncio das estradas lhes causava
por seus compromissos, porém diferentemente daquele, sua
sofrimento, mas, mesmo assim, ele era um homem de palavra,
função de ofício terminou somente com a chegada da velhice.
“não largava boiada”, ou seja, não deixava de entregar o que tinha
sido contratado para fazer. Dentro desse contexto de rememorar as
dificuldades, o senhor Arlindo, com a saúde já bastante desgastada Depois que criei os fii...tudo foi na escola, só não
istudô quem num quis, mais eu tenho neto doto,
pelo tempo, empreende mais uma vez o esforço de lembrar e revela:
médico em Goiânia. Naquele tempo, eu apanhei
de meu pai pra largâ de querê ir na iscola. Hoje
tem qui ir. Sufri muito, desde piquininim, levava,
Só pegava o coco aqui na Babaçulândia levava no Norte, duas légua a comida pro meu pai na
pra Araguaína, chegava lá despejava e jogava aí roça e voltava pra pegar água na cacimba mais
dentro de casa e tornava voltar pra traz buscar uma légua todo dia. Era burro de carga. Daí casei
mais, era três dia de viagem rapaiz, três dia de e vim pra bera do morro trabaiá cum burro,
animal, mais era porque o reberão era cheiu sufria por isso nunca judiei, porque bicho também
demais, eu nu quis mai não de jeito nenhum um é vivente. Meus fii num sufreu assim. Cuma
sufrimento. Tem reberão brabo, o correntão é eu. (ZEQUINHA, entrevista oral, julho de 2013).
esse reberão, e quando eu passava lá ficava com
a língua branca. Passa todo o saco na canoa aí
passava os trem depois, passava os animais era Esse é o final da conversa que tivemos com o senhor
aí que botava a carga e tornava caminhar pra Zequinha. Neste momento, seus olhos, já opacos pelo tempo,
frente, que lá pur dentro d’água num passava estavam brilhando pela lágrima que ele resistiu em verter.
não, se entrasse lá murria tudo. (ARLINDO DIAS
Seus dias de trabalho duro terminaram, hoje vive confortavel-
DA SILVA, entrevista oral, janeiro de 2014).
mente com sua esposa em uma casa na cidade de Filadélfia.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

Alquebrado pelo tempo e pelo esforço, sua voz modulada, expressar nos inquietou e, no fim da conversa, perguntamos: “Seu
assim como as dos outros depoentes, traz a marca de uma vida Paulino, pro senhor o que é ser tropeiro”?”. Sua resposta foi
de lutas, cuja memória madura extravasa em uma paciente
reconstituição feita por um sujeito plenamente consciente da
Sabe qui eu num sei. Faiz muito tempo. Ajudamo
tarefa que desenvolveu. muito no disinvolvimento da região, mais
nossa época já acabou faiz tempo. Eu mesmo,
Muito do que foi narrado pelos tropeiros são imagens da
se fosse hoje, não sei, não me lembro como
cidade de Araguaína, os produtos comercializados e os negó- cumeçar. É otro tempo. Ninguém lembra de
cios organizados. Morando há muitos anos em Anápolis-GO, nóis mais. (ANTÔNIO PAULINO, entrevista oral,
Antônio Paulino baseia sua narrativa na contribuição que os julho de 2013).
tropeiros deram ao desenvolvimento econômico de Araguaína
e do Tocantins como um todo. Talvez seja verdade que pouquíssimos são aqueles que
lembram/reconhecem a importância dos tropeiros do norte
de Goiás, talvez seja verdade que a identidade desse ofício,
O comércio que os tropeiros fazia quando ainda
não tinha estrada, ou carro, foi grande. Hoje não tão importante para a cultura regional, tenha se perdido no
seria o que é sem eles. Naquele tempo, todas tempo: um tempo que, talvez, já tenha de fato passado. Por
as mercadoria vinha de fora e nóis trazia tudo: outro lado, a oportunidade de colher dessas mentes lúcidas,
do remédio até a máquina de costura da Bahia.
mesmo que presas em corpos alquebrados, uma representação
Araguaína foi crescendo, crescendo, pra hoje
tá nesse disinvolvimento. Depois do Tocantins, dos tropeiros pelos próprios tropeiros é uma forma de enri-
então, né, milhorô muito o recurso. (ANTÔNIO quecer o debate historiográfico sobre a memória e, também,
PAULINO, entrevista oral, julho de 2013) uma forma de registrar a presença desses sujeitos no mundo,
ainda que de forma fugidia.
Paulino aqui revela uma visão da tropeiragem como determi-
nante para a economia regional, no que ele tem razão. Há, ainda, dois CONSIDERAÇÕES FINAIS
aspectos importantes de serem registrados: (a) sua memória nesse
momento foi re/organizada em função de um exercício comemora- Nas conversas com os antigos tropeiros, a questão da contri-
tivo do progresso comercial e econômico da cidade de Araguaína buição para o desenvolvimento do norte de Goiás na região de
e região, cuja tarefa foi, também, um trabalho dos tropeiros; (b) o Araguaína aparece com intensidade. Atuando nessa região entre
senhor Paulino se apresenta como alheio a esse processo ao dizer: as décadas de 1950 e 1970, suas histórias não são folclóricas ou
“Hoje não seria o que é “sem eles”. Ele diz “sem eles” e não “sem se referem às relações de dominação, são suas histórias de vida,
nóis”, como se não se visse mais como tropeiro. Essa forma de se

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Do Presente ao Passado de um Ofício

remodeladas em função do presente, mas firmadas no rememorar dessa cidade. Araguaína, sem dúvida, é tributária do trabalho
dos tempos antigos. árduo desses homens que, contribuindo para o desenvolvimento
econômico da região, abriram caminho com suas tropas para
Os tropeiros entrevistados eram donos de suas tropas, o
a transformação cultural do que hoje conhecemos como o
que, de um lado, apontou a existência de uma relação afetiva entre
estado do Tocantins.
tropeiro e tropa, além do significado intrínseco da relação entre
“ser um tropeiro dono de tropa” e a dignidade do ofício. De outro
lado, nos deu aquela sensação de que existe uma lacuna enorme RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS
a ser preenchida nos estudos sobre o ofício da tropeiragem, pois
nem todos os tropeiros eram donos de tropa, havendo aqueles • Antônio Paulino, nascido em 16/09/1938, em Grajaú- MA.
que dominavam o ofício, mas trabalhavam como empregados. Entrevista concedida em 21 de julho de 2013.
Desses últimos, a memória oral não nos deu notícia, pois todos • Arlindo Dias da Silva, nascido em 01/12/1935 em Araguaína,
os tropeiros com quem conversamos se apresentaram como entrevista concedida em 29 de janeiro de 2014.
donos de tropas. • Emílio Ferreira, conhecido como Zequinha. Nascido em
05/02/1931, em Picos - PI. Entrevista concedida em 12 de
A perspectiva escolhida pelos velhos tropeiros para narrar
julho de 2013.
sua história nos deu a dimensão da reelaboração dos significados
• José Ribamar Lopes, nascido em 13/02/1932, em São João dos
que, de um lado, se reportaram aos sofrimentos e às relações
Patos - MA, entrevista concedida em 02 de fevereiro de 2014.
familiares fortalecidas com o exercício desse ofício; de outro
• Manoel Messias Lopes, nascido em 01/06/1939, em São João
lado, este muito mais forte, remontava às suas contribuições para
dos Patos - MA, entrevista concedida em 10 de março de 2014.
o desenvolvimento e crescimento de Araguaína, o que, de certa
• Noé Gonçalves Lessa, nascido 20/05/1920, em Novo Exu -
forma, é um retorno ao paradigma do progresso, só que nesse
PE, entrevista concedida em 06 de março de 2014.
caso colocando o tropeiro como uma engrenagem importante
• Peixoto Paulino, nascido em 28/05/1945, em Grajaú MA.
do processo de modernização.
Entrevista concedida em 21 de julho de 2013.
Preenchida com o que era significativo para eles no
presente, a memória desses tropeiros é cheia de lembranças REFERÊNCIAS
por meio das quais recuperam um tempo e um modo de viver ABREU, Waldir Ferreira. História de vida como metodologia de pesquisa: o
que, de outra forma, estariam perdidos para sempre. Por isso, relato de vida de um menino de rua da praça da república em Belém do
Pará. Revista Margens Interdisciplinar, v. 1, n. 2, 2004, p. 41-55.
acreditamos ter sido relevante ter (re)construído o que foi pos-
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. 3 Ed. São Paulo:
sível das memórias dos tropeiros de Araguaína e região, pois Companhia das Letras, 1994.
nesses relatos estão presentes parte da história da formação

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

GUMIEIRO, Maristela P. P. Os tropeiros na história de Goiás – século XVIII e XIX.


1991. Trabalho apresentado como requisito parcial para exame de
A Formação do/a Trabalhador/a
qualificação de mestrado em História. Universidade Federal de Goiás, Goiás, da Fábrica Cimba em
1991. 110p. Araguaína (1964-1974)
OLIVEIRA, Luciene Camilo. Arribação nordestina: representações e memórias
de migrantes em Araguaína e região (1950-1970). Monografia apresentada
ao colegiado do curso de História. Universidade Federal do Tocantins.
(2013). Neude Sirqueira dos Santos

INTRODUÇÃO

Este texto trata da formação da mão de obra operária no interior


do Brasil.1 CIMBA é a abreviatura da Companhia Industrial da
Bacia Amazônica, um polo industrial e mercantil, a primeira a
se instalar na cidade de Araguaína, no extremo norte do estado
de Goiás, hoje Tocantins. Inicialmente, na década de 1950, foi

1 Este texto é parte da monografia intitulada “Fábrica Cimba como local da forma-
ção da mão-de -obra” orientada pela professora Dra. Vera Lúcia Caixeta. Para a
realização dessa análise, foram utilizadas seis entrevistas com duas mulheres e
quatro homens, idosos, moradores de Araguaína, para contar suas histórias de
vida. Nascidos entre os anos de 1932 e meados de 1955, todos elas nasceram
na zona rural, assim como a maioria da população brasileira naquela época. As
entrevistas foram cedidas pela coordenação do Projeto Cimba, uma parceria
entre o Colegiado de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins e a
Secretaria de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de Araguaína-TO, que, durante
um ano, patrocinou seis alunos/bolsistas para fazer o levantamento e entrevistar
os antigos trabalhadores da Fábrica Cimba. O projeto foi realizado no ano de 2016.
Todos os entrevistados ficaram cientes que seus depoimentos seriam usados para
a realização de trabalhos acadêmicos e autorizaram sua utilização. Enfim, todas
as entrevistas foram gravadas e transcritas e estão no Centro de Documentação
História – CDH, da UFNT, Campus Araguaína, Unidade Cimba.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

fábrica Dirce S/A, depois, em 1964, assumida e ampliada pelos esses aqui, o Gaúcho, né? Deu muito emprego pro povo, muita
irmãos “Boa Sorte”, Benedito e Ademar Vicente Ferreira, tendo profissão [...], mas de tudo saiu daí, soldador, eletricista, pedreiro,
funcionado até sua falência, ocorrida após o assassinato do Ademar de tudo saiu” (ERNANE, 2016).
Vicente Ferreira, em 1974. O empreendimento industrial marcou
Os antigos trabalhadores do complexo industrial dizem ter
a vida de homens e mulheres que trabalharam na fábrica ou de
ouvido várias histórias sobre os patrões. Mas, ao significar esse
gente que simplesmente morava nas suas proximidades. Além da
passado, eles valorizam a oportunidade de trabalhar e manter
fabricação de óleo e sabão de coco babaçu, o complexo industrial
suas famílias, pois, além do salário, eles compravam no armazém
contava com uma máquina de beneficiamento de arroz, oficina,
da fábrica. Então, ao mesmo tempo em que há um silenciamento
serraria e marcenaria (com cerca de 150 operários), e pessoal de
sobre acontecimentos negativos relacionados aos patrões, há os
“rua” (oito caminhoneiros e 16 ajudantes) (SILVEIRA, 2009).
que ressaltam os aspectos positivos, o fato de a fábrica formar
Enfim, a unidade fabril Cimba aparece como uma das maiores
uma mão de obra industrial.
empregadoras de mão de obra da região no período.
De acordo com seu Guilhermino, as pessoas ouviam
Para contar um pouco da história da fábrica, é preciso dizer
falar da fábrica e vinham de outros lugares “como Piauí, Pará e
que, na década de 1950, ocorreu a instalação da fábrica Dirce
Maranhão por ouvir histórias sobre o município que tinha uma
S/A na cidade de Araguaína, responsável pela fabricação de óleo
fábrica que pegava muita gente, pagava bem e ainda tinha as
extraído das amêndoas do coco babaçu. A matéria-prima é obtida
terras que podia cultivar então eu vim do São Felix do Pará”
na cidade e arredores, que contam com grandes babaçuais. Na
(GUILHERMINO, 2016). Josefa, ex-operária na estamparia da
década de 1960, a fábrica Dirce S/A passa a ser propriedade dos
fábrica, afirma que seus patrões eram os homens mais influentes
irmãos “Boa Sorte”, Benedito e Ademar, e troca de nome para
da época, assim ela relata que:
CIMBA.2 A planta fabril foi ampliada e aumentou-se o trabalho
na extração do óleo e de sabão de coco babaçu. Sobre Ademar
Vicente Ferreira, um dos testemunhos disse que ele foi um grande Naquele tempo, o mandachuva [...] eram eles,
homem, deu emprego pra muita gente. “Na época, aqui, só tinha eles eram quem dominavam a cidade. Se um
funcionário fosse preso, eles interditavam essa
rua todinha e mandavam a polícia soltar, se não
2 A cidade de Araguaína, no início da década de 1960, tinha uma área de 9.672 km2, soltassem, o negócio iria ficar feio. Mas não
com uma população estimada em 10.826 habitantes, sendo que cerca de 2.382
pessoas residiam na zona urbana e a 8.844 viviam no meio rural (IBGE, 1960). Na
ficava nada, porque eles se chegassem lá, podia
década de 1970, esse número teve um grande aumento, quando a população ser quem fosse que fosse preso por qualquer
da cidade passou a ser de 37.915 pessoas, com cerca de 17.529 no meio urbano e crime perigoso, falasse assim: “É da Boa Sorte,
20.386 no campo. Após uma década, o município já tinha uma população de 72.069
é? Então solta”. Era assim, eles tinham que soltar
habitantes, 48.024 residiam na cidade e 24.045, no meio rural. Desse modo, durante
um período de 20 anos, a cidade teve um crescimento demográfico de 665% e de (JOSEFA, 2016).
2012% de aumento no número de pessoas no meio urbano (IBGE, 1960; 1970).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

Os irmãos “Boa Sorte exerciam poder na cidade. Eles eram


que hoje tão fazendo esse Parque Cimba, bem
vistos como autoridades que, inclusive, negociavam com a polícia
de frente àquele campo de futebol, ficava lotado
para fazer valer seus interesses privados. Tendo que cuidar e prote- de gente pra trabalhar, quando a sirene apitava 7
ger um número grande de funcionários, parece que tudo valia para horas a gente já tava lá, na hora do almoço, todo
não comprometer a produção, nem a desonra dos funcionários e mundo saía. Na hora de entrar, a sirene apitava.
Era muita gente… (JOSEFA, 2016).
da fábrica. A fábrica se constituía em uma rede de trabalhadores
diretos e indiretos, entre estes últimos estavam aqueles que exerciam
funções fora da fábrica, mas que mantinham uma ligação direta As casas da Vila Cimba foram construídas de alvenaria, bem
com ela. Além disso, havia os empregados dos projetos agropecuá- estruturadas, com água e energia elétrica. Elas eram destinadas aos
rios, pois a empresa funcionava com dupla função por se tratar de operários do alto escalão, ou seja, aos funcionários de confiança dos
uma indústria rural. Interessante também é o fato de o complexo patrões, que exerciam funções e cargos importantes na produção.
industrial ter uma vila operária, que “era dos patrões nossos. Eles Para muitos, o surgimento da vila trouxe para os trabalhadores a
construíram as casinhas para seu trabalhador de confiança. Lá realização de um sonho, uma moradia, mas se levarmos em conside-
eles moravam sem pagar aluguel, eles e suas famílias. Era gente ração as estratégias de extração de mais trabalho e responsabilidade
de grande escalão/gerentes. Não eram peões” (ERNANE, 2016). dos chefes, a moradia no local de trabalho significava que eles se
tornavam empregados em tempo integral.
Os testemunhos afirmam que não sabem o número exato
de funcionários que eram empregados pela fábrica. Segundo De fato, os patrões buscavam formas de ampliar a produção
Josefa, eram muitas pessoas, porém, o mais interessante são as e garantir a lealdade com grande controle da vida dos funcionários.
analogias que ela estabelece para fazer referência à quantidade: Esses funcionários eram respeitados pelos demais, pois todos sabiam
que somente os privilegiados podiam morar na vila. Enfim, a exis-
tência da vila operária criava uma separação entre os operários com
Era muita gente, oh! Eu não tenho ideia, mas eu
cargo de gerência e o reles trabalhador, que morava fora da vila.
sei que era uma folha assim, que a gente via que
tava lotado, uma folha de caderno desses livrões Velhos operários guardam em suas memórias o apogeu e o
grossos, aquele cadernão. Só nós mesmas, mulheres,
declínio da fábrica. Desse modo, as narrativas dos antigos trabalha-
eram mais ou menos umas 50 mulheres, mulher
que eu digo é assim, mulher mesmo, mocinha dores da fábrica Cimba se entrelaçam com a história do presente e
nova, senhora de idade, senhora de 20 anos de 30, do passado do antigo Norte Goiano. Vizinho da fábrica Cimba está
nessa base. Quando dava meio dia, eles fizeram o Bairro São João. Para os moradores desse bairro, além do trânsito
um banco debaixo de uma árvore e “nós sentava”,
de pessoas e de caminhões, o que ficou na memória foi o toque
era cheio, a gente nunca lembrava de contar, mas
era muita gente. Homem era muito. O pátio ali,
da sirene. Essa memória sensorial está presente tanto nos antigos

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

trabalhadores, quanto nos moradores da Rua 02 de Julho. É a sirene níveis de aplicação, de alvos; ela é ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do
que regula os horários de trabalho e descanso dos trabalhadores da poder, uma ‘tecnologia’” (FOUCAULT, 1997, p. 189).
fábrica, bem como dos moradores do seu entorno. Assim, a saudade
Como resultado dessas técnicas e práticas de poder sobre
que acalenta é a mesma que inspira e também denuncia a falta de
os corpos, fabricam-se “indivíduos úteis”. As reflexões de Fou-
preocupação com os recursos naturais de outrora.
cault permitem discernir e analisar a formação de mão de obra,
garantindo a “submissão das forças e dos corpos”, a “docilidade”
A FORMAÇÃO DO (A) OPERÁRIO (A) e a “utilidade de todos os elementos do sistema” (1997, p. 191).
Assim, a formação da disciplina implica necessariamente o
Na fábrica, havia muitos cargos de confiança e várias funções, domínio do corpo, que se reflete nos gestos, nas atitudes, na
como marceneiro, operador de máquinas, de estamparia entre postura, na escolha da melhor maneira de se fazer, de se colocar,
outras. Dentre os empregados, havia desde os adolescentes até de agir, de operar, de portar-se, de usar e canalizar as energias,
pessoas mais idosas, todos desempenhando funções de acordo de utilizar os membros para o trabalho do tipo fabril.
com a necessidade da produção. Muitos trabalhadores prestavam
Reflete-se aqui sobre o propósito dos empresários da
serviço à fábrica indiretamente, é o caso dos madeireiros que
fábrica Cimba em transformar o camponês, o artesão, o traba-
trabalhavam na exploração da madeira e das quebradeiras de coco,
lhador rural, a dona de casa, em operários industriais. Pensamos
que recolhiam e enviavam os cocos para serem processados na
nas estratégias que tornaram essas mudanças possíveis. Assim,
fábrica. Porém, o mais importante aqui é pensar na constituição
é preciso transformá-los, adaptá-los tecnicamente com novas
de uma mão de obra disciplinada.
habilidades e conhecimentos, novos valores e posturas, para que
Pelo depoimento de Dona Josefa, sabe-se que o tempo da possam aceitar a disciplina fabril. Do sucesso dessa empreitada
fábrica é regulado pela sirene. Não tivemos acesso ao regulamento dependia o bom funcionamento da fábrica, a utilização eficiente
da fábrica, nem sabemos se, de fato, existiam regras escritas, dos maquinismos e a maior produtividade dos trabalhadores.
mas, certamente, elas eram conhecidas pelos operários. Nossos
Destarte, a produção da disciplina no interior da fábrica é
entrevistados deram a entender que o trabalho na unidade fabril
fruto da ação conjunta de mecanismos espaciais, funcionais e de
era diferente do trabalho nas fazendas e em casa. Mas como for-
um sistema de penalidades e premiação. “A disciplina”, segundo
mar um trabalhador disciplinado? Nas análises de Foucault, os
Foucault (1997, p. 130) “procede em primeiro lugar à distribuição
mecanismos disciplinares são pensados como técnicas de saber
dos indivíduos no espaço. Para isto, utiliza diversas técnicas”. A
e práticas de poder. Assim, a “disciplina”, é definida como: “Um
primeira delas é a “cerca”, algo que separa o espaço físico fechado
tipo de poder, uma modalidade de exercê-lo, que comporta todo
da fábrica dos outros espaços sociais. A fábrica chama a atenção
um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de
pela organização de sua planta, pelos maquinários modernos e,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

especialmente, pelo número de trabalhadores. Segundo relatos de dadas pelos gerentes. Desse modo, Josefa descreve os setores e
seu Guilhermino, “De quinhentos a seiscentos, era essa base. E as seções pelas quais passou:
lá no campo trabalhando também. Não me lembro bem, sei que
era muita gente” (GUILHERMINO, 2016). De acordo com seu
A primeira era a marcenaria, depois fui para
João Mourão, a fábrica contava com diversos departamentos de
a estamparia, depois fui para a máquina que
trabalho, ele relata que: fazia óleos levinha, aquelas latas grandes. Fui
trabalhar. Fazer as latas, e depois parei de fazer
latas, eu fui pra um lugar onde o óleo passava
Ela era uma empresa madeireira, ela tinha serraria na refinaria, aquelas torneirinhas, aí botava uma
que serrava e exportava madeira para fora. Ela lata debaixo de cada litro, aí tinha uma torneira,
tinha fábrica de óleo. Ela tinha mais fábrica de arribava aquele cabo, e os óleos entravam nas
sabão, tanto o sabão de barra como em pó. E (…) latas. Quando enchia, a gente tornava puxar,
a indústria era produtiva. Ela tinha um depósito puxar pra lá. Cada um tinha uma função, um
de açúcar a granel, o açúcar era produzido em pra encher, outro pra puxar a lata, outra pra
outra cidade do Goiás e trazido pra cá, porque tampar, outros pra colocar nas caixas, sabe? Aí
aqui não tinha, eles eram também usineiros saí dali e fui pra estamparia, não fazia sabão,
(JOÃO MOURÃO, 2016). eu carimbava o sabão. Era tipo um... tipo uma
pista, mas aquela pista era uma mola por baixo
cheio de sabão, eu tinha que estar lá na frente
A madeira era vendida para a exportação “[...] produzia com o carimbo pra carimbar cada barrinha, por
móveis pra vender aqui dentro da cidade de Araguaína. Ela fazia que elas vinham um monte juntas, eu tinha que
portas e portais pra vender estocado, pra exportação. Nós fazia tam-tam-tam, sabe? Trabalhei quase um ano
cruzeta, aquelas cruzetas que bota num poste de luz, pra fora, sentada na cadeira carimbando. Aí eu troquei,
eu tava ali e me botaram na catação de arroz.
naquela época, pra Goiânia” (JOÃO MOURÃO, 2016).
Era uma carreira bem grande de madeira ao
redor assim e longe e o arroz descia assim e era
No interior da fábrica havia a divisão em seções bem
mulher por um lado e por outro, forrado de um
definidas e, nelas, a relação direta e imediata no controle e fisca- monte de saco de estopa por baixo, cada uma
lização dos chefes sobre os subordinados. Eram diversas funções com uma colher tirando aquela escolha. Por
distribuídas em vários setores como caldeiraria, refinaria, serraria, exemplo, nós três aqui, outros três ali, aquele
estamparia, saboaria, marcenaria, oficina e armazém, além do que eu não pegasse o outro já pegava, então
era cheio de mulher de um lado e do outro
setor de transportes. No interior de cada uma delas, estavam as
mocinha...trabalhei seis meses, depois saí e
seções. Os funcionários mudavam de setores ou de funções de fiquei trabalhando em um armazém, varrendo,
acordo com a necessidade da produção, tudo dependia das ordens limpando, armazém de tudo (JOSEFA, 2016).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

Outro mecanismo importante no processo de formação as necessidades na produção e desempenho profissional. Eles eram
disciplinar é a própria organização do setor produtivo. Como foi serventes e auxiliares dando suporte em quase todas as áreas da
referido no depoimento de dona Josefa, o espaço fabril era dividido produção. Já os motoristas, operadores das máquinas e mecânicos
em quatro setores, fabricação, oficinas, transporte e armazém, ocupavam um espaço privilegiado dentro da empresa pelas necessi-
sendo que havia, dentro deles as subdivisões, as seções, que se dades constantes de seus serviços e, especialmente, pela ausência de
assemelhavam às do modelo taylorista. A seção era formada por mais trabalhadores especializados na área. Eles eram remunerados
máquinas racionalmente dispostas, seguindo a lógica do processo de forma diferenciada: “Naquela época, o salário mínimo era cem
produtivo. A disposição das máquinas pelas seções seguia a cruzeiros, havia diferença no salário. Os profissionais ganhavam
sequência de operações que definiam as funções de cada operário, mais e quem trabalhava à noite também” (JOÃO MOURÃO, 2016).
como apareceu no depoimento. Assim, a produção da disciplina
passa a ser inerente à distribuição espacial das máquinas e ao Os trabalhadores que tinham alguma profissão já
desempenho funcional dos operários. O andamento da produção formada recebiam mais que os empregados sem
obriga a presença ininterrupta, a atenção contínua e o trabalho experiência, sabe, né? Nós trabalhávamos o dia
todo, só parava para almoçar. Com experiência
constante do operário, como ressaltou dona Josefa. Assim, sua
era bem visto na fábrica, faziam de tudo para
permanência na seção e na sua função passou a ser um requisito que nós não saísse, pois naquele tempo nem
necessário à organização da produção fabril. tinha muita gente que sabia mexer com trator,
serradeira, esses trem que tinha lá na fábrica,
Como já explicou Foucault (1997), a disciplina molda, fabrica por isso, muitos vinham de lá de bem longe de
os corpos. Nesse sentido, a execução e a repetição de tarefas simples, outras cidades (ALDOMIRO, 2016).
como carimbar o sabão de dona Josefa, durante várias horas diárias,
semana após semana, mês após mês, sem interrupção, terminaram Havia as hierarquias de funções e salários dentro da fábrica.
por moldar gestos, automatizar posturas e procedimentos. A longo Do ponto de vista da organização da produção, segmentava-se
prazo, o trabalho fabril influiu no desenvolvimento de determinados pelo grau de competência que ia das tarefas mais simples às
membros (mãos, braços, dedos) para executar com precisão sua mais complexas. Havia ainda uma assimetria determinada por
tarefa. Aos poucos, há um ajuntamento entre o corpo e a função, critérios de poder e prestígio, perceptível nas falas do seu João
determinando a melhor maneira de realizar a tarefa e a agilidade Mourão. Essas classificações implicam a questão salarial e o
para carimbar as barras de sabão. fato de apenas os chefes morarem na vila, ou seja, define-se a
posição social de cada indivíduo. Outra hierarquia era constituída
Os operários com qualificação estavam divididos pelos
pela escala de salário, a mais segmentada possível. De qualquer
setores de fabricação, transporte e oficinas; os sem qualificação
forma, a existência do salário mínimo permite a identificação
estavam presentes em todos os setores, sendo alocados conforme
dos operários e a comparação com os demais.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

A manutenção de um armazém no interior da fábrica é vista


como um benefício por parte de alguns operários, já que vendia Um acidente de um cara amigo meu que ele
caiu que e se acidentou. Aí ele caiu dentro da
alimentos e produtos de limpeza e higiene, que, ao final do mês, peneira da usina de óleo [...]. Quando o pessoal
eram descontados do salário do trabalhador. Porém, como ressalta chegou, ele tava dentro da peneira, ele não
o historiador, o salário nem sai da empresa (SILVEIRA, 2009). faleceu, mas ficou muito doente e depois de
Outro ponto importante a ser mencionado é que os trabalhado- três anos ele não conseguiu mais trabalhar até
que faleceu (JOÃO MOURÃO, 2016).
res deviam ter documentos pessoais para serem empregados na
fábrica Cimba. Muitos que chegavam a Araguaína e até mesmo
Lembro-me de um acidente fatal que teve
os próprios moradores não sabiam ler e escrever e, para serem lá na Cimba, o homem tava trabalhando na
“fichados”, tinham que adquirir os documentos pessoais e apren- serralheria, cortava madeira [...] e não sei
der a ler e escrever, uma vez que algumas instruções sobre os como a serradeira que cortava a madeira
voltou sobre ele e o partiu praticamente ao
maquinários a serem manuseados eram escritas e necessitavam
meio. O acidente foi bem falado na cidade,
de um mínimo de conhecimento quanto à leitura. mas os patrões logo fizeram calar. Então se
abafou o acidente, vários acidentes tinham
constantemente na fábrica, mas sabe né?
ACIDENTES E RELATOS DE GRATIDÃO: À Não podia falar não, porque aqueles que se
GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS revoltavam com os patrões sumiam, verdade,
sumiam e nunca mais apareciam [...]. Mas tudo
Sobre os acidentes de trabalho no cotidiano da fábrica Cimba, ficava bem escondido, né? Só aqui na fábrica
via gente perder dedo, mão e até ficar bem
recortamos várias passagens dos depoimentos que dão provas
mais ferido... (ALDOMIRO, 2016.)
da sua existência:

Pelos relatos, compreendemos que constantemente havia


Eu me lembro de um [acidente] deixa eu ver, da
Lizete [operária], que cortou o dedo na máquina acidentes leves e graves na fábrica e que os proprietários não
fazendo as tampinhas pra colocar na máquina de tinham uma política interna para prevenção desses acidentes. A
óleo. Ficou sem o dedo. E a outra foi na serraria que maioria dos trabalhadores, por temer represálias dos patrões, não
o cavaco daqueles de pau que a gente arrumava
denunciavam os acidentes que ocorriam na fábrica. Ademais,
pra fazer porta, [...] matou um rapaz. Foi um só,
ele morreu na hora. E outra menina que caiu um muitos dos trabalhadores eram gratos por terem tido a oportu-
pedaço [madeira] no olho dela e furou. [...] Essas nidade de trabalhar na fábrica, pois foi naquele ambiente que
três eu vi. [...]. Eu só lembro desses aí quando eu aprenderem a lidar com o tempo da fábrica, a manusear uma
trabalhava (JOSEFA, 2016). máquina e aprender uma profissão.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS A Formação do/a Trabalhador/a da Fábrica Cimba em Araguaína (1964-1974)

Vicente Ferreira (1974), um dos proprietários da fábrica Cimba,


Quando eu cheguei aqui, não tinha profissão,
assinalou a passagem de Araguaína à condição de retaguarda
mexia como marceneiro, fazia pouca coisa, por
aventura e necessidade [...] quando vim para da frente pioneira. Todavia, o fato de o próprio empresário ter
Araguaína que entrei na Cimba, aprendi a mexer estabelecido um frigorífico em Araguaína por volta de 1972, o
com várias máquinas, trabalhava na serraria, Frimar, já sugere que um processo de mudança no padrão de acu-
trabalhava como marceneiro profissional, era
mulação está em curso. Na década de 70, a criação extensiva de
reconhecido na fábrica, tinha valor o meu
trabalho. Depois de um tempo, aprendi a ser
gado já aparece articulada aos frigoríficos e, portanto, integrada
pedreiro aqui mesmo na fábrica. Comecei como a um sistema agroindustrial de caráter estável. Por outro lado,
ajudante, depois fui ser pedreiro mesmo depois a pecuária semiextensiva também se presta para a especulação
me mudaram pra mestre de obra, e faziam imobiliária, assegurando a manutenção da fusão das figuras do
muitas obras aqui em Araguaína (...), onde os
fazendeiro e do empresário.
patrões mandavam eu ia trabalhar, assim até
me aposentar eu trabalhei de mestre de obra
De qualquer forma, a fábrica Cimba teve um papel impor-
e sustentei minha família. Foi ali na Cimba que
adquiri esta profissão (JOÃO MOURÃO, 2016).
tante no processo de crescimento de Araguaína, marcando as
lembranças de seus antigos trabalhadores e, mais que isso,
surgindo na memória social do araguainense como monumento
Trabalhadores como o senhor João Mourão, consideram que
ao progresso que a cidade sempre buscou representar. Fernando
o trabalho na fábrica Cimba foi uma oportunidade que lhe permitiu
Catroga (2001, p. 53) estabeleceu uma estreita relação entre
aprender ao menos duas profissões, melhorar de vida e cuidar da
“memória, identidade, filiação e distinção”, ao afirmar que a
família, até que se aposentou. Nesse sentido, a disciplinarização
rememoração cria um sentido e perpetua o sentimento de per-
pelo trabalho, apesar das políticas de controle, é compreendida por
tença e de comunidade. Enfim, “A raiz da memória mergulha,
muitos trabalhadores como uma possibilidade de se tornar “um
portanto, num ‘espaço de experiência’, aberto tanto à recordação
bom” trabalhador, no caso, aquele para quem não falta trabalho,
como às expectativas, horizonte que o recebe como herança e
pois naquela época “faziam muitas obras aqui em Araguaína”.
como possibilidade de vencer a morte” (CATROGA, 2001, p.
Como sublinha Marcos da Silveira (2009), Araguaína, 53). Assim, nossos testemunhos, ao reconstruir na memória esse
localizada nas margens da rodovia Belém-Brasília, surge no passado, lutam contra o tempo que destrói e apaga as lembranças,
contexto de expansão econômica e logo se torna a maior cidade e tentam unir o presente ao passado e projetar o futuro.
do norte goiano. Aliás, poder-se-ia associar a construção da
Certamente, o trabalho das autoridades municipais, que
Belém-Brasília ao surgimento de Araguaína, à criação de grandes
transformaram as ruínas da antiga fábrica num parque ecológico,
fazendas de gado e ao estabelecimento da Cimba com o processo
tem contribuído para a valorização das memórias e das diversas
de modernização acelerado na região. Porém, a morte de Ademar

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

possibilidades de escuta das vivências dos antigos trabalhadores Um Novo Hospital para Araguaína:
da fábrica Cimba.
a OSEGO e os avanços na área da saúde
FONTES/DEPOENTES
Aldomiro – entrevistado em 2016. Valdivina Telia Rosa de Melian
Antônio – entrevistado em2016. Mariseti Cristina Soares Lunckes
Ernane – entrevistado em2016.
Guilhermino Santos de Mesquista – entrevistado em 2016.
José Mourão – entrevistado em 2016.
Josefa Serapião (Zefinha) – entrevistada em 2016.

REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembrança de velhos. 2ed. São Paulo. INTRODUÇÃO
EDUSP, 1987.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Martins Fontes, 1997. O campo de pesquisa sobre a história da saúde e das doenças
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 5 ed., 2003. no Brasil ganha visibilidade com a publicação, em português,
GIRALDIN, Odair (Org). A (Trans) Formação Histórica do Tocantins. Goiânia, da coletânea As doenças têm História, de Le Goff (1991). O
UFG, 2002.
avanço neste campo de pesquisa ocorre desde a década de 1970.
IBGE. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IBGE, censos demográficos: 1960,
70, 80, 91, 2000, 2007, 2010. Acesso: www.ibge.gov.br Internacionalmente, há os manifestos da Nova História, em 1974,
MACHADO, Luzia Cruz. Minhas Lembranças. Araguaína, Acalanto. 2006. tendo como precursores Jacques Le Goff (1995) e Pierre Nora
PORTELLI, Alessandro. Formas e significado na História Oral: a pesquisa (1995). Além deles, Jacques Revel (1995) e Jean-Pierre Peter
como um experimento em igualdade. Proj. História. São Paulo. 14, fev/1997. (1995) apresentaram as possibilidades do adoecer como objeto
______. O que faz a história oral diferente. Proj. História. São Paulo. 14,
de pesquisa para os historiadores, pois “a doença é quase sem-
fev/1997.
pre um elemento de desorganização e de reorganização social”.
SILVEIRA, Marcos César Borges da. Herdeiros de Sísifo: Trabalho e
trabalhadores no norte do antigo Goiás (1960-1975). Tese de doutorado, Publicada no Brasil em 1976, a trilogia História: novos problemas,
2009. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. História: novos objetos, História: novas abordagens amplia as
discussões no âmbito da história social e cultural.

Machado (1978), no livro a Danação da norma: medi-


cina social e constituição da prática psiquiátrica no Brasil,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

foi influenciado por Foucault, que problematiza a função do do Hospital Marechal Emílio Ribas. Políticas públicas de saúde
Hospital na organização e controle dos comportamentos sociais. são implementadas, consolidando o desenvolvimento da região
(AGRA, 2014, p. 40-53). Entre os trabalhos recentes realizados pela fixação de médicos na cidade. A problematização das fontes
sobre o tema saúde e doenças, destaca-se o livro Uma história orais construídas com base nas entrevistas com médicos, traba-
brasileira das doenças, organizado por Nascimento, Carvalho lhadores da saúde e moradores da cidade, permite apresentar
e Marques (2006), que reúne vários volumes que refletem sobre parte da história desta unidade hospitalar considerando o campo
as doenças como um fenômeno social e histórico. Relatos de de estudo econômico e da saúde. O hospital se torna local que
médicos, cronistas e literatos são evidenciados com o trabalho medicaliza e higieniza ao buscar curar o doente.
do historiador, pois ele procura dar visibilidade a esse campo de
Assim, a OSEGO de Araguaína se insere nos avanços do
pesquisa sobre a história das doenças e saúde1.
campo hospitalar da medicina moderna. A doença passa a ser
Atualmente, um grupo de historiadores da ANPUH busca, vista como um problema econômico, social e político. Novas
através de encontros regionais e nacionais, consolidar e atualizar as práticas de saúde do Estado de Goiás são institucionalizadas e
discussões sobre esse campo. Programas de pós-graduação dina- dinamizadas pela intervenção do Estado em regiões estratégicas
mizam as discussões interdisciplinares. Em 2014, a Universidade para o desenvolvimento do país.
Federal de Goiás (UFG) promoveu o 1º Colóquio sobre a História
da Saúde e Doenças em Goiás, cuja discussão se pautou nas novas
POLÍTICA, ECONOMIA E SAÚDE
perspectivas historiográficas. Dentro do contexto das colocações
acima, a pesquisa sobre a primeira unidade hospitalar de saúde
Cavalcante (1999) e Giraldin (2002) afirmam que as verbas
pública de Araguaína torna-se relevante e se insere no campo
liberadas pelo governo privilegiavam o setor agropecuário em
de discussões sobre saúde, doenças e instituições hospitalares.
detrimento do setor da saúde. Segundo Cavalcante (1999), a
Em 23 de março de 1970, a Organização de Saúde do Estado região norte, especialmente Araguaína, era contemplada ape-
de Goiás (OSEGO)2, chega a Araguaína através da ampliação nas no contexto da atividade agropastoril, o que provocou um
poder de acumulação para a cidade no setor, evidenciando que
1 Entre 2014 e 2016, o projeto História e Fontes, da pesquisadora Mariseti Cristina não havia uma política de direcionamento para o setor de saúde.
Soares Lunckes, foi direcionado aos estudos dos riscos, do corpo e das doenças
dos policiais militares do antigo norte goiano com a colaboração dos bolsistas
PIBIC Carlos Patrick dos Reis e Adriano dos Anjos Alves, no plano de trabalho No
cotidiano do trabalho policial: as enfermidades, a saúde e os riscos (1977-1987) e Corpos e hospitalar em todo o Estado. As unidades mistas de saúde foram criadas pela
degenerados, os policiais militares de baixa patente e as narrativas sobre o alcoolismo autarquia em diferentes municípios de Goiás e também eram conhecidas como
no batalhão Tocantins (1997-1987) de Carlos Patrick dos Reis. OSEGO. O Decreto-lei 3.109-A, de 28 de dezembro de 1988, autoriza, em seu Art.
2 A OSEGO foi criada em 14/11/1963 pela Lei Estadual nº 4.920. O Art. 1º definia: Autar- 1º, a OSEGO a constituir unidades administrativas da Secretaria de Estado de Goiás.
quia estadual vinculada à Secretaria do Governo do Estado, com sede em Goiânia Fontes. Legislação estadual - Secretaria de Estado da Casa Civil. (Disponível em: http://
e jurisdição em todo o Estado. Finalidade: prestar assistência médica, sanitária www.casacivil.go.gov.br/pagina/ver/5364/legislacao_. Acesso em: 18 nov. 2017).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

De acordo com Treiger (1979) e Paiva e Teixeira (2014), saúde pertencentes ao Instituto Nacional de Previdência Social
a falta de uma política de distribuição mais igualitária dos (INPS)4 ou então deveriam procurar atendimento nos hospitais
recursos foi questionada pelo Movimento Sanitarista Brasi- filantrópicos (CAMARGO, 2002, p. 41). Faltava integração no
leiro3, objetivando mudanças nas políticas de saúde pública. Os atendimento, como também nos recursos destinados à saúde
profissionais da área elaboraram um documento intitulado Pelo entre as diversas regiões. A região Sudeste era privilegiada, pois
Direito Universal à Saúde, servindo de base para as propostas recebia os recursos hospitalares destinados pelo governo. A região
de mudanças na política de saúde pública no país que possibili- Norte, como as restantes, ficava à margem desses incentivos.
tassem o desenvolvimento social.
A cidade de Araguaína, nesse período, tinha uma sede
Paralelamente ao projeto de crescimento econômico, do INPS5 que atendia especialmente seus beneficiários, ou seja,
era necessário criar condições para o trabalhador comum ter as pessoas portadoras de carteira de trabalho assinada ou que
acesso aos serviços de saúde. Homens e mulheres saudáveis fossem dependentes de um beneficiário. A saúde não era, no
dinamizariam o processo de implantação do capitalismo e do tão contexto nacional, uma prioridade. Ela estava sempre ligada a
preconizado milagre econômico. Faz-se necessária, então, uma uma forma de interesse político, ou seja, fazia parte de um elo
política de integração das ações dos serviços de saúde pública, para desenvolver outro setor ou vice-versa. De acordo com Gas-
evitando a dicotomia entre as ações dos serviços de saúde e as par (2002, p.89), desde a metade da década de 1960, o hospital
ações dos serviços de assistência médica. Eram entendidas como público Marechal Emílio Ribas, construído em Araguaína, foi
serviços de saúde pública as atividades de vacinação e vigilância um incentivo para acalmar os movimentos separatistas da região
epidemiológica e como ações de serviços de assistência médica, Norte de Goiás e os movimentos sociais do Araguaia, apesar de
aquelas que visavam ao tratamento de pacientes com tuberculose suas instalações serem inadequadas. O hospital público Marechal
ou com hanseníase, por serem considerados graves problemas de Emílio Ribas, construído na década de 1960, com instalações
saúde pública. Esses atendimentos, na maioria das vezes, eram inadequadas, tinha quarenta leitos para atendimentos ambula-
feitos em postos de saúde. Por sua vez, os casos de pressão alta ou
outra modalidade de “mal-estar” não eram tratados nestes centros 4 Para Camargo (2002), o atendimento através de convênios começou nos anos de
1930. Nessa época, foi criado o Instituto de Aposentadoria e Pensões (IAP). Mas era
de saúde, pois eram casos para a rede particular ou unidades de só para pessoas que trabalhavam e tinham carteira assinada. Cada categoria de
assalariados tinha seu IAP (bancários, marítimos etc.). Devido a essa diversidade,
houve uma fusão dos IAP, dando origem ao INPS, em 1966.
3 O Movimento Sanitarista foi conduzido por profissionais da saúde na década de 5 O INPS possibilitou o desenvolvimento do complexo médico-industrial na política
1970, organizando o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), em 1976. Seu de saúde: “A política de saúde no período de 1964 a 1974 desenvolve-se com base
objetivo era lutar pela saúde para todos. A Associação Brasileira de Pós-Graduação no privilegiamento do setor privado, articulada às tendências da política econômica
em Saúde Coletiva (ABRASCO), também fez parte do contexto de mudanças na implantada. Suas principais características foram: a extensão da cobertura previ-
saúde brasileira num período de mudanças na política do Regime Militar (LIMA e denciária, a ênfase na prática médico-curativa orientada para burocratização do
SANTANA, 2006). CEBES e ABRASCO constituíram, na época, espaços de resistência setor, a criação do complexo médico-industrial e a diferenciação do atendimento
e críticas às políticas públicas de Estado em relação à saúde (NUNES, 1985). a clientela” (BRAVO, 2004. p 27).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

toriais, um médico militar do Batalhão Tocantins de Araguaína, de 1965, é evidente o destaque de um modelo de atenção médica
o Dr. Carlos Engelsing, sua esposa, enfermeira, e uma auxiliar principalmente curativa, especializada, de elevado nível tecno-
de enfermagem, Valdina Rocha6. lógico, dependente da ‘indústria da saúde’, e de elevado custo”7
(NUNES, 1985, p. 46).
Observa-se que o Estado busca conter os conflitos sociais
pela implementação do hospital que medica e cura o corpo A saúde na década de 70 foi administrada de forma secun-
doente, ao mesmo tempo em que busca um local de cobertura dária, tendo em vista que a política capitalista estava compro-
previdenciária com o INPS, sendo este o hospital particular D. metida com a agroindústria. Um capitalismo agroexportador era
Nélcia, do médico Túlio Neves, fundado em 1968. A Casa de prioridade para os investimentos direcionados pelo governo a
Caridade Dom Orione estava iniciando suas atividades ambu- qualquer região. Acreditava-se que o desenvolvimento econômico
latoriais, passando a ser hospital conveniado com a OSEGO traria, automaticamente, melhores condições de saúde para a
e o INPS a partir de junho de 1976. Neste período, o governo população. Em relação às politicas de saúde, o Brasil acatou as
militar faz convênios com diferentes instituições hospitalares e conclusões e resoluções da III Reunião de Ministros da Saúde
financia, através do INPS, a construção de hospitais privados, das Américas, que sugeria a adoção da regionalização e integra-
visando aumentar a oferta de leitos hospitalares para atender os ção dos serviços de saúde, uma vez que o país apresentou um
trabalhadores da previdência social e estender os atendimentos planejamento econômico, mas não tinha um planejamento social
aos trabalhadores rurais (SARRETA, 2009, p. 146). Um governo para as especificidades regionais no que se refere à problemática
que busca legitimidade para as suas práticas ditatoriais na asso- da saúde (MOTA, 1979, p. 07).
ciação da previdência com a saúde e a educação, aliada à par-
Houve um avanço nas discussões sobre a saúde preven-
ticipação da iniciativa privada. Um modelo de saúde curativa e
tiva pela criação da Superintendência de Campanhas de Saúde
especializada, aos modos da indústria da saúde e do capitalismo
Pública (SUCAM)8. Campanhas preventivas foram difundidas
monopolista. Um modelo de saúde criticado pelos defensores
da medicina preventiva, pública e social e não das práticas do
7 Com a reforma universitária de 1968, ocorreram críticas às práticas de saúde do
“médico hegemônico” (NUNES, 1985). “modelo médico hegemônico” e saúde curativa. Ampliam-se as discussões sobre
saúde preventiva pública e social (NUNES, 1994, p. 5-21). Observa-se que, em Ara-
Sarreta (2009), ao citar Nunes (1985), escreve que as guaína, o modelo médico hegemônico prevalece com a ampliação de hospitais.
“Nos anos de 1970, essa política enfrenta permanentes conflitos entre os interesses
abordagens fenomenológicas da década de 1970 ampliaram os antagônicos apontados pelo setor estatal, empresarial e a própria emergência do
movimento social da saúde: o movimento sanitário” (SANTOS, 213, p. 235).
estudos no campo da saúde, especialmente a relação do médico
8 Em 1970, o Ministério da Saúde criou a Superintendência de Campanhas de Saúde
com os demais profissionais e o papel dos hospitais. “A partir Pública (SUCAM) e deu início a diversas campanhas: de Erradicação da Malária, de
Controle de Doenças de Chagas, de Controle da Peste e de Controle de Filarioses.
Estas campanhas foram executadas pela SUCAM, sendo uma iniciativa de saúde
6 A Srª. Valdina Alves Rocha veio do Estado de Mato Grosso juntamente com sua preventiva direcionada para a região Amazônica. A SUCAM, quando da criação,
família e trabalhou na Associação PROVIDA. absorveu o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNER), criado em 1941,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

principalmente na região norte. Segundo Oliveira (2005)9, as sença do Estado e da ordem na cidade. Os pistoleiros deviam ser
campanhas desenvolvidas pela SUCAM eram bem divulgadas combatidos com investimentos também em segurança pública.
na cidade de Araguaína e bem recebidas pela população por ser O Estado cria estratégias para a chegada e consolidação das
esta uma região endêmica de febre amarela, doença de chagas e, medidas econômicas e permanência de médicos na cidade, assim
sobretudo, malária. Como hospital público, a OSEGO se inseria como de outras pessoas e instituições.10.
no atendimento das doenças endêmicas do norte de Goiás, da
A atividade que mais se destacava na cidade era o comércio.
região sudeste do Pará e do sul do Maranhão.
Carmelita do Carmo (2005)11, moradora da cidade e comerciante,
As citadas campanhas eram realizadas de forma criteriosa. salienta o quanto se fazia necessária uma política de saúde pública
O controle era rigoroso. De seis em seis meses, eram feitas eficaz. Segundo a depoente, todos os seus filhos nasceram de
borrifações nas casas. Das pessoas com sintomas de febre, dor parto natural, com a colaboração da enfermeira Vanda Teixeira
de cabeça e frio, os “guardas” da SUCAM colhiam o sangue Vale12. Relatou que muitas pessoas, vítimas de acidentes, malária
na lâmina e enviavam para o laboratório, que ficava na sede da e febre amarela morriam por falta de atendimento. Ressaltou
SUCAM, em Tocantinópolis. O resultado era entregue no prazo ainda que, com a criação da primeira unidade de saúde mista,
de trinta dias. Se fosse positivo, os medicamentos eram gratuitos, a OSEGO, a cidade ganhou mais credibilidade e se expandiu.
e o paciente era acompanhado pelos servidores da SUCAM até Com a melhora do sistema de saúde, os investidores começaram
receber alta. Afirma Oliveira (2005) que a SUCAM disponibili- a direcionar seus recursos para o comércio e também para as
zou muita gente para fazer as campanhas na região Norte, tendo áreas rurais, fazendo da cidade um polo econômico.
como foco o combate à malária, o que possibilitava um processo
Segundo Lemos (2005), na década de 70, com a instalação
de ocupação populacional da região de forma mais efetiva.
da Unidade de Saúde Mista (OSEGO), o hospital Marechal Emí-
Segundo Peixoto (2005), para Araguaína, todos vinham lio Ribas foi reestruturado. Até então contava com 40 leitos de
com o objetivo de ascensão, especialmente os que queriam a
posse da terra. Havia também os pistoleiros, que representavam 10 Influenciado pelo regime militar, sob o comando do Exército Brasileiro, a partir
um entrave para a vinda dos médicos. A ênfase dada às práticas de 1968 a organização do Batalhão Tocantins de polícia militar foi importante
para a construção do espaço social do norte goiano. As redes de “micropoderes”
de pistolagem constrói argumentos para a necessidade e a pre- instaladas no interior da corporação militar atingiram as pequenas comunidades
com suas normas disciplinares, repressão e vigilância para a imposição da ordem
e do projeto de nação na região (ver resultado do projeto PIBIC A influência do
e a Campanha de Erradicação e Controle da Malária (CCEM), criada em 1958. Em Regime Militar e do Exército Brasileiro no interior do Batalhão Tocantins do norte
1991, foi criada a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que absorveu a SUCAM goiano (1968-1970) disponível na biblioteca da UFNT, Campus Araguaína.
e os demais programas de saúde existentes na época. (MOTA, 1979, p. 69). 11 Comerciante desde a década de 60. Proprietária do estabelecimento comercial
9 Enoque Gonzaga Oliveira é ex-servidor da SUCAM, que trabalhou em Araguaína Armazém Presidente.
na década de 70 e, atualmente, está lotado no Centro de Controle de Zoonoses 12 Primeira enfermeira de Araguaína, trazida pela 1ª Igreja Batista na década de 70.
(CCZ) da mesma cidade. Atualmente reside em Palmas-TO.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

atendimento ambulatorial e passou a ter 76 leitos, possibilitando


O Município de Araguaína, Sr. presidente, conta com
a prática de uma medicina curativa de internação de pacientes.
cerca de setenta mil habitantes, constituindo-se em
O “novo” hospital contava com quadro clínico de seis médicos centro convergente da região das mais populosas
e vinte atendentes. Todos os casos clínicos e cirúrgicos eram do Estado de Goiás.... Em outubro de 1976, o único
atendidos, muitos deles vindos do sudeste do Pará e do sudoeste hospital do Governo chamado Hospital da OSEGO,
construído pelo Estado ao tempo da administração
do Maranhão, mas, principalmente, do norte de Goiás. Em 1976,
do Marechal Emílio Ribas Jr., ficou fechado por
o corpo clínico contava com 12 médicos. Nesse período, segundo trinta dias. Não pode, portanto, suspender suas
Gaspar (2002, p. 89), Araguaína passou a ser considerada cidade atividades, ainda mais sob o frágil pretexto da
polo para a saúde na região norte. ocorrência de irregularidades. Se a situação não
era boa antes, agora, evidentemente, piorou. Há
Estes fatores desencadeavam para a OSEGO problemas anos que o funcionamento do Hospital da OSEGO
de ordem financeira e também no abastecimento de materiais, se faz de modo precário, sendo insatisfatórios
seus serviços à população. (BRASÍLIA, 1986, p.
pois o número de pacientes superava a projeção feita pela
10199-10200).
equipe médica do hospital. A falta de uma política regional que
priorizasse o setor de saúde foi a causa das crises financeiras
enfrentadas pela OSEGO. Segundo Nascimento (2005), ex-ser- Silva (2005) relata que a unidade de saúde enfrentava muitas
vidora, apesar da precariedade estrutural, da crise financeira dificuldades. Faltavam medicamentos e gêneros alimentícios. Os
e administrativa, os procedimentos médicos eram realizados. últimos passaram a ser doados pela própria comunidade araguainense,
Problemas como falta de água e quebra de máquinas da lavan- que reconhecia a importância de ter um hospital em funcionamento,
deria não se refletiam nos procedimentos médicos, pois as com o aumento do número de leitos e a ampliação das instalações,
roupas hospitalares e mesmo dos pacientes eram lavadas nos assim como de pessoal técnico e do saber médico, que contribuía
córregos Jacuba ou Lontra pelas auxiliares de enfermagem e com sua manutenção13. Quanto à falta de medicamentos, temos o
pelas auxiliares de serviços de cozinha. Esses transtornos eram seguinte registro do deputado Siqueira Campos:
gerados pela falta de um serviço de manutenção permanente
que cuidasse dos equipamentos. Um hospital, para funcionar 13 Atualmente, o Hospital Regional tem uma configuração ampliada. Composto
por 257 leitos de internação, sendo 20 na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI)
bem, precisa de um projeto administrativo que harmonize e centro cirúrgico com 06 salas em funcionamento. As especialidades que são
todos os setores. Estes problemas também refletem o quanto atendidas no Hospital Regional são: cirurgia geral, cirurgia torácica, cirurgia vas-
cular, cirurgia buco-maxilo-facial, cirurgia bariátrica, neurocirurgia, clínica médica,
as políticas de saúde pública desenvolvidas em Araguaína ortopedia e traumatologia, nefrologia, psiquiatria, oncologia, ginecologia, urologia
e hematologia. Importa dizer que o Hospital Regional é um hospital de média/alta
eram incipientes. Em relação às colocações acima, o deputado complexidade, classificado como unidade de Porte III, e seu atendimento, além
Siqueira Campos fez um pronunciamento a seus pares sobre das especialidades, é também de urgência e emergência. O Hospital Regional,
mesmo diante da crise que passa a saúde, continua atendendo à população não
a situação do hospital e registra que: só de Araguaína, mas também do entorno e até de outros Estados.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

saúde para a região foi dinamizada e o saber médico, aliado à


Os medicamentos da CEME não aparecem no
política, serão os motores da implantação, mesmo que precária,
Hospital, nem no Município, apesar de serem
remetidos abundantemente de Brasília para a de um projeto de saúde15.
OSEGO em Goiânia. Tal situação não deve, nem
pode persistir. O Governo Federal precisa voltar suas
Juntas, política e tecnologia médica inserem-se no que
atenções para Araguaína e para o Grande Norte de Chaul (2002, p. 193) escreve sobre o saber médico, colocando
Goiás... Impõe-se que o Governo Federal fiscalize que este intervém e organiza o espaço, abrangendo até mesmo o
Goiás e a OSEGO para controlar a distribuição de cotidiano do indivíduo em todos os seus aspectos. A implantação
medicamentos fornecidos pela CEME. Será que
da OSEGO em Araguaína pode ser considerada um recurso em
os remédios da Central de Medicamentos estão
servindo, em Goiás, à política de grupo? (BRASÍLIA, que se aliam o saber político e médico para a implantação de um
1986, p. 10199-10200). projeto de saúde que disciplina espaços e corpos, revelando que
o Estado está “presente” e “pronto” para atender às necessidades
A política, a economia e a saúde são elementos que cons- de uma população até então excluída. Reforçando tais afirmações,
troem políticas públicas de saúde com seus projetos de expan- Chaul cita Campos (2002, p. 93), que afirma que a união entre
são para o Norte Goiano. Alianças são articuladas para que o os saberes médicos e políticos evidencia que:
Estado intervenha em espaços em construção como Araguaína.
Pelas colocações de políticos, médicos, profissionais de saúde O médico é chamado para desempenhar
e moradores, as mudanças chegam com o novo hospital, porém uma função importante na administração
permeadas de muitas faltas, conflitos e desmandos políticos, pública. Os regulamentos da saúde atribuem a
esses profissionais um conhecimento técnico
que precisam ser cotidianamente administrados e vigiados pelos
saberes médicos e seus aliados.
Militar, representante legítima dos interesses estatais, foi uma estratégia política
que tinha interesse em reprimir e organizar os espaços sociais estratégicos (cf. REIS
O SABER MÉDICO COMO FORMA DE IMPLANTAÇÃO e LUNCKES, 2004). Também Gaspar (2002, p. 89) cita que a criação do Hospital Mare-
chal Emílio Ribas foi mais uma das estratégias do Governo Militar para combater os
DE UM PROJETO DE SAÚDE: A OSEGO ânimos da Guerrilha do Araguaia, uma vez que Araguaína, depois da construção da
Rodovia Belém–Brasília, passou a representar um “novo” espaço social estratégico.
15 Em 1976, com a nomeação de Antônio Amâncio Lemos para Diretor da Unidade de
Percebe-se que Araguaína, dentro do contexto de expansão Saúde (OSEGO), outro contexto é criado. Os saberes médicos e administrativos se
do capitalismo, era ponto estratégico inserido num projeto de instalam em Araguaína e o atendimento hospitalar teve uma elevada melhora. De
acordo com o diretor nomeado, em 1977, houve um incêndio no prédio da Unidade
ocupação para a região Norte14. Nesse período, uma política de de Saúde devido ao desgaste das instalações provocado pelo aumento do número
de atendimento médicos e aumento do fluxo de pacientes oriundos de outros
estados da região Norte. Não houve vítimas, e os pacientes foram transferidos
14 Fontes Documentais do 2º BPM de Araguaína/TO (Trabalho de Iniciação Científica) para o Hospital Dona Nélcia e Casa de Caridade Dom Orione. Segundo Gaspar
mostraram que a transferência para Araguaína, em 1965, da 4ª Cia. Isolada de Polícia (2002), a reconstrução do hospital foi dinamizada e concluída em 1980.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

o ponto de vista sanitarista era uma maneira de amenizar o “clima”


que detêm. São colocados em destaque no
de conflitos, proporcionando credibilidade para a cidade. Acredita-
Estado e nas municipalidades, pois, através
do serviço sanitário, via regulamentos, podem va-se que a criação do hospital, aliada ao saber médico, modificaria
intervir e controlar o Estado como um todo: os as organizações espaciais e os sujeitos nelas inseridos. Ao lado de
espaços urbanos e rurais, o trabalho e o lazer, Lemos e Peixoto, trabalhavam os médicos Antônio Dantas de Assis
a vida e a morte.
e Edimar Peixoto. Este último é irmão do médico José Peixoto e
ambos continuam morando na cidade de Araguaína.
A junção do saber político e médico foi relevante para o
Lemos, ao enfatizar que o Governador do Estado “aceitou”
processo de continuidade da OSEGO como um projeto político
suas condições de “trabalho”, dá a entender que se inicia, dentro
de saúde pública para a cidade de Araguaína. Antônio Amâncio
da OSEGO de Araguaína, a organização de um sistema de poder
Lemos, médico formado em um grande centro, salienta a concre-
que direciona o mecanismo de internação e cura. A construção
tude desse fato quando refere que o governador de Goiás, Irapuã
de um corpo clínico, pela chegada de outros médicos, evidencia
Costa Júnior, o convidou para ser o diretor da OSEGO. Lemos fez
a figura do “médico de hospital” que visita o doente, medica e
exigências e obteve a promessa do governador de que atenderia suas
registra suas condições de doença e de cura. O fazer médico se
solicitações para dinamizar a OSEGO, que estava sem condições
especializa. Como escreve Foucault (2006, p. 111), é uma forma de
de atender os pacientes, pela falta de medicamentos, materiais e
disciplinar o espaço do hospital através de seus registros diários.
gêneros alimentícios. Afirma o médico que “o governador aceitou
Novas metodologias de trabalho médico possibilitam a intervenção
as condições impostas, e a unidade de saúde foi abastecida de tudo”.
de melhoria na saúde tanto do médico, quanto do Estado.
Conclui afirmando que “tudo ficou bom, até que houve o incêndio
no prédio cujas instalações estavam inadequadas para o fluxo de Segundo Assis (2005), a construção da OSEGO representou
atendimentos que vinha fazendo”. Este fato oportunizou novas um marco para a cidade de Araguaína, que era desprovida de
alianças entre o saber médico e político voltado para a construção infraestrutura e de outros meios de conforto. A construção da
de um novo hospital, com novas instalações, concluído em 1980. OSEGO motivou a vinda de investidores e proporcionou para
a cidade uma nova história. Assis é de Natal-RN, graduado em
Na visão de Peixoto (2005), primeiro diretor da OSEGO,
medicina em Manaus-AM e reside em Araguaína desde 1975.
esse fato dinamizou a saúde em Araguaína. Foi relevante para a
Segundo ele, nessa época, a OSEGO estava atravessando uma
implantação de novas políticas de saúde para a região Norte e para
crise e a comunidade, juntamente com os médicos, faziam doa-
o município, pois, como foi salientado pelo entrevistado, o clima
ções para a instituição, pois reconheciam a representatividade da
aqui era “hostil” e a saúde enfrentava problemas não só pela falta
unidade de saúde. Na visão do médico, as políticas desenvolvidas
de instalações e equipamentos. A saúde sofria também pela falta
pelo governo na cidade de Araguaína estavam voltadas para a
de médicos dispostos a morar na cidade. Disciplinar o Estado sob

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

agropecuária. Araguaína sempre foi autônoma, só deixava a do saber médico com o poder político para a dinamização e
desejar no que se referia à saúde. Por isso, os próprios médicos implantação de um projeto de saúde que atendesse a exigências
faziam doações para manter a OSEGO funcionando. de uma região que entrava em contato com as transformações
oriundas do capitalismo moderno.
É o saber médico coordenando as ações sociais na comu-
nidade, ajudando a construir um novo espaço social, tendo como Segundo Cavalcante (1999), o crescimento econômico
objetivo a continuação da OSEGO, pois acreditava-se que era um também chegou a Araguaína, mas foi direcionado para a
projeto dinamizador para a saúde. Assis ressaltou também que o agropecuária, concentrando recursos em detrimento do setor
Hospital Dona Nélcia teve importante participação na história da da saúde. Dentro desse contexto, percebe-se uma contradição
saúde de Araguaína, mesmo sendo privado. Para ele, o hospital nas medidas políticas desenvolvidas no Brasil, especialmente
D. Nélcia “foi o coirmão da OSEGO”, até que, com a criação do em Araguaína. Como cidade polo regional, crescia no plano
Estado do Tocantins, em 1988, houve a fusão dos dois hospitais, econômico, mas as políticas públicas de saúde eram incipien-
dando origem ao Hospital de Referência de Araguaína. tes. Para a autora,

Como evidencia Foucault (2004), o nascimento de um


“hospital” é uma medida tomada para organizar o espaço onde o (...) até a primeira metade dos anos 70, o discurso
indivíduo passaria a ter um atendimento especializado, surgindo, favorável ao Norte Goiano procurava apenas
inseri-lo no mercado internacional. Para tanto,
assim, uma medicina do espaço social. Ele ressalta também que seriam necessárias medidas urgentes, tais como
a doença é um problema cuja solução é de competência política regularização de títulos de terras, abertura de
do Estado. É possível ver através de seu trabalho que o saber créditos e financiamentos, e manutenção de
do médico também pode ser utilizado para a administração do obras de infraestrutura, como a BR 153, assim
como o financiamento da saúde. (CAVALCANTE,
espaço social onde uma unidade hospitalar foi criada.
1999, p. 72).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse sentido, no período estudado, a cidade de Araguaína


foi contemplada pelas políticas de saúde da OSEGO, e a ampliação
Ao analisar as colocações feitas, observa-se que Araguaína foi de leitos hospitalares em outras instituições representava, dentro
impactada pelos saberes médicos desde a década de 1970. A do contexto histórico do norte goiano, um projeto de saúde que a
OSEGO inseriu-se neste contexto e possibilitou a intervenção elevaria à condição de cidade polo para a saúde. O saber médico
do saber médico colocado a serviço de um projeto político mais unido à política é disciplinador e, deste modo, tanto o espaço
amplo. Ao analisar as falas de Lemos (2005), percebe-se que quanto a população são inseridos em um contexto de mudanças. A
ele, ao aceitar mudar-se para Araguaína, oportunizou a união intervenção médica dará origem a uma nova organização hospitalar

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Um Novo Hospital para Araguaína

a serviço dos interesses políticos e econômicos na região que, na BRASIL, Diário do Congresso Nacional, (Seção I), Ano XXX, nº 129, de 9 de
outubro de 1976, p10199-10200 e
maioria das vezes, não atende a população, que fica à margem deste
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INTRODUÇÃO

A história da mulher, como objeto de investigação, ganhou ênfase


nos últimos anos, principalmente a partir da década de 1970,
muito em razão das categorias de análise da História Cultural,
que se ocupam de temas ligados ao cotidiano, ao imaginário, às
representações e às questões de gênero envolvendo o empodera-
mento da mulher. Nessa possibilidade historiográfica foi acolhida
a participação da mulher na sociedade, na família, na política,
na produção cultural, no trabalho e na educação.

Para Le Goff e Nora (1988), a História deve ser estudada


também a partir do cotidiano das pessoas. Para esses autores, a
escrita da História deve levar em consideração o mundo em que
as pessoas vivem, como elas pensam, como se relacionam, pois
é no mundo da vivência diária que se percebe a complexidade
da vida em sociedade. É a partir dessa percepção de historici-
dade que nos ocupamos das atividades religiosas e filantrópicas

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

das mulheres presbiterianas na cidade de Araguaína, TO. Ao reverendo Ashbel Green Simonton, na cidade do Rio de Janeiro,
apresentar as atividades que desenvolviam na igreja, esperamos ainda em 1859. Simonton foi enviado ao Brasil pela Junta de
contribuir para fazer emergir não as mulheres silenciadas, mas Missões Estrangeiras, dos Estados Unidos. Este clérigo atuava
as que buscam ser ouvidas e chamadas a participar no interior principalmente como vendedor de Bíblias. Em 12 de janeiro de
do campo protestante. As mulheres presbiterianas exercem 1862, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana no Brasil, no Rio
diversas atividades dentro e fora da Igreja. Essas atividades não de Janeiro. (MENDONÇA, 1984). Fator que em muito contribuiu
estão limitadas ao campo religioso - muito pelo contrário, estão para a expansão do presbiterianismo no Brasil foi a instalação de
inseridas nos demais aspectos da sociedade, ou seja, no social, uma missão da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos,
no político e no cultural. Mesmo que recentemente os estudos na cidade de Campinas – SP. Essa missão deu total assistência
de natureza histórica tenham se voltado para a temática, perce- religiosa aos imigrantes confederados, estabelecidos na cidade de
be-se que a participação da mulher no protestantismo brasileiro Santa Bárbara – SP, desde meados da década de 1860. Do final
é pouco estudada. do século XIX até a primeira metade do século XX, os presbi-
terianos espalharam igrejas e escolas em várias regiões do País.
Nosso objetivo aqui é compreender o papel e as ações
que as mulheres presbiterianas desenvolveram durante os seus Para organizar as atividades femininas presbiterianas no
dez primeiros anos de organização societária em Araguaína. Brasil foi criada, em 11 de novembro de 1884, em Recife, PE, a
Esperamos que as informações aqui apresentadas possibilitem primeira Sociedade Auxiliadora Feminina, SAF, cuja finalidade
novas investigações e abordagens sobre os trabalhos sociais era “realizar estudos bíblicos e arrecadar fundos para auxiliar
desenvolvidos pelas mulheres do campo protestantes. pessoas carentes e a Igreja” (Revista SAF em Revista, ano 47,
2001). Entendemos a forma associativa das presbiterianas como o
embrião de práticas de empoderamento das mulheres protestantes
AÇÕES RELIGIOSAS FEMININAS PRESBITERIANAS
no Brasil. Segundo Guerrero, o conceito de empoderamento se
trata de “mecanismo pelo qual as pessoas e as coletividades vão
Para compreendermos melhor a história da mulher na Igreja
progressivamente tomando controle de seus próprios assuntos,
Presbiteriana em Araguaína, é necessário nos reportarmos a his-
de sua vida e seu destino”. As mulheres presbiterianas ousaram,
tória do presbiterianismo. A Igreja Presbiteriana surgiu no século
ainda nos anos finais do século XIX, ter o controle de suas prá-
XVI, em consequência das reformas religiosas propostas por João
ticas em uma sociedade na qual os papéis femininos ainda esta-
Calvino em Genebra, na Suíça. Da Suíça, a Igreja Presbiteriana
vam restritos ao espaço doméstico. As mulheres presbiterianas
espalhou-se pelos Países Baixos, França, Escócia e Inglaterra.
acreditavam que uma das maneiras de valorizarem as mulheres
No Brasil, o presbiterianismo fincou suas raízes somente como um todo seria atuando na defesa da sua dignidade, o que
na segunda metade do século XIX, por meio das atividades do as tiraria do anonimato, do esquecimento.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

As primeiras mulheres presbiterianas a atuarem no Brasil


foram as parentes e esposas dos pastores e missionários. De acordo A tarefa da esposa do pastor, que comumente
com a Revista da Sociedade Auxiliadora Feminina, a Revista SAF, iniciava a carreira missionária logo após o
casamento, provou ser mais árdua que a do marido,
pois inadiáveis trabalhos domésticos – como o
A primeira missionária presbiteriana a vir para parto e o cuidado da prole – frequentemente
o país foi a irmã de Ashbel G. Simonton, pois interferiram com a aprendizagem do(s) idioma(s)
na ocasião ele ainda era solteiro, Elizabeth do povo com quem deveria trabalhar ou com o
Simonton Blackford era casada com o Reverendo trabalho missionário (1997, p.183).
Alexander L. Blackford, o casal deu início a obra
presbiteriana na capital paulista em outubro de
1863. (REVISTA SAF, Ano 1999, p.09). Vencendo as dificuldades, ora como esposas de pastores, ora
como educadoras, ou simplesmente leigas na condução de grupos
Outra pioneira do trabalho presbiteriano foi Helen Mur- societários, de escolas dominicais, as mulheres presbiterianas
doch Simonton, esposa de Ashbel G. Simonton, “a qual chegou foram afirmando e confirmando seus espaços na igreja. Em boa
ao Brasil em 16 de julho de 1863, na cidade do Rio de Janeiro parte do século XX, quando a maioria das mulheres ainda não
e no dia 28 de junho de 1864, vindo a falecer devido a compli- declarara sua autonomia, as presbiterianas ensinavam, animavam,
cações resultantes do parto da sua primeira filha” (REVISTA auxiliavam e teciam suas redes de convivência eclesial e social.
SAF, Ano 1999, p.10). O presbiterianismo brasileiro contou também com a cola-
Muitas outras esposas de missionários presbiterianos dos boração de muitas mulheres que se dedicaram ao ensino, como
Estados Unidos, atuaram no Brasil até o final do século XIX. Além Mary Parker Dascomb, que veio
das que foram citadas, vale destacar também o nome de “Mary
Ann Annesley, esposa do Reverendo George W. Chamberlaim e pela primeira vez ao Brasil em 1866, como professora
fundadora da Escola Americana” (REVISTA SAF Ano 1999, p.11). dos filhos do cônsul americano no Rio de Janeiro.
D. Luiza Pereira de Magalhães, esposa do Reverendo Eduardo Em 1871 passou a dirigir a recém-criada Escola
Americana (...) mais tarde ela também dirigiu a
Carlos Pereira, e D. Alexandrina Teixeira da Silva Braga, esposa do
Escola fundada pelo Reverendo George Lands em
Reverendo João Ribeiro de Carvalho, conhecida como uma mulher Botucatu”. (REVISTA SAF, Ano 1999, p.12).
culta e piedosa, destacando-se “como professora, tendo lecionado
na Escola Americana e em outras instituições” (REVISTA SAF, As ações das missionárias que se envolveram na organiza-
Ano 1999, p.11). Reily lembra que a atuação das mulheres nas ção de escolas nesse período podem ser compreendidas tanto na
igrejas protestantes foi sempre mais árdua do que a dos homens: perspectiva da relevância que davam ao ensino como forma de

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

fortalecer suas igrejas quanto pela possibilidade que franqueavam cidas como obreiras e trabalhadoras, recebendo uma infinidade de
no sentido de dar visibilidade à participação feminina em uma homenagens, elas correm o risco de, ao se escrever a história do
sociedade cujos poderes sociais se concentravam nos homens. protestantismo, caírem no esquecimento.
Para Louro (2001), quando as mulheres assumiram a condição de
Todavia, a mulher sempre participa ativamente na Igreja.
professoras, no final do século XIX, fizeram isso numa batalha
A partir da organização das primeiras igrejas presbiterianas, o
de duas frentes: uma para se definirem e outra contra a defini-
trabalho feminino foi criando consistência e se consolidando como
ção dos homens sobre elas. A representação dos homens sobre
sociedades auxiliadoras, cujos objetivos principais eram, entre
as mulheres, mesmo sobre aquelas que começavam a disputar
tantos, a educação espiritual, a ação social e a evangelização.
as profissões até sob o mando masculino, não diferia muito do
que compreendiam ser o papel feminino na esfera doméstica. A Ao percorrermos a história das mulheres presbiterianas,
representação masculina sobre as mulheres professoras como no âmbito nacional, constatamos que, de 1884 a 1940, as suas
extensão da maternidade seria uma das definições a ser combatida organizações chamavam-se apenas Sociedades de Senhoras.
pelas mulheres educadoras do protestantismo. Somente a partir de 1941 é que houve a mudança de nome para
Sociedades Auxiliadoras Femininas. Isso ocorreu visando alcançar
a participação das moças, que com sua juventude e dinamismo,
A SOCIEDADE FEMININA AUXILIADORA
PRESBITERIANA EM ARAGUAÍNA
muito poderiam contribuir para o crescimento da Igreja.

Em Araguaína, a fundação da Sociedade Auxiliadora


Até meados do século XX, a mulher era vista como frágil e delicada. Feminina surgiu em 03 de julho de 1966 e foi organizada com a
Essa imagem estereotipada persiste no presbiterianismo até os dias ajuda dos pastores Joaquim de Brito Cabral e Paulo Long. Sua
atuais. Por mais que as mulheres ocupem postos de trabalho, por primeira presidente foi Dona Nicolina Maria Cabral, responsável
mais que estudem, suas ações ainda são sombreadas pela presença por todos os trabalhos da sociedade sua fase de organização. Esta
masculina. Nas demais igrejas do protestantismo histórico não é primeira sociedade tinha como sócias as seguintes mulheres:
diferente. As mulheres são maioria e se encarregam de muitas Nicolina Maria Cabral, Filomena Maria de Sousa, Maria Joana
atividades religiosas, como os cuidados com doentes, com as crian- Cabral, Faustina Silva dos Reis, Delma Batista Costa, Rosalina
ças, com o ensino nas escolas dominicais, porém os registros de Barbosa Dias, Doralice Rodrigues de Oliveira e Antônia Pereira
tais ações privilegiam os homens. Isso se deve, em muito, ao fato de Sousa.” (ATA DE FUNDAÇÃO DA SOCIEDADE AUXI-
de os espaços de poder serem ocupados pelos homens. Na Igreja LIADORA FEMININA, 03/07/1966).
Presbiteriana, as mulheres não podem ser ordenadas presbíteras.
Como o Conselho Presbiteral é composto por homens, as mulheres Os objetivos iniciais eram bem explícitos na ata de funda-
não se fazem representar. Por mais que as mulheres sejam reconhe- ção: “instruir as mulheres nos caminhos do Senhor, cuidar dos

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

pobres e necessitados, visitar os enfermos, ajudar no desenvol- Nos períodos de festas, as mulheres se prontificavam para o
vimento da igreja e ensinar as mães a cuidar da família e do lar”. serviço filantrópicos, sempre seguido de uma atividade religiosa.
As atividades mais recorrentes da SAF em Araguaína, nos dez Em 1968, elas se prepararam para o socorro aos necessitados,
anos iniciais, deram-se no campo de evangelização, no auxílio novamente nos festejos natalinos, decidindo “ajudar algumas
aos necessitados, na organização de ‘cultos do bebê’. O trabalho pessoas pobres no natal com roupas, usando o dinheiro em caixa,
filantrópico realizados pelas mulheres sempre foi uma marca com a ajuda das pessoas que tivessem o desejo de cooperarem”
das presbiterianas em Araguaína. Percebemos que elas tencio- (ATA DA SAF, nº 28, de 25.10.1968).
navam seguir os passos das grandes personagens femininas do
Outro trabalho realizado constantemente pela SAF em
cristianismo. Segundo Reily, as mulheres “cristãs efetivamente
Araguaína foi a organização de bazares para venda de roupas
participaram da obra essencialmente apostólica, a de testemunhar
e calçados usados, com o intuito de proporcionarem oportuni-
e de plantar igrejas. O autor lembra de “[...] Dorcas que, cheia de
dades de compra por pessoas carentes, pois os produtos eram
boas obras e esmolas deitou as bases da evangelização de Jope”
“vendidos por um preço simbólico”. (ATA DA SAF nº32,
e de Lídia, que de “vendedora de perfume, tornou-se centro de
27.02.1969).
irradiação do evangelho em Filipos”. (1997. p. 80).
Dessa forma, as mulheres presbiterianas contribuíram, em
Fiéis a esses princípios, as mulheres presbiterianas busca-
muito, para o desenvolvimento da igreja na cidade. Quando elas
ram praticar as heranças da filantropia, legadas pelas heroínas
se colocaram a serviço da igreja em obras consideradas “sociais”,
do cristianismo. Entre as práticas filantrópicas estavam as visitas
estavam, na verdade, incorporando a tese de que todos devem
aos encarcerados. (ATA DA SAF, nº 18, 27.11.1967). Da mesma
se ajudar mutuamente, um dos preceitos bíblicos basilares para
forma, as atividades socorro às pessoas carentes estavam sempre
o cristianismo.
na mira das mulheres presbiterianas em Araguaína:
Se as mulheres atuam tanto em prol da igreja, uma ques-
tão que se coloca a quem tenta narrar a sua história: elas são
[...] em sessão ordinária sob a Presidência de
reconhecidas pelos trabalhos que desenvolvem, principalmente
D. Faustina Reis, no templo, às dez horas e
dez minutos do dia sete de dezembro de mil
em suas igrejas de convívio? Para Duncan Reily, as atividades
novecentos e sessenta e nove (…) foi resolvido realizadas por mulheres, durante muito tempo, foram vistas com
usar o dinheiro em caixa para comprar alimentos desconfiança. Elas tiveram que lutar muito para exercerem os
para serem doados a algumas famílias carentes, ministérios que almejavam:
por ocasião do natal, e que no momento da
entrega fosse realizado um culto (ATA DA SAF
nº 41, 07.12.1969).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

Na maioria das vezes, os ministérios femininos e disse: Deixa-me beber um pouco da água do
não foram reconhecidos, foram contestados seu cântaro. E ela respondeu: Bebe, meu senhor.
e proibidos, mas as mulheres já portavam a Então com presteza abaixou o seu cântaro sobre
suspeita de que isso não era certo, desconfiavam a mão e deu-lhe de beber (BÍBLIA SAGRADA.
e agiam, na busca de uma forma através da Gênesis 24: 16 a 18; ATAS DA SAF, 1966-1976)
qual pudessem cumprir a vocação a que foram
chamadas” (1997, p. 09).
Outro texto bíblico muito utilizado era o referente à sunamita
que se preocupava em ser hospitaleira para ajudar um profeta:
Os espaços de reconhecimento das atividades das pres-
“Construamos um pequeno quarto no alto e coloquemos ali uma
biterianas ainda estão em construção, o que não as impedem
cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada. Assim poderá se
de se desdobrem para cumprirem os papéis para os quais estão
hospedar ali quando ele vier nos visitar” (BÍBLIA SAGRADA.
capacitadas. Uma outra questão que fica para quem analisa as
II Reis 4: 10, ATAS DA SAF, 1966-1976).
ações femininas em igrejas protestantes: quais são os referenciais
bíblicos, teológicos ou culturais que norteiam tais práticas? No A partir dos exemplos bíblicos, as mulheres presbiterianas
que se refere a participação da mulher no presbiterianismo, é realizavam atividades que atendiam as pessoas em todas as suas
fácil constatarmos a presença, no imaginário coletivo, as repre- as necessidades, usando seu potencial criativo para descobrir em
sentações das grandes personagens femininas da Bíblia Sagrada. cada situação uma oportunidade de prestar serviço igreja que
As narrativas bíblicas das ações de profetizas, de rainhas, de pertenciam. As mulheres presbiterianas da SAF gostavam de dizer
mulheres do povo, definem a manifestação das atitudes de ordem que tinham consciência que nem idade, nem condição financeira
moral e comportamental. Nas atividades religiosas e filantrópicas, e nem nível intelectual impediam o trabalho que desenvolviam.
emergem toda a moralidade dos exemplos bíblicos. Nesse sentido, Podemos afirmar que os princípios bíblicos conferiam a essas
o exemplo de Rebeca, que demonstrou presteza em ajudar um ações um caráter identitário.
estranho, oferecendo água para aliviar o cansaço da viagem, é
Uma das formas de Igreja Presbiteriana de Araguaína reco-
muito utilizado nas reuniões de mulheres. O texto abaixo era
nhecer as atividades realizadas pelas mulheres é a prestação de
lido como inspiração introdutória das reuniões que analisamos.
homenagem. Na comemoração do Dia da Mulher Presbiteriana,
que vem sendo comemorado desde 1941, o Boletim Dominical,
A moça era muito atraente, virgem, a quem de fevereiro, de 2009, publicou a seguinte texto:
homem algum havia conhecido intimamente.
Ela desceu à fonte, encheu o seu cântaro e subiu
de volta. Então o servo correu-lhe ao encontro

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

Mulher valorosa, feliz e ordeira Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, no


A ti nos saudamos com muito prazer. meio de uma geração obstinada de um povo
Mulher presbiteriana, dedicada obreira, de coração petrificado pelo pecado.
Na seara do Mestre, em todo viver.
Mulher incansável, na obra divina, Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, em
Que não desanima do seu santo intento face ao desespero que se debatem as famílias,
De levar o Cristo Vivo ao ser pecador ante o iminente risco de desagregação.
E através do amor, expressa o seu talento.
Mulher corajosa, que não teme o perigo, Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, na
E enfrenta o inimigo com fé e oração limitação de nossa potencialidade, aumentando
Mulher virtuosa, fiel e caridosa, em nós o amor.
Que tem o Espírito Santo no seu coração
Saudamos-te mulher, com amor fraternal,
Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, como
Neste dia especial que a Igreja conclama
fonte de encaminhamento e de esperança ao
Receba o nosso abraço,
homem condenado a vegetar na solidão e no
Abraço sincero e de amigos,
tédio do desemprego, quando há tantos que
E que o Senhor seja contigo,
dependem dele.
Mulher Presbiteriana
(BOLETIM DOMINICAL, 08.02.09, nº 50).
Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, a
fim de que possamos elaborar uma oração
programática, pautada na visão de Cristo em
Vale destacar que na oração motivadora das sócias da
relação aos pequeninos e adolescentes de nossa
SAF, repetida em todas as reuniões em que elas participam, terra, grande desafio de nossos dias.
emerge a natureza redentora das suas ações, da mesma forma
que explicitam a preocupação com os problemas sociais, entre Usa-nos Senhor, Mulheres Presbiterianas, cristãs
os quais, o desemprego e a situação das crianças e adolescentes. conscientes, na retomada da Palavra, na vivencia
fraterna, na interação, integração e salvação dos
perdidos, fazendo florir em todas nós, sempre e
cada vez, mas crescente, o amor de Cristo com
Senhor, reconhecemos o teu imenso amor e os pecadores, como atalaias prontas para a luta
beneficência para conosco tornando-nos parte (ATAS DA SAF, ano 48, p.25).
de tua Igreja Militante, e mais, conferindo-nos
o alto privilégio de participar de todas as fases
Na oração, evidencia-se a atuação das mulheres em duas
da História, por isso, oramos: Usa-nos Senhor!
frentes: na religiosa, quando se colocam como agentes da luta

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Assistir ao necessitado e redimir os pecados

do bem contra o mal, dos salvos contra os pecadores, da bata- REFERÊNCIAS


lha contra a incredulidade; na social, quando são desafiadas a ATA DE FUNDAÇÃO DA SOCIEDADE AUXILIADORA FEMININA. Araguaína: Igreja
enfrentar a realidade das famílias com pessoas desempregadas Presbiteriana de Araguaína, 03/07/1966.
e com problemas vivenciados pelos adolescentes. ATAS DAS SOCIEDADE AUXILIADORA FEMININA. Araguaína: Igreja
Presbiteriana de Araguaína, 1966-1976.
BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Editora Nova Vida, 2008.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES. GUERRERO, Olaya Fernández. Processos de empoderamento das mulheres
de comunidades no Rio de Janeiro. In: PARENTE, Temis Gomes; MIRANDA,
Cyntia Maria. Arquiteturas de gênero: questões e debates. Palmas: Eduft,
A partir dos relatos históricos utilizados para a realização deste
2015. p. 59-92.
breve texto, acreditamos ter contribuído para a ampliação do LE GOFF, J.; NORA, P. (Org.). História: Novos Problemas, Novas Abordagens,
conhecimento acerca das ações femininas em igrejas protestan- Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
tes. Tal como as mulheres operárias, camponesas, profissionais LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORI, Mary (Org.).
liberais, religiosas de conventos, as mulheres protestantes, seja História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2001, p. 443-481.
MENDONÇA, Antonio Gouveia de. Introdução ao Protestantismo no Brasil.
por meio de atividades filantrópicas, seja por meio de atividades
São Paulo: Loyola, 1990.
religiosas, tecem também os fios da história. Elas trabalharam
______. O Celeste Porvir: a inserção do protestantismo no Brasil. São Paulo:
na igreja, assumiram a educação de outras mulheres, se desdo- Paulinas, 1984.
braram, mesmo sem deter o poder que é concedido aos homens. ______. Protestantes, pentecostais e ecumênicos. O campo religioso e seus
As mulheres presbiterianas atuaram e atuam como professoras, personagens. Umesp: São Paulo, 1999.
REILY, Duncan Alexander. Ministérios Femininos em Perspectiva Histórica.
advogadas, arquitetas, procuradoras, desembargadoras, médicas,
Campinas, SP: Cebep; São Bernardo do Campo: Editeo, 1997.
entre tantas outras profissões. Na vida em sociedade disputam
REVISTA DA SOCIEDADE AUXILIADORA FEMININA. São Paulo: Editora Cultural
espaços com os homens e os ocupam. Nas igrejas protestantes Cristã, 1997-1999.
tradicionais, nem tanto.

Nessa breve abordagem sobre as mulheres da Igreja


Presbiteriana do Brasil, de Araguaína, vimos que exerceram
e exercem no interior do presbiterianismo brasileiro ativida-
des que apontam para a complexidade do campo religioso
protestante. Outros estudos poderão problematizar o que aqui
apenas sinalizamos

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Lavadeiras de Roupas do Riacho
“Baixa Funda” em Araguaína-TO

Dhaiana Dias Costa


Vera Lúcia Caixeta
Rosária Helena Ruiz Nakashima

INTRODUÇÃO

O presente texto trata das mulheres lavadeiras de roupa no


córrego “Baixa Funda”, afluente do Neblina, em Araguaína-
-TO, na década de 1990. Ousamos enfrentar o desafio de dar
visibilidade acadêmica para as mulheres que lutam e resistem
a várias formas de opressão. Como fonte, para a análise, ouvi-
mos as narrativas de três lavadeiras e/ou filhas de lavadeiras,
moradores do Bairro Santa Terezinha, na cidade de Araguaína,
Tocantins, são elas: Vitória Régia Fernandes Araújo, 48 anos;
Maria da Guia Oliveira Dias, 52 anos; e Ângela Maria da Silva,
48 anos. Decidimos dialogar com as mulheres, em especial,
com aquelas que historicamente tiveram seus saberes, suas
cosmovisões e suas experiências práticas invisibilizadas no
meio acadêmico.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

No primeiro momento da pesquisa foram mapeadas algumas parece fundamental para entender o presente”. Ademais, “o
lavadeiras da “Baixa Funda”. Depois do contato inicial, foram relato pessoal não apenas como exclusivo de seu autor, mas
marcadas as entrevistas, estas foram realizadas nas casas das capaz de transmitir experiências coletivas” (ALBERTI, 2008,
participantes a partir de um roteiro previamente elaborado que p. 163). Assim, “a história oral é hoje um caminho interes-
procurava dar conta da trajetória de vida das mulheres relaciona- sante para conhecer e registrar múltiplas possibilidades que
das à profissão de lavadeira. Depois de gravadas, as entrevistas se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de
foram transcritas e analisadas. diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade”
(ALBERTI, 2008, p. 164).
Para a elaboração e análise das entrevistas, recorremos
aos autores da história oral. Alessandro Portelli (1997) ressalta O estímulo para a pesquisa adveio também da necessi-
a importância das fontes orais para o conhecimento histórico. dade de elaboração de uma visão e prática condizentes com
Para ele, ela possibilita ter informações dos povos iletrados e a inserção das mulheres como sujeitos históricos, rompendo
também dos grupos sociais cuja história escrita é ou falha ou com relações tradicionais do gênero e de raça. A crítica à
distorcida. De fato, a história oral dá vida às histórias não ofi- epistemologia eurocentrada intensificou-se a partir da criação
ciais. Michel Pollack (1992, p. 2) sublinha que os “elementos do grupo modernidade/colonialidade que pensa o processo de
constituídos da memória individual ou coletiva são em primeiro incorporação forçada da América Latina no sistema do mundo
lugar, os ‘acontecimentos’ vividos pessoalmente, e em segundo, capitalista. Como sublinha Enrique Dussel (1999), o decolonial
os acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade”. De implica uma nova compreensão das relações globais, no qual a
fato, ouvir as lavadeiras nos impeliu a refletir sobre as histórias modernidade ocidental eurocêntrica, o capitalismo mundial e
negadas, a invisibilidade das mulheres pobres e trabalhadoras o colonialismo são uma trilogia inseparável. Desde essa visão
na história local. Foi por meio dessa metodologia que ousamos eurocêntrica, a modernidade ocidental é assumida como mito
romper com os “silêncios” da história e das lutas específicas das que definiu a superioridade dos europeus sobre os outros con-
mulheres lavadeiras de roupas. siderados bárbaros.

Além de ressaltar o caráter dialógico da metodologia Para o peruano Aníbal Quijano (2015), o padrão de poder
da história oral, os autores ressaltam a capacidade da escuta, capitalista eurocentrado estruturou-se “em relações de domi-
do encontro com o outro, de “vivenciar outras experiências” nação, exploração e conflito na disputa pelo controle de quatro
(ALBERTI, 2004, p. 18). Porém, a memória é um processo âmbitos da existência humana, a saber: trabalho, autoridade
ativo de criação de significações (PORTELLI, 1997, p. 33), coletiva, subjetividade e intersubjetividade, sexo, seus recursos
que parece ter uma função explícita. De acordo com Ferreira e produtos” (COSTARD, 2017, p. 165). Assim, a colonialidade
(2006, p. 201), “estudar o que é esquecido e o que é lembrado do poder se inscreve na esfera do controle de todos os âmbitos

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

da existência humana. Ela inventa e introduz a classificação da moderno colonial do gênero como uma lente para aprofundar
população em termos de raça, reposiciona relações de inferiori- a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial. Ela
dade e superioridade, desumaniza parte dela. também questiona a lógica da colonialidade do saber que provoca
a exclusão, negação e subalternização epistemológica-cognitiva
A partir das reflexões de Quijano, compreende-se que o
dos sujeitos e organizações sociais que têm historicamente resis-
padrão mundial se sustentou na ideia de raça, que impulsionou uma
tido à modernidade capitalista e estão em tensão com essa lógica
classificação racial/étnica. Essa classificação colocou em situação
(LUGONES, 2014). Segundo ela, esses sujeitos e organizações
de inferioridade os povos conquistados e dominados, seus traços
pré-modernas ou “tradicionais” possuem “conhecimentos, rela-
fenotípicos, suas descobertas mentais e culturais, além de seus sis-
ções, valores, práticas ecológicas, econômicas e espirituais são
temas de conhecimento (QUIJANO, 2015). María Lugones (2008),
logicamente constituídas em oposição a uma lógica dicotômica,
embora acolha parte da proposta de Quijano sobre a colonialidade,
hierárquica, ‘categorial’” (LUGONES, 2014, p. 936).
aponta que a raça não é o único determinante da configuração da
colonialidade do poder, mas também o gênero, portanto, a hete- A referida teórica feminista chama a atenção para a
rossexualidade. Ela critica a interpretação de Quijano sobre o sexo necessidade de recuperar as experiências das mulheres afetadas
super biologizado, binário e heterossexual e o gênero, a que se refere, pelo racismo, pelo classicismo, pela heterossexualidade e pela
tem a ver com um tipo de relacionamento humano reservado ao geopolítica. Trata-se de pensar uma epistemologia e uma meto-
homem branco europeu possuidor de direitos e a sua companheira, dologia feminista que questiona a lógica masculina da ciência
que serve ao propósito de sua reprodução como espécie. Nesse (CURIEL, 2018, p. 42). Nesse sentido, a raça, o gênero, a classe,
sentido, Quijano teria partido de uma suposta superioridade dos etc, são “constitutivos da episteme moderna colonial, não são
homens sobre as mulheres pressupondo uma distribuição patriarcal simples eixos de diferença, mas são diferenciações produzidas
do poder, ou seja, marcada pelas relações eurocêntricas. Ora, para pelas opressões imbrincadas que o sistema colonial moderno
Lugones “a modernidade organiza o mundo ontologicamente em produziu” (CURIEL, 2018, p. 45).
termos de categorias homogêneas, atômicas, separáveis” (LUGO-
Faz-se necessário reescrever a história a partir das trajetórias
NES, 2014, p. 935). Nesse sentido, tanto a raça quanto o gênero
silenciadas, das subjetividades reprimidas e dos conhecimentos
e a classe são produtos do capitalismo, foram inventados juntos
negados. Essas novas perspectivas vão fraturando as posições
(COSTARD, 2017, p. 166). Assim, “A colonialidade do poder, do
eurocêntricas ao garantir visibilidade social e acadêmica para
ser e do conhecimento, portanto, é o lado sombrio da modernidade”
novos sujeitos e seus saberes. O poeta popular Gesilvaldo de
(CURIEL, 2018, p. 40).
Sousa Oliveira, morador do Bairro Santa Terezinha escreveu
Para Lugones (2014, p. 935): “ver mulheres não brancas um poema que revela a experiência, a opressão e a resistência
é ir além da lógica ‘categorial”’. Por isso, ela propõe o sistema das mulheres lavadeiras.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

No poema, ele responsabiliza o poder público pela explo- das pessoas com a “beira”. Assim, a partir da beira “Baixa
ração, exclusão social, destruição do córrego da Baixa Funda e Funda”, ele cria várias imagens associativas com a “beira do
pelo apagamento das memórias das lavadeiras. Além disso, ele abismo”, “beira da morte”, “beira da baixa estima”, “beira
denuncia a manipulação dos moradores, pelo poder público, com d’água farofa”, beira “da baixa memória”, “beira da desapro-
cesta básica ao mesmo tempo em que, cinicamente, compactua priação”, “beira do baixo nível”, “beira da baixa consciência”,
com os empresários que jogam esgoto na água e se apropriam todas essas imagens negativas das “beiras” são utilizadas para
das terras e destroem as nascentes sem considerar as pessoas e revelar a profunda exclusão social daqueles que são desuma-
os modos de vida do lugar: nizados pelo sistema. Trata-se de um grito, de uma denúncia
da comunidade que resiste frente a todos os demando locais.
Porém, a resistência passa não só pela denúncia, mas também
Na beira da baixa da égua marginalizados e
pelo não esquecimento dos sujeitos como Dona Maria da “Baixa
excluídos, medida sem régua na beira do abismo,
moradores, alagamentos, cesta básica, cinismo Funda”, a lavadeira mais famosa do lugar.
na beira da baixa renda, eternos analfabetos
braçais, realidade? Ou lenda? Na beira da morte
sobrevivência, obstáculo, equilíbrio, sorte; na beira MULHERES LAVADEIRAS DA “BAIXA FUNDA”
da baixa estima pais de famílias desempregados,
enchem a cara de pinga, na beira d’água farofa, As lavadeiras ainda estão ausentes da história da cidade. Ara-
trouxa, cacete, roupa suja, cagada; na beira
guaína está situada em uma área territorial de 4.000,416 km²,
da baixa memória esqueceram dona Maria
lavadeira, personagem central dessa história; possui uma população estimada de quase 180.000 habitantes,
na beira da estrada desapropriação, área de é a segunda maior cidade do Tocantins (IBGE/ Cidades 2020).
risco, grilagem de terra, cilada; na beira do Com 64 anos de existência, é um polo dos setores comerciais,
baixo nível, promessas de melhorias, situação hospitalar e educacional da região. Há mais de 30 anos que
pior é impossível; na beira da baixa consciência,
jogaram esgoto na água, destruíram a mata, e
a cidade conta com os cursos de Licenciatura em História e
queimaram o capim; na beira da Baixa Funda, Geografia. Porém, ainda é uma cidade carente do seu passado.
lá em casa não tem água em abundância, mas, Como se sabe, o passado é sempre disputado através das nar-
aqui abunda. (GESIVALDO DE SOUSA OLIVEIRA, rativas para dar significado e direção para os grupos sociais
artista e poeta local, sem data).
no presente.

Ao denunciar a situação de expropriação dos bens No artigo sobre as lavadeiras baianas intitulado Lavadeiras
comuns, como o acesso ao riacho, o poeta revela parte das de roupa do Rio: geografia humanística e memória, a autora
subjetividades subalternas. Ele estabelece importante relação Nádia Sampaio (2013) discute a importância da relação das

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

lavadeiras de roupa com o ambiente do rio. Nessa pesquisa, as “MINHA MÃE LAVAVA ROUPA NA BAIXA FUNDA”
mulheres ressaltam o rio como um lugar cheio de significados
e memórias, elas defendem que o rio deve ser preservado não Minha mãe lavava
apenas pelo aspecto ecológico, mas pela relação de identidade. roupa na Baixa Funda
e ela tinha o córrego
Ou seja, o espaço não se constitui apenas como um ambiente não só como um ganha
físico, mas como algo que carrega em si “signos” que lhe são pão, mas como espaço
atribuídos. Ademais, ao recordar o modo de vida e a maneira de lazer, pois era o lugar
que colocavam a fofoca
de se comportar, agir, viver em comunidade, permite-se o em dias, riam, tomavam
desenvolvimento de uma “memória coletiva” que é relembrada, banho e brincavam. A
vivenciada e contada, a fim de que essa memória social das lava- gente fica triste em saber
que isso não existe mais.
deiras não seja esquecida, apagada e invisibilizada da história Choro, pois lembro que
(SAMPAIO, 2013). a Baixa Funda era o
lugar que eu e meus seis
Sampaio (2013) buscou perceber os significados que as irmãos íamos.
pessoas atribuem aos espaços em que estão inseridas e como (ÂNGELA MARIA DA
SILVA, 2020).
percebem os objetos que as cercam. Sendo assim, o rio, além
de espaço físico, é também simbólico, a relação com ele marca
As narrativas da Ângela são movidas pela razão e pelo
a vida das pessoas e das comunidades ribeirinhas. De certo, o
afeto, pelo conhecimento e também pela intuição. É a partir do seu
artigo, ao ressaltar a relação das pessoas com os lugares, nos fez
próprio olhar, que a narradora revela, com sentimentos, emoções
pensar nas lavadeiras da “Baixa Funda” em Araguaína-TO. Atual-
e razão, o passado de lavadeira da sua mãe e dela própria: “Minha
mente, com o crescimento desordenado dos espaços urbanos da
mãe lavava roupa na Baixa Funda”, ela era uma lavadeira, tinha
cidade, ocorre o avanço do desmatamento dos afluentes que dão
uma profissão que exigia trabalhar fora de casa, lá na beira do
origem às nascentes e, por isso, têm-se perdido muitos riachos
riacho, daquela atividade ela retirava a subsistência da família, o
que eram de suma importância para as pessoas que tinham suas
“ganhão pão”. Esse “saber fazer”, geralmente pouco valorizado,
vidas ligadas a esses espaços. Então, esses “lugares de memó-
exigia conhecimentos específicos sobre essa arte passados de
ria” não são apenas espaços físicos, mas locais de preservação
geração a geração e constantemente atualizados ali, na beira da
de costumes, de tradições e de identidades, hoje transformados
Baixa Funda, no contato e cooperação entre as mulheres.
pelas obras de concreto para viabilizar o tráfego de automóveis
e a especulação imobiliária. Para Ângela, o ofício de lavar roupas incluía trabalho para
a mãe e lazer para os filhos. Já que a mãe lavadeira levava as

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

crianças, as suas e as das patroas, para brincar no riacho. Per-


cebe-se que a cooperação entre as mulheres lavadeiras incluía, mães de famílias criavam os filhos trabalhando
de lavadeira. A mamãe tinha várias mulheres que
muitas vezes, as patroas. Logo, enquanto as mulheres lavam
ela lavava ali da Vila Aliança que era o pessoal
as roupas também “olhavam” as crianças, o que implicava em
que tinha mais condições na época do Eldorado,
ensinar as meninas a lavar roupas, a fazer a comida ali mesmo Bairro São João também. A mamãe lavava muita
perto do riacho, além de tentar manter a ordem entre as crianças roupa, meu irmão caçula a mamãe sentiu dor lá
que brincavam. na Baixa Funda... tia Dedisse a dona Deusdite, a
dona Tina várias que eu nem lembro o nome,
Ressalta-se assim que, enquanto lavavam as roupas e tinha a dona Maria, a dona Maria do Erculano
“cuidavam” das crianças, as lavadeiras também ampliavam a sua tudinho criaram os filhos lavando roupa. Que
sociabilidade com as outras lavadeiras, já que aproveitavam para os maridos eles trabalhavam era tipo de gato
colocar “a fofoca” em dia. Mas talvez, aquilo que Ângela chamou trabalhava longe passava mais de dois meses
de “fofoca” também incluía a transmissão de saberes, numa rede longe de casa, então agente que ganhava a vida
era lavando roupa mesmo. (ÂNGELA MARIA DA
de cooperação entre as lavadeiras, pois foi ali no contato com
SILVA, entrevista oral, 2020).
a sua mãe e com as outras lavadeiras que Ângela aprendeu as
técnicas e saberes, específicos da profissão.
Ao narrar o passado das lavadeiras, revitaliza-se e valo-
Mas, no que consistia essa profissão de lavadeira? Como riza-se os saberes ligados aos grupos subalternizados, pois
revelam as nossas colaboradoras, as lavadeiras buscavam as roupas recupera-se o saber fazer dessas mulheres. Ao que parece,
nas casas das patroas, faziam uma “trouxa” com um lençol, coloca- não eram poucos esses saberes, pois as mulheres aprendiam
vam-na na cabeça e desciam para o riacho. O valor era cobrado não a fazer e carregar as “trouxas” na cabeça, da casa das patroas
por peça de roupa lavada e sim por “trouxa”. Mas o valor recebido até a beira do riacho. Muitas vezes, como ressalta Ângela,
pela lavação da roupa era baixo, o que exigia o trabalho contínuo era necessário levar a tábua de lavar. As roupas deveriam ser
para garantir a subsistência da família da lavadeira. É o que ressalta separadas, molhadas, ensaboadas, batidas na tábua de madeira,
Ângela ao ser impelida a lembrar do passado: esfregadas, “quaradas’, ou seja, estendidas ao sol, enxagua-
das, até sair todo o sabão, depois, estendidas novamente ao
Quando a mamãe lavava roupa geralmente eu ia sol para secar.
com ela. Todo o dia tinha que chegar bem cedo,
Vitória Araújo conta que sua mãe, uma antiga lavadeira
porque as tábuas eram poucas e as vezes agente
levava a tábua, né?! Para poder ter o lugar. Mas do lugar, sustentou a família lavando roupas na Baixa Funda:
era tão natural era tão bom! Água pura! Muitas

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

Minha mãe chamava Maria Dedisse Fernandes eu me lembro dela direitinho o rosto dela era
Araújo ela faleceu em 2014 ela era baixinha, bem magro, bem sofrido a casa dela não foi ela
morena clara, parda né!? Criou cinco filhos lavando que construiu foram às irmãs da creche Nossa
roupa, era separada. Lavava e passava agente Senhora do Perpétuo Socorro, antes não tinha
trazia da casa das pessoas na cabeça, lavava a creche tinha era a casa das irmãs foram elas
e secava depois entregava. Ela criou todos os que construíram a casa da Maria “Baixa Funda”
filhos lavando roupa na Baixa Funda. Eu desde (MARIA DA GUIA OLIVEIRA DIAS, entrevista
pequena com sete anos, comecei a ajudar ela, oral, 2020).
até quando eu me casei em 1989 minha mãe
ainda lavava roupa. (VITÓRIA RÉGIA FERNANDES
Várias eram as mulheres lavadeiras da “Barra Funda”
ARAÚJO, entrevista oral, 2020).
entre elas estavam dona Dedisse, dona Deusdite, dona Tina
e dona Maria e Maria “Baixa Funda”. Todos esses nomes de
Maria da Guia Oliveira Dias ressalta que as lavadeiras lavadeiras são importantes, elas não devem ser alvo da amnésia
pegavam as roupas sujas das casas, faziam uma trouxa com um social porque ocuparam importante função social, longe dos
lençol, colocavam na cabeça e desciam para o riacho. O valor estereótipos de mulher frágil, reclusa no espaço doméstico,
pago pela trouxa de roupa limpa era baixo, então, as mulheres dependente dos maridos e/ou companheiros. Todas trabalhavam
tinham que lavar muitas trouxas para garantir o alimento na muito e ganhavam pouco.
mesa. Porém, ela ressalta que existiu uma lavadeira negra,
pobre, mãe solteira que trabalhava todos os dias da semana, ela Ao que parece, Maria “Baixa Funda” representa a maioria
parece representar todas as Marias lavadeiras da Baixa Funda. das mulheres lavadeiras de roupas do lugar. Todas mulheres, a
Nesse sentido, maioria pretas, analfabetas e com muitos filhos. Elas eram mulhe-
res que viviam nas tantas beiras que o poeta ressaltou. Porém,
apesar das enormes dificuldades, elas alimentavam o sonho de
Existia uma mulher que lavava roupas todos criar bem os filhos e garantir-lhes um futuro. Como disse uma das
os dias, então foi apelidada de Maria “Baixa
nossas colaboradoras, filha de lavadeira: “Ela criou todos os filhos
Funda”, ela era uma mulher preta, de estatura
baixa e tinha 4 filhos e não era casada. Quando lavando roupa na Baixa Funda.” Para além de colocar o alimento
ia lavar roupa não levava farofa como às outras na mesa, as lavadeiras lutaram para construir o futuro. Talvez,
lavadeiras e sim uma garrafa de pinga. Ela era ao poeta, tenha faltado a dimensão da beira chamada esperança.
bem magrinha todo dia ela ia parra Baixa Funda
ela lavava roupa para quem pagava, lavava para Para Djamila Ribeiro (2015), não há como pensar as desi-
o rico e para o pobre, ela lavou até para a mamãe gualdades sociais no país sem considerar o racismo e sexismo
quando a mamãe ganhou minha irmã caçula
como “elementos estruturantes”. De certo, a ciência moderna

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

universalizou uma forma única de conhecimento nascido da das coloridas para lavá-las cada uma a seu tempo e a seu modo.
razão/reflexão que desqualificou a experiência feminina. Esses O mesmo se fazia com relação às roupas finas que deveriam ser
saberes foram considerados antítese da ciência, e, por isso, invisi- separadas das grossas, as grandes das pequenas etc. Para cada
bilizados, desqualificados e estereotipados. Porém, um exército de monte de roupas já separadas, exigia-se uma técnica um modo
mulheres, geralmente não brancas, pobres e periféricas garantiam diferente de lavar. Nem todas as roupas podiam ser batidas na
as roupas limpas antes da ampla utilização da máquina de lavar tábua, nem todas podiam ser esfregadas com força, algumas
em Araguaína e região, como a Maria da “Baixa Funda” que precisavam ser secadas no sol quente, outras, deveriam ser pro-
trabalhava sem folga, sem descanso, movida por uma garrafa tegidas dele etc., ao final do dia, todas as roupas deveriam estar
de pinga. Seu corpo pequeno, magro e resistente era esquentado limpas, dobradas e em “trouxas” para serem devolvidas e sem
pelo sol e pela aguardente. estragos, lá se vão as lavadeiras com suas “trouxas” de roupas
limpas na cabeça.
Através das narrativas das mulheres lavadeiras, temos
acesso à percepção do mundo por aquele/a que vivencia, que Para além da trouxa de roupa na cabeça, as lavadeiras da
experimenta sensações, emoções, dores e alegrias. No “mundo “Baixa Funda” são representadas pelo cacete na mão. Mas qual
das lavadeiras”, elas não aceitavam abandonar a água corrente a finalidade de um cacete de madeira nas mãos das lavadeiras?
do riacho pela água encanada que chegava em suas casas. Como
lavadeiras, elas levavam uma vida com muitas tarefas a serem
E tinha uns cacetes pra poder lavar a roupa
realizadas desde o nascer do dia até a noite, com as trouxas de tinha um cacete bem redondinho aí povo até
roupas na cabeça a caminho do riacho, com as crianças gritando brincava oh não mexe com as mulheres lá da
e brincado nas águas, com o bate papo com as comadres e conhe- Baixa Funda que elas são tudo armadas de
cacete. Cleber vendeu todas as terras para o
cidas enquanto lavava as roupas, com as implicâncias e rusgas
Zico, aí vários tempos o Zico morou na casa a
entre elas, numa sociabilidade própria daquela função social casa era grande eles até derrubaram ali onde
exercida pelas mulheres do lugar. No processo da lembrança fica aqui o Santa Luzia onde eu moro. Derrubou
provocado pela necessidade de narrar o vivido, as mulheres a casa porque vendeu para o Zicão Magal que
lavadeiras vão dando significando ao passado e lutam contra a era administrador da Antarctica. Ele disse que
ia acabar com a Baixa Funda, nós ganhávamos
amnésia social que impede a lembrança sobre as muitas Marias
a vida trabalhando de lavadeira aí ele disse que
da “Baixa Funda”. não, mas eu tenho um projeto eu vou fazer a
represa bem funda e vou fazer o lugar aí ele
Entende-se que trocar o riacho pela água encanada signi- fez a represa bem funda e fez aquele concreto
ficava abandonar parte dos seus saberes. De certo, arte e técnica (ÂNGELA MARIA DA SILVA, entrevista oral, 2020).
estão presentes nessa atividade secular. Separar as roupas brancas

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

As lembranças enriquecem a narrativa com nomes, mulheres lavadeiras e sua importante função social. Sobre esse
acontecimentos, saberes e fazeres das lavadeiras, mas também processo de expropriação dos lugares de uso comum e do saber
fazem aparecer a indignação das nossas colaboradoras. A “Baixa fazer das lavadeiras prevaleceu o silêncio.
Funda” era um lugar de uso coletivo, mas que tinha que ser
constantemente defendido com cacetes. Eles eram utilizados
FINALIZANDO...
para a sua defesa pessoal, contra os animais e contra os assédios
sexuais e morais dos próprios homens, mas também para bater
No caso específico das lavadeiras de roupas da “Baixa Funda”,
nas roupas, de certo, faz parte da arte e técnica aprendidas pelas
todas mulheres trabalhadoras, sem recursos financeiros e sem
mulheres e que foram passadas de geração em geração. Mas o
possibilidade de proteger o seu espaço coletivo do riacho, o
cacete também é símbolo de luta e de resistência feminina. Com
que brotou das suas lembranças foi o sentimento de revolta,
o cacete defendia-se as roupas e também os seus corpos dos
indignação, frustação e tristeza. A saudade de um passado na
invasores. Com seus cacetes elas também tentaram defender o
“Baixa Funda” foi substituída pela dor daquelas que se percebem
lugar da apropriação privada. Porém, a “Baixa Funda” tornou-se
desconsideradas e expulsas do lugar, já que os homens ricos,
propriedade privada e seu uso coletivo foi proibido. Enfim, essa
provavelmente brancos, que se tornaram proprietários daquele
imagem da lavadeira com a “trouxa” de roupa na cabeça e o
espaço, logo o destruíram. “A gente fica triste em saber que isso
porrete na mão diz muito sobre as mulheres e as especificidades
não existe mais. Choro, pois lembro que a ‘Baixa Funda’ era o
das lutas travadas pelas Marias da “Baixa Funda”.
lugar que eu e meus seis irmãos íamos” (ÂNGELA MARIA
Como ressalta Costard (2017, p. 171), “Somente a compreen- DA SILVA, 2020).
são da construção social das diferenças possibilita o potencial
Pensar decolonialmente implica desnaturalizar as rela-
crítico para efetivamente transformar a realidade que produz
ções historicamente hierarquizadas e proporcionar a abertura
as desigualdades”. Ela está dizendo que é preciso denunciar a
para outras histórias. De certo, são histórias marcadas pelos
assimetria social do poder na construção social das diferenças
sentimentos, pelas alegrias e tristezas das mulheres lavadeiras
e das hierarquias. Normalmente, as mulheres não brancas são
na sua relação com as águas e com as outras mulheres, em
expropriadas dos usos coletivos das águas e das terras. Na década
especial, com as mães lavadeiras que utilizavam o local para
de 1990, as mulheres perderam o controle sobre o lugar. Os
garantir a subsistência da família. Assim como ressaltam Costa
homens, poucos, compraram, desmataram e venderam o entorno
e Grosfoguel (2016, p. 21), o que parece ser central no projeto
da Barra Funda. Diante da resistência das lavadeiras, um pro-
político-acadêmico da decolonialidade “é o reconhecimento de
prietário prometeu fazer uma represa, com local adequado para
múltiplas e heterogêneas diferenças coloniais, assim como as
as lavadeiras continuarem a lavar as roupas, o que não acorreu!
múltiplas e heterogêneas reações das populações e dos sujeitos
Enfim, procedeu-se também ao apagamento das memórias das

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Lavadeiras de Roupas do Riacho “Baixa Funda” em Araguaína-TO

à colonialidade”. Na memória das lavadeiras, nada pode dar CURIEL, Ochy. Rumo à construção de um feminismo descolonizado. Ciudad de
Guatemala: s.ed, 2011. Disponível em: https://mujeresixchel.wordpress.
mais sentido a essa relação com o espaço do que as águas que
com/. Acesso em 2019.
corriam límpidas pelo riacho de outrora, para hoje, sobrarem os
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER,
sentimentos transformados em águas que rolam pelos seus olhos. Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos
As lágrimas traduzem as perdas de quem tem consciência do Aires: Clacso Livros, 2005. p.55-70.

que significa a destruição de um riacho e a desapropriação dos DUSSEL, Henrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a
partir da filosofia da libertação. Tradução de Rodrigo de Freitas Espinoza.
sujeitos daquele lugar. São histórias de tantas lutas, de tantas Revisão de Joaze Bernardino-Costa. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1
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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

______. O que faz a História Oral diferente. Projeto História, São Paulo, 14,
fev.1997.
“Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”:
SAMPAIO, Nádia. Lavadeiras de roupa do rio: geografia humanista e a história da Umbanda em Araguaína
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SEPLAN – Município de Araguaína, 2016. Disponível em: <seplan.araguaina.
to.gov.br/>. Acesso em: 10 dez.2017 Sariza Oliveira Caetano Venâncio

Nesse tempo [década de


1960] tinha centro aqui,
que se você dissesse
assim: “Vou passar
a semana todinha
caminhando em centro,
você passava”. Era de
segunda a sábado1.

INTRODUÇÃO

A história do Tocantins é ainda muito recente, e pesquisas sobre


sua política, cultura, religiosidade, entre outros assuntos, ainda
estão por serem feitas. O mesmo ocorre com a história de Ara-
guaína. Muito do que se tem feito até o presente momento está
voltado para fatores políticos e econômicos. Alguns elementos

1 Trecho extraído da entrevista feita com José Rodrigues em 24 de outubro de 2011.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS “Tinha Mais de 200 Centros Por Aqui”

são recorrentes nesses estudos sobre a região: separação de Goiás, A HISTÓRIA DA UMBANDA EM ARAGUAÍNA
construção da BR-153, chegada e instalação da Congregação
“Pequena Obra da Divina Providência” na cidade de Araguaína, Durante a pesquisa sobre a história da região e da cidade,
sua fundação e suas transformações sociais e econômicas. encontramos, na historiografia e nos relatos de memorialistas,
relações entre a construção da cidade e movimentos religiosos.
Do ponto de vista religioso, foram feitas diversas pesquisas
As principais relações estabelecidas dizem respeito à chegada
sobre os Orionitas, os Batistas e a Assembleia de Deus. Contudo,
dos padres orionitas e seu trabalho voltado à saúde e educação,
sobre as religiões afro-brasileiras pareceu-nos haver certa negação
à presença no setor educacional dos batistas e ao conflito interno
e silenciamento sobre a presença das denominações religiosas
ocorrido na Assembleia de Deus/Ministério SETA (Serviço
pertencentes a tal matriz, especialmente por parte da população
de Evangelização Tocantins e Araguaia), atual CIADSETA3,
araguainense. Ao questionar diversas pessoas da cidade sobre
que resultou na divisão da igreja e na criação do Ministério
onde poderíamos encontrar algum terreiro em Araguaína, a res-
CADETINS (Convenção das Assembleias de Deus do Estado
posta “aqui não tem isso não” foi e é comumente ouvida por nós.
do Tocantins). Porém, não eram somente essas igrejas de matriz
Analisando a frase, podemos perceber que o tempo ver- cristã que fizeram e fazem parte da história de Araguaína, as
bal que as pessoas empregam é o tempo presente. O que nos religiões afro-brasileiras também.
leva a poder interpretá-la de duas formas: a) atualmente não
Durante o processo de mapeamento das casas religiosas
existem terreiros em Araguaína, mas no passado, existiram;
afro-brasileiras na cidade de Araguaína feito por nós a partir de
b) Araguaína não tem, nem nunca teve terreiro e quem sabe
2011, deparamo-nos com diversos dirigentes que se auto iden-
nunca terá. Outros elementos que se agregam à linguagem das
tificavam como pertencentes à religião de Umbanda. Embora
pessoas são os sinais corporais (de espanto e repúdio) e a ênfase
notemos certas influências de outras religiões de mesma matriz
na resposta. Esse conjunto de signos verbais e não verbais pode
(Tambor de Mina, Terecô, Candomblé e Jurema) nos rituais e em
ser lido como referência à interpretação “b” proposta por nós.
entrevistas com os dirigentes, decidimos, por fim, compreender
Mas não descartamos a possibilidade da interpretação “a”, uma
o povo de santo dessa cidade como querem ser vistos, ou seja,
vez que muito se tem dito pelo povo sobre santo2 de Araguaína,
como umbandistas. Procuramos, em um primeiro momento,
sobre a quantidade de terreiros que havia na cidade e como
levantar dados que nos ajudassem a traçar a história dos primei-
tem diminuído. Mesmo com a tentativa de esconder e negar a
ros umbandistas em Araguaína e, logo em seguida, apresentar
presença dos terreiros, descobrimos depois que “aqui” — em
aqueles dirigentes já falecidos.
Araguaína — “tinha” e “tem isso” sim!

3 Convenção Interestadual de Ministros da Assembleia de Deus no Tocantins e


2 Termo usado para designar os adeptos das religiões afro-brasileiras. Araguaia.

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Muito tem sido escrito sobre o surgimento da Umbanda4. região, as trocas, negociações e relações entre os diferentes se
Apesar de divergências de datas, seu marco fundacional está intensificam, possibilitando a construção de novas experiências,
no início do século XX e há um consenso de que ela é uma significados e práticas.
religião brasileira por excelência, resultado da integração e
Na procura dos terreiros, encontramos primeiramente
síntese de religiões de tradições africanas, do catolicismo e
a Tenda Espírita Umbandista Santa Joana d’Arc, no centro da
do kardecismo. O caráter híbrido da Umbanda lhe permite ter
cidade. De acordo com a documentação da tenda, seu registro
uma capacidade de absorção e redefinição de traços religiosos
de fundação data de março de 1979, mas, segundo relatos da
diversos. Os santos católicos estão presentes no altar e nas
dirigente, Valdeci Pereira Reis, e de seu esposo, Osmar, eles
paredes, assim como as rezas e os benditos em seus rituais.
já estariam na cidade trabalhando desde 1978. Dona Valdeci é
Cada orixá do Candomblé é agregado a uma linha da Umbanda,
maranhense, mas, antes de sua vinda para Araguaína, ela e a
entre sete, como a entidade principal da linha correspondente.
família viveram em Ananás, depois em Araguatins, onde come-
Em geral, os caboclos recebidos durante os trabalhos devem
çou a ser desenvolvida espiritualmente. Embora tenha iniciado
vir para “trabalhar”, ou seja, para ajudar as pessoas na terra
seu desenvolvimento na Umbanda na cidade tocantinense, com
através de conselhos e curas, a fim de que consigam evoluir no
um dirigente paraense, foi em Nazaré-MA, com José Bruno de
plano espiritual, tornando-se espíritos de luz. Algo semelhante
Morais, que ela foi batizada.
ocorre com alguns espíritos no kardecismo. Essas e outras
especificidades das três religiões citadas fazem parte dos Quando questionamos sobre a presença de outros terreiros
mitos e ritos dentro da Umbanda. Mas é importante ressaltar quando de sua chegada, Dona Valdeci nos informou que o senhor
que não são só essas três religiões que podem ser adaptadas, José Rodrigues já se encontrava na cidade com seu salão, assim
negociadas e hibridizadas pela Umbanda. como Ana Terezinha do Nascimento de Jesus (Terezona), Luís
Maranhão, Osmar, Pescocinho, Zefinha, Maria dos Reis, João
Nas casas visitadas em Araguaína, é comum encontrar
Raimundo, Dedé, Gama, Felinha e Pedro da Carroça. Destes,
traços do Tambor de Mina, religião afro-brasileira predominante
estão vivos José Rodrigues e Pedro da Carroça. Tivemos contato
no Maranhão, do Terecô codoense e da Umbanda nordestina,
com José Rodrigues e Luís Maranhão. Pedro da Carroça foi
marcada pela tradição juremeira. Acreditamos que esses traços
entrevistado por Cleyton Gomes de Almeida.
presentes nos terreiros da cidade reflitam as trocas culturais
ocorridas quando dos contatos entre grupos distintos vindos Pedro nasceu no Maranhão, na cidade de Caxias, em 1954
de diversos lugares para Araguaína. Sabemos que, quando há e com apenas nove anos veio para a cidade de Araguaína. Mas foi
processos intensos de migrações, como o que aconteceu na antes de sua vinda que, ainda na infância, ele começou a ter sinais
de mediunidade, o que era tido por sua família como “loucura”
4 Camargo (1961); Concone (1987); Ortiz (1991); Prandi (1995; 1996); entre outros. ou “agitação”. Pedro reforça em entrevista concedida a Almeida

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(2020) que a família o levou aos benzedores a fim de solucionar especial os que utilizam tambor, os trabalhos na Tenda Santa
seus males. Foi em Nazaré-MA, através de Zé Bruno, umbandista Bárbara começam sem hora exata para terminar, mas nunca
famoso no sul do Maranhão, que Pedro soube que era médium presenciamos trabalhos que fossem além da meia-noite. Mesmo
e que necessitava trabalhar para se ver saudável. Com 18 anos tendo chegado por volta de 1963, José Rodrigues, assim como
ele começa a trabalhar, mas somente já com aproximadamente outros dirigentes, é enfático ao dizer que o mais velho da região,
40 anos ele monta sua casa como dirigente principal. ainda vivo naquele momento, era Luís Maranhão. Ele sempre foi
mencionado por outros dirigentes como um “bom feiticeiro5” ou
Seu salão era no Bairro São João, ao lado de sua resi-
realizador de “bons trabalhos”.
dência. Ali ele trabalhou com desenvolvimento de médiuns e
giras por quase duas décadas e só parou suas atividades por Quando o conhecemos, Luís Maranhão não trabalhava
questões de saúde. Almeida (2020) ressalta que “O fato de ter mais com salão, médiuns ou gira, apenas dava consultas com
fechado o salão não quer dizer que Pedro abandonou a religião, auxílio de baralho e bola de cristal num pequeno cômodo de sua
ele continua como praticante, mas trabalha timidamente em um casa no Setor Tereza Hilário. Luís Maranhão Souza, que nasceu
quarto reservado em sua casa. Nesse local reservado, realiza em Uruçuí-PI, em 25 de abril de 1940, narrou os males físicos,
seus cultos e atende pessoas que procuram sua ajuda” (p. 24). segundo ele, também espirituais, que sofreu quando criança,
Assim como Pedro, José Rodrigues encerra seus trabalhos por as promessas e os tratamentos feitos para sua cura. Na década
questões de saúde física. de 1960, disse, ele e sua família se encontravam na região que
viria a ser Araguaína. Foi ali que conseguiu achar alguém que
José Rodrigues, dirigente da Tenda Santa Bárbara, nasceu
o ajudasse a resolver seus problemas, um senhor por nome de
em São João-PI, em 1943. Em 1955, ele e a família foram para
Raimundinho, que vivia numa região chamada Jussara, ao sul
Nazaré do Bruno-MA para tratá-lo espiritualmente. Ali ele
do que hoje é a região de Araguaína, enquanto Luís Maranhão
permaneceu por quase cinco anos, período em que ficou sendo
morava no Centro Novo, região oposta à de Raimundinho. Esse
desenvolvido na Umbanda. Ele contou que, ao sair de lá, foi
senhor era de Mearim-MA, mas há muito tempo vivia no Norte
para São Paulo à procura de emprego, mas logo regressou para
do então Goiás, e embora tenha curado Luís Maranhão, não
Floriano-PI, onde ficou sabendo das oportunidades de emprego
foi com ele que o dirigente se desenvolveu espiritualmente na
em Araguaína.
Umbanda. Assim ele narra sua experiência:
Zé Rodrigues, como também é conhecido, tem seu salão
de Umbanda na Rua das Jaqueiras, Bairro Araguaína Sul. Ele 5 Ressaltamos que, apesar de o termo feiticeiro não ser usado como autodefinição
por nenhum dirigente – sendo o feiticeiro sempre o outro e uma categoria de
abre seus trabalhos toda sexta-feira a partir das 20h. Ainda acusação (FERRETTI, 2001, p. 166) –, os dirigentes da cidade reconhecem a eficácia
que a Confederação Espírita Umbandista do Brasil (CEUB) ou não das magias realizadas por quem eles acreditam ser feiticeiro, podendo,
assim, classificá-los como bons ou ruins, segundo os resultados de seus trabalhos,
faça exigência para os trabalhos irem somente até as 22h, em ainda que sejam para o bem ou para o mal.

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Nazaré, por volta de 1976. Logo após, retornou a Araguaína,


LM: Aí, finalmente eu parti para um terreiro que
onde abriu seu primeiro terreiro.
tinha chegado do Pará, da Maria Matos. Quando
eu cheguei naquele terreiro da Maria Matos O dirigente acima afirma que a relação dele, em especial,
[...] ela chegou para o Escondido, um povoado
com a Igreja Católica na cidade era conturbada. Em entrevista
chamado Escondido, que tinha lá abaixo de
onde eu morava. Aí eu fui lá visitar ela, aquele feita com o padre Remígio, ele nos contou que existia no Setor
terreiro dela, aquele serviço que era um espanto, Brasil, antigo Bairro Exu6, um colégio que disputava campeo-
ninguém conhecia o que era a Umbanda. natos de futebol contra o time do Colégio Santa Cruz. Ele disse
S: E não tinha outro pela cidade ainda?
que havia uma grande rivalidade entre os times. O padre não
seguiu o raciocínio, mas tudo indica que as disputas iam além do
LM: Não, não existia outro e ninguém conhecia.
Era a coisa mais perseguida que tinha da polícia campo futebolístico, as disputas religiosas deviam ser centrais.
aqui. [...] Daí, eu fui para a Maria Matos, quando Apesar de não termos dados sobre a presença de terreiros no
cheguei lá, ela falou pra mim: “Olha você tem que bairro citado, Luís Maranhão, em entrevista, quando questionado
desenvolver, porque se você não desenvolver,
sobre a presença da Igreja Católica na cidade, conta, entre risos,
futuramente você ficará louco, porque você tem
uma potência espiritual maior do que a minha e
que padre Remígio não gosta dele, acrescenta que ele e Terezona
do que de muitas outras pessoas que eu conheço”. tinham um time de futebol que disputava campeonatos com o
Eu disse: “Rapaz, como é essa potência?”. Aí ela time dos padres e que os jogos “eram sempre uma festa”. Pare-
foi e falou: “Olha, você é capacitado a adivinhar, ce-nos que ambos, padre Remígio e Luís Maranhão, falavam da
a curar, a fazer coisas estrondosas que ninguém
mesma coisa. Desse modo, fica clara a presença de uma tensão
nunca viu na vida”. “E é Dona Maria?”. “É!”. “Pois
se for assim... só eu, minha mãe e minha irmãs, na relação entre ambos os grupos religiosos.
como é que eu vou fazer?”. Ela foi e falou: “Não,
se você quer a sua saúde, então você muda de
Outra história que mostra essa animosidade, mas que
onde você está pra cá e aí vai trabalhar” (LUÍS servirá para entendermos o assistencialismo praticado pelo povo
MARANHÃO, entrevista oral, maio de 2012).
6 O referido bairro ainda é conhecido pelos moradores mais antigos como Exu
da Sabina, Exu da Sabina Preta ou Exu Preto da Sabina. É um dos espaços mais
Foi trabalhando com Maria Matos que Luís Maranhão antigos de Araguaína. Através de relatos orais, sabe-se que seus primeiros mora-
dores datam do fim da década de 1940 e início da década de 1950. A origem do
começou seu desenvolvimento. Contudo, seu desenvolvimento nome não se sabe ao certo. Uns dizem que era por causa dos despachos que
não se encerra com ela. Segundo ele, depois que saiu da casa eram feitos na região, por esta ser mais isolada e mais próxima da mata; outros
afirmam ser devido a uma negra, Sabina, louca, alcoólatra e pedinte de dinheiro,
dela, foi para Imperatriz-MA, onde continuou o desenvolvimento que morava na região e que se dizia dona de Exu; outros porque a região não tinha
uma infraestrutura boa e ali moravam muitos negros. Independentemente das
com os já falecidos dirigentes Chaviano e Maria. Mas encerrou versões apresentadas, encontramos um elemento de convergência nas falas de
todo o processo sendo batizado e cruzado por José Bruno, em padre Remígio e do umbandista Luís Maranhão: o bairro só foi para frente depois
que mudou de nome.

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de santo de Araguaína, é o caso narrado, de forma confusa, por homens e mulheres adentram os salões nos dias de rituais ou
padre Remígio, sobre uma mulher que estava grávida e parece mesmo diariamente na esperança de serem curados de doenças
ter procurado ajuda de algum dirigente umbandista para fazer o físicas e espirituais através de rezas, oferendas, banhos e ben-
parto dela ou um aborto. Padre Remígio enfatiza que acabaram zimentos ou na esperança de obter conselhos dos santos ou de
deixando-a jogada na porta da igreja sangrando, e eles tiveram seus zeladores para inquietudes de cunho emocional, financeiro,
que socorrê-la. O fato de a mulher ter procurado um terreiro existencial etc.
para resolver qual fosse seu problema nos mostra as dificuldades
Esse viés assistencialista é analisado por José Henrique
enfrentadas na região no que se refere ao sistema de saúde público.
Motta de Oliveira (2007) como a “fonte de todas as bênçãos” da
Se as outras igrejas chegavam com discursos e práticas doutrina espírita kardecista. Ele mostra como esse assistencialismo
de um evangelismo mediado pela educação e saúde, os terreiros é transformado em caridade nos centros espíritas e nos terreiros
focalizam sua assistência à população através das consultas com através de serviços de ajuda mútua e para a comunidade. É a
as entidades incorporadas nos dirigentes, oferecendo conselhos partir dessa influência que a Umbanda passaria a assumir um
e curas no plano físico e espiritual. Em entrevista dada para o caráter de religião assistencialista, em que “os espíritos trazem
quadro “O que vi da vida7”, do programa televisivo O Fantástico, palavras de consolo, proporcionando lenitivos para os males físi-
o cantor e compositor Zeca Pagodinho, assumidamente frequen- cos e espirituais” (OLIVEIRA, 2007, p. 94). Na mesma direção,
tador de terreiro, ajuda-nos a compreender o assistencialismo apontam os estudos de Ricardo Oliveira de Freitas (2009):
destes terreiros. Quando narrou as dificuldades vividas na sua
infância em razão da falta de dinheiro na família, ele recordou Terreiro de umbanda caracterizou-se pela oferta
que, muitas vezes, fora atendido nos terreiros com consultas de doações e pela prática do assistencialismo e
e remédios quando estava doente, porque, afinal, “médico de caridade, característicos do “fazer o bem sem
olhar a quem” praticados pelo kardecismo e pelo
pobre é pai de santo”.
catolicismo brasileiros. Tomou como “missão”,
Partindo dessa ideia, podemos compreender por que em “obrigação” ou compromisso determinado pelos
“encantados” (para além da razão explicativa da
muitos rituais assistidos por nós diversas pessoas vão especial-
vida prática) a tarefa de realização de atividades
mente para consultar com os dirigentes ou com suas entidades. que caracterizariam o trabalho de ajuda mútua,
Compreendemos, também, a grande quantidade de pessoas que articulação, negociação, doação, recepção,
se acercam da casa dos pais de santos durante as manhãs e tar- retribuição e troca (FREITAS, 2009, p. 214).
des para consultar com eles. Seja individualmente ou em casal,
Assim, a cura de doenças, cuidados com saúde, conflitos
7 Programa exibido em 7 de agosto de 2011. Disponível em: <http://www.youtube. amorosos, problemas com desemprego, entre outros problemas,
com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acesso em: 24 jun. 2016.

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levam diversas pessoas a procurar a assistência umbandista atra- os problemas enfrentados e os desafios vividos ficaram para ser
vés de consultas com os dirigentes em transe, sendo as entidades narrados sobre a vida dos que ainda estão vivos. Os problemas
responsáveis pela solução dos problemas ou ainda com o próprio parecem ser encarados como atribulações a ser superadas para
dirigente puro8, ou seja, sem estar incorporado. haver purificação espiritual desses dirigentes. No caso dos que
já morreram, a morte parece cumprir essa tarefa purificadora.
Juntamente com Valdeci, ou anteriormente a ela, outros
dirigentes já se dedicavam ao atendimento à população araguai- Aqueles referidos na memória oral dos terreiros, em
nense. Até o presente momento, foram obtidos relatos sobre 26 especial pelos dirigentes citados, transmitidos a nós através da
dirigentes que estavam em atividade em Araguaína e já faleceram. oralidade, são: Maria Matos, Terezona, Zefinha, Maria dos Reis,
Os dados que se seguem (nomes e outras informações) foram Felina, Balbino, Zé Pretinho do Tucum, Olindina, Raimunda
recolhidos em conversas formais (gravadas) e informais com Batista, Nikita, Maria José, Mauro, Osmar, Ataíde, João Rai-
alguns dirigentes, em especial Dona Valdeci, José Rodrigues, mundo, Gama, Dedé, Pescocinho, Raimundinho, Brasil, Mestre
Nazareno e Luís Maranhão, fichas cadastrais da confederação Euclides, Francisquinha, Cícero Caetano e Cego do Bambu. É
e pela revisão bibliográfica. Apesar de não termos conseguido difícil precisar a data de chegada a Araguaína dessas pessoas.
recolher as mesmas informações questionadas sobre todos, pois Mas, com base em relatos de Dona Valdeci e Luís Maranhão,
nossos informantes nem sempre tinham estreito contato com os podemos levantar algumas hipóteses. Se Luís Maranhão conta
que morreram, chamou nossa atenção o fato de que todos são ter chegado à região em meados da década de 1950, já encon-
lembrados por seus “bons trabalhos”, “por trabalharem bem”. trando Maria Matos com salão em atividade, podemos acreditar
Essas afirmativas podem ter uma multiplicidade de compreen- que ela tenha chegado à região entre o fim da década de 1940
sões: podem se referir ora ao fato de uma gira ter início, meio e e início da seguinte. Segundo alguns informantes, ela seria
fim, ora a outro tipo de organização ritual, mas coerente para o natural de Marabá-PA. O dirigente Osmar parece ter chegado à
dirigente que assiste, ora ao fato de um trabalho, uma cura ou cidade mais ou menos no mesmo período que Luís Maranhão,
outra atividade ser realizada com êxito, enfim, ora ao universo uma vez que este afirma que aquele era contemporâneo seu no
binário cristão (bem/mal), sendo um “bom trabalho” uma opo- terreiro de Maria Matos, tendo sido os dois desenvolvidos por
sição aos trabalhos de “magia negra”. ela. Osmar teria fechado seu salão na cidade e ido embora para
Xinguara, Pará, onde acabou por ser assassinado. A sua ida para
Independentemente do significado desse passado para cada
o Pará pode nos indicar algum vínculo anterior com esse estado,
narrador, as memórias selecionadas para serem transmitidas ao
permitindo assim seu retorno.
público externo aos terreiros são sempre positivas. Como veremos,
Assim como os já citados, acreditamos que dirigentes
como Nikita, Maria José e Maria dos Reis tenham chegado a
8 Sem estar incorporado.

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Araguaína no início dos anos 1970. Tal hipótese se sustenta no de médiuns da cidade. Não sabem dizer ao certo a quantidade
fato de que Dona Valdeci, ao se mudar para a cidade, em 1978, de dançantes da casa dela, mas podemos imaginar que esse
conta que essas pessoas já se encontravam ali e que não tinham número superasse a casa dos 30, uma vez que, quando com-
muito tempo de residência na região. Dona Maria José teria che- parados com os das tendas de Nikita e Maria José, que tinham
gado de Tocantinópolis e Maria dos Reis, mesmo sendo esposa quase 25 médiuns trabalhando com elas, os informantes dizem
de José Rodrigues à época, não teria vindo com ele do Piauí. Em que o centro de Olindina “nem se comparava com o delas” em
entrevista feita com José Rodrigues, ele nos contou que chegou quantidade de pessoas na gira.
sozinho à cidade, por volta de 1968, e só então se casara.
Entre os homens, temos uma diversificação nos trabalhos
A chegada de Mauro também parece datar da década realizados. Entre os nove, cinco trabalhavam com gira: Osmar,
de 1950. Em uma das visitas feitas à casa de Dona Valdeci, João Raimundo, Dedé, Raimundinho e Brasil. João Raimundo
conhecemos uma senhora consulente do centro que nos con- era médium de Terezona. Com seu falecimento, ele assumiu
tou que era natural do Maranhão e chegara à cidade por volta o salão, mas dizem que, logo após, ele fechou a gira e passou
de 1957, 1958. Ela disse que, quando chegou, ouvira falar de a trabalhar somente na mesa. Raimundinho e Brasil eram os
Mauro, o que nos leva a crer que ele já estava instalado em dirigentes que mais tinham médiuns em seus centros, ao que
Araguaína havia alguns anos. De onde Mauro teria vindo, não tudo indica, pareciam superar o centro de Olindina nesse que-
soubemos; assim como muitos dos dirigentes falecidos. Mas, sito. Dizem que o de Raimundinho era o “mais famoso entre
pelas informações recolhidas sobre alguns deles — Maria Matos os ricos da cidade”.
e Terezona serem do Pará, Olindina e Dedé, do Maranhão, e
Fora os dirigentes que trabalhavam com gira, havia quem
João Raimundo ser do Piauí — e com base nos dados sobre a
trabalhava só com mesa: Gama, Mestre Euclides e Cego do
forte migração para a região nas décadas de 1960 e 1970 de
Bambu. Gama foi o mais famoso dos umbandistas de mesa da
pessoas provenientes desses três estados, acreditamos poder
cidade e dizem que todos gostavam dele dentro da Umbanda
levantar a hipótese de que os outros dirigentes poderiam ser
araguainense e os de fora também. Disseram que era muito
também oriundos de tais regiões.
querido pelos políticos da região, o que parece verdade, pois,
É interessante observar que, nesse grupo, todas as diri- após sua morte, a rua onde residia teve o nome alterado para
gentes trabalhavam com salão e tinham grande quantidade de o dele: Rua Gama. Tanto ele como o Cego do Bambu são des-
médiuns. A tenda de Terezona é lembrada por sua organização, critos como “bons cientistas” por trabalharem com “ciências
dizem que era bem arrumada e comportava 300 pessoas na assis- ocultas”. Dona Valdeci explica que esses trabalhos são aque-
tência9. Olindina era a dirigente do maior salão em quantidade les feitos de forma secreta, sem a presença de ninguém. Não
necessariamente se trataria de “coisa ruim”. O fato de serem
9 Pessoas que vão aos terreiros para consultar ou somente assistir.

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“bons cientistas” é explicado pela mesma dirigente com base também que Raimunda não tinha tambor no salão dela e “recebia”
na compra de materiais feita por eles na loja de artigos para Príncipe Légua e Índia Perpétua durante os trabalhos. Quando
umbanda dela. Ela dizia que eles compravam banhos, pembas, visitou o terreiro onde Maria dos Reis trabalhava, ela ainda era
perfumes etc.: “somente coisas certas para os fins certos”. Dos casada com José Rodrigues.
que trabalhavam com mesa, parece que só Mestre Euclides
Outras relações e vínculos entre os dirigentes foram apa-
incorporava durante as consultas. Ele dizia “receber” padre
recendo no decorrer da pesquisa: Luís Maranhão e Osmar foram
Cícero e Maria Madalena. Os outros jogavam cartas para os
desenvolvidos por Maria Matos; Maria dos Reis foi esposa de
consulentes, mas sem estar em transe.
José Rodrigues; João Raimundo foi médium de Terezona. Des-
Mauro é um caso à parte entre os umbandistas aqui des- cobrimos que Felinha era médium de uma dirigente cuja tenda
critos. Ele não tinha salão, não tinha mesa e – dizem – nem altar. está atualmente fechada e que Maria dos Santos, por sua vez,
Vivia numa chácara onde recebia as pessoas que quisessem ser fora iniciada por Luís Maranhão. Mesmo com essas relações
ou ter suas propriedades benzidas. Luís Maranhão disse que mais diretas entre os dirigentes, notamos que as visitas entre as
ele fazia muito trabalho, despacho para assuntos de dinheiro e casas de Umbanda em dias de trabalhos ou datas festivas não
amor. Também disse que sabia que ele realizava, incorporado, eram nem são hábitos comuns na cidade.
os benzimentos e despachos, mas não soube informar com quais
Acreditamos ser necessário apontar a localização desses
entidades Mauro trabalhava.
dirigentes em Araguaína. Ao contrário do que se poderia ima-
Dona Valdeci conheceu boa parte dos dirigentes de tendas ginar, eles estavam, a maioria, na região considerada central
de Araguaína em razão do trabalho de seu esposo como repre- da cidade. O Bairro São João parece ser o bairro com maior
sentante da CEUB e pode assistir a rituais realizados por quatro concentração de terreiros, pois ali estavam dirigentes como
deles: Terezona, Dedé, Raimunda Batista e Maria dos Reis. Foi Terezona, Nikita, Maria José, João Raimundo e Gama. Nas
justamente por causa dessas visitas que Dona Valdeci pode nos imediações do São João, temos o setor central, onde trabalha-
contar, por exemplo, que Terezona trabalhava com Umbanda vam Raimundinho e Raimunda Batista. Na região da Feirinha
Omolokô10 e com Mina de Cura11 e que tinha como principais (Vila Aliança), estava Dedé e nas proximidades do Cemitério
entidades Jarina, João da Mata e Zé Raimundo de Légua. Contou São Lázaro estava Osmar. No Bairro Neblina, trabalhavam
Mestre Euclides e Cego do Bambu. Maria Matos tinha seu salão
10 Omolokô ou Omolocô é um culto afro-brasileiro que admite, no mesmo ambiente,
num local conhecido antes como Escondido, atual região do
práticas do Candomblé e da Umbanda. Há o culto aos orixás de forma semelhante, Bairro JK, onde Zefinha residia e também trabalhava. Brasil
mas não idêntico ao Candomblé; e aos caboclos, às crianças, aos exus, às pomba-
-gira, pretos velhos etc., como ocorre na Umbanda. tinha seu salão num bairro que era seu homônimo. Na saída da
11 Esse é um ritual muito específico da Tenda Santa Joana d’Arc com forte influência cidade em direção ao Rio Jacuba, onde está o bairro Patrocínio,
da pajelança maranhense e paraense.

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trabalhavam Mauro e Olindina. Foi no Bairro Araguaína Sul Acreditamos que um dos fatores que contribuíram para
que Maria dos Reis começou a trabalhar com José Rodrigues a pouca quantidade de umbandistas apresentada pelo IBGE
e onde abriria seu salão após se separar dele. Nesse mesmo na cidade, além da metodologia de amostragem utilizada por
bairro, ainda era possível ouvir os tambores de Felinha. esse instituto, seja o fato de que muitos umbandistas, quando
questionados sobre qual seria sua religião, tenham se declarado
Com exceção de alguns terreiros, como o da dirigente
“espíritas” ou “católicos”. É certo que cada pessoa que vivencia
Terezona, cujo salão João Raimundo assumiu após a morte dela,
essas religiões encontra justificativas distintas para não se auto
os demais tiveram suas portas fechadas após o falecimento de
declararem como povo de santo. Duas explicações são as mais
seus fundadores porque não havia quem os conduzisse.
recorrentes: medo de sofrer perseguição e violência; e/ou por
Intriga-nos a quantidade de médiuns que se tinha nos se considerarem também como pertencentes a outras religiões.
salões mencionados e a redução de casas e umbandistas na Assim, compreendemos por que os dados do censo de 2010 se
cidade. No Censo de 1991, 39 pessoas se declaravam perten- distanciam – e muito – daqueles encontrados por nós, uma vez
centes à Umbanda e ao Candomblé. Em 2000, esse número que sabemos, através das observações feitas em diversos ter-
chegou a zero, mas volta a ter certa expressão, 14 pessoas, no reiros, que a quantidade de umbandistas na cidade apresentada
Censo de 2010. Sobre a categoria Umbanda, utilizada pelo pelo censo corresponderia somente à quantidade de médiuns de
IBGE, o Censo apresenta que, em 1991, ninguém se declarava uma das casas visitadas.
pertencente a essa religião. Mas o levantamento de 2000 aponta
Vale ressaltar a importância de pesquisas acadêmicas tanto
57 pessoas se declarando umbandistas. Esse número caiu para
para a visibilização do povo de santo na região, como para o
14 no censo seguinte.
confronto com os dados de institutos de estatística. Além disso,
as pesquisas possibilitam que os membros das religiões de matriz
Tabela I – População total residente em
africana se (trans)formem enquanto sujeitos históricos e sociais,
Araguaína por religiões afro-brasileiras
e vejam possiblidades de viver e expressar sua religiosidade de
CENSO 1991 CENSO 2000 CENSO 2010 forma aberta.
População total 103.315 113.143 150.484
Umbanda e CONSIDERAÇÕES FINAIS
39 — 14
Candomblé
Umbanda — 57 14 Com base no exposto, sobre a importância e representatividade
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). que o povo de santo tinha na cidade de Araguaína, indagamos:
onde estaria a grande quantidade de médiuns que as casas fecha-

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das tinham? O dirigente José Rodrigues é quem nos indicou um mações sobre outros que fizeram parte da história do povo
caminho: “um bocado morreu, outros foram embora, e o lugar de santo de Araguaína, quer trabalhassem com mesa ou com
foi crescendo e o povo não”. Por intermédio de outros dirigentes, salão. Acreditamos que, por se tratar de uma religião que tem
soubemos que muitos também se tornaram evangélicos. Em sua base na oralidade, esse levantamento feito até o momento é
conversas trocadas e ouvidas em algumas casas, percebemos somente a introdução de uma história que está para ser contada.
também a dificuldade de trabalhar com os jovens, ou seja, os
dirigentes mais velhos queixam-se da imaturidade e da falta de
REFERÊNCIAS
interesse e responsabilidade da juventude; não acreditam que
ALMEIDA, Cleyton Gomes de. Trajetórias socioespaciais de dirigentes
queiram pensar em religião e nas obrigações que vêm com ela,
umbandistas em Araguaína-to (1959-1970). Dissertação (Mestrado em
daí a resistência de algumas casas quando o assunto é a iniciação Estudos de Cultura e Território) – Universidade Federal do Tocantins,
de médiuns mais jovens. Vale ressaltar que além das obrigações Araguaína-TO, 2020.
rituais inerentes a todas as religiões afro-brasileiras em geral CAMARGO, Cândido Procópio F. de. Kardecismo e Umbanda – Uma
interpretação sociológica. São Paulo: Pioneira, 1961.
e à Umbanda, em particular, as dificuldades e os problemas
CONCONE, Maria Helena V. B. Umbanda, uma Religião Brasileira. São Paulo:
enfrentados na vida cotidiana contribuem para a não aceitação FFLCH/USP, CER, 1987.
ou desistência dessas religiões. FANTÁSTICO. O que vi da vida. Programa exibido em 7/8/2011. Disponível
em: <http://www.youtube.com/watch?v=NHkc-rUIsJk>. Acessado em:
Por fim, vemos que a epígrafe deste trabalho nos oferece um 24/6/2016>. Acesso em: 10 de maio de 2018
panorama da presença da Umbanda em Araguaína logo após sua FERRETI, Mundicarmo. Encantaria de “Barba Soeira”. São Paulo: Siciliano, 2001.
criação, em 1958. Zé Rodrigues ainda é enfático sobre o número FREITAS, Ricardo Oliveira de. Quando o voluntariado é axé: a importância
de terreiros na época: ele chegou a nos contar que “tinha mais das ações voluntárias para a caracterização de uma religião solidária e de
resistência no Brasil. In: GOMBERG, Estelio; MANDARINO, Ana. (Orgs.).
de 200 centros por aqui” (VENÂNCIO, 2013). O valor dado pelo Leituras afro-brasileiras: territórios, religiosidades e saúdes. Salvador:
dirigente corresponde menos a um número exato do que a uma EDUFBA, 2009.
ênfase na quantidade de terreiros na cidade. IBGE: banco de dados. Disponível em <http://www.ibge.gov.br>. Acesso
em: 26 jun. 2016.
Como lidamos com uma religião de tradição oral, ainda OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma
que mediada por uma instituição da tradição escrita, como é análise comparativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o
Estado Novo. Dissertação. (Mestrado em História Comparada). Universidade
o caso da confederação, é difícil precisar a quantidade exata
Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2007.
de terreiros. Mas, segundo dados colhidos com os dirigentes ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade
vivos e com o fiscal Osmar, conseguimos, como foi apresen- brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1991.
tado, não somente relatos do que possivelmente tenham sido PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: Para uma sociologia dos
os primeiros umbandistas da cidade, como os nomes e infor- cultos afro-brasileiros. Revista USP. São Paulo, dez./fev. 1995/1996, pp. 64-83.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

VENÂNCIO, Sariza O. C. Tenda Espírita Umbandista Santa Joana d’Arc: a


Umbanda em Araguaína. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) –
Araguaína e a construção de
Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2013. uma identidade na contramão
da História (1978-1998)

Eugênio Pacelli de Morais Firmino


Mirany Cardoso Lopes

INTRODUÇÃO

Desde a emancipação municipal, em 1958, o poder público, apoiado


por alguns intelectuais da comunidade, tem mostrado interesse
profícuo na produção de uma identidade local. Esse interesse
aparece expressado nos discursos elaborados e veiculados pela
imprensa local escrita, por jornalistas, por políticos, artistas e
intelectuais liberais no decorrer das décadas de 70, 80 e 90 do
século passado. Sendo assim, neste breve artigo procura-se,
em linhas gerais, entender de que forma e por que se procurou
construir essa “identidade” e de que forma ela se “caracterizou”
no processo histórico regional.

A elaboração de imagens e representações analisada opera,


na prática cotidiana, para nomear estruturas locais e construir
histórias dentro de um determinado contexto, objetivando, essen-
cialmente, a invenção de uma identidade homogênea sobreposta

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)

a uma realidade heterogênea social e cultural. Este é o caso de a essa confluência intercultural entre migrantes e a sociedade
Araguaína, em que os discursos representados no interior de local “original”, também descendentes de pessoas oriundas
conteúdos socioculturais, decorrentes da presença constante de de outras regiões que aqui chegaram mais cedo, ou seja, dos
migrantes de várias partes do país, no período compreendido descendentes dos primeiros habitantes exógenos.
entre 1978 e 1998, mudaram totalmente a estrutura local. Com
Em sua obra, “A identidade cultural na pós-modernidade”,
isso, Araguaína foi imaginada, nas representações dos discursos
Hall (2001) nos informa que, após a Segunda Guerra mundial,
oficiais e não oficiais, sem diferenças, sem conflitos substanciais
houve, no mundo todo, um impulso cada vez maior das migrações,
num espaço social em constante (re)construção, sendo que todos
e com ela, o declínio das identidades culturais, que passaram
que aqui chegavam, no referido período, foram recebidos como
a ser, cada vez mais, fragmentadas, fluidas, instáveis devido a
“bem-vindos”, sendo este, portanto, um dos traços da suposta
esse deslocamento que acabou produzindo uma grave “crise de
identidade local.
identidade” para o indivíduo, que entra em choque ao se deparar
com outras culturas totalmente diversas, distintas da sua. Dessa
O COSMOPOLITISMO COMO UM DOS OBSTÁCULOS forma, ele tenta resistir, mas acaba fazendo concessões como se
PARA A CRIAÇÃO DE UMA IDENTIDADE LOCAL adquirisse uma nova identidade por razões imperiosas exigidas
pelas circunstâncias impostas pelo exercício do poder cultural
A ocupação e a formação do espaço social correspondente que promove, através do seu discurso, a invenção de uma rea-
ao município de Araguaína se processou a partir de ondas lidade plástica, uniforme, que faz com que o sujeito se perceba
migratórias advindas, desde o final do século XIX, das regiões e se defina como “unificado”, com um só perfil, com uma só
norte e nordeste do Brasil. Durante o período de 1978 a 1998, personalidade. Entretanto, para o sujeito, sua ideia de ser, de
percebe-se a continuidade de correntes migratórias para o pertencimento, continua unificada na expressão linguística, na
munícipio, atraídas por fatores diversos, inclusive pelos dis- religião, no costume, nos hábitos, nas tradições e no sentimento
cursos representacionais referentes a esta cidade, sobretudo de lugar. Em razão do contato, do choque com a nova realidade,
aqueles contidos na ideia e no movimento pela criação do surgem os comportamentos e as atitudes conflituosas em que
estado do Tocantins, que afirmavam a certeza meritória de o sujeito é interpelado, persuadido por uma cultura estranha,
que Araguaína seria a sede do poder político estadual, por já diferente da sua, e para se manter como tal ante esta nova situa-
ser considerada, diga-se de passagem, “o polo econômico”, ou ção, ele, muitas vezes, recorre à tentativa de fazer recortes e
“a capital econômica” do “antigo norte goiano”, atual estado tentar colar traços daquilo que ele considera sua cultura própria
do Tocantins. Neste sentido, Gurgel (1998) nos informa que (que também lhe fora imposta) na cultura com a qual agora se
foram chegando pessoas de várias regiões brasileiras. E isso defronta (e negocia!).
resultou numa formação cultural diversificada, plural, devido

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)

Assim, um dos obstáculos encontrados ou uma das ARAGUAÍNA: SUA LUTA E SEU ESFORÇO NA
dificuldades enfrentadas pelos araguainenses para forjar uma PRODUÇÃO DE UMA IDENTIDADE LOCAL
identidade única para si é o fato de a cidade ter sido cosmopo-
lita desde suas origens, sobretudo a partir da segunda metade Nos discursos elaborados localmente, os conflitos e as resistên-
do século XX, momento esse denominado de “modernidade cias são negados em nome de uma suposta hegemonia cultural
tardia”, no qual a crise das identidades é mais aguda, coinci- nortista e nordestina, e Araguaína é representada como a “terra
dindo justamente com a emancipação política municipal. Na acolhedora”, a “terra da união” e da “integridade social”, onde
segunda metade do século XX, vários são os fatos detectados todos vivem em perfeita harmonia. Ressalte-se, entretanto, que
que ajudam a explicar o fortalecimento do fluxo de correntes falar de uma hegemonia cultural, seja ela qual for, não significa
migratórias para esta cidade, especialmente a partir da década simplesmente descrevê-la, mas criá-la, e isto não se faz sem que
de 1970. haja conflitos, enfrentamentos, choques de interesses, tramas,
estratégias, jogo e simulações.
Resumidamente, podemos apontar a própria emancipação
política em 19581, a construção da BR-153, o fortalecimento e a As representações da cidade, que dá a todos um espaço,
modernização da pecuária através da adoção de novas tecnologias uma oportunidade para progredir, parece ser uma estratégia,
na criação de gado, dos incentivos e dos programas oficiais do uma forma de chamar a atenção do migrante para envolvê-lo,
governo federal para a região Norte do país, o garimpo de Serra fazê-lo esquecer a identidade antiga e tornar-se araguainense,
Pelada, a luta pela criação de uma nova unidade para a federação, partícipe da grande “família”, ajudando-o a construir sua his-
a implementação de uma universidade estadual na cidade etc. tória local. Isso, às vezes, acontece porque a própria condição
socioeconômica do sujeito necessita que ele vá à luta pela sobre-
No bojo de tudo isso, observa-se que o trabalho de constru-
vivência e, nessa luta, ele simula “ser”, ao procurar construir
ção de uma única identidade para Araguaína é feito na contramão
uma identidade na contramão da história, capaz de pensar em
da história contemporânea pós Segunda Guerra Mundial, pois
conformidade com o discurso que implica uma unidade social,
no momento em que ela se inicia, com a própria instalação do
que lhe é passada e que Hall (2001) define como sendo o jogo
poder municipal em 1959, as identidades vivenciam, em âmbito
das identidades, em que a identidade muda conforme o sujeito
global, uma crise profunda e de natureza desagregadora, mas
é interpelado ou representado.
não sem conflitos, resistências e traumas de toda ordem.
No editorial da Revista Municipalista “Araguaína, a Prin-
cesa do Norte”, publicada em 1986, a população araguainense,
em sua maioria, é, segundo dados estimativos do Instituto
1 Araguaína emancipou-se oficialmente em 14 de novembro de 1958, com a Lei
estadual número 2.125, e sua instalação ocorreu em 1º de janeiro de 1959. Tendo Brasileiro de Geografia (IBGE), originária de estados vizinhos
coo primeiro prefeito o Sr. Casimiro Ferreira de Oliveira. (HALUM, 2008, p. 54)

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)

da região Norte (Pará) e Nordeste (Piauí, Maranhão, Ceará, consideramos o marco que sublinha a importância da criação
Bahia etc.), Sudeste e Centro-Oeste do país (Minas Gerais, do Estado do Tocantins e atribui, tanto ao tocantinense como
Mato Grosso e São Paulo). Os nativos, os primeiros habitantes ao araguainense, uma nova identidade. Com base nos discursos
da região têm origem nas etnias indígenas. Estes dados levam destacados nas revistas mencionadas anteriormente, observa-se
a crer que Araguaína é uma cidade cosmopolita, onde homens que o movimento em prol da criação do novo Estado trouxe,
e mulheres ocupam espaços “promissores” no sentido de cons- de forma bastante acentuada, um importante fluxo migratório
truir uma vida com oportunidade, comodidade, progresso e para a cidade, para este espaço social onde os sujeitos se depa-
modernidade. A revista mostra também que Araguaína é a ram com diferentes culturas, todas formadas e transformadas
cidade que mais cresce no estado goiano nas décadas de 70 no interior da representação, isto é, de um saber particular que
e 80 do século passado, especialmente por conta da chegada produz sentido sobre as coisas do mundo. Assim, as identida-
de dezenas de novos moradores, o que provocou, na época, des que antes eram centradas, coerentes e inteiras, agora estão
um crescimento desordenado acompanhado do surgimento e deslocadas pelo processo de globalização, nos planos externos e
do acúmulo de novos problemas sociais, principalmente na internos. Com a fragmentação do sujeito, é impossível construir
zona urbana. uma identidade única para sujeitos sociais diversos vivendo na
diversidade e na adversidade da história.
Em outro artigo publicado na Revista Reportagem (1983,
p. 69), identifica-se um crescimento “benéfico” da população, No caso de Araguaína, está claro que esse processo de
proporcionado por investidores desde que se cogitou a divisão deslocamento e descentralização do sujeito que aqui também
do Estado de Goiás. Inclusive porque Araguaína foi conside- ocorre parece realizar-se, para alguns, pela invenção de sím-
rada uma das cidades “que receberam maior fluxo migratório bolos e imagens positivas que evidenciam nos enunciados a
procedente de várias partes do Estado como também de outras importância da cidade, com o objetivo de chamar a atenção
regiões do Brasil”. Exemplo disso, no mundo das empresas, foi e atrair o migrante trabalhador e empreendedor. Embora isto
a instalação, em 1979, de uma filial das Organizações Jaime deixe transparecer que não existe uma única identidade local,
Câmara na cidade, uma extensão de sua matriz instalada na percebem-se indícios na sua realidade cultural de um processo
capital de Goiás. paradoxal e contraditório, voltado para a construção de uma
única identidade na contramão da história, consequente do
Contudo, entende-se que, nesses discursos há uma
processo migratório, antes e depois da criação do Estado do
exaltação e um enobrecimento dos símbolos locais em meio à
Tocantins. Nos discursos analisados, as relações de diferença
população, revelando, assim, mecanismos que procuram dar
e de conflitos não prevalecem porque são dissimulados, o que
sustentação ao processo de construção identitária de Araguaína,
mais aparece é a imagem de uma cidade construída como um
mesmo que na contramão de sua história nesse período que
todo homogêneo e harmonioso.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)

DESTRUIÇÃO/RECONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA LOCAL


Essa perda de referenciais históricos, pautados na
memória da cidade, nos dá a estranha sensação
Outro fator que trama contra o processo de criação, fixação e de que somos ‘estrangeiros’ em nossa própria
estabilização de uma identidade para Araguaína, além da já casa. Sem a memória, não encontraremos mais
mencionada conjuntura identificada como “modernidade tar- os ícones, símbolos e lembranças que nos unem
dia”, relaciona-se à destruição/reconstrução de alguns bens do à cidade e, assim, nos sentiremos deslocados
e confusos.
“patrimônio histórico-cultural” desta cidade. Ora, uma cidade
que procura construir uma identidade para si não deve cuidar
da preservação de seus bens, sejam eles naturais, históricos Certamente que a não preservação do “patrimônio históri-
ou culturais, que são portadores de referência à identidade, à co-cultural” local tem relação com a própria ideia de progresso e
ação e à memória dos diferentes elementos étnico-culturais de modernidade, abraçada por segmentos de grupos dominantes
formadores da comunidade local? Conforme Oriá (1998, p. locais, especialmente no final da década de 1980 e início da década
139) nos alerta, a memória é fundamental na construção da de 1990, após a criação e o início da implementação do novo Estado
identidade, pois... recém-criado. O explícito ideal de modernização e o implícito ideal
de embelezamento estético do antigo norte goiano, hoje Tocantins,
foi colocado, a partir daí, como a razão de ser e o sentido de sua
[...] é a memória dos habitantes que faz com
que eles percebam, na fisionomia da cidade,
existência. Em Araguaína, isso vem se traduzindo no esforço
sua própria história de vida, suas experiências local pelo melhoramento estético (embelezamento) da cidade,
sociais e lutas cotidianas. A memória é, pois, cujos principais envolvidos nessa questão são algumas gestões da
imprescindível na medida em que esclarece administração municipal e empresários locais com a colaboração
sobre o vínculo entre a sucessão de gerações
de segmentos da sociedade civil e de alguns arquitetos locais.
e o tempo histórico que as acompanha. Sem
isso, a população urbana não tem condições
A preocupação com a construção das identidades culturais
de compreender a história de sua cidade como
seu espaço urbano produzido pelos homens
passa, imprescindivelmente, pela preservação do “patrimônio
através dos tempos, nem a origem do processo histórico-cultural” como forma de preservar a própria memória
que a caracterizou. Enfim, sem a memória, histórica local. Ademais, olhando para o processo histórico de
não se pode se situar na própria cidade, pois Araguaína, no contexto que marca o período de 1978 a 1998,
se perde o elo afetivo que propicia a relação
verifica-se um trabalho de construção de representações e
habitante-cidade, impossibilitando ao morador
de se reconhecer enquanto cidadão de direitos símbolos elaborados que justificam a ideia de progresso, de
e deveres e sujeito da história. grandeza regional e o favorecimento que esta terra tem dado
a todos aqueles que chegaram em busca de um padrão de vida

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Araguaína e a construção de uma identidade na contramão da História (1978-1998)

melhor. Ao buscar, nesses símbolos referenciais para explicar o dissimulados por toda a região. É sob esse ritmo de mudanças
processo de construção de uma identidade local, entende-se que que se desenvolve o trabalho paradoxal de construção de uma
esse processo caracterizou e adquiriu uma dimensão histórica, identidade para esta cidade no período mencionado.
social, econômica e cultural que mudou e transformou estruturas
Analisando o processo de construção de uma identidade
existentes num determinado espaço e tempo histórico. E isto
única para Araguaína, no período de 1978 a 1998, identifica-se
nos faz pensar que essa identidade foi inventada, organizada e
também nos discursos elaborados a presença de práticas ideoló-
impressa simbolicamente no mundo social, na vida cotidiana e
gicas usadas pelo poder público para legitimar a visão positiva de
no senso comum, através do discurso representado pelas lingua-
uma cidade não apenas promissora, mas, inclusive, responsável
gens escrita, histórico-institucional, política e artística da época.
do ponto de vista social, ao mesmo tempo em que delegava uma
função assistencialista em relação ao cuidado de seus adolescen-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tes, jovens e idosos através de programas assistenciais. A cidade
era vista de modo diferente das outras porque dava prioridade
Imagem tecida historicamente, Araguaína se imagina como ao bem-estar social para toda a população sem excluir ninguém.
tendo uma identidade própria na medida em que ela procura
No discurso de engrandecimento local, elencaram-se as
reconhecê-la como tal. Isto é, na medida em que os discursos
representações e as imagens dadas pelas belezas naturais, pelo
procuram legitimar as representações elaboradas sobre traços
solo rico e fértil, por aquelas elaboradas tanto no grande contexto
espaciais e culturais puramente locais.
da luta pela criação do Estado como no contexto pós-criação do
A expansão econômica e a incorporação ao capitalismo, Tocantins, com a pecuária e outras atividades produtivas demar-
especialmente a partir dos anos 1970 e 1980, em decorrência do cando as especialidades socioeconômicas da cidade. Portanto, a
Projeto Carajás, incentivaram a penetração em massa de frentes invenção de símbolos e a construção de representações servem
migratórias na região, oriundas de várias partes do país, atraídas para confirmar a grande importância da cidade, sob todos os
ainda por políticas de incentivos por parte do governo federal. pontos de vista, como aquela que acolhe e dá oportunidade para
Além dessa política de incentivo governamental, observa-se o os que desejam fazer parte desta grande “família” cultural.
Movimento de Criação do Estado do Tocantins que, durante
seu apogeu, afirmava, no discurso apresentado em Araguaína,
REFERÊNCIAS
que esta cidade seria inexoravelmente a sede do poder político
estadual, e isso ajudou a atrair investidores de outras regiões, HALL, Stuart. As culturas Nacionais como comunidades imaginadas. In.: A
identidade Cultural na Pós-Modernidade.5. Ed. Rio de Janeiro: Editora DP&A,
provocando o reforço do fluxo migratório dos Estados vizinhos, 2001. p. 47-65.
ampliando a multiplicidade de culturas e os conflitos abertos e

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

HALUM, César. Municípios tocantinenses – suas origens, seus nomes. 2008.


Palmas-TO: Provisão, 2008
O Espaço do Agronegócio no
GURGEL, Jauro. Araguaína, 40 Anos: 1958-1998. Imperatriz: Editora Ática,
Município de Araguaína (TO):
1998.
ORIÁ, Ricardo. Memória e Ensino de História. In: BITTENCOUT, Circe (Org.). O
a territorialização do capital e sua
Saber Histórico na Sala de Aula. 2. Ed. São Paulo: Editora Contexto, 1998. p. relação com a agroindústria
128-148.
REVISTA MUNICIPALISTA – Araguaína: a princesa do Norte. Goiânia, GO: Ed.
América Ltda, 1986.
Delismar Palmeira Costa
REVISTA REPORTAGEM – Goiânia: Brasília, 1983. Alberto Pereira Lopes
SANTIAGO, Claudivan. Araguaína: História e Atualidade. Prefeitura Municipal
de Araguaína, Provisão Estação Gráfica Digital, 2000.

INTRODUÇÃO

A territorialização do capital, em um determinado lugar, por


um ramo da divisão social do trabalho se dá por uma série de
elementos que contribuem harmoniosamente para o movimento
da engrenagem capitalista, segundo Harvey (2005). Partindo
desse pressuposto, pode-se verificar alguns aspectos primordiais
sempre levados em consideração pelos agentes capitalistas na hora
da realização de seus investimentos. Esses aspectos se referem
às condições oferecidas pelos lugares, que podem não ser as
mesmas em diferentes localidades, contribuindo, desse modo,
para a edificação das diferenças geográficas e para a acentuação
da divisão territorial do trabalho.

As principais condições levadas em consideração pelos


atores hegemônicos quando se trata da atratividade dos lugares
são os quadros demográficos, infraestruturais, desenvolvimento

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

social, além da própria virtualidade da extensão ecológica, O PROCESSO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO


aspectos que servirão de norte para suas estratégias. Entretanto, DE TERRITORIALIZAÇÃO DA
não se pode deixar de analisar também o contexto histórico da AGROPECUÁRIA EM ARAGUAÍNA-TO
parcela territorial de onde se busca tirar as conclusões acerca
da territorialização de um dado capital, já que a história não se Araguaína é potencialmente concebida como um polo, pois é
faz de uma só vez, sendo marca fundamental da geografização um município economicamente influente dentro do estado do
das atividades humanas. Tocantins no Brasil e com uma grande influência nas regiões
interestaduais próximas, sobretudo dos estados do Pará e do
Assim, de um modo particular, os elementos do passado
Maranhão. Muitas especificidades podem ser citadas, e o
e do presente serão guias para uma análise acerca da terri-
exemplo clássico é a grande força do setor de comércio. Isso
torialização do capital do agronegócio e da agroindústria de
sem contar a sua vasta oferta no setor de serviços, como, por
Araguaína. Dessa forma, neste trabalho, buscou-se analisar
exemplo, na área da saúde, que funciona como reforço à sua
a territorialização do capital do agronegócio no município de
polarização (GASPAR, 2002), ou mesmo em ramos como o da
Araguaína, bem como examinar a atual configuração de sua
educação em nível superior, como vem se mostrando nos últi-
agroindústria no contexto local e internacional. Para atingir tais
mos anos (GASPAR, 2011). Tais fatos contribuem assiduamente
objetivos, foi necessária uma revisão bibliográfica acerca do
para o processo de polarização de Araguaína, fortalecendo-a,
tema tanto em aspectos gerais como por meio de monografias
sem dúvida, como uma área de desenvolvimento econômico
sobre o local de estudo. Outro elemento importante da pesquisa
capitalista.
são os dados relacionados ao debate, que foram extraídos de
sites oficiais, e possibilitaram uma melhor assimilação da Nesta pesquisa, será enfocado o agronegócio presente
realidade de Araguaína no que se refere à territorialização do no município, com os riscos de não atingir a totalidade. Anali-
seu capital do agronegócio. sar-se-á, inicialmente, a agropecuária no processo histórico de
formação do município, pois há de se notar que as intenciona-
Num primeiro momento, abordar-se-á o processo históri-
lidades mercantis que envolvem esse segmento se subsidiam,
co-geográfico de territorialização do agronegócio no município;
sobretudo na cidade, o que configura a dialética cidade-campo,
num segundo, será tratada a agroindústria propriamente dita
culminando na criação de formas e funções espaciais dispostas
do município, mostrando sua dinâmica no processo produtivo;
a alicerçar a dinâmica econômico-agrária do município, sendo
por último, o agronegócio de Araguaína perante o comércio
bons exemplos os bancos, as lojas de implementos agrícolas,
nacional e internacional, enfocando suas competências na
as clínicas veterinárias, as empresas de consultorias etc. Será
produção alimentícia, sobretudo, com base na dinâmica de
esmiuçado como a agropecuária se territorializou no município
sua agroindústria.
no transcorrer do tempo, entre os anos de 1960 até a atualidade,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

mesmo que de forma sucinta, e como se encontra atualmente, Os grandes investimentos em infraestruturas iniciados no
levando em consideração o valor econômico das atividades governo de Juscelino Kubitschek, que visavam à integração do
inerentes a esse processo. território nacional através das redes, principalmente por meio da
construção de rodovias, adentraram a região Norte do país onde
ainda não havia um desenvolvimento econômico capitalista seme-
O valor é uma construção espaço-temporal
distintiva que depende do desenvolvimento de lhante ao verificado nas regiões Sudeste e Sul da nação até meados
toda uma gama de práticas espaço-temporais do século XX. Como pudemos notar, Araguaína foi beneficiada
(incluindo a territorialização da superfície da terra por essa política, aumentando sua importância e sua participação
por meio de direitos de propriedade e da formação
econômica no âmbito das relações capitalistas de produção, pois o
de Estados, bem como o desenvolvimento de
redes geográficas e sistemas de troca para o município saiu do isolamento, segundo Pereira (2013).
dinheiro e as mercadorias, incluindo a própria
Entretanto, não se pode afirmar que o município tenha tido
força de trabalho) (HARVEY, 2004, p. 149).
um desenvolvimento totalmente sadio no que diz respeito à sua
equipagem de infraestruturas verificadas na cidade, enfrentando
Araguaína, em sua história ocupacional e política quando
problemas internos de organização, segundo Pereira (2013).
ainda era conhecida como povoado “Lontra”, pertencera pri-
Atualmente, a cidade tem uma função regional bem estabelecida,
meiramente ao município de São Vicente do Araguaia, atual
mas com grandes deficiências na organização dos arranjos espa-
Araguatins. Tempos depois, passou a fazer parte do município
ciais urbanos. Como fala Pereira (2013, p. 113), “Faltam praças,
de Boa Vista do Tocantins, atual Tocantinópolis. Em 1948, a
rede de saneamento básico, asfalto com qualidade, arborização,
localidade passa a se chamar de fato Araguaína, em home-
calçadas niveladas para o Portador de Necessidades Especiais se
nagem ao Rio Araguaia, e também foi nesse mesmo ano que
locomover, falta rigor no cumprimento das normas de trânsito etc.”
passou então a fazer parte do município de Filadélfia. Em
1953, o povoado é elevado à categoria de distrito de Filadélfia A localidade, depois de certo período (1960-1990), passa a
e, finalmente, no ano de 1958, ocorreu sua emancipação polí- ter todos os pré-requisitos para a territorialização do capital fun-
tica com a criação do município de Araguaína. Atualmente, diário de forma mais incisiva do que já estava em curso. Já tinha,
Araguaína conta com apenas um distrito, que é a sua sede, à época, sobretudo a partir de 1990, uma estrutura demográfica
já que, em 1991, os distritos de Aragominas, Muricilândia e considerável que lhe garantia um excedente de mão de obra, uma
Araguanã, que antes faziam parte de sua extensão territorial, região próxima e ainda alguns lugares longínquos que lhe fornecem
se emanciparam e foram elevados à categoria de municípios, matérias-primas, como no caso do abate de animais e, ainda, uma
segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e rede de infraestruturas que lhe serve de suporte, como, por exemplo,
Estatística (IBGE). a BR-153, as redes de comunicação e informação e, por último, o

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

município tem um mercado amplo que absorve sua produção, seja da agroindústria, já que a região próxima da cidade e alguns
local ou até mesmo internacionalmente. A localidade adquire todas municípios do Pará aparecem como os grandes fornecedores de
as condições para a acumulação (HARVEY, 2005), sendo um bom gado. Araguaína, dessa forma, exerce a função de polo atrativo
exemplo a produção de carne bovina, que é exportada até para o e processador dessa produção, segundo Dias (2014).
Oriente Médio, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento
Com relação à agricultura, pode-se afirmar que sua con-
Indústria e Comércio Exterior (MDIC) (2015).
tribuição para a dinâmica econômica capitalista do município
A pecuária local se dedicou, principalmente, à criação de é quase irrelevante, inexistindo até hoje a produção de soja. O
bovinos de forma extensiva, que é, sem dúvida, o segmento de Quadro 3 mostra as principais culturas temporárias e seus últimos
atividade rural mais notável no município e na sua região próxima. números disponíveis para acesso. Talvez um dos motivos para a
Isso talvez explique o título de “Capital do Boi Gordo”. Ver-se-á inexistência de uma agricultura forte seja a preferência moldada
mais adiante que esse título também se deve à grande quantidade ao longo de vários anos pela pecuária extensiva, pois o mercado
de bovinos abatidos nos frigoríficos da cidade, podendo eles ser sempre está aquecido no âmbito nacional e/ou internacional.
de origem local ou não.
Se comparado o número de bovinos do município em
2012 com o quantitativo da população, que nessa época girava
Quadro 1 – Quantitativo dos maiores rebanhos de Araguaína (TO)
em torno de 150 mil habitantes, verifica-se uma superioridade
BOVINOS SUÍNOS GALINÁCEOS de cerca de quase 48% a mais de cabeças de gado em relação ao
ANOS MILHARES DE MILHARES DE MILHARES DE número de pessoas, ou seja, para cada habitante existia, mais ou
CABEÇAS CABEÇAS CABEÇAS menos, 1,4 cabeças de gado, à época.
2012 222.700 4.900 206.750
2013 223.985 5.164 235.473
Quadro 2 – Produção e área plantada das principais
2014 226.770 4.700 295.120 culturas temporárias de Araguaína (TO)
Fonte: Organizado pelos autores com base em informações
do IBGE – Produção da Pecuária Municipal. ARROZ FEIJÃO MANDIOCA MILHO
ÁREA ÁREA ÁREA ÁREA
ANOS PRODUÇÃO PRODUÇÃO PRODUÇÃO PRODUÇÃO
PLANTADA PLANTADA PLANTADA PLANTADA
(T) (T) (T) (T)
O Quadro 1 mostra os quantificadores dos maiores rebanhos (HA) (HA) (HA) (HA)

2011 750 1.275 360 234 790 17.380 1.200 2.160


do município, notando-se a progressão contínua nos últimos anos 2012 800 1.464 390 254 420 7.560 1.100 2.035
do aumento do rebanho bovino, isso a título de informação atual. 2013 700 1.365 320 208 790 11.850 1.000 1.870

Embora não sejam números tão exorbitantes se comparados a 2014 450 855 200 125 700 15.400 800 1.520

outros municípios do estado que estão no topo, não significa dizer Fonte: Organizado pelos autores com base em informações
do IBGE– Produção Agrícola Municipal.
que o abate de gado de corte não seja a atividade mais relevante

166 167
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

O Quadro 4 mostra as principais culturas permanentes, a criação do Sindicato Rural de Araguaína (SRA), que foi um
que, muito embora não sejam tão significativas economicamente grande passo para a expansão das atividades pecuaristas e da
para o município, contribuem também para a variação da produ- agricultura no município. Para Dias (2014, p. 67), “[...] a principal
ção e, de modo particular, servem para atender o mercado local, função do SRA é fomentar a valorização econômica, política e
que, apesar de ser alvo de produtos advindos de fora (mercado cultural da pecuária em Araguaína e região [...]”. O sindicato
local), ainda persiste mesmo que de forma pequena e, às vezes, fora criado oficialmente em 1967, quando o município tinha nove
de modo tradicional. anos de emancipação política, mostrando sua vocação desde o
início para as atividades do setor primário. O referido sindicato
Juntamente com as culturas temporárias, as culturas perma-
é um dos atores responsáveis pela organização que viabiliza a
nentes abastecem, em pequenas proporções, alguns supermercados
territorialização do capital no campo araguainense. Atualmente,
que recebem produtos de gênese camponesa em sua quase que
este sindicato é nada mais que um dos disseminadores das ideias
totalidade para a revenda. As feiras livres também são lugares
elitistas da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que
onde essa produção é comercializada, sendo a feira da Praça
visa ao fortalecimento progressivo da monocultura e à precari-
do Mercado Municipal a mais antiga e tradicional da cidade. O
zação da agricultura camponesa até sua ruína. Isso fica evidente
programa “Compra Direta”, gerido pela Prefeitura Municipal,
nas ações desse sindicato sempre conectadas aos interesses dos
também participa na aquisição desses produtos e os destina aos
grandes fazendeiros em detrimento dos interesses dos campo-
programas assistenciais de distribuição de cestas básicas.
neses da região, sendo exemplos os leilões, as festas elitistas e
as propagandas em meios informacionais.
Quadro 4 – Dados das principais lavouras permanentes de Araguaína (TO)

ÁREA VALOR DA
A AGROINDÚSTRIA DE ARAGUAÍNA (TO)
PRODUTIVIDADE
COLHIDA PRODUÇÃO
LAVOURAS 2014
2014 2014
(KG/HA)
(HA) (REAIS) Diante do que já foi exposto, abordar-se-á, a partir de agora, a
BANANA 145 6.897 900.000 agroindústria araguainense, um segmento de grande notoriedade
COCO-DA- na economia local. Sua configuração se faz, principalmente,
118 15.297 1.354.000
BAÍA
pelo ramo dos frigoríficos, sendo a exportação de carne a maior
LARANJA 81 15.802 640.000
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados
fonte de receita na balança comercial com o exterior, tanto de
do IBGE – Produção Agrícola Municipal. forma restrita ao agronegócio ou mesmo levando em conta todo
o restante da produção do município de um modo geral. Deve-se
No contexto histórico, outro intensificador do processo ter em mente que a agroindústria está umbilicalmente ligada às
de territorialização da agropecuária que pode ser analisado é atividades do setor primário, muito embora faça parte do setor

168 169
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

secundário do processo produtivo, tal fato se devendo à existência O Quadro 5 apresenta uma noção de quanto a agroin-
daquilo que os autores denominam “complexo agroindustrial”, dústria frigorífica é significante para a economia financeira
uma espécie de casamento entre a indústria e a agropecuária, do município, pois apenas as carnes congeladas já somavam,
segundo Mazzali (2000). Essa é uma característica marcante da em 2015, o equivalente a 80,21% do total das exportações
agricultura capitalista. da localidade, isso porque se utilizou apenas essa linha da
produção. Já as carnes frescas ou apenas refrigeradas e miu-
Para Mazzali (2000, p. 26), “O termo ‘Complexo Agroin-
dezas somavam mais 14,46% neste mesmo ano, ou seja, as
dustrial’ designaria o próprio modelo através do qual se processou
primeiras (carnes congeladas) juntamente com estas últimas
a modernização da agricultura, cuja dinâmica esteve na própria
(carnes frescas, refrigeradas e miudezas) somam quase 95% do
integração técnica e de capitais agricultura-indústria”. Assim,
total das exportações de Araguaína para o comércio exterior.
tem-se uma união de dois segmentos antes dicotômicos e que agora
Esta produção está sempre ligada à agroindústria frigorífica,
fazem dessa articulação uma fonte de acumulação de capital e,
sobretudo com relação aos bovinos, com apenas uma pequena
por conseguinte, de criação de uma elite, qual seja, de uma classe
parcela de suínos.
social abastada que se dedica aos dois ramos em polimerização
em detrimento da classe assalariada e do sujeito social camponês. A produtividade considerável em destaque não se deve
somente àquilo que se chama área territorial do município, mas
Como é possível observar no Quadro 5, o setor de produção
também à ação de sua região próxima, ou seja, aos municípios
frigorífica de bovinos tem grande destaque nas exportações do muni-
de seu entorno. Entretanto, ainda assim, essa produtividade não
cípio. Araguaína exporta para o exterior, em sua totalidade, apenas
seria tão hegemônica dentro do estado do Tocantins, caso Ara-
carne bovina, não havendo outros produtos na balança comercial.
guaína, através de sua especialidade (processamento de carne
bovina), não extrapolasse os limites daquilo que se denomina
Quadro 5 – Números das exportações de carne bovina
região próxima. O município intercambia com outras cidades do
congelada nos últimos anos em Araguaína (TO)
estado do Pará, principalmente, para manter sua produção de carne
QUANTIDADE RENDIMENTO
PARTICIPAÇÃO bovina constantemente forte. Não seria isso uma ruptura com
TOTAL NAS
ANOS EM EM
EXPORTAÇÕES a conceituação tradicional de região? Sim, pois, na atualidade,
TONELADAS US$
(%) para fazer parte de uma zona de influência não precisa necessa-
2015 24.135.465 89.075.400 80,21 riamente estar próximo, sendo as redes as grandes responsáveis
2014 23.663.672 104.026.613 81,10 por essa articulação. As redes, por seu turno, são apenas uma
2013 22.232.180 89.997.838 76,38 parte do espaço banal.
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados do MDIC
– Balança Comercial dos Municípios: 2013, 2014, 2015.

170 171
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

O AGRONEGÓCIO DE ARAGUAÍNA-TO NO nômicas foram conseguidas ao longo do tempo, vários países se


QUADRO NACIONAL E INTERNACIONAL dispuseram a comprar a carne bovina produzida, tanto do município
de Araguaína quanto do estado de um modo geral. Nesse aspecto,
O município de Araguaína tem uma expressividade econômica podemos citar o caso dos Estados Unidos da América que, em 2015,
relevante, que o faz promover uma forte batalha pela polarização, passaram a fazer parte dos países que se dispuseram a comprar
juntamente com Marabá (PA) e Imperatriz (MA), e isso se deve carne do estado do Tocantins, de outros 12 estados e do Distrito
muito ao setor terciário, que faz do lugar um celeiro de oportuni- Federal. Nessa ocasião, o Ministério da Agricultura firmou essa
dades para aqueles que buscam vender sua força de trabalho, uma parceria, cujas negociações já duravam cerca de 15 anos1.
condição do capitalismo. Entretanto, a localidade se destaca também
Entretanto, alguns entraves ainda existem no que concerne
pelas atividades do agronegócio, sobretudo em relação à agroin-
à liberação das exportações da carne bovina, no caso do Tocan-
dústria frigorífica, sendo esse segmento responsável pelas maiores
tins, para alguns países (em virtude, principalmente de questões
articulações do município com o mercado nacional e internacional.
sanitárias), como, por exemplo, a Arábia Saudita, que, no ano
No que diz respeito ao mercado interno, a agroindústria de 2016, habilitou apenas três frigoríficos em todo o estado para
frigorífica bovina tem uma dinâmica um tanto tímida, pois seu lhe fornecer carne, entre eles, o frigorífico Minerva, localizado
alvo principal é, sem dúvida, o mercado externo. Todavia, outras em Araguaína2. O Quadro 6 dá uma dimensão dos principais
relações marcam essa interação com o cenário nacional, tais parceiros comerciais de Araguaína do mercado externo.
como a importação de produtos químicos e sementes, já que, no
município, inexiste uma indústria voltada para esses segmentos. Quadro 6 – Principais países importadores da carne
Outro aspecto é o da dependência de maquinarias advindas de processada no município de Araguaína (TO) em 2015
diversas partes do território nacional, como, por exemplo, trato-
PAÍSES PARTICIPAÇÃO EM
res, colheitadeiras, câmaras frias, esteiras etc. Por último, mas DESTINATÁRIOS
TOTAL EM US$
PORCENTAGEM (%)
não menos importante, tem-se a importação de matérias-primas 2015
que se faz bem evidente, sendo o maior exemplo o da própria
Egito 23.238.571 20,93
indústria frigorífica local, que compra bovinos de áreas distantes,
Rússia 22.924.878 20,64
principalmente do estado do Pará. Assim se faz a interface do
agronegócio local com o cenário nacional.
1 Cenário Tocantins. Disponível em: http://cenariotocantins.com.br/principal/tocan-
Enfocando ainda a indústria frigorífica araguainense, mas tins-sem-aftosa-ha-15-anos-comemora-os-produtores-e-o-governo/>. Acesso em:
7 abr. 2016.
agora em conjunto com as demais indústrias do estado, em relação
2 Portal O Norte. Disponível em: <http://www.portalonorte.com.br/estado-76818-to-
ao comércio exterior, pode-se dizer que muitas conquistas eco- cantins-e-autorizado-a-exportar-carne-aos-estados-unidos.html>. Acesso em: 7
abr. 2016.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

PAÍSES PARTICIPAÇÃO EM
ano de 2015, foi exportada para a África 27,90% da produção,
TOTAL EM US$
DESTINATÁRIOS PORCENTAGEM (%) principalmente para países do norte africano, onde predomina o
China 15.695.805 14,13 Islamismo. No mesmo bojo e no mesmo ano, foi exportada para
Irã 15.082.980 13,58 o Oriente Médio 20,84% da produção, significando que quase
a metade da produção de carne de Araguaína está destinada ao
Chile 9.905.599 8,92
mercado de países de orientação mulçumana (MDIC, 2015).
Argélia 5.278.505 4,75
Vietnã 4.416.287 3,98 Desse modo, acredita-se que a dinâmica do agronegócio
local se dá mais precisamente pelas articulações da agroindús-
Líbano 3.136.435 2,82
tria, principalmente pelo ramo dos frigoríficos. Sua relação com
Emirados Árabes
Unidos
2.839.364 2,56 o mercado interno acontece não só pela venda de carne, mas,
principalmente, pela dependência de meios de produção, maqui-
Malásia 2.139.732 1,93
narias e matérias-primas vindas de outras partes do território,
Outros Países 6.388.820 5.76
que viabilizam o processo produtivo, que, por sua vez, se dedica
Total 111.046.968 100
a atender as demandas do mercado externo.
Fonte: Organizado pelos autores com base nos dados do
MDIC – Balança Comercial dos Municípios: 2015.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O município exporta para o exterior, em sua totalidade,
uma significativa parcela da carne processada em seus frigorí- Sendo assim, atualmente, o município de Araguaína se encontra
ficos, inexistindo nos dados oficiais qualquer outro produto de inserido no processo de reprodução do capital do agronegócio.
exportação que não esteja relacionado à agroindústria frigorífica, Isso se deve ao processo de territorialização desse capital que,
sendo que a maior porcentagem, quase 100% da produção, se por seu turno, não ocorreu de forma emergencial, mas ao longo
resume a carne bovina (Quadro 5). Esta produção está sendo de décadas, tendo servido para massificar essa atividade no
direcionada principalmente para o exterior, sendo o consumo cotidiano econômico da localidade por meio de práticas de ati-
local não condizente com o quantitativo produzido. vidades econômicas, tais como a pecuária, o abate de bovinos e
o comércio de implementos agrícolas, por exemplo.
O Quadro 6 mostra a considerável parte da produção de
carne araguainense exportada para países do norte da África e Acredita-se também que esse processo de territorialização
asiáticos, em sua maioria de religião mulçumana, ou seja, exigem não teria alcançado êxito sem as devidas contribuições das estru-
que, no processo produtivo, algumas normas sejam cumpridas, turas estatal, econômica e política, uma vez que, em Araguaína,
como regras de higiene e rituais religiosos na hora do abate. No a agropecuária geralmente está associada a pessoas que são,

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS O Espaço do Agronegócio no Município de Araguaína (TO)

ao mesmo tempo, atores econômicos e atores políticos. Assim, INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Produção da
Pecuária Municipal:2012, 2013, 2014. Disponível em: <http://www.ibge.gov.
verifica-se que a agroindústria é uma importante vertente dessa
br/home/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016.
forma de reprodução do capital no sítio urbano de Araguaína,
______. Produção Agrícola Municipal:2011, 2012, 2013, 2014. Disponível em:
pois são notáveis os empreendimentos inerentes a esse segmento, <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016.
visto que abriga inúmeros frigoríficos, os maiores responsáveis MAZZALI, Leonel. O Processo Recente de Reorganização Agroindustrial: do
pela manufatura da carne bovina produzida no município e em complexo à organização “em rede”. São Paulo: Editora UNESP, 2000. (Coleção
Prismas).
outras regiões.
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR
(MDIC). Balança Comercial dos Municípios:2013, 2014, 2015. Disponível em:
Conclui-se que esses conjuntos de atividades desenvolvidas
<http://www.mdic.gov.br/sitio/>. Acesso em: 28 de março de 2016.
em Araguaína só contribuem para a acentuação das desigualdades
PEREIRA, Aires José. Leitura de Paisagens Urbanas:Um estudo de Araguaína
entre os homens. O fortalecimento da relação patrão-empregado – TO. 2013. 312 f. Tese (Doutorado em Geografia) -Universidade Federal de
e a subjugação camponesa conduzem diretamente à maior contra- Uberlândia, Uberlândia, 2013.
dição desse modo perverso de produção, que é o fato de a riqueza
ser socialmente produzida, enquanto sua apropriação se dá de
forma individual pelo empresário. O capitalismo se desenvolve
segundo essa contradição, que se evidencia em Araguaína de
forma clara pela territorialização do capital do agronegócio.

REFERÊNCIAS
DIAS, Reges Sodré. As Atividades do Agronegócio em Araguaína: entre
espacialidades urbanas e novas/velhas desigualdades sociais. 2014. 79 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação Licenciatura em Geografia)
-Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2014.
GASPAR, Jacira. Araguaína e sua Região: saúde como reforço da
polarização. 2002. 176 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) -Universidade
Federal do Pernambuco, Recife, 2002.
______. O Papel do Ensino Superior em Araguaína – TO: o que dizem os
estudantes e os professores. 2011. 261 f. Tese (Doutorado em Educação) -
Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011.
HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. Tradução: Carlos Szlak, São
Paulo: Annablume, 2005.
______. Espaços de Esperança. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria
Stela Gonçalves, São Paulo: Loyola, 2004.

176 177
Histórias de vida das empregadas
domésticas de Araguaína – TO:
entre lutas, violências e resistências

Gabriela Silva Nogueira


Olivia Macedo Miranda de Medeiros
Euclides Antunes de Medeiros

INTRODUÇÃO

O presente capítulo se propõe a conhecer e problematizar a história


de vida das empregadas domésticas do município de Araguaína,
Tocantins (TO), sob a perspectiva das próprias trabalhadoras,
ou seja, a partir de suas experiências e percepções de mundo.
Além disso, buscou-se compreender seu cotidiano, vivências e
relações, bem como as práticas de trabalho, marcados por lutas e
opressões. Considerando a especificidade do objeto, destacamos
que o recorte espaço-temporal desta investigação é a cidade
de Araguaína (TO), a partir dos anos de 1990. Localizada no
Norte do Tocantins, a cidade de Araguaína é considerada um
dos municípios mais importantes do estado e da Região Norte do
país. Por outro lado, e talvez em consequência desse crescimento
econômico fomentado pelas frentes pioneiras, Araguaína também
se caracteriza por ser uma cidade marcada pelo trabalho escravo
e por diversas outras violências contra trabalhadores, inclusive
contra trabalhadoras domésticas (LOPES, 2017).

179
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína – TO

No contexto mais amplo, o trabalho doméstico no Brasil Segundo Cota (2016), exercido em sua maioria por mulheres
tem seu marco histórico desde o período colonial, mais precisa- negras escravizadas até o século XIX, o trabalho doméstico tanto
mente no período escravocrata, no qual a atividade doméstica é um trabalho, quanto um ofício, sendo marcado por processos de
era também trabalho das pessoas escravizadas, mas sendo dominação e estigmatização. Atualmente, o trabalho doméstico
esse exercido principalmente pelas mulheres negras. Fátima da está sendo relacionado com as opressões do capitalismo. Heleieth
Silva (2017, p. 414), em seu texto intitulado Ensaio da história Saffioti (1978) destaca que o trabalho doméstico é considerado
do trabalho doméstico no Brasil: um trabalho invisível, afirma uma atividade à margem do capitalismo: trabalho improdutivo,
que o trabalho desenvolvido pela empregada doméstica era “de sendo este considerado um espaço de reprodução e não produ-
mucamas, amas de leite, costureiras, aias, pajens, cozinheiras, ção, ou seja, uma forma não-capitalista de trabalho. Contudo, ao
também cuidavam dos filhos dos senhores, transmitiam recados, considerarem o trabalho doméstico como excluído das relações
serviam à mesa, recebia as visitas e etc.”. Por outras palavras, a de produção capitalista, operam-se duas situações: de um lado
inclusão dessas pessoas escravizadas dentro das casas grandes a extração da mais-valia dessas trabalhadoras é ampliada; de
dos engenhos, tinha como finalidade desenvolver atividades outro lado, as opressões sofridas se aprofundam ao articular às
como arrumar a casa, lavar as roupas, cozinhar, dar o banho dimensões de exploração a dominação.
naqueles que integravam a família dos senhores de engenho,
Quando analisamos as articulações entre exploração e
dentre outros afazeres que caracterizavam o início do trabalho
dominação dentro do sistema capitalista, é necessário discu-
doméstico no Brasil.
tirmos também as opressões interseccionais vivenciadas por
Na obra Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, essas trabalhadoras domésticas, opressões essas marcadas
trajetórias e regulamentação, os autores reiteram que: por recortes interseccionais tais como raça, etnicidade, idade,
classe social e gênero. De fato, as opressões interseccionais
surgem desde o processo de colonização do Brasil, mostrando
[...] Entretanto, as relações de subordinação e
dependência impostas pelos senhores daquele também os diferentes eixos de poder e dominação e até mesmo
período não eram uma exclusividade das escravas as violências simbólicas existentes no trabalho doméstico;
de casa, era um tipo de relação que recaía sobre ou seja, as opressões interseccionais estão presentes histo-
todos os tipos de criados, mesmo que fossem
ricamente na sociedade brasileira evidenciando seu caráter
estes criados libertos, pobres livres negros,
mestiços ou a minoria branca. É importante desigual e violento.
ressaltar que até meados do século XIX, todo o
Entretanto, Helena Hirata (2014), citando Sirma Bilge
trabalho doméstico era provido pela escravidão,
fosse no campo ou na cidade (COTA, 2016, p. 01 (2009, p. 70), destaca que “o enfoque interseccional vai além do
apud VIECELI; WUNSCH e STEFFEN et al., 2017, p. 7). simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opres-

180 181
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína – TO

são que opera a partir dessas categorias e postula sua interação


na produção e na reprodução das desigualdades sociais”, pois [...] A memória e o relato oral sempre são uma
questão de busca de sentido, por isso não
o conceito se constitui em uma ferramenta indispensável para
utilizo este termo “testemunha” porque, do
postular transformações sociais. Ou seja, pensar as opressões meu ponto de vista, implica uma relação de
interseccionalmente é postular essa abordagem também como apenas recepção e não é o que ocorre, porque
um instrumento capaz de construir estratégias de resistência aos a memória não é um depósito de fatos. A
sistemas e estruturas de dominação. Desse modo, para analisar recepção em si é uma interpretação, então
sempre há interpretação, que está sempre
e compreender a história de vida dessas mulheres empregadas
se processando, em movimento constante
domésticas de Araguaína (TO), procuraremos abordar intersec- (PORTELLI, 2001, 2002, p. 205).
cionalmente suas lutas, o que permitirá ampliar a compreensão
sobre suas condições e jornadas de trabalho e também sobre os
Para Portelli, a História Oral permite compreendermos
desafios que elas enfrentam diariamente. Além disso, o intuito
os processos por meio dos quais a memória é constantemente
deste trabalho é visibilizar as disputas em torno da estigmati-
reconstruída e reinterpretada pelos sujeitos e que, por estar em
zação e da desigualdade que determinam o lugar social dessas
movimento, se faz sempre dinâmica e atual. Além disso, o uso
mulheres dentro das relações e hierarquizações sociais na cidade
da História Oral, como método de investigação, permite-nos
de Araguaína.
apreender os relatos dessas mulheres empregadas domésticas
No caso das empregadas domésticas de Araguaína, suas a partir da sua ótica de vida, pois os relato orais, portadores de
resistências são visibilizadas quando escutamos seus relatos memórias, são instrumentos que, de certa forma, “privilegia[m]
de memória e suas experiências com ouvidos sensíveis às suas a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a
lutas. A memória é um conceito central em nossa análise por história oral ressaltou a importâncias de memórias subterrâneas
possibilitar que nos aproximemos das relações produzidas que, como parte integrante das culturas minoritárias e domi-
e vividas no passado, pois, conforme Pierre Nora (1993), a nadas, se opõem, à “memória oficial” (POLLAK, 1989, p. 4).
memória seria um elo vivido no eterno presente, ou seja, por Desse modo, a História Oral se constitui um instrumento que
meio da memória trazemos ao palco da história um passado/ pode contribuir para revelar as memórias e as experiências das
presente preenchido de lembranças marcadas por vivências ora empregadas domésticas, pois ela evidencia as possibilidades de
amargas e dolorosas, ora alegres e felizes. As formas de acesso reconstrução das vivências humanas que não foram registradas
à memória são diversas, nesse trabalho optamos por abordá-la em documentos escritos e/ou oficiais.
a partir da metodologia da História Oral, com procedimentos
de história de vida. Alessandro Portelli, em História oral e
Memórias, observa que:

182 183
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína – TO

TRABALHO DOMÉSTICO: INFÂNCIAS E anos, autodeclara-se parda e não tem filhos. Também nascida
ADOLESCÊNCIAS VIOLENTADAS em Araguaína (TO), começou a trabalhar como doméstica aos
15 anos na cidade de Aragominas (TO), porém aos 20 anos veio
Foram entrevistadas três mulheres1 que exercem a profissão para Araguaína trabalhar como doméstica em uma residência
de empregada doméstica na cidade de Araguaína - Tocantins, onde, além de cuidar da casa, ainda cuidava dos filhos do casal.
às quais foram atribuídos os seguintes nomes fictícios: Kássia,
Essas mulheres saíram de casa ainda meninas para tra-
Olga e Beta. Suas idades variam entre 51 e 59 anos, as três
balharem como babás, lavadeiras, passadeiras; exercendo o
são solteiras e apenas uma das entrevistadas não possui filhos,
trabalho de empregadas domésticas, partilhavam da obrigação
no caso, Beta. A primeira entrevistada, Kássia, de 52 anos, se
de ajudar no sustento de suas famílias. De fato, na vida dessas
autodeclara branca e tem uma filha. Nascida no município de
mulheres, o trabalho doméstico veio acompanhado do trabalho
Araguaína, cidade pertencente ao antigo norte goiano até 1988,
infantil, pois, desde muito cedo, elas se viram obrigadas a seguir
quando o estado de Goiás foi dividido, criando-se o atual estado
esse caminho. Sobre o trabalho doméstico infantil, é importante
Tocantins; morou até os 15 anos no município de Aragominas
registrar que as memórias dessa época, quando essas mulheres
(TO). Kássia começou a trabalhar como doméstica aos 14 anos.
tinham entre os 10 e 15 anos, são lembranças marcadas pelo
Após o seu primeiro trabalho em Aragominas, veio trabalhar em
paulatino afastamento do lar e do aconchego materno, como
Araguaína na casa de um bancário; na sequência, foi trabalhar
podemos observar nos seguintes relatos:
na casa de uma mulher, saindo em 2015, e hoje trabalha em uma
outra residência há mais de sete anos.
Ih, eu comecei foi cedo, comecei com… com uns
A segunda entrevistada, Olga, de 56 anos, autodeclara-
dez, onze anos, porque minha mãe passava muita
-se preta e também possui uma filha. Nascida no município de dificuldade aí ela arrumava pra gente trabalhar
Araguaína (TO), começou a trabalhar com 12 anos na casa dos com os vizinho. A vizinha do lado, a gente
vizinhos de sua família, situação na qual lavava e passava roupas lavava roupa pra ela, carregava água, porque a
gente carregava água pra muito longe… e aí foi
e cuidava da casa, dentre outras atividades. Aos 17 anos, foi para
indo né? Lavava roupa, passava… Aí comecei
Brasília (DF) para trabalhar como empregada doméstica e cuidar trabaiando em casa mais longe, mais distante e
de um bebê. Hoje, aos 56 anos, ainda trabalha no mesmo ofício, aumentando mais o serviço né?… porque antes
pois, devido ao atraso em assinar a carteira de trabalho, ainda era só o básico, aí fui lavando roupa, passando,
cuidando de casa aí… até quinze ano.
não conseguiu se aposentar. A terceira entrevistada, Beta, de 57

Quando eu era mais nova, minha mãe pegava


1 Com o intuito de preservar a imagem e a integridade das entrevistadas, os nomes a roupa nas casas e a gente ia lavar no rio, no
adotados neste trabalho são fictícios.

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que essa atividade seja exercida majoritariamente por mulheres.


Lontra… Minha mãe lavava roupa o dia todo, Como esclarece Soratto (2006):
tinha que esperar até secar, lavava de dia e
passava de noite no ferro de brasa... (OLGA,
entrevista oral, fevereiro de 2022).
[...] No Brasil, o trabalho doméstico remunerado é
uma realidade muito concreta, o que significa que
Olga registra o trabalho doméstico em sua memória como uma
milhares de mulheres, elas são maioria absoluta na
série de atividades que acontecem desde sua infância. Evidencia um profissão, sobrevivem e garantem o sustento de
momento de preparação das meninas para a assumir a função de suas famílias dedicando-se aos serviços domésticos
empregada doméstica: sua mãe, por exemplo, a levava ao rio para remunerados dia após dia, ano após ano, geração
após geração. (SORATTO, 2006, p. 13).
acompanhá-la nas atividades de lavação de roupa, como se aquele
momento, como a própria Olga reconhece em sua fala, fosse a fase
anterior de sua entrada no universo do trabalho infantil. Quando Sem dúvida o trabalho doméstico se traduz como um
iniciava sua experiência no trabalho infantil, ela acontecia em um instrumento de exploração que atinge as mulheres, sobretudo as
ambiente próximo, as meninas começavam a trabalhar na casa dos mulheres negras, desde a infância; de um lado, fornecendo mão
vizinhos exercendo tarefas que os pais consideravam leves, ou seja, de obra subalternizada para o mercado criminoso do trabalho
tarefas que os pais consideravam que as filhas, ainda crianças, con- infantil; de outro lado, construindo uma tradição nefasta que
seguiam realizar. A circunscrição espacialização do trabalho é um mantém gerações e gerações de mulheres presas no círculo dos
fator decisivo nessa fase, visto que, quanto mais criança, mais o local estigmas e violências dessa atividade.
das tarefas era restrito à vizinhança, ou seja, mais perto do olhar e No caso de nossa pesquisa, todas as entrevistadas narram
do cuidado da mãe, porém à medida que cresciam, começavam a como eram duras suas jornadas de trabalho, bem como as dificulda-
trabalhar em lugares mais distantes e sem o cuidado materno. Para des que enfrentavam. Kássia relata ter saído de casa para trabalhar
Olga, o afastamento definitivo do olhar de sua mãe se deu aos 15 como doméstica aos 16 anos, pois precisava ajudar em casa. Em
anos, quando foi trabalhar em uma residência distante de sua casa, suas palavras: “[...] assim, minha mãe trabalhava na roça, papai
pois a situação de vulnerabilidade de sua família exigia. trabalhava na roça e era muitos irmãos, ou seja, eles não conseguia
Percebe-se, desse modo, que, devido as necessidades ajudar; tipo… comprar roupa, calçado. Dava o básico: alimentação,
enfrentadas por sua família, Olga teve a necessidade de ajudar remédio e a casa pra morar…” (OLGA, entrevista oral, fevereiro
sua mãe e o meio para isso acontecer, na época, foi através do de 2022). Assim como no relato de Olga, Kássia destaca existir
trabalho doméstico, visto que, por pertencer às camadas popula- um imperativo em sua vida desde cedo: “a necessidade de ajudar
res, suas alternativas eram poucas. Acrescenta-se a isso o fato de em casa”, dando-se início à sua vida no trabalho doméstico. Ela

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ainda narra que sua primeira experiência, aos 14 anos de idade, são marcados desde a infância pela exaustão e ela reverbera em
foi péssima. Começou na casa de um policial, cuja família era mentes por meio dos estresses físico e mental.
constituída por mulher e três filhos, porém ficou nessa residência
Ainda sobre Kássia, após sair desse trabalho, ela conseguiu
pouquíssimo tempo: “fiquei uma semana lá, foi péssimo, porque
outro serviço como doméstica, porém não seria em sua cidade,
lava louça era no córrego, eh… lavava roupa tudo era no córrego
perto de sua família. Agora, ela teria que migrar de Aragominas,
assim, foi ruim!”. (KÁSSIA, entrevista oral, fevereiro de 2022).
onde residia, para Araguaína, perfazendo uma distância de 35,52
Quando a interroguei sobre o porquê de o trabalho ser ruim, km entre as duas cidades. Trabalharia e moraria com uma outra
ela foi enfática: “porque as costas dói, tinha que ficar envergada família, para a qual além de realizar todo o trabalho da casa teria
sentada numa taba, não era igual lavar louça na pia, além da patroa que cuidar dos filhos do casal. A entrevistada relata que viveu
que era muito exigente queria tudo brilhando.”. Ou seja, articulada dias de horrores nessa época, agora já com 16 anos. Ela narra que
às dificuldades enfrentadas por ter que trabalhar ainda menina e dis- sofreu diversos tipos de violências, que ocorriam principalmente
tante de casa, havia a exaustão provocada pela exploração excessiva: quando se recolhia para dormir, após um longo dia de trabalho:
ter que lavar às margens do rio reforçava os níveis de exploração;
a repetição das tarefas e as demandas e caprichos da patroa, que
Um dia eu acordei com ele me tocando, eu
“queria tudo brilhando”. Todos esses fatores juntos foram decisivos fiquei uma semana não precisou de mais de
para Kássia abandonar o trabalho nessa residência logo no início. um dia… Toda noite ele ia no quarto, nas outras
No relato de Olga, a partir de sinais expressos nas entonações de vezes eu só via ele nu, ele não tocava em mim,
sua voz, foi possível perceber como esse primeiro local de trabalho mas aí numa outra vez eu acordei ele tava me
tocando… Eu tinha que dormir de collant, porque
foi estressante para ela: a palavra ruim, destacada com ênfase em eu achava que assim ia impedir dele tocar em
sua fala extrapola o sentido básico de algo desagradável e nos leva mim. Um dia acordei com ele tocando na minha
a refletir sobre o grau de opressão e exploração a que crianças e genitália, quase morri…”. (KÁSSIA, entrevista
adolescentes são submetidas. oral, janeiro de 2022).

De fato, as tarefas domésticas não poupam o corpo, pois


A violência vivida por Kássia deixou marcas. Ela, além de
estas demandam esforço físico para sua realização: sejam as mãos
lidar com o medo do novo, com a nova realidade de cuidar exausti-
que se articulam para passar, cozinhar, para lavar; seja a coluna,
vamente de todas as tarefas domésticas de uma família, distante da
que é demandada para abaixar e levantar, para esfregar e lavar
proteção de sua mãe, teria que enfrentar e superar o abuso sexual
sentada em uma tábua desconfortável nas margens de um córrego,
infanto-juvenil já nos primeiros momentos de sua jornada como
como no caso de Kássia. Portanto, os corpos dessas mulheres
empregada doméstica. Durante sua narrativa, o pesar em seu olhar,
algo que as entrevistas transcritas não alcançam, aparece como

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dor e angústia de reviver a experiência com o patrão abusador.


Felizmente, para Kássia, o desfecho desse momento, partilhado ele: moço bota uma porta aqui porque eu fico
com medo, que entra bicho aqui dentro, mas na
por tantas meninas e mulheres, se deu quando ela abandonou a
verdade o bicho era o fio dela. Aí ela foi e falou
residência no dia seguinte. Outro caso de abuso sexual infanto-ju- e disse: mas pra que essa porta? tá é com medo
venil foi vivenciado por Olga, também aos 16 anos. Ela narra que: é? Eu digo eu tenho medo mesmo de dormir
com a porta aberta. “Bota uma porta aí que ela
é medrosa, isso aí é medrosa!” Aí mandou botar a
Dum pessoal que trabalhava aqui perto do porta. Mais o meu medo não era dos bicho, era do
armazém Paraíba (na década de 80). Aí o filho fi dela entrar. Aí depois ele parou né. Eu ainda fiquei
dela eu tava dormindo num quartim, eu era foi… ixi eu passei minha adolescência todinha lá.
menor devia ter uns 16 por aí. Aí eu tava num Ele também não bateu na porta mar não. E tinha
quartinho lá no fundo dormia num quartinho vez que eu tava na cozinha e ele chegava e vinha
poder ficava lá no fundo e não tinha porta, a passando a mão em mim aí eu já falava pra ele
porta um negócio que a gente botava lá. Aí de né, e ele hum hum… Ele não parava, aí depois ele
noite eu acordei com ele lá na berada da cama, parou. (OLGA, entrevista oral, fevereiro de 2022).
aí eu falei pra ele que eu ia chamar a mãe dele
aí ele foi e falou que aquilo ali acontecia direto,
a mãe dele sabia. [Questionei se ele a tocou]: Eu Esse relato de Olga, como a maioria dos relatos das entre-
acordei com ele passando a mão em mim, eu vistadas, é marcado por violências físicas e simbólicas, porém,
acordei assustada né, nunca tinha acontecido como discorre Portelli (1997), a entrevista não comporta apenas
aí ele… Foi e falou pra mim não gritar “Fica
palavras, mas também gestos e comportamentos. Assim, durante o
calada!” aí ele veio pra passar a mão em mim
de novo aí eu falei não! Eu digo oh eu vou falar
relato de Olga, tanto nessa quanto nas outras experiências narradas,
pra sua mãe, a mãe dele sabe que ele vem aqui ela emitia uma risada entrecortada enquanto narrava sua vida.
nesse quarto todo dia. Eu falei aqui? “É você Esse riso nervoso me intrigava e, embora não tenha conseguido
não precisa nem se preocupar em falar pra ela lhe perguntar porque ria enquanto narrava tanto sofrimento, fui
porque ela sabe que eu venho aqui. Aí lógico
compreendendo no decorrer da transcrição da entrevista que sua
que eu não ia contar, porque que eu ia falar?
risada, a cada relato sofrido, não era apenas nervosismo, mas um
modo que ela encontrou para esconder no fundo de si suas dores,
Quando questiono se foi apenas essa vez, Olga conta: de não deixar transparecer o quanto aquilo a afetou e afeta. Sua
risada era uma risada que surgia sob o peso de lembranças car-
regadas de humilhação e que traziam à tona inúmeras emoções
Não, ele tentou duas vez, aí da outra vez eu fui
e falei pro home que trabalhava lá; eu falei pra que ela preferia não reviver – a experiência de uma mulher, quase
menina, sozinha em um mundo de opressão e violência.

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Essa solidão, silenciada, que vem à tona com as entrevis-


[...] A escolha por ir embora sem denunciar
tas, especialmente através dos relatos de abusos, é partilhada indica o quanto está radicada nas trabalhadoras
por todas as entrevistadas, visto que todas elas passaram por a convicção de que falar é inútil: diante dessa
assédio ou por abuso sexual por volta dos 16 anos, ou seja, situação, optam por uma ação liberatória, pois
bem no início de suas jornadas de opressão e exploração como têm consciência das dificuldades de transformar
sozinhas as relações sociais. Trata-se, portanto,
empregadas domésticas. Na entrevista de Beta, ela compartilha
não apenas de uma forma de rebelião à violência
que: “A esposa dele tinha viajado, ele me chamou pra deitar do assédio e da deslegitimação da própria
no quarto dele pra eu ir dormir mais ele, nesse dia eu tava palavra, mas também de um exercício da própria
de calça jeans e eu dormia de calça jeans pra… pra impedir subjetividade. (COROSSACZ, 2017, p. 7).
de certa forma né…”. Apesar de suas lembranças estarem
um pouco confusas e fragmentadas, Beta, com um pouco de A ideia de que “não ia adiantar” indica que as mulheres
esforço, tenta se lembrar do ocorrido a fim de narrar. Contudo, compreendem as formas de dominação existentes na época, quando
quando relata a tentativa de abuso, é possível perceber um se tratava do tipo da subordinação a que estavam sujeitas. Tais
tom de alívio por ter conseguido sair da situação e não ter seu vivências dessas trabalhadoras, ocorrem em razão do serviço
corpo violado pelo patrão durante aquele momento de extrema doméstico ser para essas mulheres a porta de entrada no mercado
vulnerabilidade de sua vida. de trabalho, sobretudo, em função do patriarcado. Este, por sua
vez, trata-se do poder histórico e estrutural da masculinidade
Paralelamente, quando as questiono sobre denunciar os sobre as mulheres, o qual exerce graus variados de dominação
patrões, tenho as seguintes respostas: “Não né?… E a gente e exploração, como defende Azevedo (2018),
nem comentava com outras pessoas, a gente ficava era com
vergonha, porque muitos patrãos ainda dizia assim: ‘ah, mas
[...] Por analisar cada uma dessas estruturas, a
isso aí acontece direto com a empregados’”, ou então, “não ia autora avalia que o patriarcado se modificou de
mudar”, “a gente sempre sai de errada”, “ih, naquela época… uma forma privada, com sua base na produção
não ia adiantar! Se hoje as coisas ainda são difíceis, imagine doméstica e o controle do patriarca sobre a vida
antigamente”. Essa compreensão sobre a realidade crua da da mulher para uma forma mais direta, uma
forma pública, que tem em sua base a esfera
época fez com que todas tenham decidido que suas melhores
pública como importante meio de manutenção
chances eram abandonar as residências onde estavam sofrendo do patriarcado. Portanto, permite que a mulher,
violências e abusos. O medo e a vergonha são os sentimentos ao ir para o público, torne-se dominada e
principais que as impediu de denunciar seus patrões ou relatar explorada em todas as esferas, inclusive no
âmbito doméstico, a esfera privada. (AZEVEDO,
o assédio. Corossacz (2017) explica que
2018, p. 17).

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Além do poder do patriarcado exercido pelo “chefe da família”


sobre as mulheres que estão sob seu controle no espaço doméstico, Tocantins numa chácara. A viúva do… (Pausa para
ela lembrar o nome) A.2, a viúva dele eu trabalhei
tanto a necessidade quanto a falta de alternativas, submetem-nas
pra ela. Quando eu entrei na chácara dela ela botou
ao serviço doméstico. Além disso, as necessidades e falta de alter- os cadeados no portão e falou que lá as pessoas
nativas parecem ser também o principal motivo de permanecerem só saiam quando ela e se ela quisesse… Eu passei
no trabalho doméstico, pois, quanto mais os anos se passam e as dois mês presa, eu passei foi presa dentro dessa
chácara dela lá, dois meses.
necessidades aumentam, mais essas mulheres se veem obrigadas
a se manterem na engrenagem da exploração e da subalternização
Ai assim, os três primeiro dia foi mais tranquilo
constituída pelo trabalho doméstico. Essas mulheres, ainda meninas, aí depois ela começou mostrando as unhas,
saíam de casa para buscar oportunidade de uma vida melhor, porém, mas tinha uns lá que ela… Eu me lembrava
longe de suas famílias, da proteção das mães, elas encontraram direitinho ela tinha um chicotão assim de couro,
que ela andava com ele na mão que ela dizia
sofrimento. As patroas, vítimas também do patriarcado, ignoravam
que era pra bater nos bicho mas o homi falou
e normalizavam o assédio, reforçando a certeza da impunidade. Por que ela era acostumada a bater nos pessoal que
outro lado, as condições de exploração a que estavam submetidas limpava assim, que fazia serviço de jardinagem.
afastam-nas das escolas, pois as patroas “incentivavam” que elas (Entrevista oral, fevereiro de 2022).
estudassem, mas eram incapazes de flexibilizar as longas horas de
trabalho para que elas conseguissem conciliar trabalho e estudo. Enquanto Olga começava a narrar essa história de sua
vida, observei que adentramos em algo mais delicado, não se
AS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS: EXPERIÊNCIAS tratava apenas de mais uma vivência como doméstica, Olga
DE TRABALHO ESCRAVO E RACISMO agora relatava uma situação de trabalho análogo à escravidão
(SOARES, 2017). Presa em uma chácara, sem conseguir contato
O trabalho como empregada doméstica foi uma recorrência com sua mãe, sem poder sair, sem ajuda, completamente à mercê
na vida dessas trabalhadoras, não sendo apenas uma porta de de sua patroa. Durante esse momento da entrevista percebi que
entrada para o mercado de trabalho, mas uma permanência da seu semblante ficou mais sério, as lembranças vinham, detalhes
subalternização durante suas vidas, como destaca Olga: como a sensação de medo que a envolveu ao ver aquele portão
se fechando diante de seus olhos, o cadeado que a trancava, a
liberdade que lhe foi tirada, percebi que sensações de arrepios
Eu tinha uns vinte e pouco, eu já tinha ido pra
Brasília, foi numa dessas vinda minha pra cá
lhe envolviam ao relembrar e narrar essa vivência.2
[Araguaína] que eu fui trabalhar aqui, porque era
mais perto. Eu trabalhei numa aqui óh… aqui no 2 Com o intuito de preservar a imagem e a integridade do citado, identificamos
apenas por “A.”

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A partir do relato de Olga, podemos perceber que a con- Durante esse período de sua vida, Olga enfrentara, além
dição de trabalho doméstico em que se encontrava evoca traços do trabalho exaustivo, a condição de cárcere, ocasionando um
e características semelhantes às do passado escravista, ademais, sentimento de desespero e revolta. A entrevistada relata que sua
ela passara por processos de exploração, dominação e violência primeira tentativa de deixar a chácara, quando pediu demissão,
simbólica. A patroa exercia sobre Olga diversas exigências e foi negada: a empregadora desprezava seus pedidos de demissão
imposições, estabelecendo, sobretudo, restrições e proibições, e até mesmo seu desejo de querer deixar o lugar. Teixeira, Saraiva
além de dificultar o contato com os familiares da trabalhadora. e Carrieri (2015, p. 166) afirmam que, “quando as empregadas,
Ao me contar essa história e o desfecho dela, observei que nela ao contarem sua história de vida, se referem aos lugares que
havia uma sensação de alívio, finalmente o pesadelo havia ter- já viveram, há uma referência sentimental a eles atribuída por
minado. Ela narra: acontecimentos e sensações que ficaram em suas memórias.”.
No caso de Olga, nota-se um sentimento de revolta por ter sido
Aí quando foi um dia eu tava falando pra ela mantida aprisionada naquele lugar e, ao mesmo tempo, uma
né, eu disse aí a senhora me leva lá no ônibus sensação de alívio e liberdade, pois finalmente ela pôde retornar
porque eu não dou conta de ir só e eu quero ir para casa.
mimbora eu quero ter notícias da minha mãe,
que eu não tenho notícia da minha mãe. Aí As experiências relativas ao trabalho análogo à escravidão
ela foi e falou que de lá eu não saia. Quando não raro vêm acompanhadas de racismo. Assim, quando per-
ela falou assim aí o fi dela ia chegando e foi
guntamos a Olga se ela já havia enfrentado racismo, obtivemos
perguntando “Uai porque que ela não pode
sair?” Aí ela foi e falou: “Não, é maneira de falar”. a seguinte resposta: “Já! Já até faleceu, que Deus a tenha onde
Mas não era não, já era a segunda vez que ela tiver. Ela era mãe da minha patroa, não era nem minha
ela dizia pra mim que de lá eu ia sair que ela patroa não. Ela só me chamava: ‘Essa Negra. Não gosto desta
não ia deixar eu sair de lá. [Patroa]: “Eu gostei
negra’”. Em seguida, questiono como ela se sentia quanto ao
muito de seu serviço, você não vai sair daqui!”
[Olga]: Não mais eu não quero ficar! [Patroa]:
tratamento recebido:
Não, aqui não tem disso não, cê só sai se eu
quiser! Não tinha como pedir ajuda, minha
Não eu levava era na brincadeira porque de
vontade era gritar mas não podia, porque a
racismo né?
vizinha da minha mãe, que arrumou pra mim
ir, também tava junto com isso. Foi sufoco,
mas graças a Deus eu consegui sair de lá. Foi Aí eu falava pra minha patroa eu falava: nossa…
o filho dela que me ajudou a sair. (Entrevista Óh meu Deus do céu mas a Dona Ana ela não
oral, fevereiro de 2022). gosta de mim. Aí ela dizia: Olga leva lá isso aqui
pra minha mãe! Eu dizia: A Dona Ana*3 não gosta

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Olga passa por situação semelhante ao trabalhar em uma casa


da minha cor, ela não gosta de preto e ela Olga
onde só poderia comer depois dos patrões e tinha que esperar a
minha fia a minha mãe não é racista não, minha
mãe não tem disso não, esse negócio de cor patroa colocar sua comida, sendo o prato preparado com os restos
não. Eu disse: tem, ela fala é pra mim que ela de comida que sobravam dos pratos dos patrões. Ela relata que
não gosta. “Minha fia eu não gosto de você por
causa de sua cor. Ela falava assim: Essa negra!
Uma vez ela disse assim: Chama essa negrinha aí! Teve uma vez que eu… nossa eu fiquei com
horror da pessoa fazer prato pra mim, porque
eu ia chegando quando ela tava pegando o
O filho dela disse: como é a história? Mamãe, a
resto da comida e juntando dentro do prato
senhora não sabe o nome da Olga não? Mamãe
aí: “Tá aí a sua comida”. Eu falei: não, na minha
pelo amor de Deus!
casa eu nunca comi resto, minha mãe nunca
botou resto de comida pra gente.
Aí ela: e ela não é preta não?

O resto era dos pratos dele que tava lá. Ela [patroa]
É tanta coisa que a gente escuta né? (Entrevista disse assim: “Você é muito é mal-agradecida, da
oral, fevereiro de 2022). onde que você veio? Tinha comida todo dia?”. Eu
disse: tinha! todo dia minha mãe ela trabalhava
lavando roupa, mas todo dia ela tirava da boca
Compreendemos que, apesar de Olga entender que as dela, ela cansou de levar comida do serviço dela
falas da senhora e o seu tratamento eram racistas, até um certo que era pra ela almoçar, ela levava pra nois em
casa. Num levava o resto não, levava o pratinho
momento de seu relato ela demonstrava encarar a situação de prontinho pra nois comer em casa… (Entrevista
“forma descontraída”. Contudo, quando, ao final da narrativa, oral, fevereiro de 2022).
ela abaixa a cabeça, suspira e fala: “É tanta coisa que a gente
escuta né?”, naquele momento, percebemos que as falas e o
As expressões de Olga, enquanto relatava o ocorrido,
comportamento da patroa feriam Olga e ainda a machucavam.
eram de repulsa e indignação, havia também um sentimento de
Episódios de racismo dentro do trabalho doméstico é algo bastante
humilhação:
comum, principalmente em decorrência da herança escravista
ainda associada a esse tipo de trabalho. Em consonância com
Quando eu cheguei lá, nossa senhora, num
isso, Pereira (2011) afirma que a atual situação da mulher negra é
gosto nem de me lembrar. Ai, a mulher era
fruto de raízes históricas. Além dessa vivência, sem se dar3 conta, muito violenta, ela só falava aos gritos com a
gente. Tudo que a gente fazia ela saía passando
3 Com o intuito de preservar a imagem e a integridade do citado, identificamos a mão, mandando a gente limpar de novo, dizia
apenas por “Dona Ana”.

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Derivadas das relações entre escravos e senhores, as rela-


que: “Você não fez esse serviço, você não sabe
ções entre empregadas domésticas e patroas traz toda a carga da
trabalhar!”. Tudo que eu fazia, ela mandava fazer
tudo de novo, porque disse que não tava bom. violência que, se não se efetiva, muitas vezes, como violência
Aí eu fiquei quinze dia nessa casa, foi quinze dia física, apresenta quase sempre o caráter simbólico dessa violência:
de tortura. (Entrevista oral, fevereiro de 2022) estigmatizando a mulher trabalhadora doméstica com marcas
negativas que as inferioriza e humilha. Desse modo, partindo do
Olga inicia esse momento do relato destacando não gos- relato de Olga, podemos compreender também as relações entre
tar sequer de lembrar da experiência, evidenciando como essa os processos de exploração e subalternização das subjetividades
lembrança é carregada de registros das violências simbólicas dessas trabalhadoras, pois, nas marcas deixadas nessa mulher,
às quais foi submetida nessa local de trabalho. Sua existência, estão pontuadas as práticas da sociedade brasileira, sociedade
nesse caso, foi marcada, em sua subjetividade, com as marcas essa herdeira dos valores da escravidão.
de feridas dolorosas que dificilmente cicatrizam. De fato, ao
longo da entrevista, Olga sempre mantinha um sorriso e uma
O TRABALHO DOMÉSTICO NA PERSPECTIVA
expressão de alívio e gratidão por ter conseguido passar pelos
DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS
momentos difíceis em sua jornada de trabalho. Todavia, no
relato desse momento de sua vida, a entrevistada foi tomada
Em contrapartida, apesar das dificuldades enfrentadas ao longo
por um sentimento de raiva e repúdio por sua ex-patroa, sua
de suas jornadas, como a exploração, a estigmatização e as inú-
entonação mudou de descontraída para irritada, conforme as
meras violências às quais foram submetidas, essas trabalhadoras
lembranças vinham em sua mente. Essa situação traz também
domésticas afirmam gostar do que fazem. Em vista disso, para
outra dimensão do trabalho doméstico: a relação entre patroas
melhor compreendermos a fala e o sentimento das entrevistadas
e empregadas. Sobre isso, Kofes (2001, apud SORATTO, 2006,
em relação ao trabalho, recorremos ao conceito de habitus que,
p. 56) considera que:
segundo Bonnewitz, seria “o produto da posição e da trajetória
social dos indivíduos.” (2003, p. 78), ou seja, ele é simultanea-
[...] O emprego doméstico sustenta a conotação mente, a grade de leitura pela qual percebemos e julgamos a
negativa do fazer doméstico e que a empregada
realidade, e também o instrumento que define o sentido e a per-
doméstica aparece como continuidade da
escrava, ocupando o mesmo lugar que era sonalidade do indivíduo. Por outras palavras, no que concerne
ocupado por esta. As atitudes que marcam as às entrevistadas nessa pesquisa, tanto a perspectiva quanto a
relações entre patrões e empregados também percepção das trabalhadoras sobre o trabalho que exercem são
derivam da relação entre senhor e escravos [...]. produtos do habitus.

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No caso, é o habitus que define a perspectiva e percepção Por outro lado, apesar de haver esse sentimento de satisfação
dessas trabalhadoras de que “gostam de seus trabalhos enquanto em relação aos seus trabalhos, compreendemos que, por conta
empregadas domésticas”. Todavia, podemos observar que, por da dominação que é exercida sobre elas, suas percepções acerca
trás desse sentimento de realização em decorrência das mudanças da subalternização que sofrem em seus respectivos trabalhos
das condições de trabalho – direitos trabalhistas e previdenciários são comprometidas.
–, além das boas relações com as patroas, evidenciam também
Quando interrogo Olga sobre se ela sente que seu trabalho é
como essas mulheres, em decorrência também do habitus, não
tido como inferior para algumas pessoas, ela responde que: “Sim,
percebem o grau de dominação e exploração no qual a profissão
sinto! Porque, assim, as pessoas diminuem a gente!”. Enquanto
de empregada está submetida.
ela me fazia suas afirmações, percebi em suas expressões que
Beta, por exemplo, afirma que “apesar de não ser fácil ela não entendia o porquê de algumas pessoas menosprezarem
devido às questões de saúde e por não ser mais tão jovem, gosta e inferiorizarem o trabalho doméstico, pois, segundo ela com-
do que faz” (Entrevista oral, fevereiro de 2022). Assim, podemos preende, seu ofício é digno como qualquer outro.
observar que o trabalho doméstico na vida dessas mulheres faz
Contudo, observei que a desvalorização e estigmatização
parte também da construção de suas identidades. Kássia diz que
em relação ao trabalho doméstico, por parte de algumas pessoas
gosta do que faz mesmo sendo um serviço por vezes desvalorizado:
com as quais as trabalhadoras convivem, contribuem também
“Eu gosto de trabalhar, é difícil, mas eu gosto...” Olga afirma
para que elas entendam que, apesar de gostarem do que exercem,
que: “Eu gosto! Não sei... é porque é o que eu sei fazer, né? Mas
essa atividade sofre um estigma negativo.
eu gosto e eu gosto principalmente quando eu tô cozinhando,
né? Eu gosto de cozinhar!” (Entrevista oral, fevereiro de 2022). Seja como for, a compreensão partilhada por essas
Com um enorme sorriso, ela diz que ganha o dia quando o filho mulheres trabalhadoras domésticas é a de gostarem de seus
da patroa elogia sua comida. trabalhos, sendo importante destacar que esse “gostar” se
relaciona diretamente às situações atuais de seus empregos
Nesse sentido, quero destacar que, ao final das entrevistas,
e das relações com os empregadores, como destaca Beta:
perguntei sobre o que elas sonhavam em ser antes de trabalharem
“Ah, hoje eu gosto, a pessoa com quem eu trabalho é muito
como domésticas. Observei que todas pararam, pensaram e sorri-
boa.”. Além disso, seus sonhos antigos de seguirem profissões
ram timidamente, e então me falaram: policial, bancária e freira.
diversas foram substituídos por outros: hoje sonham com
Todas riam e diziam ser um sonho bobo e distante, mas ao mesmo
a aposentadoria.
tempo imaginavam-se vivendo aquilo. Dessa maneira, apesar da
vida ter tomado rumos diferentes e seus trabalhos serem mais
marginalizados, elas defendem o quão importante é o seu ofício.

202 203
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Histórias de vida das empregadas domésticas de Araguaína – TO

CONSIDERAÇÕES FINAIS conversa, destacaram a importância de seus trabalhos e o gosto


que têm pela atividade que exercem na sociedade. Por fim, tra-
Esse artigo teve como objetivo conhecer e analisar a história de zer ao centro do debate historiográfico as narrativas e vivências
vida das empregadas domésticas do município de Araguaína das trabalhadoras, torna-se relevante para a história regional do
(TO). Além disso, permitiu apontar e discutir características e Tocantins ao enfatizar e visibilizar as histórias e narrativas das
dificuldades vivenciadas pelas trabalhadoras. Nesse sentido, por empregadas domésticas de Araguaína.
meio dessas narrativas, compreendemos a dominação e explora-
ção, bem como os sentidos atribuídos ao trabalho pelas próprias
REFERÊNCIAS
trabalhadoras, o que permitiu também identificar a construção da
AZEVEDO, Fernanda Maria Caldeira de. O conceito de patriarcado nas
identidade dessas trabalhadoras no trabalho doméstico a partir
análises teóricas das ciências sociais: uma contribuição feminista.v.13, n.1,
do habitus no qual estão imersas. 2016. Dossiê Múltiplos Olhares sobre Gênero, 2018.
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu.
Notou-se, ao longo do estudo, como o trabalho doméstico Tradução de Lucy Magalhães. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
na vida dessas mulheres surge desde a infância. Ademais, ao COROSSACZ, Valeria Ribeiro. Assédio sexual no emprego doméstico. Z
compartilharem suas histórias, pudemos perceber o processo de Cultural: revista do programa de cultura contemporânea, 2017.
construção da memória e toda uma vivência dentro do trabalho HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça, interseccionalidade e
consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, Revista de
doméstico. As lembranças de um passado marcado pelo labor,
Sociologia da USP, v. 26, n. 1. 2014.
experiências dolorosas, mostraram-nos também não apenas KOFES, Suely. Mulher Mulheres: identidade, diferença e desigualdade na relação
mulheres marcadas por cicatrizes dolorosas, mas mulheres que entre empregadas domésticas e patroas. Campinas: Ed. Unicamp, 2001.
se fizeram resistentes, seja para ajudar os seus, seja por uma LOPES, Alberto Pereira. Araguaína-TO: frentes pioneiras e frentes de
questão de sobrevivência. expansão, a porteira aberta para trabalhadores vítimas do trabalho escravo
por dívida. Interespaço, vol. 03 n. 10. Grajaú-MA, 2017, p. 99-114.
Podemos ressaltar também que, na vida dessas mulheres, PEREIRA, Bergman de Paula. De escravas a empregadas domésticas: a
dimensão social e o “lugar” das mulheres negras no pós-abolição. p.161-178,
o trabalho como empregada doméstica, para além das inúmeras
2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/
opressões e explorações, é marcado pelo racismo, pois, como anais/14/1308183602_ARQUIVO_ArtigoANPUHB ergman.pdf. Acesso em:
foi destacado, devido às suas raízes históricas na escravidão, 10 jun. 2022.
a mulher negra passa por condições ainda piores. Contudo, no POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989.
decorrer das entrevistas com as trabalhadoras, estas, apesar de
PORTELLI, Alessandro. História Oral e Memórias. Entrevista com Alessandro
seus relatos dolorosos sobre o que vivenciaram durante algum Portelli realizada por Paulo Roberto de Almeida, Universidade Federal de
tempo de suas vidas, apresentaram uma perspectiva diferente da Uberlândia, MG, e Yara Aun Khoury, Pontifícia Universidade Católica de São
que esperávamos sobre o ofício que exercem: todas, ao final da Paulo, SP. In: Revista História e Perspectivas. Uberlândia (25 e 26) 2001, 2002.

204 205
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Emprego doméstico e capitalismo.


Petrópolis, Editora: Vozes Ltda, 1978.
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um trabalho invisível. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 17(32): 409-438,
jan.-jun. 2017. ensinando História
SOARES, Fagno da Silva Trabalho, escravidão e escravização: à guisa dos
estudos históricos. In: PEREIRA, Airton dos Rios et al. Culturas e dinâmicas da
Amazônia oriental brasileira. Belém, Paka-tatu, 2017. Jorge Luís de Medeiros Bezerra
SORATTO, Lúcia Helena. Quando o trabalho é na casa do outro: um estudo
sobre empregadas domésticas. 2006. 331 f. Tese (Doutorado em Psicologia)
– Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
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Pádua. Os lugares das empregadas domésticas. Organ. Soc. v. 22 n. 72,
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VIECELI, Cristina Pereira; WÜNSCH, Julia Giles; STEFFEN Mariana
Willmersdorf; HORN, Carlos Henrique. Emprego doméstico no Brasil: raízes
INTRODUÇÃO
históricas, trajetórias e regulamentação. São Paulo, Editora: LTDA, 2017.

Neste texto apresento uma proposta de intervenção pedagógica


a partir da metodologia da educação patrimonial realizada no
Mercado Público Municipal de Araguaína. Enquanto professor
da educação básica, é perceptível que os conteúdos ensinados
estão longe da realidade dos alunos, uma vez que eles tratam
o passado e o presente como temporalidades estanques. O que
isso quer dizer? Na verdade, a questão da temporalidade e dos
diferentes sujeitos e espaços que compõem a História, presente
nos livros didáticos, e no que é ensinado durante a trajetória
escolar, não apresentam elementos que levam os alunos a reco-
nhecer esse passado como seu, porque é distante e sem conexão
com o presente vivido.

Na contramão da concepção tradicional do ensino de His-


tória, acreditamos que o conhecimento histórico nos currículos
escolares pode ser trabalhado de forma dinâmica haja vista que

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

a metodologia da educação patrimonial apresenta significados dade de Araguaína, convertendo o Mercado Público municipal
para a vida prática dos alunos. Para tanto, estudamos os espaços em um epicentro e irradiador desses elementos culturais em
do Mercado Municipal de Araguaína buscando compreender constante ebulição.
como diferentes espaços podem ser utilizados como recursos
Desde a antiguidade, o mercado é parte essencial da vida
para dinamizar o ensino de História na sala de aula. Um estudo
dos cidadãos. Entre as diversas obras arquitetônicas de Roma, por
de campo foi realizado com os alunos da 1ª série do ensino médio
exemplo, se destaca o Forum Romanum, lugar onde os cidadãos
da Escola SESI de Araguaína-TO, em 2016. As aulas/oficinas
tinham contato com a vida pública através das mais variadas
foram propostas a partir das fases da metodologia da educação
funções que esse recinto desempenhava, contendo desde os
patrimonial (observação, registros, exploração e apropriação)
templos de culto, como também prédios de justiça. Através das
levando em consideração o Patrimônio Cultural e os lugares sig-
assembleias e dos discursos feitos por oradores inflamados, o
nificativos1 encontrados dentro do espaço do Mercado Municipal.
cidadão romano ficava a par do que acontecia na cidade, pois o
O Mercado Público Municipal de Araguaína foi fundado em Forum Romannum recebia “multidões ainda maiores que eram
1978, período em que o município de Araguaína ainda pertencia atraídas para o centro, a fim de comprar, de fazer o culto, de
ao Estado de Goiás, em um contexto de grande efervescência trocar boatos, de tomar parte como espectadores ou atores em
política e de agravamentos econômicos, durante o governo presi- negócios públicos ou em processos privados” (MUMFORD,
dido pelos militantes, representados na figura do General Geisel 2004, p. 245).
(1974 – 1978). Surgem então os mercados, sendo estes espaços
Depois de séculos do fim do Império Romano e a perca
para atividades comerciais como também para trocas culturais.
da importância que o comércio teve em favor da economia de
Essas trocas culturais se dão a partir do contato com os subsistência, no século XI os mercados públicos ressurgem, tendo
diversos produtos que ali podem ser encontrados: comidas típicas, sua história associada ao desenvolvimento urbano, pois foram as
artesanatos, remédios medicinais, doces caseiros, enfim uma feiras e os mercados que proporcionaram grandes transformações
gama de gêneros que traduz o modo de vida e a subjetividade sociais, econômicas e paisagísticas, uma vez que vários núcleos
do seu produtor, propiciando o saber fazer como um elemento da urbanos (burgos) surgiram em torno das atividades comerciais
cultura imaterial peculiar do município que, em trocas culturais dando origem a novas instituições, como os bancos e de um novo
com outros Estados, ao longo do tempo, vem formando a identi- segmento social (burguesia).

Gradativamente, esses núcleos que surgem em virtude do


1 Pierre Nora (1993) afirma que a sociedade se utiliza hoje da História para lhe con-
ferir lugares onde se pode pensar que não somos feitos de esquecimentos, mas
comércio e feiras tornam-se artéria da vida econômica, social
de lembranças. Os lugares de memória podem ser entendidos como um conjunto e política. Os mercados tinham por característica seu desen-
simbólico, tais como: crenças, ritos e festas, entre outros que compõem a memória
histórica de determinado grupo. volvimento em áreas centrais da cidade, um lugar de encontro

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

(FILGUEIRAS, 2006). Dessa forma, o mercado é visto não tização dos conceitos de patrimônio cultural, perpassando pela
apenas um centro abastecedor, mas um ambiente de forte inte- importância da história, memória e identidades. Entendemos os
ração social. O mercado é o “centro natural da vida social, pois bens patrimoniais presentes no Mercado Municipal como fontes
está no centro de uma vida de relações” (BRAUDEL, 1985, p. que possibilitam a imersão e reflexão sobre o passado a partir
18). Através de relações cotidianas podem se estabelecer uma de referências do presente. Iniciamos as atividades de educação
série de elementos, tais como hábitos alimentares, vestuários, patrimonial, seguindo-se a metodologia de Evelina Grunberg
entre outros que caracterizam o cidadão através dos hábitos que, através de seu Manual de atividades práticas de educação
de consumo. patrimonial (2007), divide a educação patrimonial em quatro
fases: observação, registro, exploração e apropriação.
De certo, o Mercado Público Municipal pode ser com-
preendido como um espaço social onde se encontram diversos Simultaneamente, aos alunos foram entregues papel, caneta e
agentes sociais com variadas formas de expressar seu modo de prancheta para que fizessem as devidas anotações sobre as observa-
viver e de observar o mundo, acabando por se tornar um ponto ções e registros dos bens culturais selecionados. Nessa perspectiva,
de encontro entre as diversas culturas que compõem o mosaico fora solicitado que anotassem tudo que chamasse a atenção.
da cultural local, pois as feiras e os mercados públicos podem
ser vistos não apenas pelo seu viés econômico, mas como um Figura 1 – Professor e alunos na área externa do Mercado
Municipal de Araguaína, em fase de observação da
epicentro cultural, pois nesses espaços, diversos modos de vida oficina de educação patrimonial (05/2016)
são representados através dos produtos que carregam as impres-
sões dos agentes sociais que os conceberam.

EXPERIÊNCIAS DOS ALUNOS NO MERCADO


MUNICIPAL DE ARAGUAÍNA-TO

Os trabalhos de campo foram realizados nas sextas-feiras, nos


dias 06, 13 e 20 de maio de 2016, sempre no turno vespertino.
A turma foi dividida em três grupos. Dois com doze alunos e
um com onze, denominados de grupos A, B e C. O roteiro de
visitas foi previamente discutido com os alunos, assim como os
locais que seriam visitados. Os critérios para a realização das
atividades no Mercado foram construídos a partir da problema-
Fonte: P.H. (2016).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

Para as autoras Evelina Grunberg, Maria de Lourdes Figura 2 – Placa de fundação do Mercado Público
Pereira Horta e Adriane Queiroz Monteiro (1999), a observação Municipal. Araguaína – TO (05/2016)

tem como objetivo a compreensão do bem cultural em todas as


suas dimensões. Espera-se que o aluno redirecione seu olhar para
o bem estudado, em outras palavras, a intenção é que ele passe
a “enxergar” o bem cultural e não apenas “ver”, como coloca a
autora Grunberg (2007). Uma das propostas de atividades para
essa fase é observar o bem cultural e, depois de uma visualização,
desenhar o local e comparar o real com o desenho produzido,
com o intuito de criar um olhar crítico e investigativo, na finali-
dade do desenvolvimento de uma percepção visual e simbólica.
(HORTA; GRUNBER e MONTEIRO, 1999). Fonte: V. D. C. (2016).

O grupo A, composto por doze alunos, ficou interessado em Figura 3 – Placa da reforma do Mercado Municipal de Araguaína (05/2016)
fazer o levantamento do histórico do Mercado. Então, iniciaram
suas atividades de reconhecimento do espaço colhendo informações
através de registros fotográficos e anotações no caderno de campo.
A primeira observação que o grupo fez ao entrar na parte mais
antiga do Mercado foi sobre a placa de inauguração do Mercado
Público Municipal de Araguaína na década de 1970, mais especifi-
camente no ano de 1978. A placa contém informações como nome
do governador de Goiás, ministérios de governo, superintendência
de desenvolvimento do centro oeste e secretarias de estados. Dados
que, se analisados, apresentam o contexto político e econômico do
estado e as políticas públicas do governo militar brasileiro para a
região do norte goiano. Essa história era desconhecida para a maioria
dos alunos. A partir dessa observação, organizamos a próxima fase
denominada exploração, na qual os alunos se propuseram a estudar
mais sobre a história do estado. Esse despertar para a história local Fonte: V. D. C. (2016).
é importante já que os alunos não têm conteúdos de história local
ou regional no currículo.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

A segunda placa reproduzida na Figura 3, faz referência à e lembrou-se da vovó? A memória está relacionada com as
entrega da reforma do Mercado Público Municipal cuja reinau- nossas formas de nos alimentar, pois a alimentação pode ser
guração aconteceu em 14 de abril de 2011. A placa possibilita vista como uma das primeiras formas de socialização. Assim,
algumas informações sobre o cenário político da cidade. os alunos foram desafiados a lembrarem de algo que estivesse
ligado à comida, assunto sobre o qual todos tinham história
O grupo B optou por trabalhar com o “mundo dos sabores”
para contar de uma viagem, de uma reza, de um casamento
através dos temperos e das comidas típicas. Na fase de observação
ou de um aniversário. O historiador e antropólogo Genilson
e registro, elas tentaram fazer entrevistas com alguns comercian-
Nolasco faz referência a Maciel (2006), que trata a culinária
tes, porém, não tiveram sua permissão. Aceitaram apenas tirar
como “um resultado de um processo histórico que traz em
fotografias e anotar as informações dos feirantes.
si elementos das mais diversas procedências que aqui foram
Figura 4 – Parte interna do Mercado Público Municipal. modificados, mesclados e adaptados” (MACIEL, 2006, p.
Expositor de temperos e alimentos (05/20016) 93, apud NOLASCO, 2013, p. 104). Maciel ainda cita Lemos
(2006) que trata do alimento com um artefato, cuja elabora-
ção foi resultado de conhecimentos acumulados e passados
por gerações.

O terceiro grupo, denominado de C, optou por pesquisar os


remédios caseiros e medicinais, sendo que estes, em sua grande
maioria, são provenientes de plantas do cerrado como óleo da
copaíba, óleo de buriti e o óleo da mamona.

Fonte: E.S.C. (2016).

O mundo dos sabores e dos cheiros possibilitou pensar


no alimento como prática social. O cheiro e o sabor podem
nos trazer a memória de algo distante, reminiscências adorme-
cidas pelo tempo: quem nunca comeu aquele pedaço de bolo

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

Figura 5 – Banca de remédios caseiros – Mercado Através da observação e do registro, realizados de forma
Municipal de Araguaína (05/2016) concomitante, os estudantes entraram em contato com um tipo
de conhecimento que poucos tinham ouvido falar, o uso dos
remédios caseiros. Poucos sabiam de sua existência e muitos
falaram que essa prática era feita pelos seus avós. Um grupo
de alunos gostou da temática, e, juntamente com o professor
de biologia, no laboratório da Escola SESI, estão mapeando as
plantas medicinais da região.

Em relação aos resultados da etapa da observação e de


registro, destacamos algumas considerações que foram eviden-
ciadas pelos estudantes:

Nossa visita ao local nos fez entender o porquê


do Mercado Municipal ser considerado um
patrimônio cultural, a sua História e o quão é
importante para o município e que devem sim
existir mais pesquisas sobre ele, sobre seus
comerciantes e clientes fiéis. (M.D.F., 2016)2.

Percebe-se, nessa fala dos alunos, que: “... o mercado é um


Fonte: G.A.S. (2016). local histórico não somente por sua longa data, mas também pelas
pessoas que estão lá...” (I.F.S., 2016). Sendo assim, a partir da
Existe também uma grande quantidade de remédios registrados problematização desse espaço em particular, eles percebem que a
na fotografia que não são fabricados pelos comerciantes, que vêm cidade tem outros suportes de memória que devem ser conhecidos
de outras regiões como Pará e Maranhão. De certo, a domesticação e que a denominação “histórico” não pode ser atribuído apenas
das plantas trouxe ao homem um conhecimento para a produção de a coisas velhas ou antigas, mas também compreendem que são
remédios contra as enfermidades. O remédio caseiro, por muitos as pessoas que constroem a história a partir da socialização e
anos, foi a única alternativa de medicamento para as populações interação com o ambiente onde vivem. Ademais, o objetivo maior
desta região que, sem médicos e recursos, buscavam no conheci-
mento dos seus antepassados e curandeiros para curar seus males. 2 Para preservar suas identidades, a identificação das pessoas entrevistadas foi feita
apenas com iniciais de seus nomes.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

do ensino da história é desenvolver nos alunos uma consciência tos, foi possível perceber que os alunos passaram a enxergar
histórica que são as “operações mentais com as quais os homens o Mercado com um “espaço de aprendizado”, o que pode ser
interpretam suas experiências da evolução temporal de seu mundo demonstrado através de frases como: “Nunca imaginei estudar
e de si mesmo, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, história na feira.”, ou “Professor, temos que estudar outros pon-
sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2001, p. 57). tos da cidade!”, ou ainda, “Estudar fora da sala tornou a aula de
história mais viva!”.
Durante a visita, um dos alunos questiona: “... por que
não estudamos História sempre assim? Ficamos presos tanto ao Outras colocações puderam ser percebidas também na
conteúdo do livro que não aprendemos nada sobre nós mesmos, produção de texto que foi realizada, na qual um dos alunos
nossa cultura e gente!” (Y. P., 2016). Percebe-se que eles come- sublinhou: “Com a pesquisa feita no Mercado Municipal de
çam a dar sentido ao estudo da História, porque a mesma passa Araguaína, fizemos várias descobertas e uma delas foi a de remé-
a ter significado e fazer parte do seu cotidiano. Dessa forma, a dios caseiros que são trazidos de outras regiões, ou até mesmo
Educação Patrimonial e o Ensino de História enfatizam uma produzidos pelos próprios vendedores.” (V.N.M., 2016). Disse
aprendizagem significativa e transformadora. Significativa no ainda que: “Quando olhamos para o mercado de forma crítica
sentido de mostrar ao aluno que o ensino de História faz uma percebemos mais que um lugar barulhento, cheio de pessoas e
leitura e uma interpretação do homem no tempo e no espaço e é mercadorias, percebemos que ele faz parte da história do Brasil,
transformadora por proporcionar uma reflexão de si e do contexto e da nossa própria história.” (V., 2016).
que o cerca, indo além dos conteúdos programáticos oficiais.
O Mercado Municipal foi ressignificado pelos alunos. Eles
Depois de realizadas as fases de observação e registro passaram a ver o espaço não apenas pela sua dinâmica econômica,
dos objetos culturais escolhidos pelos alunos, atividades essas percebendo-o como um lugar de diferentes saberes, contatos e
realizadas no mercado e no entorno dele, iniciamos a terceira de relações de poder. Essa percepção pode ser notada quando
fase da educação patrimonial denominada exploração. Para Horta os alunos afirmaram que o medo dos mercadores (feirantes) em
(1994), a exploração é o momento de análise, questionamento, não aceitarem as entrevistas e nem mesmo em serem fotografa-
hora de interpretar o que foi pesquisado tendo como foco o dos acabariam silenciando esses personagens e colocando-os à
desenvolvimento de um olhar crítico sobre o que foi observado margem da história. Um aluno sintetizou no seu texto que:
e registrado. Essa nova etapa de trabalho iniciou-se na sala de
aula com abertura de uma roda de conversa, na qual cada grupo Trabalhar com o levantamento cultural do mercado
tinha a liberdade de compartilhar as experiências de campo, bem foi uma ótima experiência para nós alunos. Com
como as dificuldades encontradas, expondo o que mais chamou as entrevistas podemos imaginar a evolução do
mercado que através dos anos foi juntando culturas
a atenção durante as duas primeiras fases do projeto. Nos rela-

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

serão estabelecidos entre a comunidade. A autora enfatiza a


e mesmo passando por grandes dificuldades. Ainda importância do reconhecimento e valorização dos elementos
assim, esse patrimônio se tornou muito importante
para o município, pois nele há várias pessoas de
culturais peculiares às comunidades que formam o nosso país.
cidades diferentes... o Mercado Municipal é um Enfim, foi organizada uma exposição fotográfica na escola
local histórico. (B.N., 2016). SESI para divulgar os diferentes olhares dos alunos da 1ª série
do Ensino Médio sobre o Mercado Municipal de Araguaína,
Acerca da experiência de uma aula de campo, outro aluno como mostram as figuras 6, 7, 8, 9 e 10 abaixo.
aponta: “Foi legal ver que o comércio de especiarias começou
com o oriente, mas foi mais legal ver que muita coisa está pre- Figura 6 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica
sente no Mercado Municipal de nossa cidade e nem dávamos fé
disso...” (F.P., 2016). Ao relacionar o comércio das especiarias
com os produtos encontrados, o aluno identificou o cravo-da-
-Índia, a canela, a noz-moscada, a pimenta do reino e o gengibre
que ganham sentido ao serem estudados em sala de aula como
conteúdos da disciplina de História

A apropriação é o momento de internalizar o bem


estudado recriando-o através de dramatização, pinturas,
esculturas, entre outros modos que o bem possa ser recriado
e tem como objetivo desenvolver um sentimento de valori-
zação do bem cultural. Nessa perspectiva, realizamos um
trabalho de exposição de fotografias para que todos os alu-
nos da escola pudessem conhecer um pouco da história do
Mercado Municipal e da cidade de Araguaína. A partir das
imagens, podemos obter uma gama de informações sobre os Fonte: Mario Saviato (2016).
cotidianos dos sujeitos históricos, como o modo de vestir, as
diferentes cores e texturas dos produtos presentes no Mercado.
Enfim, imagens são “testemunhas mudas” de um contexto.
Queiroz (2004) chama a atenção para o envolvimento com a
história do local, estabelecendo vínculos nos quais os valores

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

Figura 7 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica. Figura 9 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica

Fonte: Mario Saviato (2016). Fonte: Mario Saviato (2016).

Figura 8 – Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica Figura 10 – Quarta fase da Educação Patrimonial: produção de textos

Fonte: Mario Saviato (2016). Fonte: Mario Saviato (2016).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS Mercado Municipal da Cidade de Araguaína

Foi realizada uma atividade de produção textual como CONSIDERAÇÕES FINAIS


mecanismo essencial para identificarmos o nível de recepção
de todos os alunos que visitaram a exposição. Através de suas A Educação Histórica traz uma nova proposta para o ensino de
falas, percebemos que o olhar sobre a cidade mudou: “O mercado História, desvinculando-o da concepção da narrativa pronta e
municipal acompanha a cidade há muitos anos, inaugurado em acabada. E, para isso, primeiro tem que haver uma compreensão
1978, se tornou um símbolo da cultura municipal [...].” (E.D., da estrutura de pensamento dos alunos, pois, como argumenta
9°A, 2016). “No mercado municipal podemos encontrar diversos Rüsen (2011), “a consciência histórica é parte inerente ao ser
elementos da cultura local que passa despercebidos no dia a dia humano”, todo ser humano tem algum tipo de consciência his-
pelas pessoas e só com um olhar crítico podemos perceber sua tórica formada a partir de suas experiências escolar, acadêmica
importância cultural.”. (M.S., 9°B, 2016). e nas mais variadas esferas que compõem a sociedade. Através
da problematização do Mercado Público Municipal, oferecemos
A partir das atividades propostas, percebeu-se uma
aos alunos uma situação real na qual tiveram que pensar histo-
mudança em relação à consciência histórica dos alunos que
ricamente relacionando o conteúdo escolar com a vida prática,
identificaram que a história do Mercado Municipal e dos
superando, assim, aquela forma de conhecer História pela forma
sujeitos que a constroem, fazem parte de relações construídas
pronta. Através da atividade de apropriação realizada mediante
em diferentes temporalidades. A história não é só o passado
a exposição fotográfica, os alunos questionaram seu próprio
distante, ela também está no presente, nas aprendizagens e
espaço social indo ao encontro do que os Parâmetros Curricula-
práticas experimentadas no labor das vidas de cada comerciante
res Nacionais (PCN) propõem em termos de competências, tais
que luta pela sobrevivência cotidiana, assim como fizeram os
como entender que a história e a cultura brasileira são múltiplas
homens e mulheres de outros tempos. Para os alunos, o Mer-
e plurais, percebendo o patrimônio cultural como instrumento
cado Municipal passa a ser visto como um espaço dinâmico
de ensino e pesquisa em sala de aula.
“[...] um centro cultural onde, muitas coisas são feitas pelos
próprios vendedores, como remédios que na maioria das vezes Por conseguinte, a partir do estudo do Mercado Municipal,
são receitas passadas de geração a geração [...].” (A.N., 7°C, da concepção de educação histórica e das propostas metodológicas
2016). Ao evidenciar “as muitas coisas que são feitas” pelos da educação patrimonial, foi possível dinamizar novas perspec-
comerciantes no Mercado o aluno percebe a diversidade de tivas do ensino de História e oportunizar atividades dinâmicas
práticas e as permanências de saberes e fazeres. Enfim, “[...] que levem o aluno a uma compreensão do seu espaço social e
o ensino de história afeta o aprendizado de história e este ampliação da consciência histórica. Assim, os alunos do primeiro
configura a habilidade de se orientar na vida e de formar uma ano do Ensino Médio da Escola SESI, aprenderam a relacionar os
identidade histórica.” (RÜSEN, 2011, p. 40). conteúdos de História à sua vida prática. Além disso, a concepção
de história pronta foi questionada: “O mercado municipal tem

224 225
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

diversos ‘patrimônios’ cada qual contando um pouco de nossa Perfil dos Professores de
História. Não existe um único ponto de vista para a História de História da Educação de Jovens
uma localidade.” (V.L., 1°A, 2016). Enfim, fica a lição: não basta e Adultos em Araguaína-TO
apenas ensinar o conteúdo, mas observar como ele é percebido,
elaborado e apropriado pelos alunos.
Laila Cristine Ribeiro da Silva
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Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
2013.
(Censo/INEP, 2018), o total de 3.598.988 brasileiros estavam
NORA, Pierre, Entre memória e História: a problemática dos lugares,
Tradução Yara Aun Khoury, Revista Projeto História. V. 10 (1993). Jul/Dez, matriculados na Educação de Jovens e Adultos. Essa estatística
1993, p. 07-28. “não deixa dúvida quanto à baixa efetividade das estratégias
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e de governo para a elevação da escolaridade da população [...]”
perspectivas. Tradução Neil R. da Silva. Martins Fontes: São Paulo, 2004.
(VENTURA, 2017, p. 149). Ainda se soma a tais fatores, o
QUEIROZ, Moema Nascimento. A Educação Patrimonial como Instrumento
de Cidadania. Revista Museu. Disponível em www.revistamuseu.com.br/ número considerável de evasão e abandono escolar, o que agrava
artigos. Acessado em 06 de julho de 2016. o quadro de marginalização e negação ao direito à educação e
RÜSEN, Jörn. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2011. à cidadania plena.

A Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos


(EJA) elaborada pela Secretaria de Educação do Tocantins

226 227
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

(SEDUC-TO), ressalta que o Estado do Tocantins oferta, desde Figura 6 – Grau de instrução no município de Araguaína
o ano de 1996, a modalidade educacional EJA. O documento
diz estar alicerçado em fundamentos e concepções de uma
educação problematizadora: “A Educação de Jovens e Adultos
tem no ideário freireano sua gênese, no qual o processo educa-
tivo parte do exame crítico da realidade e da possibilidade de
sua superação” (TOCANTINS, 2008, p. 37). Nesse sentido, as
ações educativas devem ser percebidas como uma ação social
que “considere as relações escola-comunidade e o retrato cultu-
ral” capazes de produzir “uma prática educativa articuladora da
teoria com a prática”, tendo o educando como sujeito do processo
(TOCANTINS, 2008, p. 41). Ainda de acordo com as Diretrizes
Curriculares estaduais, no Tocantins:

[...] A maioria dos professores da EJA, não são


professores que tem sua carga horária maior nessa
modalidade. Quase sempre a EJA é utilizada como
ponte para garantir quarenta horas semanais e
assim efetivar o máximo de recursos no holerite
no final do mês (TOCANTINS, 2008, p. 35).

Segundo os dados do Atlas de Desenvolvimento Humano


Fonte: TSE1
no Brasil, o índice de Desenvolvimento Humano Municipal
(IDHM, 2010) de Araguaína é 0,752 e a dimensão que mais Os dados levantados pelo TSE revelam que 18,82% da
contribui para a formação dessa estatística é a longevidade, população não completou o Ensino Fundamental. Assim, a
seguida pela renda e, por último, temos a contribuição da Educação de Jovens e Adultos, sobretudo no que diz respeito a
educação. No que concerne à alfabetização local, a cidade oferta escolar municipal, é uma alternativa para essa parcela que
possui um elevado número de pessoas (quase 20%) que não deseja retornar à escola e completar as suas etapas de estudo. A
completou o ciclo básico educacional, conforme observamos
na Figura 2, a seguir:
1 Disponível em: <https://www.eleicoesepolitica.net/numero-total-de-eleitores/
araguaina-to/>. Acesso em: 02 dez. 2018.

228 229
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

Lei Municipal nº 2.957, de 24 de junho de 2015, dispõe sobre o


META 09: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Plano Municipal de Educação. Esse documento legitima e ampara
a oferta da EJA, preconizando, entre as suas justificativas, a
Elevar, em regime de colaboração com os Estados,
análise situacional dessa modalidade de ensino: a taxa de alfabetização da população com 15
(quinze) anos de idade ou mais de 91,4% (noventa
e um inteiros e quatro décimos por cento) para
De acordo com a Resolução nº 01 de 18 de 93,5% (noventa e três inteiros e cinco décimos
fevereiro 2014, que organiza e regulariza o por cento) até 2021, e até o final da vigência
atendimento da Educação de Jovens e Adultos EJA deste PME, erradicar o analfabetismo absoluto
no Ensino Fundamental das Escolas Municipais e reduzir em pelo menos 50% (cinquenta por
de Araguaína-TO, o aluno Jovem e Adulto busca cento) o índice de analfabetismo funcional dos
no ambiente escolar sua promoção individual e alunos dessa etapa de ensino e proporcionar sua
social fazendo a ponte entre o seu conhecimento iniciação a Qualificação Profissional (ARAGUAÍNA,
sistematizado da escola e o conhecimento PME, 2015, p. 85, grifo nosso).
integrado ao ambiente de trabalho (ARAGUAÍNA,
PME, 2015, p. 78). META 10: EDUCAÇÃO PROFISSIONAL/EJA

A categoria trabalho é o referencial mais forte que permeia Oferecer no mínimo 60% (sessenta por cento)
a necessidade de manutenção e retorno do estudante da EJA das matrículas de Educação de Jovens e Adultos,
na forma integrada à Educação Profissional,
na realidade municipal de Araguaína. Fica evidente de que se nos Ensinos Fundamental e Médio (ARAGUAÍNA,
trata de uma educação para trabalhadores e, por esse motivo, PME, 2015, p. 87, grifo nosso).
o Conselho Municipal Araguainense de Educação aprovou a
implantação, no currículo escolar, de uma disciplina chamada O traço marcante do trabalho, presente na política insti-
Iniciação à Qualificação Profissional, na intenção de salvaguar- tucional da EJA, talvez possa ser entendido em sua perspectiva
dar esse referente político-pedagógico e tecnicista que marca a reducionista, haja vista que uma abordagem profissionalizante
Educação de Jovens e Adultos. por si só não é capaz de definir todas as demandas e heteroge-
As duas metas especificadas no Plano de Educação neidades que compõem a formação dos sujeitos. Nesse sentido,
(Metas 09 e 10) para o desenvolvimento do ensino, também destacamos a ausência, no Plano Municipal de Educação, de
fazem referências a essa característica e delineia as ações que conteúdos mais próximos dos alunos e de metodologias mais
se espera alcançar: participativas. Os próprios jovens e adultos são membros de
coletivos sociais, raciais e de gênero que precisam ser inseridas
dentro do universo dos planos das políticas públicas.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

Dados do IPEA 2015 revelam que a média de anos de qualquer menção específica ao profissional que desenvolve
estudo das pessoas de 15 anos de idade ou mais, segundo cor/ seu trabalho nessa modalidade de ensino. Conforme dados da
raça e localização do domicílio, na região Norte, era de 7,8 anos Secretaria Municipal de Educação (SEMED)2, no ano de 2018,
de estudos para negros e pardos, em contrapartida, 9,0 anos o município de Araguaína contou com 35 escolas e 10 delas
para a população branca. Já em relação ao gênero, os números ofertaram a modalidade EJA na zona urbana, solidificando um
do IBGE/PNAD 2001 constataram que 11,5 dos declarantes do trabalho com o 1º e 2º segmentos. Nestas escolas, atuaram 60
gênero masculino são analfabetos em oposição a 11,0 do gênero profissionais de diferentes formações, atendendo a um total de
feminino, conforme o gráfico abaixo: 971 estudantes matriculados.

Gráfico 1 – Analfabetismo e gênero Os interlocutores da pesquisa são cinco professores da


disciplina de História, do II segmento da Educação de Jovens
e Adultos. A proposta consistiu em construir atividades de
ensino através de uma metodologia compartilhada no trabalho
de Formação Continuada3. Os participantes escolheram uma de
suas turmas para a aplicação da metodologia. A escolha foi feita
livremente, pelo próprio docente, tendo em vista que a pesquisa
pretendeu considerar um percentual de amostragem dentro da
realidade municipal que, como já mencionado, possui 10 escolas
que trabalham com a modalidade EJA4.

O encontro com os professores resultou na construção de duas


Fonte: Mapa do Analfabetismo no Brasil/INEP (2001).
oficinas que trataram de questões ligadas à memória, Identidade
e História. A ideia era despertar nos professores a “vivacidade do
A questão da cor/raça revela um distanciamento carac-
passado, a recuperação do vivido conforme concebido por quem
terístico da desigualdade histórica preponderante no país e que
viveu” (ALBERTI, 2004, p. 16). Logo em seguida, passamos
também se apresenta em um nível considerável em Araguaína.
para as discussões sobre a elaboração de um roteiro que desse
Já o analfabetismo entre as mulheres é praticamente o mesmo
conta de colher a trajetória de vida dos estudantes. Decidimos
que entre os homens. Nesse sentido, os excluídos do sistema
educacional são, geralmente, pobres e negros. 2 Informações repassadas pela Diretora do Ensino Fundamental via questionário
prévio para levantamento de informações para a pesquisa.
Ainda com relação ao Plano Decenal Municipal, deve-se 3 Toda a pesquisa contou com o apoio CAPES.
destacar o silenciamento sobre os professores da EJA. Inexiste 4 Dados fornecidos à pesquisadora pela Secretaria Municipal de Educação do ano
de 2018.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

focar na trajetória educacional: 1- Lugar de origem; 2- Início da As informações obtidas especificamente sobre o perfil dos
vida estudantil; 3- O distanciamento da escola; 4- A vida como professores que se tornaram interlocutores desta pesquisa podem
lugar de aprender; e 5- Reencontro com a escola. ser conferidas no Quadro 15.

A segunda fase da pesquisa tratou da aplicação das oficinas Quadro 1 – Perfil dos profissionais do ensino
pelo professor participante e da produção da trajetória de vida de História da EJA em Araguaína
dos estudantes. A terceira e última fase deste trabalho, consistiu
5. HÁ QUANTOS
na realização de um novo encontro de formação continuada para 4. QUAL O ANOS VOCÊ
a análise coletiva dos relatos dos alunos. Por fim, organizamos 3. COMO SEU NÍVEL DE OBTEVE O
1. SEXO 2. IDADE VOCÊ SE ESCOLARIDADE NÍVEL DE
Eixos Temáticos articulados com as vivências e interesses locais, CONSIDERA? (ATÉ A ESCOLARIDADE
GRADUAÇÃO)? ASSINALADO
em uma proposta de interação das trajetórias de vida com o ANTERIORMENTE?
currículo escolar da EJA. Até 24 Branco Há 02 anos
Feminino 04 01 01 Pedagogia 04 01
anos (a) ou menos
De 25
PERFIL DOS PROFISSIONAIS DO ENSINO Masculino 01 01 Preto (a) 01 História 01 De 03 a 07 02
a 29
DE HISTÓRIA DA EJA EM ARAGUAÍNA Outro -
De 30
02 Pardo (a) 03 De 08 a 14 01
a 39
De 40
No ano de 2018, havia 11 professores de História distribuídos em a 49
01 De 15 a 20 01

10 escolas municipais. Em um encontro promovido pela pesqui- Fonte: Dados da pesquisa.


sadora, em parceria com a Secretaria de Educação, convidamos
todos os professores a participar como sujeitos colaboradores A maioria dos professores é mulher, com idades variadas,
da pesquisa, mas apenas 05 aceitaram. Os motivos da recusa sendo que dois participantes possuem a faixa etária entre 30 e 39
já revelam pontos peculiares da problemática que diz respeito anos. Em relação à raça, três dos sujeitos se consideram pardos.
ao universo da EJA na cidade. Em pesquisa anterior, divulgada No que se refere ao curso de graduação, a maior parte é formada
no demonstrativo das características dos sujeitos da EJA reali- em Pedagogia, apenas um professor possui Licenciatura em His-
zada pela SEDUC, no ano de 2007, já haviam sido identificados tória. Destacamos aqui a necessidade de reflexão quanto à função
alguns problemas relacionados à lotação e carga horária entre do pedagogo no Brasil. Libâneo (2001, p. 44), ao tratar sobre a
os profissionais do estado, “isto é decorrente não só das próprias busca da identidade desse grupo, ressalta que o “Pedagogo é o
condições institucionais, mas também devido aos não avanços
na institucionalização das políticas públicas voltadas para essa
5 As perguntas do questionário foram organizadas em blocos que representam
modalidade” (TOCANTINS, 2008, p. 35). os aspectos analisados e os dados estão dispostos em quadros para facilitar a
compreensão.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

profissional que atua em várias instâncias da prática educativa, público, conforme aponta Silva (2004, p. 231), tem “a função de
direta ou indiretamente, ligadas à organização e aos processos voltar-se para a superação dos mecanismos de exclusão presentes na
de transmissão e assimilação ativa de saberes [...]”. Dessa forma, sociedade e incorporados pela escola em seus princípios educativos
o desempenho de atividades trabalhistas se manifesta de modos e na sua organização cotidiana”.
diferentes, legitimando, inclusive, a docência em diversos níveis6.
Ao tratar da formação dos docentes da disciplina de
Schimidt alerta que precisamos “entender que o conhecimento
História na EJA de Araguaína, é preciso considerar múltiplos
histórico não é adquirido como um dom” (2004, p. 54), o que
aspectos que incidem sobre a graduação inicial. As respostas do
implica dizer que se exige formação na área específica.
questionário aplicado sobre esse quesito, constantes no Quadro
Outro fator de destaque trazido pelos dados é o gênero 2, indicaram as seguintes informações:
feminino. Como aponta Faria Filho (2005) sobre a feminização
Quadro 2 – Formação dos profissionais do ensino
do magistério,
de História da EJA em Araguaína

9. VOCÊ
PARTICIPOU
[...] a atuação no magistério pelas mulheres, 8. INDIQUE A DE ALGUMA
18.VOCÊ
independente da classe social, é permeada de 6.EM QUE UTILIZADA OS
7. DE QUE MODALIDADE ATIVIDADE
TIPO DE CONHECIMENTOS
muitos significados, desde a conciliação dos INSTITUIÇÃO
FORMA VOCÊ DE CURSO DE DE
ADQUIRIDOS
REALIZOU PÓS-GRADUAÇÃO FORMAÇÃO
afazeres da casa, ao ‘protagonismo feminino’ VOCÊ FEZ O NAS ATIVIDADES
O CURSO DE MAIS ALTA CONTINUADA
com a entrada no mercado de trabalho, até ter SEU CURSO DE FORMAÇÃO
SUPERIOR? TITULAÇÃO QUE NOS
SUPERIOR? CONTINUADA EM
o ‘poder’ de ganhar o pão de cada dia (apud VOCÊ POSSUI: ÚLTIMOS
SALA DE AULA?
FEITOSA, 2017, p. 9). DOIS
ANOS?
Especialização
Pública
03 Presencial 03 (Mínimo de 360 03 Sim 04 Quase sempre 01
Federal
Mas, certamente, a feminização do magistério reflete as horas)

Não fiz ou ainda


condições sócio-econômicas de muitas mulheres das famílias tocan- Pública
Estadual
01 Semi-presencial 01
não completei o
curso de pós-
02 Não 01 Eventualmente 03

tinenses que, impossibilitadas de realizar outros cursos superiores, graduação

Privada 01 À distância 01 - Quase Nunca 01


tiveram que “optar” pela docência como meio de sustento, uma vez
Fonte: Dados da pesquisa.
que os cursos das universidades públicas se concentram, em sua
maioria, nas modalidades voltadas para a docência.6 O espaço escolar As evidências demonstram que a universidade pública fede-
ral formou a maioria dos professores. A Faculdade de Educação,
6 Conforme a Resolução do CNE/CP nº 01, de 15 de maio de 2006, que institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licen-
ciatura, o Art. 4º preleciona que “O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se lidade Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em
à formação de professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos” (BRASIL,
e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na moda- 2016, p. 11, grifo nosso).

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

Ciências e Letras (FACILA), criada pela lei estadual nº 9.470,


meio do estabelecimento de parcerias com
de 11 de julho de 1984, que foi a primeira a existir na cidade de
instituições de ensino superior, associações de
Araguaína, ofertava os cursos de Letras, História, Geografia, professores e organizações da sociedade civil
Estudos Sociais e Ciências. Em 1990, a instituição passou por (UNESCO, 2010, p. 13).
um processo de integração e veio a se tornar a Universidade do
Tocantins, (UNITINS), mantendo a maioria dos cursos centrados Entretanto, ao considerar a experiência profissional voltada
nas licenciaturas, até o ano de 2003, quando toda a sua estrutura para o público específico da EJA, entre 06 e 09 anos, as respostas
foi repassada para a implantação da Universidade Federal do apresentaram uma realidade singular para cada participante da
Tocantins (UFT). Essa breve trajetória reforça a evidência de pesquisa, expressando o perfil heterogêneo que compõe esse
que a universidade pública foi responsável pela formação inicial aspecto na realidade de Araguaína. A questão da rotatividade
de muitos profissionais que vieram a compor o corpo docente nas escolas, faz parte das questões administrativas e implica
do estado. dizer que:
Nenhum dos professores possui formação específica para
a atuação docente na Educação de Jovens e Adultos. Soares A rotatividade dos professores nas escolas pode
(2008, p. 85-86) menciona que “as ações das universidades com ser explicada por muitos fatores, desde uma
relação à formação do educador de jovens e adultos ainda são mobilidade interna às redes e ao sistema, em que
os professores optam por mudar de escola por
tímidas se se considera (...) o potencial dessa instituição como
questões de ordem pessoal ou profissional, no
agências de formação”. As disciplinas curriculares obrigatórias, sentido de buscar melhoria nas suas condições
até mesmo nos cursos de licenciatura em História, são inexis- de trabalho ou mesmo maior comodidade em
tentes. É válido lembrar, ainda, que essa necessidade já estava termos de localização geográfica, até em função
do abandono da profissão (PEREIRA e OLIVEIRA,
prevista no Marco de Ação de Belém, publicado em 2010, após
2016, p. 315).
a 6ª Conferência Internacional de Educação de Adultos (CON-
FINTEA). Este documento demonstra uma preocupação com a
qualidade na formação do professor para o bom desenvolvimento Além da rotatividade, é preciso acrescentar, ainda, o vín-
de experiências profissionais: culo empregatício que o/a professor/a estabelece com o serviço
público. No caso dos sujeitos colaboradores deste trabalho,
três são professores efetivos e dois são contratados7. Relações
Qualidade: Melhorar a formação, a capacitação, contratuais são também fontes de empecilho para a fixação dos
as condições de emprego e a profissionalização
dos educadores de adultos, por exemplo, por
7 Dados da SEMED repassados pela Diretora do Ensino Fundamental via questionário
prévio para levantamento de informações para a pesquisa.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

profissionais em serviço, pois, muitas vezes, o que garante a con-


tratação temporária são fatores diretamente ligados aos acordos Nós professores (...) sabemos também que
aprender, para nós e para os alunos, não significa
políticos com os governantes que são eleitos. simplesmente acumular informações, mas
selecioná-las, organizá-las e interpretá-las em
Os desafios educacionais do tempo presente apontam ainda
função de um sentimento que lhe atribuímos,
para a necessidade de se pensar sobre o lugar que a educação decorrente da nossa biografia afetivo-cognitiva
tem ocupado. Essa demanda é ainda mais aprofundada no que (ALMEIDA, 2004, p. 119).
se refere ao campo do ensino de História que, cada vez mais,
tem sido forçado a provar a sua legitimidade junto aos alunos e
Na Educação de Jovens e Adultos, uma das maiores difi-
a sociedade em geral. Cada estado e munícipio tem a função de
culdades da prática docente se encontra na decisão dos conteúdos
organizar, conforme as diretrizes curriculares já existentes, os
a serem trabalhados durante o ano letivo. Comumente, essa é
objetivos e conteúdos que caberão à disciplina e, por conseguinte,
uma questão deixada para as propostas oficias que organizam
as práticas pedagógicas devem ser definidas pelo profissional
os referenciais curriculares. Entretanto, como mencionado pelos
atuante na área. “A História enquanto disciplina tem por objetivo
professores de Araguaína, esses documentos não costumam
subsidiar o educando na análise dos acontecimentos dentro de suas
alcançar a orientação mais significativa para o trabalho pedagó-
temporalidades para que o mesmo tenha condições de responder
gico. Ao discutir com os docentes da EJA de Araguaína sobre o
as problemáticas contemporâneas” (TOCANTINS, 2008, p. 102).
ensino de História, foi ressaltado que:
Realizar práticas pedagógicas que valorizem as memórias
e as identidades dos estudantes é tentar conhecer quem são esses
Pesquisadora: Esse encontro tem a intenção de
sujeitos históricos que estão presentes no universo escolar e como
dialogar especificamente acerca do ensino de História
essas informações podem ser utilizadas dentro do ensino. Essa na EJA. Abrir um espaço para conversarmos sobre
metodologia propicia um caminho possível para que sujeitos isso. Araguaína possui 10 escolas que trabalham
percorram a temporalidade de suas vidas, reflitam sobre seus com a EJA e nelas atuam 60 professores/as. 11
professores/as ministram a disciplina de História
significados e percebem suas raízes, lastros e, sobretudo, se afir-
e 2 deles possuem a formação na área, o restante
mem individual e coletivamente no presente. Assim, o ensino de é formado em áreas diversas.
História, quando fundamentado em uma perspectiva pedagógica
crítica, pode privilegiar os diálogos entre os conhecimentos his- Professor/a1: As aulas de História aqui em
tóricos e a realidade dos estudantes, que tem imensa relevância Araguaína são muito complicadas, temos um
para os processos formativos da EJA (NICODEMOS, 2015). currículo defasado e bem distante da realidade
dos nossos alunos... Não é algo simples de fazer...
Como ressalta Almeida:

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

Professor/a1: Tudo que pode ajudar é bem-vindo.


Professor/a 2: E dá aula de tantas disciplinas, A gente não tem muitos conhecimentos sobre
onde a formação da gente não é tão específica a História, eu mesmo uso muito a internet para
assim... Não é muito fácil não... me ajudar...

Professor/a 3: Na verdade falta mais formação Professor/a 3: Mas também nem sempre dá para
continuada que trabalhe as disciplinas né! Todo ano usar o que é repassado em formação... Claro que
tem encontro, mas são poucos para os problemas sempre é conhecimento, mas tem que servir para
que a gente enfrenta. as necessidades do dia a dia [...].

Professor/a 1: E motivar os alunos que vem


Os trechos anteriores revelam algumas das dificuldades
cansado de tanto trabalho é difícil! A gente precisa
de capacitação mesmo! da prática docente e da formação continuada de professores da
EJA. De acordo com Imbernón (2010, p. 63), “na formação é
Professor/a 5: E sem falar com tantas atividades necessário abandonar o individualismo docente a fim de chegar
que temos que fazer... Não sobra muito tempo ao trabalho colaborativo”. Só a colaboração pode gerar “reais
para quase nada... possibilidades de maior autonomia e intervenção nessa moda-
lidade de ensino, bem como a reorganização do currículo e das
Professor/a 2: Eu até achei que tinha entrado na
práticas pedagógicas” (SÉRGIO, 2015, p. 118).
sala errada, porque a formação hoje tem poucas
pessoas, geralmente a formação é com o grupo
todo que dá aula na EJA.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pesquisadora: A proposta desse trabalho de


formação é pensar especificamente, como já Elaborar um curso de formação com e para os professores da
explicado anteriormente, o ensino de História, Educação de Jovens e Adultos (EJA) é oportunizar a troca de
mas em um trabalho colaborativo, onde juntos experiências individuais e saberes coletivos, mas, ao mesmo
vamos buscar estudar e desenvolver meios que
tempo, exige algo mais profundo, ligado à transformação dessas
leve a melhoria para o ensino de História.
dimensões coletivas em conhecimento profissional, ligando a
Professor/a 2: Eu achei importante participar, própria formação dos professores ao propor o desenvolvimento
nem todos os alunos tem facilidade com as aulas de projetos educativos nas escolas (NÓVOA, 2009).
de história, acho que pode ser bom...
A coletividade fomentada na perspectiva da inserção do
estudante como protagonista exigiu o redimensionamento do

242 243
HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS PERFIL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO...

próprio conceito de grupo, o que pode ser observado no comen- ensino fundamental completo. Disponível em: <https://agenciadenoticias.
ibge.gov.br/>. Acesso em: 14 jun. 2019.
tário anteriormente descrito pelo/a Professor/a 2: “Eu até achei
IBGE [cidade]. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:
que tinha entrado na sala errada, porque a formação hoje tem
<https://cidades.ibge.gov.br/>. Acesso em: 01 dez. 2019.
poucas pessoas, geralmente a formação é com o grupo todo IMBERNÓN, Francisco. Formação Continuada de Professores. Tradução de
que dá aula na EJA”. A noção de grupo pré-constituída pelo Juliana dos Santos Padilha. Porto Alegre: Artmed, 2010.
participante da pesquisa, referenciava a todos os funcionários INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Anísio Teixeira. Sinopse
Estatística da Educação Básica 2017. Brasília: Inep, 2018. Disponível em:
das escolas que participavam habitualmente dos encontros de
<http://inep.gov.br/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica>. Acesso em:
formação organizados pela Secretaria Municipal. O “novo” 01 dez. 2019.
grupo que passou a se formar para a concepção deste trabalho, IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Disponível em: <http://
redimensionava-se para um número menor e com a característica www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_
content&view=article&id=1226&Itemid=68>. Acesso em: 15 fev. 2019.
específica da docência no ensino de História na EJA.
MARTINS, Raquel Silveira. Os Fóruns de EJA como espaço de formação
continuada de professores: análises por meio de grupos de discussão.
Formação Docente, Belo Horizonte, v. 05, n. 08, p. 92-108, jan./jun. 2013.
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(Mestrado Profissional em Ensino de História) – Universidade Federal do Educação de Jovens e Adultos nos dias atuais: como professores de História
Tocantins, Araguaína-TO, 2018. selecionam os seus conteúdos? In: MOURA, Ana Paula Abreu; SERRA, Enio
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro. Editora (orgs.) Educação de Jovens e Adultos em Debate, Jundiaí: Paco Editora, 2017.
FGV, 2004. NÓVOA. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.
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HADDAD, Sérgio; SIQUEIRA, Filomena. Analfabetismo entre jovens e adultos SOARES, Leôncio. O educador de jovens e adultos e sua formação. EDUC.
no Brasil. Revista Brasileira de Alfabetização, Vitória (ES), v. 1, n. 2, p. 88-110, rev. [online], 2008, p.83-100. ISSN 0102-4698.
jul./dez. 2015. TOCANTINS, Governo do Estado. Secretaria de Educação e Cultura. Proposta
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2016: 51% da população com 25 anos ou mais do Brasil possuíam apenas o

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

UNESCO. Educação de Adultos. Declaração de Hamburgo. Agenda para o


Futuro: V Conferência Internacional de Educação de Adultos (V CONFINTEA).
História Local e Regional
Hamburgo, Alemanha, 14 a 18 de julho de 1997.
VENTURA, Jaqueline. As relações entre os sentidos do trabalho e a educação
de jovens e adultos. In: MOURA, Ana Paula Abreu; SERRA, Enio (orgs.). Aletícia Rocha da Silva
Educação de Jovens e Adultos em Debate. Jundiaí: Paco Editora, 2017.

INTRODUÇÃO

A historiografia brasileira, entre os séculos XIX e início do XX,


é marcada pelas práticas de uma história macro, nacional ou
uma História Geral. Em um país de enorme vastidão territorial,
a história dos grandes centros é difundida como a história da
nação. O viés negativo de uma abordagem centrada apenas no
nacional é que aspectos políticos, econômicos e sociais de uma
enormidade de locais e comunidades são diluídos ou invisibili-
zados. Para o ensino de História, o afastamento dos temas locais
causa o estranhamento dos alunos em relação às aulas porque não
deixa espaços para reconhecimento da historicidade dos mesmos.
A contrapartida da historiografia foi a valorização dos estudos
locais e regionais que possibilitou a abertura para uma vastidão
de objetos, fontes e metodologias e, com ela, a necessidade de
um pensar o campo teórico-conceitual.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional

A trajetória dos estudos de História Local e Regional está de urbanização e formação de uma classe industrial no estado
ligada ao surgimento da Nova História, na França, em 1929, o de São Paulo, de forma que apaga outros processos históricos
que possibilitou uma nova concepção de objetos, fontes e docu- que ocorriam nas regiões Centro-Oeste ou Norte do Brasil ou
mentos no métier historiográfico. No Brasil, pesquisas nesta área até mesmo nas pequenas cidades interioranas.
cresceram a partir dos anos 1970. Segundo Bittencourt (2005,
p. 161), essa ampliação se deve, sobretudo ao esgotamento das
A EXPANSÃO DOS ESTUDOS REGIONAIS E LOCAIS
macroabordagens focadas em análises gerais. A autora pontua que:

Geralmente, nas macroabordagens históricas os processos


A história regional passou a ser valorizada em específicos ficam à sombra da história dos centros do poder. O
virtude da possibilidade de fornecimento de contraponto a esta prática oportuniza a expansão dos estudos
explicações na configuração, transformação e regionais e locais, como esclarece o professor Luís Carlos Borges
representação social do espaço nacional, uma
da Silva:
vez que a historiografia nacional ressalta as
semelhanças, enquanto a regional trata das
diferenças e da multiplicidade. A história regional A História Regional e Local se configura como
proporciona, na dimensão do estudo do singular, um valioso instrumento metodológico para
um aprofundamento do conhecimento sobre a o professor de História, pois a abordagem de
história nacional, ao estabelecer relações entre conteúdos voltados para o local e o regional
as situações históricas diversas que constituem possibilita a elaboração de um olhar diferenciado
a nação (BITTENCOURT, 2005, p. 161). acerca do saber histórico, capaz de acusar uma
visão crítica entre os educandos, bem como,
permite a efetivação da noção de cidadania
No tempo presente, o enfoque dado à História Local por
no ambiente escolar, uma vez que o objeto de
diversos pesquisadores, apresenta várias possibilidades de estudo estudo se apresenta como familiar a realidade
da História, da arte e da cultura nas dimensões mais próximas da de vida dos estudantes (SILVA, 2013, p. 10).
realidade dos alunos. Ao contrário de uma História geral como,
por exemplo, “economia açucareira”, fenômeno que não foi per-
De certo, a abordagem do local nas aulas de História é
cebido em todas as regiões, ou a “industrialização do Brasil”, fato
extremamente vantajosa pela proximidade dos conteúdos com o
que, da forma como é apresentado nos textos didáticos, poderia
público estudantil. Todavia, a criticidade levantada pelos estudos
definitivamente ser renomeado como “industrialização de São
do local e regional deve ser estendida muito além do confronto
Paulo”, no máximo “industrialização do sudeste”, visto que o
nacional versus regional. É necessário levantar as motivações
estudo e abordagem se concentram exclusivamente no processo
que levam o historiador a escolher as temáticas locais, ou qual

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional

a definição de local e regional este acolheu na sua pesquisa e política e geográfica visto que, no ano de 1980, por exemplo, este
na sua vivência. Se, de um lado, o estudo do Local e Regional ainda não existia. Na época da criação da rodovia Belém-Brasília,
se mostra mais ligado ao dia a dia dos envolvidos, por outro, há um fato importante para a história das migrações e construção de
de pensar se essa definição está servindo como legitimação dos cidades no Tocantins, esta região era chamada de Goiás. Logo,
discursos políticos hegemônicos dos grupos de poder de cada não se pode escrever uma história local e regional de qualquer
região, visto que a escrita historiográfica pode vir a assumir cidade nascida após a criação da famosa rodovia no Tocantins e
propósitos de criação de uma dada memória e legitimação de fazer menções de memórias de mais de trinta anos sem correr o
poder sobre um espaço ou território ou que, feita sem a devida risco de anacronismo. Nenhum morador desta terra se declararia
reflexão, pode acabar por simplesmente reproduzir os discur- tocantinense. Afinal, existia o próprio estado do Tocantins. No
sos dos vencedores. Configura-se, neste ponto, os cuidados e entanto, alguns textos escritos logo após a criação do estado do
a necessidade de pensar desde a definição dos conceitos até a Tocantins, elogiam o clamor popular pela emancipação, pela
compreensão que o historiador do local e regional assimila das afirmação de uma identidade puramente tocantinense. Assim,
palavras “local e regional”. chamamos atenção para que a História Local e Regional venha
a ser feita deixando bem claro que região é um termo referente
Em uma definição etimológica, a palavra região deriva do
ao território, visto como um espaço de luta e disputas políticas.
latim “regere”, cuja tradução é controlar, dominar, reger, gover-
nar. Também deriva da mesma a expressão “régia”, referente ao A necessidade de assumir uma postura crítica frente ao
poder dos reis. Logo, região é a área que não se estrutura e não documento oficial, em se tratando de investigar lugares resultantes
se mantém sem o exercício de poder e fiscalização. A palavra de divisão territorial e as identidades que se querem negar ou
Regere também deu origem ao vocábulo “regional”. Claramente, admitir em determinado espaço, é levantada por Durval Muniz
o termo região tem sentido associado ao aspecto físico, geográfico de Albuquerque Junior, no texto Um Quase Objeto: algumas
ou espontâneo. Portanto, ao se falar de identidade regional, por reflexões em torno da relação história e região (2015).
exemplo, já temos em mente que a identidade foi alicerçada na
memória coletiva e social, logo, o sentimento de regionalidade
Quando o historiador consulta a documentação
apresenta um modo constituinte e estruturante bastante comum
oficial e assume acriticamente a divisão territorial,
ao de identidade se estivermos levando em conta uma região pelo as identidades espaciais que a organizam e
viés do oficial e governamental, ou seja, a regionalidade surge atribui a ela dados sentidos, como, por exemplo,
a partir de um esforço de construção. a de serem expressões de identidade nacional,
regional ou local, o historiador pode estar se
Tomando-se o estado do Tocantins como “região”, fica deixando capturar pela rede de poderes e de
explícito como o termo se refere a uma categoria absolutamente interesses que levantaram à guarda e à organização

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional

Goiano, as pessoas que migraram para cidades como Colinas


daquela documentação a partir de uma dada
do Tocantins, Araguaína ou Guaraí há mais de 30 anos ainda
divisão espacial, quando esta pode ser apenas
aquela divisão que os grupos sociais dominantes
respondem que são maranhenses, piauienses e goianas. Outro
naquele momento quiseram impor como sendo exemplo grande das diversas disputas que ocorrem nesta parte
a divisão espacial de fato e de direito, divisão do país é em relação ao pertencimento a macrorregião Norte,
que poderia ter sido, naquele momento, objeto pois muita gente dentro e fora do Tocantins ainda ignora que o
de questionamento por outras forças sociais
estado não mais faz parte do Centro-Oeste.
(ALBUQUERQUE JUNIOR, p. 47-48, 2015).

Para o autor, a região é um objeto em fuga, que se busca HISTÓRIA LOCAL E REGIONAL NO TOCANTINS
capturar e definir infinitamente. Faz parte da necessidade humana,
pelo menos na cultura ocidental, de possuir, limitar e controlar a Até 1988, o estado do Tocantins, ou antigo norte goiano, era defi-
terra. A região é inventada e reinventada como parte da neces- nido pelo IBGE1 como integrante da macrorregião Centro-Oeste
sidade utópica de criar a identidade e a diferença. Afinal, se sou e na data precisa de 05 de outubro de 1988 passou a pertencer à
tocantinense, isso implica dizer que não sou maranhense e nem região Norte. Acontece que uma mudança destas significa muito
pernambucana e quem não se declara tocantinense é diferente além do câmbio de uma nomenclatura, ela mexe com séculos
de mim. Uma invenção que se apoia em várias outras manifes- de enraizamento de regionalidade e identidades construídas por
tações de aspecto cultural, sendo a própria cultura arquitetada um sistema que gerou divisões, debates e até espaço para pre-
e sustentada, de acordo com o antropólogo estadunidense Clif- conceito e xenofobia. O sentimento de pertencimento a uma das
ford Geertz (2008), por um conjunto de símbolos e significados cinco regiões foi um processo de construção que Albuquerque
coletivos que reproduzimos para sermos aceitos no grupo social, Junior detalha na sua tese de doutoramento e livro A Invenção
estando o homem, assim, preso a esta teia de significados que do Nordeste e outras Artes, nos quais analisa como o processo
ele mesmo ajudou a tecer. A região, neste contexto, almeja de nordestinização foi construído em uma parte do país através
estabelecer a área física de atuação e validade destes símbolos da música, obras literárias, estudos sociológicos, cinema e teatro
e significados culturais. de modo a afirmar a diferença daquela parte do país de todas as
outras. Ou seja, de como se criou uma região.
Levantadas estas questões, Albuquerque Junior defende que
o historiador tenha a prerrogativa de definir sua própria região e
questionar limites impostos politicamente. Ora, o nosso trabalho 1 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é o órgão responsável pela
divisão regional do território brasileiro. Para reunir estados em uma mesma região
é feito em um local que a região e a identidade mudaram nos são utilizados critérios como semelhanças nos aspectos físicos, econômicos,
últimos anos. Por exemplo, o estado do Tocantins já foi Norte culturais, humanos e sociais. A divisão em vigor foi estabelecida no ano de 1970,
definida por cinco Regiões: Norte, Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional

O nosso local, especificamente nas cidades fundadas a tes. Uma vez que, para esses povos, divisões políticas estatais
partir da década de 1960 no estado do Tocantins, é um território resultantes de disputas de representações, não fazem sentido.
em que se pode perceber a plasticidade e liquidez das identidades. A exemplo do povo Karajá que tem como eixo de vivência
Primeiro que muitos dos imigrantes ainda não se consideram o rio Araguaia, no qual constroem as aldeias às margens do
tocantinenses. Quando perguntados de onde são, a resposta sempre rio e seguem acompanhando o regime de cheias e melhores
remete à terra natal: sou maranhense, sou piauiense, sou mineiro. pontos de pesca ao longo do ano. Para a cosmovisão dos
Declarações que ouvimos de pessoas que, mesmo morando há brancos, este rio atravessa quatro estados da federação. Mas
trinta, quarenta ou cinquenta anos aqui, se orgulham da origem teria alguma pertinência para estes povos, que concebem as
“nordestina”, esta também criada e muitas vezes caricaturada. águas do Araguaia como o próprio sangue que corre em suas
Portanto, se o ensino de História pode contribuir para reforçar as veias, definir se aquela parte do rio está no Tocantins, Goiás,
identidades e regionalidades, ele serve também para questioná-las Pará ou Mato Grosso? Igualmente para a população branca e
e mostrá-las em sua multiplicidade. ribeirinha do Tocantins, que pesca no rio e cada margem já
representa um município diferente. Em muitas áreas, é o rio
Diante disso, temos algumas considerações sobre a nossa
Araguaia a fronteira natural entre os estados do Tocantins e
definição de região. O território onde ficam as cidades de Colinas
Pará. Então, para as pessoas em ambas as margens, qual seria
do Tocantins, Guaraí, Araguaína e outras cidades do entorno,
a diferença entre o modo de vida paraense ou tocantinense?
tem grandes semelhanças com o território maranhense (definido
Não parece um tanto mais admissível definir o Araguaia como
Nordeste), paraense, (Norte) e Goiano (Centro-Oeste). A seme-
a região desses ribeirinhos?
lhança deriva-se do ajuste que os povos fizeram para habitar as
terras da bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins. Faz-se pertinente A definição de local é ainda mais ambígua, afinal todo
lembrar que nossos habitantes originais são os povos indígenas lugar é um local. Se o historiador estiver em qualquer uma
de diversas etnias que vivem nesta terra. Da mesma forma, os das cidades do Brasil com população de mais de um milhão
primeiros ciclos de exploração feitos pelos portugueses se davam de habitantes, não há razão para negar que este faz História
pela bacia Araguaia-Tocantins. Assim, povos das fronteiras dos Local. Entretanto, presume-se que a alcunha de História Local
três estados dividem uma história de migrações e povoamento só ocorre quando é feita em regiões menores. Resta prevenir
muito comuns. Povos que construíram seu espaço de vivência qualquer presunção de que este tipo de trabalho seja feito
muito antes que alguém ou algum órgão chegasse e dividisse, com um olhar de depreciação ante ao nacional e internacional
limitasse e nomeasse como macrorregião, estado, cidade. quando o historiador trata das cidades do interior. Cuidemos
em admitir também como “local” o lugar de onde fala o his-
Essas divisões geram ainda divergências porque temos
toriador e constrói sua História Local. Ideia defendida pela
terras indígenas que não podem ser divididas por esses limi-
historiadora Maria da Conceição Meireles Pereira:

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS História Local e Regional

Pela sua natureza, a História Regional pode acrisolar,


evidentemente sem bairrismos exagerados literatura local à etnologia, e estão referenciadas
e deslocados, o amor aqui entendido como a história política e institucional, a econômica
conhecimento da terra de origem ou de adoção, e social, a cultural e das mentalidades. O mais
servindo inclusivamente, entre as camadas mais curioso é que ainda poderíamos citar muitas
jovens, como propedêutica ao estudo geral outras, como a genealogia, a numismática, os
da história e a preparação para a cidadania: é movimentos populacionais, a história da arte,
mais apelativo aprender a evolução das suas o urbanismo, enfim, a lista seria interminável
comunidades, conhecer o passado de realidades e (PEREIRA, 2012, p. 42-43).
espaços próximos e familiares, do que apreender
problemáticas nacionais com as quais as afinidades
dos adolescentes são remotas (PEREIRA, 2012, p. 33). Como pontuado pela autora, as possibilidades do local e do
regional são infindáveis. O que promove uma grande oportuni-
Esse exercício de explorar o local e o regional, conforme dade de trabalho, com diversos temas e enfoques e desperta uma
apontado pela autora, carece do exercício metodológico, uma variedade de cuidados teórico-metodológicos. Assim, enfrentados
vez que não se tem como foco na história da comunidade, não os riscos e atento às críticas, o historiador do local e regional tem
pode ser realizado sem o diálogo com o nacional. em mãos uma história que não se deve deixar aprisionar em defi-
nições espaciais políticas ou que seja feita como olhar negativo
frente ao nacional. Uma história que se mostra com bem menos
À GUISA DE CONCLUSÃO
pretensão de neutralidade, uma vez que não há porque esconder
uma curiosidade passional pelo tema e pelo local. E, por fim, não
Feito o recorte do local, o volume de conteúdos que se pode
há porque disfarçar as adversidades ali encontradas, porque estas
explorar e suas intersecções representarão o verdadeiro desafio.
também atingem o historiador. Portanto, dentro da pluralidade de
Afinal, o panorama plural da Histórica local e regional pode ser
objetos/problemas e benesses, a História Local e Regional preenche
um risco para quem a ela se dedica:
o ensino de História com a possibilidade real de historicizar o
local e o tempo em que se vive, uma vez que a História Regional
Esta área interliga-se por um conjunto pouco está atrelada ao tempo presente das comunidades.
perceptível de linhas e setas com áreas numerosas:
da geografia à biologia, da arqueologia industrial
e agrária à psicologia social, do patrimônio REFERÊNCIAS
à museologia, da etnografia à antropologia,
da paleografia e epigrafia à história oral, da ALBUQUERQUE JUNIOR. Durval M. Um Quase Objeto: Algumas Reflexões
em Torno da Relação Entre História e Região. IN. LEAL, Maria das Graças de
história do municipalismo à demografia, da
Andrade; FARIAS, Sara O. (Org.). História Local e Regional III- reflexões e

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

práticas nos campos da teoria, pesquisa e do ensino. Salvador. EDUNEB, 2015,


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INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de
Janeiro. Zahar. 2005
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2005.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008
PEREIRA, Maria da Conceição M. História Local e Regional- Singularidades
de uma História Plural. IN. FARIAS, Sara O; LEAL, Maria das Graças de
Andrade (Org.). História Regional e Local II: O Plural e o Singular em debate.
Salvador, EDUNEB. 2012. p. 23-53.
SILVA, Luiz Carlos Borges da. A Importância do Estudo de História Regional e
Local na Educação Básica.  In: XXVII Simpósio Nacional de História:
Conhecimento histórico e Dialogo Social – 26 a 26 de julho, 2013 Natal, RN.
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Alberto Pereira Lopes
NATAL_.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2018.
Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São
SILVA, Iltami Rodrigues da; VINHAL, Maria do Carmo B.; À Sombra da Estrada:
a Belém- Brasília e a fundação da Cidade de Colinas 1960-1965. Ipiranga. Paulo (USP). Professor adjunto no Curso de Licenciatura em
Araguaína. 2008. Geografia da Universidade Federal do Norte do Tocantins
(UFNT), Campus Araguaína. E-mail: beto@uft.edu.br.

Aletícia Rocha da Silva


Mestre em Ensino de História pelo Mestrado em Ensino de
História (ProfHistória) da Universidade Federal do Norte do
Tocantins (UFNT), Campus Araguaína. Professora da rede pública
de ensino do estado do Tocantins. E-mail: ahleticia@gmail.com.

Delismar Palmeira Costa


Professor do Instituto Federal do Tocantins (IFTO), campus
Araguatins. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal
do Tocantins (UFT), Campus Araguaína. Mestre em Geografia
pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), Campus Porto
Nacional. Doutorando em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás (UFG). E-mail: delismar.costa@ifto.edu.br.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES

Dhaiana Dias Costa Mariseti Cristina Soares Lunckes


Licenciada em História pela Universidade Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Federal do Norte do Tocantins (UFNT), Campus Professora aposentada do curso de História da Universidade
Araguaína. E-mail: dhaiana.dias@mail.uft.br. Federal do Tocantins (UFT). E-mail: marisetis@yahoo.com

Euclides Antunes de Medeiros Mirany Cardoso Lopes


Doutor em História pela Universidade Federal de Licenciada em História pela Universidade Federal do
Uberlândia (UFU). Professor do Colegiado de História Norte do Tocantins (UFNT). Professora de História da
da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), rede pública de ensino do estado do Tocantins.
Campus Araguaína. E-mail: eantunes@uft.edu.br
Neude Sirqueira dos Santos
Eugênio Pacelli de Morais Firmino Licenciada em História pela Universidade Federal do Norte
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). do Tocantins (UFNT). Email: neudesantos17@gmail.com.
Professor do Colegiado de História da Universidade Federal do Norte
Nilza de Araújo Silva
do Tocantins (UFNT), Campus Araguaína. E-mail: firmino@uft.edu.br.
Graduada em História pela Universidade Federal do
Gabriela Silva Nogueira Norte do Tocantins (UFNT) Campus de Araguaína.
Licenciada em História pela Universidade Federal E-mail: nilza.25soarez@gmail.com
do Norte do Tocantins (UFNT), Campus Araguaína.
Olivia Macedo Miranda de Medeiros
E-mail: silva.nogueira@uft.edu.br
Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História
Jorge Luis de Medeiros Bezerra Social da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professora do
Mestre em Ensino de História pelo Mestrado em Ensino de História Curso de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins
(ProfHistória) da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), (UFNT), Campus Araguaína. E-mail: oliviacorminero@uft.edu.br.
Campus Araguaína. Professor do Instituto de Educação, Ciência e
Risney Morgana Souza Alencar
Tecnologia do Tocantins (IFTO). E-mail: jorgearqueologia@gmail.com.
Licenciada em História pela Universidade Federal do
Laila Cristine Ribeiro da Silva Norte Tocantins (UFNT), Campus Araguaína.
Mestre em Ensino de História, pelo Mestrado em Ensino
Rosária Helena Ruiz Nakashima
de História (ProfHistória) da Universidade Federal do Norte
Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
do Tocantins (UFNT), Campus Araguaína. Professora de
Professora do Colegiado de História da Universidade Federal do
História efetiva da rede pública municipal de ensino de
Norte do Tocantins (UFNT) e do Programa de Pós-Graduação em
Araguaína-TO. E-mail: lailacristine300@hotmail.com.
Estudos de Cultura e Território (PPGCult). E-mail: rosaria@uft.edu.br.

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HISTÓRIA E MEMÓRIA DE ARAGUAÍNA - TOCANTINS

Sariza Oliveira Caetano Venâncio


Doutora em Antropologia pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Professora do Colegiado de História
da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT),
Campus Araguaína. E-mail: sarizacaetano@uft.edu.br.

Valdivina Telia Rosa de Melian


Doutora em Letras - Ensino de Língua e Literatura pela Universidade
Federal do Norte do Tocantins (UFNT), possui Mestrado em
Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do
Tocantins - PPGL/ UFT. E-mail: teliarosa@hotmail.com.

Vasni de Almeida
Professor Associado II da Universidade Federal do Tocantins, UFT,
Campus Porto Nacional, Curso de História. Docente do Programa
de Pós-Graduação em História das Populações Amazônicas –
PPGHISPAM e bolsista produtividade da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Tocantins – FAPT. E-mail: vasnialmeida@uft.edu.br

Vera Lúcia Caixeta


Doutora em História Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Colegiado de História
da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT)
e do Colegiado do Mestrado Profissional em Ensino de
História (ProfHistória). E-mail: caixeta@uft.edu.br.

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