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Universidade

de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
Literatura Comparada I
Professora Ana Paula Pacheco
Aluno: Vagner do Nascimento (7610469)


Um estudo comparativo entre Cidade de Deus, o livro, com Cidade de Deus
o filme.


Introdução

Cidade de Deus é um romance escrito por Paulo Lins, carioca nascido na
favela do Estácio em 1958 e que aos oito anos de idade, mudou-se com a família
para o conjunto habitacional Cidade de Deus depois que a enchente inundou o
bairro onde morava. O livro fala sobre o desenvolvimento desta favela, desde sua
fundação em 1966 até a tomada total do espaço pelos traficantes, nos idos dos
anos 1980.
Quando Paulo Lins cursava a Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, trabalhou como bolsista com a antropóloga Alba Zaluar uma
pesquisa que deu origem ao livro A Máquina e a Revolta. Seu trabalho era
entrevistar os habitantes, o que possibilitou a coleta de um grande material para
sua futura obra. Outra personalidade fundamental que incentivou Paulo Lins foi
Roberto Schwarz, que o apadrinhou e ajudou com que ele conseguisse a bolsa
Vitae de artes, possibilitando a finalização do livro.
Em 2002, Bráulio Mantovani adaptou o romance para o cinema e escreveu,
então, o roteiro para o filme homônimo dirigido por Fernando Meirelles, que foi
lançado no mesmo ano. O filme teve sucesso nas telas brasileiras: um público de
mais de 3,1 milhões de pessoas – o maior público de um filme nacional desde o
início dos anos 1990. Com ampla repercussão de público e crítica também no
exterior, foi indicado ao Oscar nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Roteiro
Adaptado, Melhor Montagem e Melhor Fotografia, além de ter recebido inúmeras
premiações e ter participado de alguns festivais de cinema.

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Objetivo

O objetivo deste trabalho é comparar as abordagens entre os dois meios (o
livro e o filme), e tentar levantar algumas questões sobre o papel do narrador em
ambos os casos, levando em consideração também os elementos do discurso que
provocam um contraponto entre os meios, onde em uma das obras pretende
chocar o leitor com a realidade crua da favela, e na outra banalizar a violência,
tornando Cidade de Deus uma obra de entretenimento e espetáculo.

O autor

Paulo Lins nasceu em 1958, no bairro do Estácio, berço do samba da cidade
do Rio de Janeiro. Por influência de sua tia, começou a interessar-se por
literatura ainda na infância. Não gostava de soltar pipa e também não sabia jogar
futebol como faziam as outras crianças. Assim, aproximou-se da música,
aprendendo a tocar instrumentos de escola de samba. Desfilou na ala da bateria
e, desde jovem, escrevia letras de música e sambas-enredo. Sua trajetória de vida
era diferente da maior parte dos novos moradores da Cidade de Deus, que foram
obrigados a desocuparem as favelas do centro da cidade por causa da enchente.
Sua família aproveitou o momento para adquirir uma casa própria e livrar-se do
aluguel. Lins conviveu com a violência, com tiroteios na vizinhança, perdeu
muitos amigos e conhecidos vítimas de balas perdidas e assaltos. Apesar disso,
nunca se envolveu com a criminalidade. Sua mãe o ensinava a evitar os bares do
bairro porque, segundo ela, eram pontos de encontro de criminosos e
alcoólatras.
Sua família gozava de situação financeira privilegiada em relação à maioria
dos moradores da Cidade de Deus, o que lhe permitiu uma vida devotada aos
estudos. Apesar de gostar de estudar, sua vida era difícil, pois tinha que descer o
morro para frequentar as aulas. Em sua sala de aula na Escola Estadual Azevedo
Sodré, não havia outro garoto negro além dele. Enquanto a grande maioria de
seus colegas de colégio precisava trabalhar para ajudar na renda familiar, ele
teve a oportunidade de ser aluno do curso de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). No entanto, não revelava a ninguém sua origem devido à

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rara presença de negros nas cadeiras universitárias. Consciente de sua distância
intelectual em relação aos colegas, procurou dedicar-se ainda mais aos estudos.
Ainda no período universitário, começou a lecionar e a participar das reuniões
da Associação de Moradores do bairro.
Na década de 1980, participou do grupo Cooperativa de Poetas, um
movimento de poesia independente que se caracterizava por distribuir nas ruas
poemas impressos em panfletos, camisetas e cartões. Dentre os artistas
brasileiros, Paulo Leminski foi o que mais incentivou Paulo Lins a seguir carreira
na poesia. Em 1986, Lins publicou o livro Sob o Sol, de poesia concreta. Nessa
mesma época foi convidado a trabalhar com a antropóloga Alba Zaluar no
projeto de pesquisa chamado Crime e Criminalidade nas Classes Populares na
Cidade do Rio de Janeiro. O trabalho de entrevistar os moradores da Cidade de
Deus que estavam direta ou indiretamente envolvidos com a criminalidade foi
relativamente fácil para ele, porque os criminosos sentiam-se à vontade com
uma pessoa com quem conviveram desde a infância. Zaluar pretendia que ele
escrevesse um relatório científico na área das ciências sociais, no entanto o que
nasceu desse trabalho foi um poema. Sua produção agradou muito ao crítico e
professor de literatura Roberto Schwarz, que a publicou na revista do Cebrap e
incentivou Lins a escrever o romance. O estudante aproveitou-se, então, do
material coletado pela pesquisa e de sua vivência pessoal para escrever Cidade
de Deus, que foi publicado em 1994.


Cidade de Deus, o livro

O livro de Paulo Lins descreve a favela Cidade de Deus e seus moradores, por
meio de três histórias - a de Cabeleira, a de Bené e a de Zé Pequeno - e através
delas a do bairro, durante os anos sessenta e setenta. A linguagem utilizada é
coloquial, chegando muitas vezes ao chulo. Cada personagem é mostrado com
desejos e ambições e como fazem para satisfazê-las utilizando na maioria das
vezes de meios criminosos. A polícia também é retratada, e quase na maioria das
vezes também de forma criminosa e corrupta. Toda rotina é contada com
detalhes somente possíveis para quem já morou no lugar: como se mata, como se

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rouba, de quem se rouba, qual é o melhor jeito de roubar, os contratempos a
serem evitados e os esquemas a serem armados, como deve ser o convívio com
os malandros, o que esperar deles, os códigos de ética e disciplina e as penas pelo
desrespeito.
Embora a primeira parte do livro se chame “A história de Cabeleira”, é mais
um emaranhado de personagens, tramas e sequências, na maioria delas brutais,
para situar o leitor naquela realidade social circunscrita. O personagem
Cabeleira tem índole boa, é o bom bandido, remete ao bom malandro.
Na segunda parte, ou “A história de Bené”, assiste-se ao crescimento do
número de crimes à mão armada, à maior sofisticação das armas e à expansão do
tráfico de drogas com o aumento significativo da quantidade de bocas-de-fumo.
A partir da larga difusão do uso da cocaína e, conseqüentemente, dos avanços
lucrativos do negociante do tóxico, instaura-se a formação de uma rede de
relacionamentos ao redor do traficante que começa a ficar poderoso. A figura do
traficante representa, cada vez mais, o poder hegemônico e a justiça dentro da
favela.
A terceira e última parte – a história de Zé Pequeno – apresenta o final da
década de 1970 e início dos anos 1980, período em que o tráfico de drogas já
domina toda a favela e seus limites. Esse capítulo pode ser visto como um relato
do poder abrangente que o tráfico imprime nas mentes dos envolvidos: os
bandidos querem ficar mais ricos e poderosos, os iniciantes (na maioria das
vezes, crianças de 8 a 12 anos) enxergam nos traficantes os heróis da favela. A
ênfase está na guerra entre os grupos das bocas-de-fumo.
Existem 2 personagens que se destacam como "bons moços" do livro, Busca-
Pé e Mané Galinha. Ao insurgir contra o poder de Zé Pequeno e, assim, deflagrar
o grande conflito final, Mané Galinha se coloca no patamar de justiceiro e é
aclamado pela população local. O modelo de trabalhador, de bom filho, próximo
ao modelo de dignidade social, confere ao bandido uma significativa importância
social.
O ponto de vista narrativo do livro é bastante peculiar, porque o narrador não
apenas conhece a fala das personagens como também é dono de uma fala
semelhante, ou seja, usa de expressões próprias do linguajar local, como gírias e
termos chulos. O narrador realiza um trabalho de mostrar as ações no espaço

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fechado da favela Cidade de Deus, privilegiando um ritmo rápido no desenrolar
dos acontecimentos em detrimento de uma postura mais reflexiva.


Cidade de Deus, o filme

O filme dirigido por Fernando Meirelles foi considerado o filme do ano em
2002, levando cerca de 3,2 de espectadores aos cinemas. É considerado o maior
sucesso de público do chamado Cinema da Retomada. O elenco (tirando Matheus
Natchergaele e mais uns poucos profissionais) é formado por jovens atores
oriundos de comunidades pobres, pessoas acostumadas com a linguagem, a
lógica, a vida em locais como os apresentados na tela.
O cenário utilizado foi o próprio Rio de Janeiro dividido entre 3 favelas (além
da Cidade de Deus, Cidade Baixa e Nova Sepetiba). A equipe do filme teve seu
trabalho dificultado com a guerra das quadrilhas locais, e precisou negociar com
a associação de moradores, que em contrapartida, pediu que pessoas da favela
trabalhassem como figurantes e pessoal de apoio na produção.
A estética do filme lembra o vídeo-clipe, a câmera mexe-se o tempo todo. O
ritmo é sempre acelerado e a trilha sonora envolvente. O filme mantém
cronologicamente a estrutura linear do romance, e introduz uma visão estrutural
circular, ou seja, começa o take com a cena que irá finalizá-lo - o momento que
Busca-Pé se encontra entre os traficantes e a polícia.
Diferentemente do livro, observa-se não um narrador em terceira pessoa,
mas um em primeira pessoa. Busca-Pé, personagem originalmente inexpressivo
no romance, testemunha e amarra as histórias. O narrador observa com relativa
distância a todos e é o único que não se deixa envolver no mundo da
criminalidade. Toda a montagem do filme se dá ao comando da narrativa de
Busca-Pé, inclusive com a repetição de algumas cenas em diferentes ângulos e
pontos de vista.
Tomadas panorâmicas mostram o tamanho do bairro, casas nuas, alinhadas e
organizadas, ruas largas e retas. A visão da cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro
do cartão postal, é vista de longe numa perspectiva reveladora da exclusão social
da favela e seus moradores. Ao entrar nos anos 70, as cores se tornam mais vivas

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e a favela toma outra configuração, exibindo grafismos nas paredes. As cenas são
mais fechadas para se adequarem ao novo espaço criando uma sensação de
confinamento, com suas vielas sem saída. A trilha sonora também muda para
acompanhar a evolução do tempo, agora mais funkeada.
Quando o filme entra na sua última fase, o cenário já está bastante degradado.
As cores tornam-se monocromáticas e as cenas são mais frenéticas e
fragmentadas, quase sempre em close-up.
Nas cenas finais do filme, Busca-Pé registra com sua câmera os momentos
mais expressivos. A câmera se torna subjetiva, é o olho de Busca-Pé: a extorsão
policial, a execução de Zé Pequeno, o corpo ensanguentado no chão. E suas fotos
acabam por mudar a vida de Busca-Pé, diferentemente do final do livro. O tom é
o de esperança, com a possibilidade de alguém sair da favela e ter um futuro
melhor. Busca-Pé agora se torna Wilson Rodrigues, fotógrafo.


Conclusão

Cidade de Deus, romance e filme, são obras que representam
significativamente momentos da realidade e da história nacional. Ambas trazem
um retrato duro, com ênfases distintas, próprias de suas especificidades: a
literária enfatiza o fluxo textual das ações sem perder de vista a imagem concreta
da realidade; o filme enfatiza as imagens concretas com as novas técnicas e
formas da linguagem audiovisual contemporânea, potencializada por recursos
imagéticos, sem perder de vista a essência da linguagem literária para a visual.
As duas formas têm em comum a representação de uma realidade fictícia e são
usadas para representar o homem. O personagem narrador do filme (e mesmo
no livro, apesar de o narrador ser outro), Busca-Pé, cria um vínculo com o autor
do livro, para mostrar o "negro que deu certo", mas por um outro lado, com o
discurso bastante suavizado em relação ao narrador do livro. No filme, Busca-Pé
teve a sua cor de pele mudada. Um dos motivos alegados pelos roteiristas do
filme, particularmente pela co-diretora Kátia Lund e por Meirelles, para esta
mudança na cor da pele do personagem é justamente de ligá-lo ao próprio Paulo
Lins (que é negro).

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O narrador do livro mostra um grau de realismo brutal, que só é possível para
quem viveu aquilo na vida real, fato que além de crítica tem como objetivo fazer
com que o leitor reflita sobre a situação da violência, colocada como protagonista
da história e fato consumado da realidade da Cidade de Deus.
Ao longo de Cidade de Deus livro, muitas vezes, o discurso do narrador se
confunde com o dos personagens. A mistura entre a fala do narrador e a dos
personagens traz para o livro a linguagem popular e insere o leitor na realidade
de Cidade de Deus.
O romance de Lins não se compromete a oferecer uma solução para o
problema da violência. A morte dos três protagonistas não aparece como
fatalidade nem como alívio, mas como resultado do ambiente e do modo como
eles viviam. A morte de Zé Pequeno não oferece nenhuma sensação de alívio
porque os responsáveis pelo seu assassinato acabam por ocupar o seu lugar,
dando continuidade a situação. Sua morte é narrada apenas como fato
acontecido e não como solução. Tudo se passa assim no romance: abruptamente,
sem discussões.
Já o filme, torna-se uma banalização da violência, transformando a rotina da
Cidade de Deus num grande video-clipe. O retrato dos policiais é suavizado em
relação ao livro. A estética e a edição rápida fazem com que o espectador fique
anestesiado, tendo para esse efeito a ajuda da trilha sonora. O narrador do filme
não tem o mesmo tom chulo do livro e vem para suavizar ainda mais a violência,
apesar de ter nascido e convivido com os bandidos, o seu tom e quase o de uma
pesso alheia aos acontecimentos. Busca-Pé é Paulo Lins, mas um Paulo Lins que
já estava com um pé fora da favela, em busca de seu emprego como fotógrafo que
o tiraria de vez daquela realidade. As marcas do narrador do livro são suas
palavras e misturas de discurso, sua arte de escrever, seu ofício de escritor,
enquanto que as marcas do narrador Busca-Pé são suas fotos e o seu futuro
emprego na redação de um jornal. Enquanto um parece ainda sentir a revolta e
expressá-la por meio de sua escrita, o outro apenas mostra o que vê, sem
expressar muitas críticas.


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Outras referências

CIDADE DE DEUS. Direção de Fernando Meirelles. Rio de Janeiro: O2 Filmes;
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http://www.rua.ufscar.br/o-que-e-cidade-de-deus-por-uma-analise-da-
arquitetura-narrativa-dos-produtos-audiovisuais/

Entrevista com Paulo Lins
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/entrevista-a-paulo-lins/
(acessado em 16/06/2017)

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