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Sumário

coluna
Bianca Santana
Wilson Gomes

história
Sobre uma Democracia sem República

dossiê Graciliano Ramos


Sem procuração
Linguagem literária e vida sociocultural
Graciliano e o cinema
Heróis subestimados
Vida, literatura e engajamento
80 anos de Vidas Secas
A arte pede misericórdia

entrevista Oswaldo Akamine Jr.

estante cult

colaboraram nesta edição


coluna

É preciso mergulhar
BIANCA SANTANA

“Para os africanos escravizados assim como para os seus descendentes


libertos, tanto o Estado colonial português quanto o Brasil – colônia,
império e república – têm uma única e idêntica significação: um estado
de terror organizado contra eles”, publicou Abdias Nascimento em 1980.
Mesmo no período democrático posterior ao ensaio Quilombismo: um
conceito científico histórico-social , basta observar os dados de violência
ou encarceramento para compreendermos a verdade sintetizada por
Abdias. Eu a retomo neste texto, escrito antes do primeiro turno das
eleições de 2018, porque, independentemente do resultado das urnas,
vivemos um estado de terror há séculos. É evidente que a composição do
Legislativo e a do Executivo importa. Mas não podemos perder de vista
que o estado de terror contra negras e negros persistirá, em diferentes
graus e formatos, aconteça o que acontecer na primeira eleição pós-
golpe de 2016. E que, aconteça o que acontecer, o mar revolto de
quando escrevo não estará mais calmo com a revista impressa.
Eu nunca mergulhei. Mas li, na carta bonita de uma amiga, que no
momento do salto em um mar bravio as ondas batem na cara. Se ficar na
superfície, não dá para respirar, muito menos pensar. Que quando
estamos em um semimaremoto, o melhor a fazer é colocar a máscara e
submergir. Porque, se existir coragem de sair da superfície, as ondas não
importunam e tudo é luz, cor, vida. Neste momento turbulento em que
estamos, sair da marola eleitoral e do golpe recente para mergulhar com
coragem na nossa história talvez permita respirar e enxergar
possibilidades para o futuro. E por coragem, compreendo perspectivas
não coloniais da nossa história. Falo sobre escavar as ausências e os
silêncios a fim de encontrar os tesouros que nos permitam compreender
como, apesar de um projeto genocida, somos a maior parte da população
brasileira. E em um breve exercício daquilo que podemos encontrar
camuflado em arquivos, músicas, práticas, evoco três mulheres negras
que precisamos ter como referência.
Esperança Garcia foi uma negra africana escravizada no Brasil do
século 18. Em 1770, redigiu, de próprio punho, um documento de
denúncia da escravidão e de reivindicação por direitos. Refutando o
projeto colonial, resistiu à naturalização de sua condição de escravizada
e endereçou seu manifesto ao então governador do Piauí. Vale lembrar
que o primeiro censo do país, de 1872, registrava que 82,3% da
população brasileira era analfabeta. Como seria então o século anterior?
Quando nem mesmo brancos escravocratas dominavam as letras,
Esperança lia, escrevia e manipulava o documento escrito como
instrumento de reivindicação política.
Rosa Egipcíaca, capturada na Costa da Mina, na África, também foi
escravizada no Brasil. Como escrava de ganho, tinha relativa autonomia
em relação ao seu tempo, sendo obrigada a entregar determinada quantia
mensal a seus senhores. Prostituta, além do que dava aos exploradores,
fez dinheiro suficiente para comprar a própria alforria e, mais tarde, uma
casa de prostituição. E, o que me soa como tática brilhante, teve uma
visão: a própria Virgem Maria a orientou a fundar um convento só para
ex-prostitutas negras. E mais: ela deveria aprender a ler e escrever para
contar sua vida em um livro. Rosa compra um imóvel no centro do Rio
de Janeiro, monta seu convento e escreve um livro de 250 páginas.
Infelizmente, não conhecemos o que escreveu. As notícias sobre Rosa
vêm dos documentos da Inquisição. Foi levada à corte, em Lisboa,
julgada e condenada como bruxa.
Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, nasceu no Brasil de
1890 e foi a terceira Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. Sua
mãe a precedeu. Sua avó foi fundadora da casa, no século 19. As três
descendem de uma família nobre africana Asipá, originária de uma
região que hoje compõe Nigéria e Benin. A mulher, que vendia frutas no
mercado público, foi a mãe espiritual e a liderança política de centenas
de pessoas que espalharam os preceitos do candomblé pelo país. O
candomblé, muitas vezes reduzido a religião, é uma complexa e eficaz
tecnologia social de preservação da memória e da vida da população
negra. Muitas vezes lideradas por mulheres, famílias de santo
extrapolaram laços consanguíneos – dilacerados pelo sistema escravista
por quase quatro séculos –, constituindo comunidades de partilha
material, simbólica e espiritual.
Para Abdias, a chave do nosso futuro estava na compreensão dessa
partilha comunhal, que, historicamente, nos permite viver, apesar do
permanente estado de terror. “Precisamos e devemos codificar nossa
experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato
todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos
interesses das massas negras e de sua respectiva visão de futuro. Esta se
apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a
ciência histórico-humanista do quilombismo”, escreveu. E por
quilombo, como já mencionei exaustivamente em outros textos, não
falamos sobre a fuga de escravos, mas, também nas palavras de Abdias,
sobre “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão
existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa
no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo
econômico.”
A partilha em comunidade, recorrente entre pessoas negras à margem
da estrutura econômica do capital, precisa ser constatada como
tecnologia social potente, como possibilidade de futuro, não como
sintoma da exclusão. O olhar colonizado sobre nossa história nos
mantém na superfície, sem respirar, com as ondas batendo na cara.
Precisamos do mergulho. Precisamos do quilombo.
coluna

A tragédia eleitoral do antipetismo


WILSON GOMES

Mentalidades movem a massa e decidem eleições. O professor Juremir


Machado (PUC-RS) escreveu há poucas semanas que “Jair Bolsonaro
não é um candidato como outro qualquer. É pior. Ele é um imaginário,
uma mentalidade, uma visão de mundo”. É por aí. Na verdade, acho que
o bolsonarismo é uma mentalidade, Jair Bolsonaro é o seu meio, canal e
plataforma. Antes dele, esta mentalidade vinha se formando por
aglutinação de vários tipos de materiais – homofobia, reacionarismo,
fundamentalismo religioso, sentimento antipolítica, autoritarismo, dentre
outros – e andou apostando em outros cavalos, como Marco Feliciano
em 2013 e Eduardo Cunha em 2015 e 2016. Não tivesse Cunha sido
preso e morto politicamente, há exatos dois anos, é muito provável que
hoje estivéssemos falando de cunhismo e não de bolsonarismo.
Mas o grande protagonista político destes anos, por mais paradoxal
que pareça, não é Bolsonaro. É o antipetismo. O antipetismo também é
uma mentalidade, um imaginário político, um sentimento coletivo e um
conjunto de convicções. Já expliquei o antipetismo algumas vezes,
deixem-me esclarecer uma vez mais. O antipetismo não é a posição dos
que preferem outros partidos ao PT nem caracteriza quem tem
diferenças com ou faz reiteradamente críticas ao Partido dos
Trabalhadores. O antipetismo é o sentimento e a mentalidade dos que
detestam o PT, odeiam tudo o que a ele se relaciona, abominam tudo o
que ele representa. O antipetista típico atribui ao PT tudo o que
considera detestável na vida pública e assume como missão moral,
pessoal e coletiva, remover o partido da face da Terra. Vota,
literalmente, até no diabo, desde que o PT seja derrotado.
Naturalmente “o que o PT representa” é matéria de confins imprecisos
e inclui desde as posições e comportamentos que efetivamente
identificam o partido, como suas políticas públicas e os enormes
escândalos em que se meteu, até valores e atitudes que uma pessoa
isenta atribuiria à esquerda em geral, ao Iluminismo, ao Liberalismo e,
até mesmo, ao Humanismo Cristão. Atribui-lhe até mesmo padrões de
comportamento associados às mazelas sistêmicas da política e do Estado
brasileiros, como o clientelismo, o patrimonialismo e a corrupção. Em
suma, o antipetismo odeia o que o PT fez e é, mas também projeta no PT
tudo o que as pessoas em geral abominam no sistema político nacional
(corrupção à frente) e tudo o que os conservadores de direita detestam da
agenda liberal (direitos humanos, agendas de minorias e liberdade sexual
antes de tudo).
Desde 2014, o antipetismo tem colecionado grandes feitos. Naquele
ano, colocou Aécio Neves no segundo turno e quase foi suficiente para
lhe dar uma vitória no último momento. Setembro de 2014 representa o
momento histórico em que Aécio, na iminência de perder para Marina
Silva um lugar no pódio eleitoral, decidiu ser o candidato do
antipetismo. E achou que podia continuar debaixo das suas asas depois
disso, pois embora o antipetismo tivesse perdido por pouco a eleição,
continuou crescendo de forma consistente e serviu de combustível para
que Dilma Rousseff não pudesse sequer iniciar o seu mandato.
O maior feito do antipetismo, contudo, se deu em 2016, com o
avassalador impeachment da presidente recém-eleita e com a
substituição desta por Michel Temer. Naquele momento, três forças
políticas surfavam o antipetismo, que havia alcançado proporções
impensáveis antes de 2013: os tucanos, a chamada “turma de Temer” e
Eduardo Cunha juntamente com a arraia miúda ultraconservadora e
fisiológica que gravitava em sua órbita.
Quando começa o campeonato eleitoral de 2018, o esperado era que
os protagonistas fossem, enfim, os tucanos, desta vez sem o obstáculo do
PT, com Lula condenado e encarcerado. Temer, por outro lado, já havia
sido abatido por Janot em 2017, e Cunha já estava preso e condenado.
Por ironia da história, entretanto, no fim do dia havia surgido uma força
política na extrema direita que não tomou conhecimento dos
conspiradores de 2015-2016 e que, em setembro de 2018, sacramentou o
fim da sua breve e tensa hegemonia. Por asfixia eleitoral. Quem
exatamente os estrangula? Justamente o antipetismo que os embalou por
três anos e que foi por eles usado de maneira eficiente para produzir o
que acreditaram ser o encerramento do ciclo de vitórias presidenciais do
PT.
O antipetismo hard , o ódio dos que responsabilizam o PT por todas
as dores e sofrimentos existentes neste vale de lágrimas, é usado para
sustentar a decisão eleitoral pelo bolsonarismo. Não há crítica possível a
características de Bolsonaro, aos disparates que diz ou aos absurdos que
faz, que não seja rebatido orgulhosamente com frases pretensamente
densas e explicativas como “pior foi o PT”, “pelo menos não é o PT” ou
“o mais importante agora é derrotar o PT”. Não há qualquer tentativa de
demonstrar as consequências implicadas na eleição do deputado que não
possa ser rejeitada com o único e definitivo argumento de que ele é
diferente do PT (ou da esquerda ou dos comunistas, significando tudo
exatamente a mesma coisa), de que o PT realizou coisas
incomparavelmente mais terríveis e de que ele é o único que pode
sepultar definitivamente o Partido dos Trabalhadores. O fato de ele não
apenas ser antipetista, mas de representar o avesso do avesso do avesso
do “petismo”, funciona como uma espécie de indulgência plenária.
Inclusive para os seus previsíveis pecados futuros.
Mas acontece que o antipetismo é uma doença do espírito. Obnubila a
inteligência, produz fanatismo, é estúpido e autodestrutivo. Para
comprovar esta hipótese, basta a análise de duas consequências deste
sentimento nas eleições de 2018.
O primeiro grande feito do antipetismo nesta eleição foi aniquilar as
candidaturas de direita e de centro. Todas as agendas voltadas para uma
substituição construtiva e consequente da hegemonia petista foram
aniquiladas pela ansiedade moral e pela pauta feroz da extrema direita,
para a qual o grande problema brasileiro não são desemprego e falta de
crescimento econômico, o déficit da Previdência, a política fiscal ou os
graves problemas sociais, mas o Partido dos Trabalhadores. O
antipetismo não se importa em fazer diagnósticos realistas de problemas
concretos e encaminhar soluções políticas apropriadas: ele só quer que o
PT vá para o quinto dos infernos, como se isso solucionasse,
magicamente, todos os problemas nacionais. De forma que, quando
escrevo este artigo, a dez dias do primeiro turno, quem não quer votar no
PT, mas ainda não perdeu o juízo nem a bússola moral, vê-se sem
opções eleitoralmente viáveis. Estas parecem ter sido devoradas pelo
vórtice do antipetismo em setembro de 2018.
O segundo feito é ainda mais paradoxal e irônico. Nas eleições de
2016, o PT parecia liquidado. Mas como a toda ação corresponde uma
reação oposta e de igual intensidade, em 2017 e 2018 o antipetismo
espalhado pelo Judiciário e pela mídia involuntariamente fez surgir uma
nova força política, sobre os escombros do petismo: o lulismo. Que é
basicamente uma força reativa, um contraponto a toda a energia
despendida pelo antipetismo à medida que se espalhava pela sociedade.
O problema, para o antipetismo, é que a dez dias das eleições o lulismo
demonstrou ter força eleitoral suficiente para levar o seu candidato ao
segundo turno, e com chances reais de ganhar a eleição. Donde só se
pode concluir que o antipetismo radical é tão estúpido e tão
inconsequente que não apenas conseguiu os feitos que consistiram em
ressuscitar a força eleitoral do Partido dos Trabalhadores e de, ao mesmo
tempo, anular as alternativas construtivas de direita e de centro, como
agora vai realizando a proeza de se arriscar a entregar esta eleição
presidencial ao PT que tanto odeia.
história

Sobre uma Democracia sem República


HELOISA MURGEL STARLING

A Constituição de 1988 é a melhor expressão de que o Brasil conseguiu


avançar na reconstrução democrática e buscar a estabilização econômica
e a estabilidade política – e fez isso com um olho no passado e outro no
futuro. Quando Ulysses Guimarães apresentou o texto final, que deveria
ser promulgado pelo Congresso “com ódio e nojo à ditadura”, como ele
próprio declarou, teve início um período consistente e contínuo de
vigência de um sólido compromisso democrático. Pelo menos até 2014,
qualquer indicador de curto prazo usado para medir a qualidade da
democracia em um país – procedimental, comparativo ou histórico –
confirmava que escolhas sensatas haviam sido feitas em 1988 e, por obra
de sua Constituição, o Brasil se abriu ao século 21 com um sistema
político democrático recente, mas fortalecido e razoavelmente
consolidado.
No entendimento e na maneira de pensar a República, contudo, a
Constituição de 1988 tropeçou nas pernas. E a implacável normalidade
com que os brasileiros convivem hoje com a natureza redutora e
deficitária de sua República confirma o prognóstico: nosso sistema
constitucional atende bem aos padrões democráticos, mas é falho em
alcançar os valores, princípios e instituições republicanas. Talvez se
possa dizer que, na Constituição de 1988, a palavra “República” sofreu
uma espécie de deflação e seu significado estreitou-se por dois lados.
Em um deles, o sentido de República remete a uma forma de governo
que tem por seu contrário não as tiranias, mas a Monarquia. Pior, sem
estabelecer um modo diferente de governar. Os constituintes deixaram
de fora os procedimentos de organização de ferramentas adequadas à
administração pública, e a consequência é fácil ver: nossa República
encontra sérias dificuldades de se firmar como uma forma de governo
capaz de executar satisfatoriamente os serviços públicos, se
comprometer com a boa gestão da coisa pública e satisfazer as
expectativas dos governados.
Em outro lado desse estreitamento de significado, a palavra República
esvaziou-se de sentido próprio e tornou-se sinônimo de Democracia. Na
prática, República passou a designar uma espécie de revestimento legal
– a forma de governo – para a Democracia. Quem, em 1988, apostou em
governo de leis, liberdades públicas, direitos ou cidadania, compreendeu
depressa que as injustiças sociais e uma funda condição de desigualdade
levada longe demais só podem ser tratadas politicamente, sustentou a
sinonímia República e Democracia, e se preparou para ser realista: se a
República não passava de uma forma de governo, a Democracia seria a
alma da Constituição – iria lutar por ela.
Mas o maior impacto do vazio republicano aconteceu em outro ponto
da Carta Constitucional. Em 1988, seus autores estavam decididos a
estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e
das liberdades dos brasileiros – não por acaso, a Carta foi batizada de
“Constituição Cidadã”. O resultado, no entanto, é estreito. A
Constituição deu todo o poder aos cidadãos, sem lhes oferecer a
oportunidade de serem republicanos e agirem como cidadãos. Havia aí
uma grande oportunidade de pôr o dedo na ferida do problema: inexiste
entre os brasileiros o sentido de República. Falta-nos praticar o
sentimento de pertencimento a um tipo de comunidade de natureza
política, no qual as pessoas se agregam em vista do bem, do direito e do
interesse comum. República refere-se a uma comunidade capaz de
incluir desde a construção de instituições preparadas para vincular
justiça e liberdade política como motor do cotidiano da população até a
prática de valores – tolerância, amizade, solidariedade, compaixão –,
capazes de regular os modos de convivência entre pessoas que têm igual
direito de fazer parte dessa comunidade, apesar das diferenças que
houver entre elas – como status, gêneros, classe social, etnia, religião e
assim por diante.
Instalado o vazio republicano o que aconteceria, então? Dois
equívocos foram cometidos. No primeiro, a Constituição concentrou o
bom funcionamento do poder público nas agências de governo –
Executivo, Legislativo, Judiciário – e deixou desprotegido o mecanismo
de regulagem de freios e contrapesos entre essas agências encarregadas
de distribuição do poder. O segundo equívoco: ficou ausente da
Constituinte o debate sobre a organização e construção de mecanismos
capazes de proporcionar aos brasileiros um espaço público mais amplo e
permanente do que a urna de votação e maiores oportunidades para que
sua voz seja ouvida fora dos dias de eleições. A arte de associar-se,
como Hannah Arendt dizia, confere à República seu sentido mais
próprio. O cidadão percebe rápido que participar dos assuntos públicos
vale a pena, o exercício da liberdade se torna rotineiro, a defesa do bem
comum transforma-se em responsabilidade de cada um.
Talvez a originalidade da Constituição de 1988 seja essa. Tentar
construir uma Democracia sem República e sem se dar conta de que uma
depende da outra. Mas se a nossa República é deficitária, existe uma
longa tradição republicana no Brasil. Pode até ter sido esquecida, ou
estar escondida, mas existe. E essa tradição indica que o republicanismo
se firmou entre nós como uma linguagem para enfrentar situações de
crise. O Brasil vive hoje uma crise possivelmente sem precedentes na
sua história. É um bom momento de voltar ao espólio republicano que
nos pertence de direito – para pensarmos sobre o que estamos fazendo.
Afinal, a história ainda não terminou. Quem sabe seja finalmente hora de
enfrentar o nosso vazio republicano?
dossiê Graciliano Ramos
Sem procuração
RICARDO RAMOS FILHO

Por alguma razão gostamos de efemérides. Talvez por sermos tão


impressionáveis quando se trata de tempo. Desde que nascemos
acostumamo-nos a acompanhar o passar das horas, acúmulo delas em
anos. Observamos os acontecimentos considerando seu aniversário, e
existe certa aura nos mágicos números redondos. Foi pensando nisso, e
no fato de que a obra Vidas secas , de Graciliano Ramos, publicada em
1938, está completando 80 anos de existência, que a Revista CULT
oferece aqui um dossiê homenageando o autor alagoano.
Muita gente me pergunta, ante a atual conjuntura, conturbado
momento político em que vivemos, qual seria o posicionamento de
Graciliano, como ele veria o cenário triste em que estamos mergulhados.
Recuso-me a responder, o velho Graça não deixou procuração para
falarem por ele depois de morto. Mas nada me impede de imaginar, não
seria difícil supor com quais palavras, sempre tão precisas no caso dele,
descreveria nosso golpeado país. Quem lhe conhece a obra, leu seus
livros, tem certa condição de avaliar como ele se colocaria.
Em artigo escrito pelo professor Benjamin Abdala Junior e por Luzia
Barros, “Linguagem literária e vida sociocultural”, há passagem em que
os pesquisadores nos mostram que “ formam-se então nos campos de
atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos inter-relações
hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz
as convenções dominantes, que procura subordinar a si as demais, que
vêm da experiência sociocultural”. A solução para Luís da Silva, em
Angústia , foi o assassinato de Julião Tavares, símbolo do agente da
opressão. Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito
alto muitas vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos. Em um
novo romance “graciliânico”, caso escrito hoje, a referida rede opressiva
– que não se modificou, está presente em todo canto e continua
oprimindo – seria exibida com o sombrio olhar costumeiro. Mudariam
apenas a época, cenário, personagens.
Lendo também neste número “Graciliano e o cinema”, de Randal
Johnson, não preciso me esforçar para considerar que provavelmente
teríamos um escritor satisfeito com a transposição fílmica que fizeram
de alguns de seus trabalhos. Hoje, quando me procuram pedindo
autorização para remakes , sempre me pergunto se conseguirão ser tão
felizes como Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman foram em suas
realizações. Muito difícil algum novo diretor conseguir aproximar-se do
nível de excelência já exibido.
Em “Heróis subestimados”, Lilliân Alves Borges e Edmar Monteiro
Filho nos mostram que Graciliano, em sua literatura para crianças e
jovens – tão pouco conhecida e considerada, como sempre são os livros
para tal público; infelizmente desconsideramos, tratamos mal o que se
escreve para a garotada –, “aproveita-se desse espaço (o do texto infantil
e juvenil) para inserir uma dura crítica às condições de penúria do
Nordeste brasileiro, às voltas com a decadência e a miséria promovidas
pela seca e pelo descaso governamental”. Depois, tomando como
exemplo o livro Pequena história da República , trazem o autor
alagoano imaginando o ditador Getúlio Vargas, ainda criança,
cavalgando cabos de vassoura. Não digo nada. Mas não estranharia ver o
velho Graça, com seu humor tão peculiar, associando ao Temer alguma
brincadeira também divertida, e tecendo as mesmas duras críticas à
ligeireza irresponsável com a qual o governo trata a coisa pública.
Encontraremos também o artigo “Vida, literatura e engajamento”, de
Jean Pierre Chauvin e Rodrigo Jorge Ribeiro Neves. Nele, Graciliano
afirma que nunca pôde sair de si mesmo. Em entrevista dada a Homero
Senna em 1948, afirma: “só posso escrever o que sou”. Chauvin e Neves
mostram que “em Graciliano vida e obra se entrelaçam nas asperezas
que constituem a dura realidade, mas também são recobertas pela
palavra, feito nuvem, a reorganizar e fortalecer o nosso íntimo. Como
será que o autor de Vidas secas enxergaria a horrível enormidade
cotidiana que nos atinge? Seria possível arranjar-se em seu coração?
Precisaria. O arranjo se faria de algum duro modo.
Finalmente chegamos ao texto “80 anos de Vidas secas ”, de Adilma
Secundo Alencar e Luciana Araujo Marques. O motivo da celebração, o
livro que teria sido no começo “Cardinheiras”, referindo-se às aves de
arribação que bebem a pouca água que há para o gado durante a seca, e
mais tarde “O mundo coberto de penas”, antes de tornar-se famoso com
o título com que foi publicado. O campeão de “audiência” da obra de
Graciliano, seu livro mais lido e vendido. Nosso mundo ainda hoje
coberto de penas, e de vidas cada vez mais secas.
Concluímos com “A arte pede misericórdia”, que traz carta de
Graciliano Ramos inédita em livro, descoberta pelos pesquisadores Ieda
Lebensztayn e Thiago Mio Salla, enviada a Oscar Mendes, em 1935.
Nos deparamos com a seguinte afirmação feita pelo autor nordestino:
“creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio”. Há bons
indícios, quando insistimos na leitura de seus textos, de que
acompanhando a atual tragédia brasileira, e vendo persistir tanto
desatino, ele mantivesse a fé em uma revolução social. A fome dele
sempre foi de justiça.
Ao fazer o convite para que leiam o extraordinário material aqui
exposto, tenho a impressão de que, caso vivo fosse, o velhinho
Graciliano, do alto de seus 125 anos, se mostraria ainda mais ranzinza
do que era. Seu pessimismo teria crescido, atingido imensas dimensões.
Conversas azedas, frases cortantes, tudo emoldurado por sarcasmo
difícil de suportar. Caminhando curvo, de braço dado comigo, depois de
puxar a fumaça de seu inseparável cigarro (outro que não mais Selma),
faria uso das palavras tão presentes em seu repertório, digitais de seu
texto, como: canalhice, insinceros, ordinários, indignado, encrencas,
medonho, esfiapado, beiços, alambicado, incautos, amolação, malucos,
doidos, e elas sairiam misturadas aos palavrões escritos e falados tão de
sua predileção. Mas não me arrisco a reproduzir quais seriam suas
impressões. Como disse, não tenho procuração.
Linguagem literária e vida sociocultural
BENJAMIN ABDALA JUNIOR E LUZIA BARROS

Carlos de Oliveira, escritor neorrealista português que nos serve de


epígrafe, foi um assíduo leitor de Graciliano Ramos. Em seus versos, ele
se insere – como o escritor brasileiro – na perspectiva do artista em cujas
produções a ênfase sociocultural se associa estreitamente com o trabalho
estético sobre a linguagem. De um ângulo subjetivo, ao liberar o
processo criativo, Graciliano Ramos descarta apriorismos de
forma/conteúdo, procurando ter um máximo de consciência dos
mecanismos de funcionamento da linguagem literária. Essa atitude,
entendida como articulações, cria hábitos, que interagem com as
múltiplas convenções da vida sociocultural.
Há, nessa práxis artística de Graciliano Ramos, a ideia de que a
consciência da realidade (referencial ou literária) depende das conexões
do objeto (fatos representados ou o próprio texto) com um sistema mais
amplo de conexões, que se articulam, por sua vez, com as tensões da
vida social. Com o procedimento, a escrita de Graciliano procura
transformar-se em um fato social ativo pelo desempenho de uma dupla
função histórica: por um lado, através da práxis e da metalinguagem dos
narradores, essa escrita define a si mesma; por outro, contribui para o
processo do conhecimento sociocultural, definição da totalidade social,
presente em sua escrita não apenas como representação referencial, mas
como formas articulatórias capazes de entrar em tensão com as
articulações culturais de seus leitores. Pela práxis, entendida assim não
como prática, mas como movimento que vai do sujeito para o objeto e,
deste, com impactos no sujeito, estabelece-se uma dinâmica que provoca
criticidade no leitor.
Graciliano Ramos rompe com a redução da subjetividade individual e
coletiva que as imobiliza ao campo do objeto de referência, tal como foi
entendido pelo realismo oitocentista e que se projetou no século 20. O
seu sentido de representação objetiva pressupõe a participação ativa do
sujeito em suas interações com as articulações socioculturais de sua
situação histórica.
Concretude, objetividade, assim, não são conceitos que se reduzem ao
objeto, expulsando o sujeito, como ocorreu com o modo de pensar a
realidade afinada com o “velho” realismo. Graciliano não se coloca, por
outro lado, na perspectiva neorromântica de absolutizar o sujeito,
quando poderíamos ter processos de esfumaçamentos da realidade
referencial. Ao contrário, procura construir uma escrita que pressupõe a
interação contrastante entre dados subjetivos e objetivos, que se
concretizam nas redes de articulação do texto.
Graciliano Ramos tensiona reflexivamente, em suas personae
narradoras, níveis de consciência da enunciação (que traz marcas do
próprio autor implícito no texto) e do sujeito do enunciado (personagem
narradora), mostrando muitas vezes a consciência problemática dessas
interconexões. Sua estratégia artística provoca impactos nos leitores,
para que estes se conscientizem de emparedamentos que também são
seus. Para tanto, os níveis de consciência dessas personae oscilam entre
formulações da consciência “real” de suas personagens, em relação de
homologia com as vividas muitas vezes por seus leitores, e os níveis
mais amplos de consciência da situação histórico-social, possíveis de
serem discernidos, para nos valer dessas categorizações de Lucien
Goldmann. Como as personagens mostram-se alienadas desse sentido de
totalização que envolve as articulações provenientes da enunciação, a
dialética da dinâmica enunciativa evita, por exemplo, uma apreensão da
realidade de “falsa consciência” (sentido mais usual do conceito de
ideologia), como em Luís da Silva, personagem-narrador de Angústia.
O processo de efetivo conhecimento desse narrador-personagem do
que seria o objeto focalizado (a personagem Marina, por exemplo),
através de atributos físicos e psicológicos, não é possível apenas pela
visão fragmentada da personagem ou pela simples somatória das partes
no todo (“os pedaços não combinavam bem; davam-me a impressão de
que a vizinha estava desconjuntada”), mas pela experimentação do
objeto em sua função de “máquina”. Ainda assim a visão de Luís da
Silva continua reduzida, sem a percepção do sentido de totalização que
envolveria outras atribuições socioculturais. Via-a, ainda de forma
reduzida, como “máquina”, um objeto que se circunscreve
reduzidamente a sua função sexual.
Luís da Silva está alienado de si mesmo e transfere a sua visão
reduzida para o objeto, uma mercadoria a ser consumida. Enquadra-se,
sob este aspecto, na alienação social, que segue as convenções sociais
dominantes, que preceituam valores a partir da valia de uso.
Desconsiderou a personagem, entretanto, o fato de que, em sua
perspectiva, Marina impregnou-se de atributos afetivos. Essa
contradição na apreensão do objeto será intensificada posteriormente,
quando Marina (como um produto sujeito às regras do mercado) lhe será
alienada pelo poder de “compra” de Julião Tavares.
Marina e Julião Tavares estão submetidos aos estereótipos culturais
(hábitos) que estabelecem uma ponte comunicativa entre eles: gestos,
vestuário, literatura, oratória. Luís da Silva tentou encantá-la imitando
formas de impacto desses ritos convencionais, mas não possuía o poder
maior que os enformava (dinheiro). Julião Tavares, ao contrário, é o
símbolo desse poder e daí apropriar-se de sua mercadoria. Trata-se de
um modelo de articulação simétrico ao que ocorre de maneira
hegemônica em múltiplos campos da atividade social, em que toda
forma de trabalho (físico, intelectual) é compelida para a sua
transformação em mercadoria.
Formam-se então nos campos de atividades humanas dos romances de
Graciliano Ramos inter-relações hegemônicas que envolvem os objetos,
uma rede opressiva que reproduz as convenções dominantes, que
procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural.
Qual a solução? Para Luís da Silva foi o assassinato de Julião Tavares,
símbolo do agente da opressão. A solução individual, para a enunciação,
não resolve o problema: Luís da Silva não se desvincula dos valores do
conjunto social, mesmo nos momentos de grande emoção. O ato de
paixão, isto é, sem o controle da razão, levou-o a um delírio anárquico,
rejeitado pela ânsia de rigor e ordem de Graciliano Ramos.
No nível da escrita de Angústia , quais seriam as homologias? Na
desagregação da linguagem de Luís da Silva, nos momentos de delírio?
A linguagem, como os fatos culturais, articula-se também em uma
“rede” condicionadora não apenas da seleção vocabular, mas sobretudo
da combinação sintática. Ela está associada de forma genética e
estrutural com a situação social que a produziu, reproduzindo, por sua
vez, congeminações ideológicas, dominantes ou não. É igualmente um
campo de tensões. A ruptura passional da personagem narradora desse
romance, de motivação psicossocial, vai ser registrada, então, através de
uma acumulação de palavras em que não ocorrem hierarquizações de
imagens. À desagregação psicossocial da personagem corresponde uma
correlata desagregação de lógica discursiva.
A situação de Luís da Silva, nesse momento, aproxima-se da anomia:
os hábitos sociais parecem ter perdido sua força reguladora, mas estes
padrões estão presentes, tensionando interiormente a personagem. Não
ocorre uma ruptura total pelo controle da enunciação que explica a
projeção das imagens, como a evitar uma ruptura total com o discurso
lógico. A personagem continua a aceitar os valores dominantes do
conjunto social: sua visão reduzida permite-lhe apenas a observação de
dados particulares. Falta-lhe uma visão mais totalizadora que lhe
propicie a determinação para optar, por exemplo e segundo a
enunciação, pela escrita de um romance. Isto é, para construir novas
articulações valendo-se dos escombros das velhas. Mas era muito para o
burocrata Luís da Silva: preferiu libertar-se da prisão referencial para
prender-se a uma cadeia sociológica mais sutil, onde continuaria a
escrever artigos jornalísticos sob encomenda.
Interessante a se destacar é o tópico da cadeia que ocorre no conjunto
da obra de Graciliano Ramos. Para ele, os
confinamentos/aprisionamentos do sujeito (dimensão individual e
coletiva) não se limitam aos emparedamentos dos hábitos convencionais.
Constituem também uma condição necessária para o exercício da
atividade de escritor. Um horizonte mais amplo, que não se limita, pois,
à particularidade de Luís da Silva.
A situação narrativa de Luís da Silva é similar à de outras personagens
dos romances de Graciliano Ramos que vivenciam estados passageiros
de anomia. Em Caetés , João Valério perturba-se pela paixão amorosa.
Poderia ter outra paixão: escrever um livro, mas pondera que isso não
ficaria bem em um comerciante. De mediador artístico comprometido
com a verdade (condição da verdadeira literatura, de acordo com a
enunciação), desloca-se para mediador de mercadorias, isto é, produtos
sociais que sofreram o processo de alienação, em face das inter-relações
estruturais que os subordinam.
A vinculação sociológica do alheamento psicológico torna-se mais
enfática em S. Bernardo : a paixão de Paulo Honório por Madalena pode
ser comutada pela paixão pela fazenda. Sua visão reduzida, que tudo
subordina à ótica de uma espécie de “capitalismo selvagem” (Florestan
Fernandes teorizaria uma década depois), segue a falsa consciência da
redução correlata própria do seu pragmatismo. Paulo Honório, ao
contrário das personagens protagonistas de Caetés e Angústia ,
conseguiu terminar o seu romance. Começou a escrevê-lo
equivocadamente, pretendendo transformá-lo em uma mercadoria. A
construção da narrativa de sua vida, em termos de autenticidade, exigia
uma práxis mais de sentido totalizador e não aquela a que se habituara: a
divisão social do trabalho, por meio da qual se apropriaria da produção
alheia. As tensões provenientes de suas carências individuais
compeliram-no a um processo de maior conscientização, através das
interações contraditórias entre as vozes da personagem e do narrador-
personagem, que problematizam sua vida/escrita.
A alienação da escrita-realidade dos narradores dos romances de
Graciliano Ramos percorre setores sociais típicos: o burguês fazendeiro,
o burocrata e o comerciante citadinos. Em Vidas secas , Fabiano,
personagem proletária, não consegue “apropriar-se” da linguagem. Ela
lhe foi alienada pela adversidade econômico-social. A perspectiva de
Fabiano é lutar para que ela seja restituída pelo menos a seus filhos.
Dominar a linguagem, para essa personagem, é uma forma de capital
simbólico e de poder social.
A linguagem, modelada pela práxis social, desempenha uma função
cumulativa: ela traz na simbolização de suas formas o conhecimento
“acumulado” pela humanidade. Reduzida a condições subumanas, os
filhos de Fabiano (o Menino mais Velho e o Mais Novo: não aparecem
com nomes próprios) colocam-se diante dos objetos como se estivessem
no início desse processo histórico ainda impregnado de pensamento
mágico.
O palavrório dos bacharéis em direito, por outro lado, é marcado
criticamente em todos os romances de Graciliano Ramos. Corresponde a
um registro de linguagem estereotipado e que encobre a realidade dos
fatos vivos. Como Julião Tavares ( Angústia ), são invariavelmente
“reacionários e católicos” e, ao escrever, têm “linguagem arrevesada,
muitos adjetivos, pensamento nenhum”.
O catolicismo também está presente no conto “Um ladrão”,
protagonizado por um indivíduo que vive na margem social e que busca,
ironicamente, auxílio celeste para seu primeiro roubo à residência. No
conto, Graciliano permeia a narrativa com a linguagem típica do mundo
marginal, como o uso da expressão “caneta” (ferramenta para abrir
fechaduras), respeitando o léxico dos indivíduos cujo universo procura
retratar.
O sonho do protagonista do conto é tornar-se proprietário de um bar,
em seu comércio não permitiria frequentadores do mundo marginal,
apenas pessoas da ordem e da lei; dessa forma, a personagem não prevê
a ausência de senhores e sim a necessidade de se tornar um deles; em
conformidade com Eric Hobsbawm: “Nesse sentido, os bandidos sociais
são reformadores e não revolucionários”. Como parte das personagens
de Graciliano, o Ladrão finda na prisão, dessa vez concreta, mas antes já
se podia notar seu aprisionamento, uma vez que seus sonhos eram
modelados pela “falsa consciência” aqui já referida.
A ativação da linguagem dos romances de Graciliano Ramos pauta-se
pela estratégia de desmascaramento, em nível do texto, das redes
articulatórias cujos efeitos são a alienação do sujeito e do objeto. Esse
método dos processos de efabulação atinge, de forma correlata, o leitor,
implícito nesse trabalho prático de construção. Este leitor, implícito na
própria codificação da narrativa, situado historicamente dentro das
condições socioculturais brasileiras, identifica-se, por sua vez, com um
leitor real, que deve trabalhar igualmente sobre o texto com consciência
crítica. Graciliano Ramos não rejeita o código linguístico; ao contrário,
procura vê-lo em processo de desenvolvimento, para aprofundá-lo. As
transformações da linguagem são gradativas, pois as inovações
dependem de um acordo social entre os falantes. Também sob esse
aspecto a enunciação não se afasta da realidade. Ela parece suspeitar que
uma violentação mais radical do código não teria efeitos sociais porque
quebraria a cadeia comunicativa? Ou ele se vê, como nas Memórias do
cárcere , preso inicialmente à gramática e depois noutra cadeia, a da
polícia política?
As situações mais próximas da anomia ficam restritas, em seus
romances, ao nível do enunciado, nos momentos de alta tensão das
personagens. Ela não atinge a enunciação: Graciliano afasta-se dos
excessos narrativos das formas dispostas para “Épater le bourgeois”.
Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito alto muitas
vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos.
Sua opção é por um compromisso com os objetos da realidade social.
Procura vê-los como os da criação cultural, em especial a linguagem,
num problemático e áspero processo de desenvolvimento, no momento
histórico em que se efetiva a comunicação literária. Não procura
recursos artísticos que poderiam ser interpretados como “modismos”,
afeitos ao mundo das mercadorias, mas a efetiva busca do “novo”, isto é,
aqueles procedimentos que sua práxis de escritor evidencia como
eficazes para produzir efeitos controlados por sua consciência social.
Graciliano e o cinema
RANDAL JOHNSON

Georg Lukács sugeriu que muitas vezes obras de arte são revitalizadas
quando respondem a ansiedades ou preocupações semelhantes àquelas
da época em que foram originalmente produzidas. Isto é certamente o
caso com as mais marcantes adaptações de Graciliano Ramos. Quando o
Cinema Novo surgiu nos anos 1960, encontrou modelos culturais
internos no movimento modernista dos anos 1920, com sua
experimentação com a linguagem artística e seu nacionalismo cultural, e
no romance social dos anos 1930, com o seu engajamento político.
Nessa veia, a obra de Graciliano Ramos foi central. Três adaptações de
livros de Graciliano, dirigidos por dois dos fundadores do Cinema Novo,
são obras-primas do cinema brasileiro: Vidas secas (Nelson Pereira dos
Santos, 1963), São Bernardo (Leon Hirszman, 1972) e Memórias do c
árcere (Nelson Pereira dos Santos, 1984). Vale lembrar que outras obras
de Graciliano também foram levadas ao cinema ou à televisão, caso de
Insônia (1980), longa composto de três curtas baseados em contos, e
Alexandre e outros heróis (TV; Luiz Fernando Carvalho, 2013).
Esses filmes são exemplares por sua intervenção em circunstâncias
sociopolíticas específicas em três momentos da história recente do país.
Vidas secas foi lançado no período antes do golpe de Estado de 1964.
São Bernardo surgiu no período mais repressivo da ditadura militar. E
Memórias do cárcere foi produzido durante a abertura política que
levaria à redemocratização. Juntos, os três revelam a atualidade de
Graciliano, as conexões importantes entre a produção cinematográfica
do período pós-1960 e o romance social dos anos 1930, e as
semelhanças entre as duas épocas.
Quando Nelson Pereira dos Santos filmou Vidas secas (1938), seu
objetivo era não apenas fazer uma homenagem ao romancista e uma
adaptação de uma obra-prima literária; também queria participar do
debate, que acontecia na época, sobre a reforma agrária: “Naquele
momento havia grandes discussões no Brasil sobre o problema agrário.
Pensei que o cinema também devia participar do debate, e que a minha
contribuição poderia ser a de um cineasta que rejeitasse uma visão
sentimentalizada”.
No filme, o diretor reorganiza o material básico do romance numa
narrativa algo mais linear. Ao mesmo tempo, encontra equivalências
criativas ao estilo de Graciliano, particularmente em relação ao ponto de
vista narrativo. O romance usa um estilo indireto livre que permite ao
narrador captar os pensamentos e sentimentos das personagens, inclusive
da cachorra Baleia, sem sair da terceira pessoa, o que resulta numa
combinação eficaz de objetividade e subjetividade.
No filme, o discurso indireto livre dá lugar a imagens da incapacidade
das personagens de articularem verbalmente os seus pensamentos,
porque mal falam. Ao mesmo tempo, consegue transmitir a perspectiva
de todos os membros da família através do uso de câmera subjetiva e do
campo contracampo. Também usa o movimento da câmera, ângulo, foco
e exposição para realçar esta visão subjetiva.
Vidas secas representa perfeitamente o que Glauber Rocha descreveu
como uma “estética da fome”. Lida com a questão da fome desde as
primeiras sequências, mas também incorpora a escassez de recursos
como parte da sua elaboração estética. Como escreveu Ismail Xavier, em
vez de imitar o cinema dominante, o que faria o seu trabalho apenas
sintomático do subdesenvolvimento, os cinema-novistas resolveram
resistir, transformando a escassez em elemento significante. O filme de
Nelson Pereira dos Santos, com seu sóbrio realismo crítico, representa o
melhor da primeira fase do Cinema Novo. Consegue levar o romance de
Graciliano à tela de forma altamente criativa, mantendo as preocupações
centrais do romance ao mesmo tempo que mostra a sua relevância para a
conjuntura sociopolítica do começo dos anos 1960.
Em 1971, três anos depois da imposição do AI-5, Leon Hirszman
embarcou na produção de uma versão de S. Bernardo . Por causa da
censura, discussões diretas de questões sociais e políticas eram difíceis,
e o cinema brasileiro muitas vezes se caracterizava por um discurso
alegórico e às vezes hermético. São Bernardo marca uma volta ao
realismo crítico que caracterizava alguns dos melhores filmes do Cinema
Novo nos anos 1960.
Completado em 1972, o filme foi lançado em 1973, depois de ser
detido pela censura por sete meses. Em suas negociações com os
censores, Hirszman argumentou que o filme era uma adaptação fiel de
um clássico da literatura brasileira e um tributo apropriado ao Graciliano
no octogésimo aniversário do seu nascimento. De certo modo, o que
tornou o lançamento do filme problemático foi exatamente a sua
fidelidade ao romance. Se por um lado São Bernardo faz uma
declaração universal a respeito das relações entre propriedade e
personalidade, por outro faz uma asserção a respeito do Brasil do
chamado “milagre econômico”. Como o diretor disse: “O romance de
Graciliano Ramos é tão rico que ultrapassa suas limitações temporais e
chega a nossos dias com seu relato de um homem que se dedica ao
processo de acumulação capitalista”.
Tanto o romance quanto o filme abrem com uma metáfora econômica.
No primeiro capítulo do romance, o protagonista Paulo Honório conta
que havia proposto a composição de um romance baseada numa divisão
de trabalho entre vários amigos. O filme, por sua vez, abre com a
imagem de uma cédula de cinco mil-réis, assim enfatizando o tema
central das duas obras: a obsessão pela acumulação de propriedade e
capital e a resultante reificação de seres humanos. A obsessão de Paulo
Honório com a propriedade leva não apenas ao suicídio de Madalena,
mas também a sua própria destruição como ser humano e a sua solidão
existencial. A última imagem do filme contrasta Paulo Honório, sozinho,
com os trabalhadores, que trabalham e cantam juntos.
São Bernardo se compõe em grande parte de planos-sequência
filmados com uma câmera estática, o que traduz a imobilidade final do
protagonista e abre espaço para a reflexão por parte do espectador. Ao
mesmo tempo, expressa cinematograficamente o estilo esparso,
econômico, e autorreflexivo do romance. O filme São Bernardo – assim
como o romance original – analisa os efeitos do processo de acumulação
no ser humano, inclusive a alienação, violência e destruição, de si
mesmo e dos outros, que fazem parte do sistema econômico regente nos
anos 1930 assim como nos anos 1970.
A adaptação de Memórias do cárcere (1953), por Nelson Pereira dos
Santos, continua a tradição política dos dois filmes anteriores,
transformando-se num símbolo cinematográfico do processo que levaria
à volta da democracia. No livro, Graciliano relata sua experiência como
prisioneiro político entre março de 1936 e janeiro de 1937, sem nunca
ter sido acusado formalmente. É uma denúncia eloquente do abuso do
poder sob o autoritarismo e das condições degradantes e abjetas a que
foram submetidos o autor e muitos outros opositores do regime. O filme
dá novo alento ao relato de Graciliano, de modo a refletir criticamente
sobre o Brasil e sua história de autoritarismo. Memórias do cárcere
oferece a prisão como metáfora da sociedade brasileira, criando um
paralelo entre o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e a
ditadura militar que se impôs no país em 1964.
A série de prisões que aparecem no filme confinam homens e
mulheres de todas as classes e profissões: intelectuais, soldados,
trabalhadores manuais, ladrões, políticos, religiosos, e assassinos.
Apesar das suas muitas diferenças, eles têm em comum o fato de serem
oprimidos por um sistema político arbitrário e autoritário que impõe sua
vontade através da força, submetendo-os a um mundo subterrâneo de
intolerância e violência, tão representativo dos porões da ditadura pós-
1964 quanto do regime Vargas nos anos 1930.
Memórias do cárcere é um de vários filmes que expressam o desejo
de liberdade política num momento da abertura – e coincidente com o
movimento Diretas Já – que levaria à redemocratização. Como o livro,
denuncia o autoritarismo em todas as suas formas. A trilha sonora, por
exemplo, recupera para o movimento democrático o Hino Nacional, que
havia sido usado durante a ditadura para tachar a oposição de não
patriótica.
Mas os temas centrais de Memórias do cárcere são a liberdade, não a
opressão; a resistência, e não a submissão. A cabeça raspada de
Graciliano é um símbolo do tratamento ignominioso que regimes
autoritários impõem aos dissidentes, suspeitos ou reais. A determinação
de Graciliano de registrar a sua experiência, de resistir, representa uma
reafirmação da sua fé na participação política e na democracia. Sua
liberação é uma conquista coletiva, não individual.
No filme, Nelson Pereira dos Santos discute não apenas a natureza
autoritária da sociedade brasileira, mas também o papel do escritor e
artista no debate e na resistência política. Como Ismail Xavier observa,
ao focalizar o escritor, que é frequentemente visto isolado dos outros
presos, pelo menos em termos de espírito se não de espaço, o filme
parece afirmar a missão da literatura – e, por extensão, do cinema –
como meio de documentar a época, a memória e a história. Reforça a
importância do ato de escrever e do intelectual no processo social. É
significativo que, perto do final do filme, os outros presos se unem com
o escritor, escondendo as suas memórias dos guardas. Assim, Graciliano
deixa a prisão em triunfo, já que a brutalidade dos guardas e a opressão
da vida na prisão deram um novo sentido a sua vida e a sua literatura.
Como escreveu a sua filha, Clara Ramos, ele saiu da prisão outro
Graciliano, “um homem reestruturado ideologicamente”.
Com a sua visão crítica e sua dedicação intransigente a sua arte, que é
exemplar por sua combinação do político e do estético, Graciliano serviu
de modelo importante para novas gerações de artistas e fonte de
inspiração para intelectuais e artistas em décadas subsequentes que
tentaram entender os mecanismos operantes da sociedade brasileira. Os
três filmes mencionados aqui são exemplos perfeitos do impacto e da
importância duradouros do escritor.
Heróis subestimados
LILLIÂN ALVES BORGES E EDMAR MONTEIRO FILHO

Em 1962, nove anos após a morte de seu autor, surgiu a primeira edição
de Alexandre e outros heróis , de Graciliano Ramos. Tratado como
“obra póstuma” à época, o livro reúne três textos direcionados ao
público infantil, dois dos quais já haviam sido publicados anteriormente.
Histórias de Alexandre , que abre a coletânea, foi concluído em 1940 e
publicado quatro anos depois; A terra dos meninos pelados , de 1937,
saiu em livro no ano de 1939, e Pequena história da República , escrito
em 1940, foi o único publicado postumamente, em 1960.
Tais escritos receberam pouca atenção por parte da crítica,
dificultando seu conhecimento pelo público leitor. Entretanto, Alexandre
e outros heróis desmente a opinião de estudiosos da literatura que o
consideraram um livro menor, momento de impasse ou recreio dentro da
obra do escritor. Pelo grau de inventividade com que Graciliano aborda
diferentes gêneros, como o folclore, o conto fantástico e o texto
histórico, o livro merece vencer o preconceito que ainda acompanha a
produção voltada para o público infantil e figurar entre aqueles que
consagraram Graciliano como um dos maiores escritores da literatura
brasileira do século 20.
Em A terra dos meninos pelados , Graciliano apresenta Raimundo, um
menino que possui a cabeça calva, um olho preto e outro azul.
Ridicularizado por seus colegas por ser diferente, Raimundo cria, no
passeio de sua casa, o país de Tatipirun, habitado por animais e objetos
fantásticos, onde não há violência, o ambiente é aconchegante e todas as
crianças têm aparência semelhante à dele. Assim, o menino deixa uma
realidade adversa e mergulha num espaço de aceitação, igualdade e
respeito. Entretanto, essa fábula, que parece elogiar o uso da imaginação
como forma de fugir às dolorosas condições do real, sofre uma decisiva
mudança quando Raimundo prefere enfrentar seus problemas em vez de
seguir vivendo em uma terra utópica, demonstrando a segura opção de
seu autor pelo repúdio à literatura escapista praticada tanto pelos
românticos quanto por inúmeros romancistas de sua geração.
Especialmente a partir da experiência no cárcere, Graciliano pautava-se
em uma literatura combativa, de denúncia da miséria e da desigualdade;
portanto, nada mais inadequado para tais posições que a atitude do
menino humilhado que decide se refugiar num país imaginário como
forma de se ver livre das agruras e crueldades do mundo. O
menino/escritor conhece esse país onde imperam a igualdade e o
respeito, espaço onde nada tem a temer. Entretanto, convidado a
permanecer ali, vem a recusa, em função das obrigações deixadas em
sua Cambacará natal. Raimundo despe-se dos trajes do país de Tatipirun
e dá adeus aos habitantes da terra dos meninos pelados, consciente de
que retorna mais fortalecido para suas responsabilidades, sintetizadas
nas “lições de geografia” que precisa estudar e, sobretudo, ensinar.
Em Histórias de Alexandre , temos a narrativa das façanhas de um
sertanejo velho, pobre, com um olho torto, que desfia histórias para uma
plateia fiel, contando com a cumplicidade de sua mulher, Cesária. Assim
como Alexandre, protagonista invariável das histórias que narra, o
público é formado por excluídos, invisíveis sociais: um curandeiro, um
cantador, uma benzedeira e um cego. E é na tentativa de fugir a essa
invisibilidade que Alexandre imagina suas histórias, repletas de animais
falantes, objetos mágicos e toda sorte de acontecimentos fabulosos. As
efabulações fantásticas sobre o seu passado de riqueza e glórias são
desmentidas pela condição de pobreza em que vive. Dessa forma, a
palavra de Alexandre tem o condão de construir para si um prestígio e
um espaço social negados pela realidade. E se o exímio vaqueiro, o rico
proprietário e o negociante habilidoso que protagonizam as narrativas
fantasiosas sobre o passado de Alexandre não deixaram sinais no
sertanejo pobre, Graciliano aproveita-se desse espaço para inserir uma
dura crítica às condições de penúria do Nordeste brasileiro, às voltas
com a decadência e a miséria promovidas pela seca e pelo descaso
governamental. Misto de texto folclórico e conto maravilhoso, Histórias
de Alexandre encanta pela potencialidade das discussões que vislumbra,
fazendo uma espécie de síntese da obra adulta do escritor. Nesse jogo
fascinante, em que imperam a ironia, o insólito e a crítica social, cabem
ainda abordagens sobre o próprio fazer literário.
Pequena história da República , por sua vez, não traz uma narrativa
em que a imaginação impera, nem muito menos mundos utópicos; ao
contrário, em breves pinceladas, surge um retrato do período republicano
em registro de crônica, marcado pela ironia, pelo sarcasmo e pela
impressão memorialística, diferentemente de um discurso histórico
sustentado pela documentação e pelo rigor metodológico. Se a história
oficial já havia contado a história dos vencedores, Graciliano adota um
ponto de vista distinto. Elabora um híbrido de enciclopédia da Primeira
República com texto literário, mostrando uma visão multifacetada do
período, direcionada às crianças. Graciliano repudia o moralismo, brinca
com personagens históricas, como no verbete “Os homens”, no qual
imagina o ditador Getúlio Vargas ainda criança, cavalgando cabos de
vassoura. Em linguagem fácil – e não facilitadora – o livro não se nega a
identificar “safadezas”, “bagunças” e “azedumes” entre os fatos
narrados; rebaixa o registro historiográfico ao mesmo tempo em que
confere ares de farsa trágica ao pretenso texto histórico. Políticos astutos
são “raposas”; os chamados “Dezoito do Forte” são qualificados como
“doidos”; as revoluções são apresentadas como “encrencas”; as batalhas
tornam-se “confusões medonhas”; os sobreviventes de Canudos são
“fanáticos inúteis”, e o próprio Antônio Conselheiro nasce “numa
família de malucos”. A narrativa episódica, com trechos que muitas
vezes não atingem dez linhas, desconstrói o texto histórico ao desfazer o
sentido de continuidade que a disposição cronológica dos
acontecimentos tenderia a construir, destruindo qualquer ilusão de
cientificidade e pretensa objetividade discursiva.
Raimundo, com um olho azul e outro preto, e Alexandre, com seu
olho torto, representam o olhar crítico, enviesado, que Graciliano Ramos
utiliza para esgarçar a realidade. Pelos caminhos tortuosos da fantasia,
surge em paradoxo um mundo real: repleto de injustiças, invisibilidade
social, desmandos políticos, histórias oficiais inventadas. É com os olhos
de Raimundo e Alexandre que Graciliano cria a Pequena história da
República e subverte o esquema clássico do livro de História para
crianças, pois sua abordagem subjetiva, marcada pelas experiências de
encarceramento físico e intelectual, traduz a visão daqueles que sempre
estiveram à margem da sociedade.
A literatura infantil de Graciliano Ramos não representa uma fuga de
seu percurso estético-literário. Suas obras dirigidas às crianças dão
continuidade às reflexões de um autor sempre incomodado com a
desigualdade. Os personagens a quem o autor concede vida em seus
textos literários, tanto em Vidas secas e S. Bernardo , como em
Histórias de Alexandre ou A terra dos meninos pelados , são sujeitos
castigados e humilhados, seja pelo mecanismo cruel da sociedade
capitalista, seja pela modernização insensível, seja pelo preconceito que
esmaga a diferença. Por isso, não se pode falar em dispersão ou
irreflexão na trajetória artística de Graciliano, mas em uma tentativa
lúcida e coerente de demonstrar para adultos, jovens e crianças que o
mundo não é feito de uma única verdade, de uma História única. Sendo
assim, Pequena história da República também se insere com perfeição
nesse projeto, uma vez que traz um olhar renovador, leve, sobre os fatos
sempre tratados de forma engessada, segundo a visão dos donos do
poder.
Em Alexandre e outros heróis , Graciliano demonstra como é possível
produzir uma literatura infantil sem infantilizar ou facilitar a linguagem,
incluindo a criança no processo de construção de sentido. Para isso,
utiliza-se do fantástico e do humor como formas de buscar uma
identificação entre o leitor mirim e o imaginativo Alexandre, o sofrido
menino Raimundo ou o narrador debochado de episódios da história do
Brasil.
Quando a crítica literária coloca à margem uma parcela significativa
da literatura de Graciliano Ramos, considerando-a menor, justamente
por ser voltada às crianças, perde de vista a riqueza e a diversidade desse
conjunto criativo. Dialogando continuamente com os excluídos, o
escritor mantém sua coerência ao eleger o público infantil como foco
desses importantes e subestimados textos. Mas que não se imagine que
Alexandre e outros heróis limita seus atrativos ao gosto infantil. Nascido
sob a ditadura do Estado Novo, o livro aborda com sutileza alguns temas
essenciais para a compreensão do Brasil do seu tempo, sujeito aos
rigores da censura, aos debates intelectuais em torno da realidade
brasileira e às profundas transformações que agitavam o país. Assim, ao
mesmo tempo que presta importante homenagem à inteligência das
crianças, encanta também os adultos sensíveis, capazes de enxergar nas
histórias bordadas de fantasia e em sua sarcástica apreciação da história
política brasileira um refinado espaço literário de denúncia e crítica
social.
Vida, literatura e engajamento
JEAN PIERRE CHAUVIN E RODRIGO JORGE RIBEIRO NEVES

Nascido em Quebrangulo, nas Alagoas, em 27 de outubro de 1892,


Graciliano Ramos de Oliveira era um dos quinze filhos de uma família
de modestas posses. Quando menino, viveu entre Alagoas e
Pernambuco, tendo cursado o nível médio (à época, chamado
secundário) em Maceió. Entre 1910 e 1914, residiu em Palmeira dos
Índios, onde o pai montara um pequeno comércio. Passou uma
temporada, entre 1914 e 1915, no Rio de Janeiro, como revisor do
Correio da Manhã e A Tarde. De volta a Palmeira dos Índios,
estabeleceu-se na cidade. Em 1927, elegeu-se prefeito após uma série de
reviravoltas, como o assassinato do seu antecessor, meses antes de
completar o mandato, e a insistência dos caciques políticos da região à
sua candidatura. O ex-presidente da Junta Escolar tinha virtudes que
permitiriam ocupar a administração municipal. Após dois anos
turbulentos, mas de consideráveis avanços, renunciou ao posto. Durante
esse período, Graciliano enviou três relatórios ao governador Álvaro
Paes, cuja repercussão na imprensa extrapolou os limites da região e
chegou até os periódicos da então capital federal, entre eles o Jornal do
Brasil. A linguagem incomum, empregada pelo prefeito de uma cidade
do interior alagoano em documentos oficiais, causou perplexidade e
entusiasmo em alguns leitores, entre eles, o poeta e editor Augusto
Frederico Schmidt. O autor daqueles relatórios certamente teria uma
história na gaveta. Tinha: era Caetés . Estima-se que desde 1925
Graciliano estivesse às voltas com a redação de seu primeiro romance –
publicado em 1933 pela editora de Schmidt, no Rio de Janeiro. Àquela
altura, fortaleciam-se os laços entre Graciliano e outros escritores, como
Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Valdemar
Cavalcanti. Ao deixar a prefeitura de Palmeira dos Índios, em 1930,
Graciliano Ramos aceitou do governador de Alagoas a incumbência de
dirigir a Imprensa Oficial e, também, a Instrução Pública do Estado –
cargos que exerceu até março de 1936, quando foi preso, acusado de
práticas comunistas. As perseguições dos opositores ao regime estado-
novista contribuíram para a propagação de arbitrariedades como essa:
aproveitando-se do clima instaurado, desafetos de Graciliano lograram a
sua prisão baseados em divergências com sua atuação. Tempos depois,
foi comprovado que não havia processo algum contra ele.
Data desse período a preparação de S. Bernardo (publicado em 1934)
e Angústia (1936) – este, graças à influência e apoio de seus amigos,
especialmente José Lins do Rego. Nas Memórias do cárcere , em que
relata os dez meses de prisão, Graciliano retoma as dificuldades
enfrentadas na escrita de Angústia , seu livro mais sofrido. Em carta de
26 de fevereiro de 1937, revela a um de seus tradutores argentinos,
Benjamín de Garay, ao sair da prisão, que cogitava escrever um romance
sobre a experiência na cadeia, destacando as “figuras admiráveis” que
encontrou nas celas por onde passou. Naquele ano, chegou a esboçar
algumas páginas do livro; mas abandonou a tarefa, só retomada quase
dez anos depois. A mudança para o Rio de Janeiro se deu de forma
compulsória, na condição de detento, a bordo do navio Manaus . Na
capital federal, depois de solto, dedica-se ao cargo de Inspetor Federal
de Ensino, obtido por influência do poeta Carlos Drummond de
Andrade, e desenvolve intensa atividade jornalística. Em 1937,
conquista o terceiro lugar do prêmio do Ministério da Educação com sua
primeira obra infantojuvenil, A terra dos meninos pelados . No ano
seguinte, publica um de seus maiores clássicos, o romance Vidas secas ,
seu último livro no gênero. A narrativa curta passa, então, a mobilizar o
projeto literário do escritor alagoano. Embora sua incursão na contística
já tivesse ocorrido (tanto é que os romances partiram de contos), a
dedicação ao gênero se dá em um momento de revisão crítica de sua
ficção, estética e politicamente. A experiência no cárcere e as condições
instauradas pelo regime estado-novista foram decisivas, nesse sentido.
Os anos 1940 seriam marcados por eventos que acompanharam essa
guinada na trajetória intelectual do autor. No mesmo ano em que
publicou Infância (1945), filiou-se ao Partido Comunista do Brasil
(PCB), sob a coordenação de Luís Carlos Prestes – um dos líderes da
pejorativamente chamada Intentona Comunista, em meados da década
de 1930. Além desse livro, a narrativa breve enforma Histórias de
Alexandre (1944), Dois dedos (1945), Histórias incompletas (1946) e
Insônia (1947). Ainda nesse período, acompanhado de outros
intelectuais, Graciliano visita a União Soviética – experiência relatada
em Viagem , publicado postumamente (1954). No final de 1952 o
escritor adoecera, vindo a falecer em março de 1953. Após a sua morte,
saem Memórias do cárcere (1953) e as coletâneas de crônicas Linhas
tortas (1962) e Viventes das Alagoas (1962).
Haveria relações entre a trajetória do homem e a sua obra? Sem
cairmos em biografismo estreito ou no perigoso mecanicismo entre vida
e ficção, pode-se conjecturar, em parte, que sim. Porventura, a
convivência com diferentes camadas sociais de Alagoas, Pernambuco e
Rio de Janeiro tenha facultado ao escritor a ideia de representar questões
sensíveis e complexas, interpretadas por figuras marcantes em seus
romances, contos e memórias. O próprio Graciliano Ramos, numa
entrevista a Homero Senna em 1948, afirmou: “Nunca pude sair de mim
mesmo. Só posso escrever o que sou”. Convidamos o leitor a refletir
sobre a relação entre estética e política na obra de Graciliano Ramos.
João Valério é guarda-livros de Adrião e se envolve, para além dos
negócios, com sua esposa, Luísa. Traço marcante, as personagens
percorrem ambientes humildes, como repartições públicas, bares,
bilhares e congêneres, além dos chás na casa do patrão. A despeito da
vida simples que as criaturas compartilham, chama a atenção a crise
vivenciada pelo protagonista e narrador de Caetés . Embora o dilema de
Valério tenha matriz ética e moral, o romance relativiza o conceito de
culpa e penitência, o que poderia ilustrar a concepção concreta e nada
metafísica do autor. Em S. Bernardo , também narrado em primeira
pessoa, Paulo Honório relata seus mandos e desmandos, como garoto de
origem sofrida (órfão, vendedor de doces, roceiro) que, aos poucos, e de
maneira escusa, torna-se um poderoso fazendeiro. Caprichoso e
habituado ao mando, principia o relato pelos nomes de figuras que o
teriam incentivado a escrever a própria história. Durante a maior parte
do tempo, convive com um padre, um jornalista e um advogado, que lhe
emprestam a sabedoria, a publicidade e a lei. Mais tarde, decidido a
fazer um herdeiro, casa-se com Madalena, que sofrerá com a postura
machista e as inseguranças do marido. Por sinal, é a trágica resolução da
esposa que leva Paulo Honório a escrever. Angústia traz a história de
Luís da Silva, funcionário público com trinta e poucos anos. O relato
amargurado do protagonista é uma das marcas do enredo. A sua vida
rotineira e entediada, entre a repartição e a modesta residência, onde
vive sozinho, sofre grande transformação quando ele se apaixona por
Marina, sua vizinha. O súbito amor, que poderia ser visto como um
poderoso antídoto contra a semivida que levava – ademais, tensionada
pela presença constante do rival, o bacharel e proprietário comercial
Julião Tavares –, será estopim para uma série de complicações que
fogem ao seu controle e se refletem no discurso em looping que ele
promove. Já em Vidas secas , Fabiano e sinha Vitória arrastam-se com
seus filhos, a cachorra Baleia e um papagaio, por entre cidades do sertão
nordestino. Construídos como retirantes, as personagens pouco falam, o
que concede ao enredo um traço de incomunicabilidade. Uma
consequência disso estaria no fato de esse ser o único romance narrado
em terceira pessoa, como se traduzisse a menor capacidade das criaturas
de transformar pensamento em palavra. Outra diferença, em relação às
narrativas anteriores, é que Vidas secas resultou da fusão de contos
publicados avulsamente pelo escritor, o que teria interferido na
estruturação do livro.
Afora as questões de cunho formal (foco narrativo, tema, progressão
do enredo, descrição dos ambientes, postura das personagens), um dos
ingredientes essenciais de sua obra parece estar na linguagem. O modo
como as figuras se expressam; a maneira como reagem frente a sujeitos
mais (ou menos) poderosos; a postura que assumem diante dos impasses
que enfrentam (o triângulo amoroso, o ciúme doentio, o sentimento de
culpa, a luta pela sobrevivência), quase tudo passa pela forma como os
narradores (em primeira ou terceira pessoa) se exprimem. Nesse sentido,
pode-se conferir maior importância aos gestos simples e aos espaços
apequenados, como o bar, a casa simples e a repartição pública, a
descontar a imponência de determinados ambientes, como a fazenda de
um narrador pretensioso, ou a fala armada do soldado amarelo –
representante citadino do pequeno mando e da ordem. Nem por isso,
menos covarde, quando desarmado, a perambular na catinga. Sob tal
perspectiva, porventura valha a pena considerar o alcance dos nomes que
Graciliano Ramos deu às figuras que criou. Em João Valério funde-se a
figura do apóstolo, celebrado na Bíblia, com a valentia dos romanos, em
eras remotas do Império, muito antes de Cristo. O protagonista agiria de
modo correspondente a essa aparente dicotomia entre a consolação e a
coragem? A seu turno, o que o fazendeiro Paulo Honório teria de
pequeno ou honrado? O nome Luís da Silva resultaria da aproximação
entre o prenome majestático e o sobrenome que sugere origem humilde?
Por fim, qual seria o trunfo de sinha Vitória? Escapar da seca? Manter-se
viva? Por sua vez, as questões suscitadas em seus contos e memórias
adensam as inquietações do indivíduo em face de uma realidade
implacável. Além disso, Graciliano incorpora organicamente estratégias
estético-narrativas das vanguardas artísticas, apesar de se opor aos
preceitos programáticos do Modernismo brasileiro e se vincular também
aos pressupostos do Realismo do final do século 19, influenciado por
Balzac, Tolstói e Aluísio Azevedo. Um bom exemplo é “Insônia”, conto
homônimo do livro que o reúne entre outras narrativas curtas.
Diferentemente das demais historietas, em “Insônia”, o texto é
construído por meio de recursos da repetição e do excesso, mas que
exercem uma função na história de uma noite mal dormida de um
personagem indeterminado. A fragmentação, o delírio e a incompletude
experimentados pelos personagens dos contos apontam para o
dilaceramento do sujeito, a impossibilidade de se ajustar em uma
sociedade desajustada e a tragicidade da nossa condição que parecem
não indicar qualquer saída, submetidos que estamos aos percursos
labirínticos e aniquiladores das instituições e do progresso.
Nas obras ditas confessionais – Infância e Memórias do cárcere –, o
escritor revisa a sua obra e a sua própria formação, que também pode ser
lida em uma chave a repensar a precariedade da constituição de um país
que sustenta(va) mecanismos de desigualdade como instrumento de
manutenção de poder e privilégios. Em Infância , livro de feição lírica, o
menino e o escritor maduro transitam entre uma narrativa com diversas
camadas. “Um cinturão”, por exemplo, relata o castigo arbitrário
aplicado pelo pai porque este, por mera convicção, atribuíra ao menino o
desaparecimento do objeto-título do conto. Na abertura e na conclusão
da narrativa, o escritor nos revela que fora o seu “primeiro contato com a
justiça”, ou seja, há indicação de continuidade do arbítrio e da opressão.
Essas são condições que atravessam a experiência descrita em Memórias
do cárcere , livro que ficou devendo o capítulo final, devido ao
falecimento do escritor. Disposto em quatro partes, cada uma
subdividida em breves capítulos, Memórias do cárcere é quase uma anti-
odisseia, pois não havia qualquer glória em suas viagens e nenhuma
artimanha ou astúcia que o livrasse dos perigos e da cólera dos que
detinham o poder sobre os homens. É uma jornada de desgraças, em que
o distanciamento daquilo que é humano não eleva ninguém; ao
contrário, submerge-o no lodo, nas fezes e nas trevas luminosas
impregnadas do cheiro de urina. Contudo, como a flor drummondiana
que furou “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, Graciliano foi levado a
difíceis e necessários reexames de si mesmo na convivência com tipos
com quem não travaria relações no cotidiano, fora dos muros da prisão e
da caserna. Ele traz à tona episódios que o forçaram a profundas
reflexões sobre as dimensões ideológicas, éticas e humanas em sua
relação com o outro: a amizade de capitão Lobo, oficial responsável por
sua custódia em Recife; o cuidado de Cubano, detento que atuava com
autoridade penitenciária na Colônia Correcional; a admiração por
Gaúcho, ladrão que o inspirou em um dos contos de Insônia . Assim
como em Infância , o escritor justapõe diversas camadas durante a
narração dos eventos, em uma tensão crítica entre o vivido e a vivência
da própria escrita, na revisão do que narra. Em Graciliano, vida e obra se
entrelaçam nas asperezas que constituem a dura realidade, mas também
são recobertas pela palavra, feito nuvem, a reorganizar e fortalecer o
nosso íntimo.
80 anos de Vidas Secas
WELINGTON ANDRADE

Em março de 1938, saíam da Empresa Gráfica Revista dos Tribunais os


primeiros mil exemplares de Vidas secas , encomendados pela editora
José Olympio. Tiragem inicial que levou dez anos para esgotar. É sem
receio de encalhe, entretanto, que a Record, editora responsável pela
publicação da obra de Graciliano Ramos desde 1975, planeja celebrar os
80 anos do quarto romance do alagoano. A nova edição do livro contará
com a reprodução de manuscritos na abertura de cada capítulo. Se é que
José Olympio, dono da editora que leva seu nome, tenha em algum
momento considerado a publicação um mau negócio, afinal as vendas
não expressavam a repercussão do livro desde o lançamento.
Antes de tratar algumas dessas reverberações, vale lembrar um pouco
do percurso anterior à publicação de Vidas secas . A propósito, um título
que surge a partir de uma conversa com o irmão de José Olympio, uma
vez que Graciliano tinha optado por “O mundo coberto de penas”. Mas o
significativo título de um dos capítulos do livro soava pouco eficiente
para o conjunto, segundo o editor. A primeira opção do alagoano tinha
sido ainda “Cardinheiras”. Era menção às aves de arribação que fazem
seus ninhos em meio aos espinhos dos cardos e que em Vidas secas
surgem como ameaça na formulação de sinha Vitória: “O sol chupava os
poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar
o gado”.
Em fevereiro de 1937, um mês depois de ser posto em liberdade, após
dez meses encarcerado pela polícia de Getúlio Vargas, Graciliano
publicou “A propósito de seca” no periódico O Observador Econômico e
Financeiro, no qual critica a artificialidade da figuração dos retirantes na
literatura produzida até então, o que teria despertado no leitor, nas
palavras dele, “compaixão e algum desprezo, compaixão porque ele era
evidentemente infeliz, desprezo por ser um indivíduo inferior,
vagabundo e meio selvagem”. O escritor segue sua argumentação no
sentido de descontruir o determinismo naturalista: “Certamente há
demasiada miséria no sertão, como em toda parte, mas não é
indispensável que a chuva falte para que o camponês pobre se desfaça
dos filhos inúteis”.
No mesmo artigo de 1937, que faz parte de um conjunto maior de
escritos publicados na imprensa e reunidos por Thiago Mio Salla e Ieda
Lebensztayn em Cangaços , Graciliano afirma: “O cangaceiro atual é
uma criatura que luta para não morrer de fome”. Note-se que é o ano
anterior à publicação de Vidas secas e também o do assassinato de
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e de seu bando, em julho de
1938, episódio que o escritor tratará na crônica “Cabeças” (Diário de
Notícias), que também pode ser lida em Cangaços . “O que transformou
Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver”, escreveu Graciliano.
Apesar de presente em suas páginas, Vidas secas não é um livro sobre
o cangaço, mas sobre a cangaia. Fabiano é rês presa à família, este,
mesmo tomado do desejo de vingança que o soldado amarelo lhe
inspirava, pensa que seria inútil matar um, pois seu dono continuaria a
mandar mais. Também não se tornará um cangaceiro.
Assim como o reconhecimento de uma ética em relação ao tratamento
dado aos personagens, ao uso da terceira pessoa que sonda interioridades
sem superioridade e ao mesmo tempo sem o apagamento da própria
presença de narrador a conduzir o que se passa (e também o que
permanece ou retorna em círculos), boa parte da matéria a ser tratada em
Vidas secas já estava contida nas formulações do texto mencionado,
sobretudo no sentido que o título escolhido imprime, pois trata de vidas,
e não de mera paisagem, sobre as quais “a seca é apenas uma das causas
da fome”.
Vidas que correspondem a mundos interiores, portanto em nada
inferiores no quesito humanidade. Ainda que Fabiano insista em se
corrigir ao afirmar ser bicho, logo depois de exclamar em voz alta tratar-
se de um homem. “E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um
cabra ocupado em guardar coisas dos outros.” “Cabra”, entre o sujeito e
o animal, sobre o qual recai a demasiadamente humana dúvida sobre si
como ser, entre outras inquietudes.
O entendimento, por meio da experiência, de tudo o que na natureza é
cíclico não deixa de sublinhar a importância de seu faro para a
sobrevivência. Faro que, trunfo animal, em nada diz de irracionalidade
ou ausência de pensamentos complexos. A dificuldade de organizar o
que vai à mente em palavras é que míngua a tentativa de comunicação, e
por essa falta Fabiano apanha gratuitamente de um soldado amarelo,
dorme nas grades, é explorado na fazenda na qual é vaqueiro, seu
trabalho não paga a comida, e os juros são palavrões que quem tem fome
não conhece.
Ainda em agosto de 1937, Graciliano escreve a seu filho Márcio sobre
o preparo de um novo romance. Uma “história de bichos, cachorros e
matutos”, em que todos são “inteiramente Silvas”, numa referência ao
protagonista de Angústia . Segundo ele, censuravam-no por se preocupar
apenas com funcionários como Luís da Silva e “classe anexa”. “Salto
para o extremo oposto e ofereço ao respeitável público almas de
cachorros e outros bichos semelhantes”, afirma e, mais uma vez,
aproxima sujeito e animal, visto tratar de almas.
ROMANCE A PRESTAÇÃO
Entre a publicação de “A propósito de seca” e o envio da citada carta ao
filho, e sem qualquer aviso de tratar-se de um trecho de romance,
Graciliano publica o conto “Baleia” no carioca O Jornal, em 23 de maio
de 1937. “Utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na
Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho
Pedro Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura
de sinha Vitória; meus tios pequenos, machos e fêmeas, reduziram-se a
dois meninos. Publicada a história, não comprei o jornal e fiquei dois
dias em casa, esperando que os meus amigos esquecessem Baleia”,
relata a João Condé, na famosa carta de 1944.
“O conto [“Baleia”] me parecia infame – e surpreendeu-me falarem
dele. A princípio julguei que as referências fossem esculhambação, mas
acabei aceitando como razoáveis o bicho, o matuto, a mulher e os
garotos. Habituei-me tanto a eles que resolvi aproveitá-los de novo”,
continua Graciliano na correspondência ao amigo, publicada
originalmente na revista O Cruzeiro, nos chamados “Arquivos
Implacáveis”, assinados pelo destinatário, e depois na versão fac-similar
da primeira edição de Vidas secas . “Comecei pelo nono capítulo.
Depois chegaram o quarto, o terceiro, etc.”, em seguida Graciliano data
a feitura de cada um dos textos, ordem que não corresponde à publicação
nos periódicos de dez dos treze capítulos do livro. Ao leitor, a
informação de que eram trechos de um romance em andamento apareceu
apenas com a publicação de “O mundo coberto de penas” quase seis
meses depois da de “Baleia”.
Exonerado de seu cargo em Alagoas, por conta da prisão, o escritor
buscava no Rio de Janeiro modos de sobreviver. Pagar o aluguel do
quarto de pensão onde morava no Rio e sustentar a mulher Heloísa e os
filhos. Publicar seus textos em jornais e revistas foi uma forma de
levantar dinheiro.
É sobre essa condição material que Rubem Braga trata nas linhas
publicadas no Diário de Notícias em 14 de agosto de 1938: “Eu conheço
o quarto onde Graciliano escreveu Vidas secas , e sei mais ou menos a
situação em que ele escreveu. Essa situação determinou a própria
estrutura do romance. [...] Cada capítulo desse pequeno livro dispõe de
uma certa autonomia e é capaz de viver por si mesmo. [...] Graciliano
não fez assim por recreação literária. Fez por necessidade financeira. Ia
escrevendo e ia vendendo o romance a prestação. [...] Foi colocando
aquilo a varejo, em nosso pobre mercado literário. Depois vendeu tudo
por atacado, com o nome do romance./ Quase tão pobre como Fabiano, o
autor fez assim uma nova técnica de romance no Brasil. O romance
desmontável”.
DESMONTE DO DESMONTÁVEL
Quem primeiro chamou atenção para uma descontinuidade da estrutura
do livro foi a crítica Lúcia Miguel Pereira em resenha no Boletim Ariel,
de maio de 1938. “Será um romance?”, questiona, para em seguida
afirmar: “É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira,
talhadas com precisão e firmeza”. Álvaro Lins, por sua vez, viu defeito
romanesco no caráter fragmentário do livro, e Affonso Romano de
Sant’Anna falou de um “critério aleatório”.
Um dos estudiosos que esmiúçam a recepção em torno do aspecto
estrutural de Vidas secas é Luís Bueno. Em Uma história do romance de
30 , o professor da UFPR questiona a noção de “desmontável” quando
mencionada fora do contexto do testemunho de Rubem Braga como
companheiro de pensão. Ao analisar leituras que tentam defender a
desconexão entre as partes do romance de Graciliano e outras que
tentam engessá-la, Bueno encontra argumentos que contraditoriamente
reforçam a relação entre o todo.
A relativização da intercambialidade dos capítulos já havia sido
apontada por Antonio Candido em Ficção e confissão – publicado como
livro em 1956, mas a partir de artigos de 1945 –, ao salientar o encontro
entre o primeiro e o último capítulo de Vidas secas e seu caráter circular,
em forma de rosácea, como nas cenas inicial e final da Recherche
proustiana. Além de Candido, Bueno passa por uma série de outros
trabalhos para apresentar a sua própria leitura das conexões, simetrias e
continuidades que compõem Vidas secas .
Em meio à orientação que a família de retirantes tem via observação
da natureza, sobretudo das estações de seca e chuva, Bueno chama a
atenção para a única menção ao tempo decorrido, no capítulo “O
soldado amarelo”. Fabiano topa com o agente do governo que o jogara
na cadeia “um ano antes”. Como os personagens apenas se lembram do
que se passou nos capítulos anteriores, o que se passa entre “Cadeia” e
“O soldado amarelo” se dá nesse período e nos seria apresentado em
ordem cronológica.
“Inverno” figura como centro especular entre os pares de situações em
sua maioria contrárias: “Mudança” e “Fuga”, primeiro e último,
“Fabiano” e “O mundo coberto de penas”, segundo e penúltimo,
“Cadeia” e “O soldado amarelo”, terceiro e antepenúltimo, e assim
sucessivamente. “Uma leitura feita em qualquer outra ordem destruirá
esse movimento e romperá uma unidade elaborada de forma sutil, mas
sempre identificável. É por isso que se pode dizer que Vidas secas é um
romance cuidadosamente montado”, conclui Bueno.
Oito décadas depois, essas são apenas algumas histórias para lembrar
a gênese de Vidas secas e alguns, entre outros tantos, debates que a obra
inspira desde seu lançamento.
A arte pede misericórdia
IEDA LEBENSZTAYN E THIAGO MIO SALLA

Uma “obstinação concentrada” no “arranjo de ninharias”. Precisas e


poéticas, ainda mais considerando que ninharia etimologicamente é
criancice, tais expressões, do retrato memorialístico “Manhã”, traduzem
a concepção de arte de Graciliano Ramos como trabalho imerso nas
palavras e sensível à força de seres silenciados pela sociedade.
Escritas em 1938, depois de o escritor haver saído da prisão, a que
fora levado, de Maceió para o Rio de Janeiro, em março de 1936 e onde
permaneceu até janeiro de 1937, essas palavras foram publicadas em
Infância , em 1945. No mesmo ano, o crítico Antonio Candido estampou
no Diário de S. Paulo uma série de ensaios sobre a obra de Graciliano,
depois recolhidos no livro Ficção e confissão . Inegável esse caminho da
ficção para a confissão , cumpre compreender como a força do estilo do
escritor, clássico e moderno, advém justamente de combinar
circunspecção (olhar para fora, para a realidade e suas iniquidades),
introspecção (olhar para dentro com vistas a analisar seus impasses) e
respeito (olhar para trás), palavras estas com o mesmo specio de origem.
Ou seja, a representação da realidade observada e experienciada, a
expressão subjetiva confessional e ficcional, e o repertório inventivo
formado de leituras e narrativas conhecidas se fundem na construção da
arte de Graciliano. Tanto elementos confessionais comparecem
artisticamente em sua ficção, como traços da dicção ficcional e da
composição da alteridade perfazem a singularidade da escrita das
memórias.
Se é fato que, depois de sair da prisão, quanto à produção romanesca
Graciliano publicou apenas Vidas secas e se dedicou às memórias da
infância e da cadeia (além dos contos de Insônia e de alguns dispersos,
de A terra dos meninos pelados , Histórias de Alexandre , das crônicas e
traduções), entende-se que a configuração da história de Fabiano e
família, retirantes nordestinos, materializa a concepção de romance do
autor, que pressupõe conhecer e experienciar a realidade representada. Já
a realidade do escritor na então capital federal, o Rio de Janeiro, desde a
sua “migração forçada”, marcando-se por fragmentação, acúmulo de
tarefas intelectuais e necessidade financeira de publicar, coincidiu com a
não publicação de novos romances. Graciliano tentou escrever um
romance ambientado no Rio, mas “não sentia aquilo”: preferia a
caatinga.
Eis que uma carta de 1935 deixa ver que ainda em Alagoas, antes da
prisão, defrontou-se com este impasse: afeito ao romance realista à
Balzac, pautado no fator econômico , vindo de publicar S. Bernardo ,
Graciliano sofre a impossibilidade de escrever mais um, insatisfeito
diante da decadência do gênero, sobretudo quando considerava a
produção panfletária dos soviéticos de então que descambava em
noticiário. “Se ainda tentasse escrever um romance, provavelmente não
me afastaria da gente mesquinha que há nos meus dois livros. É uma
tristeza mexer com ela, mas não conheço outra. Suponho, porém, que
não há perigo: não teremos reincidência”, afirma Graciliano em carta a
Oscar Mendes. Ainda bem que houve “reincidência”: em 1936 saiu
Angústia , com o autor no cárcere, e várias cartas de 1935 acompanham
suas inquietações enquanto compunha a narrativa do pequeno
funcionário assassino e das “figurinhas insignificantes”, nos tempos
difíceis que anunciavam a Segunda Guerra e a sua prisão pelo Estado
Novo.
O leitor de Graciliano se lembrará de que, justo a partir de 1935,
segundo ele entendia, houve um declínio na produção de seus
companheiros de romance social, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José
Lins do Rego, Amando Fontes. Tal percepção motivou o artigo
“Decadência do romance brasileiro”, publicado em 1941 na Nueva
Gazeta, de Montevidéu, e em 1946 em Literatura, do Rio de Janeiro;
consta do volume Garranchos (2012).
“A arte é um ofício, uma técnica, e, como técnica, exige
aprendizagem.” Traduzindo uma concepção de arte que pressupõe
observação de modelos, trabalho e persistência, essas palavras, de
Romain Rolland (1866-1944), são evocadas por Graciliano na carta
inédita em livro que ora partilhamos com os leitores. Vale ressaltar que
ele as retomou nos artigos “Os tostões do sr. Mário de Andrade”, de
1939, e “Uma palestra”, de 1952; neste recorda inclusive a enquete
referida na carta, a respeito da literatura soviética.
A dimensão ética tanto do homem quanto do artista Graciliano
também avulta na missiva. Ainda que imaginasse que uma eventual
revolução social o levaria à fome e ao suicídio, ansiava por essa
transformação ampla que promoveria o bem-estar geral dos
trabalhadores. Mas para fomentar tal desenlace se recusava a adequar
sua produção à cartilha do realismo socialista, preferindo fiar-se em um
ideal de verossimilhança artística que englobava, em chave crítica, as
contradições e complexidades da realidade que estava inscrita em sua
história de vida. Nada de panfleto. Nada de noticiário.
Crítico literário e tradutor, Oscar Mendes era o destinatário da carta, a
quem Graciliano agradecia um ensaio sobre S. Bernardo , intitulado
“Egoísmo”, que saiu na Folha de Minas a 17 de janeiro de 1935.
Segundo Gutemberg da Mota e Silva, que publicou a missiva no artigo
“A revolução social me levaria à fome e ao suicídio”, no Jornal do
Brasil, em 1980, Oscar Mendes a havia guardado “carinhosamente” e,
apesar de ter demorado a divulgá-la, devido sobretudo aos elogios que
lhe eram dirigidos, destacava a condenação do totalitarismo expressa
pelo romancista na carta.
E agora todos poderemos ler esta missiva de Graciliano a Oscar
Mendes, enviada de Maceió, a 5 de abril de 1935, e ficar com tal
inquietude sobre as possibilidades e limites da arte e da realidade. Se o
vazio de experiências do mundo, sua superficialidade individualista,
suas intransigências e guerras tiram o desejo de escrever, forçam a crise
do romance, ao mesmo tempo demandam o “arranjo de ninharias”, o
olhar crítico para a realidade dos matutos, para seus silêncios e potencial
de poesia, como Graciliano faria em Vidas secas , em 1938. Aqui um
aperitivo para o volume de cartas inéditas de Graciliano Ramos que
estamos organizando, a ser em breve publicado pela editora Record.
CARTA DE GRACILIANO RAMOS A OSCAR MENDES, MACEIÓ, 5 DE ABRIL DE
1935
Recebi o número da Folha de Minas que trouxe o seu magnífico estudo
sobre o meu S. Bernardo . Venho dar-lhe os agradecimentos e conversar
um pouco, se isto não lhe desagrada.
Estamos longe do tempo em que os mais conceituados críticos
nacionais eram uns sujeitos que ensinavam colocação de pronomes e
sintaxe de regência. Ainda há uns idiotas que fazem crítica,
infelizmente: o ano passado um deles descobriu que não sei conjugar
verbos. Mas o certo é que, em geral, o Duque Estrada e outros
semelhantes morreram.
A sua maneira de escrever me dá ideia de uma pua. Esta comparação é
besta e muito repetida, mas agora não encontro outra: eu queria dizer
que o senhor afasta com facilidade as letras miúdas, a madeira mole, que
vira farelo, e chega num instante ao ponto duro onde o ferro enfia, ponto
que fica muito abaixo das vistas ordinárias.
Estou de acordo com o senhor em várias das afirmações que faz no
seu excelente artigo. Deixemos os elogios de parte: já lhe apresentei os
agradecimentos. Acho, como o senhor, que transformar a literatura em
cartaz, em instrumento de propaganda política, é horrível. Li umas
novelas russas, modernas, e, francamente, não gostei.
O senhor deve ter visto uma enquete que se fez na Rússia o ano
passado. Um dos quesitos era: “Qual a sua opinião a respeito da
literatura soviética?”. Quase toda a gente respondeu que não conhecia a
literatura soviética. E os que a conheciam amoitavam-se, usavam panos
mornos. Romain Rolland, depois de rodeios, disse isto: “A arte é um
ofício, uma técnica, e, como técnica, exige aprendizagem”.
A verdade é que muita gente se livra dessa dificuldade: o romance
virou artigo de fundo e descambou em noticiário. Quanto a mim, penso
como um dos meus personagens: “A gente discute, briga, trata de
negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa”.
Vejo com satisfação que Romain Rolland pensa também assim.
O senhor não quer nenhuma revolução. Eu desejo que as coisas
mudem, embora me pareça que isto não me trará vantagem. Pergunto a
mim mesmo que trabalho me dariam se o cataclismo que espero
chegasse agora.
Não sendo operário, não poderia fabricar nenhum objeto
decentemente. Faria um livro, com dificuldade, matutando, trocando
palavras. Mas hoje existe o romance-cenário, que pretende ser uma
espécie de literatura. Li um deles, russo, traduzido em francês, horrível.
Junto a isso de nada serviriam as minhas letras, aprendidas no tempo em
que a gente estudava Balzac.
Creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio. Mas
como, segundo o evangelho, nem só de literatura vive o homem, é
razoável que se procure o bem-estar dos outros trabalhadores. Além
disso, pode ser que o romance-artigo de fundo e o romance-noticiário
sejam realmente, depois de aperfeiçoados, melhores que os antigos,
extensos demais, pesadões. Quem sabe?
O que é certo é que não podemos honestamente apresentar cabras de
eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro
lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois os nossos
escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores
rurais.
Lins do Rego, que nasceu em engenho, apresentou alguns aspectos
deles, mas ligeiramente. O que lhe interessa é o sofrimento do pequeno-
burguês, decadente e cheio de fumaças, ignorante, vaidoso, inútil.
Rachel de Queiroz tem algumas cenas de cadeia da roça, benfeitas, mas
é possível que ali haja muita imaginação. Julgo que ninguém conhece
bem a vida dos nossos matutos. Essas criaturas falam pouco diante de
pessoas estranhas, são acanhadas. E não creio que existe nelas a
consciência de classe a que Jorge Amado se refere. Vivi trinta anos em
cidade pequena – não vi nada que se parecesse com revolta. Se ainda
tentasse escrever um romance, provavelmente não me afastaria da gente
mesquinha que há nos meus dois livros. É uma tristeza mexer com ela,
mas não conheço outra. Suponho, porém, que não há perigo: não
teremos reincidência.
Adeus. Considere-me um seu amigo e admirador.

Graciliano Ramos
Maceió, 5-4-1935
Rua do Macena, 159
entrevista Oswaldo Akamine Jr.
Exceção de ocasião
AMANDA MASSUELA

No dia 3 de março de 1936, às sete da noite, Graciliano Ramos recebeu


em sua casa um oficial do Exército. De malas prontas, despediu-se da
mulher, Heloísa, e deixou-se levar ao Batalhão dos Caçadores, em
Maceió, de onde na manhã seguinte foi transferido para o Forte das
Cinco Pontas, no Recife. Às vésperas do Estado Novo, o escritor foi
detido durante um “arrastão” comandado pelo general Newton
Cavalcanti, operação que serviu para prender simpatizantes da Aliança
Nacional Libertadora (ANL) e “qualquer cidadão que algum dia tivesse
torcido o nariz para o governo Vargas”, como escreve o biógrafo de
Graciliano, Dênis de Moraes, em O velho Graça (Boitempo, 2012).
Ali, em meio a um regime de exceção, as instituições eram
movimentadas juridicamente para justificar resoluções políticas, afirma
Oswaldo Akamine Jr., 45, doutor em Direito pela USP e professor das
Faculdades de Campinas (Facamp) e da Universidade Nove de Julho
(Uninove). Hoje, diz, o aparato jurídico é usado de maneira excepcional
para dar aparência de normalidade às instituições. Do Estado Novo à
Nova República, de Graciliano a Lula, permanece inalterado o uso do
Direito como forma instrumental de decisão política.
Graciliano foi preso em 1936, às vésperas do Estado Novo, sem
acusação formal, sem procedimento processual. Como se
relacionavam as esferas do poder estatal e do sistema jurídico
brasileiro nessa época?
Até a década de 1920, o Brasil tinha poucas instituições republicanas pra
valer. A Primeira República foi construída com razoável quantidade de
instituições, mas a administração pública foi armada mais em um
aspecto formal do que material. Havia uma questão de dar certa
aparência técnica para a solução de problemas que na verdade eram
resolvidos por interesses pessoais. A revolução de 1930 rompe bastante
com esse paradigma – e trata-se de uma revolução propriamente porque
ela vai organizar o Brasil. Por outro lado, a separação dos poderes
existia ainda de maneira muito anuviada, havia muita interferência de
um poder no outro e, sobretudo em função do ambiente revolucionário,
havia predominância do Poder Executivo. Também não podemos perder
de vista a revolução constitucionalista de 1932. Ademais todo o
revanchismo político, havia ali uma questão importante que o Vargas
deveria enfrentar: a constitucionalização do regime e a formação de uma
estrutura republicana moderna. Depois de muita briga política, o
resultado foi a convocação de uma Assembleia Constituinte em 1933 e,
finalmente, a Constituição de 1934, talvez a primeira que efetivamente
se enquadre nos termos de uma sociedade moderna. Ela serve de pano de
fundo para a discussão jurídica que leva Graciliano à prisão.
Como isso se desenrolou?
A Constituição previa que, em caso de insurreição, o presidente poderia
solicitar ao Congresso a decretação de estado de sítio. E a Intentona
Comunista de 1935 é o evento que motiva a decretação desse estado de
sítio, um momento muito delicado da vida jurídica de um país porque é
quando as garantias constitucionais são suspensas em nome da
necessidade de se restaurar a ordem. Em janeiro, a Aliança Nacional
Libertadora (ANL) começa a levantar as suas bandeiras, e em abril Luís
Carlos Prestes se torna presidente de honra da ANL. Quando ele se
manifesta dizendo “todo poder à ANL”, palavras fortes alinhadas ao
contexto do comunismo internacional, a reação do governo Vargas foi
criar a Lei de Segurança Nacional, que estabelece um caminho próprio
para as instituições cuidarem do que a legislação chama de ordem
pública, e estabelece um tratamento de exceção para determinados
comportamentos considerados politicamente inconvenientes. Essa
conjuntura permite que Graciliano seja preso. Há o dado real, que é a
Intentona, e o pretexto legitimador, que é a Constituição de 1934.
Graciliano, àquela altura, trabalhava no governo do estado de Alagoas
como diretor de instrução pública, ligado à questão da educação, e muito
provavelmente por alguma denúncia anônima, por ter incomodado
alguém, recebe a visita da polícia em sua casa em março de 1936. Como
se tratava de um estado de exceção, a detenção e a custódia não
precisavam passar pelas regras convencionais do ordenamento jurídico,
não era preciso fazer acusação formal, estabelecer um crime do qual ele
pudesse se defender, não havia necessidade de o acusador demonstrar
nenhum indício que justificasse sua culpa, algo profundamente kafkiano.
Graciliano passa quase um ano preso sem ser formalmente acusado – e,
como ele, muita gente foi presa e mantida sob custódia do Estado sem
que houvesse acusação ou possibilidade de defesa.
Graciliano foi um preso político. Há quem defenda que todo preso é
um preso político, outros que o preso político é aquele detido por
suas ideias e não por suas ações. Lula se denomina um preso
político. É um conceito que parece sempre em disputa. Como defini-
lo?
A situação do Graciliano é muito mais clara porque se trata de um
momento excepcional da história. Às vésperas do autogolpe do Estado
Novo, num período em que lá fora os regimes autoritários estão em
ascensão, esse tipo de prática [as prisões] não despertava grandes
atenções internacionais. A ONU, hoje, olha para o Lula em função da
excepcionalidade do caso dele, mas lá no final dos anos 1930, com o
partido nazista alemão instalado legalmente no poder e se preparando
para detonar o início da Segunda Guerra, não era uma situação maluca o
que estava acontecendo no Brasil. O regime era moldado de acordo com
o que estava acontecendo na Espanha, em Portugal, na Itália, na
Alemanha, de maneira que a situação do Graciliano é muito clara: ele foi
um preso político, um entre tantos. A situação do Lula hoje é diferente, e
de muitas maneiras eu considero muito mais grave, porque Graciliano
vivia um momento excepcional, e hoje aparentemente não há essa
exceção. No momento do getulismo, do Estado Novo, essa maneira de
manipular as regras, de movimentar as instituições em termos jurídicos
era necessária do ponto de vista da legitimação; era mais importante a
tomada de uma posição política que depois se justificasse juridicamente.
Hoje, sem que haja de fato uma necessidade propriamente política de se
tratar excepcionalmente a situação do Lula, usa-se todo o aparato
jurídico de maneira excepcional para dar aparência de normalidade, de
funcionamento das instituições. No espectro político-ideológico, do
ponto de vista da esquerda, essa situação do Lula é profundamente
incômoda porque, a rigor, as instituições estão funcionando. É para isso
que servem, para prender o Lula mesmo, para tirá-lo do jogo. Graciliano
foi um entre tantos na mesma situação, naquele momento histórico. O
caso de Lula é mais doído porque é um caso único, fica claro que é uma
espécie de vingança. E curiosamente a bandeira que a esquerda tem que
levantar nesse momento é a da legalidade – o que é maluco, porque
tradicionalmente uma das bandeiras da esquerda é a luta contra a
legalidade, especialmente a legalidade burguesa, se essa esquerda for
marxista. Só que, para fazer a defesa do Lula, precisamos defender o
Estado de Direito, que em primeiro lugar é aquele que oprime, é uma
expressão da exploração capitalista.
Só no Estado Novo houve cerca de quatro mil prisões políticas no
Brasil, segundo levantamento da FGV. Que marcas isso deixa no
Estado Democrático de Direito?
No caso do Estado Novo, a cicatriz é o surgimento da legalidade. Porque
embora o Brasil tenha uma Constituição desde 1824, embora tenha
tribunais, códigos e leis organizados desde o final do século 19, só
podemos falar na existência de um sistema jurídico depois do Estado
Novo – e o que eu chamo de “organização jurídica” da sociedade é
quando a única maneira válida de resolução de conflitos de interesse
passa pelo Direito. A partir do fim do Estado Novo, em 1945, o marco
da legalidade é fundamental. E aí o Brasil vai ter quase vinte anos para
testar esse marco, e vamos ter problemas. Vargas praticamente nunca
havia governado sob o império da lei até o momento em que é eleito em
1950, no segundo mandato, e tem problemas seríssimos, tanto que o
suicídio acontece em 1954. A situação a que o Brasil chega, por
exemplo, com a renúncia do Jânio, em 1961, e depois o problema de o
Jango não poder assumir e o Brasil adotar o parlamentarismo, enfim,
tudo isso já começa a mostrar que a experiência democrática no Brasil, o
Estado de Direito, faz água. Vivemos anos tenebrosos [com a ditadura
militar], e na Nova República parece que retomamos a legalidade. A
coisa de fato caminha muito bem especialmente a partir da Constituição
de 1988, que faz trinta anos em outubro, e esse episódio do Lula joga
tudo por terra. Em primeiro lugar, em um piscar de olhos foram
derrubadas algumas coisas que, na academia especialmente, achávamos
que estavam muito bem sedimentadas.
Quais?
A questão trabalhista, por exemplo, que está reordenando as coisas de
outra maneira depois de todo aquele projeto da Era Vargas. Estamos
vendo o derretimento do Estado Social no Brasil com uma facilidade
tremenda. Outro marco que já havia aparecido com o fim do Estado
Novo e que foi fortemente retomado depois da Nova República: a
questão do devido processo legal, da presunção de inocência. Ninguém
imaginava, nenhum teórico e muito menos nenhum operador do Direito
imaginava que fosse possível discutir prisão depois da condenação em
segunda instância da maneira como estamos discutindo hoje. Não apenas
porque o texto constitucional é muito claro, mas porque a tradição
brasileira de interpretar esse texto já estava sedimentada pelo menos
desde o Estado Novo. Graciliano foi preso em um regime excepcional
em que a presunção era de culpa, já que a lei que estabelece o Tribunal
de Segurança Nacional [em setembro de 1936] acaba com o princípio da
presunção da inocência, que é o princípio organizador do Direito.
Fazendo uma comparação um pouco grosseira, mas ainda válida, a
situação do Lula é um pouco parecida por ele ter que provar a sua
inocência. É um absurdo que, em tempos em que a situação política não
seja a de exceção, como era no caso do Graciliano, tenhamos que
discutir de maneira séria esses princípios de organização do Estado de
Direito, a presunção de inocência, a ideia de legalidade, a ideia de que
vamos nos organizar como sociedade por meio de regras que valem para
todos. De certa maneira, o que está se instalando no campo do Direito é
uma espécie de obscurantismo quase medieval, com a retomada de
práticas próprias da Inquisição. E esse modelo de democracia que vem
se desmontando no Brasil ao longo dos últimos quatro anos custou a
vida de um monte de gente, é resultado de sofrimento de gerações. E
sabe-se lá qual é o rumo que estamos tomando hoje.
Do ponto de vista do Direito, como chegamos até aqui?
A gente assiste a dois movimentos: em primeiro lugar, o Direito
brasileiro tem uma característica histórica que vem desde a nossa
tradição bacharelesca, uma espécie de tintura de erudição e um completo
alheamento em relação às questões sociais. Tradicionalmente, os juristas
foram formados quase como mecânicos que estão lidando com uma
máquina e que não têm nenhuma preocupação com a repercussão social
ou os problemas graves da sociedade brasileira. Essa tradição vai levar a
uma formação de quadros institucionais profundamente conservadores e
reacionários, porque provenientes das classes sociais dominantes – não
necessariamente mais abastadas, mas dominantes. Um corpo de
funcionários do Estado que, por força da separação de poderes da
organização da República, dirige-se a si mesmo, não suja as mãos, não
está em contato com a realidade brasileira, e que no fundo carece de
formação. O segundo aspecto é a maneira pela qual lidamos com a
forma jurídica ao longo do tempo, fazendo do Direito apenas uma forma
instrumental de decisão política. Em Teoria pura do Direito , Hans
Kelsen [jurista e filósofo tcheco] diz que o Direito nada mais é do que a
técnica que permite determinar qual é a autoridade que toma a decisão
que vale, que permite a identificação da autoridade competente para
resolver um caso. E se pensarmos como as classes dominantes se
expressam nesses quadros jurídicos, o resultado é esse que estamos
vendo hoje. De cinco anos para cá houve uma tomada de posição do
Poder Judiciário, do Ministério Público e a tomada de consciência dos
instrumentos que eles têm à mão. E isso a gente pode chamar de
ativismo judicial. Embora essa situação tenha sido desdobrada nos
últimos cinco anos, as sementes dela são históricas, estão plantadas
desde que o Direito é Direito e desde que o Brasil vem se organizando
juridicamente. A história do Direito no Brasil é uma tristeza porque é, a
todo o tempo, uma luta entre civilização e barbárie. O momento de
Vargas é uma tentativa de civilização, mas é uma civilização autoritária.
Não dá para salvar Vargas, ele é um ditador. O problema, hoje, é como a
gente sai dessa situação. E duvido que tenhamos alguém capaz de fazer
essa previsão.
estante cult

Da prática política do cotidiano


AMANDA MASSUELA

Ao escrever sobre a epilepsia no fim do século 19, o psiquiatra


português Miguel Bombarda afirma: “Essa doença é da mulher e a
mulher é uma degenerada – inferioridade psíquica, estreita dependência
do homem e um certo grau de anomalia mental que a torna meio
antagônica com o ambiente social”. Como outros homens de sua época,
o médico defendia a inferioridade cerebral das mulheres, e via a
instrução e a emancipação femininas como “poderosas forças
degeneradoras”.
Em 1924, a pensadora anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura
se põe a responder à pretensa tese do cientista: “O feminismo nasceu
ontem, criado pelas necessidades de defesa dentro da sociedade
capitalista, e é de hoje que as sociedades vêm se degenerando?”.
Enquanto as sufragistas lutavam pelo direito ao voto, Moura atacava a
maternidade involuntária e o casamento, defendia o prazer sexual
feminino, a autonomia nas relações amorosas e uma educação libertária
que servisse para a emancipação – e não para a exploração – das
mulheres.
Ela reuniu essas reflexões em A mulher é uma degenerada , obra que
volta a circular em edição fac-símile pela Tenda de Livros após 86 anos
da sua última tiragem. Ainda que se contraponha às teorias cientificistas
de Bombarda, a autora adverte que, no livro, não discute “com um
homem apenas”, “mas com a opinião antifeminista de que a mulher
nasceu exclusivamente para ser mãe, para o lar, para brincar com o
homem, para diverti-lo”. Questiona, no fundo, a ordem social burguesa,
para ela a principal fonte de opressão das mulheres.
Organizadora da obra, a artista Fernanda Grigolin ressalta que, apesar
de pioneira, Maria Lacerda não “navegava solitária”. Seus escritos –
mais de 20 livros, além de dezenas de artigos na imprensa operária –
ecoavam discussões recorrentes na prática coletiva de mulheres
anarquistas e operárias da São Paulo do início do século 20, época de
agitações, greves e boicotes anarquistas. “Maria Lacerda é tão
importante porque a escrita dela vem de uma prática política que está no
cotidiano”, afirma.
São discussões que voltam a aparecer nas mobilizações do movimento
feminista nos anos 1970 quando “a questão não é mais o voto, mas o
direito ao corpo, à sexualidade, contra as violências domésticas”, afirma
a historiadora Margareth Rago, professora titular da Unicamp. “O
anarquismo é precursor, mas os anarquistas são apagados da história e
tudo deles é capturado e sugado.” A edição da Tenda de Livros tem capa
e projeto gráfico assinados por Laura Daviña, textos críticos sobre o
pensamento de Moura e uma carta escrita hoje à pensadora.
colaboraram nesta edição
Adilma Secundo Alencar é mestranda do Programa de Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na USP
Benjamin Abdala JUnior é professor titular da USP, autor de Graciliano
Ramos: Muros sociais e aberturas artísticas (Record, 2017)
Bianca Santana é jornalista, cientista social, doutoranda em Ciência da
Informação pela USP, autora de Quando me descobri negra (SESI-SP,
2015)
Edmar Monteiro Filho é doutorando em Teoria e História Literária pela
Unicamp
Heloisa Murgel Starling é doutora em Ciência Política pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, professora titular da
UFMG, autora de República e democracia: Impasses do Brasil
contemporâneo (Cia das Letras, 2017)
Ieda Lebensztayn é doutora em Literatura Brasileira pela USP, autora de
Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos
impossíveis (Hedra, 2010)

Jean Pierre Chauvin é doutor em Teoria Literária e Literatura


Comparada pela USP e professor da ECA-USP
Liliân Alves Borges é doutoranda em Estudos Literários na UFU
Luciana Araujo Marques é jornalista e doutoranda em Teoria e História
Literária pela Unicamp
Luzia Barros é doutora em Estudos Comparados pela USP
Randal Johnson é professor da Universidade da Califórnia, autor de
Cinema novo x 5 (University of Texas Press, 2012), entre outros
Ricardo Ramos Filho é doutor em Letras pela USP e escritor
Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é doutor em Estudos de Literatura pela
UFF e pesquisador do IEB-USP
Thiago Mio Salla é doutor em Letras e em Ciências da Comunicação
pela USP, professor da ECA-USP, autor de Garranchos – Textos
Inéditos de Graciliano Ramos (Record, 2012), entre outros
Wilson Gomes é pesquisador, professor titular da UFBA e coordenador
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital
(INCT.DD)

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