Você está na página 1de 303

Escola EB 2,3/S Pedro Ferreiro

Ano lectivo 2010/2011

Literaturas de Língua
Portuguesa

12.º Ano

Curso Científico-Humanístico de Línguas e Literaturas


LITERATURA BRASILEIRA

A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e


sentimento que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da
comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo
desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à
nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o
distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse se veio formando
desde as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao
pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa
persistência no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado literariamente, que dá
à nossa literatura a unidade e lhe justifica a autonomia.
A nossa literatura colonial manteve aqui tão viva quanto lhe era possível a
tradição literária portuguesa.
Necessariamente nasceu e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento da
portuguesa e seu reflexo. Nenhuma outra apreciável influência espiritual experimentou
no período da sua formação, que é o colonial. Também do próprio meio em que se ia
daquela formando lhe não proveio então qualquer influxo mental que pudesse contribuir
para distingui-la. E como assim foi até quase acabar o século XVIII, não apresenta
períodos claros e definidos da sua evolução nesse lapso. As reações que daquele meio
porventura sofreu foram apenas de ordem física, a impressão da terra em seus filhos; de
ordem fisiológica, os naturais efeitos dos cruzamentos que aqui produziram novos tipos
étnicos; e de ordem política e social, resultantes das lutas com os holandeses e outros
forasteiros, das expedições conquistadoras do sertão, dos descobrimentos das minas e
conseqüente dilatação do país e aumento da sua riqueza e importância. Estas reações
não bastaram para de qualquer modo infirmar a influência espiritual portuguesa e
minguar-lhe os efeitos. Criaram, porém, o sentimento por onde a literatura aqui se viria
a diferençar da portuguesa. As divisões até hoje feitas no desenvolvimento da nossa
literatura não parece correspondam à realidade dos fatos. Mostra-o a sua mesma
variação e diversidade nos diferentes historiadores da nossa literatura, e até mesmo no
principal deles, incoerente consigo mesmo. Após acurado estudo desses fatos tenho por
impossível e vão assentá-los em divisões perfeitamente exatas ou dispô-los em bem
distintas categorias. Fazê-lo com êxito importaria o mesmo que descobrir outros tantos
aspectos diversos e característicos em uma literatura sem autonomia, atividade e riqueza
bastantes para se nela passarem as alterações de inspiração, de estesia ou de estilo que
discriminam e assentam os períodos literários; uma literatura que em trezentos anos da
sua existência apagada e mesquinha não experimentou outras reações espirituais que as
da Metrópole, servilmente seguida. Assim sendo, é evidente que os únicos períodos
literários aqui verificáveis seriam os mesmos ali averiguados. Quando começava aqui a
literatura, lá havia terminado, ou estava terminando, o quinhentismo, a melhor época da
portuguesa. Principiava então lá o seiscentismo, prematura e rápida degradação daquele
brilhante momento, cuja brevidade era aliás consoante com a da época de esplendor
nacional, revendo tudo o que de ocasional e fortuito houvera nos escassos cem anos da
dupla glória portuguesa. Mas, como acertadamente nota um novo crítico, "o
seiscentismo não terminou em 1699, no último dia do ano, perdurou até a segunda
metade do século XVIII e a Arcádia e suas imitações não encerram o século XVIII; a
Arcádia de Antônio Dinis só se fundou em 1756. No segundo quartel ainda Antônio
José satirizava o gongorismo, que era uma atualidade".

2
O que, portanto, havia no Brasil era o seiscentismo, a escola gongórica ou
espanhola, aqui amesquinhada pela imitação, e por ser, na poesia e na prosa, a
balbuciante expressão de uma sociedade embrionária, sem feição nem caráter, inculta e
grossa. Que o era, o mais perfuntório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores e
prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não há descobrir-lhe diferença que
os releve na inspiração, composição, forma ou estilo das obras. Sob o aspecto literário
são todos genuinamente portugueses, por via de regra inferiores aos reinóis. A única
exceção apresentada, a de Gregório de Matos, é impertinente. Da sua obra a só porção
distinta, e estimável por outras qualidades que as propriamente literárias, é a satírica ou
antes burlesca. A inspiração e feitio desta não destoa, porém, quando se tem presumido
da musa gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de
Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Diogo Camacho e
quejandos, todos mais ou menos discípulos e imitadores, como o nosso patrício, do
espanhol Quevedo, mas todos a ele inferiores. Como aos comuns motivos de satirizar de
seus êmulos portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do seu
descontentamento de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua vaidade, é
talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós, muito mais interessante que o daqueles.
Não é, porém, nem mais original, nem mais subido. A singularidade, mesmo a
superioridade de Gregório de Matos, ainda quando bem assente, não bastaria aliás para
desabonar o conceito de que o seu exemplo não prejudica a regra geral da nossa
evolução literária no período colonial. Um só escritor, uma só obra, salvo proeminência
excepcional e de efeitos averiguados, não anula um fato literário como o verificado. A
parte séria das composições de Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo,
como pela língua, estilo e outras feições o é também a sua porção satírica. De resto o
seu caso ficou único e isolado, incapaz, portanto, de alterar como quer que fosse a
continuidade do nosso desenvolvimento literário. E os fatos provam que em nada o
alterou. Simultânea e posteriormente continuou aquele como se vinha fazendo.
Somente para o fim do século XVIII é que entramos a sentir nos poetas
brasileiros algo que os começa a distinguir. E só nos poetas. Distinção, porém, ainda
muito escassa e limitada e também parcial. Por um ou outro poema em que se revê a
influência americana, há dezenas de outros em tudo e por tudo portugueses. Os mesmos
poetas do princípio do século XIX, sucessores imediatos dos mineiros e predecessores
próximos dos românticos, são ainda e sobretudo seiscentistas, apenas levemente
atenuados pelo arcadismo. Esta procrastinação do seiscentismo aqui, como o
gongorismo que lhe era consubstancial, e é acaso congênito à gente ibérica, além do
motivo geral da mais lenta evolução mental das colônias, poderia talvez explicá-lo o ter
aqui vivido, se exibido e influído o mais poderoso engenho português dessa época, o
Padre Antônio Vieira. A sua singular individualidade, exaltando-lhe os insignes dotes
literários, supera a desprezível feição literária do período e a ampara e defende se não
legitima. A corroborar-lhe a má influência, continuada pelos pregadores seus discípulos,
vieram as academias literárias, focos e escolas do mais desbragado gongorismo.
Somente com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira,
retomando a trilha logo apagada da Plêiade Mineira entra já a cantar com inspiração
feita dum consciente espírito nacional. Atuando na expressão principiava essa
inspiração a diferençá-la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir
traços diferenciais nas letras brasileiras. Não serão já propriamente essenciais ou
formais, deixam-se, porém, perceber nos estímulos de sua inspiração, motivos da sua
composição e principalmente no seu propósito.
As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no
desenvolvimento da literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história

3
como povo: período colonial e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um
momento, um estádio de transição, ocupado pelos poetas da Plêiade Mineira (1769-
1795) e, se quiserem, os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada,
porém, em conjunto a obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética
portuguesa contemporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr
nela. No primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou
meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me arbitrária. Nenhum
fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais que algum levíssimo indício
de "desenvolvimento autonômico", insuficiente em todo caso para assentar uma divisão
metódica. Ao contrário, ela é em todo esse período inteira e estritamente conjunta à
portuguesa. Nas condições de evolução da sociedade que aqui se formava, seria milagre
que assim não fosse. De desenvolvimento e portanto de formação, pois que
desenvolvimento implica formação e vice-versa, é todo o período colonial da nossa
literatura, porém, apenas de desenvolvimento em quantidade e extensão, e não de
atributos que a diferençassem.
Certo é que na segunda metade do século XVII e princípio do XVIII, poetas
brasileiros (não foram aliás mais de três), ocasionalmente, sem intenção nem insistência
mostraram-se impressionados pela sua terra, cantaram-lhe as excelências naturais com
exagero de apreço e entusiasmo em que é lícito perceber o abrolhar do sentimento
nacional, começado a gerar-se com os sucessos da guerra holandesa. Fizeram-no aliás
pouco e mediocremente. Em vez de seguir e cavar esse veio que se lhes deparava,
perseveraram na poética portuguesa sua contemporânea. Seria desarrazoado, seria forçar
os fatos a acomodarem-se às nossas prevenções, enxergar mostras de sentimento
literário autonômico nessas singularíssimas exceções. Nem por isso são elas
desinteressantes. Testemunham a influência dos aludidos sucessos no espírito dos
brasileiros, onde criaram ou ativaram o sentimento nativista. Importam-nos ainda como
as primeiras manifestações do impulso de louvar a terra, impulso que se tornaria logo
um sestro literário nosso. A quase dois séculos de distância o verificaria Casimiro de
Abreu, nos seus sentidos e conhecidos versos:
Todos cantam sua terra
Também vou cantar a minha
Nas débeis cordas da lira
Hei-de fazê-la rainha.

Toma outra feição que a puramente portuguesa a nossa literatura no


segundo período, o nacional.
Independente e constituído, desenvolvendo-se menos adstrito à exclusiva
influência da Metrópole e ao seu absorvente predomínio, entra o país a experimentar o
influxo de outras e melhores culturas, sofre novos contatos e reações, que são outros
tantos estímulos da sua inteligência e capacidade literária. O maior de todos, porém, não
será externo, mas o mesmo sentimento nacional afinal consciente: o desvanecimento da
sua independência, da sua maioridade de povo, das suas possibilidades de crescimento
com as suas promissoras esperanças de futuro. Por isso a literatura imediatamente
posterior à Independência é ostensivamente, intencionalmente nacionalista e patriótica.
O germe nativista de que a Prosopopéia, de Bento Teixeira, ao expirar do século XVI, é
já o primeiro indício, e a Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, no final do século XVII,
um mais visível sinal, germe desenvolvido, podemos dizer nutrido, do calor bairrista de
Rocha Pita, e relevado nos poetas do fim do século XVIII, completa com a primeira
geração romântica a sua evolução. E resulta da índole claramente nacionalista, mais
ainda, patriótica, da literatura de após a Independência.

4
Este fato determinara-o a mesma reação literária inaugurada na Europa com o
Romantismo, que em suma era sobretudo, e esta é a sua mais exata definição, uma
revolta contra o que se continuava a chamar de classicismo. Tanto mais fácil foi à nova
escola encontrar aqui simpatias, entusiasmos e sequazes, quanto sendo um princípio de
independência e liberdade lisonjeava o nosso ardor de ambas no momento. Teve de fato
alvoroçado acolhimento, como era próprio de gente nova, em pleno fervor da sua
mocidade emancipada, irreflexiva e malquerente de quanto lhe recordava a sua servidão
política e mental. Cumpre, todavia, não exagerar essa malevolência, que por honra dos
corifeus desse nosso movimento literário nunca se desmandou nas suas reivindicações
de autonomia literária, antes guardou nelas uma compostura de bom gosto.
O Romantismo europeu não só influiu os poetas e escritores de todo o gênero, se
não os políticos, os oradores, ainda sacros, de que é frisante exemplo Monte Alverne, o
maior deles, e os publicistas. Como na Europa, foi também aqui mais que uma escola
literária, uma forma de pensamento geral.
Principalmente assinalaram o nosso Romantismo: a simpatia com o índio, a
intenção de o reabilitar do juízo dos conquistadores e dos nossos mesmos patrícios
coloniais, o errado pressuposto dele ser o nosso antepassado histórico, o amor da
natureza e da história do país, encarados ambos com sentimentos e intenções
estreitamente nativistas, o conceito sentimentalista da vida, o propósito manifesto
de fazer uma literatura nacional e até uma cultura brasileira. Inspirado no
preconceito dos méritos do índio revelou-se este propósito em recomendações do ensino
da língua tupi, em parvoinhas propostas de sua substituição ao português na adoção de
apelidos indígenas ou na troca dos portugueses por estes e no encarecimento de quanto
era indígena.
Com estas feições apenas ligeiramente modificadas por novos influxos recebidos
de fora ou aqui mesmo nascidos, durou o nosso Romantismo, iniciado pela terceira
década do século XIX, até o meado do decênio de 1870. As últimas obras de vulto
que ainda a ele, com a sua inspiração indianista, se vinculam, são o Evangelho nas
Selvas, de Fagundes Varela, e as Americanas, de Machado de Assis, ambas em 1875.
Pelo fim do Romantismo, esgotado como acabam todas as escolas literárias,
tanto por enfraquecimento e exaustão dos seus motivos, como pela natural usura, entram
a influir a mente brasileira outras correntes de pensamentos, outros critérios e até outras
modas estéticas européias de além Pireneus oriundas das novas correntes espirituais, o
positivismo em geral ou o novo espírito científico, o evolucionismo inglês, o
materialismo de Haeckel, Moleschott, Büchner, o comtismo, a crítica de Strauss, Renan
ou Taine, o socialismo integral de Proudhon, o socialismo literário de Hugo, de Quinet,
de Michelet. Outras tendências e feições, criadas por estas novas formas de pensamento,
se substituem ao ceticismo, ao desalento, ao satanismo, tudo também literário ou apenas
sentimental de Byron, Musset e outros que tanto haviam influenciado a nossa segunda
geração romântica. Verifica-se que nenhuma das correntes do pensamento europeu que
aturaram no brasileiro levou menos de vinte anos a se fazer aqui sentir. E esta é a regra
ainda depois que as nossas comunicações com a Europa se tornaram mais fáceis e mais
freqüentes. Destas várias influências contraditórias, e até disparatadas, que todas,
porém, simultaneamente atuaram o nosso pensamento, não saiu, nem podia sair, um
composto único e ainda menos coerente, como até certo ponto fora no período
romântico o espiritualismo cristão ou o puro sentimentalismo dos nossos românticos,
sem exceção. Sob o aspecto literário o que delas resultou foi o rompimento, mais ou
menos intencional, mais ou menos estrepitoso, mais ou menos peremptório, com o
Romantismo. De tal rotura se não gerou, entretanto, um movimento com bastante
ressalto, caráter ou homogeneidade que possamos defini-lo com um apelido idôneo. O

5
que se lhe tem dado, como as divisões e subdivisões nele feitas, afigura-se-me
inconseqüente com os fatos literários bem apreciados. Não ignoro, e menos contesto, a
importância e valia das classificações para compendiar a explicação dos fatos literários.
Mas não basta não ignorá-lo ou praticá-las a torto e a direito para podermos alardear
filosofia de história literária. Aquele valor e importância só a têm as classificações
perfeitas em que quase nada ou mesmo nada fica ao arbítrio do crítico, mas tudo
obedece lógica e naturalmente a um justo critério bem estabelecido. Sem isso, que é
dificílimo em todas as literaturas e é positivamente impossível em a nossa, tais
classificações tanto podem inculcar uma digna tendência filosófica, como uma supina
presunção.
O que principalmente distinguiu e afeiçoou este nosso movimento espiritual ou
mais propriamente literário posterior ao Romantismo foi o pensamento científico e
filosófico triunfante por meados do século XIX — caracterizado pelo preconceito da
infalibilidade da ciência e por uma exagerada opinião da sua importância. Esse
pensamento, aqui como em toda a parte, recebeu a denominação pouco precisa, mas em
suma bastante significativa, de pensamento moderno. Aqui produziu ele maior e mais
raciocinado desapego às crenças tradicionais religiosas ou políticas, gerou o
acatolicismo ou o agnosticismo em grande número de espíritos e o republicanismo ainda
em maior número. Não chegou, porém, a criar manifestação literária alguma bastante
considerável e homogênea, e suficientemente distinta, para a podermos nomear com
exatidão segundo os seus particulares caracteres literários. Para sair da dificuldade sem,
por iludi-la, cair no erro de dar a esta fase da nossa literatura algum apelido
desapropositado, parece que o meio mais seguro é lhe verificar a inspiração ou idéia
geral e motriz, e consoante ela denominá-la. Era esta declaradamente seguir em arte
como em filosofia, e ainda em política, as idéias modernas, o racionalismo científico, o
positivismo filosófico, o transformismo e o evolucionismo como um critério geral do
pensamento, o liberalismo político, que levava de um lado ao republicanismo, de outro,
com duvidosa coerência, ao socialismo. O "pensamento moderno", e a sua competente
apologia, foram aqui um tema literário repetido até o fastio e sob esta denominação ou a
ainda mais vaga de "idéia nova" se reuniam desencontrados conceitos, sentimentos e
aspirações. Dava-lhes, todavia, unidade bastante para ao menos exteriormente os
caracterizar. Não sendo possível descobrir-lhes com toda a certeza o acento
predominante, a feição literária essencial e por evitar a impertinência e vaidade das
tentativas já feitas para grupar em categorias definidas autores e obras desta última fase
da nossa evolução literária, parece mais prudente crismá-la segundo o seu principal
estímulo mental — a sua superstição das idéias modernas — e chamar-lhe de
modernismo. Efetivamente é a influência cosmopolita e onímoda dessas idéias e
dominante em a nossa literatura nessa fase e, salvo exceções individuais pouco
relevantes, não mais o nacionalismo romântico. Torna-se a poesia — e a poesia foi
sempre em cópia e qualidade a porção mais considerável da nossa literatura — menos
subjetiva, menos ingênua e sentimentalista, e a diminuição destas suas qualidades acaso,
sob o aspecto da emoção, amesquinhou o nosso lirismo. Ao invés ganhou ele em dons
verbais de expressão e em virtudes de forma e métrica. A mesma forma aperfeiçoou-se
com qualidades de composição e temperança. Nota-se mais o aparecimento em toda a
nossa literatura de requisitos de que carecia, e que faltaram sempre à antiga literatura
portuguesa, o gosto, o interesse, a capacidade das idéias gerais, preocupações mais
largamente humanas e sociais, em vez de pura sentimentalidade e do estreito
nacionalismo romântico. Alguns dos principais representantes desta última fase da
nossa evolução literária são, sem prejuízo do seu brasileirismo de raiz, cosmopolitas ou

6
universais. Tais são Castro Alves, Tobias Barreto, Machado de Assis, Joaquim Nabuco,
Eduardo Prado.
Antes da República, ou por espírito de oposição ao império católico, ou por
influência desse pensamento moderno, eram os intelectuais brasileiros quase todos
livres-pensadores, ou pelo menos espíritos de um larguíssimo liberalismo, que roçava
pelo livre-pensamento. Este liberalismo foi, aliás, a feição conspícua do espírito
brasileiro e da vida pública brasileira durante todo o reinado de D. Pedro II. Com a
República, que não podia falhar à índole ditatorial e despótica do republicanismo latino
e aos efeitos da sua educação pelo jacobinismo francês, atenuou-se essa feição e
minguou na política, como na inteligência nacional, aquele espírito liberal.
Uma escola literária não morre de todo porque outra a substitui, como uma
religião não desaparece inteiramente porque outra a suplanta. Também não acontece que
um movimento ou manifestação coletiva de ordem intelectual, uma época literária ou
artística, seja sempre conforme com o seu princípio e conserve inteira a sua fisionomia e
caráter. É, pois, óbvio que aqui, como sucedeu na Europa, ficaram germes ou antes
restos do Romantismo, como neste haviam ficado do classicismo. Misturados com o
"cientificismo" do momento ou influídos por ele, esses remanescente do Romantismo
confundiram-se na corrente geral daquele originada, produzindo com outros estímulos e
impulsos supervenientes algumas feições diversas na fisionomia literária desta fase.
Nenhuma, porém, tão distinta que force a discriminação.
A dificuldade geralmente verificada desta discriminação sobe de ponto aqui,
onde por inópia da tradição intelectual o nosso pensamento, de si mofino e incerto
obedece servil e canhestramente a todos os ventos que nele vêm soprar, e não assume
jamais modalidade formal e distinta. Sob o aspecto filosófico o que é possível notar no
pensamento brasileiro, quanto é lícito deste falar, é, mais talvez que a sua pobreza, a sua
informidade. Esta é também a mais saliente feição da nossa literatura dos anos de 70
para cá. Disfarça-as a ambas, ou as atenua, o íntimo sentimento comum do nosso
lirismo, ainda em a nossa prosa manifesto, a sensibilidade fácil, a carência, não obstante
o seu ar de melancolia, de profundeza e seriedade, a sensualidade levada até a lascívia, o
gosto da retórica e do reluzente. Acrescentem-se como característicos mentais a
petulância intelectual substituindo o estudo e a meditação pela improvisação e
invencionice, a leviandade em aceitar inspirações desencontradas e a facilidade de
entusiasmos irrefletidos por novidades estéticas, filosóficas ou literárias. À falta de
outras qualidades, estas emprestam ao nosso pensamento e à sua expressão literária a
forma de que, por míngua de melhores virtudes, se reveste. Aquelas revelam mais
sentimentalismo que raciocínio, mais impulsos emotivos que consciência esclarecida ou
alumiado entendimento, revendo também as deficiências da nossa cultura. Mas por ora,
e a despeito da mencionada reação do espírito científico e do pensamento moderno dele
inspirado, somos assim, e a nossa literatura, que é a melhor expressão de nós mesmos,
claramente mostra que somos assim.
Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa
arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem é, a meu
ver, literatura. Assim pensando, quiçá erradamente, pois não me presumo de infalível,
sistematicamente excluo da história da literatura brasileira quanto a esta luz se não deva
considerar literatura. Esta é neste livro sinônimo de boas ou belas letras, conforme a
vernácula noção clássica. Nem se me dá da pseudonovidade germânica que no vocábulo
literatura compreende tudo o que se escreve num país, poesia lírica e economia política,
romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se não escreve, discursos
parlamentares, cantigas e histórias populares, enfim autores e obras de todo o gênero.

7
Não se me impõe o conceito com tal grau de certeza que eu me não atreva a
opor-lhe a minha heresia, quero dizer a minha humilde opinião. Com o mais recente e
um dos mais justamente apreciados historiadores da literatura francesa, o Sr. G. Lanson,
estou que "a literatura destina-se a nos causar um prazer intelectual, conjunto ao
exercício de nossas faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais forças,
ductilidade e riqueza. É assim a literatura um instrumento de cultura interior; tal o seu
verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de habituar-nos a tomar gosto pelas
idéias. Faz com que encontremos num emprego o nosso pensamento, simultaneamente
um prazer, um repouso, uma renovação. Descansa das tarefas profissionais e sobreleva
o espírito aos conhecimentos, aos interesses, aos preconceitos de ofício; ela "humaniza"
os especialistas. Mais do que nunca precisam hoje os espíritos de têmpera filosófica; os
estudos técnicos de filosofia, porém, nem a todos são acessíveis. É a literatura, no mais
nobre sentido do termo, uma vulgarização da filosofia: mediante ela são as nossas
sociedades atravessadas por todas as grandes correntes filosóficas determinantes do
progresso ou ao menos das mudanças sociais; é ela quem mantém nas almas, sem isso
deprimidas pela necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais, a ânsia das
altas questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um alvo. Para muitos dos
nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura
somente lhes advém os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao mister
embrutecedor". Não se poderia definir com mais cabal justeza, nem com mais elegante
simplicidade, a literatura e sua importância.
Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como do nacional,
conquanto sem qualificações propriamente literárias, tiveram todavia uma influência
qualquer em a nossa cultura, a fomentaram ou de algum modo a revelam. Bem
mereceram, pois, da nossa literatura. Erro fora não os admitisse sequer como
subsidiários, a história dessa literatura. É também principalmente como tais que
merecem consideradas obras, aliás por outros títulos notáveis, como a de Gabriel Soares
ou os Diálogos das Grandezas do Brasil. Os portugueses que no Brasil escreveram,
embora do Brasil e de cousas brasileiras, não pertencem à nossa literatura nacional, e só
abusivamente pode a história destas ocupar-se deles. O mesmo sucede com outros
estrangeiros que aqui fizeram literatura como o hispano-americano Santiago Nunes
Ribeiro, o espanhol Pascoal, ou os franceses Emile Adet e Louis Bourgain. Aqueles
pelo caráter e estilo de suas letras eram, como os mesmos brasileiros natos, portugueses,
e como o eram igualmente de nascimento e forçosamente de sentimento — que este se
não naturaliza — como quaisquer outros estrangeiros, não cabem nesta história. No seu
primeiro período ela é a dos escritores portugueses nascidos no Brasil, no segundo dos
autores brasileiros de nascimento e atividade literária. Os portugueses que para cá
vieram fazer literatura após a Independência, Castilhos, Zaluares, Novais e outros, nem
pela nacionalidade ou sentimento, nem pela língua ou estilo, não pertencem à nossa
literatura, onde legitimamente não se lhes abre lugar. São por todas as suas feições
portugueses. Assim, os brasileiros que, alheando-se inteiramente do Brasil, em Portugal
exerceram toda a sua atividade literária, como o infeliz e engenhoso Antônio José e o
preclaro Alexandre de Gusmão, também não cabem nela. Tudo autoriza a crer que
Antônio José e Alexandre de Gusmão não teriam sido literariamente o que foram se
houvessem ficado no Brasil. Foi, pois, Portugal, a sua pátria literária, como o Brasil foi
a pátria literária de Gonzaga.
Não existe literatura de que apenas há notícia nos repertórios bibliográficos ou
quejandos livros de erudição e consulta. Uma literatura, e às modernas de após a
imprensa me refiro, só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e
permanente e não momentâneo e contingente. A literatura brasileira (como aliás sua

8
mãe, a portuguesa) é uma literatura de livros na máxima parte mortos, e sobretudo de
nomes, nomes em penca, insignificantes, sem alguma relação positiva com as obras.
Estas, raríssimas são, até entre os letrados, os que ainda as versam. Não pode haver
maior argumento da sua desvalia.
Por um mau patriotismo, sentimento funesto a toda a história, que
necessariamente vicia, e também por vaidade de erudição, presumiram os nossos
historiadores literários avultar e valorizar o seu assunto, ou o seu próprio conhecimento
dele, com fartos róis de autores e obras, acompanhados de elogios desmarcados e
impertinentes qualificativos. Não obstante o pregão patriótico, tais nomes e obras
continuaram desconhecidos eles e elas não lidas. Não quero cair no mesmo engano de
supor que a crítica ou a história literária têm faculdades para dar vida e mérito ao que de
si não tem. Igualmente não desejo continuar a fazer da história da nossa literatura um
cemitério, enchendo-a de autores de todo mortos, alguns ao nascer. No período colonial
haverá esta forçosamente de ocupar-se de sujeitos e obras de escasso ou até nenhum
valor literário, como são quase todas as dessa época. Não sendo, porém, esse o único da
obra literária, nem o ponto de vista estético e só de que podemos fazer a história
literária, cumpre do ponto de vista histórico, o mais legítimo no caso, apreciar autores e
livros que, ainda àquela luz medíocres, têm qualquer importância como iniciadores,
precursores, inspiradores ou até simples indículos de movimentos ou momentos
literários. É justamente naquele período de formação, o mais insignificante sob o
aspecto estético, mas não o menos importante do ponto de vista histórico, que mais
numerosos se nos depararão obras e indivíduos de todo mofinos. Temos, porém, de
contar com eles, pois nessa formação atuaram sequer com o seu exemplo e ajudaram a
manter a tradição literária da raça. No segundo período da constituição da literatura a
que, sem maior impropriedade, já podemos chamar de nacional, cumpre-nos ser ainda
mais escassos em admitir tipos de insuficiente representação literária. Cabe excluir-lhe
da história, que deve ser a da literatura viva, indivíduos e obras que virtudes de ideação
ou de expressão não assinalaram bastante para poderem continuar estimados além do
seu tempo. Obras que apenas o acompanharam, sem nele influírem ou se distinguirem,
ou que nem ao menos lhe representam dignamente o espírito e capacidade, ou ainda que
não sejam a expressão de uma conspícua personalidade, apenas terão lugar à margem da
literatura e da sua história. Parece um critério, não infalível mas seguro, de escolha, a
mesma escolha feita pela opinião mais esclarecida dos contemporâneos, confirmada
pelo juízo da posteridade. Raríssimo é que esta seleção, mesmo no Brasil, onde é lícito
ter por menos alumiada a opinião pública, não seja ao cabo justa, e só os que lhe
resistem são dignos da história literária. Não pode esta, a pretexto de opiniões pessoais
de quem a escreve, desatender à seleção natural que o senso comum opera nas
literaturas. Cumpre-lhe antes acatá-la se não tem argumentos incontestáveis a opor-lhe.
Em que pese à nossa pretensão de letrados, são os eleitos daquela opinião os que cabem
na história da literatura, que não queira invadir o domínio da bibliografia nem merecer o
reproche de simplesmente impressionista.
A história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história do que da nossa
atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação. Como não cabem nela
os nomes que não lograram viver além do seu tempo também não cabem nomes que por
mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram, ultrapassando as raias das suas
províncias, fazerem-se nacionais. Este conceito presidiu à redação desta história,
embora com a largueza que as condições peculiares à nossa evolução literária
impunham. Ainda nela entram muitos nomes que podiam sem inconveniente ser
omitidos, pois de fato bem pouco ou quase nada representam. Porém uma seleção mais
rigorosa é trabalho para o futuro.

9
Os elementos biográficos, necessários à melhor compreensão do autor e da sua
época literária, como outros dados cronológicos, são da maior importância para bem
situar nestas obras e autores e indicar-lhes a ação e reação. A história literária deve,
porém, antes ser a história daquelas do que destes. Obras e não livros, movimentos e
manifestações literárias sérias e conseqüentes, e não modas e rodas literárias, eiva das
literaturas contemporâneas, são, a meu ver, o imediato objeto da história da literatura.
Um livro pode constituir uma obra, vinte podem não fazê-la. São obras e não livros,
escritores e não meros autores que fazem e ilustram uma literatura. Em a nossa
deparam-se-nos a cada passo sujeitos que sem vocação nem engenho literário, embora
não de todo sem entendimento ou estro, produziram, geralmente em moços, um livro,
um ou mais poemas ou outra pequena e não repetida obra literária. Outros até a repetem
em maior número de volumes. Mais que a vocação que não tinham, moveu-os a
vaidade, a presunção da notoriedade que a autoria dá ou quejando passageiro estímulo.
No reinado de D. Pedro II, monarca amador de letras e caroável aos letrados, por lhe
armar à benevolência e patrocínio, foi comum fingirem-se muitos de amantes daquelas e
as praticarem, mesmo assiduamente, mais porventura do que lhes pedia a vocação ou
consentia o talento. Alguma vez foi esse labor sincero, se bem que efeito de uma
inspiração circunstancial e momentânea, que se não repetindo descobre-lhe a
insuficiência. Tais autores esporádicos, amadores sem engenho nem capacidade
literária, e tais obras casuais, produtos de uma inspiração fortuita ou interesseira, não
pertencem à literatura e menos à sua história.
Seja qual for o nosso parecer sobre o valor da obra literária, isolada ou em
relação com o seu meio e tempo, prevalece a noção do senso comum que em todo caso
ela precisa de virtudes de pensamento e de expressão com que logre a estima e agrado
geral. A que não as tiver é obra de nascença morta. As qualidades de expressão, porém,
não são apenas atributos de forma sob o aspecto gramatical ou estilístico, senão virtudes
mais singulares e subidas de íntima conexão entre o pensamento e o seu enunciado. Não
é escritor senão o que tem alguma cousa interessante do domínio das idéias a exprimir e
sabe exprimi-la por escrito, de modo a lhe aumentar o interesse, a torná-lo permanente e
a dar aos leitores o prazer intelectual que a obra literária deve produzir.
Confesso haver hesitado na exposição da marcha da nossa literatura, se pelos
gêneros literários, poesia épica, lírica ou dramática, história, romance, eloqüência e que
tais, consagrados pela retórica e pelo uso, ou se apenas cronologicamente, conforme a
seqüência natural dos fatos literários. Ative-me afinal a este último alvitre menos por
julgá-lo em absoluto o melhor que por se me antolhar o mais consentâneo com a
evolução de uma literatura, como a nossa, em que os fatos literários, mormente no
período de sua formação, não são tais e tantos que lhes permitam a exposição e estudo
conforme determinadas categorias. Nesse período e ainda no seguinte aqueles diferentes
gêneros não apresentam bastante matéria à história, sem perigo desta derramar-se
ociosamente. Ao contrário expor esses fatos na ordem e segundo as circunstâncias em
que eles se passam, as condições que os determinam e condicionam e as feições
características que afetam, parece fará mais inteligível a nossa evolução literária com a
vantagem de guardar maior respeito ao princípio da última unidade da literatura. Nesta,
como na arte e na ciência, é conspícua a função do fator individual. Um escritor não
pode ser bem entendido na sua obra e ação senão visto em conjunto, e não repartido
conforme os gêneros diversos em que provou o engenho.
Refugi também à praxe das citações mais ou menos extensas dos autores
tratados, limitando-as a raros exemplos, quando absolutamente indispensáveis à
justificação de algum conceito. É possível, e até provável, que mais de um deste livro se
encontre e ajuste, com os de outrem. Apesar da diversidade proverbial dos gostos e da

10
variedade das determinantes das nossas opiniões, não é infinita a capacidade de variação
em assuntos dos quais o gosto individual não é mais o único juiz. Forçosamente hão de
algumas vezes as nossas opiniões coincidir com alheias. O importante é que as minhas
eu as tenha feito com estudo próprio e direto dos fatos e monumentos literários e isso
protesto ter sempre feito. Muito presumido e tolo seria o escritor, máxime o historiador
literário, que supusesse não dizer senão cousa de todo originais e inéditas ou poder
evitar os infalíveis encontros de opiniões:
Il faut être ignorant comme un maître d’école
Pour se flatter de dire une seule parole
Que personne ici-bas n’ait pu dire avant vous.

Por motivos óbvios de discrição literária não se quisera este livro ocupar senão
de mortos. Esta norma, porém, era quase impossível segui-la na última fase da nossa
literatura, vivendo ainda, como felizmente vivem, alguns dos principais representantes
dos movimentos literários nela ocorridos; calar-lhes os nomes seria deixar suspensa a
história desses movimentos. Ainda assim apenas ocasionalmente, por amor de
completar ou esclarecer a exposição, se dirá de vivos.
Tal o espírito em que após mais de vinte e cinco anos de estudo da nossa
literatura empreendo escrever-lhe a história. Não me anima, em toda a sinceridade o
digo, a presunção de encher nenhuma lacuna nem de prevalecer contra o que do assunto
há escrito, certamente com maior cabedal de saber e mais talento. Não há matéria que
dispense novos estudos. Existe sempre, em qualquer uma, lugar para outros labores.
Não desconheço o que devo aos meus beneméritos predecessores desde Varnhagen até o
Sr. Sílvio Romero.
Pela cópia, valia e influência de sua obra de investigação da nossa história
literária, é aquele o verdadeiro fundador da história da nossa literatura. Depois dele esta,
em que pese à ingrata presunção em contrário, não fez mais que repeti-lo, ampliando-o.
Cronologicamente, não o ignoro, o precederam, Cunha Barbosa, Norberto Silva,
Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Bouterwek, Sismonde de Sismondi e
Ferdinand Denis. Nenhum, porém, fez investigações originais ou estudos acurados e
alguns apenas se ocuparam da nossa literatura ocasional e episodicamente. E todos,
repito, até o advento de Varnhagen, a fizeram superficialmente, apenas repetindo parcas
noções hauridas em noticiadores portugueses, divagando retoricamente a respeito, sem
nenhum ou com escasso conhecimento pessoal da obra literária aqui feita.
Decididamente o primeiro que o teve cabal foi Varnhagen. Prestante e estimável como
recolta de documentos da poesia brasileira, que sem ele se teriam talvez perdido, tem
somenos mérito como informação histórica o Parnaso Brasileiro, do Cônego Januário da
Cunha Barbosa. Pereira da Silva nenhuma confiança e pouca estima merece como
historiador literário. Nunca investigou seriamente coisa alguma e está cheio de erros de
fato e de apreciação já no seu tempo indesculpáveis. Magalhães apenas mostrou a sua
ignorância do assunto, que não estudou, limitando-se a uma amplificação retórica.
Depois de Varnhagen é Norberto Silva o mais operoso, o mais seguro dos primitivos
estudiosos da nossa literatura, cuja história projetou escrever. As suas numerosas
contribuições para ela, infelizmente na maior parte avulsas e dispersas em prefácios,
revistas e jornais, são geralmente relevantes. Aproveitando inteligentemente o trabalho
destes e de outras fontes de informação e as notícias e esclarecimentos pessoais de
Magalhães e Porto Alegre, o austríaco Fernando Wolf publicou (Berlim, 1863) a sua
ainda hoje muito estimável Histoire de la Littérature Brésilienne, a primeira narrativa
sistemática e exposição completa, até aquela data, da nossa atividade literária,
compreendendo o Romantismo. Trouxe-a até os nossos dias o Sr. Dr. Sílvio Romero

11
numa obra que quaisquer que sejam os seus defeitos não é menos um distinto
testemunho da nossa cultura literária no último quartel do século passado. A História da
Literatura Brasileira do Sr. Dr. Sílvio Romero é sobretudo valiosa por ser o primeiro
quadro completo não só da nossa literatura mas de quase todo o nosso trabalho
intelectual e cultura geral, pelas idéias gerais e vistas filosóficas que na história da nossa
literatura introduziu, e também pela influência excitante e estimulante que exerceu em a
nossa atividade literária de 1880 para cá.
Com diverso conceito do que é literatura, e sem fazer praça de filosofia ou
estética sistemática, aponta esta apenas a fornecer aos que porventura se interessem pelo
assunto uma noção tão exata e tão clara quanto em meu poder estiver, do nosso
progresso literário, correlacionado com a nossa evolução nacional. E foi feita, repito-o
desenganadamente, no estudo direto das fontes, que neste caso são as mesmas obras
literárias, todas por mim lidas e estudadas, como aliás rigorosamente me cumpria.

12
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Carlos Drummond de Andrade


(Itabira, 31 de outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987) foi um poeta,
contista e cronista brasileiro.

Biografia

Nasceu em Minas Gerais, em uma cidade cuja memória viria a permear parte de
sua obra, Itabira. Posteriormente, foi estudar em Belo Horizonte e Nova Friburgo com
os Jesuítas no colégio Anchieta. Formado em farmácia, com Emílio Moura e outros
companheiros, fundou "A Revista", para divulgar o modernismo no Brasil. No mesmo
ano em que publica a primeira obra poética, "Alguma poesia" (1930), o seu poema
Sentimental é declamado na conferência "Poesia Moderníssima do Brasil", feita no
curso de férias da Faculdade de Letras de Coimbra, pelo professor da Cadeira de
Estudos Brasileiros, Dr. Manoel de Souza Pinto, no contexto da política de difusão da
literatura brasileira nas Universidades Portuguesas. Bem, durante a maior parte da vida,
Drummond foi funcionário público, embora tenha começado a escrever cedo e
prosseguindo até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após
a morte de sua única filha, a escritora Maria Julieta Drummond de Andrade.[1] Além de
poesia, produziu livros infantis, contos e crônicas.

Drummond e o Modernismo Brasileiro

Drummond, como os modernistas, proclama a liberdade das palavras, uma


libertação do idioma que autoriza modelação poética à margem das convenções
usuais. Segue a libertação proposta por Mário e Oswald de Andrade; com a
instituição do verso livre, acentua-se a libertação do ritmo, mostrando que este não
depende de um metro fixo (impulso rítmico). Se dividirmos o Modernismo numa
corrente mais lírica e subjetiva e outra mais objetiva e concreta, Drummond faria
parte da segunda, ao lado do próprio Oswald de Andrade.

13
A poesia de Drummond

Estátuas Dois poetas', na cidade de Porto


Alegre. Em pé, Carlos Drummond de Andrade.
Sentado, Mário Quintana. Drummond tinha um
livro de bronze nas mãos, que foi roubado. As
pessoas agora colocam sempre um livro nas mãos
do poeta. Na foto, o livro que está com ele é
"Diário de um Ladrão", do Jean Genet.

Quando se diz que Drummond foi o primeiro grande poeta a se afirmar depois
das estreias modernistas, não se está querendo dizer que Drummond seja um
modernista. De fato herda a liberdade linguística, o verso livre, o metro livre, as
temáticas quotidianas. Mas vai além. "A obra de Drummond alcança — como
Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes — um
coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da História, levando o leitor a
uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas, ou prospectivas", afirma
Alfredo Bosi (1994).
Affonso Romano de Sant'ana costuma estabelecer que a poesia de Carlos
Drummond a partir da dialética "eu x mundo", desdobrando-se em três atitudes:
 Eu maior que o mundo — marcada pela poesia irónica;
 Eu menor que o mundo — marcada pela poesia social;
 Eu igual ao mundo — abrange a poesia metafísica.

Sobre a poesia política, algo incipiente até então, deve-se notar o contexto em que
Drummond escreve. A civilização que se forma a partir da Guerra Fria está fortemente
amarrada ao neocapitalismo, à tecnocracia, às ditaduras de toda sorte, e ressoou dura e
secamente no eu artístico do último Drummond, que volta, com frequência, à aridez
desenganada dos primeiros versos: “A poesia é incomunicável / Fique quieto no seu
canto. / Não ame”. Muito a propósito da dua posição política, Drummond diz,
curiosamente, na página 82 da sua obra O Obervador no Escritório, Rio de Janeiro,
Editora Record, 1985, que "Mietta Santiago, a escritora, expõe-me sua posição
filosófica: Do pescoço para baixo sou marxista, porém do pescoço para cima sou
espiritualista e creio em Deus."
No final da década de 1980, o erotismo ganha espaço na sua poesia até seu
último livro.

Temas típicos da poesia de Drummond

 O Indivíduo: "um eu todo retorcido". O eu lírico na poesia de Drummond é


complicado, torturado, estilhaçado. Vale ressaltar que o próprio autor já se
definia no primeiro poema de seu primeiro livro (Alguma Poesia) como um
gauche, ou seja, alguém desajeitado, deslocado, tímido, posição que marca
presença em toda sua obra.

14
 A Terra Natal: a relação com o lugar de origem, que o indivíduo deixa para se
formar.
 A Família: o indivíduo interroga, sem alegria e sem sentimentalismo, a estranha
realidade familiar, a família que existe nele próprio.
 Os Amigos: "cantar de amigos" (título que parafraseia com as Cantigas de
Amigo). Homenagens a figuras que o poeta admira, próximas ou distantes, de
Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de Machado de Assis a Charles Chaplin.
 O Choque Social: O espaço social onde se expressa o indivíduo e as suas
limitações face aos outros.
 O Amor: nada romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma amarga
forma de conhecimento dos outros e de si próprio .
 A Poesia: o fazer poético aparece como reflexão ao longo da sua poesia.
 Exercícios lúdicos, ou poemas-piada. Jogos com palavras, por vezes de aparente
inocência naïf.
 A Existência: a questão de estar-no-mundo.

Obra literária

Poesia
 Alguma Poesia (1930)
 Brejo das Almas (1934)
 Sentimento do Mundo (1940)
 José (1942)
 A Rosa do Povo (1945)
 Claro Enigma (1951)
 Fazendeiro do ar (1954)
 Quadrilha (1954)
 Viola de Bolso (1955)
 Lição de Coisas (1964)
 Boitempo (1968)
 A falta que ama (1968)
 Nudez (1968)
 As Impurezas do Branco (1973)
 Menino Antigo (Boitempo II) (1973)
 A Visita (1977)
 Discurso de Primavera (1977)
 Algumas Sombras (1977)
 O marginal clorindo gato (1978)
 Esquecer para Lembrar (Boitempo III) (1979)
 A Paixão Medida (1980)
 Caso do Vestido (1983)
 Corpo (1984)
 Amar se aprende amando (1985)
 Poesia Errante (1988)
 O Amor Natural (1992)

15
 Farewell (1996)
 Os ombros suportam o mundo(1935)
 Futebol a arte (1970)

Antologia poética
 A última pedra no meu caminho (1950)
 50 poemas escolhidos pelo autor (1956)
 Antologia Poética (1962)
 Antologia Poética (1965)
 Seleta em Prosa e Verso (1971)
 Amor, Amores (1975)
 Carmina drummondiana (1982)
 Boitempo I e Boitempo II (1987)
 Minha morte (1987)

Infantis
 O Elefante (1983)
 História de dois amores (1985)
 O pintinho (1988)

Prosa
 Confissões de Minas (1944)
 Contos de Aprendiz (1951)
 Passeios na Ilha (1952)
 Fala, amendoeira (1957)
 A bolsa & a vida (1962)
 Cadeira de balanço (1966)
 Caminhos de João Brandão (1970)
 O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972)
 De notícias & não-notícias faz-se a crônica (1974)
 Os dias lindos (1977)
 70 historinhas (1978)
 Contos plausíveis (1981)
 Boca de luar (1984)
 O observador no escritório (1985)
 Tempo vida poesia (1986)
 Moça deitada na grama (1987)
 O avesso das coisas (1988)
 Auto-retrato e outras crônicas (1989)
 As histórias das muralhas (1989)

Representações na cultura

16
Drummond já foi retratado como personagem no cinema e na televisão,
interpretado por Carlos Gregório e Pedro Lito no filme Poeta de Sete Faces (2002) e
Ivan Fernandes na minissérie JK (2006).
Também teve sua efígie impressa nas notas de NCz$ 50,00 (cinquenta cruzados
novos) em circulação no Brasil entre 1988 e 1990.
Atualmente, também, a representações em Esculturas do Escritor, como é o caso
das estátuas “Dois poetas”, na cidade de Porto Alegre, e também “O Pensador”, na praia
de Copacabana no Rio de Janeiro, além de um memorial em sua homenagem da cidade
de Itabira.

Os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

As sem razões do amor

Eu te amo porque te amo.


Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

17
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo


bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,


e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo


que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Destruição

Os amantes se amam cruelmente


e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados


pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma


que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.

18
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra


Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Para Sempre
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,

19
será pequenino
feito grão de milho.

JORGE AMADO   

Dados biográficos

Jorge Amado de Faria nasceu em 1912, em


Ferradas, hoje município de Itabuna, Bahia. Filho de um
comerciante sergipano (habitante de Sergipe, estado do
Brasil) que se tornou produtor de cacau, fez os seus
estudos em Ilhéus, Salvador e Rio. Nos finais da década
de 20, levou uma vida de jornalista boémio, na capital
baiana, onde participou em grupos literários e da
efémera "Academia dos Rebeldes", uma das primeiras manifestações de oposição ao
Modernismo, no nordeste. Em 30, foi para o Rio estudar Direito. Nessa cidade,
colaborou em jornais, fez parte de grupos literários e publicou, em 1931, O País do
Carnaval, o que o tornou conhecido.
A notoriedade chegou com os dois romances seguintes: Cacau e Suor, publicados
em 33 e 34. Em 1932, aproximou-se dos grupos políticos de esquerda, apresentado por
Rachel de Queiroz. Participou do movimento de frente popular da Aliança Nacional
Libertadora, conhecendo as agruras da prisão, em 36 e 37. Perseguido, exilou-se em
Buenos Aires, Argentina, de 1941 a 1943, período em que publicou a biografia de
Carlos Prestes e escreveu Terras do Sem Fim.
Em 1946, com a redemocratização, elegeu-se deputado federal pelo Partido
Comunista Brasileiro. No ano seguinte, perdeu o mandato, quando o partido foi
considerado ilegal. Em 1947, deixou o país por alguns anos, morando em França e em
vários países socialistas da Europa. A partir de 1958, a sua produção metódica tem-lhe
permitido viver exclusivamente de literatura. Em 1959, foi eleito para a Academia
Brasileira de Letras. Os seus livros foram traduzidos em mais de trinta línguas, sendo
por isso conhecido mundialmente.
Jorge Amado morreu em Salvador, a 6 de Agosto de 2001, pouco antes de completar
89 anos.

  

CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS

Jorge Amado está incluído na história da Literatura Brasileira entre os neo-realistas,


da década de 30, ao lado de Graciliano Ramos, José Américo de Almeida e José Lins do
Rego.
A sua produção é bastante ampla e cobre um período que vai de 1931 a 1997.
O neo-realismo é um estilo comprometido com o materialismo dialéctico marxista e
tem como objectivo denunciar a origem da exclusão social à luz do modo-de-produção.
Neste sentido, a obra de arte deve estar comprometida com os estratos sociais oprimidos
e ser elemento de denúncia. A obra perde, assim, a noção do idealismo, ainda presa a
actos heróicos por parte das personagens, é colocada por terra.

20
O Neo-Realismo aponta para uma ordem social, para um modelo económico que
não foi capaz de gerar o bem-estar para todos. O " Neo-Realismo optou claramente por
uma concepção documental da literatura; de acordo com a qual, ao fenómeno literário
competiria, vinculando-se à vida, constituir uma denúncia das suas contradições mais
prementes" (Carlos Reis, O Discurso Ideológico do Neo-Realismo Português, Coimbra,
Almedina, 1976, p. 175).
Jorge Amado, no início da sua produção, seguiu à risca este perfil pragmático da
obra de arte. Para o marxismo, o intelectual tem o compromisso de esclarecer os seus
leitores quanto às injustiças sociais. Em Cacau, publicado em 1933, a temática gira em
torno da dolorosa vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do Sul da Bahia. Para o
autor, este livro é produto da sua infância, vivida em Ilhéus em fazendas de cacau.
Sabemos que Jorge Amado esteve comprometido politicamente, foi do PCB,
Deputado Federal por este partido, cassado[1], exilado, preso, etc., mas a Revolução
Comunista de 1917 não conseguiu colocar na práxis os ensinamentos de Marx e logo
sinais dos descaminhos alcançados pelos seus líderes se fizeram sentir, isto é, um
movimento que se pretendia libertador da classe operária, foi capaz de colocar em
prática toda sorte de truculência, com todos os seus líderes: Lenine, Trotsky e Estaline.
Jorge Amado, insatisfeito com os acontecimentos, saiu do Partido em 1956.
Este processo existencial trilhado por Jorge Amado fez-se sentir na sua obra; ainda
que negado por ele. Das obras de denúncia e revolucionárias Cacau e Suor
Foi passando para uma narrativa, ainda comprometida sim, porém sem aquele tom
deliberado que opusesse riqueza/maldade a pobreza/bondade. Os seus textos ganham a
partir daí em brasilidade; em um comprometimento quase que orgânico com a terra e a
gente grapiúna.

[1]
“Cassado”: diz-se de ou indivíduo cujos direitos políticos ou de cidadão foram cancelados.

De acordo com alguns críticos, a obra do autor pode ser assim classificada: 
• Romances proletários: aqueles que retratam a vida urbana em Salvador, com
forte coloração social (O país do Carnaval, Suor e Capitães da areia). 
• Depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores
marinheiros (Jubiabá, Mar morto, Capitães de Areia). 
• Ciclo do cacau: aqueles cujos temas são as fazendas de cacau de Ilhéus e Itabuna,
a exploração do trabalhador rural e a presença dos exportadores que constituíam a nova
força económica da região (Cacau, Terras do sem fim e São Jorge dos Ilhéus). 
• Crónicas de costumes: em que se apresenta um panorama humorístico de uma
cidade, com tom ameno, descrevendo tipos humanos sensíveis e caricatos. Essa
produção inicia-se com Gabriela, cravo e canela. Nesta linha Os velhos marinheiros
formam uma obra à parte, na qual o autor, deixando a espontaneidade, busca um estilo
de sabor clássico, para traduzir ironicamente o seu humor. “Na última fase abandonam-
se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e de 40; tudo
se dissolve no pitoresco, no "saboroso", no apimentamento do regional."

(A. Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, Cultrix,1976, p. 459)

21
A literatura de Jorge Amado foi taxada, devido ao vocabulário, de pesada e
grosseira. O que vemos, porém, é um autor que detém uma memória local como poucos,
podendo ser comparado a José Lins do Rego, ainda que o paraibano não tenha passado
pelo engajamento político. Há na sua obra um empenho com a sua gente, com a
formação étnica e de poder da sociedade sul baiana. As suas personagens são " vivas"
no sentido pleno do termo; não há idealização nas suas acções; são seres passíveis de
toda a sorte de queda. Não há espaço, nas suas obras, para virtuosismo, uma vez que
agem respondendo às demandas da sobrevivência, porém sem a moral ascética punitiva.
A festa não constitui oposição à ética do trabalho protestante da modernidade.
As suas personagens femininas, por exemplo, são sensuais e fortes. Não há, nas suas
narrações, juízos de valor presos a princípios que poderíamos dizer conservadores, por
isso, principalmente, as pobres são desprovidas de culpa, quanto ao uso do corpo.
Lidam com a sua sexualidade da mesma forma que trabalham. Não são indolentes ou
desocupadas, vivem de acordo com a norma do lugar.
Esta ânsia de contar o que é Brasil fê-lo popular e aceite por culturas diferentes da
brasileira; pois a população brasileira é constituída por um caldeirão de etnias com as
mais variadas formas de viver.
Interessante notar que a origem da palavra cultura está ligada ao cultivo da terra;
mas, com o passar do tempo, o sentido ficou restrito às manifestações simbólicas de
uma determinada nação: cultura europeia, inglesa, francesa; estabelecendo-se, de
pronto, uma hierarquia ligada a um determinado poder: cultura erudita, cultura popular,
cultura de massa.
Nesse processo, a obra de Jorge Amado está comprometida com a cultura sem
hierarquia. A cultura, assim, é vista como solução existencial de seres humanos que, não
sendo europeus ou norte-americanos, são brasileiros, síntese de etnias várias que, num
primeiro momento da história brasileira, serviram com mão-de-obra para a retirada do
pau-brasil, para manter a monocultura exportadora açucareira e não poderia ter sido
diferente com a cacau.

22
OS  VELHOS MARINHEIROS OU A COMPLETA VERDADE
SOBRE AS DISCUTIDAS AVENTURAS DO COMANDANTE VASCO
MOSCOSO DE ARAGÃO, CAPITÃO DE LONGO CURSO (1961)

Pré-leitura: o que lhe sugere o título: Os velhos marinheiros ou o capitão de longo


curso?

LEITURA DA PRIMEIRA PARTE

A narrativa centra-se na tentativa de recomposição da biografia e da exacta


identidade de Vasco Moscoso de Aragão, personagem principal da novela, que ora
alimenta a fantasia e curiosidade, ora aguça a desconfiança e inveja de pacatos
moradores de um bairro suburbano em Salvador, apresentando-se nas suas histórias
como capitão de longo curso aposentado.
Entrecortada pelo humor, pela ironia e pelo emprego da sátira ao meio académico e
devastadora crítica à cultura da elite burocratizada, toda a trama se situa e se decompõe
na indagação da verdade, representada a partir de circunstâncias ambíguas e paradoxais.
Papel fundamental neste processo é o do narrador que, na qualidade de historiador,
visa pôr em questão o argumento de autoridade, os processos de legitimação e a
aceitação ingénua de eventos sem apoio crítico que fundamentam as relações sociais e
as convenções culturais e ao mesmo tempo expõe como as verdades dos factos ou
opiniões, que se pretendem totalizadoras e universalizantes, não passam de um ponto de
vista particular e são mediadas por discursos de poder.
 
O nosso propósito é analisar como está representada a construção da verdade
nesta obra, bem como a sátira dos costumes provincianos.
 
Procuraremos, portanto, identificar quais relações sobre a verdade estão
configuradas nesta obra, analisando basicamente o plano de construção da narrativa, o
papel desempenhado pelo narrador e a composição das personagens centrais, e a seguir
tentaremos verificar que jogos são produzidos a partir dos recursos usados pelo escritor
nesta narrativa e se estes jogos contribuem para a descentralização do que é concebido
como "a completa verdade".
 

23
Os velhos marinheiros ou O capitão-de-longo-curso
Romance, 1961

     Vasco Moscoso de Aragão desembarca em Periperi, litoral


baiano. Sua farda de marinheiro, seus mapas, o cachimbo e o
telescópio viram atrações na pequena cidade. Além dos
instrumentos náuticos que fascinam os moradores, a população
local se deixa conquistar também pelas histórias contadas pelo
capitão-de-longo-curso.
     São narrativas que dão notícia de países longínquos e portos
distantes como Marselha, Nova York, Hong Kong, Xangai,
Calcutá. São fatos admiráveis e aventureiros como o
enfrentamento de tempestades e tubarões do mar Vermelho,
naufrágios em ilhas remotas, amores trágicos e pecaminosos.
     Nesta narrativa contada em tom de histórias de marinheiro,
Jorge Amado apresenta um quadro de costumes da sociedade
baiana do começo do século XX. Ali, na pacata localidade
litorânea, convivem doutores ilustres, ricos comerciantes,
senhoras de respeito, aposentados, funcionários públicos e
desocupados.
     Dentro desse universo comum, sobressai o comandante, com
suas experiências extraordinárias. A vida no mar lhe ensinou
conhecimentos que extrapolam a navegação: afloram também
suas qualidades de homem honrado, de exímio jogador de
pôquer e de conquistador romântico. De uma hora para outra,
Periperi encontrou um herói.
     Mas o comandante não tarda a despertar inveja e
desconfiança. Convencido de que o comandante é um falsário, o
fiscal aposentado Chico Pacheco vai investigar a vida pregressa
de Vasco Moscoso de Aragão.
     Em Os velhos marinheiros, Jorge Amado contrapõe a vida
regrada e repetitiva do cotidiano ao mundo aventuroso dos
marinheiros, em que não se distinguem verdade e fantasia, sonho
e realidade, a tensão do acontecido e a beleza do narrado.

LINHAS DE LEITURA

CAPÍTULO 1

1. Que aspectos da narrativa permitem concluir que o capítulo I é um capítulo


introdutório? 
2. Divida o capítulo I em momentos lógicos e indique o assunto de cada um. 

24
3. Ainda no capítulo I, proceda à análise do estatuto e características do narrador.
Tome atenção às marcas de linguagem reveladoras das atitudes subjectivas do narrador
face ao que relata (como por exemplo, os modalizadores: pontuação e vocábulos que
acarretam juízos de valor).
CAPÍTULO 2

1. Demonstre que o capítulo 2 apresenta-se como um relato de acontecimentos


muito descritivo, mas entremeado por alguma linguagem subjectiva/metafórica que
produz um tom humorístico/jocoso. 
2. Analise o retrato que o narrador faz do comandante. 
3. Estude as diferentes reacções provocadas pela chegada do comandante. 
4. Estude a personagem de Zequinha Curvelo e o seu papel ao longo do texto. 
5. Comente a função crítica do último parágrafo do texto.

CAPÍTULOS 3, 4 e 5

1. Caracterização física do protagonista (I,3). 


2. A vida social em Peripéri antes da chegada do protagonista.
3. Processo de integração do protagonista na vida social de Peripéri e respectivo
impacto.
4. Construção de uma imagem tipificada e entendida como verdadeira pelos
habitantes de Peripéri – uso de  processos de legitimação e  aceitação ingénua de
eventos sem apoio crítico que fundamentam as relações sociais e as convenções
culturais:
- as histórias contadas: relatos de memórias heróicas e apaixonantes;
     - importância dos adereços;
     - a pose do comandante.

CAPÍTULOS 6 e 7

Caracterização do narrador: 
- tendência para generalizar a partir de casos particulares; 
- quer ser imparcial quanto ao comandante, no entanto não aplica o mesmo método
a si próprio no que diz respeito às suas relações sociais; 
- o estilo do narrador, segundo Telémaco Dórea; 
- tendência para comparar situações que não se implicam mutuamente (I,6. Ver
também: I,3 e I,9); 
- tendência para a redundância (fenómeno da narratologia que consiste em explicitar
algo que o leitor já inferira): a explicitação do estilo do narrador pelo poeta modernista
Telémaco Dórea. (Ver também a explicação do Dr. Siqueira sobre a credulidade dos
populares – I,9)

  

CAPÍTULOS 8 e 9

25
A campanha de Chico Pacheco começa a dar alguns frutos:
“Não se pode dizer que obtivesse êxito em sua tentativa de desmoralizar e destruir o
concorrente. Mas, sem dúvida, sua persistência acabava por insinuar certa dúvida nos
espíritos, uma vaga desconfiança, seria mesmo tão heróico o comandante, tão
aventurosa sua carreira, tão plena de perigos e amores? Podia tanta coisa assim
emocionante acontecer a um único homem, ser tão rica uma vida quando tão medíocre e
pobre fora a de todos eles?
    Adriano Meira, velho gozador e irreverente, chegara a arriscar uma piada de mau
gosto, certa ocasião, quando o comandante narrava uma das suas mais sensacionais
proezas, aquela história dos dezanove marinheiros devorados por tubarões no Mar
Vermelho. Este Vasco, escapara graças à bondade divina, à sua destreza no manejo da
faca com que abrira a barriga de três tubarões esfomeados, nada menos de três.” (I,8) 
O próprio narrador se revela como personagem complexa (ou redonda), porque
se reveste da complexidade suficiente para constituir uma personalidade bem vincada.
É uma personagem que entra em conflito interior depois de Chico Pacheco tanto
defender que Vasco Moscoso de Aragão é um trapaceiro:
      “Confesso que a malévola campanha, filha da inveja e do despeito,
desencadeada por Chico Pacheco contra o comandante abalou um pouco a minha antes
incondicional admiração pela figura ímpar do herói. Algumas de suas aventuras,
examinadas à luz da crítica arrasante do ex-fiscal do consumo, parecem-me ser tanto
quanto exageradas. Não o digo para influir num prévio julgamento, coloco-me aqui
como um historiador imparcial e, se falo no assunto, é por que me causou certa mossa o
fato dos aposentados e retirados dos negócios terem dado tão pouca importância aos
comentários e observações de Chico Pacheco, de se terem mantido tão solidários com o
comandante.” (I,9).

  

Cómico de situação: exemplo 1.

 “Trabalho de pesquisa […] tentando restabelecer a verdade , certos detalhes


necessitam ser levados, se não a debate público, pelo menos ao exame das
personalidades gradas, capazes de sobre eles emitirem douta opinião.” (I,9)

Ora, as três opiniões são:


1ª) a opinião do dr. Siqueira:
“Disse-me quando sobre minha dúvida o consultei, não constituir surpresa para ele a
fácil credulidade dos ouvintes do comandante, pois estavam ante provas concretas de
suas afirmativas: o diploma enquadrado, a Ordem de Cristo, importantíssima!, a
bússola, o telescópio. Como duvidar, como dar fé e valia às maledicências de Chico
Pacheco, apenas ascendente daquelas más-línguas ainda hoje a infestar nosso pacato
subúrbio, a maldizer dos outros, assacando misérias contra a honra alheia” (I,9) 

2ª) a opinião do poeta modernista Telémaco Dórea:


“Não concordou Telêmaco com o Meritíssimo, “que entende aquela besta do
comportamento dos homens?“ Não eram, segundo ele, as provas concretas e materiais
— diplomas, mapas, cronógrafo — a causa fundamental do apoio dado ao comandante.
Não era assim tão simples e fácil, nem dão os homens tanto valor às provas materiais. O
que os levava a sustentar o comandante, a enfrentar Chico Pacheco e sua língua temível,
era a própria necessidade, sentida por todos eles, despretensiosos e tímidos aposentados

26
e retirados dos negócios, de sua ração de aventura, de sua parcela de heroísmo. Por mais
circunspecto que seja um homem, mais comedida sua vida, há dentro dele uma chama,
por vezes apenas uma fagulha, capaz de transformar-se num incêndio se a ocasião se
apresenta. É ela que exige fugir da mediocridade, mesmo que seja nas palavras de uma
história ouvida ou nas páginas de um livro lido, da chatice dos dias iguais, pequenos e
mornos. Nas aventuras do comandante, em sua vida arriscada e temerária, encontravam
os perigos por que não haviam passado, as lutas e batalhas que não haviam travado, os
alucinados e pecaminosos amores que, ha!, não haviam vivido.
    Que lhes oferecia Chico Pacheco? As tricas de um processo judicial contra o Estado,
era pouco. Se ainda fosse um processo criminal, com mortes, esposa adúltera e amante
sórdido, facadas ou tiros, júri emocionante, promotor e advogado, ciúme, ódio e amor,
talvez tivesse alguma possibilidade... Mas essa pendência em torno de uma
aposentadoria era quase nada para o muito de que necessitavam, sua carência de vida
mais verdadeira e profunda. O comandante era um generoso doador de grandeza
humana, eis aí o segredo de seu sucesso.” (I,9) 

3ª) a opinião da mulata Dondoca, sua amante: 


“— Esse comandante, apesar de velhote, tem seu encanto. Gosto da voz dele, dos olhos
bonitos e da cabe leira. Devia ser bom ficar deitada, ouvindo ele contar seus
acontecidos. Um homem assim, não há mulher que não goste...
 — Só para ouvir ou, também...?
  Mordeu o lábio, riu desfalecente:
  — Quem sabe, também...” (I,9)
 

Cómico de situação: exemplo 2.


Sátira ao mundo literário: Telémaco Dórea elogia, inesperadamente, o narrador por
ter publicado num jornal da Baía que pertence a um amigo um soneto alexandrino
(isto é, com versos de 12 sílabas com acento na 6ª). Estranho, porque ele era um poeta
futurista. Possível causa para esta atitude: por intermédio do narrador vir a conseguir
publicar no mesmo jornal ou cair nas boas graças daquele editor que por influência do
narrador poderia denegrir a imagem do poeta futurista (?). Mas eis que linhas mais à
frente ficamos a saber que afinal de contas Telémaco Dórea apenas precisava de
dinheiro emprestado (I,9).

CAPÍTULO 10 

1. Análise do sumário que precede o capítulo 10: parcialidade do narrador


verificável na oposição “bandido” / “mocinho”.
2. Divisão do capítulo em duas partes:
1ª) manifestações nacionalistas do 2 de Julho, dia da independência brasileira.
      2ª) o desmascaramento de Vasco Moscoso de Aragão e consequente divisão da
população de Peripéri em facções de opinião.
 

LEITURA DA SEGUNDA E TERCEIRA PARTES


27
A novela Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso  trata da história do
Comandante Vasco Moscoso de Aragão, órfão, alérgico ao mundo do trabalho,
enriquecido ao herdar o património do avô por parte de pai, acaba ganhando, em vista
da influência de alguns boémios influentes, um diploma de capitão de longo curso,
apesar de nunca ter pilotado sequer uma jangada. A sua alegada competência como
navegador é motivo de discórdias. Chamado a Belém para substituir o comandante de
um navio, o qual havia morrido, a tripulação recebe-o agressivamente, pois não o aceita.
Moscoso consegue manobrar o navio, levando de roldão todos os barcos do porto. Ao
conseguir aportar, ordena que prendam todas as amarras. Tornou-se motivo de
zombarias na zona portuária, pois ninguém até aquela data havia amarrado tanto um
navio. Naquela noite, entretanto, acontece uma gigantesca tempestade, jamais vista no
porto de Belém. No cais, só um navio resiste. É o de Vasco Moscoso, que passa a
exemplo de prudência e motivo de todas as admirações e louvores.
 

Proposta de trabalho

Analisar como está representada a construção da verdade (como e por que se


constroem verdades? Onde se situa a verdade? Há verdade ou verdades?) e como é feita
a sátira dos costumes provincianos na segunda e terceira partes (os alunos deverão fazer
uso de elementos operatórios, como por exemplo: categorias da narrativa,
modalizadores e demais recursos expressivos).
Em síntese, são seguintes as linhas de leitura:
 plano de construção da narrativa;
 papel desempenhado pelo narrador;
 composição das personagens centrais;
 representação e construção da verdade;
 sátira dos costumes provincianos.

28
JOÃO GUIMARÃES ROSA

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes. 


E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. 
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo 
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser 
um crocodilo porque amo os grandes rios, 
pois são profundos como a alma de um homem. 
Na superfície são muito vivazes e claros, 
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros 
como o sofrimento dos homens."

João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e era


o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de
Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" comerciante, juiz-de-paz,
caçador de onças e contador de estórias.
Joãozito, como era chamado, com menos de 7 anos começou a estudar francês
sozinho, por conta própria. Somente com a chegada do Frei Canísio Zoetmulder, frade
franciscano holandês, em março de 1917, pode iniciar-se no holandês e prosseguir os
estudos de francês, agora sob a supervisão daquele frade.
Terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; em Belo
Horizonte, para onde se mudara, antes dos 9 anos, para morar com os avós. Em
Cordisburgo fora aluno da Escola Mestre Candinho. Iniciou o curso secundário no
Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em
regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se — não suportava a comida.
De volta a Belo Horizonte matricula-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães
e, imediatamente, iniciou o estudo  do alemão, que aprendeu em pouco tempo. Era um
poliglota, conforme um dia disse a uma prima, estudante, que fora entrevistá-lo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um
pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado);
entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do
sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do
finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E
acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à

29
compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se
por divertimento, gosto e distração.
Em 1925, matricula-se na então denominada Faculdade de Medicina da
Universidade de Minas Gerais, com apenas 16 anos. Segundo um colega de turma, Dr.
Ismael de Faria, no velório de um estudante vitimado pela febre amarela, em 1926, teria
Guimarães Rosa dito a famosa frase: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que
seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de
Letras.
Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro
contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e
Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela
revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em
1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada
desprezível de cem contos de réis. Chegou a  confessar, depois, que nessa época
escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios.
Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna,
então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu 
primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se
em Medicina, tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas.
Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que
pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-
se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua
importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande
amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu
Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por
Sarandi.
Espírita, "Seu Nequinha" parece ter sido o inspirador da figura do Compadre
meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem de Grande Sertão: Veredas.
Diante de sua incapacidade de por fim às dores e aos males do mundo numa
cidade que não tinha nem energia elétrica, segundo depoimento de sua filha Vilma, o
autor, sensível como era, acaba por afastar-se da Medicina. Contribuiu também para
isso o fato de o escritor ter que assistir o parto de sua mulher, pois o farmacêutico e o
médico da cidade vizinha de Itaúna só terem chegado quando Vilma já havia nascido.
Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como
voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se,  por concurso. Em 1933, vai
para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria.
Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia
Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a
revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso
da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para
orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao
estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas
demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas
informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na
região do Rio São Francisco.
Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e,
particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a
possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então
Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o
Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo

30
lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o
exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro
Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre
'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só
posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos
subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou
com o futebol.
Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários.
Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia
Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de "Viator", concorre ao prêmio
Humberto de Campos, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão
do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o
reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil
contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua
beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que
Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a
linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais
escritos na literatura brasileira.
Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue
para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua
segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para
casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam
o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros,
feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades
possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na
saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de
qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.
Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de
judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D.
Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram
homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus
prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das
encostas que dão acesso a Jerusalém.
Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão
àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da
2ª Guerra Mundial. Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da
homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito
pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar
morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência."
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado
em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o
pintor pernambucano Cícero Dias. Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em
troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de
Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo
até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude
de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do
livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida
pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela

31
solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia
resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas).
Em dezembro de 1945 o escritor retornou ao Brasil depois de longa ausência.
Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família
Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou
para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por
Hotel da Nhatina.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves
da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.
Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da
delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento
ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador
do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.
De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como
1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951 é novamente nomeado Chefe de
Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento
e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a
Embaixador).
Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão
ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano.
Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de
maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume
Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia
notícia de tudo e tudo anotava "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido
"mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a
fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos,
anedotas, canções, casos, estórias...
Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o
livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem
formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de
revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo
Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada
no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao
grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento
e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio
cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o
universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.
Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas
Corpo de Baile, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo
de Baile, a obra de Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da
moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas,
cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de
56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600
páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro.
Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão
do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história
do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para
Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas,
além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do
romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.

32
O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário
literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se,
sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores
apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três
prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen
Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz
com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da
literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice,
composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores
romancistas da terceira geração modernista brasileira.
Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra
rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor
recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de
Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.
Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras,
cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos
casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em
homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante
(2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de
Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um
reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de
Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.
Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve
para os pais:
Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O
clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os
trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece
coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir
ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio,
às 6 hs 15’, comer frutinhas, na copa da alta árvore pegada à casa, uma tucaneira’,
como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais
bonitas e inesquecíveis de minha vida.
A partir de 1958, o autor começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam,
na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão
arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso,
vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora
afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro
de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a
Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na
referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da
nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias;
daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de
fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido
dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal
chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a
fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.
É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares
que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas
leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science),

33
religião cristã criada nos Estados Unidos em 1866 por Mrs. Mary Baker Eddy e que
afirma a primazia do espírito sobre a matéria – "... the allness of Spirit and the
nothingness of matter", a qual habilita compreender a nulidade do pecado, dos
sentimentos negativos em geral, da doença e da morte, diante da totalidade do Espírito.
Em 1962, é lançado Primeiras Estórias, livro que reúne 21 contos pequenos.
Nos textos, as pesquisas formais características do autor, uma extrema delicadeza e o
que a crítica considera "atordoante poesia".
Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia
Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na
vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é
eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente
acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.
Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos,
em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de
Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco
Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram
eleitos vice-presidentes.
Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante
do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-
presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio
Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material
do prêmio, é o mais importante do país.
No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos,
Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra
aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atômica da
literatura brasileira"; outros consideram que em suas páginas encontra-se a "chave
estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação".
Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento,
assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram
reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do
pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que
viveu."
O escritor faz seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras com a voz
embargada.  Parece pressentir que algo de mal lhe aconteceria. Com efeito, três dias
após a posse, em 19 de novembro de 1967, ele morreria subitamente em seu
apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de
chamar por socorro.
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de
Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi
barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até
hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à
diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária.
Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a publicar aos 38 anos. O autor, com
seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance
brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas
no Brasil, mas alcançou o mundo.

34
O BURRINHO PEDRÊS

Era um burro velho, magro e com a pelagem já encardida chamado Sete-de-


Ouros, nome que o último dono lhe dera, pois era jogador de cartas. Mas ele já tivera
muitos outros nomes, dados por outros tantos donos que já tivera. Já fora chamado de
Brinquinho, Rolete (referência ao seu porte na mocidade, um tanto robusto), Choco-
chato e Capricho.
Na mocidade, passara por poucas e boas. Já fora picado de cobra no focinho,
fato que quase o levara à morte, já tivera até um peão morto a tiro sobre seu lombo.
Agora, vivia Sete-de-Ouros, sua velhice tranqüila na Fazenda da Tampa, pertencente ao
Major Saulo, lá pras bandas de Minas Gerais. E é numa manhã nublada que começa a
história.Quando Sete-de-Ouros cochila debaixo do galpão, um dos cavalos da fazenda,
por sinal, dos mais briosos, escapa do mourão onde fora preso. Logo se aproxima de
Sete-de-Ouros e dos outros animais que estão quietos ruminando sua vidinha, já
provocando algazarra de coices. Nosso burrinho, sendo de paz, trata de esquivar-se e
procura um local sossegado para estar. Este foi seu azar, pois resolve que o lugar mais
calmo seria perto da varanda da sede da fazenda. Mas, eis que ali está o Major, já
preocupado, às voltas com a má notícia que recebeu do capataz, Francolim. A cerca
rebentara no fundo do pasto do açude, deixando escapar quase todos os cavalos e justo
quando precisam tocar o gado vendido para o arraial a fim de embarcá-los no trem.
Ao ver o burrinho, o Major não tem dúvidas, manda que o levem também, mesmo sob
os protestos do capataz de que estava muito velho. Sete-de-Ouros gosta menos ainda da
idéia e bem que tenta negar, mas não há meio, tem de sair com um peão dos mais leves
montado nas costas. Já que tem que ir, vai, mas sempre devagar, pois não tem pressa de
nada.
A viagem não é fácil, pegam chuva, atravessam o córrego da Fome que, com a
chuva que diz que caia há quatro dias na nascente, transformou-se em rio perigoso.
Sete-de-Ouros vai atrás da boiada, sem se esforçar demais, mas agüenta tudo. Durante a
viagem ouve-se boatos de que um dos peões, o Silvino, planeja matar outro, o Badu por
causa do amor de uma morena que o segundo roubou do primeiro, mas nosso burro não
se mete em encrenca e não quer saber disso.
Na volta, Badu bebe demais e se demora um pouco para pegar a montaria. Os
outros, divertindo-se, pegam seu cavalo e deixam-no com o burrinho, e ele, mesmo
esbravejando não tem escolha senão montá-lo. Já vai anoitecendo quando se colocam no
caminho de volta e é mesmo verdade que Silvino planeja matar o Badu depois que
passarem o rio.
Quando chegam todos na margem, percebem que as águas subiram ainda mais
durante o dia e que a enxurrada está forte. Então, deixam o burro decidir. Se ele entrar é
seguro, que burro não se mete onde não vai conseguir passar. Sete-de-Ouros sonda e
depois entra e os outros vão atrás. Quando estão no meio do rio, a correnteza fica mais
forte e leva a todos, homens e cavalos. Mas o burrinho, pára, toma fôlego e depois
continua calmamente. Badu, bêbado que está, só se agarra à sua crina, também o
capataz, perdido de sua montaria, agarra-se ao rabo do burro e consegue salvar-se. Ao
sair da água, o burrinho nem pára. Trata de seguir até à fazenda para poder descansar e
comer sossegado.

35
O burrinho pedrês (Conto de Sagarana), de Guimarães Rosa

Análise da obra:

Conto narrado em 3ª pessoa. A omnisciência do narrador é propositalmente relativizada,


dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

Em O burrinho pedrês, primeiro dos nove contos, Guimarães procura mostrar, tendo como
pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. É o caso
do burrinho Sete-de-Ouros: a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e
inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e
salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro
náufrago enclavinhado no rabo - ressalta Oscar Lopes.

O burrinho pedrês é uma estória que metaforiza a experiência da velhice, um burrinho


experiente sabe-se orientar onde cavalos de boa montaria sucumbem.

Neste conto, assim como em Conversa de bois e em A volta do marido pródigo, os animais
se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

A ironia do escritor vale-se do decadente burrinho para pôr a nu a omnipotência


presunçosa do homem, que julga controlar o próprio destino, ignorando as inesperadas
surpresas que este lhe reserva. A perspectiva místico-religiosa, a luta entre o bem e o mal,
os riscos morais que acompanham o homem no perigoso ofício de viver, são os temas
preponderantes que alimentam a ficção.

Em Sagarana renasce o anônimo “contador de estórias”, o homem-coletivo que se enraíza


nas rapsódias gregas e nas canções de gesta medievais. Desde o início do conto ("Era um
burrinho pedrês...") esboça-se claramente a atitude ingênua e espontânea da “palavra lúdica”,
que não aprisiona o falar nos limites rígidos do individualismo, mas se identifica com a palavra
anônima e coletiva.

Seja pela fórmula lingüística caracterizadora da narrativa elementar, da fábula, da lenda


("Era um burrinho..."), tempo e modo verbais que, de imediato, tiram à narrativa o caráter de
coisa datada, para projetarem na esfera intemporal do universo de ficção; seja pela mescla de
precisão e imprecisão documental no registro do espaço (vindo de Passa-Tempo, Conceição do
Serro, ou não sei onde no sertão); seja pela dimensão antropomórfica (forma humana) que é
dada à personagem central, o “burrinho-gente”, e que situa a narrativa na fronteira entre o real e
o mágico; seja pela funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo, tudo isso e muito
mais nos revela, no universo da palavra rosiana, a presença do “homo ludens” (homem lúdico),
descompromissado com as estruturas convencionais do pensamento lógico.

A trama desse conto, como nas demais narrativas de Guimarães Rosa, é relativamente
simples. Publicado pela primeira vez em 1946, O burrinho pedrês é uma história sugerida por
um acontecimento real, passado no interior de Minas Gerais, envolvendo um grupo de
vaqueiros. É a história da condução de uma boiada em dia de fortes chuvas, em algum ponto
indefinido do sertão, sob a tensão de uma maquinação ameaçadora de ciúme e crime. O seu
desfecho, de todo surpreendente, só poderia ser ideado por um mestre da palavra e da criação
literária. O foco da narrativa está centrado em um burrinho pedrês, que é testemunha de um
trágico acidente. Em contraponto com a intriga que se desenvolve entre os boiadeiros, há
episódios relacionados com o ciclo mítico do boi, omnipresente na vida sertaneja. Pairando
sobre tudo e todos, destaca-se a figura sábia e intensamente "humana" do burrinho pedrês, que
aparece pouco na ação mas, como citado, domina o universo da narrativa.

36
O cenário é a Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.

O burrinho Sete-de-Ouros, protagonista da história, simboliza o peso da vida quando


“Carregado de algodão”, o trabalho do burrinho, e metaforiza a carga dos homens, o peso
do mundo, como fardos de algodão. “Preguntei: p’ra donde ia?” – a forma arcaica do verbo
perguntar sugere a indagação permanente dos homens, sábios e filósofos: para quê?, por quê?,
de onde?, para onde?. “P’ra rodar o mutirão” alude ao esforço coletivo, ao dever de
solidariedade que o burrinho cumprirá na sua hora e na sua vez.

Desde esse primeiro conto, estão presentes os elementos fundamentais para compreendermos
os contos de Sagarana. O nome do burrinho, Sete-de-Ouros, é recoberto pela magia de um
número místico (sete) e pela força simbólica do ouro, indicador de superação e de
transcendência paralquimistas. A travessia, a superação de obstáculos por ocultos caminhos é
uma imagem freqüente em Guimarães Rosa, como também a presença de forças mágicas, da
natureza, atuando sobre o mundo e mostrando as possibilidades de os fracos se tornarem fortes,
de se saber uma vida no resumo exemplar de apenas um dia.

Personagens:

Sete-de-Ouros - animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros
nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Choco-Chato e Capricho.
Major Saulo - corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo
se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso
mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro,
comprando mais gado e terras.
João Manico - vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta,
trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.
Francolim - espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros.
Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-
Ouros.
Raymundão - vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai
contando a história do zebu Calundu.
Zé Grande - vai à frente da boiada, tocando o berrante.
Silvino - vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois
de deixarem a boiada no arraial.

Resumo do conto:

Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens estão ultimando os últimos preparativos


para sair pelo sertão, tocando uma boiada de bois de corte. O dia é de chuva, mas ela ainda não
veio. Major Saulo ordena que os homens preparem os animais. Por zebra, o burrinho Sete-de-
Ouros, presente ali na varanda da casa grande, também é escolhido para a viagem. Para montá-
lo, o Major escolheu o vaqueiro João Manico.

Raymundão conta a história do touro Calundu. Não batia em gente a pé, mas gostava de
correr atrás de cavaleiro. Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus bezerros
novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta, amedrontando a fera e pondo-a para correr. Certa
feita, o touro Calundu matou Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges. O pai, vendo filho
ensangüentado no chão, puxou o revólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu
que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou o touro para outra fazenda para ser

37
vendido ou dado a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu ficou uma noite apenas
no curral. No outro dia, estava morto.

Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego da Fome. Estava cheio. A travessia era
perigosa, e o Major Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a travessia é feita sem
perda. Até o Sete-de-Ouros atravessou sem reclamar.

Em determinado ponto do caminho, Major Saulo ordenou que Francolim trocasse de


montaria com João Manico. A ordem foi obedecida. Francolim fez um pedido ao Major: que, na
entrada do povoado, a troca fosse desfeita. Não ficava bem para ele, encarregado do Major, ser
visto montado no burrinho Sete-de-Ouros.

Badu está na fazenda há apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino. Por isso, os
dois viraram inimigos, um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o major sobre o
perigo de um matar o outro. Raymundão acha que o caso não é para morte. A moça é meio
caolha. O casamento com Badu já está marcado. Raymundão, em prosa com o Major, informou
que Silvino vendeu umas quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal. Outra informação
que veio do Francolim: Silvino está com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da
chegada ao povoado, determinou que Francolim, na volta, vigie Silvino o tempo todo. O Major
está convencido de que Silvino já planejou a morte de Badu.

A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo com a meia-chuva, foi para o curral da
estrada de ferro ver o embarque. Depois, os animais ficaram descansando enquanto os vaqueiros
andavam um pouco pelo povoado.

Na hora de ir embora, cada um pegou a sua montaria. Badu ficou por último: estava bêbado e
tinha ido comprar um presente para sua morena. Por maldade, deixaram-lhe o burrinho Sete-de-
Ouros. Na saída do povoado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para o burrinho pedrês,
os pés iam quase arrastando no chão. Já no fim do lugar, Francolim estava parado no meio da
estrada, esperando Badu.

Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao grupo. Queria mesmo era ficar de olho em
Silvino. Os dois, Silvino e o irmão Tote, iam bem na frente dos dois. Tote tentava dissuadir o
mano para não matar Badu. Mas Silvino estava determinado. Esperava apenas o momento certo
para fazer o serviço e cair no mundo.

João Manico, por insistência de todos, contou mais uma vez a história da boiada que
estourou à noite, quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por Saulinho. No estouro, de
madrugada, o gado passou por cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. Deles, só restou
uma lama cor de sangue.

Viajavam à noite. De repente, os cavalos empacaram, pressentindo o mar de água. O Córrego


da Fome transbordara, inundando tudo bem alem das margens. Todos aprovaram a idéia de
esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro entrasse na água, todos o seguiriam. É que
burro não entra em lugar de onde não pode sair.

Sete-de-Ouros entrou levando Badu às costas. Os cavalos seguiram-no. E foi uma tragédia:
oito vaqueiros mortos naquela noite. Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé
Grande, Tote e Sebastião. O burrinho Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e Francolim
agarrado à cauda, conseguiu atravessar o mar de águas em que se transformara o pequeno
córrego. Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-
no do vaqueiro, que dormia, e dos arreios.

38
O BURRINHO PEDRÊS
Roteiro de análise da narrativa “O burrinho pedrês” de Guimarães Rosa.

 1. Elementos da narrativa


 a) Enredo
        – partes do enredo;
        – conflitos(s): o principal e os secundários.

 b) Personagens
        – quanto à caracterização/composição:
                 personagens planas: tipos/caricatura (há? Quem são?);
                 personagens complexas: características físicas, psicológicas, sociais,
ideológicas, morais;
 
Tenha em atenção, por exemplo:
      Os ditos, aforismos e conselhos do Major Saulo.
            A maneira como o Major gere a questão de Silvino e Badu.
            Os vaqueiros relatam casos do seu mundo – faça o levantamento e analise as
estórias contadas por Raymundão e João Manico.
– quanto à participação no enredo:
   protagonista: herói ou anti-herói;
   antagonista;
   personagens secundárias.

 c) Tempo, espaço  e características do ambiente:


    – época em que se passa a história;
    – duração da história;
    – tempo cronológico;
    – localização geográfica;
    – aspectos psicológicos, morais, religiosos;
    – aspectos sócio-económicos e políticos.

 d) Narrador:
    – primeira ou terceira pessoa;
    – participante ou não participante;
    – ponto de vista (tome atenção se há marcas de linguagem reveladoras das atitudes
subjectivas do narrador face ao que relata, como por exemplo, os modalizadores:
pontuação e vocábulos que acarretam juízos de valor).

2. Estilo
 a) Marcas de oralidade:
    – queda de sons e fusão ou contracção de palavras;
    – uso de diminutivos;
    – repetições sintácticas;
    – frases inacabadas e hesitações;
    – vocabulário pouco variado e repetitivo;
    – vocabulário popular, familiar ou corrente, pouco cuidado;
    – referências directas – necessidade de gesto;
    – … 

39
b) vocabulário:
    – gíria (por exemplo: as várias designações para gado equino e gado bovino);
    – vocabulário erudito usado pelo narrador;
    – neologismos;
    – arcaísmos;
    – aforismos (decifre os respectivos sentidos, atendendo ao seu contexto de produção):
    “quem é visto é lembrado”
                “quem vai na frente bebe água limpa”
    “cavalo manso de moça só se encosta em tamborete”
    “joá com flor formosa não garante terra boa”
    “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!”
    “Suspiro de vaca não arranca estaca!”
    “Quem tem inimigo não dorme!”
    “Burro não amansa nunca de-todo, só se acostuma!...”
    “Quando corre, bate caixa, quando anda, amassa o chão!”
                “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha”
    “Esta vida é engraçada... Galinha tem de muita cor, mas todo ovo é branco.”
    “Quem viaja por terras estranhas vê o que quer e não quer!”
    “É andando que cachorro acha osso.”
    “Todo o gosto é regra.”

 c) O estilo narrativo de Guimarães Rosa é caracterizado, entre outros aspectos, pelo alto
índice de musicalidade, pelo recurso a procedimentos rítmicos e rimáticos
característicos da poesia. Proceda à escansão do seguinte parágrafo que pode ser
dividido em 6 versos de 7 sílabas: “Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi
berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na
vara, vai não volta, vai varando...”
 
3. Tema – Assunto – Mensagem

40
VINÍCIUS DE MORAES

Vinícius de Moraes (Rio de Janeiro RJ, 1913 – 1980) formou-se em Direito, no Rio
de Janeiro, em 1933. No mesmo ano publicou O Caminho para a Distância, seu
primeiro livro de poesia. Ainda na década de 1930, são lançados Forma e Exegese
(1935), Ariana, a Mulher (1936) e Novos Poemas (1938). Em 1938 viajou para a
Inglaterra, para estudar Língua e Literatura Inglesa. De volta ao Brasil, ingressou na
carreira diplomática; serviu nos Estados Unidos, na França e no Uruguai. Em 1956
iniciou parceria com Tom Jobim, que fez as músicas para sua peça Orfeu da Conceição.
Publicou, em 1957, o Livro de Sonetos. Em 1958 foi lançado o LP Canção do Amor
Demais, que inclui a música Chega de Saudade, composta por ele e Tom Jobim, marco
do movimento da Bossa Nova. Nas décadas seguintes ele participaria no movimento
com diversas parcerias: Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Francis Hime,
Pixinguinha, Tom Jobim e Toquinho. Em 1965 ganhou primeiro e segundo lugares no
Festival de Música Popular da TV Excelsior, com as canções Arrastão, parceria com
Edu Lobo, e Canção do Amor que não Vem, parceria com Baden Powell. Vinícius de
Moraes, pertencente à segunda geração do Modernismo, é um dos poetas mais
populares da Literatura Brasileira. Suas canções alcançaram grande êxito de público,
como Garota de Ipanema, a música brasileira mais executada no mundo. Para Otto Lara
Rezende, "depois do Vinicius musical, foi o Vinicius cronista quem mais depressa
chegou ao coração do grande público". Sua obra poética também teve e continua tendo
muito sucesso; principalmente poemas como Soneto de Fidelidade. Ele produziu ainda
poemas infantis, como os de A Arca de Noé (1970).

41
Ausência

Eu deixarei que morra


em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus


E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Soneto do amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante


O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante

42
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante


E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente


De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde


É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Testamento

À prostituta mais nova


Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida


Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo


Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus


Quanto aos meus poemas loucos,
Das contas de outro sofrer,
Esses, que são de dor
São para os homens humildes,
Sincera e desordenada...
Que nunca souberam ler.
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

43
LITERATURA CABO-VERDIANA: PERIODIZAÇÃO

1ºPeríodo, das origens até 1925. a que chamaremos de Iniciação, por, a par de
grandes vazios, abranger uma variada gama de textos (não necessariamente literários)
muito influenciados pelas duas fases do baixo romantismo e do parnasianismo (embora
com iniciativas de alguma vocação regionalista ou mesmo de «vocação patriótica», no
primeiro quartel do séc. XX), antes da fase moderna.
Em Cabo Verde, após a introdução do prelo, em 1842, e a publicação do romance
cabo-verdiano de José Evaristo d’Almeida, O escravo (1856), em Lisboa, segue-se um
longo período (ainda hoje mal conhecido no que respeita ao século XIX), até à
publicação do livro de poemas Arquipélago (1935), de Jorge Barbosa, e da revista
Claridade (1936), Fundada por Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, entre
outros […]. A criação, em 1 866, do Liceu-Seminário de São Nicolau (Ribeira Brava),
que durou até 1928, muito contribuiu para o surgimento de uma classe de letrados
equiparável ou superior à dos angolanos. Em 1877, criou-se a imprensa periódica não
oficial. […] 
O 2° Período, de 1926 a 1935, a que chamamos Hesperitano, antecede a
modernidade que o movimento da Claridade (1936) incarnou. Desde os primeiros
tempos, até ao final deste 2° Período, entendemos, com Manuel Ferreira, que vigorou o
Cabo-verdianismo, caracterizado como de «regionalismo telúrico», mas que, nalguns
textos, se expande para temas e elementos recorrentes da literatura cabo-verdiana, como
os da fome, do vento e da terra seca, ou de certa insatisfação e incomodidade, numa
atmosfera muito próxima do naturalismo.
O fundamento que leva a que se possa designar tal período como Hesperitano
ressalta da assunção do antigo mito hesperitano ou arsinário. Trata-se do mito,
proveniente da Antiguidade Clássica, de que, no Atlântico, existiu um imenso
continente, a que deram o nome de Continente Hespério. As ilhas de Cabo Verde
seriam, então, as ilhas arsinárias, de Cabo Arsinário, nome antigo do Cabo Verde
continental, recuperado da obra de Estrabão.
Os poetas criaram o mito poético para escaparem idealmente à limitação da pátria
portuguesa, exterior ao sentimento ou desejo de uma pátria interna, íntima,
simbolicamente representada pela lenda da Atlântida, de que resultou também o nome
de atlantismo hesperitano, por oposição ao continentalismo africano e europeu. […] 
3.° Período, que principia no ano de 1936 (ano da publicação da revista-mater
Claridade) e vai até 1957, muito mais tarde do que a fase a que Luís Romano chama
dos «Regionalistas ou Claridosos» (para ele termina com os neo-realistas da revista
Certeza, de 1944) […].
Ainda em 1941, sai Ambiente, livro de poemas de Jorge Barbosa. António Nunes
publica, depois, os Poemas de longe (1945) e Manuel Lopes, os Poemas de quem ficou
(1949), a que se segue o romance fundador Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes,
passando pelo Caderno de um ilhéu (1956), de Jorge Barbosa, e o primeiro romance de
Manuel Lopes, Chuva braba (1956). Todos sem interferência da Negritude, mas,
curiosamente, coincidindo no tempo as publicações de neo-realistas e claridosos, não
sem que, entretanto, fossem impressos livros deslocados no tempo, como os Lírios e
cravos (1951), de Pedro Cardoso, e as Poesias (1952), de Januário Leite, poetas do
cabo-verdianismo. […] 
4.° Período, indo de 1958 a 1965, em que, com o Suplemento Cultural, se assume
uma nova cabo-verdianidade que, por não desdenhar o credo negritudinista, se pode
apelidar de Cabo-verdianitude, que, desde a sua ténue assunção por Gabriel Mariano,
num curto artigo (1958), até muito depois do virulento e celebrado ensaio de Onésimo

44
Silveira (1963), provocou uma verdadeira polémica em torno da aceitação tranquila do
patriarcado da Claridade. Do Suplemento Cultural do Boletim Cabo Verde fizeram
parte Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Aguinaldo Fonseca, Terêncio Anahory e
Yolanda Morazzo. […] 
5.° Período, entre 1966 e 1982, do Universalismo assumido, sobretudo por João
Vário, quando o PAIGC (acoplando forças políticas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau)
se achava já envolvido, desde 1963, na luta armada de libertação nacional, abrindo,
aquele poeta, muito mais cedo do que nas outras colónias, a frente literária do
intimismo, do abstraccionismo e do cosmopolitismo: aliás, só depois da independência,
e passado algum tempo, surgiu descomplexada e polémica, sobretudo em Angola e
Moçambique. Podemos datar de 1966, com a impressão dos poemas, em Coimbra, de
Exemplo geral, de João Vário (João Manuel Varela), essa viragem, que, diga-se, pouco
impacto veio provocar. […] 
6.° Período, de 1983 à actualidade, começando por uma fase de contestação, comum
aos novos países, para gradualmente se vir afirmando como verdadeiro tempo de
Consolidação do sistema e da instituição literária. O primeiro momento é dominado pela
edição da revista Ponto & Vírgula (1983-1987), liderada por Germano de Almeida e
Leão Lopes […]. 

(Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, pp.180-185)

45
      JORGE BARBOSA

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

 Jorge Vera Cruz Barbosa nasceu na ilha de Santiago de Cabo Verde em 22 de Maio
de 1902. Fez os seus estudos primários na cidade da Praia e veio depois para Lisboa,
onde estudou até ao 3° ano. Regressa em seguida para Cabo Verde, continuando os seus
estudos até ao 5° ano.
Aos dezoito anos começa a trabalhar na Alfândega de São Vicente. Percorre quase
todas as ilhas em serviço, para onde é transferido por várias vezes. Aposentou-se na ilha
do Sal, em 1967, com sessenta e cinco anos, com a categoria de director de alfândega.
Em Setembro de 1970, já bastante adoentado do coração, vem para Portugal tratar-
se, falecendo três meses depois, em Janeiro de 1971.
Vida sem grandes sobressaltos e limitada à fronteira marítima que inspirou tantos
dos seus poemas. No entanto, profunda e imensa em sonhos e em viagens imaginadas
que jamais realizou. 
Jorge Barbosa publicou em vida três livros: Arquipélago (1ª edição em Dezembro
de 1935, sob a égide da Editorial Claridade), Ambiente (1ª edição em 1941, Praia,
Minerva de Cabo Verde) e Caderno de um Ilhéu (1ª edição em 1956, Lisboa, Agência
Geral do Ultramar). Postumamente, em 2002, a sua Obra Poética foi reunida pela
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde se acrescentou três livros inéditos, ordenados
pelo poeta: I – Expectativa; II – Romanceiro dos Pescadores; III – Outros Poemas.
Nestes três livros encontram-se alguns poemas que foram apresentados na Poesia
Inédita e Dispersa de Jorge Barbosa, publicada, em 1993, pelas Edições ALAC. Os que
restam e que ficaram de fora dos três livros inéditos foram incluídos igualmente numa
parte IV com o título Poemas dispersos. Incluem-se ainda, na parte V, cinco poemas em
crioulo. 
Deu a sua colaboração literária a revistas e jornais da época, como Presença,
Claridade (quer nos três primeiros números, quer nos seis restantes da 2ª fase),
Cadernos de Poesia, Diabo, Atlântico, Mundo Português, Aventura, Movimento,
Mensagem (CEI), Notícias de Cabo Verde. Mais regularmente, a sua colaboração foi

46
para o Boletim de Cabo Verde, durante vários anos, não só com poemas, como também
com as crónicas de São Vicente e artigos vários.
SOBRE A POESIA DE JORGE BARBOSA
Na sua obra poética, existe um núcleo fundador de uma estética poética, derivado do
relacionamento do sujeito com o espaço – a ilha. Dessa relação resulta aquilo que
podemos denominar a insularidade, isto é, o sentimento de solidão, de nostalgia que o
ilhéu experimenta face ao isolamento e aos limites da fronteira líquida que o separam do
resto do mundo, criando-lhe um estado de ansiedade que o leva a sonhar com outros
horizontes para lá do mar. Insularidade que é, antes de mais nada, cabo-verdiana e que,
desse modo, se particulariza. O factor geográfico do Arquipélago constituído por dez
ilhas relativamente pequenas, juntamente com os condicionalismos climáticos, marca a
sentimentalidade e a maneira de estar do homem.
Se, por um lado, a pequenez do espaço em confronto com o mar agiganta os sonhos
e o desejo da partida, por outro, as secas, destruindo o ganha-pão do homem, levam-no
a realizar a aventura da emigração, isto é, a aventura da sobrevivência. A insularidade
em Jorge Barbosa contém estas duas vertentes, expressas na dicotomia «querer partir e
ter de ficar» e «ter de partir e querer ficar», estabelecendo o enlace do regionalismo com
o universalismo, duas qualidades, afinal, inerentes ao conceito de insulação ou
insularidade. Estas estruturas tendem a articular-se na poesia de Jorge Barbosa,
plasmadas num profundo conhecimento da terra e do homem, constituindo a sua
aventura interior, impressa não na língua crioula, mas na língua portuguesa, cujo
discurso é impregnado dos ingredientes do homem mestiçado. A crioulidade é assim o
factor primordial da sua identidade.
A sua produção literária abrange um espaço de 41 anos, de 1928 a 1969 (sendo a
poesia dispersa e inédita paralela aos livros publicados, preenchendo os hiatos das suas
publicações e prolongando-se quase até à hora da morte).
Podemos agrupá-la em três períodos:
O primeiro, pré-claridoso, de 1928 a 1935 (poesia inédita em livro até
Arquipélago); o segundo, o período claridoso, de 1935 aos fins dos anos 1950
(incluindo a publicação de Ambiente e Caderno de um ilhéu); o terceiro, de 1959 a
1969, pós-claridoso ou da mudança (poesia inédita).
O primeiro período define-se como preparação e fermentação de um novo ideário
ético-estético.
Intelectualizada pela poesia a consciência da insularidade, o poeta encontra-se apto a
analisar as situações sociais motivadas por circunstancialismos político-geográficos. Em
1932, sai o poema «O Baile», iniciático da sua viagem interior rumo às origens
(verifica-se um envolvimento nas suas raízes como propósito definido), numa cena do
quotidiano, em que a negra que amamenta a criança «de ébano polido» é sublimada pela
analogia com a Virgem-Mãe, olhando o Cristo-Menino, reiterando o princípio da
gestação rácica. No plano da representação, os elementos típicos e ambientais (a morna,
os pares dançando, o quarto de terra batida, o suor e a aguardente) aludem ao submundo
do porto de São Vicente, tema que é retomado noutros poemas, posteriormente, em
«Roteiro da Rua Lisboa» (Claridade nº 9, em 1960) e «Meninas Portuárias»
(inédito, 1966), e que lembram outro grande Mestre das letras cabo-verdianas, o

47
novelista António Aurélio Gonçalves. Verificamos que há uma intenção clara de definir
um espaço vital, «a terra mater», já a partir de 1930, em poemas possivelmente escritos
antes. Na verdade, tanto o seu livro Arquipélago, como parte dos poemas publicados no
livro Ambiente, já estavam escritos em 1933, segundo cartas que o poeta escreve a
Manuel Lopes, revelando a precoce modernidade cabo-verdiana. A consciência, pois, do
presente vivido, anunciado nos seus pontos nevrálgicos: as secas, o drama centenário da
fome, o desprezo que o poder central metropolitano manifestava em relação aos
problemas trágicos das ilhas, a fuga para outros climas. Aliás, em 1931, Jorge Barbosa
publicava, em O Notícias de Cabo Verde, n° 6, um artigo em homenagem a Eugénio
Tavares («Eugénio – tópicos de uma monografia»), em que usa, pela primeira vez, a
expressão «caboverdianismo» no conceito que modernamente atribuímos a «cabo-
verdianidade».
Caboverdianizar a literatura era, afinal, o que pretendiam, à semelhança do que
acontecia no Brasil, desde 1922, após a Semana de Arte Moderna. A esse respeito,
Manuel Lopes afirmou:
A poesia modernista brasileira realizara a tarefa de «nacionalizar
definitivamente a literatura» na expressão de José Osório de Oliveira e essa
«invenção» da poesia brasileira foi o Ypiranga literário, o acordar para a
descoberta do homem e da paisagem do Brasil. […] A mensagem presencista era
para nós epidérmica, não penetrava a nossa humanidade. Não representava uma
solução ou um caminho, uma resposta às nossas interrogações. Foi quando o
modernismo brasileiro, em pleno amadurecimento, e o neo-realismo nascente
chegaram a São Vicente. Tivemos a impressão de que a voz que vinha do Sul
pertencia a um irmão mais rico e corpulento, mas irmão. (Manuel Lopes,
«Reflexões sobre a Literatura Cabo-verdiana». in Colóquios Cabo-Verdianos, nº
22, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1959, p. 15).
De facto, o modernismo brasileiro, desenvolvido nas décadas de 1930 e 1940 por
poetas como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Jorge de Lima,
Carlos Drummond de Andrade, preconiza um temário poético exclusivamente
brasileiro, popular e tradicional, reagindo contra os parnasianos. O romance regional
nordestino de Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos,
o romance urbano de Erico Veríssimo, a obra de Gilberto Freire e os estudos de Artur
Ramos sobre o negro africano no Brasil, são particularmente sensíveis para os escritores
cabo-verdianos, por tudo o que aproxima o Brasil de Cabo Verde: o processo
aculturativo, o ethos africano, as secas nordestinas, com o corolário de desgraças
conhecidas pelo ilhéu cabo-verdiano.
Dentro das influências literárias, deverá falar-se também do escritor António Pedro,
um dos fundadores do surrealismo português, que, em 1929, estivera na sua terra natal,
convivendo com Jorge Barbosa, Jaime de Figueiredo e outros. Subtilmente, o poeta
enuncia, em «Poemas Autobiográficos» (1953) e em «Panfletário» (1966), o desejado
pelo não realizado, o dito pelo não dito. Traduz, por um processo de dissimulação,
aquilo que é e, sobretudo, aquilo que deveria ser nas aspirações mais íntimas. Em
«Panfletário», coloca em termos políticos e sociais o desajuste entre o ser e o estar, isto
é, as várias razões castradoras da realização da «Magnífica aventura de ser panfletário».

48
É esta evolução para uma acentuada consciencialização política e social da função
da literatura e da arte que irá nortear o terceiro período da sua obra poética – o pós-
claridoso ou da mudança. Evolução corajosamente já patenteada nos livros publicados,
em que, antes de mais nada, revela a idiossincrasia da personalidade islenha. E, numa
consciência social muito experimentada, toca toda a temática do Homem das ilhas: as
secas, a fome, a morte prematura, a prostituição, o abandono e a Viagem (motivo
fundamental). Desejada ou necessária, a Viagem é um percurso entre os espaços,
transição no plano mental, afectivo ou intelectual, retorno às origens e à mística da terra,
entre o real e o onírico.
Daí que toda a obra publicada (em livro ou dispersa) prepare esse 3° período, o pós-
claridoso ou da mudança, que se define pelo discurso da agressividade e da intervenção,
nunca perdendo, porém, o lirismo de carácter afectivo, repassado de dor, em tom
magoado.
(Elsa Rodrigues dos Santos, “O movimento da Claridade; Jorge Barbosa e Manuel Lopes” in
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta,
1995, pp.192-195)

PRELÚDIO
 
Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
 
Nem setas venenosas vindas do ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.
 
Havia somente
as aves de rapina
         de garras afiadas
as aves marítimas
         de vôo largo
as aves canoras
         assobiando inéditas melodias.
 
E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastados para cá
pelas fúrias dos temporais.
 

49
Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada
 
e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensa n´El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.
 
 
VOCÊ: BRASIL
 
Eu gosto de você, Brasil,
porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa.
Eu já ouvi falar de suas cidades:
A maravilha do Rio de Janeiro,
São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos.
Ao passo que as daqui
Não passam de três pequenas cidades.
Eu sei tudo isso perfeitamente bem,
mas Você é parecido com a minha terra.
 
E o seu povo que se parece com o meu,
que todos eles vieram de escravos
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.
E o seu falar português que se parece com o nosso falar,
ambos cheiros de um sotaque vagaroso,
de sílabas pisadas na ponta da língua,
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.
É a alma da nossa gente humilde que reflete
A alma das sua gente simples,
 
Ambas cristãs e supersticiosas,
sortindo ainda saudades antigas
dos sertões africanos,
compreendendo uma poesia natural,
que ninguém lhes disse,
e sabendo uma filosofia sem erudição,
que ninguém lhes ensinou.
 
E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.

50
dos seus cateretês, das suas todas de negros,
caiu também no gosto da gente de cá,
que os canta dança e sente,
com o mesmo entusiasmo
e com o mesmo desalinho também...
As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,
fazem lembrar as suas músicas,
com igual simplicidade e igual emoção.
 
Você, Brasil, é parecido com a minha terra,
as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...
 
Nós também temos a nossa cachaça,
O grog de cana que é bebida rija.
Temos também os nossos tocadores de violão
E sem eles não havia bailes de jeito.
Conhecem na perfeição todos os tons
e causam sucesso nas serenatas,
feitas de propósito para despertar as moças
que ficam na cama a dormir nas noites de lua cheia.
Temos também o nosso café da ilha do Fogo
que é pena ser pouco,
mas — você não fica zangado —
é melhor do que o seu.
 
Eu gosto, de Você, Brasil.
Você é parecido com a minha terra.
O que é é tudo e à grande
E tudo aqui é em ponto mais pequeno...
Eu desejava ir-lhe fazer uma visita
mas isso é coisa impossível.
Eu gostava de ver de perto as coisas
espantosas que todos me contam
de Você,
de assistir aos sambas nos morros,
de esta cidadezinha do interior
que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita ternura,
de me deixar arrastar na Praça Onze
na terça-feira de Carnaval.
Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,
d de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —
e rolar com ela um maxixe requebrado.
Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto
e você veria como é que eu sou bom camarada.

51
 
Havia então de botar uma fala
ao poeta Manuel Bandeira
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a poesia receitava
este meu fígado tropical bastante cansado.
Havia de falar como Você
Com um i no si
— “si faz favor —
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
— “mi dá um cigarro!”.
 
Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?
Impossíveis”.
 
 

CASEBRE
Foi a estiagem

E o silêncio depois

Nem sinal de planta


nem restos de árvore
no cenário ressequido da planície.

O casebre apenas
de pedra solta
e uma lembrança aflitiva
 
O teto de palha
levou-o
a fúria do sueste.
 
Sem batentes
as portas e as janelas
ficaram escancaradas
para aquela desolação.
 
Foi a estiagem que passou.
 
Nesses tempos
não tem descanso
a padiola mortuária da regedoria.
 
Levou primeiro
o corpo mirrado da mulher
com o filho nu ao lado
de barriga inchada

52
que se diria
que foi de fartura que morreu.
O homem depois
com os olhos parados
abertos ainda.
 
Tão silenciosa a tragédia das secas nestas ilhas!
Nem gritos nem alarme
— somente o jeito passivo de morrer!
 
No quintal do casebre
três pedras juntas
três pedras queimadas
que há muito não serviram.
 
E o arco do ferro do menino
com a vareta ainda presa.
 

Aproveitando o espírito de renovação e abertura, Jorge Barbosa publica n’O Diabo,


em 1940, o poema «Posse», onde manifesta a sua perfeita consciência política sobre o
significado do acto colonizador e, posteriormente, das estruturas colonialistas.
Assim, o poema transformado em parábola, recuando a um tempo inaugural, narra a
história da «pequena ilha solitária e perdida nos mares do Sul» onde «o povo seguia a
sua própria lei»:

POSSE 

Nos compêndios escolares não se falava da pequena ilha


solitária e perdida nos mares do Sul.
Não passavam por lá os barcos dos brancos
e o povo seguia a sua própria lei
que no entanto não estava escrita em livro algum.
Homens e mulheres viviam nus e amavam-se sem complicações
e comiam peixes que pescavam em canoas feitas com troncos de árvores
e carne de animais caçados com setas certeiras.

Atletas e guerreiros dançavam ao som de búzios e tambores


e as bailadeiras ondeavam contorcidos ritmos lentos
na toada triste de instrumentos de uma só corda.
E tinham seus deuses, seus santos, seus sacerdotes, seus feiticeiros,
e moravam em cubatas cobertas com palmas das palmeiras.

53
Mas do outro lado da terra
um dia
senhores de cara grave assentaram-se à volta de uma mesa com mapas em frente,
            falando de guerras,
            de bases para aviões,
            de pontos estratégicos...

Então veio à baila a ilha solitária perdida nos mares do Sul...


Semanas depois um barco de ferro chegou e fundeou
nas águas tranquilas da baía...
E um escaler veio para terra com homens loiros vestidos de branco,
trazendo, entre outras coisas,
            uma bandeira para a primeira afirmação imperial,
            um chicote para o primeiro castigo,
            um barril de pólvora para o primeiro massacre
            e um outro de álcool para o primeiro comércio! 

Praia, Cabo Verde


(in jornal O Diabo, Lisboa, 23 de Março de 1940, p. 3)

Estão então reunidas todas as condições para a prática do colonizador: o poder cuja
bandeira é o símbolo do domínio; o chicote como representação castradora do povo, O
barril de pólvora, sinónimo de guerra imposta pela ingerência e povoamento forçados,
«e um outro de álcool para o primeiro comércio».
Nesta linha ideológica situar-se-ão outros poemas, principalmente os que se
conservaram inéditos ou os que foram publicados em certos jornais, escapando à
peneira da censura. Ele esperaria em melhores dias, e não há dúvida de que acreditava
que, num futuro, isso seria possível. Por isso, Jorge Barbosa teve uma actividade de
escrita metódica praticamente até morrer.
Nos livros inéditos que nos chegaram muito recentemente às mãos, ordenados por
ele próprio, e cujos poemas se reportam sobretudo ao período entre os anos 1950 e
1960, a linguagem ganha um tom agressivo, através de uma ironia dolorosa e magoada.
 
Jorge Barbosa traduz no livro inédito I - Expectativa a dramaticidade da espera que
se vai desenvolvendo num «crescendo», à medida que o tempo passa e o vazio é cada
vez maior.
A repetição do refrão do primeiro poema: «Éramos nós / somos nós / dez ilhas»
funciona como um grito ou uma chamada de atenção para esse pequeno arquipélago de
minúsculas ilhas, em busca de paz e de pão.
O primeiro poema, «Preâmbulo», é, como diz o título, uma introdução sobre o
contexto geográfico das dez ilhas.
(Elsa Rodrigues dos Santos, Prefácio a Obra Poética, de Jorge Barbosa, Lisboa, IN-CM, 2002, p.
18)

54
PREÂMBULO 

Havia as horas
desertas e longas
da noite rolada
da ilha pequena.

Havia o nocturno
aroma tenuíssimo
tão tenuíssimo que só
o poeta o pressentia
e não era
nem vegetal
nem mineral
nem era
mesmo diluído
o aroma ácido das maresias E o poeta relembrou
nem era da terra tão longe no tempo
nem era das casas relembrou o gesto
vago e senhoril
nem dos fermentos distantes do menino estrangeiro com a sua mão
nem da aragem. pequena pousada
solene sobre o globo.
Não era
de flor ou mulher Apesar de imóvel
o aéreo a distante imagem da revista
e vago perfume apesar de estático
que viesse do escuro o seu esplendor de iluminura
da rua solitária no fundo da retina
e se imiscuísse dos seus olhos fatigados pela noite
lento o poeta imaginou
no silêncio             um lento impulso
do quarto do poeta             nos dedos finos do menino
pelos espaços oblíquos das persianas.             rodando assim o globo
            inclinado sobre o eixo
Talvez era             varado em diagonal...
com o seu segredo milenário
o cheiro cósmico subtilmente Da rotação surgiram
que só o poeta pressentia na visão do poeta
e vinha talvez das estrelas surgiram e passaram
ou do atrito dos astros no infinito. com as suas cores
variadas e cintilantes

55
            nações
Também havia             continentes
na solidão da noite             ilhas
insone e vagarosa             lagos
havia para o poeta             gelos polares
a perspectiva             riscos sinuosos
dos sonhos e remorsos...             de rios e fronteiras
            geométricos
Havia sombras invisíveis             de meridianos e paralelos
que todavia flutuavam             o longo
sobre a folha branca de papel.             traço periférico
            do Equador.
Sobretudo havia
os ecos silenciosos Na fantasia do poeta
e as imagens distantes da memória. súbito porém
ficou suspensa
De repente a rotação geográfica...
            (vinda
            o poeta não sabia E apareceram
            de que recanto remoto do quase invisíveis
inconsciente) pontos pingados
despontou-se-lhe no azul luminoso
nítida na memória e atlântico da esfera...
entre as suas lembranças tumultuárias
a luzidia gravura Éramos nós
de uma antiga revista colorida. somos nós
dez ilhas!
Era uma estampa
simplesmente Seria que todas
com o retrato de um menino teriam ficado
de terra longe marcadas no mapa?
            mas sucedia Dez ilhas que esperam
            que o menino tinha à sua frente ainda o final
            uma grande esfera giratória deste destino
            com o mapa-múndi assinalado... de todos nós
que há meio milénio
Esplendente um dia começou!
e breve criatura
o tão longínquo infante!             Irrompeu então
            na alma do poeta
            Contudo             o desesperado poema
            apenas             da nossa expectativa![1]
            vistoso reclamo em tricromia
            da antiga revista. (in Obra Poética – Expectativa, 2002) 

56
[1]
Esta expectativa constitui a proposição da epopeia do povo cabo-verdiano.

IRMÃO

Cruzaste Mares
na aventura da pesca da baleia,
nessas viagens para a América
de onde às vezes os navios não voltam mais.

Tens as mãos calosas de puxar


as enxárcias dos barquinhos no mar alto;
viveste horas de expectativas cruéis
na luta com as tempestades;
aborreceu-te esse tédio marítimo
das longas calmarias intermináveis.

Sob o calor infernal das fornalhas


alimentaste de carvão as caldeiras dos vapores,
            em tempo de paz
            em tempo de guerra.

E amaste com o ímpeto sensual da nossa gente


as mulheres nos países estrangeiros!

Em terra
nestas pobres Ilhas nossas
és o homem da enxada
abrindo levadas à água das ribeiras férteis,
cavando a terra seca
nas regiões ingratas
            onde às vezes a chuva mal chega
            onde às vezes a estiagem é uma aflição
            e um cenário trágico de fome!
Levas aos teus bailes
a tua
melancolia no fundo da tua alegria,
            quando acompanhas as Mornas com as posturas
            graves do violão
            ou apertas ao som da música crioula
            as mulheres amoráveis contra o peito...

A Morna...

57
parece que é o eco em tua alma
da voz do Mar
e da nostalgia das terras mais ao longe
que o Mar te convida,
o eco
            da voz da chuva desejada,
o eco
            da voz interior de nós todos,
            da voz da nossa tragédia sem eco!
A Morna...
tem de ti e das coisas que nos rodeiam
a expressão da nossa humildade,
a expressão passiva do nosso drama,
da nossa revolta,
            da nossa silenciosa revolta melancólica!

A América...
a América acabou-se para ti...
Fechou as portas à tua expansão!

Essas Aventuras pelos Oceanos


já não existem...
Existem apenas
nas histórias que contas do passado,
com o canhoto atravessado na boca
e risos alegres
que não chegam a esconder
            a tua
            melancolia...
O teu destino...
O teu destino
sei lá!

Viver sempre vergado sobre a terra,


a nossa terra,
            pobre
            ingrata
            querida!

Ser levado talvez um dia


na onda alta de alguma estiagem!
como um desses barquinhos nossos
que andam pelas Ilhas
e o Oceano acaba também por levar um dia!

58
Ou outro fim qualquer humilde
anónimo...

            Ó Cabo-Verdiano humilde


            anónimo
            — meu irmão!

(in Ambiente, 1941)

No livro Ambiente de Jorge Barbosa aparecem poemas como "Irmão" em que a


viagem à América aparece como a solução aos problemas sociais do arquipélago.
Através de um sujeito lírico que foge da terra nessas "pobres ilhas nossas / és o homem
da enxada / abrindo levadas à água das ribeiras férteis/ [...] / onde às vezes a chuva mal
chega / onde às vezes a estiagem é uma aflição / e um cenário trágico de fome!" vão
aparecendo espaços concretos e bem definidos: América, o paraíso do cabo-verdiano
onde resolver os seus problemas económicos (e é sob este ponto de vista que é encarada
a partida para América) mas que se vai convertendo, a pouco e pouco, num sonho, e o
poema, que mantém o tom do discurso empenhado do neo-realismo, transita para a
descrição de um estado de alma do sujeito preso da melancolia, da apatia que reflecte a
"pasmaceira" ("saudade fina" defini-la-ia Oswaldo Alcântara) do ilhéu: "essas
Aventuras pelos Oceanos / já não existem... / Existem apenas / nas histórias que contas
do passado, / com o canhoto atravessado na boca / e risos alegres / que não chegam a
esconder / a tua / melancolia...". Logo dessa queda do sujeito no mundo do sonho e da
melancolia, retoma-se a linha realista e empenhada numa chamada à solidariedade
fraterna do cabo-verdiano.
(Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”,
http://home.no/tabanka/literatureart.htm)

 Neste poema de Jorge Barbosa o sistema de valores representados propõe uma


violenta inovação, ao converter à dimensão do humano pragmático-ambíguo conceitos
que a estética clássica tinha por rigorosarnente irredutíveis. Elevando o trabalhador
esforçado à condição de «herói», tributa a destreza deste «Ulisses» caboverdiano com
qualidades problemáticas de «nauta proletário + camponês», «alegre + melancólico»
para simbolizar a comunidade de uma nação centrada agora no piano popular; obriga
assim o paradigma cultural de incidência ética, superior aos grupos humanos como
determinava o sistema clássico, a funcionalizar o económico liderado pelo «herói-
povo», como convém ao empenhamento realista orientado para o grupo.
Não é novo o procedimento discursivo que valoriza e condiciona a segunda pessoa
verbal, agente da «história» que o sujeito elege para seu destinatário; como na estética
clássica o sujeito é ainda aquele a quem cabe o poder da palavra libertadora da «lei da
morte» e que pode salvar do «anonimato histórico» o «tu», «Oh Caboverdeano
humilde / anónimo / — meu irmão!» Porém, novidade é esta função pedagógica que
contamina a interlocução quando o sujeito destaca, de entre todos os actos realizados

59
pelo «tu» e vividos acriticamente, os que ele deve (re)conhecer como especialmente
produtivos.
De novo, ambiguamente, pois o sentido de solidariedade social niveladora entre o
sujeito poético e o povo laborioso («meu irmão ») é uma subversão inovadora paga com
uma perigosa relação de dependência, expressa pelo seu compromisso com a matéria-
povo dicível na ausência da qual o espreita a « morte» pelo silêncio: pela «perda de
emprego », interdita que é a imaginação inventiva.

(Alberto Carvalho, “Emergência do discurso da agressividade na poesia caboverdiana” in Les


Litteratures Africaines de langue portugaise: a la recherche de l’identité individuelle et nationale, Paris,
FCG, 1985, p. 220)
 

POEMA DO MAR 

O drama do Mar,
o desassossego do Mar,
            sempre
            sempre
            dentro de nós!

O Mar!
cercando
prendendo as nossas Ilhas,
desgastando as rochas das nossas Ilhas!
Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores,
roncando nas areias das nossas praias,
batendo a sua voz de encontro aos montes,
baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas...

O Mar!
pondo rezas nos lábios,
deixando nos olhos dos que ficaram
a nostalgia resignada de países distantes
que chegam até nós nas estampas das ilustrações
nas fitas de cinema
e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros
quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

O Mar!
a esperança na carta de longe
que talvez não chegue mais!...

O Mar!

60
saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados,
histórias da baleia que uma vez virou a canoa...
de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

O Mar! dentro de nós todos,


no canto da Morna, *
no corpo das raparigas morenas,
nas coxas ágeis das pretas,
no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a hora


que o Mar nos faz para a evasão!
Este desespero de querer partir
e ter que ficar!  

*Morna – música dolente de Cabo Verde.


(in Ambiente, 1941)

Em "Poema do Mar", define poeticamente, e de maneira muito clara, esse desejo de


partir tendo que ficar: "O Mar! / [...] / deixando nos olhos dos que ficaram / a nostalgia
resignada de países distantes" e o mar acaba por ser a imagem "criadora" da evasão:
"Este convite de toda a hora / que o Mar nos traz para a evasão / Esse desespero de
querer partir / e ter que ficar!".
 Portanto, na poesia de Jorge Barbosa, como na de muitos outros poetas cabo-
verdianos, a condição de ilhéu leva implícita a ideia da viagem: viagem exterior a um
destino concreto, ligada ao discurso neo-realista, viagem ao interior do próprio sujeito
numa procura de conhecimento, viagem quimérica e impossível na origem de uma
frustração existencial ofegante.
(Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”,
http://home.no/tabanka/literatureart.htm)

VIAGENS 

Lembro as viagens que fazia nos paquetes da Blue Star


quando escalavam o porto da ilha de S. Vicente.
Eram viagens que não passavam nunca do cais
mas punham um alvoroço bem grande no meu coração.

Ora seguia rumo à Europa,


Hamburgo, Paris, Londres...
Ora para Cuba, México, Argentina...

61
Mas para o Rio de Janeiro é que ia sempre de preferência.

Era à tarde quando ia passear para o cais


(todas as partidas deviam ser pela tarde
porque depressa se apaga dos olhos a terra que ficou atrás).
O bote estava mesmo encostado à escada para me levar
e eu começava a descer o primeiro degrau...

Mas retrocedia logo porque então me lembrava


de que no dia seguinte tinha que pôr a assinatura
no livro do ponto da repartição.

Foi afinal o livro do ponto


onde todos os dias deixava melancolicamente
a minha assinatura e a minha renúncia,
que fez com que todas as minhas viagens
nunca passassem do cais da ilha de S. Vicente...

(in Caderno de um ilhéu, 1956)

A viagem que se propõe como tema ao longo destes textos não é tanto uma viagem
física de que a poesia é o seu reflexo ou a sua literaturização quanto uma viagem
imaginária, mais no mundo do desejo do que na sua concretização: "Fui afinal o livro do
ponto / onde todos os dias deixava melancolicamente / a minha assinatura e a minha
renúncia, / que fez com que todas as minhas viagens / nunca passassem do cais da ilha
de S. Vicente..." (do poema "Viagens"). Nestes versos resume as suas viagens
imaginárias, mas que, sendo viagens implicam o conhecimento e, portanto, "exigem" do
sujeito o regresso à casa, a essa nova Ítaca vista com os olhos da experiência
acumulada: "Leva-me contigo / navio // Mas torna-me a trazer" porque, embora haja um
pequeno navio "que nunca partiu, que nunca partirá", as viagens dos outros acabam por
ser apropriadas pelo sujeito: "A poesia está é na sala de verificação / no dia em que
chegam passageiros à ilha / e nessa sugestão de outros climas / que ficam por um
instante no ambiente" (do poema "Alfândega").
(Francisco Salinas Portugal, “Entre a fugida e a viagem: a poética da ilha”,
http://home.no/tabanka/literatureart.htm)

PANFLETÁRIO 

ao poeta José Bizarro

Era para eu
ser panfletário.

62
Escreveria
Os meus escritos             panfletos
teriam a verrina             sátiras
as iras             libelos
o rubro seria
grito da revolta!             o inimigo
            o subversivo
Era para eu             o foragido
ser panfletário.             o perseguido
            o réprobro
Combateria conheceria
            os tiranos             tribunais
            esconderijos
            os arbitrários             cárceres
            os agiotas sentiria
            os exploradores da miséria             a fome e o cansaço
            e do trabalho dos pobres             teria no corpo
            os homens poderosos             a tatuagem marcada
            e os seus mandatários             das torturas policiais.
            e bajuladores
            e as leis que os protegem. Era para eu
ser panfletário.
Era para eu
ser panfletário. O magnífico
e heróico destino
Teria o porte que eu imaginava
audaz e altivo tão liricamente
e belo ser o meu
de um guerreiro. venceram-no
Levaria nos olhos a prudência
a chama e os sonhos o temor
no sorriso um ar a família
amargo e triste venceu-o
a cabeça ao léu este meu outro
impávida erguida real
e a cabeleira ao sol e melancólico
ao vento destino burocrático...
e ao frio nocturno
dos secretos e longos Era para eu
caminhos da fuga. ser panfletário.

Era para eu Não o fui


ser panfletário. e ainda me dói

63
o desejo de o ser...

Ao passar pelas ruas Mas agora


das vilas rurais com o resíduo do tempo
então se fechariam tingindo de branco
as portas para mim. os meus cabelos
Talvez pelo exíguo gotejando
espaço de alguma doloroso
janela entreaberta nos meus ossos
os pais me apontassem é tarde demais
aos filhos tementes para a magnífica aventura...
e lhes segredassem
— o panfletário! Era para eu
ser panfletário.
Era para eu
ser panfletário.

Ilha do Sal, aeroporto, 24 de Novembro de 1966 (in revista África, n° 2, Outubro-Dezembro de 1978. Esta
última versão contém ligeiras alterações)

Subtilmente, o poeta enuncia em «Poemas autobiográficos» (1953) e em


«Panfletário» (1966) o desejado pelo não realizado, o dito pelo não dito. Traduz por
um processo de dissimulação «aquilo que é» e, sobretudo, «aquilo que deveria ser» nas
aspirações mais íntimas.
Em «Panfletário», repete esse processo dissimulador, colocando em termos
políticos e sociais o desajuste entre o «ser» e o «estar», isto é, as várias razões
castradoras da realização da «magnífica aventura» de ser panfletário.
É esta evolução para uma acentuada consciencialização política e social da função
da literatura e da arte que irá nortear o terceiro período da sua obra poética – o pós-
claridoso ou da mudança. […]
A ironia passa também a fazer parte do seu discurso, funcionando como arma
acusatória. Assim acontece em «Meio Milénio», longo poema escrito em 1960,
inspirado nas celebrações em homenagem aos 500 anos da descoberta do arquipélago.
No primeiro poema, «Contagem», o poeta refere-se ao tempo que vai de 1460, «ano
histórico / do Achamento / para a glória / d’El-Rei Afonso V / e provação de nós
todos», ao ano de 1960, «sétimo! na ordem! do Plano do Fomento».

«Duas datas
 facílima contagem
 de 5
 séculos vazios.»

Esta ideia de provação repete-se noutros poemas, terrível constatação do sofrimento


do povo de Cabo Verde e do esvaziamento a todos os níveis ao longo dos séculos
passados e dos sucessivos Planos de Fomento na era do colonialismo. Daí a «facílima

64
contagem/ de 5/ séculos vazios» ironicamente pronunciada pelo tom jocoso do adjectivo
superlativante, acrescido ao numeral em árabe em contraste com o nada ou o vazio.
No segundo poema, «Programa», referindo-se aos festejos que iam ter lugar, onde
se cifram os números de 1500 contos «de generosa oferta/ do governo da Nação para as
festas centenárias» acentua a mesma ideia de vazio nos «500/ anos vagarosos/ de
melancólica expectativa», pondo em contraste a penúria em que se vivia. Os numerais
em romano (5 e 500) servem a ironia pelo despojamento da palavra (veículo poético),
mas ganhando força na contagem do tempo, protagonista da História.
Sucedem-se vários processos de ironia no decorrer destes poemas de «Meio
milénio» em que a dissonância de discursos e os diversos tipos de elocução se
conjugam com uma intenção que, embora sarcástica, tem o sentido construtivo dum
universo mais justo.
E é no mesmo tom que Jorge Barbosa escreve em 1966, no período de
recrudescência da guerra colonial e da repressão em território português, quer no
continente quer em África, o poema «Júbilo».

(Elsa Rodrigues dos Santos, Prefácio a Poesia Inédita e Dispersa de Jorge Barbosa, Lisboa, ALAC,
1993)
 

JÚBILO 

Nós não fomos presos!


Os nossos papéis
Por isso dancemos não foram devassados
e cantemos as nossas cartas
defronte das prisões. não foram violadas
as nossas casas
Não falámos não foram assaltadas
não dissemos as nossas famílias
não gritámos não foram sacrificadas.
não protestámos
por isso não fomos presos. Por isso dancemos
e cantemos
Por isso dancemos e pulemos contentes
e pulemos e cantemos defronte das prisões.
defronte das prisões.
E louvemos os homens
Somos todos prudentes
sensatos sábios
cordatos poderosos
amigos da ordem generosos
por isso não fomos presos. que velam por nós.

Pulemos e dancemos. Pulemos e cantemos

65
e dancemos.

Ilha do Sal, 23 de Dezembro de 1966

66
Baltasar Lopes

O autor do primeiro romance genuinamente cabo-verdiano, Baltasar Lopes, nasceu


na freguesia rural do Caleijão, na Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau, em 23 de Abril de
1907, filho de um agricultor, e morreu em 1989, em Lisboa, aonde se deslocara, da Ilha
de São Vicente, para tratamento, acometido por doença cerebral-vascular.
Quatro livros fundamentais fazem dele o construtor-mor da cabo-verdianidade: o
romance Chiquinho (1947), o ensaio O dialecto crioulo de Cabo Verde (1957), a
colectânea de poemas Cântico da manhã futura (1986), com o nome poético de Osvaldo
Alcântara, e os contos de Os trabalhos e os dias (1987). Para criticar a visão com que
do arquipélago ficou o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, após curta estadia, publicou
Cabo Verde visto por Gilberto Freyre (1956). Organizou uma Antologia da ficção
cabo-verdiana contemporânea (1961) e ainda viu sair um conto, em edição bilingue, Le
carnet/A caderneta (1986), aquando das comemorações nacionais do cinquentenário da
revista Claridade (1936-1960, nove números). Nunca chegou a escrever (julga-se) a
continuação de Chiquinho, talvez com o título de Acushmett street, cuja acção
decorreria no espaço da emigração insular nos Estados Unidos, provavelmente em
Massachusetts, onde reside importante colónia cabo-verdiana.

(in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, p. 202)

Chiquinho: romance de aprendizagem

O Chiquinho é um romance de aprendizagem[1] – um Bildungsroman – a que


preferimos chamar romance de iniciação, por três motivos: o tema é o da iniciação de
um jovem à vida adulta (como um percurso iniciático, da aldeia à cidade, até à partida
para o estrangeiro); foi o primeiro e único romance de Baltasar Lopes; é o romance
inicial cabo-verdiano. Como romance de aprendizagem, ou de iniciação, é
comparável a dois romances de angolanos, As aventuras de Ngunga (1976; escrito em
1972) e A konkhava de feti (1981), respectivamente de Pepetela (de temática
guerrilheira) e Henrique Abranches (de temática étnica).
Toda a história do romance está contida numa longa evocação, uma analepse
gigantesca. A evocação, no presente do indicativo, indicia que haverá um ponto do
discurso em que, ao terminar o evocacionismo, se abrirá um ciclo de narração
67
actualizada. Assim, nos últimos capítulos, o uso do pretérito mais que perfeito e, no
último parágrafo, o tempo futuro (prolepse), reforçam a sensação subtil de que o
narrador esteve apenas a relembrar factos acontecidos até um momento muito próximo
da narração.
O romance organiza-se em três partes distintas: «Infância»; «S. Vicente»; «As-
águas».
Na primeira, narra-se, com intensa saudade, o tempo genesíaco da primeira infância,
passada em ambiente rural, afectivo, entre o mundo familiar, as primeiras letras (na
escola do Caleijão e no liceu-seminário da Vila de São Nicolau) e as brincadeiras, numa
linguagem literária que dulcifica o português com as incursões semânticas e a fluência
rítmico-frásica do crioulo.
Na segunda, já na cidade do Mindelo, na Ilha de São Vicente, assistimos à passagem
para o liceu, aos amigos de tertúlia, ao primeiro amor, aos sonhos e à sociabilização da
personagem principal.
Na terceira parte, o próprio título, «As-águas», nos remete para o problema da falta,
isto é, da seca, e, por outro lado, conota as águas do mar, por sobre as quais Chiquinho
sairá, de vapor, a caminho da América do Norte, após presenciar a tragédia da seca e da
morte, e a revolta de parte da população. Como se as águas da chuva e do mar
simbolizassem, respectivamente, a fertilização da Natureza (terra fértil) e do
conhecimento (caminho do mundo).

(Laranjeira: 1995, pp. 206-207)

O final da obra

O final (que tanta controvérsia tem levantado, pela ambiguidade) solicita


interpretações complementares:
a) a emigração é a única forma de quebrar o cerco do isolamento e do
provincianismo;
b) a emigração não é uma desistência, mas uma insistência na melhoria de vida;
c) o intelectual que partia, cuidando apenas de si, naquele contexto dos anos 1930-
1940, era um intelectual desistente, que deixava os compatriotas entregues à sua sorte,
negando todo o seu passado de boas intenções;
d) mais valeria um intelectual partir e regressar com outras condições do que ficar,
como Euclides Varanda ou José Lima, e ser totalmente inócuo.
Final (em) aberto, afinal nunca completado com a intertextualidade de um segundo
romance que, retroprojectivamente, abrisse novas pistas de análise do evasionismo
como corrente de sentido positivo nessas ilhas desafortunadas.

(Laranjeira: 1995, p. 209) 

[1]
O mesmo que romance de formação: incide sobre o processo de constituição e consolidação (cultural,
psicológica, social) da personalidade de uma personagem, geralmente desde a sua infância ou
adolescência até um estádio de maior maturidade.

68
Chiquinho - Índice da antologia

Parte I– INFÂNCIA
Capítulo 1 – narra-se, com intensa saudade, o tempo genesíaco da primeira infância,
passada em ambiente rural, afectivo.
Capítulo 7 – episódio da cólera e da ventona (vendaval) e as histórias  sobre os
negreiros e escravos.
Capítulo 19 – a chegada dos baleeiros (simbolizando o apelo da América, que faz
recordar o pai emigrado).
Capítulo 20 – a visita do embarcadiço Chico Zepa.
Capítulo 30 – a previsão de um ano de seca e fome.
Capítulo 31 – preparação da ida de Chiquinho para S. Vicente onde vai estudar os 6º
e 7º anos do Liceu.

Parte II – S. VICENTE
Capítulo 3 – a apresentação do Grémio.
Capítulo 10 – a crise que atinge o porto.
Capítulo 12 – a visita do Governador, tratado ironicamente por Sexa.
Capítulo 20 – a Associação Operária Mindelense.

 Parte III – AS-ÁGUAS


Capítulo 1 – Chiquinho dá-se conta de que já se afastou culturalmente da terra da
infância.
Capítulo 8 – o tio Joca tenta demover Chiquinho de seguir a carreira do
professorado; sinais de mau ano agrícola.
Capítulo 13 – grande seca, com a miséria, desolação e a morte dos alunos.
Capítulo 17 – como consequência da fome, acontece o levante de S. João, conduzido
por Chico Zepa.
Capítulo 18 – morte de Chic’Ana, devido à fome, e seu enterro.
Capítulo 19 – decisão de Chiquinho em emigrar para a América.

Chiquinho
  (antologia)

PARTE I: INFÂNCIA

CAPÍTULO 1 

Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no
Caleijão. O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita
constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha
francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba
da água do mar. Mamãe-Velha lembrava sempre com orgulho a origem honrada da
nossa casa. Pena que o meu avô tivesse morrido tão novo, sem gozar direitamente o
produto do seu trabalho.

69
E lá toda a minha gente se fixou. Ela povoou-se das imagens que enchiam o nosso
mundo. O nascimento dos meninos. O balanço da criação. O trabalho das hortas e a
fadiga de mandar a comida para os trabalhadores. A partida de Papai para a América. A
ansiedade quando chegavam cartas. Os melhoramentos a pouco e pouco introduzidos
com os dólares que recebíamos. Mamãe deslizava como uma sombra silenciosa no
tráfego da casa. Mamãe-Velha não parava, indo de um lado para outro, como se nada
pudesse fazer-se sem a sua fiscalização e os seus gritos. A minha avó só sabia querer a
sua gente descompondo.
Ao lado da casa grande, de quatro quartos, ficava a casinha desaguada, onde Mamãe
fazia a despensa, e que nos dias de chuva servia para abrigar as galinhas da criação.
Encostada à casa de moradia, ela tinha de longe, com o seu tecto rectangular, inclinado
para drenar a água, um ar de bezerro a pojar nas mamas da mãe.
A casinha desaguada era a tentação da meninência. Mamãe guardava lá o barril da
farinha-de-pau, a talisca que ficava da rala da mandioca e o peixe seco da ilha do Sal,
tão bom para se misturar na boca, mesmo cru, com a mãozada de farinha apanhada às
escondidas. Os meus dois irmãos mais novos incitavam-me às incursões na despensa.
Lela e Nanduca não mediam bem a responsabilidade que resultaria da descoberta do
delito. Por isso choravam, quasi gritando, quando eu hesitava:
— Mano Chiquinho, Mamãe não vê...
Geralmente era depois do almoço que eu me arriscava no interior da despensa.
Àquelas horas, Mamãe estava lá para dentro ocupada a escarolar a louça e a tirar o
queimado da caldeira para dar ao Baluca, um cão de guarda manhento de comida que
nem menino nascido na fraqueza da lua. Ou então ficava sentada no baú a dar pontos na
roupa e a botar chapas nas calças da meninência. Mamae-Velha, coitada, tinha depois
do almoço o seu descanso bem merecido. A casa ficava mergulhada em silêncio. É que
depois da comida vinha-lhe sempre aquela maldita dorzinha no joelho, complicada às
vezes de cãibras no osso-de-varanda, que a apoquentava, por via da sombra-de-ar ganha
havia anos, depois de uma chuvada que apanhara ao vir da Fajã. Causava mesmo
espanto entre os entendidos como aquela mofina dor no joelho só se lembrava vir depois
do jantar do meio-dia e não em outra hora. Certa ocasião Mamãe desceu com ela à Vila
a consultar o doutor. Mas este, um barbaçanas carrancudo, de olhos brancos, receitou
uma xaropagem qualquer que Mamãe-Velha fincou os pés à parede e se recusou a
tomar. Não; não tinha jeito aquilo; parecia mesmo vomitado de gato. De mais a mais,
entrava tia cabeça de uma pessoa de muita experiência, ganha no lidar da vidinha e na
criação de filhos, que dor de ossos se curasse com beberagens? Mais seguro era
socorrer-se das mèsinhas da terra, tanto mais que os doutores nunca acertaram com
remédio para sombra-de-ar. De maneira que Mamãe-Velha passou a pôr no joelho um
cozimento de malva e contra-lierva, estendido em lã de carneiro, e receitado por nhô
Luís Babá, homem antigo, de muita lábia, bonita cabeleira branca, e que fazia lembrar
aqueles velhos referidos na história de Carlos Magno
Assim, depois do jantar do meio-dia, tínhamos jazigo para as nossas aventuras na
casinha desaguada. Mal eu punha o último bocado, fazia o Pelo-Sinal e abalava para
fora com jeitos manhosos de mula-velha. Mamãe ralhava comigo:
— A Virgem Santíssima há-de te dar juízo e governo na cabeça! Pareces o cavalo de
nhô António Aninha, não pára nunca na mangedoura...
Eu saía direitinho à cancela, para dar a entender que ia ter dos camaradas da
brincadeira, mas depois deslizava encostado à parede do tapadinho, dava uma volta
debaixo da casa e entrava na despensa. Obtinha a cumplicidade de Tanha e de Pitra
Marguida com palmos de tabaco de rolo que apanhava a Mamãe. Nem sempre a
operação se fazia sem incidentes. De uma vez o Baluca denunciou-me à saída porque,

70
como lhe tivesse engatado o rabo na porta, começou a uivar com a sua voz esganiçada
de sopleta-e-fogo. Naquele dia comi uma sova de lato que me deixou o corpo talhado de
vergônteas. Mamãe pegou-me com uma indignação que lhe fazia tremer as mãos.
Furtadela só própria de menino sem eira nem beira. De mais, ela não queria que a fama
da sua casa fosse injustamente minguada na boca dos linguareiros, que só sabem nicar
na vida do próximo. Mamãe-Velha interveio em minha defesa. E foi um chover de
atenuantes sobre as minhas culpas. A minha avó só se arvorava em juiz rigoroso quando
ela mesma verificava os delitos. No resto, era um passa-culpas de olhar severo.

CAPÍTULO 7 

Algumas vezes, depois da ceia, quando Mamãe-Velha estava de maré e o seu


cabecear sonolento tardava em vir, revezava com nha Rosa Calita, e contava coisas e
loisas que tinha visto e ouvido. Serviam-lhe de pontos de referência o ano da Ventona e
a Cólera.
— Naquele ano encheram-se os cemitérios e tiveram de fazer enterros fora do
sagrado.
Ela era ainda menininha, mas tinha na lembrança os horrores daquela quadra
maldita da Cólera. Na mesma casa morriam três e quatro pessoas num dia. Não havia
lei, nem rei, nem roque. Os homens sãos tinham-se tornado verdadeiras feras sem
entranhas. Alguns, quando iam enterrar os mortos, levavam logo de uma vez os
moribundos e os sepultavam, para pouparem o trabalho de lhes irem dar terra no dia
seguinte. Assim, muita gente foi enterrada viva. Os que tinham posses fugiam da
Estância para os pontos do interior onde supunham estar mais a salvo da moléstia.
Saíam à noite, para evitarem os ardores do sol, e era uma verdadeira procissão —
homens, mulheres, crianças transidas de medo, e as sombras silenciosas dos negros com
a carga à cabeça. Muitos negros foram feitos forros então. Cheios de pavor perante a
ideia da morte, os senhores livravam-nos dos trabalhos suados nas plantações de milho e
hortas de mandioca.
Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de escravatura. Ia buscar
negros à Costa d’África para Cabo Verde, Brasil e Oeste Índia. Os escravos vinham em
três-mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos morriam e os botavam ao mar.
Mamãe-Velha ainda conheceu um escravo trazido por nhô Maninho. Falava um crioulo
arrevesado, misturado com palavras da língua dele, e todos os dias prostava-se no chão,
a matutar não se sabe em quê. Ficaram na tradição as crueldades de nhô Maninho.
Dizem até que na casa onde ele morreu há todas as noites grande arrastar de correntes e
gritos agoniados. É a alma de nhô Maninho, remorsada pelas judiarias com os negros.
Nhô Quimquim Soares era outro Senhor cruel com os escravos. Botava-lhes correntes
nos pés para o trabalho. Por qualquer coisa, dava-lhes de rebém e nas cortaduras punha
sal e pimenta. Teve um fim triste, nhô Quimquim. Certo dia, só por desaforo de corpo,
deu dois lanhos na cara a um escravo da Guiné, rapaz brioso e decidido. O negro
suportou a afronta em silêncio, mas à noite, em companhia de outros negros, entrou
feito um leão no quarto do senhor e amarrou-o. Levaram nhô Quimquim para o fundo
da Tabuga, abriram uma grande cova, e ali o enterraram vivo. Mas de uma maneira
geral, os escravos eram tratados quási como família. Tinham as suas festas, e era um
gosto vê-los nas danças. Sua grande festa era a Páscoa do Espírito Santo. Nesse dia
tinham liberdade. Saíam em procissão, mas tudo com governo: havia reis, rainhas,
pajens. À frente, ia o meirão com a vela encruzada ao vento, segurada por uma linha a

71
servir de escota. À noite os negros iam foliar para casa de nhô João Tomé, na Ladeira,
onde dançavam lundu e outras danças trazidas da Costa d’África. Mamãi-velha gostava
de entoar na sua voz tremida uma dessas músicas de outros tempos, muito arrastada, que
os negros cantavam com palavras que ninguém da ilha entendia:
Malé, malé; malé combá lêlé
assim malé, malé;
assim combá samba lélé;
assim combá samba lêtán...
Quando chegou a S. Nicolau a lei que alforriava os negros, houve grande festa na
escravatura. Jireco, negro de nhô Miguel Lopes, foi à casa do senhor quando lhe deram
alforria:
— Senhõ, já tenho a minha liberdade...
— Para que queres a liberdade, Jireco?
— Para ir beber vinho de palma à minha terra, nhônhô.
Nesse mesmo dia Jireco apanhou grande bebedeira e queria trocar a alforria por uma
garrafa de grogue. Levantou um funco no Caleijão e lá morreu miserável tempos depois,
à míngua. Alguns negros forros prosperaram com as encomendas mandadas da América
pelos filhos emigrantes. O velho Nhenhano Bandeira, hoje mestre-de-tenda e dono de
trapiche, era escravo de nhô António Sabina.
— No tempo do Dr. Júlio apareceram pateados na terra. Eram encantados que
tinham pacto com aquele-homem. Em noites de luar desembarcavam na Praínha, de
galeras que ninguém podia ver, vindos de ilhas que ficam muito longe, no meio do mar.
Passavam pela Vila em cavalgadas ruidosas, com grande cantarola, mas nenhum filho-
de-parida tinha ânimo de abrir a porta para espiar. Subiam a ladeira do Cachaço e
dirigiam-se à Cintinha. Referia o povo que chegavam à rocha da Cintinha e diziam:
— Sésamo, abre-te!
Abria-se a rocha e lá dentro era uma boniteza de endoidecer. Um grande palácio,
armado de ricas mobílias. Mesas cobertas das toalhas mais finas. Comidas da melhor
qualidade. Luzes por todos os cantos. Músicas que levantavam a alma da criatura, tão
bonitas como as da Igreja, no Sábado-Santo, depois da Aleluia. Um ou outro mais
destemido que se afoitava a ir sindicar mão via nada, não ouvia nada. Mas, chegado à
Cintinha, era um esmorecimento no corpo, uma turvação na vista, nem que o mundo
estivesse acabando. E por dias ficava crã, simples, como se a alma lhe tivesse fugido do
corpo e a graça do Senhor o houvesse abandonado.
O que Mamãe-Velha não conhecia, ou não queria dizer, eram as misérias que
tinham levado a maldade dos homens a inventar a lenda dos encantados. Isto — só mais
tarde vim saber.
Havia ainda os casos dos piratas. Não eram do tempo de Mamãe-Velha. Ela ouvira-
os referir às pessoas antigas. Os piratas vinham em navios muito veleiros, autênticos
cavalos do mar. Quando sabiam que havia forte, ficavam lá fora a bordejar, à espera da
noite. Assim que vinha o betume da negrura, caíam sobre as povoações, e era uma
grande desgraça. A gente da costa vivia em constante sobressalto. Por isso, quási todos
se fixavam no interior, confiados na defesa das rochas temerosas.
— Raça maldita, a dos cartajanas...
Estas histórias da ilha impressionavam-me profundamente. Era a vida da minha terra
que ressurgia para mim nas palavras pausadas de Mamãe-Velha. E delas desprendia-se
este não se sabe o quê que a pouco e pouco ia formando a minha alma de crioulo.

72
CAPÍTULO 19 

Chegaram navios baleeiros na terra. Correu logo a notícia. Navio-de-baleia era


fartura para a ilha. Os rapazes alvoroçaram-se, porque todos tinham vontade de ser
recrutados. Começaram a chover pedidos aos encarregados do engajamento, pois o
número de tripulantes de que os navios careciam era menor do que o dos pretendentes.
Desembarcaram para ver a família muitos rapazes que faziam parte das tripulações. Mas
não eram rodeados da admiração que cercava os americanos de verdade, que voltavam
das fábricas e plantações da América com a algibeira pesada de dólares. Rapaz-de-
baleia não traz dinheiro. Trabalha para os outros. Meses e meses nas pescarias do mar
do sul e quando regressam à América recebem um pataco furado.
Fomos chaleirar o recrutamento, que se fazia na Administração do Concelho. O
encarregado era assistido por dois homens de bordo, um deles de olhos muito brancos.
Ele distribuía os rapazes pelos barcos:
— Este é para a barca “Wanderer”. Você vai para a “Morgan”.
Lembro-me ainda da cara triste de Antoninho de nh’Ana Lanta, por não ter
encontrado lugar. Era condenado a continuar a vida no rabo da enxada. Tive pena das
suas calças rotas, que já não tinham onde pegar remendo. Antoninho e os outros
recusados tinham de continuar a ganhar três tostões por dia, puxando nas hortas.
De-tardinha, Tói Mulato contou-nos maravilhas dos navios-de-baleia. Até Joquinha
Cuscús, o malandro, ficava preso na narração de Tói.
— Oh rapaz, lá tem um grandão que é um mundo de navio...
— Foste a bordo?
— Não me deixaram. Eu bem queria ir, e pedi a um rapaz de bote.
—Tens lá algum parente?—disse-me ele.
— Não, é só para ver.
— Então vai ver a tua avó. Navio não é brincadeira de menino. Zanguei-me, mas ele
ficou a rir.
— Dizem que os navios trazem no cocuruto dos mastros as almas dos capitães que
morreram...
Tói Mulato:
— Eu quando for grande, serei capitão de navio. Quando eu morrer a minha alma
ficará espiando do alto dos mastaréus.
— E depois? Continuarás sempre espiando dos mastros? Não poderás aguentar o
frio...
— Não me importa o frio. Ficarei lá para ensinar o caminho aos outros.
— Eu prefiro embarcar numa estrela...
— O navio de purgueira que nhô Chic’Ana me vai dar será chamado “Estrela da
Manhã”.
— O mar é uma horta sem morouços...
— Totone Menga-Menga é que disse...
— Pedi a Dinha Lua uma casa grande como o Morro Bissau...
— E eu uma noiva bonita para me casar quando for grande…
— Eu pedi uma varinha-de-condão para me dar toda qualidade de coisas...
Toi Mulato:
— E eu um navio grande como a barca “Wanderer”, para eu navegar...
— E se tu morreres?
— Minha alma ficará ensinando o caminho...

73
— Nhô João Joana disse que não é a agulha que mostra o caminho, mas a alma dos
capitães que segreda ao homem do leme: “para a direita, para a esquerda”...
Tói Mulato era assim. Quando vinham navios grandes fugia à sua dona e ia à
Preguiça. Era sova certa de nha Totona quando voltasse, mas Tói não se importava. Nas
nossas reuniões não vinham então à conversa os casos que ordinariamente nos
entretinham. Ficavam para trás os exemplos de nha Rosa Calita. Ela sabia contar-nos os
dramas e as comédias das pessoas que vivem apegadas à terra. Filhas de rei, príncipes à
procura da noiva, herois de guerra, tudo era gente que pisava o mesmo chão que nós
pisávamos. Conversávamos com eles na intimidade do nosso dia-a-dia. Quando Tói
Mulato vinha da Preguiça, os navios que ele vira passavam a nossa cabeça. Era um
mundo desconhecido que caminhava ao nosso encontro e que nós não podíamos reter e
prender na nossa experiência. A reportagem de Tói Mulato enchia de mistérios a nossa
vida. As estrelas da noite eram navios que navegavam havia longos séculos, para nos
virem buscar. A Estrada de Santiago, um barco muito branco da forma de um caixão,
enfeitado de galões dourados, para enterrar aqueles que morriam de fome. E de
manhãzinha, o sol era um velho papai remoçado que vinha num navio iluminado de
fogo para nos levar para a América.

CAPÍTULO 20 

Chico Zepa, trancador da barca “Wanderer”, veio ao Caleijão visitar a mãe. Todo o
mundo foi salvar Chico. Ele falava muito, dando gargalhadas altas. A todo o momento
metia palavras americanas na conversa. Chico Zepa fez uma grande festa a nhô Roberto
que lhe pediu o avacote que Chico lhe tinha prometido.
— Está a bordo...
— Com certeza? Olha que sempre faltaste no estreito ao que prometeste no largo..
— Juro! Nha Guida, como está? e nhá Iria, nhô Luiz, toda aquela velhada?
— Rebolando...
Para nha Tudinha:
— Vi seu filho em Providence Rhode Island. Está bom. Parece que vem em
Outubro.
Nhô João Joana informou-se da América:
— Ainda tem light ship à entrada de Betfete?
— Ainda. Mas agora governo mandou pôr uma bóia de sino perto do Stream, you
know...
— Quando eu assistia por aquelas paragens, era preciso olho muito aberto. Mas
nunca me aconteceu nada, porque o capitão Luiz conhecia toda a costa como a palma
das suas mãos.
— Aquilo hoje está muito mudado... Há quanto tempo você esteve por lá, nhô João?
— Há anos como areia, rapaz. Com certeza ainda não eras nascido...
— Oh Gee...
Dei as mantenhas da casa e perguntei notícias do meu pai. Ganhei uma grande
admiração pelos modos desembaraçados de Chico Zepa, que lhe davam superioridade
sobre os outros rapazes. O que eu sabia da sua infância confirmava esse prestígio que o
distinguia dos moços de enxada. Chico não queria saber de disciplinas. Não aturava
desaforos. Luta em que entrasse, era dele a vitória. Dizia sempre que não estava
disposto a consumir a vida ganhando cinco reis no rabo da enxada. Aproveitou a
primeira oportunidade, e anos atrás embarcara na barca «Wanderer».

74
Mas Chico perdeu o barco. Os seus amores com Antónia Bia prenderam-no no
Caleijão, e quando chegou à Preguiça já o seu navio tinha montado a Ponta da
Vermelharia. Tempos depois descalçou-se. Mas todos diziam que ele continuava o
mesmo refilão de sempre, que nem respeitava a barba-cara dos velhos. E depois, ele
tinha umas coisas que passavam a cabeça dos outros. Descompunha a enxada, e dizia
que não estava para ser escravo, que não tinha raça de negro. Quando condescendia em
dar um dia de trabalho, quási nada fazia na horta. Dava uma enxadada e punha-se de pé
a chacotear.
Para nós os meninos, Chico Zepa não conhecia canseira. Passava tempo esquecido
connosco, como se falasse a gente grande. Dizia-nos:
— Quem não saíu daqui não sabe o que é mundo. Eu não fico. Dou um salto em S.
Vicente e embarco fugido em qualquer vapor...
Mas o vapor de Chico Zepa não chegava nunca. Continuava naquela vida de
malandro da Agua-do-Canal, contando as pedras da Combota e espiando o mar ao
longe. Quando precisava de dinheiro para cigarros, ia dar um dia de trabalho. A mãe
descompunha-o:
— Não sei a quem esse moço saiu... A mim não, que vou levando a vida consoante
Deus é servido; o pai também não, que era um burro de trabalho...
Chico quási que só se dava com a meninência. Os outros rapazes faziam pouca
farinha com ele. Chico tinha lábia e sabia engodar as namoradas dos outros. E a quási
todas foi pondo no peito.
O certo é que ele nos tocava de uma maneira diferente. Todos nós nos criávamos
embalados nas histórias de cavaleiros que, pela sua honra e pela sua fé, saem a correr
mundo, combatendo a toda a hora. Sonhávamo-nos heróis de espada desembainhada. A
sugestão das conversas de Chico Zepa prometia-nos uma vida cheia de aventuras, de
lances arriscados, de lutas pela defesa não sabíamos ao certo de quê. Contanto que
exercitássemos aquela porção de generosidade que fremia na epiderme da nossa alma.
Quando eu via os outros, Antoninho Bia, Pedro Xamento, Mané Péta, presos nas hortas,
a lombar no duro, considerava-os seres inferiores. Por que não eram como Chico Zepa,
que não queria ser criado de ninguém? Por isso tomávamos partido por ele. E quando
furtávamos um palmo de tabaco de rolo, era para o cigarro de palha de milho de Chico
Zepa.

  

CAPÍTULO 30 

Pela cara que levava, o ano seria de fome. Eu devia andar pelos meus catorze anos, e
não me lembrava de ver tanta miséria estampada na cara de todo o mundo. Sempre
havia falta. Passado o mês de Fevereiro, era niclitar conforme fosse possível. Os leios
de milho e os balaios de feijão quási nunca botavam fora o tempo seco. A criatura tinha
de apertar o cordel na cintura e arranjar coragem para encarar o tempo, muito feliz se
pudesse ter uma reserva para os meses das as-águas, enquanto a favinha-inglesa não
pintava.
O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa Senhora da Lapa, esteve
sem um pingo de água. Com o mês de Outubro nem contar, que chuva nele é rara como
ambargrise.
[…]
Um dia chegou pedindo esmola um velho que não conhecíamos. Não tinha nada o ar
de pedinchão de nhô José Catrina. Havia dignidade nos seus olhos sérios.

75
— Donde é você, velho?
— Sou da Ribeira dos Calhaus, irmão.
— Porquê você veio de tão longe?
— Falta é que está obrigando...
— Você sente-se e descanse. Está com cara de cansado.
Mamãe mandou Tanha trazer-lhe uma chícara de café. O velho encarou em Mamãe-
Velha:
— Estou pensando que conheço você...
— De onde, irmão?
— Você não é parente daquela gente de nha Rosa Maria Antiga, da Ribeira dos
Calhaus?
— Sou, sim...
— Está-se vendo. A cara não perde...
— Seu nome, velho...
— Sou Joaquim Naninho, da nação de Gaída Branca, você não conhece?
— Conheço, conheço, velho... Gente direita e com quê de seu... Mas então?
O velho abriu os braços desconsoladamente:
— Aqui onde me vê, sempre estes braços é que foram o meu sustento. Ainda este
ano, apesar de fraco, semeei as minhas hortinhas. Mas o que colhetei outrano não me
botou fora o mês de Maio, e neste ano nem é bom falar... Acabou toda a esperança.
Agora estou no braço da caridade. Parece que Deus se esqueceu de me vir buscar...
— Você é só?
— Tenho dois filhos que embarcaram faz muito tempo, mas nunca mais deram
notícia. Penso que morreram.
— Quem sabe, irmão? De um dia para outro são capazes de aparecer…
O velho levantou para o céu um olhar carregado de esperanças.

CAPÍTULO 31 

Passei cinco anos estudando no Seminário as matérias do liceu. Estava com o 5.°
ano. Latim, História, Geografia, Ciências Naturais, tudo isto procurava iniciar-me nos
segredos da vida que homens que eu não conhecia criavam fora das pontas e dos rifes da
minha ilha. Fui descobrindo que o mundo não se limitava ao universo de nha Rosa
Calita e à lenda misteriosa do velho Totone Menga-Menga. Mas continuava
extraordinário o seu poder de atracção. O Chiquinho que a cultura liceal ia modelando
não era substancialmente diferente daquele que namorava as estrelas, pedia varinhas-de-
condão à lua e desejava ter o braço tatuado, como nhô João Joana. Eu era matéria
plástica que se submetia a todas as experiências. E todas iam-me deixando seu depósito
de sabedoria e perversão.
O amor, para mim, não passava ainda do apelo físico das Pimpinha e Nina Zepa, que
namorei. Meu coração era como a menina de cabelos cor de luar que, na história de nha
Rosa Calita, jazia adormecida à espera do príncipe andante que a iria acordar num dia
em que as chuvas caíssem em cordas nutridas, à semelhança de punho de homem, e os
trovões estivessem estalando grosso, que nem as trombetas do fim do mundo.
Agora eu seguiria para S. Vicente estudar o 6º e o 7° ano no Liceu. Papai deu ordem
e Mamãe e Mamãe-Velha concordaram. Era justo aproveitar a minha boa cabeça. Em S.
Vicente ficaria em casa de uma nha Cidália em quem nunca tinha ouvido falar. Mamãe-

76
Velha disse, com o seu abundante recheio de autem genuit, que nós ainda éramos
parentes.
Ficavam-me para trás os campos em que me criei e os companheiros da minha
infância. Mas tinha vontade de conhecer S. Vicente. Era a ilha que eu sentia da Praia
Branca, quando estive com meu tio, para além da cintura do mar. S. Vicente era para
mim a terra em que a civilização do mundo passa em desfile. Estava farto de ouvir falar
no Porto Grande, no seu movimento, nos vapores de trânsito, nas imagens da Europa
que passeiam pela cidade. Queria ver o mundo. Eu não sentia o ímpeto inquieto de
Chico Zepa, de embarcar fugido num vapor, para percorrer os quatro cantos do mar,
mas possuía espírito de aventura suficiente para ir até S. Vicente. De lá adivinhava o
que o mar escondia aos meus olhos e podia ouvir a voz da minha gente, chamando-me.

PARTE II: S. VICENTE

CAPÍTULO 3 

Entrei em contacto com o grupo de que Andrèzinho me falara. O programa era


ambicioso e seduziu-me pelo que revelava de insatisfação e desejo de evasão das
realidades circunstantes. Ele despertava em mim o Chiquinho que em S. Nicolau
sonhava com aventuras longínquas por esses mares e terras de Cristo, lutando com
gigantes, e tomava partido por Chico Zepa, o marinheiro. O programa do Grémio
Cultural Caboverdeano afagava esse apelo do desconhecido que enchia de prestígio
tudo o que excedia a minha experiência. E depois, Andrèzinho, que o redigira,
encontrou expressões magníficas que acabaram de me conquistar. Para ele, os nossos
problemas tinham uma tonalidade específica, que resultava do “cerco atlântico” e do
“drama ancestral da formação étnica”. O que se impunha era reorganizar completamente
a nossa vida, de harmonia com as nossas peculiaridades. Na vida administrativa. Na
estrutura social. Na arte. A obra do Grémio era, assim, de profunda renovação:
renovação de métodos e programas administrativos, renovação de atitudes espirituais
que garantissem a expressão particular, e ao mesmo tempo humana, dos nossos
problemas. Andrèzinho deu a fórmula: enquadramento do nosso caso nas aspirações,
sempre as mesmas, sob qualquer latitude, da alma humana.
O meu amigo tinha o segredo das expressões incisivas, lapidadas em recorte
nervoso. Poucos anos mais novo do que ele, eu sentia contudo que a sua inteligência era
já adulta. Por isso, os camaradas lhe chamavam o “Erudito”. Era vê-lo, de gestos
sacudidos e bruscos, expondo as linhas da nossa acção.
Andrèzinho já tinha o 7º ano, feito no ano anterior. Mas passava a vida no Liceu. A
ideia da organização do Grémio veio-lhe da camaradagem com condiscípulos mais
novos no curso. A minha admiração pelas fórmulas recortadas do “Erudito” assegurou-
me lugar no Grémio. Demais, eu representava uma ilha que, no dizer de Andrèzinho, era
um “um caso sério” dentro do Arquipélago.
— Sim, Chiquinho, aquilo é gente que tem o sentimento da duração. Gente sólida,
equilibrada... Heróis da vidinha miúda de todos os dias…
Andrèzinho fez-me conhecer melhor a minha ilha. Cenas que eu tinha presenciado,
dramas que me haviam impressionado, tudo isto adquiria agora um significado, que a
interpretação do meu camarada tornava claro para mim. Fiquei vendo na minha ilha um
vasto laboratório de experiências humanas. Gente que não cede ao desânimo, desejo
imperioso de defesa, quaisquer que sejam os resultados do esforço. Sobre tudo isto,
77
prementes evasões para o sonho, para a distância, para destinos desconhecidos, que o
mar oferece sempre na curva azul e inconstante das suas águas. Resistência moral. Que
outro nome podia ter a fé da minha gente semeando, ressemeando sempre? A luta contra
as indicações do Lunário, contra o bicho-de-chão, que dá cabo do milho de dois
coquinhos, contra a falta de chuva em Outubro, a lestada, o mau clima do tempo. A luta
de Chico Zepa, o marinheiro, contra o destino, que não o deixava embarcar para S.
Vicente e ali fugir a bordo de qualquer vapor para essas terras longe que para sempre o
tinham roubado à enxada. Nhô João Joana de braços tatuados. No braço direito uma
rapariga de longos cabelos, que lhe oferecia, no olhar quebrado e langue, as delícias de
um amor que não acaba nunca. E vovô morto tão novo a bordo da galera que o trazia
para Cabo Verde. Mamãe-Velha devia tê-lo querido muito, vovô com os seus olhos
enérgicos, sua pele mate, seus cabelos de indiano, que agora só a moça-do-mar afaga
em longas horas de um amor quási enervante. Como vovô devia gostar de voltar cá para
cima, para o convés do seu navio, e pescar baleias, lutar contra as surpresas da flor da
água e dominar, com a sua jovem coragem, temporais, ciclones, ventos desencadeados!
Eu tinha mais três camaradas no Grémio. Nonó, filho da Boa-Vista, era o poeta
lírico do grupo. As mornas que ele compunha não tinham o sainete atrevido e saltitante
das canções da sua terra. Era sempre uma história de amores tímidos, desesperos
silenciosos, pasmos contemplativos perante a morabeza[1] e a graça branda da crecheu[2].
Muitas vezes, no meio de uma conversa, Nonó largava tudo e seguia a serenata que
passava, com o seu toque de violão, em cujos segredos Frank Beleza o tinha iniciado.
Humberto Tavares era o especialista das questões sociais, na medida em que
qualquer actividade não contendesse com o seu sólido bom-humor e a sua insolente
alegria de viver. Alcides, da Praia, não tinha função definida no Grémio. Era apenas
Cara-Bonita, o ai-Jesus das raparigas do Liceu, que gostavam dos seus olhos ausentes,
sua bela face de crioulo moço, seus cabelos ondulados. Agora Alce estava querendo
Maninha. Crecheu platónico, sem a lúbrica realidade dos namoros de Humberto.
No meu curso do 6° ano encontrei um rapaz que me impressionou profundamente.
Manuel de Brito morava no Monte Sossego. Era o mais pobre de todos nós. Alto como
um pé de coqueiro, as calças ficavam-lhe muitas vezes a meia-canela. Era o jeito que a
mãe, nha Noca, dava ao problema de vestir o filho para ir ao Liceu beber a prenda.
— Parafuso, podes dar-me uma ajuda?
Era sempre um camarada do curso, ou então os alunos dos anos mais atrasados, com
o texto de Cornélio ou Virgílio, ou a retroversão, a necessitarem de intervenção urgente
de entendido. Manuel era o latinista que estudava em livros emprestados. Parafuso. Este
nome veio-lhe da sua linha física, com certeza. Parafuso, feito Galalão, a torcer lanças
em lutas pacíficas contra as surpresas da gramática e da com posição latina.

CAPÍTULO 10 

A crise estava apertando. Havia dias em que não entrava um vapor no porto. E
quando entrava, era quase sempre vapor de óleo, que não deixava nada. Nha Cidália
nunca vira coisa assim.
— S. Vicente está uma saudade. Antigamente esta terra tinha movimento... Alzira,
ouviste falar da Guerra do Transval... Oh rapaz, as libras andavam atrás da gente... Não
sei como se está vivendo nesta terra. Cá em casa, o que vale é a mesada que Eusébio
manda, senão tínhamos de sair pedindo por caridade.
Lembrava os bons tempos em que só com o serviço da costura sustentava a casa.

78
— Hoje nem um vestido se aparece para a gente coser... Parece que todo o mundo
anda nu...
Tia Alzira:
— Se eu não fosse casada, saía para qualquer parte. Ia, por exemplo, para a
Argentina, para donde Eusébio...
— Casada? Podes dizer que és casada? Estás é amarrada a um pau bichado. O que é
que o casamento te tem rendido?
— Nada absolutamente...
— Estás vendo... Nunca gostei da cara daquele ranhoso. Não sei por que não tratas
do divórcio. Vai ter com advogado, já te tenho dito tantas e tantas vezes...
— Divórcio é coisa feia, mana; demais não sei direitamente onde Amâncio mora
hoje.
— Não tem importância. Dizem que estando o marido ausente não é preciso ele dar
assinatura no divórcio. Ana de Brito ganhou o divórcio assim. Terias a tua liberdade.
Não é que nos estejas pesando, bem sabes que não. Mas é triste ver uma pessoa sem
uma esperança na vida. Ainda és nova, apesar de estares amarrada há tantos anos àquele
ranhoso...
Andrèzinho escreve. Os óculos dão-lhe um ar de pessoa velha. Nha Cidália
repreende:
— Já te disse tantas e tantas vezes que faz mal estar escrevendo depois da comida.
E, depois, sabes que a tua vista não é muito católica...
— Você largue-me da mão, mamã; você não pode deixar uma pessoa trabalhar com
sossego?
— Pensas que já não sei açoitar de lato, atrevido? Deixa estar que qualquer dia te
ponho na ordem...
— Deixe-o, por favor, está escrevendo para o jornal...
— Ainda vocês estão com essa ideia do jornal? Para quê jornal, Chiquinho?
— Serve para muito... A gente defende os interesses da terra. É sempre uma força...
— Agora é força... No tempo do Sr. Augusto Ferro não havia jornal, mas esta terra
conseguia tudo o que queria. E ele não tinha mais que 2° grau. Vocês aprendem hoje
tanta coisa, e no cabo não servem para nada. Eles não falavam tanto, davam uma saltada
em Lisboa e arranjavam as coisas lá na fonte...
— Havia dinheiro então. Hoje ninguém poderia fazer o mesmo.
— Isto é verdade, muitas vezes penso que futuro vocês poderão ter...
— Chiquinho, larga as donas da mão e escreve o teu artigo... Lembra-te de que
precisamos reunir os originais para a Tipografia.
Tia Alzira gosta de jornais. Nos primeiros tempos de casada Amâncio mandava-lhe
jornais americanos ilustrados. Havia umas figuras muito engraçadas. Nha Antoninha
Leite é que lhe traduzia as legendas.
Agora faço questão de publicar o poema que fiz a Nuninha. Ela é que me pediu.
Andrèzinho torceu o nariz:
— Isto é uma poesia feita a uma mulher de imaginação! Já vos disse que vocês
precisam, aterrar, dar o ambiente...
No Grémio, depois de um drink, pegou nervosamente de uma tira de papel e
escreveu um sumário para poemas:
— Estamos fartos de ouvir cantar a beleza abstracta nestes rochedos de seca e fome!
Dou-vos material, vocês realizem!
Humberto e Nonó aparecem para a cópia. Nha Cidália:
— Oh rapazes, para quê tanto escrever? Não vale a pena, vocês não melhoram a
situação desta terra. Dali a dez anos não haverá gente aqui...

79
— Mamã, você está pior que Jeremias...
Nha Cidália não sabia quem era Jeremias.
— Só conheci um, Jeremias Profeta Lopes, moço de S. Nicolau, que era um futra na
guitarra, lembras-te, Alzira?
Quando soube o que era, ripostou:
— Mas é o que tu andas sempre a dizer, filho...
— Eu digo certas coisas, ou por outra, não sou eu; apenas dou a reacção da minha
inteligência perante o nosso caso. Sou uma retorta em que se dão determinadas
reacções, com certos e determinados reagentes...
— Não te entendo, dizes coisas, parece que é uma alma que está falando em ti...
— Nem você pode entender...
— Isto agora é moda nova... A mãe não pode entender os filhos... No meu tempo
não era assim...
— Escute, mamã, é que nós os novos pertencemos a um mundo diferente. Vocé, a
Tia Alzira e também Nuninha são de outro mundo...
— Isto é muito engraçado... Eu não sabia que nós já tínhamos morrido...
— É isso mesmo! Vocês já morreram... Mas deixe-me escrever, por favor...
— E Eusébio, também morreu?
— Não, papai é um herói...

  

CAPÍTULO 12 

— O homem chega amanhã...


— O homem? Qual homem?
— Deves ser a única pessoa que não sabe quem é; Sexa, rapaz...
— Vens logo dizer “o homem”... Não adivinho...
— Eu era capaz até de dizer que não te interessa a chegada de Sexa...
— Interesse imediato não vejo...
— Pois interessa — e no mais alto ponto…
Andrèzinho concerta os óculos. Há uma ideia que o persegue desde que se falou da
vinda do novo governador a S. Vicente.
— Estou pensando em o grupo promover uma conferência com o Governador. Será
a “jornada da mocidade”. Precisamos ir em peso manifestar-lhe a nossa vontade de
viver. Gritar-lhe até, se ele for surdo...
— Com que elementos contaríamos?
— Ora essa! Mas com a gente do Liceu! E necessário arrancar esta malta da
indiferença em que vive por coisas que interessam profundamente ao seu destino.
 
A chegada do novo governador alvoroçou a cidade. Vem da Praia, para onde seguiu
da Metrópole a tomar posse do cargo. Depositam-se em Sexa as esperanças de Mindelo,
no sentido de se debelar a crise.
No Central, as conversas fervem. Pelas mesas, grupos bebem. Joga-se bilhar chinês.
Na parede fronteira, um edital convida a população para o desembarque de S. Exª o
Governador, que vem “animado dos melhores propósitos e conta com o apoio seguro da
Metrópole para uma rasgada política de fomento em prol da Província”. Engraxadores
entram no Central à procura de fregueses.
O velho Cecílio Firmino abana a cabeça perante os dizeres do edital:

80
— Foi sempre assim, rapazes. Desde que me conheço, todos vêm com as melhores
intenções de trabalhar. Mas a verdade è que Las Palmas e Dakar nos tomaram a
dianteira...
Alguém pregunta:
Mas um programa definido do que é preciso fazer?
— O mal não vem da falta de programas. Todos têm dado a sua opinião sobre o
porto…
Há um que defende calorosamente o Plano João de Almeida:
— Mindelo transformava-se numaa base naval e de trânsito formidável... Vocês
estão a ver o que seria isto fortificado? João Ribeiro, o Ilhéu e o Morro Branco tapavam
a entrada. Sem falar que aumentaria a afluência de ingleses: à Inglaterra convinha ter
uma base amiga, numa posição estratégica admirável, para a sua política no Atlântico...
E os ingleses são libras correndo...
— Estou pensando que ponto-de-partida magnífico isto não seria para, uma política
pan-lusa no sul-atlântico. A posição geográfica, a meio caminho entre a Europa e a
África e a América do Sul…
— Aí vem você com a posição geográfica! Isto é já uma cantiga muito estafada...
Onde está a posição geográfica especial de Dakar? E, no entanto, a navegação aflui e
aquilo tem vida...
— Vida própria que nós não podemos ter. Dakar tem movimento de exportação…
— Não. O Plano João de Almeida peca por grandioso de mais. Não temos dinheiro
para tanto. Se a minha opinião fosse pedida, eu apresentaria bases mais modestas, mas
mais viáveis. Supressão pura e simples das mil taxas e alcavalas que pesam sobre a
navegação. Livre concorrência para o estabelecimento de depósitos de carvão e óleo.
Repressão da mendicidade, afastando dos olhos dos estrangeiros a multidão que os
assalta pedinchando, mal desembarcam. Para tanto, criavam-se receitas especiais à
câmara para albergues, recolhimentos e uma maternidade.
O Sr. Cecílio Firmino continua a abanar a cabeça:
— Quando vem um governador, vou invariavelmente deixar-lhe o meu cartão. Se
ele me parece de boa cara, peço-lhe uma conferência e digo-lhe o que penso cá dentro.
Sai-lhe por um ouvido o que lhe entrou pelo outro? Não me interessa. Durmo o meu
sono sossegado, porque cumpri o meu dever. Lá diz a Bíblia: eles têm ouvidos e não
ouvem... Não tenho a culpa quando são surdos...
 
S. Vicente tinha de fazer ao governador uma recepção que o impressionasse bem e
lhe fizesse ver a importância capital do Porto Grande na vida económica e financeira do
arquipélago.
— Deixá-los falar: nunca deu certo a política de afastamento que em outros tempos
foi adoptada relativamente aos governadores.
As coisas tinham mudado – e a valer. Por que é que a Praia conseguia tudo? E que
ela é mais diplomata. Faz a corte aos governadores. Lá Sexa sente-se verdadeiramente o
chefe, a cabeça que manda e a mão que dispõe. Lá vai-se ao palácio. S. Vicente
precisava pôr debaixo de uma pedra aquele orgulho de fidalgo arruinado que indispunha
todos os governadores. Era preciso receber Sexa condignamente. Atraí-lo. Era de boa
política. É claro que isto não excluía uma exposição enérgica de verdades sobre os
males que afligiam S. Vicente. Tudo tem a sua medida. Receber o governador
condignamente, sem dúvida, mas também, embora com o devido respeito, falar-lhe de
cabeça levantada sobre as medidas que as circunstâncias urgentemente exigiam.
O programa girava à volta do problema do Porto Grande. Resolvido este, o
problema geral do arquipélago estava quási solucionado.

81
— Lá o disse o Dr. João Augusto Martins: o Porto Grande é o pulmão por onde
Cabo Verde respira...
— Belo livro esse... Como “Madeira, Cabo Verde e Guiné”, ainda nenhum outro
caboverdeano escreveu. Lá tem um capítulo sobre governadores e governantes, que é
um monumento da actualidade...
O Sr. Manuel Abrantes conheceu o Dr. Martins. Feio como um macaco, mas muito
interessante...
— E republicano histórico. O seu cadáver foi velado em Lisboa, na redacção da
“Lucta”.
Discutiu-se que discurso conviria fazer ao governador no dia seguinte, na Câmara
Municipal. Devia ser um discurso recheado de factos, pondo todos os pontos nos i.i.
Sexa devia ver logo de entrada que havia muito por onde pegar. O Sr. Cecílio Firmino:
— Muita falta nos faz nesta conjuntura o Rebelo de Oliveira. Oh rapazes, se
ouvissem o discurso que ele fez quando Joaquim Nabuco passou em S. Vicente...
O velho assistiu ao banquete que o cônsul brasileiro ofereceu a Nabuco e comitiva.
— Belo começo que ele teve: “Eu, talvez neto de escravos, curvo-me reverente e
beijo as mãos do redentor da minha raça!” Nabuco estava empolgado. Parecia
hipnotizado pelo discurso. No fim estava ele em frente de Rebelo, recebendo na cara as
rajadas...
— É que Nabuco era surdo, homem...

CAPÍTULO 20 

A Associação Operária Mindelense renasceu. Os delegados das companhias


acudiram pressurosamente ao nosso apelo. Zeca Araújo foi perfeito. Visitou os
capatazes e expôs-lhes o assunto. Depois nos confessou que meteu coisas por sua conta
e risco.
— Para maior facilidade, disse-lhes que é uma medida geral para todas as ilhas.
Baixou lei da Praia determinando que todo operário se unisse, pois o governo quere
entrar directamente em contacto com as suas necessidades.
—Você não devia ter mentido, Zeca. Nós lutamos só com a verdade...
— Ora essa! Verdade ou mentira que foi ordem do governo, não é ajuntar essa gente
que vocês querem? Vê-se bem que vocês não têm prática da vida... No fim é o mesmo...
E deixe-me dizer-vos que a minha ideia deu um resultadão. Vocês sabem, nestas coisas
o melhor é a gente meter o governo. Ele é que manda....
— De acordo. Mas a ideia é nossa... Você precisava ter-lhes frisado que a mocidade
das escolas não está divorciada da vida e tem a consciência dos seus deveres.
— Deixa estar que também toquei este disco. Eu disse-lhes: “Tem aí agora uns
rapazes do Liceu que pensam em vocês. Com eles é que devem falar. Governo
encarregou-os de tratar deste assunto”. Tanto que os delegados vieram ter de vocês...
— Não aceitamos os seus processos, Zeca. Bem, mas você conseguiu o que
queríamos. Vai agora uma groguinha?
—Titio não nega...
—Vá lá, que você tem algumas qualidades...
— É deveras... Agora titio quere a patrícia...
 
Mestre Ambrósio não quis ser nada na Associação:

82
— Espírito está em toda a parte... Não preciso sentar-me na cadeira para eu estar de
alma e coração com os meus irmãos...
— Mas você também trabalhou muito, contribuiu imenso para que a Associação se
levantasse...
— Não faz mal. Quando espírito está presente, eu estou, tu estás, ele está, nós todos
estamos...
Foi Mestre Ambrósio que espalhou a ideia entre os trabalhadores da terra. Zeca
Araújo ofereceu os seus serviços.
— Tratarei da escrita na loja da Cooperativa...
Entrava nos nossos planos a Associação ter uma loja para vender géneros de
primeira necessidade aos associados, pelo custo e despesa.
Sentíamos sangue novo nas veias. Andrèzinho:
— Amanhã, quando pedirem contas à nossa geração, ela pode apresentar esta verba
no activo.
A ideia de fazer ingressar os pequenos nego dantes da baía foi minha. Castanha foi o
nosso intermediário.
— Castanha, que pensam os bumboatmen acerca da sua situação?
— Nada... De resto não há vapores, não há bumboatmen
— Mas vocês reunidos teriam mais força...
— Ora! A nossa força não chama a navegação para o porto…
— Não é tanto assim. Isolados é que nada podem fazer...
— Podemos fazer como os macacos: tapar os buracos e ir ao fundo... Ainda assim,
talvez seja melhor...
Mas José Castanha comprometeu-se. Ficou de falar com os companheiros. Não
tinha, porém, nenhum entusiasmo.
— Vocês desculpem, mas parece-me que isto não dá nada, já vi muita coisa nesta
terra. Aqui é cada um por si, Deus por todos. Todos faltam no estreito ao que
prometeram no largo... Vou trabalhar para vocês. Mas não aqueço muito isto. Qualquer
dia dou um pontapé em tudo e voa para Dakar.
— Então sempre pegou aquela proposta que você fez a Luísa...
— Qual pegar! Ela o que é, é uma soberbona e uma sovina. Lá por ter algum
dinheirinho ganho com o negócio do corpo, pensa que é mais que todo o mundo. Mas
deixa estar, nós todos somos filhos de Deus. Soberba saiu da boca e caiu no regaço...
O nosso plano ampliou-se. Eu mesmo lembrei que havia nas ilhas sindicatos
agrícolas. Não funcionavam, mas estava tudo regulamentado desde o tempo do
governador Fontoura da Costa. Estivemos a consultar as colecções de boletins oficiais
de 1917. Concluímos que devíamos mandar circulares para as ilhas. Encarreguei-me de
S. Nicolau, para onde escrevi particularmente a José Lima, antigo seminarista de
regresso da América, onde fora emigrante. Conseguida a reorganização dos sindicatos
agrícolas, trataríamos de congregar todas as associações numa Federação dos
Trabalhadores Caboverdeanos. Andrèzinho:
— Bem, meninos, nós estamos dinâmicos... Conseguimos reunir os trabalhadores de
S. Vicente. Precisamos agora de qualquer atitude que mostre de forma concreta ao
público a nossa inteira solidariedade com aqueles que de facto trabalham nesta terra.
Foi decidido que o grupo passasse a usar fato-macaco. Dias depois estávamos todos
envergando o trajo operário, com as iniciais A. O. M. bordadas. Durante algum tempo
fomos objecto da troça indígena. Por onde passássemos gritavam-nos das esquinas:
— Ah home!
Nuninha achou que éramos de facto homens. Perguntei-lhe se ainda me queria bem
com o trajo de ganga.

83
— Tu és homem, Chiquinho. Ficas tão diferente desses rapazinhos luxentinhos...
— E se amanhã eu for operário numa terra grandona? Queres ser a operária da casa
deste que te está falando?
— Maluco! E se fosses? Operário é gente, Chiquinho... Quero-te de qualquer
maneira. Meu coração só por ti anda a viver...
— Então, fica entendido: quando eu for operário numa cidade grande, tu serás a
dona da casa de um trabalhador chamado... Como se chama o teu operário, Nuninha?
— Não sei...
— Tens vergonha? Diz-me aqui ao ouvido... Qual é a primeira letra do seu nome?
— Mas tu não vais partir, não, Chiquinho? Se fores, leva-me contigo...
—Se eu for mandarei buscar-te...
— Para a tua casa de operário...
—Para a minha casa de operário...

  

PARTE III: AS-ÁGUAS 

CAPÍTULO 1 

O meu primeiro contacto com a minha gente foi quási doloroso. Apesar da alegria
que no fundo de mim havia em reencontrar os lugares e as pessoas que haviam formado
o meu mundo de criança, ainda tão próximo, era quási um estranho que Mamãe e
Mamãe-Velha recebiam na nossa casinha do Caleijão. Eu já não tinha mais o mesmo
sentido para a frase que a minha avó constantemente repetia:
— Esta casa foi feita com dinheiro ganho de-riba da água do mar...
Por que não sentiria eu ainda o frémito de entusiasmo heróico que me possuía
quando Mamãe-Velha recordava a figura do marido morto tão novo? Lá estava sempre
no mesmo lugar da parede, a gravura da pesca da baleia, diante da qual eu sonhara tanta
vez. Por que me haviam dado alguma instrução, por que me haviam feito viver a
experiência de S. Vicente, em que o arquipélago desemboca com as suas ilusões,
imediatamente seguidas de desencantamento? Para quê? A revolta surda que eu senti
contra aqueles que me puseram na prenda, para fazerem de mim homem grande, homem
de capacidade...
— Este menino está diferente — dizia constantemente Mamãe-Velha.
Titio Joca veio logo da Praia Branca ver-me. Com seu jeito estranho de dizer as
coisas, começou por me dar pêsames. E os seus pêsames caíram-me como a própria
verdade, no coro alvoroçado dos homens de enxada, das mulheres da lenha de tortolho,
e dos velhos encanecidos no trabalho das hortas e nas manobras dos veleiros, para quem
o saber é a maior riqueza deste mundo, e que iam salvar alegremente o menino esperto
que tinha tanta prenda na cabeça.
— Este menino está diferente…
Ainda assim, Tói Mulato era quem dava companhia ao meu espírito. E eu sentia
uma outra espécie de respeito perante os velhos que falavam da vida nhanida da enxada,
dos horizontes do mar, e das belezas incomparáveis que ele guarda aos seus heróis. Não
compreendia como a minha inteligência não tinha conseguido absorver as emoções
elementares que me solicitavam para aquela terra que me achava diferente. Totone
Menga-Menga era sempre um velho muito velho morado numa casinha coberta de Palha
no massapé do Chamiço. Lela e Nanduca continuavam gostando dos casos de nha Rosa
Calita. Ela aparecia sempre, com o seu farol apagado e as suas histórias.
84
Eu era da mesma idade que os meus irmãos mais novos, ao ouvir aqueles casos
todos de Roldão, de Brancaflor, de Galalão. E Ti Lôbo enganado por Chibinho.
De-dia, quando não andava fora, em longos passeios, ficava encerrado no meu
quartinho. Lela e Nanduca tratavam-me com respeito grande. Servia-me disso para lhes
proibir a entrada no nosso quarto comum. Muitos me achavam orgulhoso:
— Chiquinho virou soberbo com a prenda que foi buscar em S. Vicente...
Senti cruelmente a falta dos meus companheiros do Grémio. Queria era ter ali
comigo Andrèzinho levantando teses sobre a situação humana da minha ilha. Sorria-me
ao vê-lo reagindo perante o caso de S. Nicolau, com seu gesto de cortar o ar com a mão
direita.
— Nós somos pássaros engaiolados. E o pior é que a porta da gaiola anda sempre
aberta, e contudo não podemos sair dela…
Nónó fazendo as suas mornas e preconizando poemas sobre motivos que fossem
nossos, bem nossos:
— Rapazes, vamos condenar os fiordes da Escandinávia a degredo perpétuo…
E Cara-Bonita também. Alce tinha gostado de Maninha. Mas veio o Tubarão e
levou-a. Os marinheiros do cais e os rocegadores de carvão da baía tiraram das suas
entranhas a morna dolorosa e lúgubre do Tubarão:
Tubarão, tubarão, bô é mau,
Oh mar, bô ê funde...
O marinheiro pede ao tubarão que tenha piedade, para ele poder ver outra vez os
seus irmãozinhos. Mamãe era muito velhinha e não podia mais trabalhar. Eu desejava
adormecer ouvindo as mornas de Nónó. Como “Eclipse”, que tirou quando foi repetido
por uma moreninha que ele queria bem.
— Este menino está diferente…
Escrevi longas cartas aos meus camaradas. Descambei na lamentação lamecha, que
sempre me repugnou. Depois fiquei esperando com uma espécie de terror a vergastada
seca que o “Erudito” me havia de dar na sua resposta. Procurei não pensar em Nuninha.
As minhas esperanças de casamento, nascidas com a chegada do novo governador,
foram emoção ocasional de uma tarde de S. Vicente, morrendo docemente no
desamparinho do crepúsculo. Os montes em volta desmaiando cor de bougainville. A
velha da esmola desejava que nós fôssemos um casal muito feliz, com filhos como
areia. O que eu sentia à minha volta não possibilitava o meu casamento com Nuninha.
— Quero ver se no teu coração tem lugar só para mim...
Mas eu via-a na minha frente. Enternecia-me, chorava, sentia raiva de Nuninha
enganando-me, tinha ciúmes, e redigia mentalmente cartas tremendas rompendo.
Melhor ainda um seco cartão de visita:
FRANCISCO ANTÓNIO SOARES
agradece os momentos agradáveis, e
lamenta comunicar que a sua vida tem
agora um sentido diferente.
Nuninha não compreenderia os dizeres demasiado literários do cartão. Ensaiei nova
redacção. Mas não encontrei estilo exacto. Caí em crises de sentimento. Queria ter
Nuninha junto de mim, beijar o seu cabelo ondulado e os seus olhos cerrados. Não
pensava em aspirar-lhe a boca veemente.
Mamãe-Velha não me largava à hora das refeições. Devia ser fraqueza. S. Vicente
não tem comida forte que dê boa substância ao corpo. Tudo já lá chega murcho.
— Nada como a comida que a gente tira da horta e sabe de onde vem...

85
Depois, eu tinha dado um grande pulo. Estava agora um verdadeiro homem. Tinha
arca que exigia comida para se encher de carnes. Com um bocadinho mais de almofada,
eu era a figura de meu avô.
— Basta, Chiquinho faz-me lembrar só Que-Deus-Haja...
E vinham os pormenores da semelhança, o tamanho do corpo, os olhos, a boca e
principalmente o cabelo de indiano.
— Lela e Nanduca puxaram mais para António Manuel...
.Nina, coitada, era a minha figura. Mamãe acrescentava que parecíamos gémeos.
Tão boazinha, Nossenhor a quis para si.
Nós dois tínhamos puxado para o moço pescador de baleias que morreu no mar
quando o seu navio desapareceu no Golfo, em viagem da América para Cabo Verde.
[…]

CAPÍTULO 8 

O ano agrícola começou com boa cara. Com a chuva geral logo em princípio de
Agosto, toda a ilha foi semeada. Em nossa casa foi a azáfama de sempre, que bem
conheci nos dias da minha infância. Tantos litros de milho de semente para este, tantos
para aqueloutro. Mamãe recomendava sempre aos meeiros que semeassem todo o
milho, não cedessem à guloseira de aproveitar parte dele para a comida. Pitra passava
todo o dia fora, fiscalizando o trabalho nas hortas que cultivávamos directamente. Ele
continuava sendo o homem da casa. Eu era um verbo encher no meio de toda aquela
actividade que se agitava à minha volta. A prenda que tinha na cabeça imunizava-me
contra o trabalho agrícola. Enxada não é para gente aprendida. Eu era da categoria de
Cabeça-de-Gato-Totonha, que só servia para a guarda dos corvos. Bem queria fazer
qualquer coisa, mostrar que era homem como qualquer um. Também não contavam
comigo em casa para uma ajuda nos trabalhos. Chiquinho, com a prenda que tinha,
estava marcado para um lugar público. Enxada era para os outros, que tinham ficado
bestas, apenas lendo e escrevendo, sem tanta coisa na cabeça como eu. A alegria animal
que eu sentia vendo chuva chovendo não compensava as alfinetadas que a certeza da
minha inutilidade dava ao meu orgulho. No cabo, valia menos que Lela e Nanduca.
Estes, ao menos, ajudavam na guarda de corvo e iam cedinho em companhia das
mulheres que traziam o leite das nossas vacas largadas no campo. Vinham de lá
pletóricos de força, sentindo no corpo o leite espumoso pojado das mamas das vacas. E
o dia fora, no tapadinho da Horta Nova, as suas vozes infantis repetiam o mesmo grito
alegre que Chiquinho soltava havia anos.
Mamãe-Velha era a única que me descompunha e achava que o que eu tinha no
corpo era calaçaria. Eu devia andar atrás dos trabalhadores, em vez de, volta e meia,
estar caído na Vila, a ouvir as conversas daquele velho tonto Sr. Euclides Varanda. A
minha avó não perdia os seus jeitos de dono. Para ela toda a nossa vida se fazia à custa
do que o marido ganhara de-riba da água do mar. Não tomava em conta o que António
Manuel tinha agenciado e os dólares que mandava de 102 South Second Street.
Exercíamos uma espécie de pequena realeza no Caleijão. No meio da pobreza geral,
a nossa pobreza menos rapada dava-nos fama de apolentados. Não era preciso muito
para mantermos o título: bastava que não nos faltasse a farinha-de-pau no barril, leios de
milho nas cantreiras, e que da América recebêssemos de quando em quando alguns
dólares enviados por Papai.

86
Como a chuva começou a escassear em Setembro, depois de Nossa Senhora da
Lapa, e o dinheiro americano chegava cada vez menos, os comerciantes não davam
prazo. Nenhum negociante tinha coragem de emprestar tantas quartas de milho para
receber redobrado nas novidades. Era cheque sacado sobre desgraça certa, visto o ar do
tempo. A alguns íamos socorrendo como nos era possível. Sempre com as
descomposturas de Mamãe-Velha. Mas também, já a conheciam. Não metia medo a
ninguém a cara assanhada com que ela recebia menino ou mulher-de-menaja com jeito
de ir pedinchar:
— Vocês querem é despir um santo para vestir outro! Se nos faltar milho na
cantreira, quero saber quem toma a responsabilidade desses meninos! Se calhar é você,
com essa cara de gongom-dado-de-azeite...
Não ligavam. Iam falar directamente com Mamãe. Pouco tardava para a minha avó
esquecer a zanga e continuar no conserto da roupa, com a sua dedada firme que os anos
respeitavam sempre.
Pitra Marguida trazia as piores notícias das hortas. Milho murchando, com as folhas
enroladas, como cebola. Os gafanhotos começavam a aparecer. Já seria altura da monda,
mas até ela vinha escassa e morrinhenta. Contudo, ninguém largava as hortas. Todas as
tardes era certa a passagem de gente que morava da Horta Nova para baixo, vinda do
trabalho do dia. Os meninos com os feixinhos de gremim e soca nova para as alimárias
do pé-de-porta, e a enxadinha de cabo magro balançando com orgulho no braço.
Quando Deus quere, dá milho de-riba de pedra. Ainda havia esperança. Novecentos e
dezoito tinha sido a mesma coisa: carestia até meados de Setembro e depois chuva
compassada que garantiu o ano. S. Mateus não ficaria assim, equinócio é mal-criado e
não respeita nem os navios no mar. Por Nossa Senhora do Rosário a festa havia de ser
boa. Havia anos Chico Zepa organizara a Divina no Caleijão. Era pretexto de Chico,
para ter mais jazigo de apalpar e abraçar as cantadeiras no escuro. Faziam-se projectos
sobre a marcha para a Vila, à noitinha, para levar a Divina à Igreja, no dia de Festa de
Outubro. Caleijão não ficaria a dever nada às outras ribeiras. O milho já estaria espigado
e barbado para as canas-de-igreja que ornamentariam a mesa. No cortejo haveria
também plantas de mandioca de duas as-águas, favinha inglesa, já com as vagens
pintando, rebentos novos de cana-sacarina. Para a coroa de Nossa Senhora, flores de
amor perfeito e cravos. Do Alberto viriam rosas amarelas. As sempre-noivas seriam
para os namorados saberem, debaixo do campanário da Sé, à hora da recolha da Divina,
quando haviam de se casar.
Até Cabeça-de-Gato-Totonha se mostrava animado. Da sua boca rasgada de borda
de tacho vinham sons que o hábito tornara inteligíveis. Passava o dia sentado no quintal
da casa a namorar o seu jardim de manjerona e enxotando moscas com um abano de
rabo de vaca. Depois da guarda dos corvos, Totonha entrava em férias. As suas pernas
tortas de macaco manco não lhe permitiam dar uma ajuda na monda ou no trabalho-de-
milho. Mas ele tinha o seu processo de adivinhar as chuvas. Punha caroços de sal por
ordem, figurando os meses. Quando um caroço revia água, era chuva certa no mês. A
sua experiência deu chuva em Outubro. Foi uma grande festa em toda a cara de
Totonha. Mas no aguentava muito a conversa. Ia logo a seguir tratar dos seus pés de
manjerona, consertar-lhes as ramas que os garotos estragavam. Ninguém lhe pedisse
raminhos para fazer chá. As manjeronas de Cabeça-de-Gato-Totonha eram como
criaturas humanas. Viviam a sua vida consoante Deus fosse servido. Quando um pé
secava, Totonha ia enterrá-lo com grande cerimonial, sobre os ombros uma estola de
saco, como padre em enterro. Os seus caroços de sal marcavam chuva em Outubro. Nhô
Mané de Ramos viu no Lunário e confirmou. Mas Totone, consultado, aconselhou a
criatura a amarrar o cordel na cintura e confiar na graça de Deus.

87
Titio Joca deu em Outubro uma das suas saltadas ao Caleijão. Éramos dois
camaradas, como se nos não separasse uma distância de mais de vinte anos. Titio já era
assim quando, tamanhinho, estive em sua companhia na Praia Branca. A mesma
liberdade que lhe fazia confidenciar-me a sua vida amorosa e os meninos com que as
suas mães-de-filho o brindavam todos os anos. E o mesmo calor de intimidade também,
com que me tocava profundamente quando me chamava aos joelhos e me narrava na sua
voz comovida as histórias dos heróis da honra. Contei-lhe toda a minha vida. S. Vicente
e as moreninhas que amei. O meu romance com Nuninha. Andrèzinho e o Grémio. Tive
de lhe entoar as mornas de Nonó. Titio procurou laboriosamente apanhar na rabeca de
António Pedro a melodia de “Eclipse”. Morna boa, só de a gente adormecer muito
docemente nos ombros de uma rapariga. Titio entusiasmava-se. Sublinhava o canto do
violino com a voz. À noite, em frente da casa, pôs os garotos que apareceram
chaleirando a tocar a morna do meu camarada. Mamãe tinha tomado para criar o filho
que Zepinha pariu com Pitra Marguida. Já fazia parte de uma banda de meninos, cujos
instrumentos eram talos de cana de carriço com casa-de-aranha nas aberturas. A banda
foi a orquestra do meu tio para a morna de Nonó, no terreiro da casa.
Titio deu as piores notícias do ano agrícola no sul. A nossa horta na Covoadinha,
nem pensar em palha, sequer.
Perguntou-me quais eram os meus planos para a vida. Não soube que responder-lhe.
A única abertura à minha frente era ser professor de posto-de-ensino. Joca Pires também
era professor de posto no Paul de Santo Antão. Era o destino dos que saíam do Liceu.
Andrèzinho professor de posto-de-ensino. Teria, pela certa, má informação no fim do
ano. Devia ser espectáculo curioso uma aula do “Erudito”. O a. b. c. seria vencido pelas
pregações sobre coisa que os meninos não entenderiam direito. Eu tinha metido os meus
documentos para concurso. Mamãe acalentava aquela ambição. Óptimo se eu
conseguisse ser colocado no Caleijão. Seria muito bonito um filho da ribeira dando
lições na Casa-de-Aula. António Manuel, em 102 South Second Street, havia de gostar,
ao ver o resultado da prenda do filho. Eu deixava-me manobrar, sem vontade própria.
Não sabia para onde dirigir com segurança os meus passos. A vida agrícola não me dava
possibilidade para coisa nenhuma. Queria era casar com Nuninha. O nosso lar seria um
lar de artistas. Eu próprio me ilustraria mais para lhe dar cultura. Aprenderia violino.
Ela seria pianista. Povoaríamos as nossas noites com horas de perfeita espiritualidade.
Eu tocando violino. Nuninha ao piano. Ela devia ser uma pianista fremente, com seus
nervos tumultuários. Construí a nossa casa no alto da Horta Nova. Amplas janelas
rasgadas para o Mar do Norte. Na face sob o rochedo, a nossa cela de artistas. Para que
ninguém perturbasse o nosso sonho quotidiano de arte. Eu tinha revistas francesas sobre
estilos e artes decorativas. Um rádio na divisão da frente, para nós nos sintonizarmos
com a “melodia do mundo”. A energia para o aparelho e para a luz vinha do wind-
charger. Tínhamos uma sala para aulas de música. Era necessário aproveitar a vocação
musical da nossa gente. Os rabequistas e os violeiros saberiam música, o solfejo seria a
base para as suas interpretações da morna. Para os batuques e rodrigos de sotavento,
grupos de cimbó e tamborim.
*
*  *
Meu tio recebeu sem entusiasmo a notícia de eu haver concorrido para professor de
posto.
— Para um rapaz como tu, na flor da idade, quási um suicídio.
— Se não gostar, largo, não tenha dúvidas...

88
— Não largas tal. Habituas-te a receber a folha no fim do mês e não pensas em mais
nada. Assim hás-de passar anos e anos. Aturas maçadas de toda a casta, para receberes
por mês uma ninharia...
— Mas não hei-de ficar às sopas da minha gente, sem fazer nada...
Meu tio arrebatadamente:
— Larga tudo isto! Vai para a Guiné, para Angola, para o Brasil, para o diabo! Mas
não fiques aqui... Só conseguirás cair no grogue… Esta vida é como clorofórmio. Ao
cabo, todas as tuas aspirações se dissolvem. E o grogue espera-te... Olha para mim...
Aguardente e mães-de-filhos. Não há mais nada que fazer, em que pensar, é claro que
Joca tem de beber grogue e fazer filhos.
Titio era assim tão lúcido, na falta de piedade com que se julgava a si mesmo. Disse-
me novamente da pena que tinha de não haver feito como Papai. Partir para a América
trabalhar nas fábricas de algodão. Nos bargers ou nos light-ships. Seria um animal de
carga nas suas obras de trabalho. Black portuguese para todo o serviço. Mas tinha todo
um mundo trepidante à sua volta. Livros, nas bibliotecas, para ler. Conferências para
escutar. Imagens para absorver. Nada o impediria de matar a sua sede de saber e
aperfeiçoar-se. O anónimo espectador da vida americana disciplinaria todo aquele
mundo. E agora estava reduzido a viver entre montanhas. Hortas nuas, sem molha de
chuva, e invadidas por gafanhotos.
— Filhos de quarenta pais, vestidos de fraque...
Perguntei-lhe por que não tentava emigrar. Ainda não estava velho. Quarenta e
poucos anos ainda tinham largas reservas de vitalidade. Muitos haviam emigrado mais
velhos.
— Já estou cozinhado. E com este seminário de meninos atrás de mim...
Nesse mesmo dia, boquinha da noite, titio apanhou uma bebedeira mestra. Manuel
Cais e nhô Roberto Tomásia foram levá-lo à casa. Ainda os reteve um momento na
cancela, a contar-lhes um incidente qualquer da história de Roma, com citações de Tito-
Lívio, em Latim. As fuscas do meu tio davam-lhe para essas evocações eruditas. A sua
memória tenaz resistia à vida-de-grogue. Depois caiu como morto sobre a cama, com as
ceroulas sujas das necessidades. Mamãe, segurando a xícara de café forte, sustinha as
lágrimas.
Meu Deus, se eu teria de virar como tio Joca!

CAPÍTULO 13 

Era seca, nua, devastadora como nas crises mais terríveis de que rezava a crónica da
minha ilha. Desaparecidas, todas as esperanças, enganadas, as promessas de chuva. De
todas as ribeiras a notícia que vinha era a mesma. Não se colheria um grão de milho, e
dos feijoeiros nem falar, que a lestada de Novembro crestara tudo.
No meu degredo do Morro Braz eu ia tomando o pulso à crise pela diminuição
progressiva da frequência do posto. O meu decurião Emílio foi o primeiro a desertar.
Vinha de muito longe, de um lugar perto da Jalunga. Os condiscípulos informaram-me
que a família de Emílio batera, fugindo à seca, em direitura da Preguiça. Soube tempos
depois que ele não pôde aguentar a jornada e ficou numa moita de purgueira no Canal
de Carambola. Lá fui com os meus alunos plantar uma cruz no lugar onde Emílio
morreu.
Todas as manhãs era com a apreensão de chefe de patrulha de regresso do combate
que eu fazia a chamada. E raro era o dia em que não faltava um dos meus soldados.

89
— Manuel João!
— Não está...
— Cândido Almeida!
— Não veio...
— José Joaquim!
— Está muito mal, professor...
Constantemente passava pela minha porta gente que fugia dos povoados de Norte-a-
Baixo, em direcção à Vila. Era um cortejo lamentável de homens, mulheres crianças. Os
animais domésticos faziam também parte do êxodo para outras regiões mais habitadas.
Nelas, ao menos, havia a consolança de um olhar de cristão no meio do drama
lancinante. Os meninos, com as barrigas inchadas sobre as pernas magras. E vinha tudo,
o pote de barro, a cama de finca-pé, as esteiras. A vaquinha magra e as cabras do pé-de-
porta não abandonavam os donos em tal provação. Os cachorros de língua fora,
farejando restos de osso para enganarem a fome. Muitas vezes, os animais miúdos eram
transportados no ceirão dos burros ou em balaios, à cabeça das mulheres. Homens e
bichos não conheciam distâncias naquela irmanação perante o destino comum. Como
representante da autoridade administrativa, cargo que acumulava com as minhas
funções de professor de posto-de-ensino, não tive comunicação nenhuma de desrespeito
da propriedade do próximo. Era de uma rigidez de pedra a concepção da honra daqueles
homens que batiam para a Estância, acossados pela fome. Ao longo dos caminhos, as
canhotas ficavam pairando, à espera de momento oportuno para se abaterem sobre a
carcaça dos animais que caíam, desistindo da viagem.
Com a morte de Emílio, tratei de eleger um novo decurião. Apresentaram-se vários
na classe. Tive de castigar um aluno do 2.° grau, das Casinhas, que esteve subornando
os condiscípulos com talisca de mandioca, para o elegerem. Foi escolhido um mocinho
dos Castelhanos. Respeitei dentro de mim a capacidade de sacrifício desse menino de
doze anos, que tinha de andar dez quilómetros todos os dias, e levantar-se de
madrugadinha, para ser o primeiro a chegar à escola, e às 8 horas, quando eu entrasse,
ter tudo arrumado para o regular funcionamento da aula. O posto não aguentava o luxo
de ter uma servente. Professor e alunos, tínhamos de nos devotar na tarefa comum, sem
contarmos com estranhos à nossa pequena cidade.
Conservo uma doce saudade dessa minha tão chegada camaradagem com os meus
alunos. Tratavam-me como a um irmão mais velho. Mal sabiam eles que amargores de
velho a minha mocidade encobria. Mesmo o mocinho das Casinhas não me ficou
querendo mal. Passado o amuo, foi-me trazendo pedaços finos de talisca de mandioca
para substituírem nos exercícios do quadro preto o giz que faltava na previsão
orçamental das verbas do expediente escolar.
Mas o meu novo decurião não aguentou por muito tempo. Um dia ele teve de prestar
também o seu preito de obediência à seca, quando a família fugia do Norte. Era muito
longe. Não pude ir, com os seus camaradas, fincar uma cruz no lugar onde Carrinho da
Silva tombou.
Destino aziago, o dos meus chefes de classe. De cada vez que ia ao Caleijão, era
como se fosse uma terra estranha que eu visitava. A seca tinha modificado tudo.
Desaparecidas, as reuniões na Água-do-Canal, mortas, as conversas alegres no
desamparo do crepúsculo. Só nhô Roberto Tomásia não faltava nunca, mas tinha fugido,
acossado por todos os ventos da desgraça, o riso largo que lhe descascava os dentes
plantados em gengivas vermelhas como goiaba madura. E o crepúsculo se desdobrava
num manto tenuíssimo que envolvia tudo, homens e coisas, no mesmo abraço sereno de
paz. A natureza desconhecia os dramas que remordiam o coração da criatura. Lela
Bento morto no caminho da Caldeira, quando ia à procura de batata conteira para

90
enganar a fome dos meninos. Uma doida, que tinha um filho, deu do sangue do seu
peito, em que o leite estancou, ao mocinho morto. Depois atirou-o do alto da Combota,
sobre o empedrado da fonte, e ali ficou por noites com a sua cantiga aziaga, ninando o
sono do filho. As hortas, vermelhas, sem vestígio de planta. Foi com uma melancolia de
general vencido que visitei o meu pedacinho em frente da casa, que Papai me
distribuíra, tamanhinho, para adquirir experiência agrícola à custa do meu braço. Só o
mané-gatinho se obstinava a viver naquele deserto preparado pelas chuvas escassas dos
anos anteriores. Nhô Chic’Ana esteve alguns dias doente. Mamãe-Velha, sentindo a sua
falta, mandou-lhe caldo de tapioca.
Eu nunca tinha visto aquilo. Era novo para mim esse espectáculo da vida que foge
imperceptivelmente dos homens e das coisas. Os lunaristas explicavam a fatalidade
cíclica da seca. De vinte em vinte anos era aquela falsia completa da chuva,
desamparando as ilhas para outras paragens no meio do mar. Eu estava habituado à face
serena da vida rotineira da minha ilha. Até agora, tudo me parecia impregnado de
imobilidade. Veria até o fim da vida as mesmas caras, a mesma mediania, a mesma
resignação perante o Destino que Deus governou lá do alto. A insuficiência de outros
anos não me tinha preparado para aquela batalha cruel e total. Por muito tempo que eu
vivesse, Mamãe-Velha havia de acompanhar Chiquinho com as suas descomposturas e a
sua solicitude grulhenta.
Os meses iam passando e com eles todas as esperanças da pobreza. Agora era a
doença que minava as alimárias. Das nossas vinte cabeças de vaca nem uma se salvou.
Bem Pitra cuidara delas no nosso tapado de pastagens do Campo, ainda forrado de soca
velha. Uma a uma, todas foram caindo. Eram imagens da minha infância, ora familiares,
ora heróicas, que fugiam. “Bismarck”, “Napoleão”, “Espertinho”, tudo nomes que eu
havia posto aos bezerros novos, ao sabor das minhas admirações de menino. Mundo em
que a vida real e a minha vaga divagação sentimental de mocinho crioulo se
entrelaçaram de forma indissolúvel. Não sabia a quem devotar maior admiração, se ao
filho da “Estrela”, nervoso de frémitos juvenis, se ao novilho da “Senegal”, manso e
calculador, que não tinha pressa em se levantar do seu repouso de criatura calma, para
acudir ao desafio dos vizinhos levianos. “Napoleão” contra “Bismarck”, eis aula prática
em que eu aplicava a minha nascente compreensão da história moderna.
Para cúmulo, apareceram os gafanhotos. Os restos de palha verde iam sendo
devorados pelas suas mandíbulas implacáveis. E uma cor única dominava tudo, o
cinzento. O sol peneirava uma claridade baça através da cortina encinzeirada da
mormaça.
Procurei aproveitar os meus ócios no Morro Braz para escrever o meu ensaio.
Cheguei a redigir os primeiros períodos. Mas logo aquilo pareceu-me uma coisa tão
estranha, tão fora de propósito, que pus de parte a caneta. Para quê, essas pretensões de
história e sociologia numa terra que estava bradando por milho para a cachupa? A
realidade imediata absorvia tudo.
Organizou-se na Vila um serviço de alimentação aos famintos das ribeiras distantes.
Na Irmandade um grande caldeirão cozinhava cachupa perto do pé de tamarindo. Tio
Joca veio da Praia Branca prestar o seu concurso. Preocupava-o principalmente a sorte
dos meninos e dos doentes, que precisavam de alimento mais adequado do que a
cachupa bruta de água e sal. E não descansou enquanto não conseguiu organizar uma
dieta de tapioca, que uma comissão de senhoras se encarregou de fazer chegar às casas
dos necessitados. Titio subiu na minha consideração com esse seu dinamismo
encharcado de piedade humana.
Das ilhas chegavam notícias alarmantes. Por toda a parte, a seca estendera as suas
garras insaciáveis. Em S. Tiago, a Praia enchera-se literalmente de gente fugida do

91
interior. E por onde se andasse eram famintos dormindo ao relento, no Monte Tagarro,
na Praça dos Governadores, na ponte da Alfândega.
Andrèzinho mandou ao Ministro das Colónias, em nome do Grémio, um telegrama
pedindo socorros urgentes. E lançou em S. Vicente a ideia do que ele chamou “imposto
sobre o cocktail”. Cada qual pusesse em caixas que se colocariam pela cidade nos
postos de luz eléctrica o valor do cocktail que tomaria, e de que era dever imperativo
privar-se em tal conjuntura, para auxílio dos famintos das ilhas. Era bem de Andrèzinho
esse test das possibilidades de civismo dos mindelenses.
A minha escola no Morro Braz morreu de inanição. Os alunos foram desaparecendo
um a um. O pão do espírito cedeu à necessidade mais imediata e absorvente da cachupa
do corpo. Conheci uma época inteira de absoluta ociosidade no Caleijão. A minha vida
era um navio desamparado, sem velas e sem norte, no meio da tormenta que batia a
minha terra. Era para Andrèzinho e não para mim, pobre pena ao vento, introduzir um
pouco de acção e de beleza na tragédia da minha gente. E para tio Joca também, que
superava a sua vida-de-grogue numa actividade de assistência aos seus semelhantes. Eu
era ser passivo que se abandona à influição do destino. Faltava-me a energia de amar e
de viver de Nuninha, que chegou a propor-me fugirmos juntos para Dakar ou para o
Brasil. E ela ia ficando uma imagem sempre presente no meu coração, mas cada vez
mais distante da minha mão. Eu não tinha, afinal, o espírito de aventura do rapaz da
ponta-de-praia, que tira passagem clandestina para o mundo a bordo de todos os vapores
que tocam em S. Vicente.

CAPÍTULO 17 

Houve um grande levante no S. João. Dos lados da Ribeira da Caixa vem grande
vozearia. Destacam-se os gritos agudos das mulheres. De repente, rompe uma guisa alta.
Acorre gente das bocanas das travessas, a saber quem morreu. A guisa desce a ladeira.
Há desespero no choro. A gente de baixo começa também um resmungo de guisa.
— O que é? Quem morreu?
Desemboca de uma travessa uma mulher a chorar alto. Ela abana um lenço. Na
guisa que desce da ladeira alguém chora constantemente:
— Ah, meu irmãozinho!
A mulher passa pelos que vieram dar fé e lança:
— Oh Deus! E a sua fome... Falta é que está obrigando...
Um cavalheiro de gravata deteve-a a inquirir:
— E Lela que foi apanhar farinha em loja de gente, polícia pegou-o e agora está
dando pranchada...
Ouvem-se apitos. O povo chega ao largo. Vem no meio, aguentado por dois
homens, um rapaz de rosto ensanguentado. A camisa rasgada deixa ver o peito, em que
escorrem fios de sangue.
O povo parou. Uma mulher arrancou pedras da paredinha do largo e dá ao seu
homem:
— Toma. Se és filho-macho mostra agora!
O homem joga as pedras no chão. A mulher insiste:
— Eu já disse, se é para morrer de fome, morrer de tiro...
Levaram o rapaz ferido para a Farmácia. Mas o ajuntamento continua. Da Ladeira e
da Estância de Baixo vem chegando mais gente. Há ameaças nos olhos desvairados das
mulheres.

92
— Esta terra precisa que lhe dêem um jeito...
— Quando vi polícia pranchar Lela fez-me uma coisa no corpo de dar uma bala de
pedra...
Há mulher que parece ter enlouquecido. Ela subiu a um banco e lança pedradas à
toa. Depois despiu o mandrião e ficou a bater no peito. Provoca os homens:
— Eh Jack, o que é que tens na entre-pernas? Fedro Canja, onde meteste a tua fala
grossa?
Um polícia quere prender a mulher. Deita-lhe a mão no pulso, mas ela sacadeia e
resiste. De repente o polícia curva-se e dobra os joelhos. A mulher deu-lhe uma pegada
em mau lugar. Agora o povo é o mais forte. Empurram o polícia, que se retira com o
corpo dobrado, a apitar. Chega um homem que diz que o rapaz ferido está em mau
ponto e deita sangue pela boca. Rompe de novo a guisa. Muitos chegam a investir para
descerem para a Passagem. Mas outros hesitam.
Aparece Chico Zepa com o seu passo coxeante. Soube do que se passava, e vinha
brigar. Quando o viram aproximar-se foi uma grita de todo o mundo:
— Chico Zepa é que é filho-macho de verdade…
Chico, mostra estes vacões que não foste criado a abóbora...
Os homens ganharam mais coragem. Um velha subiu num banco e gritou:
— Gente, vamos para baixo gritar fome pelas ruas! Vamos, nada nos pode acontecer
porque o povo é um pássaro que não tem onde dar tiro... Quem sabe onde é a cabeça, o
coração, a barriga do povo?
Chico Zepa tomou a cabeça e deu governo ao levante. Desceram o S. João. À frente
iam dois garotos com duas bandeiras negras. Eram blusas de mulheres presas com linha
de barbante em dois paus de cana-de-carriço. Os garotos gritavam: “Fome!”. E de trás o
povo respondia:
— Fome! Misericórdia!
Quando desembocaram no Cutelo apareceu o Administrador empunhando arma-de-
fogo:
— O que é que vocês querem?
Chico Zepa adiantou-se:
— Povo tem fome, Sr. Administrador!
Os rapazes disseram a Chico que se era preciso pau eles tinham pau, se era preciso
braço eles tinham os braços que Deus lhes deu.
As mulheres, quando viram o Administrador com a arma, quiseram investir para ele.
Muitas tinham os aventais cheios de pedra tirada do cascalho da ribeira. Uma rapariga
nova avançou e disse a Chico, mesmo na barba-cara do Administrador:
— Chico, mostra que és filho-macho, e eu dou-te a minha honra...
Chico Zepa subiu na parede do Cutelo e gritou ao povo:
— Gente, vamos governar a nossa vida, porque ouvidos de filho-de-parida não nos
querem ouvir gritando fome!
O povo investiu. As portas da loja que ficava em frente foram arrombadas.
Espalharam no meio do chão um saco grande de milho. As mulheres foram pondo o
milho na regaçada dos aventais, de mistura com as pedras.
Mas os homens foram ficando atrás. Um velho levantou os braços, com as mãos
abertas, e os dedos apertados uns contra os outros:
— Vocês sirvam-me de testemunha que não tenho nem um grão de milho entre os
dedos!
Outro batia na boca e fazia cruzes, livrando do pecado de soberba:
— Honra vale mais que barriga cheia!
Um rapaz moço gritou-lhe:

93
— Vida vivida vale mais que honra!
Uma mulher protestava:
— Tenho meninos em casa que estão chorando fome. Se é para morrer de fome,
morrer de tiro, e a minha cara continua honrada...
A pouco e pouco todos se foram retirando. Chico Zepa ficou lamentando:
— Pobre é como filho de gafanhoto. Nasce com as asas verdes, mas depois vira
cinzento, cor de nada... Pobreza é escarrador de todo o mundo...
E ele foi para o Caleijão contar à mãe que o povo tinha sentido cãibras nas pernas.
Nos seus olhos e no cansaço do corpo sem sono havia a tristeza do general que
perdeu uma batalha.

CAPÍTULO 18 

Pimpinha é que levou a notícia. Logo depois do almoço eu estava sentado na


cadeira-de-balanço, na salinha, a ouvir Mamãe-Velha, que contava um caso qualquer
sucedido no Morro Morial. Pimpinha chegou toda afrontada, bem apertada na sua blusa
de vichi, e nem deu as boas-horas: nhô Chic’Ana tinha morrido. Mamãe-Velha iniciou
logo um resmungo de guisa. Encomendou nhô Chic’Ana à devoção de S. Miguel
Arcanjo, que lhe guiasse os passos à porta do Paraíso. Saí um instante para fora.
Relanceei os olhos pelos arredores, até o alcance da vista. Hortas secas, cor cinzenta,
vegetação rala da carestia. Voltei para a salinha. Mamãe-Velha continuava a rezar pelos
passos que o Santo Filho de Deus andou na Rua da Amargura. Pimpinha, encostada à
porta da entrada, lançava olhos curiosos pelos retratos da salinha.
Mamãe-Velha mandou gente à casa do morto. Deus que trouxesse consolança aos
que ficavam. Fez a Pimpinha o elogio de nhô Chic’Ana. Velho discreto, muito amigo
dos familiares da nossa casa. Era raro passar ao pé da porta sem dar fala, a ver como
estavam os amigos.
— Com Chiquinho, então, era uma cegueira. Muito amigo de Chiquinho, nhô
Chic’Ana. Também, tinha de quê, pois eles pareciam ter entulhado alguma riqueza de
sociedade...
Volta e meia lá estava eu na casinha do Campo, em conversa com o velho. E eram
falas que não acabavam nunca. Nós dois muito camaradas, nhô Chic’Ana dentando o
pito do cachimbo, e eu sentado num pilão, atento como cachorro à espera de comida do
dono.
Deixei Mamãe-Velha e as suas evocações e fui direito à casa do morto, Ia-me
chegando aos ouvidos a guisa das mulheres.
O velho tinha estado de cama. Andava ultimamente muito fraco, de cara chupada,
olhos esgazeados. Girava, dava suas voltas, mas as pernas não podiam aguentar
qualquer caminhada de coisa nenhuma. E então sentava-se nas paredes dos caminhos, a
ganhar forças.
Uma angústia profunda tomava conta de mim. Nhô Chic’Ana morreu de fome. Senti
vontade de gritar, para que todos ouvissem. Nhô Chic’Ana morreu de fome. À direita, à
esquerda, a vista era a mesma. As mesmas hortas, nuas no seu chão de barro e comidas
pelos gafanhotos.
Na casa do morto já havia muita gente. As mulheres entoavam uma guisa muito
sentida, com contra-canto. A filha de nhô Chic’Ana passeava pelo quarto, com o corpo
dobrado para diante, e um lenço na mão, a abanar, a abanar. Nhô Chic’Ana agora,
depois de morto, era portador de mensagens para o além-túmulo. Davam-lhe recados

94
para levar aos que tinham ido. Não se esquecesse de lhes falar da saudade que deixaram.
Que a vida era sem gosto depois que eles partiram. Pedissem a Deus Nossenhor pela
felicidade dos anjinhos que tinham ficado órfãos do calor dos papais e das mamães.
Dirigiam palavras choradas à filha do morto. Nunca mais falaria com nhô Chic’Ana.
Nhô Chic’Ana já não lhe pediria mais lume para acender o cachimbo. Nhô Chic’Ana já
não lhe botaria a bênção. Ela já não tinha o seu papai para lhe botar a bênção. Adeus,
nhô Chic’Ana. Que ela consolasse mamãe. Corresse a mão a mamãe, que ficava neste
mundo, tão angustiada.
Aproximei-me da cama. Nhanha Bonga recebeu-me com grande admiração de
choro. Ah Chiquinho! Tinha morrido o meu grande amigo. Que iria Chiquinho fazer
doravante na casinha do Campo? Nhô Chic’Ana não botaria mais aqueles exemplos que
tanto me entretinham.
Nhô Chic’Ana estava todo mirrado, seu corpo magro a perfurar de ossos a manta
que o cobria. O meu velho amigo morreu de fome. Encostei-me à cama, a cabeça
tomada nas mãos angustiadas. Os meus dias de infância povoados da presença de nhô
Chic’Ana. Ainda o vi, de corpo mais válido, na labuta da lavoura. Nas tardes, eu vinha à
casinha do Campo. Nhô Chic’Ana fazia-me hominhos de barro, que ela baptizava com
nomes da história de Carlos Magno. Outras vezes, talhava-me navios de purgueira. E o
meu regalo era correr os navios no tanque de António Jejê com os companheiros. Nhô
Chic’Ana contava-me casos da sua vida de marinheiro, as terras que ele tinha
conhecido. As suas palavras eram lentas, sentenciosas, pedia ao velho que me contasse
histórias:
— Nhô Chic’Ana, você conte um caso...
— Não tem tempo...
— Conte, nhô Chic’Ana!
— Nhor não, contar histórias de dia faz pelar a capela dos olhos...
Mas eu conhecia-lhe o fraco. Tirava da algibeira um bocado de erva para fumar, e
logo nhô Chic’Ana estendia a mão.
E começava. Antigamente tinha uma casa muito grande no fundo do mar. Lá dentro
só morava uma mulher, que estava sempre sentada numa cadeira-de-balanço. Ao pé dela
estava um barril, dentro do barril tinha uma bola de ferro, dentro da bola tinha uma
boceta[3], dentro da boceta uma pomba, dentro da pomba um ovo, dentro do ovo um fio
de cabelo. Neste fio de cabelo é que estava a força daquele-homem-pelo-sinal-da-Santa-
Cruz… E agora ali estava, morto, nhô Chic’Ana. Morto de fome.
O saimento de nhô Chic’Ana era no dia seguinte, às duas. Às duas nhô Chic’Ana
sairia da casa para a sua morada de baixo-do-chão. Antes da caminhada para a Tabuga,
tinha o acompanhamento de ir Vila, para a reza na porta da Igreja.
Saí. Fui andando caminho a cima, em direcção à casa. Mal toquei na comida que
Mamãe me deu. Nhô Chic’Ana morreu de fome. A seca tinha cosido um grande vestido
cinzento para a terra trazer o luto de nhô Chic’Ana. Eu estava como que atordoado. O
sol peneirava através das nuvens de calor uma claridade parada. Nas Casinhas, na
Jalunga, na Junça, morria-se de fome.
O enterro de nhô Chic’Ana. O velho ia a enterrar às duas. Às duas poriam nhô
Chic’Ana no esquife da pobreza: quatro paus de piteira e uma manta velha. Nhô
Chic’Ana iria para a terra envolvido numa manta velha. Os crioulos levá-lo-iam como
num andor, com respeito. A saída a guisa aumentaria. (Adeus, nhô Chic’Ana, adeus,
nhô Chic’Ana para a terra da saudade). O velho não seria encomendado com cantigas
sacras, ele apenas seria posto na porta da Igreja, com rezas. Dondê cinco mil e
quinhentos para a encomendação solene?

95
A Combota estava cheia de gente à cata da água, que escasseava cada vez mais. Do
alto do Alberto vinha um fio, magro como cação. Havia guerra declarada para uma
qualquer encher a celha.
Fui descendo rumo à casinha do campo. Ia sair o enterro de nhô Chic’Ana. Em
breve seu corpo ia deixar a casa para nunca mais. Os homens aproximaram-se da cama.
A velha estava abraçada ao corpo de nhô Chic’Ana. Consolaram-na. Nhô Chic’Ana ia
para a Glória. Deus Nossenhor era amigo de nhô Chic’Ana, porque nhô Chic’Ana era
bom. As exclamações de choro aumentaram. Um velho, gravemente, rezou a Remia-
Mia, que livrasse nhô Chic’Ana do fogo dos infernões. Botaram nhô Chic’Ana no
esquife de piteira. Nhanha Bonga ficou deitada na cama a chorar o velho. Fez as suas
despedidas. Para quê, se ela em breve iria ter de nhô Chic’Ana? Agora ia nhô Chic’Ana
para a terra da saudade. Companheiro de mais de cinquenta anos. Porque a deixava a
ela, velha e fraca, nesta vida castigada?
O acompanhamento saiu. Gente ia-se encorporando pelo caminho. Nhô Chic’Ana
nunca esperou ter tanto povo a levá-lo à sua casa de debaixo-de-chão. Ainda lhe vi,
antes do saimento, a cara mirrada, em que os dentes se mostravam descascados no seu
sorriso resignado de pária, apesar do lenço que lhe atava o queixo. Parecia querer contar
a nhô Chiquinho a sua última historia, antes de ir fumar cachimbo para o outro mundo.
Atravessámos o Caleijão, descemos a Ladeira da Lapa, e apenas se ouvia de quando
em quando um esboço de choro, abafado nos lenços grandes das mulheres. Tirante isso,
só a trupida cadenciada dos passos descendo para a vila.
Nhô Chic’Ana foi posto na porta da Igreja. Os sinos não tocaram sinal. O padre
apareceu com o sacristão e rapidamente rezou umas rezas. O terreiro da igreja tinha-se
calado, caladinho. Nem sequer os garotos andavam jogando a bola. O ponteiro do
relógio da Sé estava quási sobre as quatro. Um raio de sol brincava no mostrador. Quási
quatro, a reza de nhô Chic’Ana à porta da Igreja;
O acompanhamento atravessou a ponte velha. A ponte fora feita para estabelecer
comunicação entre as duas vertentes da Vila, nos dias de grande ribeira. Mas agora ela
estava velha, a cair tábuas. Na estrada do Lombinho o acompanhamento alongou-se nos
cotovelos do caminho, sobranceiro à Maiama. Tudo seco. Secas as bananeiras. Secos os
plenos de cana. Só os coqueiros erguiam o corpo esguio, com o cocuruto à espreita do
mar, a uivar na boca da ribeira. Mais para diante, enviuzando um pouco para a direita,
eram as planícies famintas do Norte-a-Baixo. A fome era lá mais rapada, mais crã.
Seguia o enterro de nhô Chic’Ana. Lá estava em baixo, alvejando de paredes
caiadas, o cemitério da Tabuga. E o corpo de nhô Chic’Ana ia balançando docemente
aos ombros dos crioulos. Era um crioulo que ia a enterrar. Os crioulos iam dar terra a
um irmão. Amanhã outros irmãos lhes iriam dar cova. Ao menos, debaixo da terra
sente-se a chuva a todo o momento que ela vier. Calê cinco mil e quinhentos! Melhor
encomendação do que a friura da água e o barulho da chuva caindo não pode desejar o
filho-das-ilhas.
Nhô Chic’Ana deu entrada no cemitério. Já o coveiro e mais dois rapazes lhe tinham
preparado a cama-de-chão. Fechei os olhos a nhô Chic’Ana, os seus olhos que já não
veriam Chiquinho mais.
Acomodaram o corpo no fundo da cova. Quando se semeia também se acomoda a
semente para ela vir à flor mais desembaraçadamente. Os homens curvaram a cabeça e
rezaram Padre-Nossos e Gloria-Patri pelo descanso eterno de nhô Chic’Ana. Depois as
pás botaram terra. Em breve a cova ficou rés-vés do chão.

96
CAPÍTULO 19

 O mar também era o meu caminho. Papai, com as notícias que lhe iam chegando,
perguntou-me se eu queria ir para América. Tio Joca apoiou imediatamente. Mamãe
lamentou o destino que me obrigava a largar a minha terra. Mas também, ela não queria
que eu ficasse pasmando pelo Caleijão, como gente sem eira nem beira.
Tio Joca convenceu-me:
— Não hás-de querer acabar a tua vida entre estas rochas, vendendo açúcar e
petróleo numa tasquinha...
[…]
[1]
amorabilidade
[2]
"Mha crecheu" significa "meu bem"; “Bo e Di Meu Crecheu”: "você é o meu amor”.
[3]
caixinha redonda, oval ou oblonga, feita de materiais diversos e usada para guardar pequenos objectos.

Chiquinho
      proposta de trabalho 

Elabore uma exposição em que desenvolva os seguintes itens:


1. Época em que se passa a acção.
2. Marcas de insularidade caboverdiana:
2.1. caracterização do espaço físico;
2.2. aspectos sócio-culturais, económicos e políticos.
3. Percurso iniciático do protagonista.
 

http://lusofonia.com.sapo.pt/baltasar_lopes.htm

97
GERMANO ALMEIDA

Germano Almeida, um dos nomes de proa da moderna literatura cabo-verdiana,


nasceu na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945. Saiu da ilha aos 18 anos, indo para
Lisboa, onde se licenciou em Direito na Universidade Clássica. Vive na ilha de São
Vicente, onde exerce actualmente a profissão de advogado, tendo já desempenhado
funções como Procurador da República.
O gosto pela escrita e pelo jornalismo tem acompanhado desde sempre a sua vida
profissional. Para além da produção literária, tem sido responsável por projectos tão
importantes da vida cultural cabo-verdiana como a fundação, com Rui Figueiredo e
Leão Lopes, da revista Ponto & Vírgula (Março de 1983 a Dezembro de 1987), do
jornal Aguaviva, de que é co-proprietário e director, e da Ilhéu Editora, em 1989.
Colabora ainda habitualmente no diário português Público.
Usando magistralmente as armas do humor, desde a mais fina ironia até ao sarcasmo
mais declarado, a obra de Germano Almeida desmascara a hipocrisia reinante na vida
pública e privada da sociedade cabo-verdiana que, vista através da sua lupa satírica, se
transforma, no fundo, num paradigma de qualquer sociedade. Neste aspecto, O
Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, livro que foi saudado pela crítica
portuguesa, aquando do seu lançamento em 1991, como um dos grandes momentos da
literatura Cabo-Verdiana actual, é um caso exemplar, narrando a história de um homem
que conseguiu enriquecer vendendo 10.000 guarda-chuvas numa terra cujo principal
problema é a seca permanente e cuja vida íntima contrasta com a imagem pública
impoluta: é depois da sua morte que se vem a descobrir a filha ilegítima, filha da sua
ligação com a mulher-a-dias, Chica, que possuía em cima da preciosa secretária Luís
XIV do escritório.... Já em O Meu Poeta, romance de grande fôlego publicado logo após
O Testamento..., a sátira sócio-política ao regime de partido único que durante anos
asfixiou a liberdade e o desenvolvimento do país é de tal forma incisiva que o livro foi
considerado o primeiro romance nacional da nova República de Cabo Verde.

(http://web.educom.pt/p-ccomum/2/biblioteca/biografias/caboverde.htm#BARBOSA)

98
Obras publicadas: 

O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo (romance), em 1989


O meu poeta (romance), em 1990
O dia das calças roladas (ensaio), 1992
A ilha fantástica (narrativa), em 1994
Os dois irmãos (romance), 1995
Estóreas de dentro de casa (ficção), em 1996
A família Trago (romance), em 1998
A morte do meu poeta (romance), em 1998
Estóreas contadas (crónicas), em 1999
Dona Pura e os camaradas de Abril (romance), em 1999
As memórias de um espírito (romance), em 2001
Viagem pela história das ilhas (investigação histórica), em 2003
Mar da Laginha (romance), em 2004
Eva (romance), em 2006.

   O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo


  RECENSÕES CRÍTICAS

O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo, romance de estreia do escritor


cabo-verdiano Germano de Almeida, é um livro cativante de ler. É-nos contada a
história da personagem central, que dá nome ao título, a partir da própria história que o
protagonista escreveu em “387 laudas de papel almaço”, guardadas num envelope
lacrado, dez anos antes da sua morte. A autobiografia é deste modo encenada em
testamento, e o narrador traz à cena o defunto que revela inesperados factos sobre a sua
já fantasmagorizada existência. Forma permeável à invenção da própria personagem,
que não existe, existindo dela apenas aquele volumoso conjunto de memórias (“o
falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias”, p.
9), e forma adequada ao narrador para inventar a personagem do seu herói, começando
pelo fim, por essa óbvia evidência de criar, retrospectivamente, o princípio gerador do
falecido, a existência fictiva da sua inexistência factual. A ironia começa também aqui.
À maneira de romance policial, somos levados a descobrir as intimidades pícaras da
personagem não só pelo relato que faz delas, mas fundamentalmente pela descoberta
dos herdeiros até então desconhecidos a quem são legados a maioria dos bens e o
volume de surpresas que o testamento guarda como a cartola de um ilusionista.
Reunindo os ingredientes cénicos do início de um filme, o livro abre com a leitura do
testamento, que dura uma tarde inteira: “iniciara a leitura às 14,45, mas pelas 16,10
confessava-se cansado e já estava sem voz. O sr. Fonseca leu até às 17,20, após o que o
sr. Lima, sorrindo com humildade pediu que lhe deixassem também ler um bocadinho.
Coube-lhe por isso ler a parte manuscrita, mas numa letra tão miudinha que ele se
engasgou por diversas vezes com as palavras e teve de voltar atrás e assim só cerca das
18,30 foi possível aos intervenientes aporem as respectivas rubricas” (p. 10).
O humor e a paródia, sempre presentes neste romance, irrompem subtilmente desde
as primeiras páginas, pelos efeitos bem conseguidos do exagero (“quando vira a
enormidade do documento lacrado, sugerira não valer a pena perder tempo a ler todo
aquele calhamaço”, p. 9), das enumerações metódicas e caricaturais que funcionam

99
contrastivamente, e por antítese, com a seriedade normal a ocasiões do género. Poucas
páginas depois. o livro conta um segundo episódio burlesco, o primeiro pedido do
morto, o de desejar ser enterrado ao som da marcha fúnebre de Beethoven: “das
esquisitices do tio tudo era de esperar, ainda bem que era só isso, ele podia ter-se
lembrado de pedir cremação ou afundamento do esquife junto ao ilhéu... Ora a
contrariedade surgiu foi quando o chefe perguntou o que era isso de marcha fúnebre e
Carlos, já elucidado, respondeu ligeiro que era qualquer coisa de um tal Beethoven.” (p.
16). Não podendo o agrupamento musical corresponder ao desejo, o chefe da Banda
reclamou: “Se toda a gente vai com djosa e nunca houve reclamações, porquê o sr.
Napumoceno vem agora chatear a gente com essa outra coisa? […] o djosa assim
renegado e aviltado, murmurou que qualquer dia apareceria um defunto a pedir se calhar
Roberto Carlos ou algum reggeae ou qualquer outra coisa assim.” (p. 17).
Finalmente, descobriu-se a solução, e o enterro acaba por se realizar, parodicamente
capitulando o falecido à terra após toda a trama da música de fundo, cerzida ao mínimo
pormenor: “Por razões de comodidade de transporte trocou o gira-discos por um
gravador e gravou 120 metros de marcha fúnebre numa enorme bobine, repetindo-a 14
vezes. Mas nem foi preciso tanto porque a metade da sétima repetição ainda ia a meio
quando ele mandou parar e abriu o discurso.” (p. 18).
Mas, se a ressuscitada vida do já morto dr. Napumoceno da Silva Araújo nos vai
surpreendendo, bem como aos recém-aparecidos familiares, sem dúvida que um dos
acontecimentos mais significativos da sua desaparecida existência consistiu na forma
como enriqueceu e prosperou nos negócios. Talvez este seja um dos elementos
temáticos fulcrais em que a ironia, que a escrita romanesca deste escritor
constantemente encena, melhor se adequa às tradições da literatura cabo-verdiana:
“Porque aconteceu que devido ao facto de o seu armazém ficar situado na zona de
Salinas tinha necessidade de se deslocar muitas vezes debaixo do abrasador sol de
Agosto, ainda por cima a pé porque nem tinha ainda carro nem aliás sabia conduzir.
Decidiu por isso adquirir um guarda-sol.” (p. 59). Não encontrando em todo o Mindelo
uma única loja que lho vendesse, o sr. Napumoceno resolveu fazer uma encomenda de
1000 guarda-sóis. Acontece que a nota de encomenda aparece com um zero a mais, e
são desta feita 10000 “guarda-chuvas numa terra em que são utilizados como guarda-
sol.” (p. 60). Após peripécias várias, chega o navio com a anunciada encomenda:
“Porque o navio fundeou de manhã e perto do meio-dia começou a chover. Primeiro foi
uma chuva miudinha embora persistente, uma morrinha de chuva como se lhe chamou e
que levou o locutor da Rádio Clube Mindelo a noticiar que em S. Vicente chuviscava
torrencialmente […]. E por uns oito dias a chuva caiu daquela forma bonita e útil,
encharcando o chão, as casas e as ruas. E quando o último lote de 500 abandonou o
armazém, o sr. Napumoceno mandou abrir espumante no Royal para todos os presentes,
disse que estava a comemorar a retirada dos dez mil.” (pp.63-64).
Sem dúvida que a escrita de Germano de Almeida neste romance traz alguma coisa
de novo à ficção cabo-verdiana. Diria, por exemplo, que uma necessária e bem-vinda
distância e crítica que lhe permitem a ironia em jogo constante de antíteses
hiperbolizadas —, a paródia e a desdramatização de temas antigos como a estiagem, o
“flagelo” longamente contado das lestadas[1], os temas insulares que desde os claridosos
repunham abordagens necessariamente dramáticas.
Reinterpretação e reescrita, agora sob um outro ponto de vista, em que o humor e a
caricatura lembram herança queirosiana, retratando-se o meio mindelense e a vida
insular com bem doseada carga de imaginação crítica. Este livro vem talvez confirmar,
juntamente com outros textos que nos recentes anos têm sido publicados, que estamos a

100
viver um novo momento de reformulação temática e formal nas literaturas africanas de
língua portuguesa.

Ana Mafalda Leite, "Recensão crítica a O Testamento do Sr. Napumoceno de Araújo, de Germano de
Almeida",
in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 131, Jan. 1994, pp. 254-255,
http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?issue&n=131

vento quente que sopra em Cabo Verde, vindo do Saara.


 “Mas neste momento penso que era sobretudo um homem que foi
apanhado pelas coisas. Desembarcou descalço em São Vicente e não só
comprou sapato como enriqueceu. Mas acho que ele mesmo nunca soube
como nem por quê, embora seja verdade que era inteligente e tinha uma sorte
danada. Mas penso que sempre receou voltar ao Napumoceno de São
Nicolau.” (Germano Almeida)
 
A metáfora não poderia ser mais adequada, um testamento cerrado, carta sigilada
que, após a morte do protagonista testante, confidencia seus deslizes, dá nome à filha
ilegítima e revela uma vida sem as máscaras impostas ou assumidas na trajetória do
próspero homem de negócios.
Sr. Napumoceno da Silva Araújo, solteirão de hábitos ponderados e muitas manias,
deixa como legado uma carta de trezentos e oitenta e sete laudas, escrita dez anos antes
de sua morte. A vida do homem que enriqueceu com a venda de dez mil guarda-chuvas
num país onde a seca impera e que continuou a aumentar seu patrimônio com o
“sistema de compra-venda-lucro, nada de caixa, razão e outras leviandades afora as
estritamente necessárias”, é descerrada pela filha Maria da Graça, fruto de suas
investidas na mulher da limpeza, dona Chica, no tampão da secretária estilo Luís XV.
Graça, instituída herdeira universal, busca nas palavras e nos pios legados deixados à
ex-amante Adélia, ao primo Carlos e à empregada dona Eduarda, conhecer o pai
póstumo, seus amores e seus ódios.
Numa narrativa abarcante, o escritor cabo-verdiano Germano Almeida nos apresenta
os mundos paralelos, as hipocrisias sociais, a ingratidão e a luta desesperada do menino
de pés descalços que vai para São Vicente fazer a vida, enriquece e, apesar de suas
conquistas, passa a vida no limbo das classes sociais sem reconhecer a sua origem no
pobre menino oriundo de São Nicolau ou ser aceito pela elite local nos clubes
aristocráticos.
O sobrinho Carlos foi morar com o tio ainda menino. Decepcionou-o quando não
mostrou aptidão pelos estudos na juventude, pois o Sr. Napumoceno considerava que
somente os livros e a escola faziam os homens. Contudo, quando teve oportunidade,
demonstrou um excelente tino comercial, ampliando e “desburocratizando” ainda mais
os negócios do tio. Carlos recebeu a carta com o último pedido do morto: ser enterrado
com a marcha fúnebre de Beethoven e o atendeu mesmo tendo sido afastado da
condição de membro da família. Sr. Napumoceno deixou-lhe como legado apenas um
pardieiro para sua velhice.
A relação ambígua marca a extensão da gratidão e do ódio. Carlos conhecia a
história do tio, como ele também fora um menino descalço vindo de São Nicolau. Este
fato era suficiente para o Sr. Napumoceno perceber a zombaria em seu olhar e tê-lo
sempre sob escorreita vigilância.

101
Sr. Napumoceno gostava da pobreza envergonhada, de ser o protetor das várias
pessoas que batiam em sua porta e lhes rendiam os frutos de uma eterna e humilde
gratidão. O homem de negócios bem-sucedido precisava ser generoso para se redimir de
ter enriquecido com a desgraça de milhares de cabo-verdianos.
Assim como a vida do homem revelada após a sua morte e com a tentativa dos
órfãos de buscarem motivos para idolatrarem ou desmitificarem a história de sua
ancestralidade, são as obras dos governos que só mostram seus verdadeiros legados
depois de terminados e com cartas sibiladas que muitas vezes só serão compreendidas
após muitas buscas e testemunhos.
Germano Almeida alinhava com ironia e sarcasmo uma narrativa ímpar que prende
a atenção do leitor do primeiro ao último capítulo.

“O Testamento do Sr. Nepomuceno de Germano Almeida”, resenha por Helena Sut, in Equipe
Palavreiros da Hora, 17-3-2008,
http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/2008/03/17/testamento-do-sr-nepomuceno-de-germano-
almeida-resenha-por-helena-sut/

O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo


  PROPOSTA DE TRABALHO

A exposição é um tipo de discurso que tem por objectivo informar, definir, explicar,
esclarecer, discutir, provar e recomendar alguma coisa, recorrendo à razão e ao
entendimento.
O objectivo do trabalho agora proposto é fazer uma síntese interpretativa (a que
também se chama resumo crítico) das ideias principais de um conjunto de capítulos de
O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo de Germano Almeida.
Momentos específicos desta exposição oral:
1.  Reconhecer, genericamente, o ponto de vista do autor em relação ao(s) assunto(s)
tratado(s) (o autor questiona, defende, é de opinião, propõe, nega, contradiz, etc).
2.  Estruturar as ideias fundamentais do texto, não obrigatoriamente pela ordem em
que surgem no original, mas pela ênfase que nele assumem (ATENÇÃO: é obrigatório
indicar sempre as páginas correspondentes a cada ideia exposta).
3.  Proceder à respectiva análise literária, a saber:
a) Estatuto e características do narrador. Tome atenção às marcas de linguagem
reveladoras das atitudes subjectivas do narrador face ao que relata (uso de pontuação
expressiva e de modalizadores – vocábulos que expressam certeza ou probabilidade;
vocábulos que acarretam juízos de valor).
b) Personagens:
   quanto à caracterização/composição:
– personagens-tipo, caricaturais (há? Quem são? O que representam?);
– personagens complexas (características físicas, psicológicas, sociais, ideológicas,
morais);
   quanto à participação na acção:
– protagonista (herói ou anti-herói?);
– antagonista;
– personagens secundárias.
c) Tempo, espaço e características do ambiente:
   época em que se passa a acção;

102
   duração da acção;
   localização geográfica e respectiva caracterização do espaço
   aspectos psicológicos, morais, religiosos;
   aspectos sócio-económicos e políticos.
4.  Concluir a exposição oral de acordo com as ideias transmitidas e com o efeito e
disposição que se pretende causar no auditório (o aluno pode manifestar explicitamente
a sua opinião ou o seu julgamento acerca de algum aspecto que ache pertinente no texto
em análise).
 Material auxiliar permitido: quadro e plano-guia.

103
LITERATURA ANGOLANA – PERIODIZAÇÃO

1º período, das origens até 1848, a que chamamos de Incipiência. A literatura


angolana começou, pelo menos, com o livro de Maia Ferreira, em 1849m que a
introdução do prelo em Angola possibilitou. […]
 
2º período, que vai da publicação dos poemas Espontaneidades da minha alma, de
José da Silva Maia Ferreira, em 1849, até 1902. Período dos Primórdios, que
engloba uma produção poética remanescente do romanismo, com raros tentames
realistas, dos quais se destaca a noveleta Nga mutúri (1882), de Alfredo Troni. […]
 
3º Período, abrangendo sensivelmente a primeira metade do século XX (1903-
1947), de Prelúdio ao que viria a ser, na segunda metade do século XX, o nacionalismo
inequívoco e intenso.
A literatura colonial estende as suas milhares de páginas aos leitores europeus de
novidades tarzanísticas. Vigoram as temáticas da colonização, dos safaris, da aventura
nas selvas e savanas, numa panóplia de atracção exótica. O negro é figurante ou
personagem irreal. É o período em que o romance ou a novela de Castro Soromenho
ainda não se desprenderam de um certo etnologismo mitigado, em que o negro ainda é
observado através do filtro administrativo e preconceituoso, como facto e fautor de
curiosidades. […]
 
4.° Período, entre 1948 e 1960, fulcral na Formação da literatura, enquanto
componente imprescindível da consciência africana e nacional. Época decisiva,
considerada unanimemente como a da organização literária da nação, com base em
movimentos como o MNIA, o da Cultura e o da CEI, além de outros contributos, como
o das Edições Imbondeiro (de Sá da Bandeira). O Neo-realismo cruza-se com a
Negritude. Com os ventos de certa abertura e descompressão da política internacional,
a seguir à II Guerra Mundial, na Europa, como em África, animam-se as hostes
angolanas empenhadas em libertar-se das malhas estreitas da política colonial e,
portanto, de uma cultura alienada do meio africano. É nesse contexto brevemente
favorável que surge uma actividade marcada já fortemente por um desejo de
emancipação, em sintonia com os estudantes que, na Europa, davam conta de que, aos
olhos da cultura ocidental, não passavam todos de «cidadãos portugueses de segunda».
[…]
Na década de 1950, a poesia é a forma que mais convém. Aproveitam-se as
conquistas do modernismo, com o verso livre e os temas arrojados, e toma-se o
exemplo dos grandes bardos criadores de longos textos, quase excessivos, por vezes a
tenderem para o prosaico, como Walt Whitman, Maiakovsky, Álvaro de Campos,
Nazim Hikmet ou Pablo Neruda. O caminho poético pode assim congraçar as três
vertentes de júbilo ideológico: o povo, a classe e a raça. O povo é negro, trabalhador,
explorado e oprimido. Numa palavra: colonizado. Fundamentalmente, traça-se o quadro
ou alude-se a figuras paradigmáticas de colonizados: contratados, prostitutas, escravos,
moleques, ardinas, lavadeiras, estivadores, analfabetos, serviçais, etc. Pertencem à raça
negra ou, no máximo, são mulatos, mas raros. A Negritude concede-lhes o sentimento
de exaltação da raça negra, nomeadamente na solidariedade com os negros do Novo

104
Mundo e, por outro lado, sublinha o reconhecimento das raízes, que são étnicas, tribais,
mergulhando nos milénios. […]
 
5.° Período (1961-1971), relacionado com o incremento da actividade editorial
ligada ao Nacionalismo declarado ou encapotado, em que surgiram textos de temática
guerrilheira, enquanto no ghetto das cidades coloniais, nas prisões ou na diáspora os
temas continuavam a ser os do sofrimento do colonizado, da falta de liberdade e da
ânsia de tomar o destino nas próprias mãos. Em 1961, começa a luta armada de
libertação nacional. […]
A atribuição do Grande Prémio de Novelística a Luuanda (1964), de José
Luandino Vieira, pela Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), quando este se
encontrava preso por «actividades terroristas», no Tarrafal (em Cabo Verde), despoleta
uma repercussão a nível de Portugal e círculos internacionais, tornando-o, com
Agostinho Neto, o escritor mais conhecido. Outros escritores passam pelas prisões ou aí
permanecem longos anos: Uanhenga Xitu, Manuel Pacavira, Jofre Rocha, Aristides
Van-Dúnem, etc. […]
 
Segundo Francisco Soares (in Notícia da literatura angolana, IN-CM, 2001, p. 209) “[…]
três grupos distinguem os autores dos anos 1960: o primeiro é constituído por
aqueles que escreviam no país colonial (Arnaldo Santos, Jorge Macedo, o trânsfuga
futuro Cândido da Velha – e, na opinião de Venâncio, João Abel); o segundo é
constituído por aqueles que compunham fora do país (e de que Manuel Rui, também
ficcionista, constitui o principal exemplo, residindo em Portugal – sendo Lara Filho um
meio-exemplo, porque escreveu em Portugal e em Angola); o terceiro é constituído
por aqueles que viviam nas zonas de guerrilha e está praticamente só representado
por Pepetela (outro escritor oriundo de Benguela, de seu nome completo Artur Carlos
Maurício Pestana dos Santos). No entanto, Pepetela (que se inicia na antologia Contos
d’Africa da Imbondeiro) só publica nos anos 70, tal como João Abel, e os seus
primeiros livros (os dos anos 60) foram escritos em Lisboa e Argel, deles apenas
sobrevivendo Muana Puó e Mayombe (aquele escrito em Lisboa, este em Argel), pelo
que a chamada literatura de guerrilha se pode dizer que, praticada por autores revelados
nos anos 60, foi pouco significativa (dela vieram, sobretudo, As Aventuras de Ngunga).”
 
6º Período, de 1972 a 1980, o da Independência, repartido por dois curtos
períodos, de 1972-74 e de 1975-80, relativos, respectivamente, a uma mudança estética
acentuada, de uma modernidade acertada pelo relógio dos grandes centros mundiais, e,
por outro lado, após a independência, a uma intensa exaltação patriótica e natural
apologia do novo poder. […]
 
7º Período, (1981-1993), de Renovação, que começa com a formação, em 1981, da
Brigada Jovem de Literatura. Num primeiro momento, a Brigada, dependente sempre do
apoio estatal, partiu em busca de certa autonomia decisória e estética, mas revelou-se
herdeira do realismo social. O objectivo fundamental era preparar alguns jovens para o
trabalho literário, tanto mais que, após a escolarização secundária, não tinham, no país,
estudos superiores de literatura desenvolvidos. […]
A partir de uma certa altura foi possível começar a publicação de obras consideradas
incómodas para o poder político, como o romance Mayombe, de Pepetela, escrito ainda
durante a guerrilha. Variadas tendências estéticas e ideológicas ganharam espaço e
impuseram as suas obras. 

105
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta,
1995, pp.36-43

A literatura angolana derivou para a tendência de contestar, finalmente, a tradição


realista, engagée, documentalista e ideo-política, sem que, todavia, isso significasse o
abandono desse filão que a própria realidade histórica e política e a condição social e
cultural do escritor continuavam a suscitar. Digamos que a temática e os espaços social
e cultural patenteados nos textos passaram a alargar-se consideravelmente, apresentando
desde o amor e a angústia existencial, às vivências do poder estabelecido ou do poder
opositor do regime. As novas tendências incluem desde o gozo do experimentalismo,
como em O caçador de nuvens (1993, poemas), de João Melo, à ficção científica, em
Titânia (1993, romance), de Henrique Abranches.

http://www.uc.pt/litafro/bibliog.html

[…] a poesia angolana vai evoluindo, de 1950 para 1990, da poética mensageira
para a, mais apurada, de Mário António, necessariamente actualizada pelos novos
paradigmas estéticos europeus – mas também, em vários casos, mais aproximada dos
ensinamentos técnicos da oralidade.

Francisco Soares, Notícia da literatura angolana, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, p. 207

106
 A POESIA ANGOLANA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX
 

Como acontece com os outros países, a literatura de Angola também não nasce por
método espontâneo. Vários são os antecedentes e os precursores que influenciam
sobremaneira o carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em
particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande influência, a tradição
da oralidade em África, quanto a mim, um dos antecedentes de maior responsabilidade.
O peso da oralidade exerce-se em muita da obra poética africana, conferindo-lhe uma
grande carga de "espiritualismo telúrico". Podemos considerar a história da poesia de
Angola em duas fases, sendo a primeira a da escrita colonial, e a segunda a da
poesia moderna e nacional, que se inicia com a publicação da revista Mensagem,
em 1951.
Mensagem marca, assim, o início da poesia moderna de Angola. Nesta revista
participa uma plêiade de escritores que serão os responsáveis pela construção da
literatura do novo país, nascido em 1975. No primeiro número de Mensagem
colaboram, entre outros, Mário António, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara,
António Jacinto e Mário Pinto de Andrade. A publicação da revista, no dizer de Ana
Mafalda Leite, "foi o resultado concreto da ambição desta nova geração de intelectuais
de Angola de amplificar o movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da
Cruz."
A produção poética angolana [na segunda metade do século XX] abrange três
grandes períodos: de 1950 a 1970; o período de inovações – a década de 70; e a
geração de 80. Vejamos, em resumo, o que se passa em tais espaços de tempo.
As duas décadas de 1950 a 1970, marcam a fase da viragem para a
conciencialização da problemática angolana, sobretudo em três grandes vertentes - a
terra, a gente, e as suas origens. A temática dos escritores da Mensagem gira à volta de
tópicos que vão caracterizar a poética que existe até aos nossos dias: a valorização do
homem negro africano e da sua cultura a sua capacidade de auto-determinação, a nação
africana que se antevê como estado com autoridade e existência próprias. Muita da
poesia é uma poesia de protesto anti-colonial, sem deixar de ser humanista e social.
Agostinho Neto, Viriato Cruz e Mário António concentram muito da sua produção nesta
temática.
O protesto anti-colonial toma uma feição muito mais directa e acutilante com a
publicação da revista Certeza, em 1957. Esta revista, que se publica até 1961, revelou a
existência de novos poetas, entre eles António Cardoso e Costa Andrade. Para além da
contestação contra o colonialismo, desenvolve-se progressivamente uma temática que
tem a ver com a evocação e a invocação da "mãe-pátria", da "terra grande" de África.
Quase todos estes poetas tratam os temas da identidade , da fraternidade, da terra de
Angola pátria de todos, negros, brancos e mestiços; de grande importância é também o
tópico da alienação (sobretudo a que respeita ao estado de espírito do branco nascido e
criado em Angola). Muita da poesia é também de carácter intimista, como é o caso da
de Mário António.
Toda esta geração, utilizando recursos líricos e dramáticos, consegue criar uma
poesia de fundo e cariz emocional. Através da poesia, descobre-se Angola, as suas
origens, as suas tradições e mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedagógica e
didáctica: com ela tenta-se recriar África e Angola, os valores ancestrais do homem
africano e da sua terra, bem como ensinar esse mesmo homem a descobrir-se como
individualidade. Esta poesia põe em prática a reposição da tradição oral, onde as

107
próprias línguas nacionais ocupam um espaço importante. É, numa palavra, a poesia da
"angolanidade".
O autor que representa melhor toda esta problemática é, sem dúvida, Agostinho
Neto. A sua obra principal, Sagrada Esperança, é uma amostra valiosa não só da poesia
de combate e contestação (sem ser panfletária, no entanto) mas também da poesia lírica
e intimista, frequentemente modulada por uma religiosidade profunda. Agostinho Neto
revela um grande humanismo, em que são evidentes o amor profundo pela vida e o
conhecimento do sofrer humano, que amiúde obriga o poeta a utilização de um realismo
feroz nos seus versos. Leia-se, como exemplos poemas "Velho Negro" e "Civilização
Ocidental". Se dizemos que há poemas intimistas, tal não significa que o poeta se isole
de habitat social e perde a referência fundamental da sua poesia. É constante a relação
estabelecida por Neto entre o "eu" poético e o "outro"; um "eu" que é povoado pela
humanidade e colocado no contexto da vida do seu povo. Veja-se ,por exemplo, o
poema "Confiança" e o poema intitulado "Não me peças sorrisos", que, a meu ver, é um
dos melhores poemas de Agostinho Neto. Como o próprio título sugere, é evidente que
a esperança é o tópico raiz e motor desta poesia. A esperança é o núcleo à volta do qual
se constroem unidades poéticas de ralação dialéctica, como sejam a dor e o optimismo,
o sonho do poeta e o despertar do povo, a escravidão e a fé de transcender a opressão.
Não podemos falar de sentimentalismo nesta poesia, mas sim de realismo poético. Eu
chamaria atenção para o bom exemplo que é o poema "O choro de África". Neste
poema o poeta fala do "sintoma de África", que é uma combinatória dialéctica do
sofrimento e da alegria que temperam, durante séculos, o homem africano, cujo destino
é "criar amor com os olhos secos". Como resultado desta temática, o estilo de Agostinho
Neto revela grande contenção de forma, onde não há lugar para floreados poéticos e
apelos fáceis à emoção, pese embora o seu cunho profundamente religioso.
Na década de 70 surgem três nomes que vão ser os principais responsáveis por uma
mudança profunda na estética e na temática: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e
Arlindo Barbeitos. Por um lado, procura-se maior rigor literário; por outro, e como
consequência do anterior, evita-se propositadamente o panfletarismo. Entra-se também
numa fase de maior experimentalismo. Estes autores tentam também reconciliar os
temas políticos do passado com a procura de uma linguagem poética mais universal. Por
exemplo, Ruy Duarte de Carvalho é autor de uma poesia que, ao lado de uma grande
ambiência de oralidade e de um apontar para as consequências da guerra constitui
também uma reflexão sobre o próprio discurso poético. É, no entanto, Arlindo Barbeitos
a voz poética que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradição da Mensagem.
Arlindo Barbeitos tem, até o momento, dois livros publicados: Angola Angolê
Angolema (1976) e Nzoji (1979). Numa nota de introdução a Angola Angolê Angolema,
Barbeitos traça as linhas mestras de sua poética. Assim, a sua poesia tenta ser uma
reconciliação do homem com a sua condição; é um testemunho e um instrumento de
libertação. A poesia tem como função primordial sugerir; ela é um compromisso entre a
palavra e o silêncio. A outra função é a de relatar as formas culturais africanas e a
vivência do autor. Arlindo Barbeitos afirma, a propósito, que "só é poesia se sugere, só
tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e
transcende a palavra". Sobre as características da sua poesia, devemos dizer que ela é
religiosa na medida em que nela se relata a experiência do ser humano que procura
sempre a perfeição; por outro lado, há sempre o desejo de retorno à imanência, e a
vontade de construir a irmandade universal. É, também, uma poesia que reflecte a dor, a
guerra , a situação colonial. Em relação à língua, Arlindo Barbeitos tenta, e consegue,
africanizar a língua colonial, numa tentativa continuada de repossuir todos os valores e
tradições culturais do país.

108
A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo ecletismo é a
característica mais marcante. Digna de nota é uma pequena antologia publicada em
1988, e intitulada no Caminho Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da
antologia deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova poesia
angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há poetas que são artistas nos seus
versos como carpinteiros nas tábuas. Tiveram que pôr verso sobre verso como quem
constrói um muro. Analisaram se estava bem e tiraram sempre que não estivesse,
sentados na esteira do Pessoa, [...] Jovens subscritores de uma auto-explicação
metalinguística em que a ruptura formal não é tudo." (J. A. S. Lopito Feijoó, No
Caminho Doloroso das Coisas-Antologia, Luanda, UEA,1988).

José Francisco Costa, http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1208, 5/4/2006. 

SOB O SIGNO DE UMA NOSTALGIA PROJECTIVA: A POESIA


ANGOLANA NACIONALISTA E A POESIA PÓS-
COLONIAL                                                                                                                     
                           

    Não me parece excessivo afirmar que, hoje, a literatura angolana, reagindo à
intrigante e nada apaziguadora (pelo menos até 2002) dinâmica da situação pós-colonial
do país, vive um período de singular ecletismo estético e produtividade reflexiva. Tal se
deve a uma dialogia transtextual e intergeracional e à necessidade de repensar o país,
tarefa a que a literatura se assume como vanguarda, continuando a ser veículo
privilegiado da actividade reflexiva, agora quase substituindo os cientistas sociais
(historiadores, sociólogos, politólogos) no registro e análise dos acontecimentos e
fenómenos que ainda não foram erigidos a “objecto” de estudo. No entanto, apesar de a
literatura angolana continuar ainda a cerzir a identidade na senda da história e das
imagens e memória dela, os pressupostos e os destinadores hoje são “outros”, ou antes,
essa alteridade já não remete apenas para os sujeitos “do exterior”, mas também
contempla aqueles “mesmos” que são partícipes de um estado de coisas. Isto é, as novas
gerações de escritores assumem de forma incisiva a “internalização” do olhar e não
descuram as “novas” relações de poder. Este ensaio põe em diálogo a poesia consagrada
dos poetas da “geração da Mensagem”, em especial a poesia de Agostinho Neto
(Sagrada esperança), e a poesia pós-colonial, da “geração das incertezas, a saber:
Adriano Botelho de Vasconcelos, Abismos do silêncio (1996) e Tábua (2004); José
Luís Mendonça, Quero acordar a alva (1997) e Ngoma do negro metal (2000); João
Maimona, A idade das palavras (1997) e Retrato das mãos (incluído em Festa da
monarquia, 2001); Paula Tavares, Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001) e
Ex-votos (2003) e Maria Alexandre Dáskalos, Jardim de delícias (1991) e Lágrimas e
laranjas (2001). 

109
ALDA LARA

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
 

Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu em Benguela, Angola, a 9


de Junho de 1930, e faleceu em Cambambe, Angola, a 30 de Janeiro de 1962. Era
casada com o escritor Orlando Albuquerque. Muito nova foi para Lisboa onde concluiu
o 7º ano dos liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra,
formando-se por esta última com a apresentação da tese de licenciatura sobre psiquiatria
infantil. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do
Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos, que então quase
ninguém conhecia. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira
instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe
postumamente toda a obra e nesse caminho reuniu e publicou já um volume de poesias e
um caderno de contos. Colaborou em alguns jornais ou revistas, incluindo a Mensagem
(CEI). Figura em: Antologia de poesias angolanas, Nova Lisboa, 1958; amostra de
poesia in Estudos Ultramarinos, nº 3, Lisboa1959; Antologia da terra portuguesa -
Angola, Lisboa, s/d (1961?); Poetas angolanos, Lisboa, 1962; Poetas e contistas
africanos, S.Paulo, 1963; Mákua 2 - antologia poética, Sá da Bandeira, 1963; Mákua 3,
idem; Antologia poética angolana, Sá da Bandeira, 1963; Contos portugueses do
ultramar - Angola, 2º vol, Porto, 1969. Livros póstumos: Poemas, Sá da Bandeira,
1966; Tempo de chuva, 1973.
Segundo Orlando de Albuquerque, no prefácio ao livro de Poemas de Alda Lara (Porto, Vertente,
1984, 4ª ed.), “a sua poesia caracteriza-se por uma intensa angolanidade implícita e,
sobretudo, por um extremo amor e carinho, quase ternura, pelos outros. Ternura de
menina-mulher, que sofria com os sofrimentos alheios, que vibrava com as desgraças da
sua terra […]”.

 José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

110
A ESCRITA FEMININA NO PANORAMA LITERÁRIO
AFRICANO EM LÍNGUA PORTUGUESA

A produção literária de autoria feminina ainda é muito incipiente nos países


africanos de língua portuguesa. Isto constitui um paradoxo, já que durante as lutas
libertárias as mulheres desempenharam importante papel político nas organizações que
lutavam contra o colonialismo. […]
No cenário literário angolano figura como precursora na poesia Alda Lara, autora de
Poemas (1966), Poesia (1979) e de um livro de contos intitulado Tempo de Chuva
(1973). A temática de sua obra é a opressão, que assola homens e mulheres em geral, e,
apesar de abordar questões universais como a fraternidade, a solidariedade e a paz, seu
enfoque poético está direccionado para as formas de acção feminina na busca do espaço
sonhado, em especial nos anos de 1950-1960, quando se intensificava o projecto
libertário angolano.
Tal projecto se nutria da utopia de homens e mulheres compartilharem a construção
da nação idealizada pelos angolanos. Com nítida percepção do sofrimento que assolava
a humanidade da época, Alda Lara ultrapassa a concepção nacionalista para ouvir as
«vozes silenciadas» além da África de língua portuguesa:

POEMA

Os gritos perderam-se sem encontrar eco.


Os punhos cerrados e os ódios calados
Dividiram os Homens,
que se não reconheceram mais...

Mas as lágrimas cavaram sulcos fundos


nos olhos vazios de esperança,
e os sulcos não se apagaram...

Trilhando entre o «eu», o sonho e o povo, características que a aproximam de Alda


Lara, Noémia de Sousa direcciona seus versos para apreender o próprio «eu» como
expressão da subjectividade feminina repleta de imagens que corporificam os desejos
«espirituais, admirações, dores e sensações» (Inocência Mata, Literatura Angolana: silêncios e
falas de uma voz inquieta, p. 122). […]
Numa leitura intertextual entre «Negra», de Noémia de Sousa, e «Prelúdio» [1], de
Alda Lara, verifica-se a força da voz poética feminina, que no dizer de Inocência Mata,
em Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, se liga à ideia de
regresso e comunhão com a Terra, com o Povo e com a causa colectiva.
As seguintes estrofes do poema «Prelúdio», de Alda Lara, ilustram a busca da
identificação imagética da situação a que foram expostas as comunidades africanas de
língua portuguesa, em especial as mulheres, durante a colonização:  

Pela estrada desce a noite… Quem ouve agora as histórias


Mãe-Negra, desce com ela... que costumava contar?...

Nem buganvílias vermelhas, Mãe-Negra não sabe nada...


nem vestidinhos de folhos,

111
nem brincadeiras de guisos, Mas ai de quem sabe tudo,
nas suas mãos apertadas. como eu sei tudo
Mãe-Negra!...
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas. Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
Mãe-Negra tem voz de vento, que costumavas contar...
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro... Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada... Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
Que é feito desses meninos bem quieta bem calada.
que gostava de embalar?...
É a tua a voz deste vento,
Que é feito desses meninos  desta saudade descendo,
que ela ajudou a criar?... de mansinho pela estrada…

Lisboa, 1951
As marcas da oralidade e da História permeiam a poesia de Alda Lara […].
Entre os temas propostos pelas escritoras, está o repensar da condição feminina,
num cenário social marcado pela opressão, pela submissão feminina e pelas guerras
coloniais que silenciaram a confraternização presente no ritual do contar estórias em
volta das fogueiras. Mas há também lugar para o amor revivificado na intersecção dos
tempos, ponto de convergência entre tradição e modernidade.
A poética e a prosa femininas nas comunidades africanas de língua portuguesa
colocam o leitor diante de cenas e sinais de mulheres em espera e acção, em silêncio e
canto, em cansaço e renovação, metaforizadas por vozes marcadamente orais que
aproximam os sentidos na reescrita literária, reinventando imageticamente o papel da
mulher nessas comunidades.  

Jurema Oliveira, “A escrita feminina no panorama literário africano em língua portuguesa: Alda
Lara,
Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane” in http://www.uea-
angola.org/artigo.cfm?ID=657, 2002.

[1]
Alda Lara, aquando da sua passagem por Coimbra, manifesta saudades não só das acácias rubras e
buganvílias de Benguela como também das pessoas, como a sua velha ama negra – Lydia – a quem
dedicou o poema “Prelúdio”. (cf. Alda Lara na moderna poesia angolana, Amândio César).

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

ALDA LARA NA REVISTA MENSAGEMro, http.pt/alda_lara.htm,

A poetisa Alda Lara aparece na antologia [revista Mensagem] com alguns de seus
mais conhecidos poemas. As características mais significativas de sua poesia são, sem

112
dúvida, a expressão de um grande amor ao seu semelhante e a acolhida ao sofrimento do
outro. Estas características podem privilegiar visões contrastantes sobre a beleza da
natureza e o sofrimento do angolano (conforme “Prelúdio”) ou declarar um amor
intenso a Angola, valendo-se da poesia para descrever as belezas “das acácias, dos
dongos e dos cólios” que marcavam um forte contraste com os cenários europeus. É
interessante observar, nos poemas de Alda Lara, uma preocupação visual que se
concretiza na composição de pequenos quadros que procuram captar as belezas de
Angola, metonimizada pelos “coqueiros de cabeleiras verdes”, e de sol ardente e pelas
“acácias rubras, /salpicando de sangue as avenidas, /longas e floridas” (p. 111). Distante
das descrições de cenários africanos presentes na chamada “literatura exótica”
produzida em vários momentos do período colonial ou nas famosas “cartes de visite”,
postais ilustrados com paisagens e tipos humanos dos espaços colonizados, produzidos
com a intenção de vender a diferença exótica aos europeus, os cenários poéticos criados
com detalhes da natureza africana produzem outros significados na poesia de Alda Lara.
A intenção mais evidente em seus poemas é a de expressar um grande amor à terra
angolana (“Noites africanas langorosas/esbatidas em luares..../perdidas em
mistérios…“)[1], exaltar a exuberância das cores das flores e os odores dos frutos, e,
através desses artifícios de motivação pictórica, denunciar a opressão sofrida pelos
angolanos, seus irmãos. Por isso, em alguns poemas, os recursos picturais utilizados
pela poetisa procuram ressaltar o horror disseminado por ações humanas, pela opressão
intensa sofrida pelo seu povo. Por isso é preciso considerar que, na poesia de Alda Lara,
a descrição do horror e de atrocidades figura intenções que vão além de aspectos
meramente descritivos. As cenas de mutilação, tal como aparecem, por exemplo, no
belo poema “Momento” almejam descrever sentimentos de compaixão, repúdio, mas
também dão à descrição um peso que ratifica a denúncia e inscreve nos versos a
abjeção. Nesse sentido é importante prestar atenção ao uso intencional do gerúndio que
funciona nas estrofes como uma espécie de pontuação dos focos que devem ser
observados pelo leitor/expectador: 

Nos olhos dos fuzilados,


Dos sete corpos tombados
De borco, no chão impuro
Eis!
...sete mães soluçando...

Nas faces dos fuzilados,


Nas sete faces torcidas
De espanto ainda, e receio,
sete noivas implorando...

E do ventre de além-mundo,
Sete crianças gritando
Na boca dos fuzilados...
Sete crianças gritando
Ecos de dor e renúncia
Pela vida que não veio...

Na boca dos fuzilados


Vermelha de baba e sangue,
…sete crianças gritando!

113
(112-113).

O impacto da cena descrita, com recursos visuais explorados com grande perícia
pela poetisa, fica intensificado na referência à dor das mães, das noivas e na alusão às
crianças, que, por uma estratégia discursiva de grande efeito, podem ser visualizadas
porque assim o permitem os significantes que compõem o primeiro verso da 3 estrofe:
“e do ventre de além-mundo”, distendendo o tempo da ação invocada pelo poema.
No poema “Regresso”, referentes da terra angolana são empregados para ressaltar
as cores vivas e os odores fortes que compõem paisagens singulares. O eu-poético se
registra com marcas de intensa subjetividade e as paisagens lembradas são esmiuçadas
para compor cenários em que as cores das casuarinas, das acácias rubras e dos cheiros
exalados pelo “húmus vivificante” e pelo desenho do mar que contorna “uma cidade em
convulsão” possam construir uma visão em que o feminino se mostra com intensidade
na declaração do amor pela terra natal.
Conforme se destacou em outro trabalho, a visão e o olfato são os sentidos
privilegiados para propiciar recortes em que a terra africana é descrita em toda sua
pujança, vista como um lugar paradisíaco, onde é possível viver o “prazer sem lei”
expandido em excesso (cf. FONSECA: 2004). A simbologia da Mãe-Africa, reiterativa
nos poemas de afirmação da identidade africana, inscreve um outro olhar que procura
descrever os cenários da terra aquecida por um sol “esplendoroso e quente”. Também
no poema “Presença [Africana]”, a relação entre o feminino e a terra angolana, entre o
corpo da mulher e o da terra africana, ressalta aspectos que tornam Angola um micro-
cosmo de um continente significado por “coqueiros de cabeleiras verdes! e corpos
arrojados sobre o azul”. Nesse poema, a mulher, literariamente construída (“E apesar de
tudo/ainda sou a mesma!/Livre e esguia”), realça-se com os atributos da terra africana e,
através desse recurso poético, concretiza uma visão feminina do ideal a ser conquistado.
A terra do “dendém”, “das palmeiras”, das “acácias rubras” é percebida através de
atributos que se relacionam com a função materna (“mãe forte da floresta e do deserto”)
ou com um sujeito que se declara afetivamente irmã (“ainda sou /a irmã-mulher”).
Assim os poemas de Alda Lara, ao cantar o amor pelos irmãos miseráveis ou construir
flagrantes em que a beleza da terra angolana é reiterada, expande o intimismo e faz da
visão um mecanismo hábil à apreensão de cenários em que o outro (a Mãe-negra, os
oprimidos, os companheiros de ideal) é a motivação maior de uma arte feita com a
escrita. 

“Mulher-poeta e poetisas em antologias africanas de língua portuguesa: o feminino como exceção”


por Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-Minas, Brasil) in A mulher em África – Vozes de uma margem
sempre presente, org. Inocência Mata e Laura Cavalcante Padilha, Lisboa, Edições Colibri, 2007, pp.
498-500
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm ).

Versos do poema “Noite”, escrito em Outubro de 1948 (FERREIRA, p. 115).

 ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO DA POESIA DE ALDA LARA

Alda Lara pertence a um núcleo de alta burguesia comercial, que dispunha das
disponibilidades necessárias para dar aos filhos cursos superiores nas terras longes de
Portugal. Elemento este que, como é óbvio, nos ajuda a colocar o poeta e a entender
melhor a articulação do seu canto. Em tal caso a poesia surge como uma soma orgânica
114
de conteúdos humanos e a poesia sugere a elaboração de uma atitude coerente que
representa a totalidade de uma acção humana. Neste aspecto a poesia de Alda Lara
caracteriza não só o ambiente Benguelense que foi o da sua infância e de parte
substancial da sua adolescência, mas também o despaisamento, o exílio, como será
melhor dizer, do estudante angolano nas universidades portuguesas. 
Decerto que Alda Lara só por reflexo familiar sentiu a totalidade dos problemas
cívicos que atingiram o cume nos anos 40; não os podia ainda investigar e sentir com
exacto conhecimento de causa. E o facto de ter abandonado Benguela muito cedo para
fazer em Lisboa e em Coimbra o seu curso de medicina, iria deixar-lhe na retina o canto
rubro e incendiado (para alguns poetas angolanos também incendiário) das acácias das
ruas de S. Filipe de Benguela, os cólios e os coqueiros e também a imagem dos
quintalões benguelenses, que eram ainda o compromisso entre uma cultura que
procurava assentar as suas bases numa efectiva mestiçagem e o despontar de atitudes
mais rígidas entre as etnias (que a rápida valorização dos «produtos coloniais», nos anos
seguintes a 1945 firmou definitivamente) que hoje são moeda corrente. Não podemos
esquecer que é desse ambiente que lhe nasce o pendor patriarcalista que pode beber
ainda no trato familiar, embora muitas vezes se perturbe perante a mestiçagem que é
elemento comum, irreversível. Como já iremos ver, a atitude irracional da poesia de
Alda Lara, assenta em grande parte numa atitude utópica, que desconhece os elementos
imediatos do real. 
A poesia de Alda Lara está incompleta. É, antes de mais, uma poesia que vive no
mundo da infância ou de uma primeira fase da adolescência. Poesia duplamente exilada,
por consequência. Toda a vida interior do poeta se articula em relação a uma
angolanidade que, embora não sendo conjugada com todos os elementos do real, é no
entanto uma força aglutinadora que não pode ser descurada, mas nas palavras
entrevemos, implícito ou explícito, o sentimento do exílio e, algumas vezes, a suspeita
dolorosa de que a sua angolanidade não se apoderou dos elementos mais significativos.
Ou, se não quisermos ir tão longe, a poesia sente que não cuidou de se apoderar de
todos os elementos significativos. É este sentimento angustioso que leva Alda Lara a
escrever no poema «Presença [Africana]», em que se promete à sua terra, ainda
intacta, ainda idêntica a rapariguinha que saiu de Benguela, não para se deixar destruir
nas terras frias e opacas da Europa, mas sim para regressar viva, senhora de uma sageza
actuante. Eis que Alda Lara examina os seus mínimos gestos para saber se, realmente,
enquanto anda, bebe, dorme, trabalha, passeia, não se transformou na Outra, que
poderia trair, que por certo trairia, a sua mesma angolanidade. Problema que, em tal
caso, a obriga a verificar as roldanas da sua intimidade, para acabar, por verificar que,
apesar de tudo, é ainda a mesma (mas quanta inoculta angústia aqui se insinua, no
receio de que alguém possa destruir a afirmação denunciando-lhe os desvios). Pois é
esta forma adversativa que nos importa reter já que através dela chegaremos ao cerne de
uma poesia desgarrada, por não lhe ter sido possível viver os problemas na sua
imediatidade, pois eram elementos apenas sentidos. Não esqueçamos que lhe faltam
pontos de referência, e que a sua linguagem trabalha num vácuo que o poeta não pode
evitar; deseja ir ao mais fundo dos problemas, mas não lhe estão próximos, sente-os por
refracção. E a ordem da sua poesia não é já um lento caminhar através das essências de
uma angolanidade racionalmente estruturada, mas um assalto precipitado aos signos,
engendrando um estilo que, embora dotado de boas qualidades rítmicas, pretende chegar
depressa. Esta busca apaixonada da sua própria raiz, não aniquila a possibilidade de um
estilo, mas corroe o imo significativo da poesia transformando-a num elemento
ambíguo. Coisa que Alda Lara sente, e que nos leva a concluir que a sua poesia não
chegou a completar-se. Em vez do círculo fechado e total, temos o ângulo raso. 

115
Vejamos outro poema de Alda Lara, em que é utilizada uma técnica contrapontística
para nos fazer sentir, mais do que mostrar-nos, a sua angolanidade. É um dos seus
poemas mais conhecidos, o «Regresso», que assenta, em primeiro lugar, na noção de
exílio, fornecida pelo primeiro verso («Quando eu voltar»). Essa mesma noção irá
depois estabelecer o contraste entre os elementos citadinos, digamos lisboetas ou
coimbrões, e os elementos ecológicos que definem a presença de Benguela. Uma
presença em que distinguimos uma lenta cópula entre o azul ultramarino e o verde
intenso, glauco. É assim que pressentimos que o poeta se viu forçado a fazer o
inventário dos objectos da cidade, estabelecido através de um novelo de sensações que
são não só conscientes, mas também inconscientes e sub-conscientes. Neste caso,
recorrendo à psicologia, verificamos que a «doce confusão natal» está recheada de
elementos que, racionalmente, o poeta seria incapaz de expor coerentemente. E a
exarcebação dos sentidos a que a força a cidade (torna-se necessário reconhecer, não o
esqueçamos, todos os objectos que encontra e, também, indicar-lhes a função e o lugar
respectivo; quer dizer que se trata de estabelecer uma nova hierarquia, tanto para os
objectos como para os actos; naturalmente também para os pensamentos, o que, no caso
peculiar de Alda Lara, força a pesquisa de novos dominadores para os sentimentos),
leva-a a evocar os planos mais calmos da cidade natal, que é não um elemento de
Angola, mas sim a sua Angola. Vejamos mais de perto o problema transposto para a
poesia: «não mais o pregão das varinas, / nem o ar monótono, igual, / do casario
plano…»; o contraponto fornecido pela fímbria costeira aparece imediatamente, para
devolver o poeta ao seu terreno natal ou seja, a consciência de um lugar que lhe é
próprio e cujas peculiaridades são, por assim dizer, anteriores ao seu nascimento. Alda
Lara sente-as não já como um elemento geral do meio ambiente, mas sim como coisa
que lhe foi previamente destinada e que, portanto, não é obrigada a estudar e a valorizar;
as coisas (os objectos e os actos existiam antes e, por isso, a sua identificação está
garantida por uma intimidade que o poeta não poderá nunca ter com os elementos das
cidades portuguesas: «hei-de ver outra vez as casuarinas / a debruar o oceano...». E, na
terceira estrofe do poema, o plano dos sentimentos (que pressupõe um contínuo recurso
aos elementos do subconsciente e do inconsciente), surge com toda a veemência: «Os
meus sentidos, / anseiam pela paz das noites tropicais, / em que o ar parece mudo / e o
silêncio envolve tudo... / Tenho sede... / Sede dos crepúsculos africanos / todos os dias
iguais, / e sempre belos, / de tons quase irreais...». 
Já por várias vezes tenho mostrado que a presença do mundo da infância na poesia
angolana não é elemento que possa ser passado em claro, pois é ele uma constante.
Encontramo-lo tanto nos poetas do Norte, como nos do centro ou do Sul. E se o recurso
ao mundo da infância é, por via de regra, uma fuga ao mundo do homem adulto, do
homem da praxis social, devemos entender aqui o problema com uma óptica diversa.
Todos estes poetas procuram, projectando a poesia no passado, recuperar uma ausência
da cor, que permitia ver o mundo definido como uma totalidade onde não seria possível
discernir qualquer interstício traiçoeiro. A fragmentação do mundo em hierarquias de
cor, repele o poeta para uma marginalidade que não pode deixar de ser encarada. A
tentativa de solução do problema é, para alguns deles, uma projecção integral no
passado, que desconhece a solução dialéctica dos problemas. A formação católica de
Alda Lara iludiu-a sempre quanto à maneira de solucionar os problemas humanos. É por
isso que o mundo assume uma significação puramente individual e a sua poesia vive de
impulsos orgânicos, é certo, mas que não representam uma totalidade. Não esquecemos,
não seria possível esquecê-lo, que Alda Lara conhece a existência de um povo, mas as
suas preocupações nunca são profundamente sociais, ou pelo menos não compreende
ela os problemas ao nível da «acção histórica dos grupos». O apelo do povo, esse está

116
bem presente, mas Alda Lara não consegue descobrir os meandros da alienação, e a
ruptura entre a sua posição e a acção dos grupos surge no poema «Regresso», em que a
terra angolana nos é dada através de elementos impressionistas, onde o homem
angolano só está presente nas batucadas, que a infância do poeta recorda, «soando pelos
longes, / noite fora...». Excluindo-se voluntariamente do grupo, recusando-se, pois,
implicitamente, a somar a sua acção individual ao total das acções individuais que
formam a essência real da acção histórica do grupo, Alda Lara tinha forçosamente que
mergulhar num mundo de infância, que era o único capaz de lhe devolver a Benguela
quieta dos quintalões, das amas negras, da rua onze — e não esqueçamos que esta rua é
elemento poético usado também por Aires de Almeida Santos e Ernesto Lara (Filho); —
formando um paraíso ideal, mas completamente alheio à acção do tempo. 
Mas eis que parecem surgir em Alda Lara algumas tendências colectivas, que
pretendem devolver-lhe a noção de mundo total. É no poema «Presença [Africana]»
que entrevemos uma autocrítica dilacerar o conformismo da sua poesia, obrigando-a a
reexaminar o seu domínio próprio e a medir a relação existente entre o seu
comportamento e a totalidade dos comportamentos sociais onde se define uma
angolanidade empiricamente imediata. É por isso que os dois primeiros versos rompem
directamente para a matéria do poema: («E apesar de tudo / ainda sou a mesma!»), que
recordam um diálogo em que impende sobre o poeta a acusação de se ter modificado,
num sentido contrário ao que pretende afirmar a sua poesia. Para se caracterizar o poeta
há-de recorrer aos mais esplendorosos elementos do seu mundo infantil, pois que só
assim se poderá ainda reconhecer como pertencendo a esse mundo distante e que
alguém lhe mostra perdido por sua própria culpa; por isso ela é: «a dos coqueiros, / de
cabeleiras verdes / e corpos arrojados / sobre o azul... / A do dendém / nascendo dos
abraços das palmeiras... / A do Sol bom, mordendo / o chão das Ingombotas…/ A das
acácias rubras, / salpicando de sangue as avenidas / longas e floridas...», para se
apoderar logo de elementos humanos que não conhecíamos na sua poesia (que não
surgiam sequer no poema dedicado ao moçambicano João B. Dias[1]): «Sim! ainda sou a
mesma... / — A do amor transbordando / pelos carregadores do cais / suados e confusos,
/ pelos bairros imundos e dormentes / (Rua 11!... Rua 11!...) pelos negros meninos / de
barriga inchada / e olhos fundos… » É bem verdade que Alda Lara não se identifica
inteiramente com esta humanidade, que é para ela, se não no todo pelo menos em parte,
uma sub-humanidade (veja-se que os carregadores são suados — o que representa a
caracterização física imediata, resultado de um trabalho bruto e que se nos apresenta
como irracional, ou até como bestial; e confusos — o que pretende assumir um nível de
representação psicológica, que, no entanto, não podemos interpretar como uma hipótese
de fazer surgir a negação da negação, elemento dialéctico que Alda Lara não conhece, e
cuja validade se recusa aceitar). Mas não há dúvida de que o poema assume uma outra
capacidade de significação histórica, o que conduz o nível da significação puramente
individual para outro plano (o que serve para nos mostrar como se interpenetram os
elementos estéticos, filosóficos e outros, com os fornecidos pela biografia e pela
psicologia), em que a possibilidade de uma modificação do mundo, do real, surge,
impondo-se por força da própria redução do homem a um estado de sub-humanidade. O
absurdo da situação individual, ou o absurdo da posição de alguns grupos (o que
desvenda o papel das hierarquias da cor dentro deste plano), e a interpretação do mundo
angolano obriga Alda Lara a assumir a responsabilidade de novas coordenadas para a
sua angolanidade. Nenhum subjectivismo é possível, diz-nos o poeta, quando os negros
meninos mostram a evidência das suas barrigas inchadas (as barrigas de gimbonzo, do
vernáculo quimbundo), que denunciam, aos olhos do experto, uma ausência de
elementos vitamínicos e proteínicos (sabemos que as barrigas inchadas desaparecem

117
facilmente com uma dieta de leite bem equilibrada, mas o leite, sim, o leite onde está
ele?), e por isso, aqui se efectiva uma mistura, embora ainda não harmoniosa, os dados
sociológicos com os postulados éticos. 
A última estrofe do poema é elucidativa quanto ao sentimento de ambiguidade que
continua a atormentar Alda Lara: «Terra! / Ainda sou a mesma! / Ainda sou / a que num
canto novo, / pura e livre, / me levanto, / ao aceno do teu Povo!...» Aqui se prometia a
grande viragem na poesia de Alda Lara, pois que o poeta verifica existir como dado
funcional e integral de um povo, embora fosse ele sentido à distância (notemos que não
se trata do meu povo, mas antes do povo da terra angolana, o que denuncia um
afastamento que não podemos caracterizar agora e aqui). Assim as situações ganham
neste poema a sua dureza concreta e a absurdidade da ordem social pede uma acção que
o poeta ainda não sabe qual possa ser (embora saiba já que não basta exercer a medicina
com justa consciência profissional para estar plenamente justificada). Mas sabe, o que o
poema demonstra, que é necessário procurar uma posição em que o rigor da observação
do concreto, se ligue aos elementos individuais. A evolução de Alda Lara condu-la,
obrigando-a a percorrer um caminho sinuoso e semeado de obstáculos, à verificação de
que a vida social é essencialmente prática. Posição esta que só poderia encontrar a sua
amplitude natural se a Alda Lara tivesse sido possível continuar a sua obra na terra
áspera e suave de Angola, em contacto com a sua humanidade, com o seu povo. Este
objectivo não pôde ela cumprir racionalmente, mas o seu corpo o está objectivando, na
velha povoação comercial do Dondo, à sombra de uma das suas acácias rubras, símbolo
dos poetas angolanos que procuram fundar as razões para promover, sempre com mais
intensidade, a independência da sua poesia. 

Alfredo Margarido, “Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara”, in Mensagem, 1962


(apud Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Lisboa, Regra do Jogo, 1980,
pp. 300-307)
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm )

Poema “Rumo” dedicado ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951.

OS VALORES DO CENTRO

Se, simultaneamente, atentarmos nos textos escritos a partir do Centro e do Sul [de
Angola], verificaremos ainda que em alguns deles perpassa, ora uma tímida consciência
regional, ora uma procura de diferenciação face a Luanda. […]
Na apresentação da colecção Bailundo, no livro de Alexandre Dáskalos, há um
manifesto assinado por Ernesto Lara Filho e Inácio Rebelo de Andrade, que se
localizam no Huambo. A peça afirma claramente a intenção de “dar a conhecer os
valores do centro de Angola, ao mesmo tempo que se pretende estender dois braços —
um para o Norte e outro para o Sul [...] — para ligar num amplexo fraterno essas duas
correntes literárias já com vida própria [referem-se à colecção Autores Ultramarinos e à
Imbondeiro]. […]
Numa carta sintomática, enviada a Inácio Rebelo de Andrade a partir de Lisboa e
datada de 21 de Janeiro de 1962, Ernesto Lara Filho garante, a propósito da sequência a
dar à Colecção Bailundo: “Eu creio que a Alda, [...] depois do Aires e com os «apports»
do Alexandre Dáskalos e meu, apesar de pobres, temos muito ainda que dizer em
Angola, devemos dizê-lo. Acho melhor sacrificar o resto da colecção a essa necessidade

118
premente que há imediatamente, de dizer algo, sobre o Centro de Angola, literariamente
falando, claro. Aliás, autores ultramarinos acabam de publicar […] os seguintes poetas:
António Jacinto, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos, Manuel Lima, etc etc, dando um
carácter estritamente político à coisa. Bailundo é literatura como nós combinámos e de
«pés fincados na terra». Assim, eu creio que ainda e acima de Imbondeiro e Autores
Ultramarinos, vamos no caminho mais certo que é o moderado, o do centro, o do centro
de Angola, por casualidade.” […]
Numa carta de Alda Lara ao irmão (parcialmente copiada por este naquela a que
acabamos de aludir, e talvez escrita em 1961) a identificação regional da sua poesia é
igualmente assumida conectando-se com o distanciamento face à estrita partidarização
da Mensagem: “Gostaria que me dissesses o que devo fazer para te enviar uma selecção
dos meus poemas para a Colecção Bailundo. Creio já ser tempo de os pôr cá fora, e na
verdade gostaria mais de os vêr «integrados» na Colecção Bailundo do que na dos
Autores Ultramarinos. Nem sequer é por razões políticas. Nunca as tive e agora é que as
não tenho mesmo. A política e tudo quanto dela deriva dá-me vómitos, para te falar com
franqueza. E apenas porque situo a minha poesia mais próximo da tua ou da do Aires de
Almeida Santos do que da dos outros. Compreendido? Mais tarde, a geração futura
decidirá quais foram os verdadeiros «poetas». O resto é nada.” 

Francisco Soares, Notícia da literatura angolana, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 215-
218.
(disponível em: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm )

LAGO

Todo o meu ser


é um lago fundo e doce…

Por onde passeiam barcos


com meninos…

namorados que se beijam


em noites sem destino…

e também tu! Oh belo solitário


inesquecível…

Todo o meu ser é um lago


doce e fundo…

onde a tristeza,
é uma ansiosa e definível
aspiração…

Campo Grande, Agosto de 1959

119
TEMAS DE ESTUDO EM TORNO DA POÉTICA DE ALDA LARA:

- Auto-representação do “eu”.
- A imagética feminina: inconformismo vs destino de mulher.
- Uma educação para os valores: solidariedade, fraternidade, generosidade,
evangelismo…
- Representação de África: os lugares de afecto, enfeitiçamento e amor pátrio.
- Um olhar sobre o outro (o objecto de desejo amoroso).

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm,

Linhas de leitura do poema "Lago":

- Interpretação da metáfora contida na 1ª estrofe.


- Dimensão psíquica revelada pela repetição da 1ª estrofe na 5ª.
- Importância da última estrofe para a compreensão do poema.

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

RONDA

Na dança dos dias


meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...
Na dança dos dias
meus dedos cansaram...
Na dança dos meses,
meus olhos choraram
na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!

Na dança dos meses


teus olhos cansaram...

Na dança do tempo,
quem não se cansou?!

Oh! dança dos dias


oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...

120
Dizei-me, dizei-me,
Até quando? até quando?

 Linhas de leitura do poema “Ronda”:

- O tempo ansioso.
- Relação do conteúdo do poema e
   1) o título;
   2) a pontuação expressiva.
- Musicalidade do poema  

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

APELO

Na outra margem do rio,


(e eu vejo-a!)
há campos vedes de esperança,
abandonados ao calor de um sol eterno...
Na outra margem do rio,
onde não chega o inverno,
há campos ondulantes de searas maduras.
para os pobres matarem nelas
todas as fomes do mundo...
Na outra margem,
Tudo se começa de novo
e não há dias passados
que amargurem os desgraçados.
Não há dinheiro,
E os homens dão-se as mãos,
que pelo dia inteiro
ouvi as canções que os seus lábios entoaram...

Nem raivas mal contidas,...


nem agonias perdidas,
nem dor...
que na outra margem do rio,
há Amor...
………………………………………
E entre mim, e a outra margem,
esta terrível viagem.
Este rio caudaloso, imundo,
sujo de todos os calhaus,
que nele vomitou o mundo...
Entre mim e a outra margem,

121
O rio…
Ah! barqueiro...
Porque tardas?...
Não vês que faz frio?...
Espero, mas desfaleço…
Não tardes mais barqueiro
Não tardes!...
que é tão longe ainda
a outra margem do rio…

1949

Linhas de leitura do poema “Apelo”:

- Significado de “rio” como imagem psíquica do “eu”.


- Esperança e idealidade.

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

TESTAMENTO

À prostituta mais nova


Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida


Rapariga sem ternura,
Sonhamdo algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo


Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus


Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,


Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

122
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...


Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Linhas de leitura do poema “Testamento”:

- Figura de estilo que estrutura a 1ª estrofe: a antítese.


- Significado das personagens enumeradas.
- Atitude de doação do sujeito poético – generosidade, evangelismo…

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

ROMANCE

Menina dos olhos belos


dos verdes olhos tão belos,
menina dos olhos tristes...
Sentada nessa varanda
onde não passa ninguém
porque esperas soluçando
todo o dia quem não vem?...

Menina dos belos olhos.


Mãos cruzadas. Olhar vago.
Nem o mais ligeiro afago
o vento aqui te deixou...
Posta então nessa varanda,
porque esperas noite e dia,
tão serena e tão sombria
quem por aqui já passou?...

Se tu soubesses menina!...
Enquanto bordas sonhando
em tua toalha fina,
bem perto desta varanda,
quantas varandas quebraram!
quantas meninas deixaram
suas tão belas varandas,
e nunca mais se tornaram...
Quantas! Quantas!

123
E tu, sentada bordando...
E tu, sozinha esperando,
alta noite, longo dia,
por quem te esqueceu, passando...
E tu, sentada, sonhando...
Hão-de apagar-se as estrelas
há-de enrugar-se o arvoredo
E tu, sentada, sonhando
em silêncio, o teu segredo...

Menina! Parte! Olha o tempo!


Pega na tua, esta mão...
Irás pela madrugada
em teu cavalo alazão!
Irás de cabelo solto
e larga saia rodada,
irás de coração livre,
entoando uma canção!...

Irás! E contigo, certo,


só teu destino liberto
Só tu, sozinha, à procura
doutra estrela, noutro céu,
em busca de quanta vida
esta morte em ti nasceu!...

1949-1950 

 
Linhas de leitura do poema “Romance”:
 - INTERTEXTUALIDADE com o romance tradicional português “A Bela Infanta”
(versão de Almeida Garrett):
   Estava a bela infanta
   No seu jardim assentada,
   Com o pente de oiro fino
   Seus cabelos penteava
   Deitou os olhos ao mar
   Viu vir uma nobre armada;
   Capitão que nela vinha,
   Muito bem que a governava. […]

 - Tempo ansioso.
 - Inconformismo vs destino de mulher.

José Carreiro, http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007

124
PRESENÇA AFRICANA

E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!

Mãe forte da floresta e do deserto,


ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...

A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...

A do sol bom, mordendo


o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras, 
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.


A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos

de barriga inchada e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,


de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu  revendo ainda, e sempre, nela,


aquela
Longa história inconsequente...

Minha terra...
Minha, eternamente...

125
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.

Ainda sou a que num canto novo


pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!  
                             

Benguela, 1953

NOITE

Noites africanas langorosas,


esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Há cantos de tungurúluas pelos ares!...
....................................................
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
.....................................................
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...

E os meninos brancos cresceram,


e  esqueceram
as histórias...

Por isso as noites são tristes...


Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...

É que os meninos brancos...,


esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas

126
os adormeciam,
nas longas noites africanas...

Os meninos-brancos... esqueceram!...
 

                                                                       Outubro de 1948

REGRESSO

Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...

Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde majestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o húmus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...
……………………………….........…..…..
Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monótono, igual,
do casario plano...
Hei-de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruídos...
os meus sentidos

127
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepúsculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
…………………………………............……..
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
não há nada que mo impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...


Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir só para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
                   Voltei!...

                                                                       1948

128
 RUMO

                 (ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951)

É tempo, companheiro!
     Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós, 
e ninguém resiste à voz 
     da Terra ...  

Nela,
o mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro
e eu sou branca,
a mesma Terra nos gerou!  

     Vamos, companheiro…


     É tempo!

Que o meu coração


se abra à mágoa das tuas mágoas 
e ao prazer dos teus prazeres 
     irmão
Que as minhas mãos brancas
     se estendam 
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras... 
E o meu suor 
se junte ao teu suor, 
quando rasgarmos os trilhos 
de um mundo melhor!  

     Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
     Ouves?
É a Terra que nos chama...
É tempo, companheiro!
     Caminhemos ...

129
DANÇA DE RODA

Teus olhos estão chorando?...


— pois que chorem moreninha...
Teus olhos estão esperando?...
— pois que esperem moreninha...

Que importam lábios cerrados,


e pensamentos riscados,
e braços longos, nervosos,
presos a vidas inúteis,
presos a gostos quebrados?...

Mulher fez-se p’ra sofrer.


Para sofrer e esperar.

Mulher fez-se p’ra sofrer


e perdoar...

(Há milénios que sofremos...


não é tempo?...)

Mãe-burguesa era mulher.


Mas Mãe-burguesa morreu...
Enterrou-se no caminho
debaixo de uma palmeira
qualquer.

Nesse tempo era pequena.


Hoje,
a palmeira cresceu...

Mãe-burguesa não sou eu!


Mãe eu sou.
Burguesa não.

Quem dança na minha roda


ao som da minha canção?...
Danças tu a noite toda
coração!

Meus filhos estão dançando


meus netos dançando estão.
Minha roda é roda grande,
e é grande a minha canção! 

                                                                       1949/50

130
NOSSA SENHORA DO Ó

Nossa Senhora do Ó...


Senhora do ventre pleno,
do ventre belo e fecundo,
semente que deste o fruto
com que Deus salvou o mundo!

Senhora da inquietação...
da hora doce e sublime,
da espera silenciosa
por um destino mais fundo.

Senhora da dor inteira,


que liberta e que redime.

Nossa Senhora do Ó...


Pelas mãos que nesta hora
se entregam silenciosas
como tu ‘speraste outrora…

Pelas mulheres que hoje, ao mundo,


lançam o grito sangrento
do seu destino mais fundo!

eu te peço
erguida e forte,
que embora gerado em sangue
e embora riscado a espinhos
nos calvários dos caminhos…

esse destino se cumpra,


como se cumpriu o Teu!...

                                                                       1950

INTERTEXTUALIDADE:
“Sermão de Nossa Senhora do Ó” (1640)
   Padre António Vieira.
A figura mais perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza e conhece a
geometria é o círculo. […] E porque o O é um círculo, e o ventre virginal outro circulo,
o que pretendo mostrar em um e outro é que, assim como o círculo do ventre virginal na
conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da
Senhora na expectação do parto foi outro circulo que compreendeu o eterno. […]

O sermão completo em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803033.html# 

131
AGUARELA MARÍTIMA

A Irmã-Mulher das gaivotas,


senta-se à beira do mar...
Solitária toda a tarde,
às gaivotas vem falar...

E enquanto as horas se quebram,


em estilhaços, no areal,
andam à tona das ondas,
restos de um sonho irreal...

A Irmã-Mulher das gaivotas,


é delgada como elas.
Anda vestida de branco,
como as gaivotas mais belas!...
Mas nunca pôde voar...
Nunca viu de perto, o céu,
nunca viveu sobre o mar...

Por isso essa grande mágoa,


serena e desesperada.
Por isso as pétalas de água
que caem na balaustrada...
E a ver as horas tombando,
sentada à beira do mar,
a Irmã-Mulher das gaivotas.
nos olhos cor de esmeralda,
traz um silêncio a chorar...

                                                                       1951

  

ELOGIO DA ESPIRITUALIDADE
(a Charlotte Bronte)

Não digas que os meus seios


são duas rolas brancas,
cansadas de não partir...
ou que o meu corpo
é um fruto quente e bom,
que em noites de verão,
apetece morder e ferir...
Não digas que os meus lábios
são promessas de desejos
mal contidos,

132
ou que os meus cabelos soltos
lembram os afagos ligeiros
dos dias não cumpridos...

que as tuas mãos saibam colher


aquilo que não foi...

E tu venhas antes p’ra me dizer,


que a minha sensibilidade
é trémula e franzina,
como a graça
de uma flor-menina...
que a minha inteligência
é funda e nua,
como as noites que não tiveram lua,
e que a minha vontade,
é tão forte e tão plena,
que só o teu amor,
a condena!...

                                                                       1951

  

O GRANDE POEMA 

Este é o poema que eu escrevi


para as crianças da minha terra!...
Para as crianças negras,
e brancas,
e mestiças,
sem distinção de cor...
comungando o Amor
que as unirá...

Este é o poema que eu escrevi a sonhar,...


de olhos perdidos no mar,
que me separa delas...

O poema que escrevi a sorrir…


a gritar confianças desmedidas
nas ânsias partidas,...
quebradas,...
como velas de naufrágio!...

O poema que eu escrevi a soluçar,


sobre os livros

133
onde não encontrei
para os sonhos resposta um dia!...

                                                                       1949

PÁTRIA

Irmão Negro!
Tu tens braços longos como a noite,
e vens na voz das casuarinas
batidas pelo vento,
beijar as bandeiras erguidas
sobre o teu sofrimento...
Tu que sais agora das cavernas
do medo e da escuridão,
para entoar ao sol escaldante
o canto da tua libertação
Que sulcas com rios de esperança
a vida morta do meu país,...
que fecundas com sangue e suor de esperança
a vida morna do meu país,...
Tu— Irmão Negro— Homem da Terra!
junta a tua voz à minha voz,
e sob a agonia quente deste céu,
vem dizer também,
que a Pátria não morreu.

Vem dizer
que para além
de tudo o que é passado e porvir,
a Pátria das palmeiras e dos dongos ficará...
p’ra sempre ficará brilhando,
sobre a campa dos Homens que se foram
e sobre o berço dos Homens que hão-de vir…

1957(?)

LUANDINO VIEIRA

134
VIDA E OBRA

 José Vieira Mateus da Graça, conhecido por Luandino Vieira, nasceu a 4 de Maio
de 1935, em Vila Nova de Ourém, tendo ido viver para Angola aos três anos com os
pais.
Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional
escolheu o nome de Luandino como homenagem a Luanda e contribuiu para o
nascimento das República Popular de Angola. Fez os estudos primários e secundários
em Luanda, tornando-se depois gerente comercial para garantir o seu sustento.
Acusado de ligações políticas com o Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA) foi preso em 1959 pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), no
âmbito do que ficou conhecido como "processo dos 50". Em 1961 voltou a ser preso
pela PIDE, tendo sido condenado a 14 anos de prisão e a medidas de segurança. Em
1964 foi transferido para o campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), onde
passou oito anos, tendo sido libertado em 1972, em regime de residência vigiada,
passando a viver em Lisboa.
Entre outros prémios literários, Luandino Vieira venceu o Grande Prémio de
Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), o Prémio Sociedade Cultural
de Angola (1961), o da Casa do Império dos Estudantes - Lisboa (1963) e o da
Associação de Naturais de Angola (1963).
A partir de 1972, e já a residir em Lisboa, Luandino Vieira iniciou a publicação da
sua obra, na grande maioria escrita nas prisões por onde passou.
Regressou a Luanda em 1975, onde exerceu cargos directivos no MPLA e foi
presidente da Radiotelevisão Popular de Angola. Membro fundador da União dos
Escritores Angolanos - cuja condição sempre reivindicou, apesar de ter nascido em
Portugal - exerceu funções de secretário-geral deste organismo desde a sua fundação a
10 de Dezembro de 1975 até 1992.

(http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1257731&idCanal)

Entretanto, foi-lhe atribuído em 2006 o Prémio Camões, o maior galardão literário


para a língua portuguesa, que recusou "por motivos íntimos e pessoais", segundo o que
alegou num comunicado de imprensa. Sabe-se por entrevistas dadas sobretudo ao
Jornal de Letras Artes & Ideias que não aceitou o prémio por se considerar um escritor
morto e que como tal o Prémio deveria ser entregue a alguém que continuasse a
produzir. Tal facto veio-se alterar, pois O livros dos rios é um novo romance de
Luandino Vieira (o primeiro de uma trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros)
editado pela Editorial Caminho em Novembro de 2006.

(http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luandino_Vieira, adaptado)

O escritor enquadra-se na geração da Cultura (II), surgida no final dos anos 50 —


para prolongar a acção do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA, 1948)
e da Mensagem (1951-52)—, de que se destacaram, entre outros, António Cardoso,
Arnaldo Santos e Henrique Abranches. Mas, pela particularidade e projecção da sua

135
obra, Luandino ultrapassa-a, para se fixar, nas últimas décadas, como uma das maiores
figuras de escritor deste século, em língua portuguesa.
A parte significativa da sua obra foi escrita nos anos 60, nomeadamente os dois
livros mais importantes, Luuanda e Nós, os do Makulusu. O primeiro constituiu uma
autêntica revolução literária […]. O segundo, escrito durante uma semana, conforme
indicação do autor, é para ele o texto com o qual mais se identifica em termos pessoais,
quase autobiográficos, podendo ler-se como um testemunho vivencial e uma análise do
colonialismo a partir de uma visão de dentro da sociedade branca.
A sua obra divide-se em duas fases: a primeira, que agrega as estórias escritas até
1962. ou seja. todas as incluídas em Vidas novas, e que ainda se mantêm nos limites do
discurso relativamente clássico, não demasiado afastado em relação à norma do
português europeu e do modo narrativo conforme com o modelo do conto curto à
Maupassant: a segunda fase, com a duração de dez anos, inaugurada pela escrita de
Luuanda, tenderá progressivamente para a destruição da pacatez de leitura,
disseminando marcas de angolanização da língua portuguesa. subvertendo a norma
comunicativa do português-padrão de Lisboa, adoptando gírias, neologizações.
tipicismos e outros recursos, também sintácticos, orais e tradicionais africanos, para
construir uma língua literária propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, p.121)

Tal como Guimarães Rosa, começou a usar a designação de estória para as suas
narrativas, mais longas que o conto e menos desenvolvidas que a novela ou o romance.
[…]
A estória é, portanto, diferente da história: misto de mussosso (plural: missosso),
fábula ou narrativa moral africana, tradicional, e pequena epopeia popular à moda do
grande mestre brasileiro de Minas. Esse texto luandino caracteriza-se, na sua génese,
por surgir num espaço de criação de uma linguagem nova, que parte da apropriação da
língua já codificada e estabilizada socialmente (isto é, normativizada pelo uso erudito
do colonizador), para desconstruí-la, por vezes ao nível minucioso da fonologia, num
trabalho de Sísifo contra a montanha intransponível. A língua literária luandina surge
assim na intersecção da língua natural portuguesa com a língua natural quimbunda,
fornecendo aquela sobretudo o espaço lexical e a estrutura básica, interferindo esta
nalguns pontos da sintaxe, introduzindo-se vocábulos crioulizados, aquimbundados, do
quimbundo ou mesmo neologismos, além de certas nuances (circunlóquios, tautologias,
etc.) prolongarem a oralidade gramatical e expressiva do português. […]

A LINGUAGEM LUANDINA

136
 A linguagem de Luandino sofre a influência, como se disse, das línguas bantas,
nomeadamente do quimbundo, que são línguas prefixais, aglutinantes e tonais, que dão
realce aos aspectos (quer dizer, ao ponto de vista de quem enuncia), com a ausência de
alguns tempos e modos, o que tem como consequência haver trocas, por analogia, de
alguns deles. A troca de pronomes é também corrente, tal como no Brasil: «via-lhe
avançar pela areia». A sintaxe normativa da língua portuguesa de Portugal, sendo modal
e temporal, ao sofrer as interferências de uma outra norma de falar, torna-se, por vezes,
cómica ou simplesmente imprevista. A adopção de modos gramaticais do quimbundo no
uso da língua portuguesa está de acordo com a construção de um estilo que apresenta
similitudes muito marcadas com a oralidade africana. Assim, o discurso indirecto livre
coaduna-se com a coloquialidade africana e o modo de narrar solto, circunloquial,
simulando a espontaneidade popular. Um muito curto exemplo, retirado da «Estória do
ladrão e do papagaio»: «Porque polícia é assim: chegaram na casa da madrinha dele,
nem que pediram licença nem nada, entraram e perguntaram um rapaz mulato, coxo,
Garrido Fernandes, e quando ele adiantou sair no quarto, a cara cheia de sono, os olhos
azuis a piscar com medo da luz da tarde, falaram logo sabiam ele tinha ido com Dosreis,
um verdiano, assaltar o quintal de Ramalho da Silva e roubado um saco de patos, o
Lomelino é que tinha falado tudo, não adiantava negar, melhor veste a camisa e vamos
embora» (trecho logo a seguir ao penúltino asterisco).

Alguns dos processos mais costumeiros da criatividade de Luandino são: 

Cruzamento       — aglutinação;
— fusão (as mot valises)
Adjectivação      — do substantivo
— do particípio passado
Concordância — indicativo no lugar do conjuntivo
Construção invertida — «nos todos sentidos»
Elipse (elisão)     — do artigo
— da preposição
— da conjunção que: «parece é uma criança»; «eu só juro não falei
mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda» (modismos de outro
género: «adiantar apanhar», «perguntar saber», «dar encontro». «dar berrida
em»)
— do verbo haver
Locuções adverbiais ampliadas — «com devagar», «com depressa», «como assim»
Passiva      — emprego de um pronome (lhe, me, te)
               — do verbo na 3ª pessoa do plural
               — do complemento de agente introduzido pela preposição em
               ex: «o João lhe bateram na mãe dele» = O João apanhou da mãe
Preposição — na linguagem popular, ignoram-se os seus usos ou trocam-se ou
acrescentam-se
Substantivação    — de advérbio
                        — de adjectivo
                        — de pronome
E ainda:    — o verbo ter usado como predicado de existência, em vez de ser
                   — supressão do conjuntivo

137
               — preposição em como pronome de complemento indirecto: «deu razão em
vavó»
               — indicações circunstanciais de lugar donde não são morfologicamente
diversas das de lugar para onde: «saiu embora na loja do Kabulu».
 
Repare-se como, no trecho transcrito mais acima, as indicações circunstanciais de
lugar (chegar a; sair de) são exactamente iguais, ainda que os movimentos sejam
contrários («chegaram na casa» e «sair no quarto»); o pronome com função de relativo
(«nem que pediram licença») está gramaticalmente a mais quanto à norma portuguesa,
mas desempenha aqui o papel de muleta sonora, rítmica, de angolanização: o modismo
«adiantou sair» transmite uma sensação mais forte de movimento: a elisão do integrante
(«sabiam ele tinha ido») implica a separação nítida dos dois actos (saber/ir); a passagem
do discurso indirecto livre para o directo, sem sinalização do facto («não adiantava
negar, melhor veste a camisa e vamos embora»), produz uma aceleração discursiva e
diegética, logo uma presentificação mais eficaz e saborosa, não analítica nem sintética.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, pp.121-123)

Ao justificar o “desvio da norma” nas suas estórias, o próprio Luandino afirma (in
“Um escritor confessa-se...”. Entrevista de Luandino Vieira publicada no Jornal de
Letras, Artes e Ideias, de Lisboa, em 9/5/1989): 
“[…] penso que o primeiro elemento da cultura angolana que interferiu com a
escrita, segundo a norma portuguesa, foi a introdução da oralidade luandense no meio
do discurso da norma portuguesa... mas depois, quando entramos na luta política pela
independência do país, que foi feita em nome das camadas que não tinham voz - e se
tivessem não podiam falar, e se falassem não falariam muito tempo... -, foi aí que os
escritores angolanos resolveram dar voz àqueles que não tinham voz e, portanto,
escrever para que se soubesse o que era o nosso país, se soubesse qual era a situação do
país e, desse modo, interferirem de maneira a modificarem essa situação...” 
Sobre a elaboração de Luuanda, o escritor é ainda mais contundente ao relacionar
elaboração discursiva e resistência política:
“E como estávamos numa fase de alta contestação política - e um dos elementos
dessa contestação política do colonialismo era afirmar a nossa diferença cultural,
mesmo na língua, um bichinho qualquer soprou-me a dizer-me: Por que é que tu não
escreves em língua portuguesa de tal maneira que nenhum português perceba!”
“Foi desta maneira que escrevi essas três estórias do Luuanda, de tal maneira que se
um português de Portugal lesse, percebesse todas - ou quase todas – as palavras e
dissesse que era português e, depois, dissesse ao mesmo tempo: Não percebo nada
disto! Foi alguma coisa de deliberado, de provocatório […]”
“E então aquilo foi para mim uma revelação. Eu já sentia que era necessário
aproveitar literariamente o instrumento falado dos personagens, que eram aqueles que
eu conhecia, que me interessavam, que reflectiam – no meu ponto de vista – os
verdadeiros personagens a pôr na literatura angolana. Eu só não tinha ainda encontrado
era o caminho. [...] Eu só não tinha percebido ainda, e foi isso que João Guimarães Rosa
me ensinou, é que um escritor tem a liberdade de criar uma linguagem que não seja a
que os seus personagens utilizam: um homólogo desses personagens, dessa linguagem
deles.”

138
(Vima Lia Martin, “Luandino Vieira: Engajamento e Utopia” in
http://www.revistazunai.com.br/ensaios/vima_lia_martin_luandino_vieira.htm)

LUUANDA

As três estórias de Luuanda, cujos motivos centrais são a fome, a escassez de meios,
ostentam um exórdio destinado a criar um primeiro enquadramento contextual para a
acção que se há-de seguir. Nele subjaz a topografia de Luanda e aí se insinua uma
atmosfera, que, no caso da primeira e terceira estórias. «Vavó Xíxi e seu neto Zeca
Santos» e «Estória da galinha e do ovo», prenuncia forte tempestade, como que a
moldar o estado psicológico das personagens através dos impressivos elementos
meteorológicos. Ambas terminam com a incerteza do narrador quanto à beleza do que
foi contado, deixando o julgamento para o leitor. As duas últimas histórias começam
por uma tensão (começam mal) e acabam numa distensão (em happy end). Ambas
mostram, nos lugares finais estratégicos, que ao narrador interessa que a verdade
ficcional seja convincente, mesmo que ele tenha a certeza de que os casos que acabou
de contar, como na «Estória do ladrão e do papagaio», possam não acontecer
exactamente assim na vida real, embora muito próximos disso. Luandino quer mostrar-
nos aristotelicamente que, na ficção, mais vale uma invenção verosímil do que um facto
real inverosímil, a significar que, através da sua inventividade, devemos ler o
testemunho histórico e o apelo à consciência. Certos exórdios e certas perorações, na
pena de Luandino, existem exactamente para induzirem o leitor numa leitura que lhe
faça lembrar a oralidade das histórias contadas como verídicas em torno de uma
fogueira.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, p.124) 

A elaboração literária de Luuanda deixa entrever uma perspectiva utópica da


realidade. Concebida num momento histórico revolucionário, a obra sinaliza a
consolidação paulatina do processo de resistência popular que se opõe ao poder
colonial, sugerindo caminhos para a transformação efectiva da sociedade angolana. As
suas três estórias - “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do
papagaio” e “Estória da galinha e do ovo” - atestam que o amadurecimento dos
sujeitos, que devem assumir o seu papel transgressor, é condição fundamental para a
conquista da independência e para a construção de uma nova Angola.
A utopia revolucionária que perpassa e sustenta Luuanda pode ser percebida em
vários aspectos da elaboração das estórias, todas organizadas por um narrador
omnisciente: na aprendizagem empreendida pelos protagonistas, na progressão temporal
sugerida pela sucessão das narrativas e na ampliação paulatina da voz do “griot” a
ritualizar o texto escrito.  
A acção narrativa do primeiro conto, o único em que a voz do “griot” não se faz
presente e que certamente por isso não é nomeado como “estória” pelo narrador, centra-
se nas dificuldades enfrentadas por uma avó e seu neto, que moram juntos numa mesma
cubata, de sobreviverem no meio das agruras típicas da exclusão social, numa sociedade
extremamente preconceituosa e segregadora. Perplexos e sem consciência política, Zeca
Santos e sua avó deixam-se envolver pelos sentimentos de fracasso e impotência. A

139
velha, ligada ao passado, e o moço, desiludido com o presente, não sabem como agir
para construir um futuro livre da violência e da opressão.
Leiamos os dois últimos parágrafos do texto:  
Por cima dos zincos baixos do musseque, derrotando a luz dos projectores nas suas
torres de ferro, uma lua grande e azul estava subir no céu. Os monandeagues
brincavam ainda nas areias molhadas e os mais-velhos, nas portas, gozavam o fresco,
descansavam um pouco dos trabalhos desse dia. Nos capins os ralos e os grilos faziam
acompanhamento nas rã das cacimbas e todo o ar estava tremer com essa música. Num
pau perto, um matias ainda cantou, algumas vezes, a cantiga dele de pão-de-cinco-
tostões.
Com um peso grande a agarrar-lhe no coração, uma tristeza que enchia todo o
corpo e esses barulhos divida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro dobrou as
calças muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais que ele podia fazer já,
encostou a cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi Hengele e desatou a chorar um choro
de grandes soluços parecia era monandengue, a chorar lágrimas compridas e quentes
que começaram correr nos riscos teimosos as fomes já tinham posto na cara dele, de
criança ainda.  
Observe-se que a descrição da paisagem natural e humana do musseque
presentifica-se de modo contundente. A politização do espaço mestiço e periférico do
musseque, que acolhe indistintamente crianças e velhos, é enfatizada e a música
orquestrada pelos pequenos animais nativos expressa a vitalidade da terra angolana.
Mas, no momento final da narrativa, “os barulhos da vida lá fora” só fazem
aumentar a tristeza e a impotência do protagonista, que “nada mais podia fazer” contra a
miséria a que estava submetido junto com a avó. Daí o choro inconsolável, sinal de que
Zeca não era capaz de vislumbrar saída para sua situação marginal. A afirmação dupla
de sua infantilidade - em quimbundo e em português: “parecia era monandengue” e
“cara dele, de criança ainda” – atesta menos a idade cronológica do rapaz e mais a sua
incompreensão dos mecanismos da opressão colonial. Sem mais nada a dizer, o narrador
suspende a narrativa bem no meio desse desamparo, deixando as personagens a sós com
sua dor e deixando a nós, leitores, perplexos com a sua solidão.  
A estória central do livro, “Estória do ladrão e do papagaio”, opera uma espécie
de passagem entre a primeira narrativa – em que os protagonistas ainda não despertaram
para a necessidade do engajamento na luta contra o colonizador – e a última – em que as
personagens vão experienciar o alcance político da prática social solidária. De um modo
bem genérico, é possível dizer que o texto fala sobre o encontro de três africanos na
prisão - Xico Futa, Lomelino dos Reis e Garrido Fernandes - e sobre o florescimento da
solidarieidade entre eles. Vale afirmar que o papel exercido por Xico Futa é central
nessa interacção: ele é porta-voz de ensinamentos preciosos para as outras personagens
e também para os leitores da estória.
Nesse sentido, a “parábola do cajueiro”, enunciada por Futa, é fundamental para a
constituição de um saber revolucionário. Nessa narrativa de carácter didáctico, a
personagem adverte que é preciso conhecermos a raiz ou o princípio daquilo que
mobiliza as pessoas e as suas acções. Vejamos:  
[…] Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do
candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho ou
encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um
pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à
procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro
princípio e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as
metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra

140
com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez
voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a
castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha
enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro
cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não
podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr
sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um
princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na
raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.
  Ao insistir no facto de que devemos reflectir sobre o cajueiro - imagem das estórias
entrelaçadas que conformam e justificam a realidade - e perseguir o fio da vida - fio das
histórias pessoais e colectivas – Futa aponta para a necessidade de constituirmos a nossa
identidade como sujeitos históricos, afirmando valores fundamentais para a mobilização
popular contra o poder instituído.
Já no final da estória, a confraternização entre os capianguistas presos afirma a
solidariedade tão necessária para o enfrentamento da luta e é aí que a voz do
narrador/“griot” vai se manifestar pela primeira vez. A sua fala, antes de mais nada,
pede um posicionamento dos leitores, propondo um julgamento estético - e ético - da
própria estória: Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que dizem (p.
120). Desse modo, “os que sabem ler” ocupam o lugar da audiência dos antigos “griots”
e são convocados a aderir ou não à narrativa e aos seus ensinamentos.
Por fim, a última frase do narrador/”griot”, que encerra definitivamente o texto, é:
“E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado” (p.121). Se pensarmos
no carácter didáctico de muitas das estórias tradicionais, que cumprem a função de
transmitir valores éticos, o valor atribuído à verdade na “Estória do ladrão e do
papagaio” estaria contido justamente na sugestão de procedimentos importantes para o
estabelecimento da harmonia nas relações pessoais e sociais. Ao afirmar que diz a
verdade, “mesmo que esses casos nunca tenham se passado”, o narrador/“griot” articula
as noções de real e verosímil, fazendo com que os leitores/ouvintes tornem-se
testemunhas vivas e activas da possibilidade de construção de uma nova realidade
histórica afinada com as aspirações revolucionárias.
A terceira estória, “Estória da galinha e do ovo”, que já começa com a voz do
“griot” anunciando-a como “caso”, tem como motor a disputa entre duas vizinhas – nga
Bina e nga Zefa – pela posse de um ovo. Posto pela galinha Cabíri, que pertencia à nga
Zefa, no quintal de nga Bina, que está grávida e tem o marido preso, o ovo é
reivindicado por ambas, que alegam seu direito sobre ele. A solução do conflito se dá
com a interferência de duas crianças – Beto e Xico – que, imitando o cantar de um galo,
fazem com que Cabíri fuja das mãos de policiais que haviam sido chamados para
intervir no caso e que pretendiam levar vantagem na situação. Depois disso, nga Zefa
resolve abrir mão do ovo e oferecê-lo a nga Bina. Na cena final da estória, podemos
observar toda a satisfação da jovem mãe:
  De ovo na mão, Bina sorria. O vento veio devagar e, cheio de cuidados e amizade,
soprou-lhe o vestido gasto contra o corpo novo. Mergulhando no mar, o sol punha
pequenas escamas vermelhas lá em baixo nas ondas mansas da Baía. Diante de toda a
gente e nos olhos admirados e monandengues de miúdo Xico, a barriga redonda e rija
de nga Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande...
 
O vagar do vento, a amenidade do sol e a mansidão do mar demonstram a
solidariedade da natureza com a protagonista. A força de sua imagem carregando dois
ovos - um nas mãos e outro na barriga -, símbolos de vidas novas que se anunciavam,

141
atesta o acerto na solução de um impasse que parecia insolúvel. A justiça é alcançada
graças à intervenção das crianças que conseguem fazer com que o ovo alimente aquela
que está gestando um novo angolano, metáfora de um futuro mais desejável para
Angola. E as reticências que encerram o parágrafo traduzem justamente esse porvir que
precisa ser conquistado.
Para arrematar a narrativa, o narrador/“griot” mais uma vez actualiza a forma oral
cristalizada das estórias tradicionais, pedindo o julgamento do relato pelos leitores e
atestando a sua verdade:
 
Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro que não falei
mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.
 Como já vimos, a avaliação estética exigida dos leitores é também uma avaliação
ética. Julgar a estória “bonita” significa concordar com os valores que ela veicula e, em
última instância, interiorizá-los e colocá-los em prática. Já o contrário significa a não
adesão à ideologia que sustenta a narrativa, a negação daquilo que ela propõe - e que já
havia sido anunciado na segunda estória: a ressignificação da tradição, a compreensão
histórica dos factos e a solidariedade entre os angolanos como forma de fortalecimento
na luta contra os representantes do colonialismo.
Mais uma vez, a “verdade” da estória afirma exactamente aquilo que é necessário
para a conquista da liberdade e da justiça na “nossa terra de Luanda”. Trata-se, assim,
não da afirmação de realidades sedimentadas, mas da possibilidade de construção de
uma nova realidade histórica.
A última narrativa de Luuanda valoriza o carácter revolucionário da acção dos
monandengues que, valendo-se de conhecimentos tradicionais, salvam a galinha de cair
em mãos inimigas e ensinam as mulheres a agir de maneira mais consciente e coerente
com os objectivos da luta contra a opressão colonialista. Temos, então, a utilização da
sabedoria dos mais-velhos em função de uma causa bastante objectiva, representativa da
luta que deve ser travada para a conquista da liberdade. As gerações mais novas,
representadas por Beto e Xico, põem em prática o “exercício da compreensão”
explicitado por Xico Futa na estória central do livro.
A progressão temporal sugerida pela ordenação das três narrativas de Luuanda diz
muito do sentido geral do livro. Nele, passado, presente e futuro se dispõem
cronologicamente, perfazendo uma trajectória que anuncia novos tempos. De Vavó Xíxi
à criança gestada por Bina, o fio da vida trançado pelo escritor é percorrido também
pelos leitores. Desse modo, um percurso que diz respeito à construção de um saber ou
de uma ética revolucionária pode ser depreendido da leitura encadeada das três
narrativas do livro. Vale lembrar que a última estória se encerra com o pôr do sol. Aliás,
o poente - referido por três vezes durante a narrativa - é bastante significativo em sua
elaboração. Para além dos sentidos evocados por seu tom avermelhado - a paixão
revolucionária, o sangue derramado na luta pela liberdade e até a cor característica das
bandeiras dos partidos comunistas -, é possível pensar que o cair do dia metaforiza o
final de um ciclo, de um tempo de opressão que deve se encerrar. Desse modo, a estória
sinaliza que, depois da morte do tempo colonial, um novo dia - vidas novas, novos
tempos – surgirá. […]
 Parece-nos claro que o imaginário social configurado em Luuanda vai ao encontro
da formulação de uma “revolução ética”, capaz de concretizar o projecto utópico de um
país livre e justo. Nesse sentido, a proposta do escritor angolano aposta na
transformação da realidade vivida pelas personagens a partir de sua conscientização e de
sua atitude revolucionária.

142
Em termos mais formais, o engajamento da linguagem literária recriada em
Luuanda dá-se através da mistura entre o português e o quimbundo e também através da
inscrição universalizante da palavra oral, recuperada ritualisticamente para ampliar o
alcance dos ensinamentos contidos em cada narrativa. Dessa maneira, o diálogo
estabelecido entre os modos da cultura oral e os modos da cultura letrada realiza a
superação, em termos do discurso literário, da dicotomia existente entre tradição e
modernidade. Em termos sociais, tal síntese cultural pode ser pensada como a superação
da realidade de opressão típica do colonialismo. Afinal, ao ressignificar os valores e as
práticas culturais tradicionalmente angolanas e afirmar um saber fundamentalmente
ético, a obra articula passado e presente em função de uma experiência futura mais
desejável.
Aparentando-se com os casos tradicionais, as duas últimas estórias do livro de
Luandino Vieira transmitem valores essenciais para o bem-estar colectivo e exigem um
posicionamento crítico de quem se  dispõe a conhecê-las
Embora profundamente arraigada na história angolana pré-independência, a escrita
literária de Luuanda permanece viva e actual como reflexão sobre contradições e
impasses que, se estão presentes no plano social, estão também profundamente cravados
nas subjectividades dos protagonistas das narrativas e, em alguma medida, de cada
leitor.
Para além de sugerir a afirmação de uma ética revolucionária fundamental para a
superação dos impasses inerentes à condição marginal na Luanda do início dos anos 60,
o “optimismo militante” de Luandino Vieira aposta nas possibilidades e nas potências
imanentes ao homem, sujeito literariamente concebido como livre e capaz de
concretizar utopias sociais.
(Vima Lia Martin, “Luandino Vieira: Engajamento e Utopia”)

143
PEPETELA

VIDA E OBRA

Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos,


que assina sempre como Pepetela (Pestana, em
umbundo), nasceu em Benguela, em 29 de
Outubro de 1941. […]
Em 1958, foi estudar para Lisboa, passando a
intervir na CEI [Casa dos Estudantes do
Império], colaborando nas suas publicações.
Com a luta armada de libertação nacional (1961),
um ano depois (1962), seguiu para o exílio em
França, acabando finalmente por ficar mais um
tempo na Argélia, que, entretanto, acedera à
independência, precisamente através de uma
guerra de libertação nacional. Aí formou-se em
Sociologia e, no Centro de Estudos Angolanos
que os nacionalistas haviam instituído, dedicou-
se a escrever, com Costa Andrade e Henrique Abranches, para o MPLA, uma História
de Angola, numa perspectiva resumida e revolucionária.
No final dos anos 60 (1968-69), foi integrado, como Secretário Permanente de
Educação, na Frente de Cabinda da guerrilha. Em 1972, passou para a Frente
Leste. Em 1973, era Secretário Permanente do Departamento de Educação e
Cultura. Em 1974, fez parte da primeira delegação do MPLA em Luanda. Em
1975, tomou-se director do Departamento de Orientação Política e, logo depois,
integrou o Estado Maior da Frente Centro. Entre 1975 e 1982, foi o vice-ministro
da Educação. De então para cá, deixou de desempenhar cargos políticos e é
docente da Universidade de Angola (Sociologia), além de ter pertencido à
Comissão Directiva da União dos Escritores Angolanos (UEA). […]
Antes de mais, note-se que é um escritor que produziu a sua obra, até à
independência, na situação sócio-histórica de diáspora e guerrilha, ou seja, na
mais pura liberdade de expressão, ao contrário de homens como Luandino Vieira,
que estava preso, ou Arnaldo Santos, que, sendo funcionário público, vivia e publicava
com as limitações da situação de ghetto, na Luanda dos anos 1960 e começos de 1970.
[Entre vários prémios, recebeu em 1996 o Prémio Camões, o maior galardão literário
dedicado à Literatura em Língua Portuguesa, e em 2007 o Prémio Internacional da
Asociación de Escritores en Lingua Galega (AELG) que o designou “Escritor Galego
Universal”, “galardón que naceu para significar aqueles autores e autoras cuxa obra e
personalidade conteñan un alto contido ético e estético que os/as convirtan nun referente
para o seu pobo na defensa da dignidade nacional e humana”. Pepetela é o primeiro
escritor de língua portuguesa e também o primeiro africano a receber tal distinção.]

Vejamos as obras:

144
Muana Puó - Romance escrito em 1969 e publicado em 1978.
Mayombe - Romance escrito entre 1970 e 1971 e publicado em 1980.
As Aventuras de Ngunga - Romance escrito e publicado em 1973.
A Corda – Teatro político, peça escrita em 1976 e publicada em 1978.
A Revolta da Casa dos Ídolos – Teatro histórico, peça escrita em 1978 e publicada
em 1979.
O Cão e os Calus – Novela picaresca escrita entre 1978 e 1982 e publicada em
1985.
Yaka - Romance escrito em 1983 e publicado em 1984 no Brasil e em 1985 em
Portugal e em Angola.
Lueji, o Nascimento de um Império - Romance realista animista escrito entre 1985
e 1988 e publicado em 1989.
Luandando - Crônicas sobre a cidade de Luanda escritas e publicadas em 1990.
A Geração da Utopia – Publicado em 1992, este romance escrito em quatro partes,
que se passam em períodos de dez anos. Uma primeira parte em 1961 com o início
da luta armada. Uma segunda parte em 1972, escrita na Frente Leste e sobre a
guerrilha. O Polvo é a terceira parte, passa-se nos anos 80 e a última parte e passa-
se nos anos 1991-92, já depois dos acordos de Bicesse.
O Desejo de Kianda - Romance escrito em 1994 e publicado em 1995.
A Gloriosa Família, o Tempo dos Flamingos - Romance publicado em 1997.
A Parábola do Cágado Velho - Romance. Começou a ser escrito em 1990 e foi
publicado em 1997.
A Montanha da Água Lilás, fábula para todas as idades - Romance publicado em
2000.
Jaime Bunda, o agente secreto - Romance policial publicado em 2002.
Jaime Bunda e a Morte do Americano - Romance policial publicado em 2003.
Predadores - Romance publicado em 2005
Os dois primeiros livros demoraram a ser publicados. O caso mais notório é o seu
primeiro romance, Mayombe, sobre a guerrilha na floresta do mesmo nome, ao norte de
Angola, na região da Frente de Cabinda, que apenas com a intervenção do Presidente
Agostinho Neto (um dirigente e poeta que não gostava do realismo socialista) conseguiu
autorização para sair do prelo. É um romance em que a personagem principal, um líder
guerrilheiro, o Comandante Sem Medo, qual Ogun ou Prometeu africano, leva por
diante o seu trabalho no meio de grandes e compreensíveis dificuldades, agravadas pela
corrupção interna, o tribalismo, o racismo, o oportunismo e outros males universais,
duvidando seriamente do triunfo da revolução em armas, acabando por morrer. Pepetela
atrevia-se assim a questionar a construção de imagens de heróis monolíticos, aplicando
à ficção a fecundidade da dúvida sistemática, como quando insinua, através de Sem
Medo, que o poder da guerrilha de libertação nacional já transporta cm si o ovo da
serpente do poder que, após o triunfo, dominará o povo que ajudou a libertar.
As aventuras de Ngunga é duplamente um romance de aprendizagem, um
Bildungsroman, pois a personagem central, Ngunga, um rapazinho, um pioneiro,
militante infantil, cresce integrado na luta de libertação nacional, aprendendo a vida,
vivendo a política mas o romance foi escrito também com a intenção de servir de livro
de texto na alfabetização dos intervenientes e apoiantes da guerrilha, tendo a primeira
edição corrido mimeografada. 
O primeiro livro escrito após a independência partilha, com tantos outros, a
exaltação do momento, a missão ideológica e a apologia do poder triunfante. Na curta
peça A corda, encena-se a aversão ao espantalho do imperialismo norte-americano,
representado por um cidadão gordo, fumando grosso charuto, com ar de yankee

145
hollywoodesco, loiro, olho azul, etc., apresentado como estereótipo do mal e bombo da
festa. 
Livro importantíssimo para a interpretação do pensamento crítico de Pepetela no
tocante à política do seu país é A revolta da Casa dos Ídolos […]. Num breve resumo,
podemos dizer que Pepetela encena um episódio relativo à História de Angola do tempo
da primeira colonização (séc. XVI), para aludir subrepticiamente à época em que vive.
Assim, a peça trata de uma revolta popular contra os padres portugueses e os seus
aliados Manicongos (chefes do Reino do Congo) que resolveram proibir o culto
animista dos fetiches (os «ídolos»), guardando-os numa casa, afinal um pretexto para a
contestação do poder dos dirigentes do Reino. Um jovem ex-Mani, agora ao lado do
povo, dirige a revolta, que falha, sendo morto. 
A peça foi escrita em 1979, dois anos depois da falhada tentativa de golpe de Estado
de Nito Alves. um ex-chefe guerrilheiro célebre que, após a independência, ganhou um
grande apoio popular nos musseques de Luanda, sobretudo entre a juventude. e
pretendia o saneamento do aparelho de Estado e do MPLA para levar a revolução
popular ao poder, quando se estava em guerra contra vários inimigos. Abortado o golpe,
como na peça, sucederam-se as perseguições, prisões e execuções sumárias, como
publicitou Felícia Cabrita, num artigo no semanário Expresso (Lisboa, 25-01-1992),
resultando num banho de sangue que teve a conivência das altas instâncias do Partido e
do Governo, incluindo o Presidente. Calculam-se entre 20 e 30 mil mortos, em grande
parte em valas comuns. Muitos dos apoiantes de Nito Alves eram quadros jovens,
trotskistas, maoístas, anarquistas e de outras correntes não toleradas ou muito mal vistas
pelo novo poder hegemónico. A peça de Pepetela pode ser entendida como uma
parábola sobre esse sangrento 27 de Maio de 1977 que abalou e traumatizou a sociedade
angolana. 
Pode perguntar-se porque é que o escritor — que, como vimos, já tinha antecedentes
de dúvidas heterodoxas, em Mayombe — não abandonou o poder, uma vez que era vice-
ministro da Educação. Por isso, é legítimo questionar se ele pode desempenhar o papel
de reserva moral da Nação ou de advogado do diabo sem nunca ter seguido o caminho
do exílio. Por outro lado, sair de Angola seria dar trunfos a movimentos que, como a
UNITA, eram apoiados, nesses anos, pela África do Sul e os Estados Unidos, para, a
qualquer preço material e humano, desalojarem o MPLA do governo. Ele mantinha uma
reserva crítica, distanciando-se do poder, mas não se transferia de campo político,
salvaguardando uma profunda ética e coerência de escritor crítico e todavia solidário.
Além disso, segundo outra óptica, o chamado fraccionismo de Nito Alves desagradou,
de facto, à sociedade dirigente e possidente de Angola, pondo em perigo a coesão
nacional e a própria independência, ao fazer parcialmente, mas de modo objectivo, o
jogo da UNITA, África do Sul e Zaire, nessa época interessados na total desarticulação
do país. 
Continuando a viver e a escrever em Luanda, Pepetela voltou a um livro (Yaka)
justificativo da legitimidade do poder negro como componente fundamental da
angolanidade.
O sentido do romance aponta para uma crítica decisiva aos brancos de Benguela e
suas concepções ideológicas e políticas, comportamento, ambições, que os tornam
broncos e gananciosos. Certas figuras de brancos (Acácio, Joel, Alexandre, Chucha) são
tratadas com desvelo, mas acaba por sobressair o peso do mundo negro (revoltas,
vitórias, heróis, Yaka, mártires como Morna, etc.). Todavia, já no final do romance, o
revolucionário da família, Joel, interpreta o significado do sorriso irónico da estátua e
torna-se na encarnação viva daquilo por que Alexandre ansiara subconscientemente

146
durante toda a vida. Podemos interpretar tal episódio como a justificação de um lugar
para os brancos na nova sociedade angolana: a favor da independência, com o MPLA.
A partir do próprio título, o mundo negro detém um capital simbólico de poder
ancestral, histórico e cultural. O mundo branco, embora predominando em boa parte da
narração e do espaço físico e social, não consegue compreender, dominar por inteiro ou
aceitar esse mundo negro.
Yaka oferece a possibilidade de servir como ilustração da época decisiva da
colonização portuguesa em Angola. Permite, por isso, imaginar ficcionalmente os
sobressaltos experimentados pelos colonos face à presença obsidiante do mundo negro e
suas revoltas. Embora sendo um romance fértil em episódios, referências e alusões
históricas e étnicas, que pode chegar a confundir um leitor desprevenido, é inegável o
valor didáctico que apresenta. Saliente-se que, para uma visão ficcional mais alargada e
multímoda da colonização no sul de Angola, convirá sempre tomar em linha de conta a
projectada pentalogia de Leonel Cosme, cuja acção decorre fundamentalmente na Huíla,
de que saíram três volumes: A revolta (1963; 2ª ed. rev. e aumentada, 1983); A terra da
promissão (1988) e A hora final (1992).
O cão e os calus aparece como divertida crónica de humor, em que se incorpora a
tensão da busca, pelo pastor alemão, da mirífica imagem da perfeição, por entre um rol
de imperfeições. A edição portuguesa chamou-se, para melhor compreensão, O cão e os
caluandas (os caluandas são os habitantes da Ilha de Luanda, os primordiais, que deram
nome aos da cidade). O picaresco do pastor alemão que perambula por Luanda à
procura da toninha ou da sereia (apelo da utopia), estacionando onde mais lhe apraz,
para logo desarvorar em busca de novo dono e da solução para o seu instinto de busca,
serve para criticar a sociedade da capital, paradigmática da sociedade angolana, vivendo
de expedientes e malandragens, abusos politiqueiros e oportunismos carreiristas,
especulando e corrompendo. 
Em Lueji, Pepetela retomou a lenda de Ilunga e Lueji na Terra da Amizade,
localizada na Lunda e contando a história da sua fundação, que foi beber ao livro em
que Henrique de Carvalho relata a expedição, nos anos 80 do séc. XIX, ao Muatiânvua,
depois retomada por Castro Soromenho num dos seus longos contos de aproveitamento
de lendas e histórias fundadoras. Esse fundo histórico e lendário serve de contraponto e
de húmus para a personagem da actualidade, dessa relação entre o passado e o presente
emergindo a explicação de atitudes e sentidos. 
No romance A geração da utopia defrontamo-nos com o balanço da geração da CEI
e da guerrilha, que fizeram a revolução, para se concluir que, independência à parte, os
sonhos ficaram pelo caminho, de momento irrealizáveis — momento esse parecendo
não ter fim. É o romance amargurado da distância entre a esperança de uma sociedade e
um homem novos e a realidade da guerra, da morte e da miséria. (Pires Laranjeira,
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp.144-147
e 159, adaptado)
O Desejo da Kianda será um livro datado como o Cão e os Calús. E é uma obra de
desmoronamento. Desmoronamento físico da cidade, onde os próprios prédios vão
desaparecendo, e o desmoronamento moral, a corrupção, a forma como as pessoas vão
sendo devoradas pelo processo. A força do "fim", do perder de valores tanto das
sociedades tradicionais como da sociedade urbana. Pepetela reflecte sobre o desaparecer
da solidariedade, da incorruptibilidade, a que leva o descalabro social, e esta mensagem
é tão grande que a obra sugere mais o explodir do desencanto interior do que uma
intenção crítica. "Eu tenho esperança nas pessoas. Nos sistemas não, mas nas pessoas
sim. As pessoas são solidárias...É o que resta no fim. Eu acho que a obra aponta ainda
um caminho a seguir, apela a uma nova revolução, embora agora em termos
diferentes." - Pepetela.  http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/kianda.html
147
  Em A Parábola do Cágado Velho Pepetela volta a um caminho que se anuncia em
Muana Puó e que é o percurso de dialogar com os velhos mitos angolanos. É
novamente um trabalho muito ligado às tradições angolanas. Outra analogia que
podemos encontrar é o facto de voltarmos a ter, nesta obra, uma estória de amor num
cenário de luta, o cenário angolano depois das eleições de 1992 com o eclodir da guerra,
é a marca que o autor transporta nesta obra embora o livro não se refira nunca a uma
época específica. Nesta obra temos a guerra em Angola vista pelos olhos do camponês.
O livro traz-nos todas as culturas misturadas, sem qualquer preocupação de
enquadramento histórico ou geográfico. A obra faz muito recurso a partes das culturas
africanas. Todas misturadas."Está tudo subvertido naquele livro, até a geografia...de
propósito. É um microcosmo que representa o país." - feito por Pepetela este retrato de
Angola, talvez na intenção de retratar uma identidade e de frisar que as misturas
culturais angolanas não se fazem só nas regiões urbanas. A Parábola do Cágado Velho :
uma estória, como um grande rio onde outras estórias se misturam e se resolvem.
http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/parabola.html
 Em A Montanha da Água Lilás, fábula para todas as idades, o escritor angolano
Pepetela conta a estória de uns seres cor laranja, os Lupis, que pensavam, falavam e
trabalhavam como os homens. Mas “não são homens, porque se chamavam Lupis”.
Certo dia, os lupis descobrem uma fonte de um misterioso líquido, cujo perfume é
inebriante - a água lilás. E deixaram de viver em perfeita harmonia... Este livro, não é
apenas uma fábula para todas as idades, tal como o subtítulo parece indicar, é um
retrato (in)temporal da sociedade humana, e da crescente desigualdade social.
http://literaturaemanalise.blogspot.com/2006_02_01_archive.html
 Ao publicar Jaime Bunda, agente secreto em 2001, Pepetela realizou um sonho de
infância: escrever um romance policial. Este desejo é resgatado por este texto, o
primeiro, aliás, nesta modalidade na literatura angolana. Nele, a trama ficcional
constrói-se em torno do detective Jaime Bunda, negro lerdo e de abundantes carnes que
somadas ao seu desempenho medíocre em jogos de vólei da infância lhe valeram o
singular apelido. A personagem, no entanto, devoradora de novelas policiais, aceita-o
como sobrenome por acreditar-se, assim, mais próxima de James Bond, o agente secreto
britânico, paradigma de excelência em espionagem e na sedução feminina. A
necessidade de aproximação a este ícone da literatura e da cinematografia detectivesca
faz com que Bunda não hesite tampouco, tal como o herói britânico, em apresentar-se
como Bunda, Jaime Bunda .
O sucesso do romance e o surgimento de muitos outros dilemas dignos de
investigação na sociedade angolana levaram Pepetela a, em 2003, lançar Jaime Bunda
e a morte do americano. Neste romance, o agente secreto dos SIG Serviços de
Investigação Geral, a polícia das polícias, desloca-se de Luanda, capital do país, uma
“Manhattan hiperbolizada” para a provinciana Benguela, a cidade das acácias rubras, a
fim de elucidar o possível assassinato de um cidadão norte-americano. Homicídios são,
portanto, os elementos desencadeadores das duas narrativas, visto que em Jaime Bunda,
Agente Secreto, a morte de uma jovem de catorze anos de idade é o ponto inicial de uma
investigação que toma contornos insondáveis, revelando crimes de maior gravidade  em
Angola. No segundo romance, Jaime Bunda e a morte do americano, Pepetela retoma
um tema conhecido no país: o assassinato, nos anos 50, de um engenheiro português em
circunstâncias idênticas às enunciadas no romance. A estratégia ficcional de resgatar um
evento ocorrido meio século atrás faz valer a quase epígrafe usada por este autor no
romance A Geração da utopia de que “só os ciclos são eternos” e, por isso, fatos do
passado são recorrentes e podem servir de reflexão e questionamento aos enigmas do
presente. […]

148
Nas duas narrativas, Jaime Bunda tenta ávida e obtusamente usar o conhecimento
oriundo da ficção policialesca no quotidiano de seu trabalho numa das muitas
repartições da máquina estatal angolana. Pensa ainda poder empregar ali a mesma
lógica que crê existir nas personagens dos romances de sua predilecção, o que constitui
motivo de riso e de escárnio de seus companheiros de equipa e, em segunda instância,
do narrador e do próprio leitor. […]
(Robson Lacerda Dutra, “Detectives, crimes e enigmas: a questão social sob lentes de aumento da
investigação policial”, VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, Universidade
de Coimbra, 2004, http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel46/RobsonDutra.pdf)

 Predadores – Podemos inventar um passado, um pai e até um ideal para subir na


vida? Sim, principalmente se essa vida se passar em Angola na pós Guerra Colonial.
Pepetela regressa com um retrato mordaz dos últimos 30 anos em Angola, a seguir ao
fim da Guerra Colonial, através da ascensão e queda do empresário Vladimiro Caposso.
Rapaz modesto do Calulo, o filho de enfermeiro que tratava a tropa portuguesa,
depressa descobre que sobreviver em Luanda em muito depende do MPLA e, por isso,
muda o seu nome de José para o mais revolucionário Vladimiro. É a partir daí que
começa a escalar os degraus da política e da finança. Dos anos 1970 e da loja aberta no
feriado da Independência para poder servir o Povo ao novo milénio do campo de golfe
onde rouba a água do rio aos pastores e agricultores, Vladimiro Caposso e a sua família
empreendem em Predadores uma viagem ao longo das três décadas de transformação.
Onde o oportunismo e a esperança se entremeiam na evolução de Angola até aos dias de
hoje.
http://www.leme.pt/livros/dom-quixote/predadores/
 

  

A Montanha da Água Lilás

Fábula para todas as idades

  
Em A Montanha da água lilás: fábula para
todas as idades Pepetela narra mais um dos muitos
giros que a história dá. O narrador conta-nos uma
das muitas estórias que seu avô lhe contava à volta
da fogueira que dizia que, em determinado local,
existiu um povo chamado "lupis". Tinham na pele o
traço da diferença dos outros povos por serem cor
de abóbora e eram divididos entre lupis, pequenos e
ágeis, e lupões, maiores em estatura mas sem a
agilidade e disposição dos menores, apesar de
extremamente eficazes nas operações matemáticas.
Com o passar do tempo deu-se, por razões desconhecidas, o surgimento de uma
nova categoria de lupis, os jacalupis, que tinham este nome por serem bem maiores,
lerdos e extremamente irritáveis. Lupis, lupões e jacalupis tentavam conviver
pacificamente, apesar das dificuldades trazidas pelas suas diferenças. Certo dia,

149
descobriu-se uma fonte de água diferente. Sua cor era lilás, seu perfume inebriante. Os
lupis cientistas começaram a pesquisar seus efeitos e descobriram ser excelente
cicatrizante e amaciador da pele e dos pelos. A notícia da água lilás espalhou-se pela
floresta e todos quiseram ter acesso a esta nova maravilha que brotou repentinamente do
solo. O comércio da água lilás não custou a aparecer e cabaças e mais cabaças dela era
vendida aos animais. Dadas as habilidades dos lupis, estes passaram a ser responsáveis
directos por encher os recipientes de água e levarem-nos ao pé da montanha para o
escambo com os demais animais. Lupões e jacalupis, por serem maiores e menos
dispostos ao trabalho, ficaram responsáveis por receber o pagamento da água mágica e a
inventar novas formas de trocas. Ao cabo de algum tempo os lupis não aguentavam
mais o peso do trabalho, enquanto os demais membros de sua sociedade vestiam flores,
se adornavam com ossos e se abanavam com folhas que lhes eram vendidos como o
mais moderno e sofisticado da floresta.
Neste processo apenas os lupi poeta e o pensador reagiram contra o comercialismo e
o distanciamento que o comércio da água lilás trouxe à montanha. Seu posicionamento
fez com que fossem condenados ao exílio, não podendo mais banhar-se na piscina
construída para armazenamento da água lilás, nem tampouco descer das árvores onde
ainda moravam.
Um dia a fonte da água lilás subitamente secou. Todos cavaram, esburacaram a
montanha mas nenhuma gota verteu da terra. Lupis, lupões e jacalupis, endividados
pelos gastos feitos por conta da venda da água, viram-se escravizados por aqueles a
quem haviam vendido a água antecipadamente. Uma tarde, o lupi poeta e o pensador,
únicos moradores que restaram no alto da montanha, desceram ao chão e sentiram,
debaixo de uma outra pedra, o cheiro agradável da água lilás.
— Olha, ali em baixo cheira muito a água lilás. Deve haver.
O lupi-pensador concordou com a cabeça. Lupilou:
— Também já notei. Não lhe mexas. Nunca. Deixa-a estar aí em baixo. A nós basta
vir aqui de vez em quando cheirar este perfume delicioso, lupi-lupi-lupi.
— Tens razão, é melhor que ela durma aí em baixo, lupi-lupi-lupi. É cedo de mais
para a fazer sair.
E continuaram a lupilar, todos contentes, com a alegria que dá aspirar o perfume
da água lilás. Sons que acariciavam os fetos e as flores da nossa montanha, talvez
aqui perto de nós, hoje.
O lupi-pensador olhou a primeira carraça que se desenvolvia no braço
esquerdo, com pena de a tirar. Disse:
— Lupi-poeta, tens que contar tudo isso que passou. Para que os lupis
não se esqueçam dos seus erros.
O lupi-poeta fez então muitos poemas. Contavam a estória dos lupis e
da água lilás. Também da desgraça que se abateu sobre eles e o seu
destino. 
Foram talvez esses poemas que chegaram ao conhecimento dos avós dos nossos
avós, quando eles compreendiam a linguagem dos lupis. E nos contaram à noite, na
fogueira, para transmitirmos às gerações vindouras.
A pergunta que usamos para terminar é a mesma que Pepetela usa em sua narrativa:
Aprenderão eles com a estória?
(M. A. Robson Lacerda Dutra, “Memória e história: a questão do poder entre colonizadores e
colonizados- o eterno retorno do mito”, Revista Eletrónica do Instituto de Humanidades, vol.I, nº2,
Junho-Agosto de 2002, Universidade Unigranrio,
http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/numero2/textorobson.html)
A presente obra é uma belíssima alegoria alusiva aos Povos de África ou a qualquer
parte do globo cujos recursos naturais se tornem imprescindíveis para a espécie humana.

150
Utilizando uma linguagem simples e, simultaneamente, poética, o Autor consegue
fazer entender a um público tão vasto quanto possível, o processo social que leva à
diferenciação de classes e, simultaneamente, a estruturação de uma economia assim
como a instituição de um sistema político dentro de um dado território que comporte
uma ou mais etnias.
A estória é contada no português dos PALOP utilizando o léxico e a semântica
tipicamente angolanos. O Autor introduz, também, algum vocabulário da sua própria
autoria – neologismos. Apesar disto, o leitor, após um período inicial de desorientação,
passa facilmente a deduzir o significado deste léxico, para nós exótico, integrando-o
facilmente no contexto.
Dedicado a Lueji, a filha do Autor, A Montanha da Água Lilás é um conto narrado
por um ancião à luz da fogueira, em plena noite africana, cuja magia tem como
objectivo deslumbrar um público sem idade.
Trata-se de um conto que nos poderia ter sido trazido de qualquer parte de África,
ou até do Oriente, onde, segundo a lenda, também existe água lilás. Esta água
perfumada é um produto extraordinário, vital para a humanidade, cujas propriedades
têm a faculdade de eliminar todo o tipo de parasitas que infestem a pele dos lupis
(habitantes da Montanha da Água Lilás) e também o humor dos seres vivos em geral.
Utilizando a água lilás como riqueza natural, que se torna necessária a todos os seres
vivos, o Autor faz-nos entender o processo de estratificação social entre os lupis, a
formação das profissões e a constituição dos diferentes tipos sociais que permitem que
uma sociedade funcione como um todo, isto é, como um sistema social.
Da mesma forma, o Autor consegue, ao utilizar um discurso de uma candura que
torna imediata a apreensão do significado de coisas extremamente complexas, mostrar-
nos de que forma a água lilás consegue transformar uma economia fechada, numa
economia de mercado e despoletar o aparecimento de uma sociedade de consumo.
A água lilás acaba também por ser o catalizador que leva a uma desigual
distribuição da riqueza e a uma total inversão de toda uma escala de valores,
possibilitada pelo desenvolvimento da economia e do contacto com outras culturas. É
através desta preciosa matéria-prima que – inicialmente benéfica, mas que depois de
transformada pelo (mau) uso da ciência e da tecnologia, sem ter em vista o bem comum,
se torna nociva – nos é dado a conhecer o processo social que leva à elaboração de
armas químicas e biológicas, com o objectivo de destruir os grupos rivais,
desenvolvendo a corrida ao armamento. A água lilás torna-se assim, a longo prazo, a
semente do ódio, da cobiça, da inveja e da ambição desmedida.
No meio de tudo isto, assiste-se, como é habitual na sociedade de consumo, à
marginalização dos visionários – na pele de figuras tipo como o Pensador e o Poeta –
que são os representantes do Idealismo. Ou seja, dos seres incómodos, que rapidamente
identificam as complicações advindas de uma exploração comercial desenfreada e da
má utilização da água lilás. Por outro lado, dá-se a ascensão fulgurante dos parasitas
como os jacalupis, ou o triunfo dos medíocres. E assiste-se, paralelamente, ao sucesso
do ávido comerciante, do sôfrego armazenista e de espécimens escorregadios e
oportunistas como o diplomata e o advogado. Todos eles o retrato fiel daquilo que é a
estrutura normal da sociedade.
Pepetela oferece-nos uma deliciosa metáfora social ao dotar o texto de uma
sonoridade e de um ritmo tropical que lhe conferem um estilo com um encanto singular.
Mais ainda, o livro está povoado de lindíssimas ilustrações que contém em si o
essencial de cada capítulo ajudando o leitor a decifrar a estória e a visualizar os lupis,
lupões e jacalupis.

151
Uma obra deliciosa e um conto irresistível pela pureza com que é narrado. A mestria
do Autor é evidenciada na transparência cristalina com que é tratado um tema tão
complexo.
Por que o perfume da água lilás devolve-nos a capacidade de entender a realidade da
mesma forma que as crianças: simplificando-a.
Um texto que mostra a beleza das coisas simples e a forma como a superficialidade
da maior parte dos desejos onde, frequentemente, se confunde opulência com bem-estar.
A realidade sem máscaras. Colocando o dedo na ferida.
(Cláudia de Sousa Dias, blogue Há sempre um livro...à nossa espera!, Famalicão, 2006,
http://hasempreumlivro.blogspot.com/2006/03/montanha-da-gua-lils-de-pepetela-dom.html )  

Em A Montanha da água lilás, uma "fábula para todas as idades", é tecida, também
de modo alegórico, uma lição: a de que Angola não pode deixar secar a "água lilás",
fonte e metáfora de suas tradições e poesia: O Lupi-poeta fez então muitos poemas.
Contavam a estória dos lupis e da água lilás. Também da desgraça que se abateu sobre
eles e o seu destino. Foram talvez esses poemas que chegaram ao conhecimento dos
avós dos nossos avós, quando eles compreendiam a linguagem dos lupis. E nos
contaram à noite, na fogueira, para transmitirmos às gerações vindouras. Aprenderão
elas com a estória?
 
A pergunta fica no ar, o livro termina em aberto. A resposta, entretanto, pode ser
depreendida das entrelinhas do texto: soa como um ensinamento fabular para as novas
gerações angolanas, que só aprenderão com essa estória, se souberem preservar o fluir
lilás da liberdade e o respeito pela palavra, pela vida e pelo ser humano. (http://www.uea-
angola.org/artigo.cfm?ID=188) 
Perguntar o Mundo, perceber de uma forma simbólica os diferentes momentos em
que as sociedades se alteram aportando novas regras sociais, valores e normas; a forma
como as sociedades gerem os seus recursos naturais e a forma como a sua utilização
comporta para cada sociedade novas aquisições; a apropriação dos ganhos pelos
diferentes grupos sociais; a forma como o trabalho, e os ganhos que dele advêm, são
distribuídos; como cada um de nós se altera quando as sociedades se alteram; como
lidamos com os processos da dissonância... e um infindável ror de questões estão
levantadas nesta fábula.

(http://www.ctalmada.pt/cgi-bin/wnp_db_dynamic_record.pl?
dn=db_festivais&sn=festival_2005_pn&rn=9&pv=yes)

A MONTANHA DEA ÁGUA LILÁS

152
Era uma montanha como as outras.
Tinha formas arredondadas, como todas as montanhas
ja velhas, muito batidas pelos ventos. Tinha vales
pouco profundos, por onde corria um regato que nascia
no cume mais alto e descia em multiplas curvas ate
a planicie. Ai recebia agua de outros riachos, nascidos
noutras montanhas, e virava rio grande. Mas isso ja era
longe da nossa montanha, nao entra na estoria. Aqui era
mesmo so um regato de agua limpida, saltitante entre os
rochedos, lambendo as raizes das arvores que cresciam
nas margens. Toda a montanha estava coberta por vegetacao:
arvores grandes como a mafumeira, a mulemba
ou a amoreira de tronco branco, e tambem as de frutas
silvestres. No chão se misturavam fetos de diferentes formas
e tamanhos, begónias e rosas-de-porcelana.
Só num
ou noutro sitio tinha capim, capim tenrinho e que nao
crescia muito, por causa da sombra das grandes arvores,
gigantes teimosos escondendo o Sol.
O clima nao era muito quente, por causa da altitude.
E chovia bastante, daquelas chuvadas rapidas que sem avisar
nos caem em cima, embora nunca com grande violencia.
A montanha tinha dois cumes principais: o cume
Lupi, o mais alto, onde nascia o rio de mesmo nome, e
20
o cume do Sol, no extremo oposto. No meio dos dois
cumes havia um morrozito com pedras, sem plantas nem
árvores, apenas capim baixo. Era o sítio mais calmo e
perfumado da montanha e dali se podia ver melhor o
luar de Lua cheia; por isso era o Morro da Poesia.
Era uma montanha como todas as outras. Mas seria
mesmo?

LITERATURA MOÇAMBICANA – PERIODIZAÇÃO


 

153
1º Período, que vai das origens da permanência dos portugueses naquela região
índica até 1924, ano que precede o da publicação de O livro da dor, de João Albasini.
É um período de Incipiência, um quase deserto secular, que se modifica com a
introdução do prelo, no ano de 1854, mas sem os resultados literários verificados em
Angola.
Está hoje perfeitamente assente que, ao contrário de Angola, não houve uma
actividade literária consistente e continuada, em Moçambique, até aos anos 20 do século
XX. Nesse panorama desértico, tão habitual no oitocentismo, em África, sobressai, nos
anos 60, 70 e 80, a publicação dispersa dos textos de Campos Oliveira (nasceu na Ilha
de Moçambique, em 1847; morreu em 1911), num total de 31, rastreados por Manuel
Ferreira. Foi estudante de Direito em Coimbra e morou na Índia, autor de um
Almanaque Popular em Margão, em meados dos anos 60. Vejam-se duas estrofes de «O
pescador de Moçambique»: 
— Eu nasci em Moçambique,
de pais humildes provim,
a cor negra que eles tinham
é a cor que tenho em mim:
sou pescador desde a infância,
e no mar sempre vaguei;
a pesca me dá sustento,
nunca outro mister busquei.
[...]
Vou da cabaceira às praias,
atravesso Mussuril,
traje embora o céu d’escuro,
ou todo seja d’anil
de Lumbo visito as águas
e assim vou até Sancul,
chego depois ao mar-alto
sopre o norte ou ruja o sul.
 [...]
O 2.° Período, de Prelúdio vai da publicação de O livro da dor até ao fim da II
Guerra Mundial, incluindo, além do livro do jornalista João Albasini, os poemas
dispersos, nos anos 1930, de Rui de Noronha, depois publicados em livro, numa recolha
duvidosa, incompleta e censoriamente truncada, com o título de Sonetos (1946), por ser
o género mais cultivado por ele.
Rui de Noronha (nasceu em 28 de Outubro de 1905; morreu em 25 de Dezembro
de 1943, em Lourenço Marques) publicou boa parte dos seus poemas entre 1932 e 1936,
no jornal O Brado Africano. A recolha póstuma de Sonetos (1946) não faz juz à real
obra do poeta.
Tributário da poesia da terceira geração romântica portuguesa, coincidente esta com
o impulso renovador do Realismo que se aproximava, vemos nesses sonetos, até pela
sua forma, a atinência estrita à tradição ocidental, que o latim retomado do soneto de
Antero e, mais longe, da divulgação bíblica (a figura do Lázaro ressuscitado), denuncia
claramente:

Surge et ambula 

154
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo... 

A selva faz de ti sinistro ermitério,


onde sozinha à noite, a fera anda rugindo...
Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério
E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo... 

Desperta. Já no alto adejam negros corvos


Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula... 

Desperta. O teu dormir já foi mais do que terreno...


a voz do Progresso. este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — África surge et ambula!

Não se esgota nesse cumprir da herança portuguesa ocidental e cristã a poesia de


Rui de Noronha, que também se plasmou em formas mais libertas de constrangimentos
e versou temas relacionados com tradições nativas de Moçambique, como no caso do
celebrado poema «Quenguelequêzê» (modernamente também se escreve «Quenguele
que ze»). Mas uma revisão crítica, como a que encetou Fátima Mendonça, obriga a
realçar a inversão de certa mitologia propagandística da história colonial que Rui de
Noronha operou poeticamente, desfazendo a versão de um Mouzinho de Albuquerque
como herói destemido e de um Ngungunhane (ou Gungunhana), imperador (ou régulo,
segundo a terminologia mais antiga) derrotado, dominado e humilhado: 

Pós da história

Caiu serenamente o bravo Quêto


Os lábios a sorrir, direito o busto
Manhude que o seguiu mostrou ser preto
Morrendo como Quêto a rir sem custo. 

Fez-se silêncio lúgubre, completo,


no craal do vátua célebre e vetusto.
E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,
Fitava os dois, o olhar heróico, augusto. 

Então Impincazamo, a mãe do vátua,


Triunfando da altivez humana e fátua,
Aos pés do vencedor caiu chorando. 

Oh dor de mãe sublime que se humilha!


Que o crime se não esquece à luz que brilha
Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?

155
 

Noronha é, pois, herdeiro do terceiro romantismo português, como se disse, da sua


oscilação entre a consciência do sujeito e a ânsia de absoluto (que haveria de liquidar
física e psiquicamente um Antero, ora sombrio, ora ático), que a história tratava de
reconduzir à realidade (isto é, ao quotidiano e seu jogo de forças materiais, sociais).
Mas o poeta ultrapassa os restos desse terceiro romantismo, ao apropriar-se de temas e
imagens segundo uma estratégia textual e ideológica que assumia os primeiros
contornos de uma moçambicanidade baseada na História e no manancial étnico (o ritual,
ainda que estereotipado, da Lua Nova).
Uma nova época foi inaugurada, portanto, a seguir à II Guerra Mundial. Durante
cerca de 20 anos (até 1963), a literatura moçambicana alcançará a autonomia definitiva
no seio da língua portuguesa. […] 
Noémia de Sousa, no seguimento dos textos soltos de Campos Oliveira (século
XIX), do jornalismo dos irmãos Albasini e de O livro da dor (1925), de João Albasini,
e, depois, de Rui de Noronha, além de outros, também não muitos, nem prolíficos, é a
primeira escritora de inequívoca radicação (e radicalização) africana, mas sem que se
possa considerar que a literatura moçambicana comece com ela, que escreve os seus
poemas entre 1948 e 1951, antes de embarcar para a Europa. Sem demasiadas
preocupações cronologistas, podemos, para facilitar a perspectiva temporal e ancorar os
textos marcantes a um quadro algo referencial, estabelecer, todavia, os anos do pós-
guerra, de 1945-52, como decisivos para uma nova literatura moçambicana.[…]
Fonseca Amaral publicou, em 1945, os primeiros textos poéticos; Orlando
Mendes, as «Cinco poesias do Mar Índico», na Seara Nova (1947); acrescentamos-lhes
o tal poema de Noémia de Sousa, «Canção fraterna» (1948); João Dias morreu em
1949, deixando inéditos vários contos, publicados em livro pela CEI, em 1952; saiu o
número único do jornal Msaho (1952), com colaboração de Noémia de Sousa, Virgílio
de Lemos e Rui Guerra (o conhecido realizador do Cinema Novo brasileiro); Luís
Polanah, Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo organizaram para a CEI uma
antologia de Poesia em Moçambique (1951), no culminar de uma actividade mais
ampla que vinha sendo desenvolvida, em Lisboa e Coimbra, desde meados da década de
1940. […] 
O 3.° Período, que vai de 1945/48 a 1963, caracteriza-se pela intensiva Formação
da literatura moçambicana. Pela primeira vez, uma consciência grupal instala-se no seio
dos (candidatos a) escritores, tocados pelo Neo-realismo e, a partir dos primeiros anos
de 1950, pela Négritude.
Noémia de Sousa escreve todos os seus poemas (conhecidos até hoje) entre 1948 e
51, ainda sem conhecer a Negritude francófona, mas estando a par dos negrismos
americanos (Black Renaissance, Indigenismo haitiano e Negrismo cubano, entre
outros), visto que dominava o inglês e o francês. Em 1951, circulará o seu livro
policopiado Sangue negro, formado por 43 poemas (mais um do que noutra versão
posterior). Em 1951, partiu para Portugal e, ao passar por Luanda, deixou uma cópia,
que seria frutuosa para os intelectuais angolanos ligados à Mensagem (1951-52) e todos
os escritores das duas décadas subsequentes. […]
O jornal cultural Msaho (1952, n.° único), proibido pela censura, destinava-se, como
o título indicia, ao compromisso investigatório e solidário com a cultura ancestral e
popular, na linha da Mensagem angolana ou dos congéneres movimentos de pesquisa e
radicação nacionalista, desde o romantismo europeu à América Latina (negros ou não).
Neles colaborou Noémia de Sousa.

156
A década de 50, sendo a de movimentos grupais, viu surgir, desde logo, a
publicação de textos, exclusivamente poéticos, em selecções e antologias. Poesia em
Moçambique (1951), organizada por Luís Polanah, com um prólogo de Orlando de
Albuquerque e Vítor Evaristo, saída em Lisboa, na CEI, tem um critério muito largo e
promíscuo (jovens autores sem futuro, portugueses, etc.), mas já inclui futuros poetas
importantes do país.
José Craveirinha sobressai, nesta década, de uma plêiade que congrega, além de
Noémia de Sousa, Rui Nogar, Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Rui Guerra, Fonseca
Amaral, Orlando Mendes, entre outros. 
O 4.° Período prolonga-se desde 1964 até 1975, ou seja, entre o início da luta
armada de libertação nacional e a independência do país (a publicação de livros
fundamentais coincide com estas datas políticas). É o período de Desenvolvimento da
literatura, que se caracteriza pela coexistência de uma intensa actividade cultural e
literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos de cariz não explícita e
marcadamente político (em que pontificavam intelectuais, escritores e artistas como
Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros) com, no
outro lado, na guerrilha, inequívocos poemas anti-colonialistas que teciam loas à
revolução e tematizavam a luta armada.
Em 1964, Luís Bernardo Honwana publica Nós matámos o cão-tinhoso, um
conjunto de contos que finalmente emancipa a narrativa em relação à preponderância da
poesia. Nesse mesmo ano, sai, em Lisboa, o pequeno livro Chigubo, de José
Craveirinha, editado pela CEI. Depois, até à independência, aparece aquele que tem
sido apresentado como o primeiro romance moçambicano, Portagem (1966), de
Orlando Mendes, os três números da revista Caliban, de índole universalista e
cosmopolita, em 1971, justamente quando a FRELIMO editava um primeiro volume de
Poesia de combate, para, já em 1974, surgir, então, o Karingana ua karingana, de José
Craveirinha, uma recolha de poemas escritos a partir de 1945.
Nos anos 1960 e 1970, em Moçambique, vão estar em cena bastantes escritores que
abandonarão o país na independência (pouco antes ou pouco depois, sobretudo brancos,
mas também um que outro mulato). Intensifica-se assim uma tendência própria da
colónia, qual seja a de criar muitos intelectuais, escritores e artistas com uma
identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla, escritores que passam a sentir-se
moçambicanos e/ou portugueses: Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Guilherme de
Melo, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Lourenço de Carvalho, Eduardo Pitta, João
Pedro Grabato Dias (ou Mutimati Barnabé João ou António Quadros), Eugénio
Lisboa, Ascêncio de Freitas, etc. Outros, como Mia Couto, Heliodoro Baptista, Leite
de Vasconcelos, ficarão no Índico, assumindo sem reservas a cidadania moçambicana.
Recordemos que a tradição de escritores brancos, nascidos ou criados em Moçambique,
mas que, muito cedo ou em idade madura, activa ou passivamente, demandaram ou
foram incluídos noutras pátrias, inclusive culturais, já era desproporcionada em relação
à real extensão e valia da sua literatura: Alberto de Lacerda, Helder Macedo,
Reinaldo Ferreira, Orlando de Albuquerque, etc. 
Ao 5.° Período, entre 1975 e 1992, chamaremos de Consolidação, por finalmente
passar a não haver dúvidas quanto à autonomia e extensão da literatura moçambicana,
contra todas as reticências, provindas de alguns sectores dos estudos literários, e, diga-
se também, contra todas as evidências. Após a independência, durante algum tempo
(1975-1982), assistiu-se sobretudo à divulgação de textos que tinham ficado nas gavetas
ou se encontravam dispersos. O livro típico, até pelo título sugestivo, foi Silêncio
escancarado (1982), de Rui Nogar (1935-1993), aliás o primeiro e único que publicou
em vida. Outro tipo de textos é o de exaltação patriótica, do culto dos heróis da luta de

157
libertação nacional e de temas marcadamente doutrinários, militantes ou empenhados,
no tempo da independência.
Tal como nos outros países neófitos, o Estado (e a FRELIMO) detinha o monopólio
das publicações e o consequente controle. Todavia, segundo um conceito de instituição
literária que não passa obrigatoriamente por publicar em Moçambique, como acontecia,
aliás, na época colonial, temos de considerar a actividade poética de um Rui Knopfli
fora de África como cooptada para o património literário moçambicano. A publicação
dos poemas de Raiz de orvalho, de Mia Couto (em 1983) e sobretudo da revista
Charrua (a partir de 1984, com oito números), da responsabilidade de uma nova
geração de novíssimos (Ungulani Ba Ka Khosa, Hélder Muteia, Pedro Chissano,
Juvenal Bucuane e outros), abriu novas perspectivas fora da literatura empenhada,
permitindo-lhes caminhos até aí impensáveis, de que o culminar foi o livro de contos
Vozes anoitecidas (1986), de Mia Couto, considerado como fautor de uma mutação
literária em Moçambique, provocando polémica e discussão acesas. A partir daí, estava
instaurada uma aceitabilidade para a livre criatividade da palavra, a abordagem de temas
tabus, como o da convivência de raças e mistura de culturas, por vezes parecendo
antagónicas e carregadas de disputas (indianos vs. negros ou brancos).
A publicação de Terra sonâmbula (1992), de Mia Couto, o seu primeiro romance,
coincidente com a abertura política do regime, pode considerar-se provisoriamente o
final deste período de pós-independência.

 (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta,
1995, pp. 256-262)

             A POESIA MOÇAMBICANA CONTEMPORÂNEA


 

Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se aos poetas da


"literatura européia", ou seja, aqueles que, sendo brancos, centram toda, ou quase toda a
sua temática nos problemas de Moçambique; foram eles que contribuíram
decisivamente para a formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial
realce: Alberto de Lacerda , Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória Sant'Anna,
Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António Quadros. Alguns destes poetas
escrevem poesia de carácter mais pessoal, enquanto os outros estão virados para o
aspecto "social". Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra
se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o povo que vive e sofre
as consequências do colonialismo. Por muita desta poesia perpassa também a centelha
da esperança da libertação. São estes autores que contribuíram deum modo decisivo
para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos destes poetas
podemos detectar a alienação em que se encontram perante a sociedade africana a que
pertencem. Veja-se este exemplo de Rui Knopfli: 

Europeu me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem raiz de algum

158
pensamento europeu,
É provável...Não. É certo,
mas africano sou.

A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada sobretudo por


escritores que militavam na Frelimo. Entre eles, destaque para Marcelino dos Santos,
Rui Nogar e Orlando Mendes. Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com
comunicar uma mensagem de cunho político e, algumas vezes , partidário. Como
literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar, com alguns belos
poemas de carácter intimista, no seu livro Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é
pouco ou nada inovadora.
Como nos outros países, surge também em Moçambique um número de escritores
cuja obra poética é conscientemente produzida tendo em conta a factor da
nacionalidade, anterior, como é evidente, à realidade do país que mais tarde se
concretiza. São eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no contexto,
primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os principais autores deste tipo de poesia,
encontram-se Noémia de Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba,
Mia Couto e Luis Carlos Patraquim.
A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e referência obrigatória
em toda a literatura africana, é José Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha
engloba todas as fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até
praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista,
uma poesia da negritude, cultural, social, política; há uma poesia de prisão; existe uma
poesia carregada de marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande
pendor lírico e intimista.
Porque nos propomos analisar, numa outra oportunidade, a poética de Craveirinha,
fique, ao menos, a referência à obra publicada deste autor: Cela 1 (1980), Xigubo
(1980), Karingana Ua Karingana (1982) e Maria (1988). Uma leitura atenta leva-nos a
perceber a diferença marcante entre cada uma destas obras de Craveirinha. Xigubo é um
livro mais virado para a narratividade, para a descrição de elementos exteriores ao
poeta. Neste livro, o poeta distancia-se do "eu" poético; ou , então, funciona como um
narrador de estórias cuja voz é éco de um drama que se desenrola num universo (o de
África) em que o poeta é participante. Pelo contrário, em Cela 1 e Maria, o "eu" poético
identifica-se com o sujeito da narrativa. As últimas duas obras são um corolário da
itinerância do poeta num clima de epopeia de que Xigubo e Karingana Ua Karingana
são um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experiência colectivizante
"narrada" em Xigubo, para uma escrita que individualiza a sua própria vivência
"mimada" em Cela 1 e Maria.
Nesta obra de José Craveirinha, que não se pode considerar vasta, encontra-se o que
de melhor pertence à poética africana dos países de expressão portuguesa.
Termino com uma breve referência à poesia do período pós-independência. Os
poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos "grandes" de antes de 1975,
como Reinaldo Ferreira , Knopfli e Sebastião Alba) desviaram-se da poesia de cariz
colectivo, preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua experiência pós-
colonial. Entre estes poetas, é obrigatória a referência a Mia Couto, mas sobretudo a
Luis Carlos Patraquim. São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a
linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por transferir todo o seu
potencial poético para a ficção. Luis Carlos Patraquim revela influências de Craveirinha

159
e Knopfli, sobretudo nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia
revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista. Patraquim desenvolve
uma poesia que, em parte, é inovadora, focalizada sobretudo no amor e no erotismo.
Nota-se também uma grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal
dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros (Monção, A inadiável
viagem; e Vinte e tal Formulações e Uma Elegia Carnívora), Luis Carlos Patraquim
representa a fusão entre as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da
moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em Moçambique".

(José Francisco Costa, “Poesia africana de língua


portuguesa”, http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=1208, 5/4/2006)

SONHOS, PAISAGENS E MEMÓRIAS NA POESIA


MOÇAMBICANA CONTEMPORÂNEA

Ao observarmos o conjunto da poesia moçambicana contemporânea, verificamos


que, em grande parte, essa produção poética dos últimos vinte anos, opera,
tematicamente, com resíduos de sonhos, desejos, sentimentos, paisagens e memórias
que resistiram às guerras e resistem, hoje, a novas pressões sociais e políticas. Se
durante os tempos das lutas pela libertação, uma significativa parcela dos poemas
produzidos se fez arma ideológica de combate ao colonialismo, actualmente, os
discursos poéticos se revelam sob formas diversas, apresentando outras maneiras de
resistir. Segundo o crítico brasileiro Alfredo Bosi, «a resistência tem muitas faces. Ora
propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da
natureza); ora a melodia dos afectos em plena defensiva (lirismo subjectivo); ora a
crítica directa ou velada da desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do
epos revolucionário, da utopia). Estudiosos da literatura de Moçambique, entre os quais
Fátima Mendonça, Ana Mafalda Leite, Lourenço do Rosário, Matteo Angius, Gilberto
Matusse, Francisco Noa, são unânimes em apontar duas vertentes estéticas
caracterizadoras do sistema poético moçambicano, as quais, se tomamos a
classificação de Bosi acima mencionada, notamos que correspondem, respectivamente,
ao que o crítico brasileiro denominou «poesia de afectos, do lirismo subjectivo» e
«poesia da utopia, do epos revolucionário»: 1: uma, que exprime um lirismo
individual, que se faz espaço de afirmação da poesia, eximindo-se de
comprometimentos políticos ou ideológicos, exprimindo, mesmo assim de forma
oblíqua, mas não menos profunda, preocupações existenciais nos mais variados níveis.
Aqui, a figura emblemática é, inquestionavelmente, Rui Knopfli; 2: a outra, inserida
num projecto e num desiderato mais amplo de afirmação colectiva, em que se
reivindicam raízes culturais negro-africanas, instituindo uma poesia programática e
datada de protesto e denúncia, em que se observa uma crescente contaminação político-
ideológica. […]
Buscando outros ritmos, pulsações e novos ventos literários, Mia Couto e
Patraquim reactivaram, na cena literária moçambicana do início dos anos 80, uma

160
poiesis de cariz existencial, preocupada não só com as emoções interiores, mas com as
origens, com as paisagens do presente e do outrora, com o próprio fazer poético.
Rebelando-se contra paradigmas literários articulados pelo ethos revolucionário,
evidenciaram como, em razão destes, muitos dos cidadãos moçambicanos se
encontravam despojados de suas singularidades. Defensores de uma dicção poética
subjectiva, fizeram ponte entre o antigo lirismo e o de Charrua (que despontaria em
1984), comprovando que «a poesia lírica sempre arriscou em Moçambique».
Mia Couto, através da metáfora da «raiz de orvalho» «gota trémula, raiz exposta»,
corporizou o cerne de sua poiesis, tributária, em alguns aspectos, do quotidiano de
poesia vivenciado com o pai, o poeta Fernando Couto, cujo lirismo como o de Fonseca
Amaral, Rui Knopfli, Glória de Santana, Virgílio de Lemos, Reinaldo Ferreira e outros
mais havia, anteriormente, ultrapassado, também, os ângulos redutores e limitados do
panfletarismo literário, embora não se houvesse eximido de fazer críticas às
arbitrariedades da censura e do poder:  
Pedregoso o chão da pátria
apenas o tamanho de um brado.
Asfixiava-nos o abraço das serras
horizonte de granito urze e lobos:
ampla e aberta apenas a porta do mar.
Em poema dedicado ao pai, Mia Couto, relembrando fragmentos de sua infância,
presta homenagem ao progenitor-poeta, cuja sensibilidade captava os «húmidos
silêncios da lua» e os transformava, pela linguagem, em matéria de poesia:  
[...] ali ficava por dentro da noite
havia não sei que diálogo
entre ele e o silêncio húmido da Lua 
Depois
entrava no quarto
os olhos cobertos de prata
e dizia-nos com sua voz ausente:
«a chuva está suspensa na luz»
falava de nevoeiro
A poesia de Luís Carlos Patraquim também dialoga com a de representantes do
antigo lirismo moçambicano. No poema «Metamorfose», é visível a intertextualidade
tecida com conhecidos versos de José Craveirinha, conforme já assinalaram vários
estudiosos da sua poesia:  
quando o medo puxava lustro à cidade
eu era pequeno
vê lá que nem casaco tinha
nem sentimento do mundo grave
ou lido Carlos Drummond de Andrade 
[…]
mas agora morto Adamastor
tu viste-lhe o escorbuto e cantaste a madrugada 
[…]
falemos da madrugada e ao entardecer
porque a monção chegou
e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos num silêncio de rãs a
tisana do desejo
[…] Evidente é, portanto, a importância da transição efectuada pelas poéticas de
Patraquim e Mia Couto. «Quer refazendo zonas sagradas que o sistema profanou (o

161
mito, o rito, o sonho, a infância, Eros), quer desfazendo o sentido do presente em nome
de uma liberação futura», o lirismo praticado no início dos 80 abriu espaço favorável às
tendências estéticas apresentadas pela Revista Charrua criada, por Juvenal Bucuane,
Hélder Muteia, Pedro Chissano, a qual conquistou outros adeptos, entre os quais
Eduardo White, cuja obra é, actualmente, reconhecida, não só em Moçambique, mas
em meios literários estrangeiros.
Uma parte da poesia de Charrua se caracterizou por um «lirismo de afectos»,
cujo discurso literariamente elaborado funcionou como antídoto aos slogans poéticos
dos tempos guerrilheiros. A revolução deixou, assim, de ser tema e passou a se
manifestar no campo formal da construção dos próprios poemas, tecidos em linguagem
de apuro e esmero estético. Esses foram, em linhas gerais, os principais vectores da
Revista, a qual, entretanto, em seus oito números publicados entre 1984 e 1986,
apresentou um certo ecletismo, tendo em vista não ter chegado a definir um projecto
único, abrigando perspectivas várias e plurais, coincidentes, apenas, quanto à opção por
um intenso labor metafórico dos versos, à recusa de uma poética engajada e à afirmação
de uma lírica voltada para os meandros subjectivos da alma humana. Segundo Rita
Chaves, com o distanciamento que os anos trazem, já podemos observar que à ruptura
efectuada em certos planos corresponde à consolidação de algumas propostas definidas
em tempos anteriores. [...] O grande objectivo de Charrua [...] não era a negação do que
se fazia, mas remexer o terreno a ser cultivado. O nome charrua aponta para essa
vinculação com a terra a ser revolvida para que se aumente a sua fertilidade. Tratava-se
o repertório produzido de inserir-se dialecticamente na tradição, negando-lhe alguns
aspectos para reforçar-lhe de maneira vertical outros traços e concepções.
Na poesia de Eduardo White uma das referências obrigatórias para quem estuda a
Geração Charrua, está presente a preocupação com as origens. Há nessa procura o
desejo de reencontrar a própria face e a do país. O sujeito lírico, em viagem interior,
almeja reescrever poeticamente a sua história e a de Moçambique. Uma história escrita
por um amor diversificado: pela amada, pela terra, pela própria poesia, e que visa a
apagar as marcas da guerra. À procura de Eros, o eu-poético elege como ponto de
partida a Ilha de Moçambique, lugar matricial, onde, antes de Vasco da Gama lá ter
aportado em 1498, os árabes também haviam estado desde o século VII, tendo levado
do continente para a ilha negros de etnia macua, cujas tradições e língua também
ficaram inscritas no imaginário insular. Sob a sugestão erotizante do Índico, a voz lírica
evoca a insularidade primeira como fizeram antes dele outros poetas como, por
exemplo, Patraquim, captando as múltiplas raízes culturais presentes no tecido social
moçambicano, cuja identidade, no decorrer dos séculos, se fez mestiça: Sou ao Norte a
minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-te e para mim
algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por entre negras
enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frágeis e belas como as
missangas e vejo-te pelos seus absurdos olhos azuis. Que viagens eu viajo, meu amor,
para tocar-te esses búzios, esses peixes vulneráveis que são as tuas mãos e também
como me sonho de turbantes e filigranas e uma navalha que arredondada já não mata, e
minhas oferendas de Java ouros e frutos incensos e volúpia. Os temas do mar, das ilhas,
das praias são também frequentes em vários poetas do passado, entre os quais: Virgílio
Lemos, Glória de Santana, Rui Knopfli: 
Mas retomo devagarinho às tuas ruas vagarosas,
caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana?) durando no ar...

162
Nesses versos, Knopfli assinala na ilha a presença do Oriente, cujas marcas,
contudo, não somente existem ali, mas em outras regiões moçambicanas, tema
explorado por Eduardo White em seu último livro Janela para Oriente (1999). Outros
poetas louvaram a Ilha de Moçambique, chamada inicialmente Muhipíti, cujas
paisagens e monumentos, como «lugares da memória», guardam diferentes heranças
culturais impressas nas fortalezas portuguesas e nas naves moiras. Orlando Mendes
lembra que «Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes/ e Gonzaga da
Inconfidência no desterro em lado oposto». Virgílio de Lemos, no poema «A Fortaleza
e o Mar», avivou a lembrança desse local e, pela meditação, buscou esconjurar «os
fantasmas e paradoxos» da história «de cobiça» que ultrajaram o chão insular:  
O tempo quebrado invade
o canonizado lugar e o Amor
deixa-se viver, Eros, talvez mar
desta reflexiva via, meditação.
[...]
Os mesmos fantasmas se cruzam
pela praia, nos paradoxos repetidos
entre a cobiça e o cego desejo.
Vem, pois, de longe, esse viés erótico-amoroso que perpassa pela poesia de vários
representantes de Charrua. Erotismo visceral, ternura e musicalidade foram «os
materiais de amor» usados pelos poetas, principalmente por Eduardo White, o qual tece
sua poética, reflectindo também sobre a necessidade de o povo moçambicano recuperar
a dignidade de uma vida mais humana: «Felizes os homens/ que cantam o amor. / A eles
a vontade do inexplicável / e a forma dúbia dos oceanos». Nesses versos, a metáfora
marinha assinala a dubiedade de uma identidade problemática, porque engendrada na
encruzilhada de dois oceanos: o Índico que banha o litoral do país e serviu à rota
oriental dos mercadores árabes e o Atlântico que, embora distante, a ocidente, trouxe as
caravelas e o imaginário lusitano. Eduardo White, apesar de cantar o amor, não esquece
as questões sociais, mostrando o luto que sufoca Maputo, depois de tantos anos de
combates e lutas: «Amor! / Os nossos mortos estão apodrecendo pelas ruas / e há uma
tristeza ornada que entre as mãos leva um álamo.» Tentando expurgar essa história de
sangue e violência, sua poesia busca reencontrar «as raízes do afecto» e o mistério da
própria vida. Após o trajecto pelas águas marítimas de Amar sobre o Índico, o seu
lirismo, nos livros seguintes, adopta o caminho do Amor e dos sonhos, alçando voo
através das asas da poesia. Antes de White, outros poetas, conforme já referimos,
assumiram esse viés lírico-amoroso, fazendo dos sentimentos uma forma de
questionamento da realidade, como evidenciam os versos de Heliodoro Baptista:
«Impugnados somos,/ mas de ternura subversiva».  […]
Após essa breve incursão pela lírica moçambicana contemporânea, averiguamos que
o desenvolvimento desta «não se fez propriamente de rupturas, mas de movimentos
espiralares de avanços e recuos», de conquistas e retomadas, tanto que até os mais
jovens poetas não abriram mão da intertextualidade com reconhecidas vozes poéticas
que os antecederam. Detectamos que as vertentes estéticas apontadas inicialmente neste
artigo (a da «poesia de afetos» e a da «poesia paródica») atravessam, em alternância,
praticamente todo sistema poético de Moçambique, estando presentes nas produções
mais recentes. Outra conclusão a que chegamos é a de que alguns dos poetas egressos
da Geração 70, embora não tenham logrado publicar seus livros, não param de escrever.
E porquê? Em nossa opinião, porque, apesar de se terem declarado poetas do real, da
denúncia directa da fome, identificando-se como herdeiros de distopias e guerras, não
abandonaram a utopia do fazer literário e sabem, no íntimo, que ainda precisam

163
aprimorar seus versos. Notamos que o descontentamento frente ao contexto económico,
social, político e cultural do país é grande, reflectindo-se no quadro actual da poesia.
Vários poetas alguns que pertenceram à Charrua e outros que surgiram paralelamente
ou depois revelam, em seus últimos poemas, uma céptica lucidez em relação à realidade
de Moçambique, mas prosseguem no encalço das «paisagens da memória» e dos
«subterrâneos dos sonhos», pois crêem, no fundo, que estes, segundo palavras de
Eduardo White e Alfredo Bosi, se configuram como forças interiores capazes de
manterem «os homens vivos» e de buscarem recompor o universo da poesia «que os
novos tempos tentam renegar.»

(Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco,, “Sonhos, Paisagens e Memórias na Poesia Moçambicana
Contemporânea”, União dos Escritores Angolanos, 2002, http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=622)

JOSÉ CRAVEIRINHA

VIDA E OBRA

 Lourenço Marques (actual Maputo), 1922 - 2003

164
 Poeta, ensaísta e jornalista. Nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), filho de
pai branco (algarvio) e de mãe negra (ronga). Sendo o pai um modesto funcionário e, ao
tempo da opção, já reformado, José Craveirinha teve de ser sacrificado, ficando pela
instrução primária, para que seu irmão mais velho fizesse o liceu. Mas Craveirinha, que
então já lia muito, influenciado por seu pai, grande apaixonado de Zola, Victor Hugo e
Junqueiro, passa a fazer em casa o curso que o irmão fazia no liceu, acompanhando as
lições que este ia tendo. Assim, os seus professores foram-no sem o saber ou sabendo-o
só mais tarde. Iniciou a sua actividade jornalística no Brado Africano, mas veio a
colaborar depois no Notícias, onde foi também revisor, na Tribuna, no Notícias da
Beira, na Voz de Moçambique e no Cooperador de Moçambique. Neste último publicou
uma série de artigos ensaísticos sobre folclore moçambicano que constituem uma
importante contribuição para o tema. Mas foi na poesia que Craveirinha se revelou
como um destacado caso nas letras de língua portuguesa, afirmando-se "a
incomensurável distância - o maior poeta africano de expressão portuguesa" (Rui
Knopfli). Estrear-se-ia como poeta, também no Brado Africano de Lourenço Marques,
em 1955, seguindo-se a publicação de poemas seus no Itinerário da mesma cidade e em
jornais e revistas de Angola, Portugal (nomeadamente em Mensagem, da Casa dos
Estudantes do Império) e Brasil, principalmente. Figura em todas as antologias de
poesia africana de língua portuguesa que desde então se publicaram e também em
muitas antologias de poesia africana de todas as línguas. A sua estreia em livro deu-se
com Chigubo, editado em Lisboa em 1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo
apreendido pela PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima
durante o período em que esteve preso (na célebre cela 1 com Malangatana e Rui
Nogar, entre outros, entre 1965 e 1969). Antes, em 1962, uma colectânea de poemas
seus com o título de Manifesto obtivera o Prémio Alexandre Dáskalos da Casa dos
Estudantes do Império. Obteria depois numerosos prémios em Moçambique, Itália (o
Prémio Nacional de Poesia e outros) e Brasil, além do Prémio Lotus da Associação de
Escritores Afro-Asiáticos, de cujo júri passou depois a fazer parte. Foi o Prémio
Camões de 1991. Está traduzido em várias línguas e é grande a relação de estudos que à
sua poesia foram dedicados. Usou também os nomes: Nuno Pessoa, Mário Vieira, J. C.,
J. Cravo e José Cravo.

(Adaptado de Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998. Disponível em:
http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?
pageid=402&tpcontent=FA&idaut=1696130&idobra=&format=NP405&lang=PT)

Obras publicadas: 

Chigubo. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império, 1964 (com treze poemas); a 2ª
Edição foi rebaptizada Xigubo, com vinte e um poemas (Maputo: INLD, 1980).

Cantico a un dio di catrane. Milano: Lerici, 1966. Edição bilingue com tradução e
prefácio de Joyce Lussu.

Karingana ua karingana. Lourenço Marques: Académica, 1974. 2ª Edição, Maputo:


INLD, 1982. 3ª Edição, Maputo: AEMO, 1996.

Cela 1. Maputo: INLD, 1980 (Poemas da prisão, ao jeito dos que escreveram os
angolanos António Jacinto e António Cardoso).

165
Izbrannoe. Moskva: Molodaya Gvardiya, 1984.

Maria. Lisboa: ALAC (África, Literatura, Arte e Cultura), 1988 (Poemas dedicados à
falecida mulher, selecção de entre muitas e muitas dezenas, conforme informação
do autor.)

Babalaze das hienas. Maputo: AEMO, 1996.

Hamina e outros contos. Maputo: Ndjira, 1997.

Maria. Vol.2. Maputo: Ndjira, 1998.

Poemas da Prisão, Lisboa, Texto Editora, 2004.

Poemas Eróticos. Moçambique Editora/Texto Editores, 2004 (edição póstuma, sob


responsabilidade de Fátima Mendonça)

Pode considerar-se José Craveirinha como o poeta nacional moçambicano, no


sentido em que Camões o é para Portugal. De certo modo, com a sua poesia
frequentemente extensa, narrática, glosando temáticas da dominação colonial, da
identidade nacional e de lirismo amoroso ou irónico, Craveirinha acaba por forjar textos
que têm marcas épicas, que funcionam como relatos concentrados ou alusões à gesta do
povo de Moçambique.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, pp. 278)

DEPOIMENTO AUTOBIOGRÁFICO
(Janeiro de 1977)

 Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me


Sontinho, diminutivo de Sonto [que significa domingo em ronga, língua da capital].
Pela parte de minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José. Aonde? Na Av. do
Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem?
Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato...
A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias impostas pelos outros.
Quando meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão.
E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e
um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção.
Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra.
Nasci ainda mais uma vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também
nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.

166
Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e
derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu
pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes:
principalmente da Pátria. Por causa de minha mãe, só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta.
Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E
como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e
urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes altas horas da noite.

 (in Antologia da nova poesia moçambicana, org. Fátima Mendonça e Nelson Saúte, AEMO, 1989,
p. viii-x. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_02.pdf)

INTERPRETAÇÃO DO MITO PESSOAL DE CRAVEIRINHA

José João Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922, na periferia da antiga


Lourenço Marques, actual Maputo, numa modesta casa de madeira e zinco. Todas as
suas vivências estão ligadas ao bairro da Mafalala, um bairro pobre na periferia
suburbana da cidade […]. É proveniente duma família modesta. O seu pai era branco,
natural de Aljezur, no Algarve; ficou radicado em Moçambique, tendo-se integrado no
meio humilde suburbano. A sua mãe era uma negra ronga, nascida em Michafutene,
arredores de Lourenço Marques (hoje Maputo). O poeta passou os primeiros tempos da
sua infância inserido no meio tradicional moçambicano, chegando a andar às costas da
sua mãe, conforme é tradição em África. Ficou órfão de mãe quando tinha apenas cinco
anos de idade. Foi criado com o pai e a madrasta, senhora com um certo estatuto social
que tratava do enteado como se fosse seu próprio filho. […]
Após a análise dos registos que efectuei com a finalidade de descobrir o mito
pessoal de José Craveirinha, cheguei à conclusão de que existe um conflito latente na
mente deste conceituado escritor, devido ao facto de ser mulato. Sendo ele filho de pai
branco e mãe ronga, tornou-se um acérrimo defensor da raça negra, acalentando ideais
políticos que tinham em vista a independência de Moçambique. Na poesia, da qual se
servia como ferramenta para fazer as suas reivindicações, apercebi-me das metáforas e
das palavras-chave que me levaram a chegar às minhas conclusões.
As palavras antagónicas noite e dia são as palavras que aparecem com mais
frequência quando fala de referências temporais. Têm praticamente o mesmo número de
registos, facto que vem realçar o conflito latente da sua condição de mulato. Revela ser
uma pessoa muito triste e melancólica, porque mesmo quando se refere ao sol, não é
para falar da sua luz e do seu brilho, mas sim para falar dum sol abrasador, dum sol que
vaza calor e que bate em cheio nas cabeças das pessoas e dos telhados de zinco das
casas, ou então para falar do sol-posto. Quando pretende falar das manhãs, fala dum
clarear do dia com muita cacimba, ou duma manhã ainda escura e fria, como se
desejasse ocultar o brilho do sol. A ausência do brilho do sol é um indício da falta de
alegria no poeta.
Na análise das cores, verifiquei que o branco e o preto são as cores mais
mencionadas pelo poeta, o que me leva a interpretar que no seu inconsciente está bem

167
presente o fantasma das suas origens. O facto de mencionar muitas vezes estas cores e
de fazer uso frequente das referências temporais noite e dia, fazendo por vezes algumas
alusões a manhãs nebulosas de cacimba, cria uma certa analogia com o facto de ser
mestiço, fruto do cruzamento da raça branca com a raça negra.
O poeta José Craveirinha faz muitas alusões aos negros e a África, prova de que o
poeta está muito ligado às suas origens por parte da sua mãe, que era negra, e ao
conceito de moçambicanidade. Nos seus poemas, Craveirinha defende os negros por
serem um povo dominado pelos brancos num regime colonial, o que para ele é de uma
cruel injustiça. Vai contra os seus princípios de justiça, ver o seu irmão negro ser tratado
como uma besta, ou pior ainda, como ninguém. O poema “Ninguém” do livro
Karingana ua Karingana é um grito de revolta por esta injustiça e pode servir de
exemplo.
José Craverinha é contra as desigualdades sociais, contra o regime colonial e contra
a ideia da civilização. Pensa que o desenvolvimento das cidades com as suas “florestas”
de betão armado, as estradas de alcatrão, os laboratórios onde se fabricam bombas
atómicas e o ruído ensurdecedor dos grandes motores contribuem para degradar ainda
mais o homem. […] Escreveu inúmeros poemas contra o avanço da tecnologia e da
sociedade civilizada, em que o branco domina o negro.
O emprego de metáforas de animais nos seus poemas é bastante frequente.
Craveirinha demonstra muito bem a sua revolta e o seu estado de espírito através do uso
destas metáforas. O grande número de registos referentes às aves, mostra claramente o
seu desejo de se libertar dos afrontamentos e de todo o mal-estar causados pela
sociedade, que para ele é uma sociedade conspurcada. Esse mal-estar é muitas vezes
caracterizado pela referência a alguns insectos como a mosca e o moscardo, animais
insuportáveis que só nos causam desconforto e repugnância. A formiga representa para
Craveirinha a vida organizada e industrializada das grandes cidades, a que algumas
vezes designa de polvo, para melhor dar a ideia de um grande monstro. As tradições
orais também estão bem presentes no uso das metáforas de animais, com as figuras do
lobo e da hiena. Enquanto que os europeus criaram a figura do lobo mau para as
histórias tradicionais, nas histórias africanas aparece a figura da quizumba (hiena) com
as suas fortes mandíbulas amarelas e assustadoras. Craveirinha põe assim mais em
destaque as suas tradições orais de origem africana, pois faz mais referências às
quizumbas (hienas) do que aos lobos. Quando se refere ao lobo pretende falar do
homem mais perigoso que há, que é o homem civilizado, exprimindo assim os seus
sentimentos relativamente à civilização.
O poeta faz muitas referências a algumas partes do corpo, especialmente às mãos e
aos olhos. Este facto revela que Craveirinha é um homem atento a tudo o que o rodeia e
que luta pelos ideais a que aspira. Ao falar das várias partes do corpo põe em evidência
o facto de ser uma pessoa bastante sensual, especialmente quando dá destaque às belas
mulheres com «corpos feitos de bambus em brasa...» que «vêm de pés nus na terra
amorosa...» e que «o criss dá-lhes ancas novas, olhos mais belos que estrelas, mãos
gráceis de fadas de conto.» (José Craveirinha, Hamina e Outros Contos, Lisboa,
Caminho, 1998, p.57). Tem uma particular preferência pela mulher mulata, jovem e
sensual, pois nas suas poesias alude com alguma frequência a este tipo de mulher.
A referência que faz à cor vermelha e ao emprego de algumas metáforas de animais
felinos, como o gato-bravo e o leopardo, só vem reforçar ainda mais esta ideia. A cor
vermelha é a cor que está mais ligada não só à vontade de transgredir, mas também à
sedução, à sensualidade, ao erotismo e ao pulsar da libido. As metáforas dos felinos
põem em destaque os seus instintos sexuais mais recônditos.

168
Resumindo, o mito pessoal de José Craveirinha baseia-se num conflito latente que
tem a ver com as suas origens e, por conseguinte, com o problema da mestiçagem. Este
fantasma fez soltar outros fantasmas que criaram em Craveirinha uma revolta contra o
comportamento do europeu em relação ao africano e contra a sociedade demasiado
civilizada, tendo-o levado a viver num bairro humilde na periferia da cidade de Maputo
e a identificar-se mais com a raça negra. No entanto, também foram estes mesmos
motivos que o levaram a usar a poesia como meio de reivindicação para lutar pelos seus
ideais.

(Maria do Rosário Pires Poças, http://www.univ-ab.pt/sda/mepi/pdfs/pocas_resumo.pdf)

AS FASES POÉTICAS

1ª fase: de Neo-realismo, implicando uma tradição poética narrativizada, de que é


exemplo flagrante a primeira parte do livro Karingana ua karingana, justamente
datada de 1945-50 e intitulada «Fabulário». Os poemas têm versos curtos. Cada poema
é como que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um ambiente, um tema).
O fabulário alude, por outro lado, à tradição popular, ancestral, tribal, de contar fábulas,
aqui com personagens humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma
denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem descarnada, contida, não
propriamente contundente. Por outro lado, a composição do tema, a imagética, porque
voltadas para uma finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-se sem
grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo incipiente,
privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos.
Um exemplo é o poema que dá o título ao livro publicado em Itália:

Cântico a um deus de alcatrão

                               Ao
                               António Bronze

Máquina começou trabalhar


com sol
com chuva
com farinha e feijão
máquina começou abrir chão. 

Lua escondeu coração


saiu ouro
saiu pedra de lapidação
saiu barco cheio de máquina gente no porão

169
saiu notícia de menino morto boneco de carvão
saiu Cadillac novo de patrão. 

Máquina começou trabalhar


com farinha de pilão
nasceu milho
nasceu machamba de feijão
nasceu máquina grande
nasceu pequenino deus de alcatrão. 

Máquina começou trabalhar


máquina está trabalhar
até um dia enraivar
com farinha de pilão!...

  

2ª fase: Negritude, expressa com nitidez em Chigubo (1964) e Cantico (1966). Os


poemas têm versos de média ou mais extensa medida. Os predicadores e os
predicatários e predicatados, em geral, são negros. A revolta e a denúncia agressiva
pontificam. O «Manifesto» ou o «Grito negro» mostram como a cor e a raça negras
(isto é, o grupo étnico) comandam a visão dos predicadores, que se enaltecem e têm
orgulho nas suas raízes negras, africanas. 
3ª fase: Moçambicanidade ou identidade nacional, de que as 2ª e 4ª partes de
Karingana ua karingana, respectivamente intituladas «Karingana» e «Tingolé
(Tindzolé)», são emblemáticas, e que se caracteriza pela expansividade dos poemas
mais longos e dos muito longos, em que o humor e a ironia desempenham papel
decisivo, sendo bastante clara a interrogação sobre a identidade dos predicadores, suas
origens e herança cultural. A «Carta ao meu belo pai ex-emigrante» demonstra todas
essas possibilidades de interrogar-se e interrogar o que é ser-se moçambicano. 
4ª fase: de Libertação, de que resultaram dois livros diferentes, sendo um de
poemas da prisão, escrito ainda antes da Independência, em reclusão, mas
paradoxalmente respirando liberdade. Anote-se um exemplo de absoluta liberdade sob o
peso do cadafalso: «Foi assim que eu subversivamente / clandestinizei o governo /
ultramarino português». O outro livro, de homenagem à falecida mulher, é elegíaco
como o anterior, de textos curtos, expondo um sentimento, um ambiente, uma ideia, um
episódio, com circunspecção, concretude e lirismo, por vezes com pormenores que
iluminam o tom de cerrado desânimo.
É nos poemas de Cela 1 que explodem os adjectivos craveirínhicos na sua opulência
paradoxal: «E a consternação / deste nervo incendeia as cruas / unhas imperecíveis na
desbotada ganga / da noite ultriz voluptuosa / a pão e água». Como se o luxo adjectival
superasse a solidão celular.
Depois, mantém-se a irreverência que o leva a escrever um poema como
«Tanjarinas» (1982-84), de frontal crítica ao status quo político e administrativo, à
corrupção e à guerra.

CARACTERÍSTICAS POÉTICAS 

Ana Mafalda Leite, no seu livro sobre a obra de Craveirinha, indica elementos e
recursos típicos do poeta: estrofes de grande dimensão; dramatização; poder

170
declamatório; exclamação; interjeição; frases dialogais; estrutura enumerativa contínua;
repetição; redundância; paralelismo; anáforas múltiplas; intensidade panegírica; modos
verbais imperativos e exortativos; tom polémico e agressivo; verbos ser; ter; dizer (na
1ª pessoa do indicativo): núcleo performativo (cf. A poética de José Craveirinha, Ana Mafalda
Leite, Lisboa, Vega, 1991, pp. 30 e 33).
As características gerais da obra de Craveirinha podem resumir-se, então, do
seguinte modo: Neo-realismo; narratividade; adjectivação luxuriante; ironia;
elementos surrealizantes; Negritude; moçambicanidade.
Os temas fundamentais são: escravatura, raça, crítica à civilização ocidental,
vitalismo, sensualidade, revalorização da tradição negra, culto da Natureza, animização,
etc., com recurso aos modelos da Black Renaissance, Négritude e Neo-realismo, no
intuito de construir uma identidade poética moçambicana. 

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta,
1995, pp. 278-281)

  ANTOLOGIA POÉTICA COMENTADA

Poemas do livro Xigubo: 

Escolhendo o «Manifesto» (poema programático; posição originária; assunção


ideológica e cultural), temos o louvor do corpo negro, realçando particularidades
morfológicas; louvor da cultura tradicional, étnica; exaltação do predicador (sujeito);
marcação topográfica, geográfica, cultural, do espaço moçambicano; Negritude;
inspiração no modelo dos manifestos políticos ou culturais, por exemplo, dos
manifestos surrealistas ou do Modernismo brasileiro. (Laranjeira:1995, p.281)

MANIFESTO

Oh!
Meus belos e curtos cabelos crespos
e meus olhos negros como insurrectas
grandes luas de pasmo na noite mais bela
das mais belas noites inesquecíveis das terras do Zambeze.

Como pássaros desconfiados


incorruptos voando com estrelas nas asas meus olhos
enormes de pesadelos e fantasmas estranhos motorizados
e minhas maravilhosas mãos escuras raízes do cosmos
nostálgicas de novos ritos de iniciação
dura da velha rota das canoas das tribos
e belas como carvões de micaias
na noite das quizumbas.
E a minha boca de lábios túmidos
cheios da bela virilidade ímpia de negro
mordendo a nudez lúbrica de um pão
ao som da orgia dos insectos urbanos

171
apodrecendo na manhã nova
cantando a cega-rega inútil das cigarras obesas.

Oh! E meus belos dentes brancos de marfim espoliado


puros brilhando na minha negra reencarnada face altiva
e no ventre maternal dos campos da nossa indisfrutada colheita de milho
o cálido encantamento selvagem da minha pele tropical.

Ah! E meu
corpo flexível como o relâmpago fatal da flecha de caça
e meus ombros lisos de negro da Guiné
e meus músculos tensos e brunidos ao sol das colheitas e da carga
e na capulana austral de um céu intangível
os búzios de gente soprando os velhos sons cabalísticos de África.

Ah!
o fogo
a lua
o suor amadurecendo os milhos
a grande irmã água dos nossos rios moçambicanos
e a púrpura do nascente no gume azul dos seios das montanhas.

Ah! Mãe África no meu rosto escuro de diamante


de belas e largas narinas másculas
frementes haurindo o odor florestal
e as tatuadas bailarinas macondes
nuas
na bárbara maravilha eurítmica
das sensuais ancas puras e no bater uníssono dos mil pés descalços.

Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do breu


e no embondeiro da nossa inaudita esperança gravado
o tótem mais invencível tótem do Mundo
e minha voz estentórea de homem do Tanganhica,
do Congo, Angola, Moçambique e Senegal.

Ah! Outra vez eu chefe zulo


eu azagaia banto
eu lançador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores.
Eu tambor
Eu suruma
Eu negro suaíli
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
Eu Zichacha na confidência dos ossinhos mágicos do tintlholo
Eu insubordinada árvore de Munhuana
Eu tocador de presságios nas teclas das timbilas chopes
Eu caçador de leopardos traiçoeiros
E xiguilo no batuque.

172
E nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomáti
Eu-cidadão dos espíritos das luas
carregadas de anátemas de Moçambique

 Em «Hino à minha terra», encontramos um bom exemplo da exacerbação da


referencialidade toponímica (cerca de 60 topónimos), demarcando a territorialidade da
terra moçambicana: simbolização do país (do pré-país); louvor da cultura étnica, do
homem natural; Moçambicanidade: «áfrico País». Note-se o surgir, por duas vezes, da
palavra «País» maiusculada, na época em que Moçambique era colónia, subvertendo o
estatuto administrativo, logo, político, do território, criando, assim, um espaço
imaginário novo. (Laranjeira:1995, p.281)

HINO À MINHA TERRA 

O sangue dos nomes


é o sangue dos homens.
Suga-o tu também se és capaz
tu que não nos amas.

Amanhece
sobre as cidades do futuro.
E uma saudade cresce no nome das coisas
e digo Metengobalame e Macomia
e é Metengobalame a cálida palavra
que os negros inventaram
e não outra coisa Macomia. 

E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!


E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
afluem doces e altivos na memória filial
e na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.
Chulamáti! Manhoca! Chinhambanine!
Morrumbala, Namaponda e Namarroi
e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros
eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene e Zóbuè
e apanho as sementes do cutlho e a raíz da txumbula
e mergulho as mãos na terra fresca de Zitundo.
Oh, as belas terras do meu áfrico País
e os belos animais astutos
ágeis e fortes dos matos do meu País
e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
e as belas aves dos céus do meu país
e todos os nomes que eu amo belos na língua ronga

173
macua, suaíli, changana,
xitsua e bitonga
dos negros de Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca
Zongoene, Ribáuè e Mossuril.
– Quissimajulo! Quissimajulo! – gritamos
nossas bocas autenticadas no hausto da terra.
– Aruángua! – Responde a voz dos ventos na cúpula das micaias. 

E no luar de cabelos de marfim nas noites de Murrupula


e nas verdes campinas das terras de Sofala a nostalgia sinto
das cidades inconstruídas de Quissico
dos chindjiguiritanas no chilro tropical de Mapulanguene
das árvores de Namacurra, Muxilipo, Massinga
das inexistentes ruas largas de Pindagonga
e das casas de Chinhanguanine, Mugazine e Bala-Bala
nunca vistas nem jamais sonhadas ainda.
Oh! O côncavo seio azul-marinho da baía de Pemba
e as correntes dos rios Nhacuaze, Incomáti, Matola, Púnguè
e o potente espasmo das águas do Limpopo.
Ah! E um cacho das vinhas de espuma do Zambeze coalha ao sol
e os bagos amadurecem fartos um por um
amuletos bantos no esplendor da mais bela vindima. 

E o balir pungente do chango e da impala


o meigo olhar negro do xipene
o trote nervoso do egocero assustado
a fuga desvairada do inhacoso bravo no Funhalouro
o espírito de Mahazul nos poentes da Munhuana
o voar das sécuas na Gorongoza
o rugir do leão na Zambézia
o salto do leopardo em Manjacaze
a xidana-kata nas redes dos pescadores da Inhaca
a maresia no remanso idílico de Bilene Macia
o veneno da mamba no capim das terras do régulo Santaca
a música da timbila e do xipendana
o ácido sabor da nhantsuma doce
o sumo da mampsincha madura
o amarelo quente da mavúngua
o gosto da cuácua na boca
o feitiço misterioso de Nengué-ua-Suna. 

Meus nomes puros dos tempos


de livres troncos de chanfuta umbila e mucarala
livres estradas de água
livres pomos tumefactos de sémen
livres xingombelas de mulheres e crianças
e xigubos de homens completamente livres! 

Grito Nhanzilo, Eráti, Macequece


e o eco das micaias responde: Amaramba, Murrupula,

174
e nos nomes virgens eu renovo o seu mosto em Muanacamba
e sem medo um negro queima as cinzas e as penas de corvos de agoiro
não corvos sim manguavavas
no esconjuro milenário do nosso invencível Xicuembo! 

E o som da xipalapala exprime


os caninos amarelos das quizumbas ainda
mordendo agudas glandes intumescidas de África
antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes
da nossa maior Lua Nova.

O poema “HINO À MINHA TERRA” representa um dos textos fundadores da


literatura moçambicana. Foi escrito entre 1950 e 1964, isto é, naquele momento crucial
da existência das letras do país – na fase da sua própria constituição. O texto é
excepcional por uma celebração visceral de Moçambique e da África, como um
manifesto da singularidade e identidade do país e do continente. Ao mesmo tempo trata-
se de um marco radical no que toca à emancipação da literatura moçambicana do ponto
de vista da língua. Quer dizer, os setenta e nove versos do poema contêm perto de
oitenta palavras de origem autóctone, nomeadamente na língua ronga.[1]
Além desta especificidade lexical, o texto caracteriza-se por o que poderia intitular-
se duma “monumentalidade primitiva”, isto é, por uma oralidade que chega até a alguns
casos “limites”: hipertrofia das construções substantivas, relações pouco precisas entre
os elementos dos enunciados, significantes vagos, emprego erróneo de cultismos ou
intelectualismos de origem grego-latina. […]
Quanto às palavras de origem autóctone que aparecem no poema, a situação não é
homogénea.
São presentes, por um lado, expressões autenticamente autóctones. É o caso dos
topónimos, dos nomes próprios e das 23 denominações, em ronga, que significam
animais, plantas, instrumentos de música e vários costumes.
A grande especificidade formal destas expressões autenticamente autóctones é, claro
está, o aspecto sonoro, eventualmente rítmico (topónimos, nomes próprios). Pela sua
abundância no texto, as palavras criam numerosas aliterações (em b, m, w, g, n, nh, ch,
os sons nasais). É de notar, antes de mais, a força sugestiva da estrofe V, em que a
presença de palavras em ronga é fundamental.
Por outro lado, o texto contém expressões em português africano. Quer dizer,
palavras que possuem uma raiz autóctone, mas são criadas pelos meios de formação de
palavras do português (sufixação). Cabe observar o carácter fónico destas palavras, que
faz coabitar traços do português (-o, ou, ei) e das línguas autóctones (nomeadamnete os
sons nasais): canhoeiro (verso 15), egocero (48), inhacoso (49), Funhalouro (49). É
evidente que as expressões de origem autóctone adquirem, para um leitor não
familiarizado com o léxico e a realidade moçambicanos, uma índole por excelência
enigmática. Mais, mesmo com os apoios paratextuais, revela-se muito pouco possível
decifrar a totalidade de valores simbólicos que as expressões presentes no poema
representariam para um Moçambicano.
Um traço muito particular destas “palavras enigmáticas” é a importância que no
texto possuem as próprias denominações, as formas. Estas apresentam-se como a
essência, o fundamento do mundo africano: basta lembrar-se como no início do poema
“uma saudade cresce no nome das coisas.” E são estes nomes, palavras, precisamente,

175
que fazem surgir as coisas mesmas, o mundo africano em toda a sua amplitude e
riqueza. O autêntico mundo africano, então autónomo, livre (“meus nomes puros dos
tempos... de homens completamente livres!”- VI). As expressões locais têm, pois, um
carácter de encantamento - “esconjuro milenário” (74). […]
O poema tem, sim, uma forma nitidamente oral: versos longos, prolixidade,
repetição, enumerações, parataxe e ausência de relações entre distintos acontecimentos
ou acções. […]

(Mariana Kunešová, “Africanidade, poesia e tradução (caso do poema Hino à minha terra, de José
Craveirinha)”, Universidade Masaryk, 2003, http://www.phil.muni.cz/rom/erb/kunesova04.pdf)

[1]
O ronga pertence às línguas dos Bantos centrais, os que representam a população de Moçambique.
Convirá precisar que a situação étnico- linguística do país é muito pouco homogénea. Distinguem-se pelo
menos dez grupos étnicos importantes, mas a maioria destes dividem-se em sub-grupos, que no total
alcançam um número entre 80 e 90. Esta situação, aliás, reflectir-se-á claramente no poema de
Craveirinha, pois uma passagem é nele dedicada à enumeração das línguas mais importantes do país.
Quanto ao ronga, não é a língua da etnia mais numerosa; é utilizado apenas por um 20 por cento da
população, que habitam o Sul de Moçambique. Esta zona, em que se situa a capital, conheceu a maior
influência europeia. Deste modo, os Rongas puderam aproveitar a rede de escolas e missões
desconhecidas em outras partes em Moçambique, e até hoje em dia possuem o maior peso político.
Assim, igualmente, a língua autóctone que dominavam os literários activos no período da formação das
letras moçambicanas, era o ronga.

O discurso assertivo e reivindicativo marca «Xigubo». A africanidade, a Negritude,


a recusa da ideia de «civilização europeia» e «civilização ocidental» e os exemplos
copiosos dos factos positivos e negativos da história e da política ocidentais (e não só),
como o Ku-Klux-Klan[1], Hitler, a bomba atómica, Joana d’Arc, Gandhi ou Marx
aparecem no poema «África».

XIGUBO
 
Para Claude Coufon

Minha mãe África


meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!

Xigubo estremece terra do mato


e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência
levantam os braços para o lume da irmã lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

176
Ao tantã do tambor
o leopardo traiçoeiro fugiu.
E na noite de assombrações
brilham alucinados de vermelho
os olhos dos homens e brilha ainda
mais o fio azul do aço das catanas.
Dum-dum!
Tantã!

E negro Maiela
músculos tensos na azagaia rubra
salta o fogo da fogueira amarela
e dança as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.

E a noite desflorada
abre o sexo ao orgasmo do tambor
e a planície arde todas as luas cheias
no feitiço viril da insuperstição das catanas.

Tantã!
E os negros dançam ao ritmo da Lua Nova
rangem os dentes na volúpia do xigubo
e provam o aço ardente das catanas ferozes
na carne sangrenta da micaia grande.

E as vozes rasgam o silêncio da terra


enquanto os pés batem
enquanto os tambores batem
e enquanto a planície vibra os ecos milenários
aqui outra vez os homens desta terra
dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos juntas na margem do rio. 

                                                                                      (1958)

[1]
A KU KLUX KLAN surgiu no Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil (1861-1864). Derrotado
e destruído pelas tropas do Norte, o Sul teve que aturar a ocupação militar de 1864 a 1876. Sob Lei
Marcial, o Sul viu a humilhação de direito de voto concedido aos negros. Pioraram as coisas quando os
negros eram a base político-eleitoral dos aventureiros do Norte, os CARPETBAGGERS. Desnecessário
dizer que as "eleições" ocorridas no Sul após a Guerra foram momentos de vingança para os negros e
oportunidade de os carpetbaggers comprarem a preços baixos as propriedades dos sulistas. Era muito
difícil para os brancos do Sul terem que se submeter ao domínio de negros antes vistos como escravos e
coisas desprezíveis. A safadeza e corrupção política levaram os sulistas a reagir. Surgiu a Ku Klux Klan
para , através da violência física, intimidar os negros. Quando terminou a ocupação do Sul, os brancos,
livres das facilidades da Lei Marcial , retornaram aos postos de mando. Para colocar os negros "no devido
lugar", começaram a promulgar leis racistas e, extra-oficialmente, tinham na KKK um braço armado e
violento para reprimi-los politicamente.

ÁFRICA

177
Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos


a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.

Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos


e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo


vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de striptease e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço


rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville[1]
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin

178
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero


Perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros


do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

[1]
Cato Mannor e Sharpeville: nomes de lugares onde ocorreram repressões policiais sangrentas na África
do Sul (1960) sobre trabalhadores africanos.

Como paradigma de organização estrutural, discursiva, semântica e retórica da


poesia de Craveirinha, escolhemos «África» para uma análise pormenorizada e
exemplificativa.

179
O poema «África»  é uma longa enumeração de elementos semânticos da
colonização, repressão, dominação, dos colonizados, da África, com alguns (muito
menos) elementos de africanidade. Pode falar-se, então, de duas isotopias que
estruturam o tema do mundo colonizador e o tema do mundo colonizado.
Em termos gerais, os modos de dominação e sedução incluem a religião cristã, a
oferta de bugigangas, as canções lusitanas, o culto dos heróis metropolitanos, a
prostituição, a burocracia, a pornografia, o alcoolismo, o extermínio, a pena de morte,
os interesses (as dependências) multinacionais, a tecnologia, a indústria, o tráfico
negreiro, a sintaxe anglo-latina, etc. O desenvolvimento técnico, visto pelo crivo da
Negritude, que brandia o espelho da tradição africana contra a lente de aumento do
capitalismo, era tomado como a encarnação última dos malefícios ocidentais.
O poema integra ainda uma crítica aos próprios fundamentos da civilização
ocidental, apontando alguns dos seus costumes, métodos, objectivos e consequências
das mentalidades e práticas expansionistas.
A africanidade assenta no cultivo de valores considerados intrínsecos ao continente
e aos povos de África, sobretudo os que não foram arrasados ou modificados pela
dominação colonialista: o culto animista (com seus amuletos de garras de leopardo,
solicitando favores divinos de chuva, de fecundidade sexual, de colheita de amendoim
ou contra o ciúme); o culto da natureza e a comunhão cósmica (o apreço pelos sons do
vento nas árvores, a sabedoria meteorológica de prever secas e cheias através da leitura
do éter, o cultivo estético e sensorial das flores, o romantismo das aves); a assunção da
revolta anti-colonial (pela tomada de consciência da dominação que conduziu ao tráfico
negreiro e à exploração desenfreada dos bens materiais como o ouro e o marfim); o
orgulho de pertença a um povo e uma terra assumidos incondicionalmente como seus
(«minha Terra»; «o nosso mais belo canto xi-ronga», considerado «moçambicano
rubi»), além da apologia sensual e erótica da afectividade africana (na última estrofe),
que logo na quinta estrofe se explicitara no «casto impudor africano», numa
adjectivação paradoxal, típica do poeta. De resto, persiste ao longo do poema a
reivindicação (a marcação) de uma pertença através de possessivos: «minha Mãe
África»; «meus amuletos de garras de leopardo»; «meus campos»; «meus livros de
nuvens»; «meu povo»; «minha Terra»; «nosso mais belo canto».
Há uma constante diferenciação entre as duas civilizações, cada elemento de uma
contribuindo para a coerência temática ao longo do texto. O negro é caracterizado de
modo eufórico, com alguns pormenores físicos sobrevalorizados: lábios grossos,
cabelos ondeados, dedos selvagens.
A semântica organiza-se segundo o princípio da explanação de um tópico inscrito no
(alto do) poema, segundo o princípio da coerência textual, estreitamente relacionada
com a estrutura temática. Tópico duplo, pois compõe-se de duas frases, dois conjuntos
expressivos complementares: um, o título, que indicia o tratamento do tema que lhe é
coincidente (África); dois, a frase «coloniza minha Mãe África» indica que o predicador
se reclama do continente como filho e, por outro lado, que esse continente sofreu e/ou
sofre uma colonização. Acrescente-se que complementa esse tópico da África a
informação (no final) de que a terra do predicador é Moçambique: «E ergo no equinócio
da minha Terra / o moçambicano rubi». Portanto, entre esses dois elementos semânticos
globais (África, Moçambique) se organiza toda a semântica parcelar do poema.
A terceira e sexta estrofes são paradigmáticas do processo enumerativo e
acumulativo da sintaxe exemplificativa de Craveirinha: a enumeração de elementos
diversificados, semântica e simbolicamente, na estrofe, que contribuem para a definição
do conjunto isotópico da totalidade textual. Esta enumeração continuada, quer de
elementos da mais diversa semântica, quer de topologias, toponímias e onomásticas,

180
constituindo uma constante acumulação, arquitecta não só uma ilusão referencial, mas
também acaba por definir concretos efeitos de real que perfazem um universo de
referências, a partir do qual se intensificam componentes simbólicas e míticas que
ancoram o texto às homologias do real empiricamente conceptualizado. As
componentes simbólicas (Ku-Klux-Klan, símbolo do racismo) e míticas (Rols-Royce e
Einstein, signos da mítica superioridade civilizacional) remetem para as realidades
materiais e culturais de que se reclama a civilização ocidental, judaico-cristã, uma vez
que a exemplificam, ao nomeá-la nas suas componentes.
A sexta estrofe congrega três tipos de enumerações. Em primeiro lugar, surgem
vários elementos (cadeira eléctrica, Buchenwald, bombas V2, Varsóvia dos ghettos de
judeus, Al Capone, Ku-Klux-Klan, Sharpeville, etc.) que perfazem um conjunto
negativo (violência, repressão, morte) no interior do conjunto da civilização
colonizadora. Ainda nesse conjunto, em segundo lugar, são indicados, nomeados, em
menor número, elementos de um outro conjunto, positivo (Gandhi, Einstein, Jean-Paul
Sartre, Platão, Marx, para citar os de maior benefício para a humanidade), representando
a paz, a não violência ou a violência revolucionária e, portanto, a favor dos colonizados,
além do pensamento filosófico e científico, que, por se contraporem aos de sinal
negativo, contribuem para as contradições do sistema da civilização colonizadora. Em
terceiro lugar, há uma enumeração constituindo um conjunto da civilização colonizada,
caracterizado fundamentalmente por traços da Natureza e objectos tecnologicamente
pouco desenvolvidos, primários (voz das árvores, livros de nuvens, flores do universo,
catanas de ossos, mutovanas).
As enumerações que se sucedem exemplificativamente adentro da mesma área
semântica restrita têm tendência a tornar monótona a sintaxe dos versos, pelo que estes
se aproximam da dicção prosaica, por acoplamento de frases sem interligação
(coordenação sintáctica) que não seja a semântica. Veja-se um exemplo: «E aprendo
que os homens que inventaram / a confortável cadeira eléctrica / a técnica de
Buchenwald e as bombas V2 / acenderam fogos de artifício nas pupilas / de ex-meninos
vivos de Varsóvia / criaram Al Capone, Hollywood, Harlem / a seita Klu-Klux-Klan,
Cato Mannor e Sharpeville / e emprenharam o pássaro que fez o choco [...]». Os verbos,
os assíndetos e o tipo de começo de frases no início dos versos, associados à
enumeração onomástica, toponímica, antroponímica, cultural e histórica, contribuem
para a elaboração de um discurso narrático de forte concretude, ajudando decisivamente
na representação como ilusão mimética do real.
Essa estratégia do concreto (enumerar, exemplificar, mostrar as componentes dos
conjuntos) serve a finalidade de desocultação do real, política e ideologicamente
submerso na propaganda que o dava como português, necessitado de evangelização, de
civilização, técnica e moral humanistas. Processo estilístico a que um Césaire recorre
com muitíssima frequência no seu longo e violento Cahier. Tal descritivismo, em
Craveirinha, porque de um descritivismo emblemático sem pormenores se trata,
desempenha o papel final de mostrar que a África passara e estava a passar (no contexto
em que o poema surgia) por um processo de violentação, assimilação e repressão. 
O Neo-realismo e a Negritude atravessam «Grito negro», que retoma da
comparação da cor do negro com a cor do carvão, agora em termos da imagem do
carvão como combustível (força de trabalho) para a indústria do patrão (branco),
mostrando a dialéctica da interdependência entre o poder (do) branco e o trabalho (do)
negro, com simplicidade expressiva: vocativo; exclamação; imagens fortes; vocabulário
simples; construção frásica do quotidiano prosaico.

(Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade
Aberta, 1995, pp. 281-284)

181
 

GRITO NEGRO

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!

Poemas do livro Karingana ua Karingana:

SANGUE DA MINHA MÃE

182
2ª versão

Xipalapala está chamar


oh, sangue de minha Mãe
xigubo vai começar
xigubo vai rebentar
e xipalapala está chamar sangue de minha Mãe! 

Oh, sangue de minha Mãe


xigubo está chamar
xigubo está chamar
e eu vou entrar no xigubo sangue de minha Mãe! 

Pode vir renegado sipai João «Mulato»[1]


com sua nonga escondida nas costas
e pode vir chuva de pedra
vir vento de fogo dos chifunfununo de feitiço
e os guardas montados em odiosos cavalos de cascos ferrados
oh, sangue de minha Mãe
xipalapala está chamar alma de minha Mãe! 

E o mato dos xipene vai acordar


sangue de minha Mãe!
Oh, sangue da minha Mãe
o mato dos xipene vai finalmente acordar
e gritar no oiro terrível da grande fogueira
gritar sangue de minha Mãe! 

Xipalapala está chamar


Culucumba de minha Mãe está rezar
mato vai acordar
xigubo vai começar
oh... sangue de minha Mãe xigubo vai começar
e xipalapala vai cruzar os caminhos do rio e do mar
gritar e suar no xigubo
gritar sangue de minha Mãe! 

[1]
Famoso sipaio negro que era o terror dos habitantes dos subúrbios. «Mulato» era alcunha.

No poema "Ao meu belo pai ex-emigrante" Craveirinha assume a sua condição de
"semiclaro" e "seminegro", mas sobretudo moçambicano:

  

AO MEU BELO PAI EX-EMIGRANTE

183
Pai:
as maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo. 

E na minha rude e grata


sinceridade não esqueço
meu antigo português puro
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue. 

E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster Keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém." 

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Algezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português. 

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos

184
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de caju na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no xitututo Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Tarzan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras. 

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano! 

E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central. 

E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra


ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardito, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci. 

185
Pai:
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofismas nas covinhas da face
e eu também é que mudámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de sécuas ávidas sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das húmidas
ancas sinuosas dos rios. 

E nestes versos te escrevo, meu Pai


por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ibérico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza afro-algarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!

QUERO SER TAMBOR

Tambor está velho de gritar


Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos. 

Nem flor nascida no mato do desespero


Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. 

Nem nada! 

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra


Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. 

Eu! 

186
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. 

Ó velho Deus dos homens


eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia. 

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida


Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque! 

Oh velho Deus dos homens


deixa-me ser tambor
só tambor!

O poema escolhido, para aqui ser analisado, tem por eixo temático o desejo do eu-
lírico de ser tambor; ou seja, de assumir sua moçambicanidade. A busca por uma
identidade nacional era reivindicação recorrente nas colónias africanas, durante o século
XX. Influenciados pelas ideias pan-africanistas e da Negritude, muitos intelectuais
africanos buscavam retratar os negros no centro de suas obras. A visão de Craveirinha
sobre o colonialismo se aproximava da de Césaire e da de Fanon, ou seja, encarava o
racismo como centro da engrenagem colonial. Sob este ângulo, Craveirinha recupera
manifestações culturais populares moçambicanas em uma tentativa de denunciar as
estratégias do colonizador de cooptar os colonizados.
Em “Quero ser tambor”, há logo no início a exteriorização do anseio da voz
central do poema:

Tambor está velho de gritar


Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.  

Tendo estes versos em vista, nota-se que o eu-lírico reivindica o seu direito de ser
moçambicano, por meio da imagem do tambor. Este objecto, ao ser evocado, possibilita
duas leituras não excludentes. A primeira remete ao tambor como um instrumento
utilizado em guerras; tendo isso em vista, é possível interpretar uma convocação do
poeta para uma guerra contra a exploração colonial. Já a segunda evoca as batidas do
tambor em rituais de iniciação, nos quais os indivíduos são preparados para uma nova
etapa da vida. Assim, há a possibilidade de se inferir que os versos da primeira estrofe
expressam o desejo de superar a condição colonial, na qual valores culturais

187
moçambicanos são desvalorizados e apontam simultaneamente para a utopia de atingir
uma nova etapa, na qual haja uma valorização da condição humana do povo
moçambicano.
As duas interpretações aqui apontadas convergem para a questão da comunicação,
isto é, o tambor como instrumento de anunciação de transformação – representados seja
por tempos de guerra, seja por ritos de passagem. Nesse sentido, é possível pensar que o
poema anuncia uma mudança futura. Ao valer-se da imagem do tambor nesses versos,
Craveirinha reforça a intenção de estabelecer um diálogo entre o eu ser “corpo e alma só
tambor”, o eu-lírico mostra uma consciência do processo de desumanização que o
sistema colonial impunha e a vontade de se resgatar a humanidade roubada pelo regime.
Para explicar esta ideia, tem-se em mente a própria constituição do homem africano
que, segundo Fábio Leite (1995/1996), é formado de corpo, espiritualidade e
imortalidade. Ao se pensar em um tambor constituído de corpo e alma da mesma
essência, é possível fazer uma leitura, na qual se entendam dois dos elementos
constituintes do homem na concepção africana tradicional. Confrontando os versos
“tambor está velho de gritar” e “só tambor gritando na noite quente dos trópicos” está
presente a noção de continuidade de um grito, que já é velho, mas que quer se renovar.
Assim, nota-se o terceiro elemento que Leite aponta como formador do homem: a
imortalidade, indissociável da ideia de ancestralidade.
Após a afirmação da vontade de ser tambor e de exteriorizar um grito, que em certa
medida, não se materializa, há a descrição de elementos que o eu-lírico não ambiciona
se transformar: 

Nem flor nascida no mato do desespero


Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. 

Nem nada! 

Estes versos são constituídos por sucessivas negações, que serão sintetizadas na
estrofe seguinte, por meio de seu único verso: “Nem nada!”. O eu-lírico nega a vontade
de ser flor, rio e poesia, ou seja, recusa a aparente estabilidade do sistema colonial.
Implicitamente a esta renúncia, ele denuncia as injustiças sociais, por meio da repetição
da locução “do desespero”, reiterando que tudo o que é negado faz parte de um contexto
de angústia, aflição e sofrimento, causado pela exploração colonial.
Como já foi dito anteriormente, ser tambor significa resgatar sua condição de
homem, sobretudo sua moçambicanidade. O poema é construído com uma certa
musicalidade que lembra a do tambor, sendo ritmado nas cadências e sons que simulam
este instrumento e fazem com que a voz central do poema ressoasse em um espaço. Ser
tambor permite a manifestação do sujeito que o evoca, tornando um meio de denúncia e
de clamor pela identidade nacional. Assim, a evocação de valores nacionais, por meio
da imagem do tambor, indica uma ligação deste poema com o contexto internacional da
Negritude.
Munanga afirma que os objectivos desse movimento eram: “buscar o desafio
cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem
colonial, lutar pela emancipação de seus povos” (MUNANGA, 1988, p. 40). Esse autor
explica, ainda, que poetas, romancistas e intelectuais buscavam restituir o orgulho de ser
negro e do passado, em uma tentativa de afirmar os valores de suas culturas, que
estavam sendo sufocadas pela assimilação dos valores do colonizador.

188
À luz desta definição de Negritude, pode-se arriscar dizer que a presença deste
movimento na poesia de Craveirinha tinha a função de denunciar o sistema colonial e
suas formas de sustentação. Sob este aspecto, o racismo — retratado como uma das
facetas do abuso colonial — e a cultura popular moçambicana são tematizados como
uma estratégia de desmontar o discurso colonialista de desqualificação do colonizado.
Ao se deter nos verbos da segunda estrofe: nascer, correr, temperar e forjar, nota-se
que acções tão naturais da vida vão convergir para o verbo forjar, o que permite
interpretar que o sistema colonial inventava uma realidade que não era a moçambicana e
é daí que surge a reivindicação de ser tambor, isto é, africano.
O ritmo do tambor, sugerido por meio dos versos clamados, reforça a identidade
moçambicana e funde o batuque, representado pela repetição das palavras, com a voz do
eu-lírico, provando que a moçambicanidade está inerente ao eu-lírico, mesmo que as
condições históricas tentem escamoteá-la.
Craverinha não exalta só a condição do homem africano, mas também da natureza
local:

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala


Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. 

Na esteira da valorização de elementos moçambicanos, percebe-se nesses versos a


consagração da terra e alguns de seus elementos: lua cheia, pele — metonímia do
homem — sol e troncos duros. Há uma sugestão de uma fusão entre homem e natureza,
por meio da justaposição de imagens que nos remetem ora aos homens — o ato de
gritar, a pele —, ora à natureza — sol, lua e troncos. Essas imagens levam a um
processo de enrijecimento das pessoas, por meio do último verso da estrofe citada.
Quando se examina os versos reproduzidos acima, nota-se que o poeta restringe, por
meio do advérbio “só”, tal fusão, permitindo interpretar que tal processo não atingia a
todos e sim somente uma parcela da população. 

Eu! 

Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala


Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. 

À luz desta estrofe, nota-se que o eu-lírico destaca a sua individualidade, que é
expressada pelo pronome “eu”. Ao espacializar os versos na Mafalala, que é um bairro
periférico de Lourenço Marques, o poeta faz referência a sua vivência, visto que foi
neste espaço que ele viveu muito tempo. Quando se toma por base a expressão “silêncio
amargo da Mafalala”, pode-se inferir que a qualificação amarga faz referência directa às
condições precárias e às humilhações, em que os habitantes da Mafalala vivem. O som
do batuque do tambor mistura-se com o desespero do eu-poético que se encontra
“perdido na escuridão da noite perdida”. Há a sugestão da imagem de um ambiente
silencioso e solitário, mas no qual o som dos tambores ressoa, remetendo-se a uma
moçambicanidade latente, em meio às imposições do Império luso em África.
Na última estrofe, tem-se uma repetição das ideias aqui sugeridas: o desejo de
resgatar a moçambicanidade e de denunciar as atrocidades do regime colonial: 

189
Ó velho Deus dos homens
 eu quero ser tambor
 e nem rio
 e nem flor
 e nem zagaia por enquanto
 e nem mesmo poesia. 

Apesar da temática destes versos ser repetida ao longo do poema, notamos que aqui
no quinto verso o eu-lírico faz uma restrição temporal, pois ele expressa não querer ser
uma lança “por enquanto”. Ainda analisando este verso, nota-se que o eu-lírico tenta
postergar uma luta, mas esta já existe em um âmbito ideológico em sua poesia, que
também é negada no fragmento reproduzido acima. Podemos entender tal negação como
uma extensão da não-aceitação da realidade, que nos remetem estes versos.
A vontade de se resgatar a moçambicanidade roubada pelo sistema colonial se
mistura ao tempo e se concretiza em uma festa, na qual o som do batuque predomina: 

Só tambor ecoando como a canção da força e da vida


Só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque! 

 Esses versos apontam para uma utopia, aqui utilizada de acordo com a teoria de
Ernst Bloch; para ele, a utopia não constitui um topos idealizado ou projectado, como
era para Platão e para os filósofos do Renascimento (Thomas Morus, Campanella,
Bacon); utopia é, em primeiro lugar, um topos da actividade humana orientada para um
futuro, um topos da consciência antecipadora e a força activa dos sonhos diurnos.
Rita Chaves explica que: “Vivendo experiências de incomunicabilidade, o poeta vai
com sua poesia, incursionar pelos trilhos da pluralidade, buscando a utopia de um
projecto calcado na aceitação das diferenças, contrariando, assim, a perspectiva de que a
unidade resida na pureza. Em seus versos, a defesa do enraizamento na matriz cultural
africana, com seus ritmos, seus rituais, suas tradições, todo seu património, coexiste
com a serena aceitação do legado da cultura lusitana.

(CHAVES, “Angola e Moçambique nos anos 60: a periferia no centro do território poético” in Via
atlântica nº5, 2003, p. 218) 

Por fim, nota-se que a realização de se transformar em tambor não depende do eu-
lírico; e sim de uma força externa a ele. Isso fica evidente na última estrofe, pois o poeta
fala: 

Oh velho Deus dos homens


deixa-me ser tambor
…………………………………
Oh velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

Ao pedir permissão a Deus para ser tambor, fica claro que algo o impede de sê-lo,
havendo assim a necessidade de algo fora de sua individualidade agir para que isso se
suceda. Por meio dos versos citados, percebe-se que o eu-lírico não está livre, e sim em

190
um estado de submissão, pois ele pede permissão para se transformar em tambor,
mostrando assim a consciência do funcionamento do regime colonial.
Apesar de todos os limites do colonialismo, Craveirinha regista em seus versos os
valores culturais moçambicanos e o sonho da libertação da opressão colonial, dando à
sua voz e aos seus versos o tom forte e ressoante dos tambores africanos, mostrando
assim que a liberdade não era um sonho individual, mas de toda uma colectividade que
não podia se expressar.

Flávia Cristina Bandeca Biazetto, Revista Crioula nº 2, 11/2007,


http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/02/Artigos/ArtigosFlaviaBandecaBiazetto.pdf

SIA-VUMA 

Enquanto
instintivas andorinhas
incansáveis fulgem as asas
contra a taciturna saca azul
engomada a pulso sobre nós
com alcunha portuguesa de céu
suburbaninhos largam-se à mecha dos pneus à mão
ou pilotos analfabetizados mesmo assim guiam
à pata os friendships de caixote
                               SIA-VUMA!

E o nosso amor de homens


descerra os olhos ao nu mais feminino
de um par de pernas nacionais abertas
na insolação viril do xigubo
                               SIA-VUMA!

E noivas
cingem aos rins
a vertigem púrpura das capulanas
e reprimem nos bantos corações
uma a uma as missangas da tristeza
e talham a dente a xicatauana da paciência
que o tempo de amar não se extingue
e na espera o longo sono excessivo
do mais verdadeiro amor também compensa
alucinante visão de um novo horizonte
                               SIA-VUMA!

E carnudos
gomos de lábios escarlates de virgindade
nas nossas pálpebras
boca e músculos tlhatlhuvem a verdade

191
da coacta insónia do zampungana
                               SIA-VUMA!

E não mais o lovolo


e a estiva de manhã à noite
sem o gozo comum dos sexos
e coxas delas penetradas
a invencíveis machos de liberdade
                               SIA-VUMA!

E as maxilas
das fêmeas a tin-gomas de desejo
que nos mordam a carne no delírio
indelével dos dentes
e fembem-nos o torso e os punhos
à lei dos tintlholos irados
contra as maiúsculas das letras
e algarismos nas blusas de contratados
                               SIA-VUMA!

E o comboio dos magaízas


será transporte escolar dos meninos da linha
e os compondes celeiros do nosso milho
                               SIA-VUMA!

E um círculo de braços
negros, amarelos, castanhos e brancos
aos uivos da quizumba lançada ao mar
num amplexo a electrogéneo
apertará o imbondeiro sagrado de Moçambique
à música das timbilas
violas, transístores e xipendanas
                               SIA-VUMA

E dançaremos o mesmo tempo da marrabenta


sem a espera do calcanhar da besta
do medo a cavalo em nós
                               SIA-VUMA!

E seremos viajantes por conta própria


jornalistas, operários com filhas também dançarinas de ballet
arquitectos, poetas com poemas publicados
compositores e campeões olímpicos
                               SIA-VUMA!

E construiremos escolas
hospitais e maternidades ao preço
de serem de graça para todos
e estaleiros, fábricas, universidades

192
pontes, jardins, teatros e bibliotecas
                               SIA-VUMA!

E guiaremos as nossas charruas


editaremos os nossos livros
semearemos de arroz os nossos campos
sintonizaremos a voz dos nossos emissores
e bateremos também o crawl nas piscinas
                               SIA-VUMA!

E ergueremos estátuas aos nossos técnicos


estâncias para os nossos velhos
estádios para os nossos jovens
e represas alegóricas ao pai
à mãe e ao filho não evocados nas maldições
infinitas que devastaram a África
                               SIA-VUMA!

E distribuiremos amuletos de aritmética


e invocaremos o exorcismo dos altos-fornos
a antropologia cultural de um changana
a uma virgem maconde moçambicanamente
e a lógica diesel das geradoras na Manhiça
                               SIA-VUMA!

E armados de martelo e chaves-de-boca


montaremos água canalizada no Xipamanine todo
desviaremos o machimbombo 7 para a Polana
e o machimbombo 2 da Polana para o Alto-Maé
e controlaremos a lavra de quilovátios todos os dias
semeando amperes no Chamanculo inteiro
                               SIA-VUMA!

E inocularemos
e nós para o mundo a vacina
contra os vírus suásticos
e pendurada exibiremos ao povo dos belos bairros
a relíquia fóssil da gengiva de nojo
dos que traírem o folclore deste poema
                               SIA-VUMA!

E à propaganda deste abecedário


inoxidáveis ao medo
levantemo-nos ao acetileno das palavras
insurrectos em massa
                               SIA-VUMA!

E deixem em nós gerar-se


irresistível a prole das sementes do beijo

193
consanguíneo do Grande Dia
                               SIA-VUMA!

Que um enxame de mãos em prece


na orgia fantástica dos augúrios do nhanga
há-de voltar deste exílio
mais moçambicano connosco
                               SIA-VUMA!

Um poema antologiado:

SABOROSAS TANJARINAS D'INHAMBANE

Serão palmas induvidosas todas as palmas


que palmeiam os discursos dos chefes?
Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?
Auscultemos atentos os gritos vociferados nos comícios.
E nas repletas "bichas"? São ou não bizarros
os sigilosos susssurros?

Em suas epopeias de humildade deixam intactos os sonhadores.


Sabotagem é despromover um verdadeiro poeta em funcionário.
Não bastam nos gabinetes os incompetentes?
Ainda mais alcatifas e ares condicionados?

Aos dirigentes máximos poupemos os ardilosos organigramas.


Como são hábeis os relatórios das empresas estatizadas
prosperamente deficitárias ou por causa das secas
ou porque veio no jornal que choveu de mais
ou por causa do sol ou porque falta no tractor um parafuso
ou talvez porque um polícia de trânsito não multou Vasco da Gama
ao infringir os códigos na rota das especiarias de Calicute.

E nos nossos tímpanos os circunjacentes murmúrios?


Não é boa ideologia detectar na génese os indesmentíveis boatos?
Uma população que não fala não é um risco?
Aonde se oculta o diapasão da sua voz?

E quanto ao mutismo dos fazedores de versos?


Não sai poesia será que saem dos verões crepusculares dos bairros de caniço
augúrios cor-de-rosa?
Quem é o mais super na metereologia das infaustas notícias?
Quem escuta o sinal dos ventos antes da ventania e avisa?

194
II

Na berma das avenidas asfaltizadas olhemos perplexados


os sarcásticos prédios por nós escaqueirados. Não dói?
Nas escolas é maningue melhor partirmos as carteiras
e de rastos estudar no chão?
E nas fábricas que mãos são estas nossas proletárias mãos
que a trabalhar só desfabricam?
E o que é que se passa com engordecido responsável director
sempre a mandar-se em missão de serviço nos melhores hotéis das europas?
Ou então no espólio das noites de vigilância e de saco cheio
vale mais a carência nacional que ter um pide
vale ou não vale nosso esperto milícia Fakir?

III

Que os camionistas heróis dos camiões emboscados a tiro nas viagens


tragam as saborosas tanjarinas d'Inhambane ao custo das ciladas
mas que descarreguem primeiro nos hospitais
nas creches e nas escolas que o futuro do País
também fica mais doce na doçura das tanjarinas d'Inhambane
e o poder sobrevive na força de um povo com tabelas d'amor e não de preços.

Mas os auspiciosos maduros cajus purpurinos


já não nos dão os gostosos tincarôsse porquê?
Especular a pátria não é guiar a viatura nova contra os muros e os postes?
E ilegalidade só é ilegalidade nos outros? Hiena só é quizumba no mato?
Então juro que tanjarinas d'Inhambane é tanjarina d'Inhambane!

Eu adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos


das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!
E desde leste a oeste quem não gosta das saborosas tanjarinas d'Inhambane?
Se não gostam, então, os que abjuram os sagrados frutos da terra-mãe
que façam lá um pai e uma mãe; Que façam tios e sobrinhos;
Que façam lá irmãos e irmãs; Que façam lá amigos e amigas;
Que façam lá colegas e camaradas;
E com a incompreensão façam lá nascer a ternura
o amor e a paz se são capazes!

IV

Pois é! As orientações de alguns directores desorientam os juízos


(deles também) mas quem é que disse que não tenho pena
dos seus conjuntos safaris embrulhando-os fresquinhos
e sem problemas de suores originários deste instabilizado clima tropical?

Quem é que disse que não lamento vê-los penosamente saindo dos "Ladas"
com as suas poses e as incalejadas mãos deles sem aguentarem sequer
abrir-se a porta e assentados esperarem que o motorista irrevogavelmemtne
dê a a volta ao mundo do fatalismo e cumpra hereditariamente essa tarefa?

195
Mas quem é que disse que não tenho pena?
Mas quem foi que disse que não sinto esse drama?

Depressa você Madalena vai bichar lenha, deixa bicha de carapau.


Tu vovó sai da bicha de capulana vai bichar pão.
E Toninho com Quiristina vai os dois bichar água.
Sexta-feira antepassada mamana Júlia dormiu lá mesmo.
Bichou toda a noite no Jone Uarre mas chegou vez ... NADA!
Aontem tomar chá não tomou ... foi no serviço.
Aoje não toma? Vai tomar amanhã.
Não toma amanhã toma outro dia.
Ou quando encontra toma de noite.
E quando não encontra de noite então dorme.
Mas quando sonhar amendoim já tomou chá, já comeu.

VI

Sim. A gente faz favor quer cascar com unha do dedo grande
as tanjarinas d'Inhambane.
Olha lá! Você estás cansado da tua terra? Salta arame ... vaaaaaiiii...
Você não gostas bandeira? Leva documento ... FAMBA!!!
Antigamente 'panhava mais fome mas não ficava aqui?
Antigamente era palmatoada. Não estava? Não ia na estiva?
Antigamente sapato não corrente de ferro? Agora quer "Adidas", não é?
Antigamente sentava no xibalo. Agora senta no Scala não senta? Mas quem deu?
Antigamente escrevia nome? Aonde? Capaz? Agora manda carta no jornal
só p'ra dizer que pão não presta. Comia qual pão antigamente?
Antigamente encontrava passaporte? Agora se não 'panha passaporte
logo fica muito triste, fica muito zangado. Faz barulho.
Antigamente não era só caderneta?
Sim! Agora come carapau. Não é peixe? Batata-doce e mandioca
agora não é comida? Porquê?
Nossa barriga alembra bife com batata frita e azeitona.
Alembra bacalhau mais grelos, mais aquele azeite d'oliveira com vinho tinto de
garrafão lacrado.
Mas nós tinha isso quando queria ou quando restava? Era nossa casa? Qual casa?
Lá naquela casa a gente puxava otoclismo p'ra nosso cu pró cu dos outros?
Vá! Fala lá! A gente não ficava de cócoras numa sentina? A gente tinha balde
mais o quê?

VII

É verdade; chuva na machamba não chove. Mas a gente espera. Chuva vai vir.
É verdade a gente come couve com couve, carapau com carapau, farinha com
farinha.
Mas senta na mesa. Família toda senta.
Senta em casa no prédio. Amigo também senta. Senta ou não senta?
Ir embora não voltar mais? Não pode. Deixar aqui? Ir aonde? Capaz!

196
Mudar moçambicano ficar o quÊ? Mudar a cara ficar qual cara?
Fugir há outro que vai fugir. Moçambicano próprio não foge.
Homem quando é homem é só um coração. Não é dois.

 VIII

Agora mesmo que não tem senha de gasolina não faz mal
Não há crise. Candonga tem.
Mas quem disse aquelas saborosas tanjarinas d'Inhambane não vem mais?
É preciso? A gente vai fazer estratégia de mestre Lenine
e vamos avançar duas dialécticas cambalhotas atrás
moçambicanissimamente objectivas
concretissimamente bem moçambicanas.

IX

Agora alerta camarada Control. Vem aí camião com tanjarinas d'Inhambane.


Tira dedo do gatilho e faz uma aceno d'alegria ao estóico motorista.
Ganha metical mas desde Inhambane, desde Chai-Chai, desde Manhiça
ele está guiar mas ele só sabe que chegou quando está a chegar.
Camarada Control: Aldeia é aldeia não é vila.
Camarada Control: Vila é vila não é cidade.
Camarada Control: Cidade é cidade não é distrito.
Camarada Control: Distrito é distrito não é província.
Camarada Control: Província é província não é nação.
Camarada Control: Control é control não é Governo.
Camarada Control: Território nacional é lá no primeiro
grão d'areia em Cabo Delgado até no último milímetro da Ponto D'Ouro.
Camarada Control: Abre teu mais fraterno sorriso no meio da estrada
e deixa passar de dentro para dentro de Moçambique
nossas preciosas tanjarinas d'Inhambane.
Agora escasca uma tanjarina e prova um gomo.
É doce ou não é doce camarada Control?

Pronto!
Muito obrigado Camarada Control!
E viva as saborosas tanjarinas d'Inhambane...
VIVA!!!

Cidade do Maputo, 1982-84


(José Craveirinha, versão em Nunca Mais é Sábado. Antologia de Poesia Moçambicana, Nelson Saúte
(org.), Lisboa, D. Quixote, 2004, p. 103.
Disponível em: http://maschamba.weblog.com.pt/arquivo/2005/06/saborosas_tanja.html)

Dois poemas, produzidos em contextos histórico-ideológicos distintos,


nomeadamente “Sia Vuma” (antes da Independência do país) e “Saborosas
Tanjarinas de Inhambane” (cerca de dez anos depois dessa mesma Independência),
traduzem superiormente este pendor quimérico e visionário do poeta maior de
Moçambique. Nele são indissociáveis as interacções entre a contrafacção poética e o

197
meio a que pertence, numa clara reafirmação da especificidade da arte africana que se
articula poderosa e constitutivamente com o mundo empírico.
Temos, por conseguinte, no primeiro poema, a exuberante exposição de uma
imaginação que febrilmente arquitecta uma realidade por vir, espaço-nação idealmente
robustecido por três dos grandes mitos do imaginário moderno, como sejam, a
Liberdade:

E dançaremos o mesmo tempo da marrabenta


sem a espera do calcanhar da besta
do medo a cavalo em nós
                               SIA-VUMA!

a Igualdade: 

E construiremos escolas
hospitais e maternidades ao preço
de serem de graça para todos
e estaleiros, fábricas, universidades
pontes, jardins, teatros e bibliotecas
                               SIA-VUMA!

e a Fraternidade: 

E um círculo de braços
negros, amarelos, castanhos e brancos
aos uivos da quizumba lançada ao mar
num amplexo a electrogéneo
apertará o imbondeiro sagrado de Moçambique
à música das timbilas
violas, transístores e xipendanas
                               SIA-VUMA 

São discerníveis, neste caso, as marcas simbólicas (marrabenta), metafóricas (sem a


espora do calcanhar da besta), linguísticas (dançaremos, o mesmo tempo, Sia-Vuma) e
referenciais (hospitais, maternidades, fábricas, universidades) que traduzem uma
genuína e eufórica vibração reconstitutiva e em que a descontaminação e a correcção do
presente implica a projecção de uma realidade paradisíaca. Isto é, recusa-se uma
situação real e constrangedora e parte-se idilicamente para um mundo virtual, do qual se
desfruta larga e voluptuosamente: 

E não mais o lovolo


e a estiva de manhã à noite
sem o gozo comum dos sexos
e coxas delas penetradas
a invencíveis machos de liberdade
                               SIA-VUMA!

[…] Embora se enquadre nas chamadas “utopias realizáveis”, em que


clamorosamente vemos proclamada uma Idade de Ouro, não mais como nostálgica
evocação do passado, mas como realidade incontornável do porvir, espécie de

198
“cosmogonia do futuro”, a poesia pró-independentista de José Craveirinha,
emblematicamente representada por “Sia-Vuma”, tem em si os gérmenes de um
desencanto por vir que a própria exuberância da representação toda ela solar, emocional
e optimista parece prenunciar. Afinal, “a utopia afigura-se, portanto, salutar como um
raio de sol sobre o quotidiano cinzento ou uma gargalhada quando o tédio nos
atormenta” (Paquot, 1997, p. 9).
Será precisamente no poema “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane”, onde cerca de
sete anos depois da eufórica vertigem desencadeada pela Independência, já “sem a
espora do calcanhar da besta”, emerge o verso do desengano, o amanhecer das ilusões
traídas: 

Como são hábeis os relatórios das empresas estatizadas


prosperamente deficitárias ou por causa das secas
ou porque veio no jornal que choveu de mais
ou por causa do sol ou porque falta no tractor um parafuso
ou talvez porque um polícia de trânsito não multou Vasco da Gama
ao infringir os códigos na rota das especiarias de Calicute. 

Fragor de um adstringente desencanto entretanto amenizado pela desconcertante


magia criativa do poeta e pela pregnância evocativa da fruta (a tanjarina) que faz
explodir os múltiplos sentidos e sabores do poema, “Saborosas Tanjarinas
d’Inhambane” assume-se como a mais madrugadora expressão dos (in)cumpridos
vaticínios do poeta da Mafalala.
Da altissonante confiança no futuro inscrita em “Sia-Vuma” (será, dançaremos,
seremos, construiremos, guiaremos, semearemos, ergueremos, distribuiremos,
inocularemos, etc.), atracamos, então, em “Saborosas Tanjarinas de Inhambane”, porvir
outrora feérico que se faz aí presente de incertezas, de inquietações:

Serão palmas induvidosas todas as palmas


que palmeiam os discursos dos chefes?
Não são aleivosos certos panegíricos excessivos de vivas?
[…]
E nos nossos tímpanos os circunjacentes murmúrios?
Não é boa ideologia detectar na génese os indesmentíveis boatos?
Uma população que não fala não é um risco?
Aonde se oculta o diapasão da sua voz? 

tal é o quadro da generalizada desorientação:

Depressa você Madalena vai bichar lenha, deixa bicha de carapau.


Tu vovó sai da bicha de capulana vai bichar pão.
E Toninho com Quiristina vai os dois bichar água. 

E o poeta faz-se cronista do quotidiano de todas as privações: 

Sexta-feira antepassada mamana Júlia dormiu lá mesmo.


Bichou toda a noite no Jone Uarre mas chegou vez ... NADA!
Aontem tomar chá não tomou ... foi no serviço.
Aoje não toma? Vai tomar amanhã.
Não toma amanhã toma outro dia.

199
Ou quando encontra toma de noite.
E quando não encontra de noite então dorme.
Mas quando sonhar amendoim já tomou chá, já comeu. 

da galopante vandalização:

Na berma das avenidas asfaltizadas olhemos perplexados


os sarcásticos prédios por nós escaqueirados. Não dói?
Nas escolas é maningue melhor partirmos as carteiras
e de rastos estudar no chão?
E nas fábricas que mãos são estas nossas proletárias mãos
que a trabalhar só desfabricam?

da impunidade 

Especular a pátria não é guiar a viatura nova contra os muros e os postes?


E ilegalidade só é ilegalidade nos outros? Hiena só é quizumba no mato? 

Num poema todo ele regado de refinada, mas sarcástica ironia, em alguns momentos
oscilando para o tragicómico, particularmente quando se opõe presente e passado: 

Nossa barriga alembra bife com batata frita e azeitona.


Alembra bacalhau mais grelos, mais aquele azeite d'oliveira com vinho
tinto de garrafão lacrado.
Mas nós tinha isso quando queria ou quando restava? Era nossa casa?
Qual casa?
Lá naquela casa a gente puxava otoclismo p'ra nosso cu pró cu dos
outros?
Vá! Fala lá! A gente não ficava de cócoras numa sentina? A gente tinha
balde mais o quê? 

À firmeza cáustica que sedimenta as sensações e percepções do sujeito em relação


ao mundo que o envolve e que se desagrega notoriamente, corresponde a aguda e
narcísica consciência da condição providencial da poesia e do sentido messiânico do
poeta:

E quanto ao mutismo dos fazedores de versos?


Não sai poesia será que saem dos verões crepusculares dos bairros de
caniço augúrios cor-de-rosa?
Quem é o mais super na metereologia das infaustas notícias?
Quem escuta o sinal dos ventos antes da ventania e avisa? 

E na esteira desse dificilmente irrefragável sentido de missão que se reconhece em


Craveirinha, vemos insinuar-se nas linhas amargas em que se cose a quase totalidade do
poema, uma paradoxal, quase capciosa réstia de optimismo. Isso, precisamente na forma
reiterada e cantante como se convocam as “saborosas tanjarinas d’Inhambane”,
preciosidade utópica, metáfora, afinal, de todas as esperanças:

Que os camionistas heróis dos camiões emboscados a tiro nas viagens


tragam as saborosas tanjarinas d'Inhambane ao custo das ciladas

200
mas que descarreguem primeiro nos hospitais
nas creches e nas escolas que o futuro do País
também fica mais doce na doçura das tanjarinas d'Inhambane 

Da evocação realística e suculenta da “tanjarina”:

 Eu adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos


das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!
E desde leste a oeste quem não gosta das saborosas tanjarinas
d'Inhambane?

o poeta prolepticamente parte para o apelo de valores como o do nacionalismo,


patriotismo: “Se não gostam, então, os que abjuram os sagrados frutos da terra-mãe /
que façam lá um pai e uma mãe” e heroísmo: “Agora alerta camarada Control. Vem aí
camião com tanjarinas d’Inhambane / Tira dedo do gatilho e faz um aceno d’alegria ao
estóico motorista”.
E é assim que o patriótico citrino avoluma o caudal do visionarismo poético de José
Craveirinha, numa alquímica combinação em que poema, sujeito e objecto (a
“tanjarina”, obviamente) se tornam símbolo do mesmo destino: o futuro: 

Camarada Control: Abre teu mais fraterno sorriso no meio da estrada


e deixa passar de dentro para dentro de Moçambique
nossas preciosas tanjarinas d'Inhambane.
Agora escasca uma tanjarina e prova um gomo.
É doce ou não é doce camarada Control? 

Em suma, apesar de que tanto “Sia-Vuma” como “Saborosas Tanjarinas


d’Inhambane” respondem a condicionalismos sócio-históricos determinados, o que
perpassa nas contrapostas aspirações do sujeito que aí emerge é uma profunda e
estruturante vocação pelo porvir, num eterno e recriador fascínio pela reinvenção do
presente e do mundo. Por consequência, devemos olhar para a construção utópica em
José Craveirinha não já como simples exercício de evasão, de consolação ou de
compensação, mas sobretudo como expressão de uma dimensão particular da condição
humana capaz de gerar lampejos de esperança perduráveis, tal como singularmente o
faz a genialidade inconformada do poeta da Mafalala. 

Francisco Noa, “José Craveirinha: para além da utopia” in Revista Via Atlântica nº5, Universidade de São
Paulo, 2002. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_07.pdf

Poemas do livro Maria:

  

ACERCA DE MARIA, LIVRO DE POEMAS DE JOSÉ CRAVEIRINHA

201
A obra Maria de José Craveirinha foi publicada pela primeira vez em 1988. A
presente edição é mais que uma segunda edição, é um segundo livro Maria, ou «outra
Maria» como o poeta gosta de dizer, mais exactamente o «Maria balada inteira»
publicado em 1998.
A primeira Maria (48 poemas) é uma obra de carácter antológico; e a actual, cerca
de 200 poemas separados em quatro «livros» apresenta-se como uma espécie de diário,
em que os poemas equivaleriam a «anotações», ao registro de reacções que o poeta
sente em relação à perda de sua mulher. Este é o resultado de um trabalho ao «longo do
tempo», desde a «partida» de Maria, em Outubro de 1979.
Não há no contexto da poesia de língua portuguesa um livro que se assemelhe a
Maria, na sua desmesura e enquanto colectânea de elegias fúnebres. Craveirinha lida
com as formas e as convenções poéticas sempre muito ao modo pessoal, de inesperadas
inflexões inventivas.

(http://00h00.giantchair.com/livre/?GCOI=27454100864950)

  

Maria celebra, num lirismo desmesurado, a memória da esposa morta, cuja ausência
se faz presença pela delicadeza dos sentimentos em saudade eternizados. […]. Com
Maria, mergulha num lirismo existencial, filosófico e metapoético que não só recorda o
quotidiano compartilhado com a amada, mas também efectua reflexões profundas
acerca da vida, da morte e da própria poesia.

(Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “Sia-vuma, Craveirinha!”, Rio de Janeiro, 2003,
http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=69)

A escrita de José Craveirinha é uma reinvenção da língua portuguesa que se investe


de uma combinatória de formas e de géneros provindos da oratura moçambicana e da
tradição literária ocidental. [...]
Não há, no entanto, no contexto da poesia de língua portuguesa, um livro que se
assemelhe a Maria, na sua desmesura elegíaca, enquanto único poema com centenas de
versos, à maneira de elegias fúnebres. Seguramente será este um dos mais belos livros
da poesia lusófona das últimas décadas, segundo palavras de Fernando Martinho, e entre
as razões que para isso concorrem não será das de menor peso a capacidade que revela
de provar que a mediação da escrita poética não constitui obstáculo à comunicação de
emoções e sentimentos, redundantes e quase morbidamente enaltecidos, interminável
potenciar da palavra lamento. Mas, mais do que isso, Maria é um livro em que
encontramos, de novo, o sábio cruzamento das formas literárias do ocidente com as
formas orais africanas.
Com efeito, os dois livros intitulados Maria, na sua sequência imparável de um
poema de dor, apresentam-se, ao mesmo tempo, como um interminável panegírico em
louvor da amada, retomando, por vezes, Craveirinha, a dicção dos primeiros longos
poemas de Xigubo, onde se capta a forma poética do izitopo, lento e longo poema
panegírico oral, característico do cancioneiro changane, ou do izibongo, panegírico
comum ao grupos zulu e nguni. O poema “Maria (Salmo Inteiro)” retoma
inequivocamente esse ritmo repetitivo refrânico, em que o elogio se repete
indefinidamente, desnudado em dor: “A minha tão bela esposa Maria [...] Minha tão

202
simples esposa Maria [...] Minha bela esposa Maria! [...] Ah Minha tão querida
companheira Maria [...].” (1998, p.9)
Aliás toda a obra de Craveirinha é intervaladamente entrecortada por este ritmo
louvatório, exaltante e majestoso, de longo sopro da ode, que se apossa em torno dos
entes ou figuras mais queridas, o Pai, a Mãe, a Terra, África, ou entre personagens-tipo,
mais ou menos anónimos, possíveis de serem consagrados, enquanto figuras-símbolo,
exemplares, dignas de serem memória e exaltação da comunidade, pela sua capacidade
de serem simultaneamente individuadas e colectivas.
Se Maria institui, na sua infinita sageza, como vulto tutelar e maternal, vera
encarnação do númen familiar, “Penélope suburbana”, como lhe chamou Rui Knopfli,
urdindo a lenta teia da sua resignação, a figuração hiperbólica de Maria é irradiante, e
passível de uma diferente leitura, pois ganha também a dimensão plural da Mátria, em
que outro amor, que é o mesmo, se conjuga na morte, que irrompe pouco depois da
independência com a guerra civil. 

Ana Mafalda Leite, “A fraternidade das palavras” in Revista Via Atlântica nº5, Universidade de São
Paulo, 2002. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_03.pdf

  

[Maria é um] compêndio esplendoroso, maduro e definitivo, que descreve seus


magros anos após a morte da esposa em Outubro de 1979.  Não há nada igual e tão
perturbador na lírica amorosa. Em versos livres, sintéticos e arrebatados, fareja-se uma
ausência em todo passo. É como se a ausência estivesse ali, diante dos olhos, carnal e
perfeita, compadecida das imperfeições de quem a chama.  É quase uma elegia, quase
um salmo,  algo de intuição romântica e de acabamento contemporâneo. Apesar de ser
um canto fúnebre, uma despedida, é um testemunho de alta vivacidade e sensualidade
sobre “um inusitado casal de namorados já com netos”.  O marido refaz o trajecto dos
dois, começando com o final: a descrição da cena em que ela vai a um exame no
hospital para nunca mais voltar. O livro é dividido em cinco capítulos. A simplicidade
da linguagem segue o despojamento e o rigor do afecto. Nele, o homem suporta a
imensidão da casa, o trabalho dobrado. Engoma a camisa, demora-se na agulha e chora
a clareza da mobília e das roupas no armário. Tudo sugere a presença da esposa,
conhecida pelos vizinhos e amada pelos filhos, que segurou a barra na época em que o
marido foi preso (“num jipe militar/ lírico algemado”).  O que incomoda Zé não é tanto
a falta de Maria,  é descobrir que – sem ela – é ele que falta.  Sem o testemunho da
mulher, é como se não vivesse. Se não há como contar para Maria, seus dias não têm
sentido. Ele vivia para narrá-la. “Mais feliz do que eu/ nossa mútua ausência/ a ti minha
esposa/já não te dói.” Um exemplo é quando o autor tenta limpar a casa: “Nos primeiros
tempos/ como era inábil/ nas minhas mãos/ a viuvez/ da vassoura.”
A delicadeza dos tropeços  e a protuberância dos detalhes ocupam o primeiro plano.
O único espaço vem a ser o tempo perdido, filtrado pelas “orfãs persianas”. Craveirinha
encontra Maria na máquina de costura e de escrever, no fogão pago em doze prestações
e nos chinelos da manhã. “Essa maneira de não estarmos juntos mais nos insepara.” O
autor explora a elegância do prosaico, das coisas miúdas antes manuseadas
instintivamente e que passam a significar a tomada de consciência. Ele não tinha
percebido, mas permanecer na residência é continuar a habitar o corpo de sua mulher.
Quem espera um livro caudaloso, adjectivado, com floreios e barragem de
metáforas, deve se abaixar na estante. Essa dor aqui é a de olhos enxutos, que só fala o
necessário. E quando fala, cala. De uma caixa de correspondência, a nostalgia vem à
tona e baralha a respiração:  
203
Um 
só momento 
situem-se na minha carne
ao ler os convites
endereçados ao casal

Sr. José Craveirinha e Excelentíssima Esposa.

Os actos falhos são reservas de memória.  O luto do moçambicano é sabedoria de


conhecer inteiramente uma pessoa a ponto de desconhecê-la. A convivência não pode
abolir a surpresa. A ironia perpassa o périplo do viúvo, dirimindo resquícios de
sentimentalismo e dando um tom de honestidade ao relato. O sujeito não se esconde na
resignação, porém actua com autocrítica ao rodar as lembranças, como ao constatar que
ela desejava uma mesa maior e que agora sozinho a mesa sobra.  Na metade da obra, o
poema Posfácio assegura a verdadeira insuficiência do narrador poético:  

Nostalgias de Maria
são já o posfácio
de um Zé Póstumo
em única
edição.

Capa: Anónimo.

Tiragem: este exemplar.

É uma poesia de carácter, se assim posso qualificar. Que não procura se glorificar
em piedade e pedir perdão. Ninguém sente culpa de nada. O que existe é uma
necessidade de ser real. De tornar a palavra visível e corpórea. Há um profundo respeito
ao outro, uma admiração que não precisa ser exagerada, que é feita aos goles e gestos,
documentada em letra pequena atrás das fotos. Um sozinhamento a dois, onde “a
solidão já é uma pessoa”. 
(Fabrício Carpinejar, “José Craveirinha: antiquíssimos astros da África” in Revista de cultura nº 34,
Fortaleza, São Paulo, Maio de 2003, disponível em:
http://www.revista.agulha.nom.br/ag34craveirinha.htm)

  

Sobre todas as coisas Maria é a que sabe decifrar aforismos, enigmas. 

“Enquanto os cães ladram


as caravanas passam”
diz um antigo
aforismo árabe. 

204
E quando nos mordem os cães
e os rafeiros nos rosnam
ao passarem os carros? 

Um camelo azul pasta num oásis de ervilhas


e velhos sábios calam-se a perscrutar as dunas 

Se eu perguntasse à Maria
– calmamente tomando seu chá de limão –
a Maria havia de me dizer.

Maria é a que guarda a chave da sabedoria popular, da oralidade primitiva, da raiz


de linguagem revolucionária; Maria, se vista à luz da fantasia do homem em torno da
mulher e da sua natureza de dar nascimento às coisas que ele transforma, é a detentora
da identidade, por ser “mãe” da poesia oral, por sua vez “mãe” da poesia letrada. […]
Maria apresenta a continuidade entre a forma natural de expressão e a Poesia. Morta, é
como se o poeta dissesse perder-se com ela a memória das coisas, as fontes do
imaginário que ele manipula, o inconsciente em suma. […]
Aproximaria este desaparecimento de forma abrupta duas formas discursivas
antagónicas, que não deixam de ver a mulher através de um estereótipo (a que recolhe o
saber da terra, mitos, lendas, aforismos)? No poema lido, sem dúvida, O PAI IDEAL se
diz “Castrado” naquilo que o identificava e que o instrumentaria contra o colonizador.
[…]

 VILA ALGARVE VILA ALGARVE

                      (1ª versão, 1988) (2ª versão, 1998)

 
adaptado aos menos
Privilégio de alvenaria loquazes
adapta aos menos loquazes. era ali.

Ou se falava Ou se dizia sim


ou dele se boatava na cidade ou éramos boatados
a fuga. por uma fuga inexistente.

O portão da tua vigília No entanto um típico tremor


e eu ainda estamos. quando olho os clássicos azulejos
são os meus joelhos a recordar.
No entanto um típico tremor
quando olho os clássicos azulejos Ainda são vinte e quatro séculos

205
são os meus joelhos a falar. morridos
em duas dezenas de horas de pé:
Foram vinte e quatro séculos Graças à tua heróica humildade
morridos não tive de ser boatado
em duas dezenas de horas de pé: que o Zé Craveirinha
Graças à tua desobediência lá fora escapuliu.
não foi necessário constar
que o José Craveirinha fugiu.  Devo-te, Maria
no tremor do pânico
Devo-te, Maria no manter-me eu mesmo
epílogo do pânico sem me sentir
manter-me calado um verme.
sem me sentir um verme.
Só eu
e o portão da nossa vigília
ainda somos relembrados
na memória dos filhos.

Vila Algarve: Jogo de alternâncias em que se celebra o rigor do silêncio: através de


movimentos de retenção e de fuga, o silêncio constrói o diálogo outro entre dois sujeitos
que se identificavam como fundadores de práticas discursivas menos complementares
que hierarquizantes (o popular e o poético). No poema, há, pelo menos, duas
interpretações importantes: 1) a liberdade de expressão como uma interlocução de
contrários: silêncio X fala, dentro X fora, hiperbólico X breve ; 2) a solidariedade no
silêncio, ao invés de significar a derrota da liberdade de expressão da fala, pode ser o
exercício de construir outra estratégia discursiva. Poema, em suma, em que a lembrança
de outro, orientador destas reflexões (“Aforismo”), não esgota a novidade de que neste a
oralidade é vista à sombra de um aforismo (ajoelhar-se ou não) que revela “o carácter
relacional de toda identidade”(LACLAU, 1981), anunciando um novo horizonte para a
experiência cultural (racial e sexual).

(Jorge Fernandes da Silveira, “José Craveirinha Impoética Poesia” in Revista Via Atlântica nº5,
Universidade de São Paulo, 2002. Disponível em:
http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_08.pdf)

MARIA (SALMO INTEIRO)

Aos cinquenta anos de idade


toda a gente reconhece a Maria
mas unicamente, só eu
posso revelar a fútil narrativa
da esposa Maria e do seu marido Zé.

206
A minha tão bela esposa Maria
sempre de humilde sorriso triste e semanalmente
nosso ósculo vigiado sabendo-me ao sal do seu choro
e no seu rosto mais de 100 anos sombrios
da ternura mais amargurada do que as minha agruras.
Seu corpo modelado nas mornas areias da praia da Inhaca
agora não sei quantos dias sim e quantos dias não
a culinária votando a Maria ao ostracismo.
Maria minha mulher distraindo-se de viúva
a lavar e a passar a ferro a roupa de outros.
Maria suportando nosso filho mais novo ao colo
e o mais velho dormitando em suas costas
oh, Maria cliente ociosa nas enfermarias
reservadas às mães indígenas no Hospital Central.

E no quadrienal viuvismo do marido


Maria um século a desviver uma vida excessiva
cosendo e recosendo o coração nos urgentes vestidos
dos modernos figurinos das senhoras freguesas
saindo de mordazes “Alfa-Romeus” à nossa porta
enquanto à Maria até lhe extorquiam nossas alianças
por menos de metade como piedosa ajuda
e as freguesas pagando aos poucos e poucos por favor
com jejuns da Maria madrugando-lhe os serões.

Mas tudo vivo nos requintados capítulos do snobismo


da Maria só com um estóico par de sapatos
apenas três blusas de sair com a Maria
ora com uma saia preta
ora com outra cinzenta revezando-se.

Maria com os nossos filhos para se distrair.


Maria dona de noites inteiras para não dormir.
Maria uma sistemática viúva de tudo na Mafalala.

Minha tão bela esposa Maria de Lurdes Craveirinha


quase à morte quando nos nasceu o Stélio
uma cardioboicotagem quase fatal quando veio o Zeca
mas a Maria com olhos de meiguice intranquila
divergências da aorta a esfregar o soalho
traiçoeiras faltas de ar a rachar lenha no quintal
uma intervenção cirúrgica de emergência 
e num domingo inoportuno
mais outra a infecundá-la para não viajar de vez.

Minha tão bela esposa Maria


cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários.
Minha mais amada por mim do que as frívolas
raparigas de provocantes fémures desnudos.
O rim esquerdo a sabotar o destino da Maria disse um médico.

207
Problemas do coração e evitar a costura disse um cardiologista à Maria
E mais as nevralgias do meu problema consternando seus silêncios
no nosso lar cabisbaixo da sua ausência.

Minha tão simples esposa Maria


incansável na quotidiana viuvez por mim
nos imitigáveis quatro anos do meu ocioso
falecimento numa exclusiva urna de óptimo ferrolho
com uma clássica paisagem de ferros em quadrilátero
na hipotética janela.

Minha saudosa esposa Maria!


Tão absurda no seu egocêntrico amor a doer-lhe mais
o meu sofrimento do que o seu próprio martírio
ou no paradoxo das fotonovelas do Grande Hotel e o Crime do Padre Amaro.

Maria uma vez por semana indo orar por mim à igreja
e no meio das complicações por minha causa
Maria uma mulher dialecticamente nos problemas
os poderes celestiais estranhando sua lógica
de mãe à míngua de arroz em casa
mas com direito a rusgas
aos papéis do marido
hoje inócuos papéis, Maria,
apenas fortuitos papéis gatafunhados
nas madrugadas escuras 
da Mafalala.

Ah!
Maria sósia moçambicana da Mãe de Máximo Gorki
que nunca se desmulatizou com cremes de clarear a pele
nem pentes de ferro quente para ludibriar o cabelo crespo
e nem uma vez as unhas envernizadas
mas sim a esconder os meus poemas impublicáveis
alguns jornais na lista dos proibidos
Sóngoro Cosongo do Nicolas Guillén
o Canto General do Neruda
poemas de Nazim Hikmet
uma edição do Kama Sutra com poses ao natural
a foto do Lenine metida na Seara Vermelha do Jorge Amado
outra de Pedro Armendaliz de sombrero na figura de Zapata
Esteiros de Soeiro Pereira Gomes
as Vinhas da Ira do Steinbeck
revistas suecas com tipas e tipos em todas as poses
uma série de fotos de ex-namoradas e de mulheres casadas
um maço de panfletos passados à gestetner às duas da madrugada
os Subterrâneos da Liberdade e o Filho Nativo
a cartilha Estes Dias Tumultuosos e também
Por Quem os Sinos Dobram do Hemingway.
Além de tudo isso mas muito mais

208
os primeiros estatutos e uma certa bandeirinha
ainda fora da ONU mas na lista de compromisso
mais além dos cem por cento no plebiscito
moçambicano dos nossos corações.

Minha bela esposa Maria!


Tão bela esposa no aneurisma sem respeito pelo seu drama.
Tão bela esposa no realismo socialista do rústico fogareiro a carvão.
Tão bela esposa cliente incorrigível das farmácias.
Tão bela esposa de pé aos solavancos no machimbombo 13.
Tão bela esposa madrugando na consulta externa.
Tão bela esposa hoje... senha da Clínica Geral.
Tão bela esposa amanhã... senha da cirurgia.
Tão bela esposa depois... senha da cardiologia.
Tão bela esposa a seguir... senha do Raio X.
Tão bela esposa também na oftalmologia
e tão bela esposa voltando mais neura
da Neuropsiquiatria.

Minha tão bela esposa Maria!


Ninguém dela tão indigno como o seu único marido
neste momento a redigir sua autobiografia de ex-falecido
4 anos inquilino onde o senhorio só cobra rendas
do universo da solidão
meus defeitos e suas qualidades exortando
o insólito casal perfeito.

Esposa Maria
a cada minha veleidade
sabendo-se nunca preterida.
E com meus defeitos e suas qualidades
Compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito.

Mas na Maria um dédalo de rugas grátis


e uma sabedoria de estoicismo no sorriso entristecido
de quem aprendeu desperdício de lágrimas 
uma impropícia ideologia intrínseca para os nossos filhos
fingirem-se iludidos pelo mutismo da mãe
mas no íntimo sabendo que a alma
da mãe chorava pelo pai
e por eles também.

Ah!
Minha tão querida companheira Maria.
Sabendo minhas várias menininhas e meninonhas
da nobre casta dos N'gomane à espera
mas só tu minha viúva a companheira única noiva numa vida.
Só tu cliente assídua no meu cemitério de ilusões neo-emparedadas.
Só tu mais bela todos os dias enlutada por mim.
Só tu desajudada por todos mas feliz na visita semanal.

209
Só tu apontada a dedo mas na tua estóica ternura
a sofrer do pai dos seus filhos
que podia estar bem na vida como tantos
mas não quis saber da família
meteu-se em problemas
foi um José Marti falhado
um Bolívar de papel
e ainda por cima fez os filhos
contraírem alergia a certa libré
de acintosa cor esverdeada.

E depois?
Depois muito bem feito!
Os filhos imitaram com realismo seu papel de órfãos
uma viúva tornou-se Maria
e o parvo do marido
num jipe militar
lírico algemado
e bem preso!

Foi 4 anos enviuvado de si mesmo


de poéticas algemas atrás das costas
com direito a um jipe militar,
banal encenação de quem está preso
se ignora ainda vivo
O mais mudo sotaque do último chão.
 

JACARANDÁS DE SAUDADE
Tempo
de seus passos vindo
pelo tapete de roxas flores
dos jacarandás enfileirados na rua.

Hoje
é eterno o ontem
da silhueta de Maria
caminhando no asfalto da memória
em nebuloso pé ante pé do tempo.

...

Todo o tempo
colar de missangas ao pescoço
sempre o tempo todo
suruma minha suruma da saudade.

210
Suruma daquela saudade
das flores dos jacarandás
nos passos de Maria.

PABLO PICASSAMENTE

lembrança
dolorosa gémea de ti
que o ralo cabelo
(algodão-cinza-e-poeira)
me vai requintando por fora.

Ferida
de memória
tão Pablo Picassamente bem suturada
que poucos podem perceber
onde ela te perpetua.
Além da rigidez fatal da tela
e dos agoniados azuis
é de vinagre impressionista
meu sombrio tom de guache.

ADÁGIO 

Tinhas razão Maria.


Sorrisos peculiares de ofídeo
gente que mais bajula
mais periculosa.

EM CASA

Em casa
nenhuma hora coincide
com a hora das refeições.

Chego.
Cedo ou tarde
ou nem sequer aparecendo
211
ninguém me pergunta onde estive.
Demore ou não demore
ninguém me espera.

MESA GRANDE 

Dos nossos projectos


de uma mesa maior
mais me lembro
quando sentado no mesmo lugar
aquela mesma exígua mesa
agora é uma mesa grande.

O VELHO DOS VASOS

no remanso de água
dos vasos.

Com as sedosas pétalas


contíguas ao teu sono
perfumando à volta.

Ultimamente é o Zeca
quem paga ao velhote
que põe flores
e muda a água.

PRESSENTIMENTO

espera aí mesmo por mim.


Exilado nos meus versos
vou ter contigo.
Sem falta!

A BOCA

Jucunda boca

212
deslabiada a ferozes
júbilos de lâmina
afiada.

Alva dentadura
antónima do riso
às escâncaras desde a cilada.

Exotismo de povo flagelado


esse atroz formato
da fala.

A NOSSA CASA

Ambição
minha e da Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.

Sonho realizado.
Casa definitiva já temos.
Lote 42.
Talhão 71883.
Fachada pintada a cal.
Classica arquitectura rectangular.
Uma via asfaltada com um único sentido.
Tudo sito no derradeiro bairrismo
que e' morar no bairro de Lhanguene.

Pelo menos envelhecer já não é problema.


O resto na altura mais propícia
surgirá por si.

Parece que está por pouco.


Na lista onde eu consto
É injusto que tarde
estarmos juntos.

AFORISMO

Havia uma formiga


compartilhando comigo o isolamento

213
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada


e por descuido podiam pisa-la.

Mas aos dois intencionalmente


podiam por-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

ALDEIA QUEIMADA

Mas
nas noites
desparasitadas de estrelas
é que as hienas
actuam.

É
de cinzas
o vestígio das palhotas.

AO MEU BELO PAI EX-EMIGRANTE

Pai:
As maternas palavras de signos
vivem e revivem no meu sangue
e pacientes esperam ainda a época de colheita
enquanto soltas já são as tuas sentimentais
sementes de emigrante português
espezinhadas no passo de marcha
das patrulhas de sovacos suando
as coronhas de pesadelo.

E na minha rude e grata


sinceridade não esqueço
meu antigo português puro

214
que me geraste no ventre de uma tombasana
eu mais um novo moçambicano
semiclaro para não ser igual a um branco qualquer
e seminegro para jamais renegar
um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue.

E agora
para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar
e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha
subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático
achando que não valia a pena fazer cara alegre
e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa
Ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo branco
e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão
e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene
enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé:
quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém."

Oh, Pai:
Juro que em mim ficaram laivos
do luso-arábico Algezur da tua infância
mas amar por amor só amo
e somente posso e devo amar
esta minha bela e única nação do Mundo
onde minha mãe nasceu e me gerou
e contigo comungou a terra, meu Pai.
E onde ibéricas heranças de fados e broas
se africanizaram para a eternidade nas minhas veias
e teu sangue se moçambicanizou nos torrões
da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital
colono tão pobre como desembarcaste em África
meu belo Pai ex-português.

Pai:
O Zé de cabelos crespos e aloirados
não sei como ou antes por tua culpa
o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos
à Zamora nas balizas dos estádios descampados
avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim
mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas
embasbacado com as proezas do Circo Pagel
nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui
campeão de corridas no "xituto" Harley-Davidson
os fundilhos dos calções avermelhados nos montes

215
do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores
para salvar a rapariga Maureen OSullivan das mandíbulas
afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller
os bolsos cheios de tingolé da praia
as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã
do carro eléctrico e as mangas verdes com sal
sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti
e Sontinho para minha Mãe
todo maluco de medo das visões alucinantes
de Lon Chaney com muitas caras.

Pai:
Ainda me lembro bem do teu olhar
e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade
ou teus versos de improviso em loas à vida escuto
e também lágrimas na demência dos silêncios
em tuas pálpebras revejo nitidamente
eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos
dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura
na dimensão desmedida do meu amor por ti
meu belo algarvio bem moçambicano!

E choro-te
chorando-me mais agora que te conheço
a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois
dos carros na lenta procissão do nosso funeral
mas só Tu no caixão de funcionário aposentado
nos limites da vida
e na íris do meu olhar o teu lívido rosto
ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus
e na minha cabeça de mulatinho os últimos
afagos da tua mão trémula mas decidida sinto
naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central.

E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra


ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza
e nas abafadas noites dos nossos índicos verões
tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero
e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix
todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto
e de tanga na casa de madeira e zinco
da estrada do Zichacha onde eu nasci.

Pai:

216
Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem
mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios
e Tarzan agente disfarçado em África
e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face
e eu também Ee que musámos.
E alinhavadas palavras como se fossem versos
bandos de se´´cuas ávidos sangrando grãos de sol
no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção
para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços
agitados nas manhãs de bronzes
chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias
almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas
ancas sinuosas dos rios.

E nestes versos te escrevo, meu Pai


por enquanto escondidos teus póstumos projectos
mais belos no silêncio e mais fortes na espera
porque nascem e renascem no meu não cicatrizado
ronga-ib´´rico mas afro-puro coração.
E fica a tua prematura beleza realgarvia
quase revelada nesta carta elegia para ti
meu resgatado primeiro ex-português
número UM Craveirinha moçambicano!

217
EDUARDO WHITE

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane


(Moçambique), a 21 de Novembro de 1963. 
O poeta integrou um grupo literário que fundou, em 1984, a Revista Charrua. Junto
a outros poetas, colaborou também com a Gazeta de Letras e Artes da Revista Tempo,
publicação cuja importância, assim como Charrua, foi indiscutível para o
desenvolvimento da literatura moçambicana. Por intermédio desses periódicos, afirmou-
se um fazer poético intimista, caracterizado pela preocupação existencial e
universalizante. 
Charrua não compreendeu publicações ligadas a qualquer movimento literário. A
pluralidade de suas idéias a impedia desse comprometimento restrito: “publicávamos
desde o Pessoa até ao Aimé Césaire”. Seu vínculo mantinha-se somente com “um grupo
de jovens que queria mostrar o seu trabalho”.
Já pelo nome a Revista sugeria “uma geração de contestatários” empenhados em
confeccionar um veículo literário caracterizado pelas rupturas. Ao desfiar suas
lembranças, White reavaliou os intentos dos escritores envolvidos nessa iniciativa: “o
que pretendíamos não era bem destruir, mas [...] mexer a literatura estatal [...],
desaplaudi-la, criticá-la, mas propondo coisas nossas [...], coisas novas, coisas que nós
achávamos naquela altura [...]. Nós como escritores vivíamos num país onde a literatura
medíocre era aplaudida: todos os dias via-se no jornal a promoção à literatura do
chavão, do viva, [...] da bajulação. E então nós propusemos: vamos escangalhar isso,
trazer coisas provocar momentos em que possa vir até nós literatura boa”

(WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1204-1205 apud Na ponta da pena: Moçambique em letras e cores,
Cíntia Machado de Campos Almeida, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006
<www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>) 

Apresenta colaboração em imprensa lusófona e é autor dos seguintes livros: 

218
1984 - Amar Sobre o Índico, Associação dos Escritores Moçambicanos;
1987 - Homoíne, Associação dos Escritores Moçambicanos;
1989 – O País de Mim, Associação dos Escritores Moçambicanos (Prémio Gazeta de
Artes e Letras da Revista Tempo);
1992 - Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave, Editorial Caminho
(Prémio Nacional de Poesia Moçambicana, 1995);
1996 - Os Materiais de Amor seguido de Desafio à Tristeza, Maputo, Ndjira / Lisboa,
Ed. Caminho:
1999 - Janela para Oriente, Ed. Caminho;
2001 - Dormir Com Deus e Um Navio na Língua, Braga, Ed. Labirinto, (bilingue
português/inglês; Prémio Consagração Rui de Noronha);
2002 - As Falas do Escorpião, (novela) Maputo, Imprensa Universitária;
2004 – O Manual das Mãos, Campo das Letras
2004 - O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior, Maputo, Imprensa
Universitária;
2005 - Até Amanhã, Coração, Maputo, Vertical.
 A sua poesia está exposta no museu Val-du-Marne em Paris desde 1989. Em 2001
foi considerado em Moçambique a figura literária do ano e em 2004 recebe o Prémio
José Craveirinha, atribuído pela Associação de Escritores Moçambicanos.

OBRA POÉTICA 

Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia reflectir
sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra
e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que
pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de
ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo.

(“Eduardo White” in Infopédia. Porto: Porto Editora, 2003-2008 <URL:


http://www.infopedia.pt/$eduardo-white>) 

Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética


metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam,
paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas
das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária.

(Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante , 2005 <URL:


http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/29/Pagina125.htm> 

Empenhado em cantar o Amor, a fim de que a paz se consolidasse nos âmagos


individual e nacional, White desenvolveu uma escrita poética que almejou erotizar uma
terra acometida pelas degradantes conseqüências de sucessivas guerras. Exaltando a
vida e tudo o que dela pulsasse, o poeta exibiu um eu-lírico marcadamente otimista,
embora, muitas vezes, melancólico e indignado. […]
Os versos de Eduardo White ultrapassaram o raio de visão do senso comum. Sem
perder de vista os escombros, os cadáveres, os mutilados e a miséria, a poética do autor
se propôs apontar caminhos e motivações para alcançar uma estabilização social. Nesse
sentido, aprendemos com White que Amor e Poesia não significam instituições

219
alienadas ou alienantes, visto que a própria mensagem poética, em O país de mim, nos
tenha advertido: “ao amor não ponhas vendas, nunca, nem sequer aos poemas”
(WHITE, 1989, p. 20).
“Como explicar que um jovem escritor dê tanta importância ao tema lírico [do
amor] num país tão marcado pela violência?” – questionou Michel Laban numa
entrevista que integra o livro Moçambique: encontro com escritores. White justificou a
seleção de seu material poético, grifando o canto subjetivo como um discurso de
resistência e persistência da memória: “Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a
temática que eu usei nos dois livros11 é acima de tudo uma temática de protesto e
também de relembrança. A minha geração é uma geração de guerra: da guerra colonial
[...] e agora e sempre a guerra com a Renamo. O que eu procurei é levar ao leitor uma
relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo
possível, como sendo real, que é o amor.”

(WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1179 apud ALMEIDA, 2006


<www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>).

  

AMAR SOBRE O ÍNDICO 

Em Amar sobre o Índico, depreendemos um fazer poético obstinado em anunciar a


transformação, desnudando o Amor, a fim de apresentá-lo a Moçambique e aos
moçambicanos, tornando-o, assim, uma instância confiável tanto à reforma subjetiva
quanto à daquela sociedade. Esse livro mostrou-se motivado a enxergar para além da
tristeza instaurada em plena guerra civil, alcançando uma paisagem vitalizada, repleta
de seres humanos que acreditassem uns nos outros, bem como no princípio amoroso.
Paisagem, homem e poesia constituíram um eixo triangular percorrido pelo ânimo
positivo desse poema. Reverter o alastramento de Tânatos não compreendeu uma tarefa
restrita ao exercício literário. […]
Além de nutrir a paz e promover a desalienação, em O país de mim e Os materiais
do amor seguido de O desafio à tristeza, o Amor se revelou elucidativo e, portanto,
uma fonte de conhecimento, capaz de promover o despontar da reflexão,
proporcionando ao sujeito a abrangência de outras “verdades”.
Percebemos que White desejou operar com o Amor bifurcadamente, almejando que
esse estado de alma atuasse na reconstituição da esfera individual fragmentada pelas
guerras colonial e civil, com a mesma intensidade com que tendesse ao bem coletivo, ou
seja, à estabilização social.

(ALMEIDA, 2006 <www.letras.ufrj.br/posverna/mestrado/AlmeidaCMC.pdf>)

ENTRE MAR E CÉU


Eduardo White […] em Os Materiais do Amor (1996: 23) metaforiza o amor com
as paisagens do mar: “Minha taça secreta, meu cio e minha sedução que pangaios tens
nos lábios, com colares e especiarias, que possam levar-me inenarrável, aos mares que
emprestas a estas mãos”, e em Janela para Oriente (1999), explora de um outro modo,
não a “Indicidade”, mas o “orientalismo”, que corrobora da noção anterior, da lírica
moçambicana, convocando-lhe uma re-orientação de imaginários, circum-navegados, na

220
demanda da tão especial “especiaria” que conflui, hibridizada, na cultura moçambicana,
em especial, no litoral e no norte. […]
Digamos que as águas e as aves, as asas e as índicas monções, percorrem e habitam
o imaginário e as imagens elementais dos poemas nas obras de um grupo significativo
de escritores moçambicanos. O ar na sua arquitectura de surpreendentes vôos é
“teorizado” num importante livro, que considero fundamental para o desenvolvimento
da actual poesia moçambicana: trata-se da obra Poemas da Ciência de Voar e da
Engenharia de Ser Ave da autoria, também de Eduardo White, publicado em 1992.
Eduardo White, estreado em 1984 com Amar sobre o Índico, publicou
posteriormente, O País de Mim(1989), uma provocatória resposta ao País dos Outros
de Rui Knopfli, restabelecendo, tal como Patraquim, o fio condutor de uma tradição
poética, através da recriação de um tema, o do país/nação, assumido e interiorizado na
lírica, enquanto sujeito que se afirma pela posse erótica da terra, “nacionalizando-a”
pelos sentidos, pelo amor e pela paixão.
Este gesto de apropriação do legado literário anterior é um traço característico da
poesia moçambicana, como já referimos, que tende a estabelecer redes de referências
através de títulos, epígrafes, dedicatórias, citações de versos, criando deste modo um
diálogo, em teia ressoante, malha de ecos que se respondem ou interrogam numa
tessitura complexa. Assim, encontramos o discurso nativista articulado harmonicamente
com o cosmopolita; a poesia moçambicana revela-se como esse tronco-tótem, de que
fala o poema Manifesto de José Craveirinha, que se institui em teluricidade maior,
radicado no chão da cicatriz colonial, mas que expande, igualmente, a ramagem e
adventícias raízes líquidas a demandar aéreos e remotos horizontes. 

“Quando hoje fôr noite podes levar o lume na cintura e a boca a piar.
Estende o rosto sobre as estrelas e na cabeça uma constelação sirva de
diadema” (PCV, p. 23) 

Esta demanda de um espaço simbólico múltiplo, e culturalmente significante,


adequado à diversidade cultural e à especificidade da nação moçambicana, explica-se
neste percurso de uma itinerância elemental, em que a viagem do eu lírico, ora se
expande pelo mar e seus orientes, ora pelo ar, como é o caso do livro Poemas da
Ciência de Voar e da Engenharia de ser Ave de Eduardo White.
O livro abalança-se a vôos de predigitação afirmando, na década de 90, a liberdade
maior da poética moçambicana e, simultaneamente, desenvolve uma reflexão sobre os
elementos TerralAr, nas suas diversas simbologias, entre as quais a expansão do sonho,
da imaginação. Lemos no início do poema de Eduardo White: 

“No vento e sem milagres sobem as aves pelo ar. Nenhum fogo as
suspende. Só o sangue e movimento. Matéria carnal. A casa solar.

É bom o tempo. Deixaram a terra, o raso sabor do chão. Voam e outra


engenharia as movera.[...] Tanta amargura que sonhar nos mantém vivos.
Eu desejo os pássaros por essa razão, a droga da alegria que os eleva e os
suspende, e o que é sonhar senão isso?” (PCV, p. 13) 

As aves, consideradas a personificação do ar, têm a leveza de todas as imagens


aéreas que simbolizam, essencialmente, a desmaterialização e a libertação da alma, o
sonho e o espírito, transcendência da condição humana, viagem onírica do voo.
Enquanto mediadoras entre terra e céu, as aves e o simbolismo das suas asas, que se

221
aliam ao levantar do voo, permitem também, pela vertigem da ascensão, a experiência
do sublime: 

“Para onde vamos com tanto vagar, entre estrelas, a luz e o vento? É
tão remoto o chão, tão sem memória. (p. 13) Quero esta humilde e real
ilusão esta redonda janela intemporal onde o peso se supende, flutua . (p.
17) Uma mão relampeja na casa da escrita. Faísca. Troveja. Procuro um
claro instante para a aparição. (PCV, p. 17)

Sucede que tenho para mim a paixão dessa ciência as mecânicas


seduções dessa engenharia. Na verdade julgo voar. Ergo a cabeça, os
olhos chamejantes, toco a longuíssima garganta do espaço.[...] dá-me a
vertiginosa tontura dos cometas, a loucura brilhante das suas cabeças /
dá-me aquela secreta mão de Deus / que turbilhante e clandestina os
combustiona e acende” (PCV, p. 20). 

Estas imagens da poesia de White que incidem sobre a ascensão, voo e nuvens,
reclamam outra oficina de escrita e inscrevem, encenam, a projecção desejada de uma
“pátria aérea”, uma pátria-poética, livre. Gaston Bachelard (1978: 93) explica-nos que:
“A asa, símbolo de dinamismo, sobrepõe-se aqui ao símbolo da espiritualização;
amarrada ao pé não implica necessariamente uma ideia de sublimação, mas sim de
libertação das nossas forças criadoras mais importantes: o poeta, assim como o profeta,
tem asas quando está inspirado”. 

“Há-de viver este transe, este desejo irrevogável do meu


poeta. Há-de ter no inundo a humilde ambição das suas asas,
volatilizar distâncias. Há-de suar aqueles lácteos clarões dos
sobressaltos, escolher luas, debulhar os sóis há-de arder de febre
na sua demência e na sacrálica ilusão do seu universo / eu sei que
terá por certeza / por fim / ou por delírio / somente a fértil e
mágica natureza / de algum bom verso” (PCV, p. 21) 

Voo criador, alcance do instante da criação, propõem os versos de White ao


refazerem um percurso ascensional que, segundo Mircea Eliade (1989: 103) “no plano
ritual, do êxtase [...] é susceptível de, entre outras coisas, abolir o tempo e o espaço e de
“projectar” o homem no instante mítico de criação do mundo; por conseguinte, de o
fazer, de alguma forma, ‘nascer de novo’, tornando-o, contemporâneo do nascimento do
mundo.” Este nascimento, na formulação poética de White, é de um espaço outro,
pátria poética, casa aérea, expansão sem fim: 

“Atravesso as nuvens, as formas transparentes, a navegável


natureza da lã celeste e posso ver um pássaro que passa perto e
acenar-lhe com versos. Bom dia, como está? [...] peço licença à
poesia, quero-as voando em meus versos e também um mar e dois
ou três navios que se achem por perto / e mesmo que desmereça
toda a beleza disso / deixai que escreva pois a vontade prevalece e
queima.” (PCV, p. 12) 

Centremo-nos, agora, na imagem das nuvens, considerada um meio de transporte


para o sonho aéreo, diz ainda sobre elas Bachelard (1978: 219): “o devaneio normal

222
segue a nuvem como uma elevação substancial que culmina na mais alta sublimação,
numa dissolução no zénite do céu azul [...]”. As nuvens são consideradas, de entre as
imagens aéreas, as mais oníricas e fazem do poeta um sonhador, simultaneamente
mestre da temporalidade e da criação.
Na poesia de White, esta gestação de uma “imaginada/inventada” “pátria aérea-
poética”, que se “desterritorializa” da terra, para se alimentar da expansividade do céu,
estabelece também uma espécie de compensação, relativamente à situação vivida em
terra. Com efeito, a época deste livro é a da guerra civil, em que o país se povoava de
conflitos desagregadores. A simbolização das nuvens propõe um movimento fraterno e
pacífico, evidenciando a aspiração e projecção do sonho, numa espécie de pátria
possível entre mar e céu, lugar em que homens e culturas convivem harmoniosamente.
Lugar ainda, em que a escrita recria o ser, enquanto sujeito livre de qualquer sujeição
telúrica, e o expande em dádiva iluminada, num ilimitado território, nação poética,
pátria em voo e navegação.
Nas palavras de Francisco Noa (1998:46), nesta “relação voo / sonho / poesia /
navegação / liberdade há uma encenação de embriaguês, um desregramento dionísiaco
dos sentidos que conduz o sujeito (e o leitor) para um universo, virtual, onde é possível
pessoanamente “experimentar tudo de todas as maneiras”. E a dimensão metapoética
que se reconhece em toda esta poesia torna-se uma vasta metáfora da própria literatura
que exprime uma maturidade e uma modernidade incontornáveis.” 

“Não faz mal. / Voar é uma dádiva da poesia./ Um verso arde


na brancura aérea do papel, / Toma balanço / Não resiste, / Solta-
se-lhe / O animal alado./ Voa sobre as casas, / Sobre as ruas, /
Sobre os homens que passam, / Procura um pássaro / Para
acasalar. / Sílaba a sílaba/ O verso voa.” (PCV, p. 22) 

Ana Mafalda Leite, “Poéticas do Imaginário Elemental na Poesia Moçambicana: entre mar… e céu”
in Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 156-160.

O DISCURSO METALITERÁRIO EM JANELA PARA ORIENTE

Tenho uma janela amarela virada para Oriente. Docemente e sem assombro. Todos
os dias me sento defronte dela para a olhar. E o vento que a bate faz-me um incêndio
para escrever, desce devagar a rampa por onde a vou saltar. Minha e sem fim esta
natureza fresca dos seus vidros, a luz que por ela é uma magia tão puríssima. Tenho a
janela num quarto que amo, unido como o sangue verde do vale que dela eu vejo, dos
livros fechados em seus destinos, dos jornais aos montes e sem notícias. O ar deste
quarto está de sorrisos e de surpresas, de desgostos que irão viver, cheio de lugares que
ainda não sou. Oiço músicas dentro dele, caladas e brancas de repente, oiço cores
incessantes e um poeta que pressinto esteja a morrer. Leio as palavras que o são. Frias.
Concretas. Óbvias e desertas. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam
sem dizer. Um sibilar envenenado e arrepiante, um voar rasante e precipitante. A morte
desenha-lhe as mãos que daqui posso ver a tremerem. E, por isso, fica o quarto mais
cinzento, mais frio, severo como a pedra num deus. (pp.13-14)
[…] 

223
Levanto-me.
Vou supor-me a resistir. Lentamente até fugir. 
Descubro corridas as cortinas das janelas deste quarto virado para Oriente. Afasto-
as, e os olhos navegam pelos telhados das casas lá em baixo. São inúmeras e quadradas.
Unidas como se quisessem cuidados umas das outras. Talvez por dentro nem transpirem
assim tanta solidariedade. Mas eu penso nas presenças que as tornam vivas e humanas,
nas conversas que esconderão, nas crianças debruçadas para o beijo ou para a música, as
refeições acesas pelos fogões. Afinal, hoje é domingo e toda a gente é um horizonte de
si. Estão felizes com certeza, e se não estão tentam, por decerto terem pouco do que rir
noutros dias. O domingo é quase tétrico de nos vermos tão nitidamente. É, no fundo,
como a morte onde se prevê aquele poeta. (pp.15-16)
[…] 
Ai, meu grande e belo Médio Oriente de onde vejo África das suas janelas e oiço
rugir uma fera nas savanas de Moçambique. Ali que é para onde devo ir. 
Definitivamente regressar. 
Nada nos é belo se for demasiadamente claro. Nada interessará. 
Portanto, arrumo, aqui, as ferramentas deste trabalho, desta paixão que tenho pelas
visões que encerro, pelo motor que as leva à minuciosa observação dos espaços. E ainda
assim sinto que me pesa tanto inconhecimento, tanta denotada fragilidade. Eu nada
sabia desta remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação.
Gostaria imenso de falar-me disto, destas alegrias pacientes de que sou um exímio
fazedor. Como sucedo que olho para o que a pensar direi melhor. (pp.77-78)
 
 
Eduardo White, em Janela para Oriente, apresenta um discurso metaliterário, de
modo que, logo no início do livro, o poeta declara que o motor da sua inspiração, aquilo
que provoca “um incêndio para escrever”, é a ideia de Oriente (o vento que bate).
Depois, o sujeito poético centra a sua atenção sobre si próprio e diz ouvir-se como
poeta a morrer, isto é, a atingir um estado-limite da consciência (“oiço […] um poeta
que pressinto esteja a morrer”). White sugere, então, dois estados de consciência, já que
o sujeito escrevente é aquele que toma consciência do sujeito oculto: “Leio as palavras
que o são […]. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer”.
Assim, o sujeito poético assume-se como aquele que numa espécie de transe (veja-se a
atenção que dá ao valor estupefaciente do cigarro e do álcool ao longo do livro)
comunica e dá voz a esse eu interior.
No final do livro, o poeta reafirma-se como “exímio fazedor” de um “lírico fervor
que” guarda “pela imaginação”. Eis então especificados os elementos necessários para a
escrita literária: “ferramentas deste trabalho”, “paixão”, “visões que encerro”,
“minuciosa observação dos espaços”.
A escrita é, portanto, para White, uma tomada de consciência: “Eu nada sabia desta
remota possibilidade, deste lírico fervor que guardo pela imaginação”.

(José M. A. Carreiro, Março de 2008)

POEMAS DA CIÊNCIA DE VOAR

224
Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.
Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.
Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."

...

Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.


Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca


na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

225
Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

226
MIA COUTO

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

Nascido em Beira, Sofala, Moçambique,


no dia cinco de Julho de 1955, António
Emílio Leite Couto (Mia Couto) tem a sua
primeira formação académica em Biologia.
Fez os estudos secundários na Beira e
frequentou, de 1971 a 1974, o curso de
Medicina em Lourenço Marques
(actualmente, Maputo), onde se vivia um
ambiente racista muito vincado. Por esta
altura, o regime exercia grande pressão sobre os estudantes universitários. O conjunto
destas circunstâncias leva-o a colaborar com a FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique), partido marcado pela luta pela independência de Moçambique de
Portugal.
Após a Independência Nacional, em 1975, ingressou na actividade jornalística,
dirigindo três veículos de comunicação: Agência de Informação de Moçambique (1976
a 1979), Revista Tempo (1979 a 1981) e Jornal Noticias (1981 a 1985). Abandonou a
carreira jornalística voltando a ingressar na Universidade para, em 1989, terminar o
curso de Biologia, especializando-se na área de Ecologia. A partir daí mantém
colaboração dispersa com jornais, cadeias de Rádio e Televisão, dentro e fora de
Moçambique. Hoje realiza a sua profissão como biólogo na   área de estudos de impacto
ambiental.
Mia Couto é hoje o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no estrangeiro e
um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal (num total de mais de 400 mil
exemplares). Colabora desde a primeira hora com o grupo teatral da capital de
Moçambique “ Mutumbela Gogo ” e escreveu (ou adaptou) diversos textos que foram
representados por este grupo de teatro. Livros seus (como a Varanda do Franjipani e
contos extraídos de Cada Homem é uma raça ) foram adaptados para teatro em
Moçambique, Portugal e Brasil.  Em finais de Dezembro de 1979, no Casale Garibaldi,
de Roma, representou-se a peça “A princesa russa”, adaptação para palco do conto com
o mesmo título, incluído em “ Cada homem é uma raça”. Natália Luiza (do Teatro
Meridional) em colaboração com Mia Couto fizeram a adaptação dramatúrgica de Mar
me quer, que posteriormente editada, em 2001, pela Cena Lusófona.

OBRAS PUBLICADAS: 

Raiz de Orvalho – (poesia) Maputo: Cadernos Tempo, 1983. Publicado pela Associação
de Escritores Moçambicanos (AEMO). Livro intimista, lírico, uma espécie de
contestação contra o domínio absoluto da poesia militante, panfletária.
Vozes Anoitecidas (contos) Maputo: Assoc. dos Escritores Moçambicanos, 1986.
Cronicando – (crónicas) Maputo: Notícias, 1986. Este livro reúne crónicas de Mia
Couto publicadas na imprensa moçambicana no final da década de 1980.

227
Cada Homem é uma Raça –.(contos). Lisboa: Caminho, 1990. “Minha raça sou eu
mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça, senhor
polícia." (excerto de uma história do livro).
Terra Sonâmbula – (romance), 1992 Primeiro romance publicado por Mia Couto, tem
como pano de fundo a guerra em Moçambique, da qual traça um quadro de um
realismo forte e brutal.
Estórias Abensonhadas – (contos) Lisboa, Ed. Caminho, 1994. Livro de histórias que
retrata o renascer do país depois da assinatura do Acordo de paz.
A Varanda do Frangipani – (romance) Lisboa, Ed. Caminho, 1996. O tema que se
encontra subjacente nesta obra é do tráfico de armas, num período inicial de
recuperação da guerra.
Contos do Nascer da Terra – (contos) Lisboa, Ed. Caminho,1997
Mar me quer – (novela) 2000. Este livro foi inicialmente incluído na Colecção 98
Mares, no âmbito da Expo 98.
Vinte e Zinco – (romance) 1999. Este livro surgiu de uma iniciativa da Editorial
Caminho que visava assinalar o 25º Aniversário do 25 de Abril, estando, assim,
relacionado com este tema. Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de
cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda
está por vir.” (excerto da obra).
O Último Voo do Flamingo – (romance) 2000
Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos – (contos) 2001
O Gato e o Escuro – (contos) 2001
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra – (romance) 2002
Contos do Nascer da Terra - (contos) 2002
O país do queixa andar – (crónicas) 2003
O fio das missangas –  (contos) 2003
A Chuva Pasmada – (romance) 2004
O Outro Pé da Sereia – (romance) 2006

Bibliografia

Muitos dos livros de Mia Couto são publicados em mais de 22 países e


traduzidos em alemão, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano.

Poesia

Estreou-se no prelo com um livro de poesia, Raiz de Orvalho, publicado em


1983. Mas já antes tinha sido antologiado por outro dos grandes poetas moçambicanos,
Orlando Mendes (outro biólogo), em 1980, numa edição do Instituto Nacional do Livro
e do Disco, resultante duma palestra na Organização Nacional dos Jornalistas (actual
Sindicato), intitulada "Sobre Literatura Moçambicana".
Em 1999, a Editorial Caminho (que publica as obras de Couto em Portugal)
relançou Raiz de Orvalho e outros poemas que teve sua 3ª edição em 2001.

Contos

228
Nos meados dos anos 80, Couto estreou-se nos contos e numa nova maneira de falar
- ou "falinventar" - português, que continua a ser o seu "ex-libris". Nesta categoria de
contos publicou:
 Vozes Anoitecidas (1ª ed. da Associação dos Escritores Moçambicanos, em
1986; 1ª ed. Caminho, em 1987; 8ª ed. em 2006; Grande Prémio da Ficção
Narrativa em 1990, ex aequo)
 Cada Homem é uma Raça (1ª ed. da Caminho em 1990; 9ª ed., 2005)
 Estórias Abensonhadas (1ª ed. da Caminho, em 1994; 7ª ed. em 2003)
 Contos do Nascer da Terra (1ª ed. da Caminho, em 1997; 5ª ed. em 2002)
 Na Berma de Nenhuma Estrada (1ª ed. da Caminho em 1999; 3ª ed. em 2003)
 O Fio das Missangas (1ª ed. da Caminho em 2003; 4ª ed. em 2004)

Crónicas

Para além disso, publicou em livros algumas das suas crónicas, que continuam a ser
coluna num dos semanários publicados em Maputo, capital de Moçambique:
 Cronicando (1ª ed. em 1988; 1ª ed. da Caminho em 1991; 7ª ed. em 2003;
Prémio Nacional de Jornalismo Areosa Pena, em 1989)
 O País do Queixa Andar (2003)
 Pensatempos. Textos de Opinião (1ª e 2ª ed. da Caminho em 2005)
 E se Obama fosse Africano? e Outras Interinvenções (1ª ed. da Caminho em
2009)

Romances

E, naturalmente, não deixou de lado o género de romance, tendo publicado:


 Terra Sonâmbula (1ª ed. da Caminho em 1992; 8ª ed. em 2004; Prémio Nacional
de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995; considerado
por um juri na Feira Internacional do Zimbabwe um dos doze melhores livros
africanos do século XX)
 A Varanda do Frangipani (1ª ed. da Caminho em 1996; 7ª ed. em 2003)
 Mar Me Quer (1ª ed. Parque EXPO/NJIRA em 1998, como contribuição para o
pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO '98 em Lisboa; 1ª ed. da
Caminho em 2000; 8ª ed. em 2004)
 Vinte e Zinco (1ª ed. da Caminho em 1999; 2ª ed. em 2004)
 O Último Voo do Flamingo (1ª ed. da Caminho em 2000; 4ª ed. em 2004;
Prémio Mário António de Ficção em 2001)
 O Gato e o Escuro, com ilustrações de Danuta Wojciechowska (1ª ed. da
Caminho em 2001; 2ª ed. em 2003)
 Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra (1ª ed. da Caminho em
2002; 3ª ed. em 2004; rodado em filme pelo português José Carlos Oliveira)
 A Chuva Pasmada, com ilustrações de Danuta Wojciechowska (1ª ed. da Njira
em 2004)
 O Outro Pé da Sereia (1ª ed. da Caminho em 2006)
 O beijo da palavrinha, com ilustrações de Malangatana (1ª ed. da Língua Geral
em 2006)
 Venenos de Deus, Remédios do Diabo (2008)
 Antes de nascer o mundo (2009)

229
Prémios

 1999 - Prémio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da sua obra


 2001 - Prémio Mário António, pelo livro O último voo do flamingo
 2007 - Prémio União Latina de Literaturas Românicas
 2007 - Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, na Jornada
Nacional de Literatura

Academia Brasileira de Letras

É sócio correspondente, eleito em 1998, da Academia Brasileira de Letras, sendo


sexto ocupante da cadeira 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.

A CRIATIVIDADE TEXTUAL: MODO DE MOÇAMBICANIDADE

O fascínio que os textos de Mia Couto exercem sobre o leitor radica em quatro
componentes fundamentais, que aparecem imbricadas:
1 — A criatividade e inventividade da linguagem, típica de escritores colonizados,
terceiro-mundistas, que procuram afirmar uma diferença linguística e literária no
interior da língua do colonizador, na esteira de James Joyce (irlandês), João Guimarães
Rosa (brasileiro), Kateb Yacine (argelino) ou José Luandino Vieira (angolano).
Especificando a criatividade da linguagem, verifique-se que, a nível da sintaxe e do
léxico, assenta, tal como acontece em José Luandino Vieira, na exploração das
potencialidades estruturais do português, como da pressão que as estruturas e a fala das
línguas africanas, sobretudo do ronga, exercem sobre a norma europeia, contribuindo
para o desenvolvimento de uma norma moçambicana. A circunloquialidade das falas
populares não deixa de influir nessa língua literária, que flexibiliza a frase e remodela as
potencialidades da estrutura.
2 — O realismo no traçado de acções e caracteres, fornece um quadro rigoroso e
impressivo (vigoroso) do social e do particular.
3 — A intromissão, de chofre, do imaginário ancestral, do fantástico, que transforma
esse realismo quase social num imprevisto realismo animista (a expressão é dos
angolanos Henrique Abranches e Pepetela), propenso à aproximação ao realismo
mágico sul-americano (Gabriel García Marquez, Carlos Fuentes, etc.), este também
decorrente do cruzamento da descrição pormenorizada de ambientes, caracteres e
acções com o onírico e a imaginação populares.
4 — O humor, construído através da intriga, de situações e acontecimentos, de
personagens e seus nomes, da narração, da linguagem, da enunciação. […] Humor que
desdramatiza os episódios mais trágicos (a morte, a guerra, a repressão, etc.) e suaviza
ou, pelo contrário, aprofunda a crítica social, ideológica e política.
É esse afeiçoar de linguagens, culturas e humores que Mia Couto entende como o
projecto de moçambicanidade: «há este mosaico, não tanto de raças, mas de culturas,
das culturas que estão a marcar parte de uma coisa que e ainda só um projecto: a
moçambicanidade»

230
(entrevista a Mia Couto in Público, 17-7-1990). (Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de
Expressão Portuguesa, vol. 64, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 314-318 – adaptado)

BRINCRIAÇÕES

Num dos programas “Conversa afiada”, Maria João Avilez perguntava a Mia Couto
se a reinvenção das palavras, que lhe é característica, seria uma forma de exaltar/honrar
a miscigenação ou ainda de “arrumar” a língua. O escritor respondeu que o português,
sozinho, não consegue transmitir a realidade africana; há que usar as potencialidades da
Língua Portuguesa e trabalhá-las. «As alterações da língua portuguesa têm uma lógica
que ultrapassa o domínio linguístico e que traduzem uma outra apreensão do mundo e
da vida».

(Cármen Maciel, “Língua Portuguesa: diversidades literárias – o caso das literaturas africanas”, 2004,
http://www.socinovamigration.org/portallizer/upload_ficheiros/L%C3%ADngua%20Portuguesa,
%20diversidades%20liter%C3%A1rias.pdf)

  

Mia Couto recria a oralidade […], através de uma língua literária sustentada por
uma exuberante criatividade lexical[1] e uma sintaxe que faz a ponte entre a oralidade e a
pura invenção, em que o contexto comunicativo, estético, possibilita a partilha da
mensagem de ruptura[2]. As marcas fortes da oralidade estão igualmente presentes nas
frases proverbiais, que definem uma atmosfera, um estado de espírito ou um saber
sombrio[3].

(José de Sousa Miguel Lopes, “Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso da literatura em
moçambique” in http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/miguel_lopes.doc)

[1]
Alguns exemplos dessa criatividade lexical são apontados por Pires Laranjeira (1993): homenzarrou,
depressou-se, fantasiática, carinhenta, esteirados, rebulir, estremungado, tropousar, manifestivo,
estremexendo, nuventanias, febrilhante, deslembrara, sozinhidão, pertubabado, gesticalada, irmãodade,
exuberrante, inutensílio, tintintilar, entrequando, esmãozinhado, exatamesmo, convidançante, mancha-
prazeres, embriagordo, veementindo, atordoído, titupiante, inaposento, administraidor.

[2]
É o caso apresentado por Pires Laranjeira (1993) através de alguns exemplos: “todos partiram, um após
nenhum”, “o colar que foste dada”, “nem isto guerra nenhuma não é”, “parece está aqui enquanto nem”,
“o lugarzinho no enquanto”.

[3]
Entre essas frases proverbiais podem referir-se: “quanto tempo demora o tempo”, “a escuridão nos faz
nascer muitas cabeças”, “no fundo da latrina não pode haver guerra limpa”, “o homem é como a casa:
deve ser visto por dentro”

(Laranjeira, 1993).

231
FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR PREFIXAÇÃO

A inovação lexical produzida por Mia Couto, nas suas obras, não vem alterar as
normas e regras de funcionamento da Língua. Por outro lado, recria, faz nascer palavras
e significados que vêm provar que a Língua Portuguesa está em constante alteração e
evolução, uma vez que, ao serem criados novos vocábulos, demonstra-se que a Língua
possui uma diversidade inúmera de combinações não exploradas e que, a algumas delas,
não estamos ainda sensíveis A Língua é um sistema infinito, daí que possa apresentar
todas as oportunidades de reinvenção, recriação e combinação, facilitando o
alargamento do léxico.
Verificamos que neste processo de formação de palavras podem existir várias
formas de criação:
a) Palavras que usualmente não prefixamos: Mia Couto utiliza um prefixo como em
Refaleceu ou Desressuscitado. 
b)Prefixar uma palavra que já é prefixada: por exemplo, formamos, a partir do
substantivo comum feitiço o verbo enfeitiçar, Mia constrói o seu contrário e surge o
verbo desenfeitiçar. 
c) A elisão de um prefixo onde, habitualmente empregamos dois: descaminhar no
lugar de desencaminhar. 
d) A troca de prefixos, permanecendo a palavra com o mesmo sentido, como em
inavergonhada, em que o prefixo in- substitui o des- de desavergonhada. 
Conclui-se ainda que, com este processo, é possível evitar construções negativas
quando, na verdade, em apenas uma palavra, a negação está implícita na frase. 

(Ana Margarida Belém Nunes, "A (re)utilização da prefixação em Mia Couto", RUA-L (Revista de
Letras da Universidade de Aveiro), nº 19-20, 2002-2003, pp. 85-98. http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/)

FORMAÇÃO DE PALAVRAS POR AMÁLGAMA

Com a amálgama cria-se um maior número de combinações, jogos de palavras,


recursos estilísticos (pleonasmos e metáforas, em maior escala) e, por outro lado, cada
palavra passa a conter diversos sentidos, podendo ser entendida como uma pequena
“estória”.
Consideramos que a leitura se torna atractiva quando existe este recurso à
amálgama, fenómeno também conhecido por “cruzamento, blending ou contaminação”.
Seguindo a terminologia de Maria Helena Mira Mateus (1990: 415), a amálgama não é
considerada um processo clássico de formação de palavras, mas contribui para a
invenção de novos vocábulos e significados da Língua. Tal como a acronímia, a
abreviatura, o empréstimo ou a extensão metafórica, a amálgama resulta de alterações
sobre palavras existentes num processo de criação lexical. Nestes casos, as combinações
são aleatórias no sentido em que “não é possível predizer as condições em que surgem,
nem a forma que tomam, nem o significado que adquirem” (Mateus et al. 1990: 414-415).

232
Entende-se então que sendo a amálgama um processo de criação, o que Mia faz é,
precisamente, criar vocábulos que lhe vão permitir transmitir todos os seus sentidos e/ou
sentimentos, não ficando limitado pelo léxico existente, mas servindo-se deste para a
sua própria expansão. De facto, este é um processo de inovação lexical que demonstra
ser muito inovador, operando-se uma junção de palavras, todas elas conhecidas, mas
coordenadas de forma singular, chegando a ser uma marca característica do escritor.
Existem diferentes processos de fazer esta concatenação perfeita de vocábulos que
podem ser o resultado da combinação de palavras de diferentes classes gramaticais,
obedecendo a diversas formas de sequências: a amálgama pode resultar da sobreposição
de sílabas homófonas em fronteira de palavra ou de um truncamento num ou em ambos
os elementos. Neste caso, pode aparecer truncada uma sequência mais ou menos longa
no final da primeira palavra, ou em ambas. De um modo geral, os segmentos truncados
não são sufixos, nem prefixos, nem radicais, isto é, não são unidades morfologicamente
reconhecíveis. Muitas vezes, nas formações que são apresentadas, a amálgama resulta
de uma fusão entre duas palavras que não se dá no final, nem no início, mas no meio das
palavras (acabando por se aproximar da infixação), tornando-se assim, o novo vocábulo
uma mistura perfeita dos dois que estiveram na sua origem.
Ainda em relação à classe gramatical das amálgamas, verificámos que estas
adquirem a classe gramatical da última palavra por que são compostas. Tomando como
exemplo o caso de arrumário, em que os elementos constitutivos são o verbo arrumar e
o substantivo comum armário, reparamos que a nova palavra que foi formada assume a
categoria gramatical deste último elemento, formando-se assim um novo substantivo. O
mesmo acontece em variadíssimos exemplos: cabritroteava V (cabritoN + trotearV),
chamariscoN (chamarizN + iscoN), compaixonasseV (compaixãoN + apaixonarV),
fosfogénicosAdj (fósforoN + fotogénicoAdj).

 (adaptado de: Ana Margarida Belém Nunes, “A leitura e des(re)construção das amálgamas de Mia
Couto por alunos de PLE”, cadernos de PLE 3, 2004, Universidade de Aveiro.
http://www.ii.ua.pt/cidlc/gcl/ e “Um Estudo da Amálgama e do seu Valor Metafórico em Mia Couto”. In:
Actas del VI Congreso de Lingüistica General. Vol. 2 Tomo 1, Madrid: Arco Libros, 2007, pp. 1465-
1474, http://sweet.ua.pt/~f711/ ) 

Proposta de trabalho:

1. Faça o levantamento de palavras na obra Mar me quer de Mia Couto onde


tenha havido PREFIXAÇÃO (citar palavra + contexto) e explique o sentido
adquirido.
           (Prefixos: ante- des- entre- es- im-/in- ir- re- trans-) 

233
2. Proceda de igual modo relativamente às palavras onde tenha havido
AMÁLGAMA e organize os conjuntos obtidos pelas respectivas categorias
gramaticais: verbos, substantivos e adjectivos.

M A R    M  E    Q U E R

Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território


de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando
o mar que é sempre quem mais viaja.
Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de
tão longo parece segredo, entardece todos os dias na
companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando
a paisagem.
Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar
com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.
Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências
namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e
outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas
de Zeca, mas de suas exactas memórias.
E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos
quer, acaricia memórias e apazigua ausências.
Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por
via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os
amores de Zeca e Luarmina.
"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada
permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes
do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer)

Teatro Meridional, Maio de 2001, http://www.cenalusofona.pt/edicoes/index.html


http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=4847

A trama narrativa de Mar Me Quer, em forma de novela, tece-se em pano africano


com crenças e vivências de gentes moçambicanas que vivem no litoral de Moçambique
e usam o mar para lhe roubarem o peixe que os alimenta. E é com o mar que se
estabelecem relações de vida e de morte, é o mar que determina esse desenrolar de
(a)casos fulcrais para as personagens. Desde logo o título da narrativa, Mar Me Quer,
faz-nos desconfiar do decalque e do trocadilho em relação ao mal-me-quer da cantilena
amorosa. Decalque justificado por ser uma das manias de Luarmina (uma das
personagens principais) essa de desfolhar inúmeras flores ao fim de cada tarde na

234
procura de um amor que lhe havia sido negado, enquanto vai pronunciando as palavras
mágicas, como se descosturasse um pano nenhum. Ela e Zeca Perpétuo (a outra
personagem principal) são dois pólos antagónicos dramaticamente presentes na
construção da vida humana: o mar e a terra; o desejo de amar/ser amado e a
impossibilidade de consumar esse amor; o passado e o presente na difícil conjunção de
memórias e de sonhos; a dúvida da incompreensão ou do não reconhecimento dos
símbolos e a certeza da tradição. Os oito capítulos em que esta estória se constrói outra
coisa não são senão memórias que Zeca Perpétuo desfia em troca da ternura de
Luarmina, enquanto esta desfolha pétalas de malmequeres na busca do amor perdido.

(Fernanda cavacas, “Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar Me Quer, de
Mia Couto)” in http://www1.ci.uc.pt/litafro/files_congresso/resumos.htm)

 MAR ME QUER: A OUTRA FACE DA LUA

A obra narra a história de dois vizinhos, já avançados no tempo. Zeca Perpétuo, para
conquistar sua vizinha, Luarmina (luar-mina?), vai desfiando, a seu pedido, suas
memórias, que ao final acabam entrelaçando-se na história dela, num enovelar de
segredos entrançados que se vão sendo revelados ao mesmo tempo, durante a narrativa,
ao leitor e ao narrador, resultando num desfecho surpreendente.
A maior parte dos encontros entre as duas personagens se dá num espaço
intermediário entre um mundo interior e outro, exterior: a varanda da casa de Luarmina
representa uma ponte entre o espaço interno da casa e a realidade fora dela. É ali que a
personagem se senta a desfolhar intermináveis flores, num bem-me-quer, mar me quer
que aguarda uma qualquer resposta, a realização de desejos enraizados num passado
presente.
O título Mar me quer não é apenas uma variação poética dos versos “bem-me-quer,
mal-me-quer”, com os quais as moças costumam indagar ao destino a verdade de um
possível amor. A formulação insere na obra, já desde o início, a força movente do
desejo que reconstrói mundos. Assim como o mar quer a terra e a busca em infinitos e
entrecortados abraços, da mesma forma se coloca o desejo do homem pela mulher;
também de completude é a relação de luz e sombra ou, se quisermos, razão e intuição. A
relação entre as duas personagens centrais espelha o desejo de que se revele a face
escura da lua, o lado avesso do homem, seu interior.
Para perpetuar-se, para tornar-se ele mesmo, Zeca Perpétuo necessita ser abraçado
pela lunaridade de Luarmina, a vizinha costureira que será responsável por atar nele as
duas pontas da vida.
Em Mar me quer, pode se encontrar alguns dos temas recorrentes na obra de Mia
Couto, como o amor e a morte, perfazendo uma viagem através de fronteiras nas quais
se distinguem e se mesclam as culturas negra e branca. Tudo isso vem embalado por
murmúrios de um mar cujas ondulações conduzem a vida e o sonho dos homens.
O texto é composto de oito capítulos. Cada um deles é introduzido por um dos
“ditos” do avô Celestiano, muitos deles supostamente baseados em provérbios da nação
macua, uma das etnias mais antigas, ao norte de Moçambique. A personagem do avô,
um mais velho, guarda a ligação com a herança ancestral na qual estão plantadas as

235
raízes de um povo. Explicitados pelo narrador em primeira pessoa, os saberes dos
antigos encontram-se espalhados ao longo de toda a obra.
Ao contrário do avô, a figura do pai é a do homem assimilado, que abandona os
antepassados para entrar no “mundo dos brancos”. Essa traição não ocorre impunemente
e, em decorrência disso, acaba por sofrer uma grande perda que carregará de arrastão a
luz de seus olhos, obrigando-o a voltar-se para dentro de si em busca de antigas formas
de conhecimento. Cego, o pai passa a ser venerado pela população local como um
adivinho, atraindo a si pescadores que buscam a boa sorte nas pescarias.
A terceira geração que comparece na narrativa é a do filho Zeca Perpétuo, que vem
a ser um amálgama das duas culturas – a negra dos antigos, e a branca, estrangeira –,
simbolizando a interação, tantas vezes conflituosa, entre dois tempos diferentes; assim,
o “antigamente” e a modernidade imbricam-se no presente da narrativa. A mistura de
raças é também indiciada pela mulata Luarmina, órfã de rara beleza, que se fixara nas
praias do Índico à procura do fio que a conduziria ao seu destino. É esse chão de
mestiçagem cultural que torna possível o sonho, elemento utópico que torna-se o eixo
fundamental da narrativa: “Quando não somos nós a inventar o sonho, ele é que nos
inventa a nós.”
Moçambique é um território desenhado por muitas fronteiras que se mesclam chão a
dentro, mar a fora, dando ao país um contorno multifacetado. Assim como a
colonização portuguesa não teve forças para impor uma soberania no plano político – a
ocupação do território moçambicano atingiu apenas uma estreita faixa no litoral sul,
deixando intactos o interior e o norte do país –, também no plano cultural não conseguiu
aniquilar as culturas das nações locais, dando origem a um rico mosaico cultural do qual
pode nascer a novidade, sonho diurno a resgatar as bases de uma identidade
necessariamente híbrida.
A obra de Mia Couto, no seu conjunto, revela a tentativa de delinear o rosto de
Moçambique. Nela, o país é focalizado por personagens que, sem poderem dar conta
das mudanças dramáticas da história, reinventam o cotidiano, sobretudo a partir de uma
linguagem inovadora que tenta apontar para um devir em que se mesclam utopias e
sofrimentos, muitas vezes transfigurados em maravilha.

(Ana Claudia da Silva, “Mar me quer: a outra face da lua” in Via Atlântica nº 2 Julho 1999,
http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via02/via02_21.pdf)

MAR ME QUER OU O CORAÇÃO É UMA PRAIA

Em Mar me Quer, obra editada aquando da última Exposição Mundial, em Lisboa


1998, e recentemente também em Moçambique, configura-se como tema central a
relação do homem com o seu destino, mais precisamente, do pouco que sobre este
podemos saber, da distância irremediável entre o que reclamamos e reconhecemos como
nosso e aquilo que nos é dado viver.
Zeca Perpétuo e Luarmina, personagens à volta das quais se tece o conto, surgem-
nos como peregrinos a caminho de um outro mundo. São-nos apresentados «a meio» da
vida, a «meio» de um trajecto, de um percurso investido de um significado simbólico –
ambos já ultrapassaram o seu tempo útil de trabalho e buscam re-encontrar-se agora,
que deram pela presença um do outro. Luarmina, ancorada ao passado, ao amor
236
perdido, à vida que não viveu, aos filhos que não teve, presa à realidade fantasiada e por
isso nunca vivida porque nunca investida, é uma mulher triste, uma personagem
dormente, presa a uma relação inacabada, suspensa. Contrariamente, Zeca Perpétuo
vive para o presente, reinventando a realidade através do sonho, «ensinando o céu a
sonhar», recriando a vida através do amor. As relações que as duas personagens
estabelecem com as restantes estão, à partida, fragilizadas: a mãe de Luarmina morre
de infelicidade pela beleza física da filha, «A mãe morreu pouco depois, não devido da
viuvez, mas por causa da beleza da filha»; o pai de Zeca Perpétuo ilustrando todo um
percurso de perdição.
As personagens revelam-nos a desagregação dos valores colectivos sob a pressão do
tempo, a maternidade como valor principal na sobrevivência da sociedade, «Ela
[Luarmina] queria ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos, nascer-se
em outras vidas», o acto de sonhar como desejo de evasão e busca de uma outra
realidade que não aquela de um país, Moçambique, ainda há bem pouco tempo palco de
guerra, «Quando não somos nós a inventar o sonho, é ele que nos inventa a nós». Esta
realidade só pode ser reabilitada através do sonho, onde o narrador oferece um corpo de
personagens que não se conformam com a mesma «Me faz falta o sonho, tudo quanto
queria era sonhar»; os sonhos surgem como a maneira mais profunda de conhecer o
passado, «Neles, tais novos Argos, nós penetramos e ultrapassamos camadas e camadas
duma outra água, inominável. Neles, unicamente podemos ver e captar os tesouros
escondidos no seu fundo, como no fundo dum abismo, intangíveis, invioláveis.
Recuperáveis somente nestes momentos do sono. Aí, unicamente temos uma outra força
de visão, um outro poder, que é ignorado, recusado na vida acordada e quotidiana» [1]. É
o ter de novo o que estava unicamente perdido; é igualmente viver o futuro
inimaginável, mas que recolhe todos os sonhos e esperanças. O erotismo e a sedução
feminina latente nas obras do autor, «Me entornei na toalha da água e fechei os olhos
igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas
coxas de Luarmina», ou «Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já não desengomo
lençol?». Na repetição do pedido de contar estórias, estórias de vida, há como que «um
indício, válido para o conjunto da obra, de que a emoção do sujeito, nostalgia como
resultado de um luto, é condicionante da visão das coisas que a sua história oferece». E
é essa nostalgia, unida a um imponderável sentimento de frustação, que nos leva a
acreditar que pelos sonhos, pelas estórias sonhadas, conhecemos mais da nossa vida do
que julgávamos conhecer na vida acordada.
A esperança e a crença nos espíritos, no Além, a convocação mágica do real, o
relato de gestos rituais de aproximação ao sagrado, estão singularmente retratadas nas
personagens Henriquinha, mulher de Zeca, e de seu pai, Agualberto. Ela, caracteriza-
se por uma apetência consubstanciada na capacidade de sonhar, de olhar para o Além e
o abismo surge como uma designação concreta para a morte, a outra Vida. A sua dança
estonteante no cimo da Duna Vermelha, tanto pode exprimir a certeza da existência do
Além, libertação das forças mágicas que dormitam no interior do ser, como também
traduzir apenas a confiança e a esperança do ser humano, num mundo desajustado. A
sua reencarnação em pássaro, uma gaivota, ave marinha, transforma-a numa
continuação de algo, numa sobrevivência perante algo, que a libertará, «Empurrei-a.
Não escutei nem grito nem baque de tombo, vindos das rochas em baixo. Apenas
estridência de gaivota roçando o barranco». Nele, vivendo a espantosa revelação da
«existência das coisas em si», reconhece-se a sacralidade das mesmas, do Universo. As
oferendas deitadas ao mar, símbolo de vida, morte e regeneração, resumem todo um
tempo e um espaço que se querem sagrados. A aceitação pacífica da morte é-o porque
vista pelo lado da tradição. A demorada despedida trai todo o esforço de racionalização

237
para quem se coloca do lado do corpo, esse mesmo corpo que, chegada a sua hora,
calmamente se vai despedindo em cada símbolo africano. A morte surge-nos como a
mais directa e importante mensageira da transcendência; o encontro da personagem com
o seu ser passa pela descoberta da relação justa com a Natureza e pela fidelidade a
determinados valores da tradição. Agualberto Salvo-Erro aceita a morte como uma
«navegação», entrando no mar, retorno ao elemento original, fonte e símbolo da vida,
«Agora vou para o outro lado do mar».
«Quem procura a sua verdade, não ignorando a ambivalência de sentimentos e
impulsos por que se pauta a nossa complexa humanidade, maculada, mas distinguida
pelo anelo de uma pureza e integridade que a excedem, erigisse em símbolo
privilegiado, o elemento que, identificando-se com a origem da vida, a água, é meio de
purificação e regeneração, detendo um poder soteriológico» [2]. Agualberto entrega o
seu corpo ao mar e tem como referência o seu horizonte. A sua rota está definida por
essa linha que nunca se fecha e que, se é separação, é-o também abertura, acesso (o
Além).
Tem-se, pois, a percepção de um real «imaterial», fluído como as águas, perdido no
seu curso incessante. Por essa razão, os dois mundos comunicam entre si por meio de
sinais e projectam os seres nesse Além que só o horizonte pode prometer. A água
convida à contemplação e a imagem formada é sempre aquela do sonho: a figura de
uma mulher, Luarmina, ideal comum a Zeca Perpétuo e seu pai, que perfigura a visão
do todo inalcançável. Há como que a ressonância de um sonho, a imagem de uma
beleza feminina que tentou dar solidez ao mundo vazio do exterior. Luarmina é a
mediadora entre o homem e o universo, «l’ image même du secret, des grands secrets de
la nature»[3]. A anima, o arquétipo do feminino ou a feminilidade inconsciente do
homem está no mar «E, conduzido pelo amor, o homem percorrerá esse longo caminho
cujo fim é a própria unidade, o chegar a ser de verdade ele próprio» [4]. Zeca Perpétuo
verte-se de si mesmo, encontrando-se, «Meu pai afinal, me estava dizer o quê? Que
trazemos oceanos circulando dentro de nós? Que há viagens que temos que fazer só no
íntimo de nós?» ou, como sonha o narrador «como se o mar ensinasse, por fim, minhas
lembranças a adormecer, como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse
saindo de mim em eterna dança com o mar».
Poeta da água, Mia Couto apoia-se nela sempre que tematiza experiências de vida de
grande intensidade emocional. É-o, à maneira de Cinatti, «Orvalhado pelo mistério, por
exemplo, numa recuperação do valor simbólico de regeneração e purificação da água,
manifestação da graça divina ou anúncio de uma realidade em geral evanescente, mas
pura, por que se anseia»[5]. É Teixeira de Pascoaes que nos revela «Somos uma onda,
que é um atlântico banhando todas as praias» [6]. O Poeta moçambicano evoca o Índico
dando vida e sentido ao provérbio macua «O coração é uma praia».
O movimento da água é a metáfora de um mundo que nunca é, de um mundo que
adquire o aspecto virtual. Quem lhe dá «forma» é o Poeta, através da capacidade de
sonhar. Por detrás das palavras, há sempre uma indagação, uma procura, uma força
renovadora da água, portanto da vida.

(Maria João Coutinho, “O Mundo Ficcional de Mia Couto – Mar me Quer ou O coração é uma
praia”in http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=635)

238
PROPOSTA DE TRABALHO:

1. Elabore uma dissertação sobre o seguinte tema: as várias identidades de


Luarmina[7]

2. Disserte acerca das possibilidades narrativas/interpretativas de MAR ME


QUER decorrentes da desconstrução do nome próprio LUARMINA

3. Reconte a estória de Agualberto Salvo Erro.

INTRODUÇÃO À LITERATURA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE

 Manuel Ferreira 

     A evolução social de São Tomé e Príncipe teria sido paralela, em muitos aspectos, à
de Cabo Verde. Mas, em meados do século XIX, implantando-se o sistema de
monocultura, a burguesia negra e mestiça vai ser violentamente substituída pelos
monopólios portugueses, o processo social do Arquipélago alterado e travada a
miscigenação étnica e cultural. Mesmo assim, não podem deixar de ser considerados os
efeitos do contacto de culturas. A sua poesia, de um modo geral, exprime exactamente
isso; mas, na essência, é genuinamente africana. A primeira obra literária de que se tem
conhecimento relacionada com S. Tomé e Príncipe é o modesto livrinho de poemas
Equatoriaes (1896) do português António Almada Negreiros (1868-1939), que ali
viveu muitos anos e terminou por falecer em França. A última é a de um moderno poeta
português, crítico, e professor universitário em Cardiff, Alexandre Pinheiro Torres,
cujo título, A Terra de meu pai (1972), nos fornece uma pista: memorialismo bebido na
ilha, por artes superiores de criação literária metamorfoseada na ilha «que todos éramos
neste país solitário». Sem uma revista literária, sem uma actividade cultural própria,
sem uma imprensa significativa, apesar do seu primeiro periódico, O Equador, ter sido
fundado em 1869, com uma escolaridade mais do que carencial os reduzidos quadros
literários do Arquipélago naturalmente só em Portugal encontraram o ambiente propício
à revelação das suas potencialidades criadoras. O primeiro caso acontece logo nos fins
do século XIX com Caetano da Costa Alegre (1864-1890), (Versos, 1916) cuja obra
foi deixada inédita desde o século passado. Cabe aqui, todavia, uma referência
particular ao teatro a que poderemos chamar «popular», pelas características e
relevância que assume no arquipélago de S. Tomé e Príncipe. Trata-se, em especial, de
duas peças: O tchiloli ou A tragédia do Marquês de Mântua e de Carloto Magno e do
Auto de Floripes, mas com preferência para a primeira. A segunda oriunda da tradição
popular portuguesa; e O tchiloli supõe-se ser o auto do dramaturgo português do século
XVI, de origem madeirense, Baltasar Dias, levado, tudo leva a crer, pelos colonos
medeirenses na época da ocupação e povoamento. Reapropriados pela população de S.
Tomé (e do Príncipe) estão profundamente institucionalizados no Arquipélago,
principalmente O tchiloli mercê da actuação de vários grupos teatrais populares que,
continuadamente, se dão à sua representação, enriquecida por uma readaptação do texto
e encenação, cenografia e ilustração musical notáveis.
Parece ter sido um homem infeliz, em Lisboa, o autor de Versos, Costa Alegre:

Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,


Tu és dia, eu sou a noite espessa

239
     «Aurora» aqui é um ente humano e não um fenómeno cósmico. A ambiguidade
resolve-se na leitura completa do poema. Caetano da Costa Alegre utiliza este signo
polissémico com a intenção, ao cabo, de ele traduzir a cor branca:

És a luz, eu a sombra pavorosa,


Eu sou a tua antítese frisante.

     A poesia de Caetano da Costa Alegre, na quase totalidade, funciona espartilhada


num mecanismo antitético. Exprime a situação desencantada do homem negro numa
cidade europeia, neste caso Lisboa. Versos é, porventura, a mais acabada confissão que
se conhece, quiçá mesmo nas outras literaturas africanas de expressão europeia, do
negro alienado. Costa Alegre, não se dando conta (impossível, diríamos, no século XIX
e no tempo cultural e político da área lusófona) das contradições que o bloqueavam, faz-
se cativo da sua condição de humilhado:

A minha côr é negra,


Indica luto e pena;
És luz, que nos alegra,
A tua côr morena.
É negra a minha raça,
A tua raça é branca,
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Todo eu sou um defeito

     Como tenta Costa Alegre desbloquear-se desta situação? Porque «negra» é a sua
«raça», «todo» ele é um «defeito». Como pode ele reencontrar o seu equilíbrio
psíquico? Alienado, in-consciencializado, batido no deserto social em que se
movimenta, então cura libertar-se através de uma compensação. Revoltando-se?
Clamando contra a injustiça que o atinge? Não. Contrapondo atributos morais. «Ah!
pálida mulher, se tu és bela, [...] Ama o belo também nesta aparência!». Amiúde as
relacionações antinómicas vai buscá-las ao Cosmo:

«Só explendor por fóra,


Só trevas é no centro!
Ó Sol, és meu inverso:
Negro por fóra, eu tenho amor cá dentro»

     Com efeito, a sua poesia é a de um homem infelicitado. Amiúde recorrendo à


comparação e à antítese, as figuras mais pertinentes são as que significam ou
simbolizam as cores «negro» e «branco». Da erosão da sua alma transita para a
obsessão infeliz, lutando por restabelecer a sua dignidade no refúgio do apelo à
evidência moralizante, por norma em poemas lírico-sentimentais ou de amor. Versos
fica como o primeiro e único texto onde o problema da cor da pele actua como motivo e
de uma forma obsessivamente dramática. Consideramo-lo o caso mais evidente de
negrismo da literatura africana de expressão portuguesa. Alguns autores angolanos
coevos de Costa Alegre deram também uma contribuição para este fenómeno, mas
percorrendo um espaço menos significativo.

240
A LÍRICA

 Em capítulo anterior assinalámos que Caetano da Costa Alegre, poeta oitocentista
são-tomense, fora o primeiro, em todo o espaço africano de língua portuguesa, a dar ao
tópico da cor um tratamento poético, embora numa visão marcadamente alienatória,
constituindo-se como produtor de uma expressão de negrismo. Curiosamente é também
são-tomense o poeta que primeiro, em língua portuguesa, chamou a si a expressão da
negritude. Trata-se de Francisco José Tenreiro (1921-1966), que irá assumir uma
posição inversa à de Costa Alegre. Desalienado, liberto dos mitos da inferioridade
social, identifica-se com a dor do homem negro e repõe-no no quadro que lhe cabe da
sabedoria universal:

Mãos, mãos negras que em vós estou sentido!


Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbila que é o mesmo
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.

     A sua voz é a voz real do homem africano, uma voz que vem das origens e ressoa no
tempo: «cantando: nós não nascemos num dia sem sol!», e aí vamos com essa raça
humilhada percorrendo a «estrada da escravatura», mas entretanto iluminada por «um
rio» que «vem correndo e cantando/desde St. Louis e Mississipi.» (Obra poética de
Francisco José Tenreiro, 1967, p. 100).
     Poeta bivalente («Nasci do negro e do branco/e quem olhar para mim/é como que se
olhasse/para um tabuleiro de xadrez») na sua vocação para exprimir o mulato, que ele
era, e o negro, que ele era, fundindo-se assim no poeta africano que ele foi, guinda-se à
categoria de poeta da negritude de expressão portuguesa, e tão lucidamente que o surto
da literatura angolana e moçambicana, que se impôs a partir de cinquenta, e muito lhe
deve, o não teria ultrapassado na pertinência e na genuinidade dos temas.
     Interessante notar que a estrutura externa da poesia de F. J. Tenreiro adquire
características diferentes, consoante a substância manipulada: poemas longos de longos
versos para a negritude, poemas curtos de curtos versos enquanto poeta mestiço:

Dona Jóia dona


dona de lindo nome;
tem um piano alemão
desafinando de calor.

     Ou então:

De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillén


de coração em África com a impetuosidade viril de I too am American
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África

     Há uma distância solar, como se vê, entre a humilhação da Costa Alegre e a
glorificação dos valores culturais africanos por parte de Francisco Tenreiro que

241
obviamente corresponde à amplitude consciencializadora que vai do século XIX ao
século XX.
     O discurso de Alda do Espírito Santo descreve-se entre o relato quotidiano da ilha,
impregnado de alusões simbólicas de esperança, ou do registo de anseios de
transparência política: «uma história bela para os homens de todas as terras/ciciando em
coro, canções melodiosas/numa toada universal» 08 até ao clamor da revolta de um
povo oprimido como em «Onde estão os homens caçados neste vento de loucura»:

– Que fizeste do meu povo?...


– Que respondeis?...
– Onde está o meu povo?...
E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.

     O mesmo clamor da revolta percorre o discurso de Maria Manuela Margarido:

A noite sangra
no mato,
ferida por uma lança
de cólera.

     A cólera. A revolta. Duas constantes que, associadas ao movimento dialéctico da


vida que tudo destrói e reconstrói, trazem a esperança: «Na beira do mar, nas
águas,/estão acesas a esperança/o movimento/a revolta/do homem social, do homem
integral», e é ainda o verbo de Maria Manuela Margarido. Daí a certeza inscrita no
devir histórico:

No céu perpassa a angústia austera


da revolta
com suas garras suas ânsias suas certezas.

     Em meio da denúncia (do «cheiro da morte»), da acusação («eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto: AGORA?») perpassa a certeza. Ou a esperança. Não mera esperança
idealista. A esperança concretizada na dialéctica do real. Tomaz Medeiros:

Amanhã,
Quando as chuvas caírem,
Nos braços das árvores,
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Irei
Desafiar os mais trágicos destinos
à campa de Nhana, ressuscitar o meu amor.
Irei.

     Poesia vinculada à sedimentação de uma consciência anticolonialista, mais do que a


fala de cada poeta ela se consubstancia na voz colectiva do homem são-tomense. Mas

242
não só poesia de signos, de símbolos, de imagística protestatária, aliás de descodificação
facilitada. Não só poesia de anunciação e assunção. Não só. Poesia tocada pelo afago
lírico das coisas da «Ilha Verde, rubra de sangue». As «palmeiras e cacoeiros», «o
aroma dos mamoeiros», o «cajueiro»; as «modinhas da terra», os «murmúrios doces dos
silêncios», «as canoas balouçando no mar», o «sòcòpé», os deuses e os mitos, «orações
dos ocás», os «cazumbis»
     Por derradeiro, Marcelo Veiga. Numa ordem cronológica Marcelo Veiga (1892-
1976) deveria ter sido considerado logo após Costa Alegre. Marcelo Veiga, pequeno
proprietário da ilha do Príncipe, estudou no liceu em Lisboa, aqui viveu por períodos
intermitentes, foi amigo de Almada-Negreiros, Mário Eloy, Mário Domingues, José
Monteiro de Castro, Hernâni Cidade. Passou despercebido até ao momento em que
Alfredo Margarido o incluiu na antologia por ele organizada e publicada, da Casa dos
Estudantes do Império, Poetas de S. Tomé e Príncipe (1963). Ultimamente obtivemos
alguns poemas seus, inéditos, datados a partir de 1920, cedidos pelo poeta, pouco antes
de falecer na sua ilha. Ele dá, assim, antes de F. J. Tenreiro, o sinal do «regresso do
homem negro», o sinal da negritude não só em S. Tomé e Príncipe como em toda a área
africana da língua portuguesa: «África não é terra de ninguém,/De qualquer que sabe de
onde vem, [...] A África é nossa!/É nossa! é nossa!».
     Eis, nítida e insofismável, a consciência da revolta:

‘Filhos! a pé! a pé! que é já manhã!’


Esta África em que quem quer dá co’o pé
Esta negra África escarumba, olé!
Não a q’eremos mais sob o jugo de alguém,
Ela é nossa mãe!

     Irónico, mordaz, a língua destravada e rebelde, associada ao veneno lúcido da


desafronta:

Sou preto o que ninguém escuta;


O que não tem socorro;
O – olá, tu rapaz!
O – ó meu merda! Ó cachorro!
O – ó seu filho da puta!
E outros mimos mais...

Ou

O preto é bola,
É pim-pam-pum!
Vem um:
– Zás! na cachola...
– Outro – um chut – bum!

     A terminar, diríamos que a poesia de S. Tomé e Príncipe constitui uma expressão
africana mais uniforme do que a de Moçambique ou mesmo de Angola, ainda
considerando a franja de mestiçagem que a percorre. Construída apenas por negros ou
mestiços, este punhado de poetas baliza a área temática no centro do universo da(s)
sua(s) ilha(s) e organiza um signo cuja polissemia é de uma África violentada, inchada
de cólera, a esperança feita revolta.

243
 

A NARRATIVA

 Modestíssima, quantitativa e qualitativamente, é a narrativa de S. Tomé e Príncipe.


As esporádicas experiências de Viana de Almeida (Maiá Pòçon, contos, 1937) e de
Mário Domingues. (O menino entre gigantes, 1960) não chegam a ser uma
contribuição relevante. O primeiro, nesse tempo, prejudicado ainda por um ponto de
vista subsidiário de uma época colonial; o segundo (também natural de S. Tomé e
Príncipe, mas tornado escritor português pela obra e pela radicação) talvez pela carência
da dramatização da personagem principal, o mulato Zezinho, nado e criado em Lisboa.
De acaso teria sido o conto «Os sapatos da irmã», sem qualquer relação com S. Tomé,
que Francisco José Tenreiro, em 1962, publicou na colectânea Modernos Autores
Portugueses (Lisboa). Acidentais ainda, mas já com uma visão ajustada a um real
africano, foram também as experiências de Alves Preto, limitada, cremos, a dois
contos: «Um homem igual a tantos» e «Aconteceu no morro». E ainda o caso de Sum
Marky (i. e. José Ferreira Marques), branco nascido em S. Tomé, autor de vários
romances, de importância discutível, alguns no entanto parcialmente com interesse,
valendo citar Vila flogá, 1963, como testemunho acusatório da exploração colonialista.
  

A EXPRESSÃO EM CRIOULO

 Não obstante ser bilingue, visto que a população utiliza, além da língua portuguesa,
o crioulo de S. Tomé, a criação literária é reduzida em dialecto, domínio que a tradição
oral vem monopolizando com substancial interesse. Praticamente conheciam-se as
composições poéticas de Francisco Stockler e uma experiência de Tomaz Medeiros.
No entanto, após a independência nacional, parece haver sintomas de uma revitalização
no uso literário do crioulo, ao nível popular, pelo menos a partir de agrupamentos
musicais. Exemplo são os casos dos caderninhos de Sangazuza e o caderno do
Agrupamento da Ilha, 1976, compostos de músicas revolucionárias e, de um modo
geral, vertidos em rumbas, sambas, marchas, valsas, boleros e sòcòpés.

Literaturas africanas de expressão portuguesa - 1 , Manuel Ferreira


ICALP - Colecção Biblioteca Breve - Volume 6, 1977

NOTA SOBRE A LITERATURA SANTOMENSE 

A literatura são-tomense mergulha as suas raízes no século XIX – princípios do séc.


XX, com a tradição do jornalismo praticado pela elite dos filhos-da-terra, na imprensa
(revistas, jornais e boletins de associações), de que era proprietária e de que se destacam
O Africano, A Voz d’África, O Negro, A Verdade, O Correio d’África, entre outros.
Esses periódicos, de carácter não oficial e não governamental, que publicavam poemas
dispersos dos colaboradores, eram dimensionados numa matriz pré-nacional(ista), já
indiciando uma consciência unitária e libertária. Aí desenvolveram-se polémicas sobre a
dignificação e instrução das populações nativas, sobre o abuso do poder, violência

244
contra o negro e sobre a questão das terras expropriadas aos nativos durante a época da
introdução das culturas do cacau e do café e consequente instauração das estruturas
coloniais, preparando as condições para a segunda colonização, baseada na monocultura
daqueles produtos que era praticada em unidades (sócio-)económicas denominadas
roças. […]
Mas se a poesia de Caetano da Costa Alegre indicia um certo negrismo literário,
configurador da etnicidade que marcará a literatura africana de língua portuguesa, será
com Marcelo da Veiga que essa hesitante nomeação da diferença vai construindo um
discurso de identidade pela exibição da cor, usos e costumes como diferenciadores
étnico-culturais, pela memória vivencial, pela citação das figuras históricas que povoam
o imaginário colectivo e pela colectivização da voz já contestatária na primeira metade
do século XX. […] A veemência do discurso de identidade de Marcelo da Veiga é tão
forte que terá levado Manuel Ferreira a considerá-lo como “o mais longínquo pioneiro
de autêntica poesia africana de expressão portuguesa; podíamos mesmo adiantar da
negritude”. […]
É pacífica a ideia de que os fundamentos irrecusáveis da literatura são-tomense
começam a definir-se com precisão em 1942, com Ilha de Nome Santo, de Francisco
José Tenreiro.

Inocência Mata, “Marcelo de Veiga e Francisco José Tenreiro” in Literaturas Africanas de Expressão
Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 336-339 – adaptado)

245
FRANCISCO JOSÉ TENREIRO: VIDA E OBRA

Francisco José Tenreiro nasceu em São Tomé e


Príncipe em 1921 e faleceu em 1963,  numa altura
em que se intensificava a Guerra Colonial. Geógrafo
por formação, usou a poesia para exprimir a nova
África, já não a dos postais ilustrados e dos povos,
plantas e animais exóticos, mas a de um novo tempo,
marcado pela fusão de culturas nativas.
Veio para Lisboa ainda bastante novo, numa
altura em que nos Estados Unidos e na França se
ouviam as novas vozes dos intelectuais negros a
reclamarem os direitos e a proclamarem a identidade
dos povos africanos. Tenreiro enquadra-se nesta
corrente. Também ele viveu para exaltar a cultura da
sua terra natal, se bem que não renegando certos
valores adquiridos com a colonização. Por isso, mais
do que o poeta da negritude, assume uma postura de
defesa de todas as minorias étnicas, como é visível no poema “Negro de Todo o
Mundo”. A sua poesia exalta o homem africano na sua globalidade, ou seja, a diáspora
africana que se propagou por todos os cantos do mundo.
Publicou a sua primeira obra – Ilha de Nome Santo – na colecção coimbrã “Novo
Cancioneiro”, integrando-se na corrente neo-realista que então surgia em Portugal.
Poeta da mestiçagem, do cruzamento de culturas e de vozes, escreve, na “Canção do
Mestiço”, “nasci do negro e do branco / e quem olhar para mim / é como se olhasse /
para um tabuleiro de xadrez”, continuando “E tenho no peito uma alma grande, / uma
alma feita de adição”. É nessa adição que reside a diferença. Tenreiro não apela a um
retorno às origens africanas mas ao respeito das pessoas de todas as cores, de todas as
tradições. A sua voz é verdadeiramente a voz do exílio, por um lado, e do
entrecruzamento das culturas e das raças, por outro.
Em 1953, juntamente com o angolano Mário de Andrade, publica, em Lisboa,
Poesia Negra de Expressão Portuguesa, uma antologia de textos de novos intelectuais
africanos. O próprio nome era já provocação: a africanidade implicava a desestruturação
da portugalidade, o que, numa época de ditadura, era no mínimo arriscado fazer. É a
busca de uma nova consciência africana.
Em 1962, Tenreiro concluiu o seu segundo livro de poesia, Coração em África, que
já não viu publicado, por ter falecido no ano seguinte. (in Infopédia, Porto Editora) 
Considerado o primeiro poeta da Negritude de língua portuguesa, Ilha de Nome
Santo é, porém, poesia eminentemente insular, não obstante os “3 poemas soltos” cuja
estética está em consonância com a dos poemas dos anos 1950, revitalizadores de

246
figuras, signos e símbolos emblemáticos do mundo negro-africano e vinculados aos
modelos tutelares da consciência negra nos Estados Unidos, Cuba ou Haiti e
redimensionados pelo movimento da Negritude. Assim, tal como os “3 poemas soltos”,
incluídos em Ilha de Nome Santo, a saber “Epopeia”, “Exortação” e “Negro de todo
o Mundo”, os poemas negritudinistas de Coração em África evocam, para estigmatizar,
a desagregação e a dispersão absoluta do povo negro, a tristeza, a melancolia e a
martirizada submissão do negro da diáspora. Expressão pungente das realidades do
mundo negro-africano, esses aspectos conjugam-se com a dimensão do orgulho da raça,
da exaltação cultural expressa pelo invocacionismo das entidades simbolicamente
apreendidas como genésicas e cosmogónicas (Mãe-Terra/Tellus) e pelo evocacionismo
ancestral, configurado no retorno às origens e na concepção redencionista da vida, em
forma de esperança e certeza, aliás uma dimensão configuradora da estética
negritudinista.
Na 2ª parte de Coração em África, o poeta “regressa” à sua ilha: fizera um percurso
desde Ilha de Nome Santo, em que o desejo de conhecimento das realidades e de
identificação com a terra natal (que a dedicatória, primeiro, e, depois, o poema “A
canção do mestiço” sintetizam) o leva a perscrutar as especificidades sociais e culturais
da ilha, numa escrita neo-realista cujo funcionamento ideológico revela uma dimensão
nacionalista pelas suas intenções anti-coloniais. Nomeara em Ilha de Nome Santo a
exploração colonial e a precariedade social da população nativa, em “Cancioneiro” e
no “Ciclo do Álcool”, a identidade mestiça do ilhéu (por vezes uma dolorosa
mestiçagem, como na poesia do “Romanceiro”), subvertendo o código do exotismo
literário ao textualizar “realidades miúdas da vida do homem” para, após um mergulho
no universalismo negritudinista, que começara em “3 poemas soltos” e continuaria na
primeira parte de Coração em África, regressar à pulsão da tellus insular. Os poemas
dessa segunda parte, intitulada “Regresso à ilha”, maioritariamente escritos durante
uma estada em São Tomé, na Páscoa de 1962, relevam do evocacionismo da terra natal,
das suas potencialidades naturais e culturais, mas também espirituais, revalorizando-as
através da citação dos seus frutos, animais, paisagens, ritmos e sensações, num gesto de
imersão na tellus que o poeta realiza convocando os seus mais atávicos afectos; mas
ainda assim, nunca esquecendo as tensões sociais, em última instância coloniais.

(Inocência Mata, “Marcelo de Veiga e Francisco José Tenreiro” in Literaturas Africanas de


Expressão Portuguesa, vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 339)

UM POETA DA AFRICANITUDE 

[…] Regressemos, entretanto, à concepção de Tenreiro, da negritude como


sentimento e razão-base da poética negra, que eu preferia substituir pelo adjectivo
africana. É que, parece-me, o rigor antropológico-cultural aconselha a substituir o
conceito de mundo negro pelo de mundo africano, quando se fala de produções textuais
realizadas na língua de colonização. Com efeito, a expressão mundo africano não é, para
mim, sinónima da de mundo negro. Esta é certamente a base, o elemento de
estruturação daquele que é já o resultado duma miscigenação cultural conseguida por
contactos e contaminações, aceites ou impostas, que provocaram aculturações, mais
profundas, como no caso do crioulismo, ou menos profundas, como no caso do
mulatismo. O mundo africano, em termos culturais, traduz, pois, uma realidade
resultante do encontro do mundo negro com mundos culturais e civilizacionais

247
diferentes que interferiram e alteraram substancialmente a cosmogonia e a ontogonia do
homem negro tradicional. Portanto, o mundo africano, como mátria da expressão de
sentimentos de todos aqueles que nasceram em África e lhe adoptaram, e adoptam, a
cosmologia, torna-se um conceito muito mais abrangente e rigoroso, porque implica e
explica os fenómenos culturais e estéticos que têm o mundo negro por referência.
Tenreiro, ao adoptar a expressão “sentimento que é a razão-base”, quereria dizer,
decerto, sentimento-base de pertença ao mundo africano com as suas tensões
civilizacionais e com as suas contradições políticas e culturais, originadas pela
colonização, pelo esclavagismo e pelo colonialismo, pois ele sentia que a África do
mundo negro tinha sido definitivamente afectada pelas civilizações judiocristã e
islâmica. Isso me parece particularmente patente no poema “Epopeia” do livro de
Tenreiro a que nos referimos. Veja-se apenas a estrofe que introduz esse poema, onde se
lê: 

Não mais a África


da vida livre e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos
— veias intumescidas dum corpo em sangue! 

Da leitura desta estrofe, surge nítida a consciência do poeta de que a Africa negra, no
sentido antropológico, ficava já longe e na memória daqueles, seus filhos, que nasceram
marcados, histórica e afectivamente, pelo tempo em que “Os brancos abriram clareiras/a
tiros de carabina./Mas clareiras fogos/arroxeando a noite tropical.” […]
O poema “Epopeia” parece-me, por isso, poder ser considerado como o texto
emblemático da africanidade poética de Francisco José Tenreiro e da sua postura
estética, perante a Africa, a que chamo africanitude, isto é, visão dialéctica entre a
Africa negra tradicional e aqueloutra pigmentada e alterada, de que a colonização
portuguesa foi uma espécie, não direi melhor em termos absolutos, mas seguramente
melhor em termos relativos e, sobretudo, diferente das outras civilizações europeias na
sua dinâmica cultural e civilizacional pela colonização europeia. As duas estrofes finais
desse poema concretizam, quanto a mim, essa visão: 

Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o ritmo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!

...para que a tua gargalhada


de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia! 

Por aqui se vê que o futuro, o dessa vida nova preconizada pelo poeta, é feito
também do passado de que a azagaia nos dá a referência, criando-se, assim, um
movimento dialéctico em que todo o regresso aponta para um progresso.
A africanitude é, pois, entendida como uma visão dialéctica do mundo negro com os
outros mundos culturais que com ele entraram em contacto, originando um dialogismo
discursivo e textual realizado através da língua de colonização que o poeta e escritor

248
africano transforma de língua de opressão em língua de libertação, por meio duma fala
africanizada que traz consigo todos os sentidos evocados do drama secular do homem
negro. Dialogismo, por vezes, tenso na sua forma de expressão, para ser capaz de
traduzir melhor esse drama, sintetizado para a terra de S. Tomé e Príncipe na última
estrofe do poema de Tenreiro que deu o título ao seu primeiro livro — Ilha de Nome
Santo. Aí se lê: 

Onde apesar da pólvora que o branco trouxe num navio escuro


onde apesar da espada e duma bandeira multicolor
dizerem poder dizerem força, dizerem império de branco
é terra de homem cantando vida que os brancos jamais souberam
é terra do sàfu do socopé da mulata
— ui! fetiche di branco! —
é terra do negro leal forte e valente que nenhum outro! 

A africanitude é, ainda, essa voz poética que privilegia o amor e a humanidade do


homem africano, enquanto tal, sem cedências às emoções sensuais e rituais que, embora
definidoras duma África tradicional, já não são mais miticamente olhadas. Privilegia
também a África do nosso tempo na sua multivalência, onde a tradição e a modernidade
convivem, aceitando as realidades que a história nela plantou regadas embora pelo
sangue de milhões dos seus filhos. Realidades que a inspiração poética de Tenreiro
traduziu melhor no seu segundo livro — Coração em África —, deixado pronto para
publicação que a morte não lhe permitiu ver, e onde em poemas, marcados por uma
escrita da modernidade sem, todavia, prescindir da característica estrutura narrativa
própria da textualidade negra-africana, tais como “Amor de África”, “Mãos” e
“Coração em África”, o poeta nos apresenta a força do seu estilo irónico, por vezes
mesmo sarcástico, e agressivamente dialógico, onde a estética jamais fica prejudicada
pela mensagem social que os textos veiculam.
A africanitude, em Francisco José Tenreiro, é, por fim, uma atitude poética e
filosófica, donde a raça e a cor, por si, não têm a valorização absoluta que a negritude
lhes confere, preferindo-se, antes, considerar o homem como um ser universal, onde
conta mais a alma, a essência, do que a pigmentação da epiderme, porque o poeta sabe
que o amor e a maldade são acrómicos. E, assim, africanitudamente, o poeta pode cantar
a sua mátria, nesse extraordinário poema que é “Nós, Mãe” e de que respigo esta
expressiva passagem: 

Ah! Brancos, negros e mestiços


escaldaram o teu corpo de sensações
com o bafo quente de um vulcão maldito.
E os teus seios secaram
o teu corpo mirrou
e as pernas engrossaram
enraizando-se no teu próprio corpo.
 
E os teus olhos...
 
Os teus olhos perderam o brilho
ao sentirem o chicote
rasgar as carnes duras dos teus filhos.
Os teus olhos são poços de água pálida,

249
porque cheiraste na velha cubata
o odor intenso de uma aguardente qualquer.
Os teus olhos tornaram-se vermelhos
quando brancos, negros e mestiços instigados
pelo álcool
pelo chicote
pelo ódio
se empenharam em lutas fratricidas
e se danaram pelo mundo.
 
E a ti,
Oh! mãe de negros e mestiços e avô de brancos!
ficou-te esse jeito
de te perderes na beira de algum caminho
e te sentares de cabeça pendida
cachimbando e cuspindo para os lados.
 
Mas os teus filhos não morreram, negra velha,
que eu oiço um rio de almas reluzentes
cantando: nós não nascemos num dia sem sol! 

A África de expressão portuguesa, na sua tridimensão cultural e étnica, aí está


presente, comungando um mesmo espaço filosófico e um mesmo tempo social.
Se saíssemos, agora, do domínio dos textos poéticos de Tenreiro, incluídos no seu
primeiro livro, e passássemos a algumas considerações extratextuais que, todavia, estão
com eles relacionadas, poderíamos, penso eu, acentuar a ideia de que a escrita desse
poeta santomense, pelo menos a inicial, fez o seu percurso à margem de qualquer
influência negritudinista, que não é visível em nenhum momento textual, nem pela
citação nem pela invocação de autores, como acontece, no seu segundo livro, onde o
afro-americanismo, por exemplo, está presente. Aliás, se Antero de Abreu está certo,
quando afirma que só no fim dos anos 1940, princípio dos anos 1950, é que os
estudantes africanos de expressão portuguesa começaram a ter contacto com a poesia de
Langston Hughes, Guillèn e com os poetas da Negritude (Cf. Manuel Ferreira, in
Prefácio a Poesia Negra de Expressão Portuguesa, Lisboa, 1982), então a poesia de
Tenreiro, escrita no meio dos ventos neo-realistas do “Novo Cancioneiro” coimbrão,
sendo coetânea na sua produção da do grupo negritudinista de Paris, não teria sido por
ele certamente motivada. O facto de fazer do homem negro, em particular, e do homem
africano, em geral, o seu sujeito poético, não pode significar identidade ético-estética
necessária para uma mesma filiação. Aliás, a negritude esqueceu-se de que o homem
africano é culturalmente e, por vezes, mesmo etnicamente, diferente do homem negro.
Parece-me, portanto, que o uso do conceito de africanitude é menos marcado e, por
isso mesmo, mais capaz de traduzir a dimensão mulata, estética e culturalmente falando,
da poesia de Francisco José Tenreiro, poeta arrancado cedo à vida e à Africa que, no
entanto, teve ainda tempo para cantar e louvar numa linguagem retoricamente rica e
variada, sem jamais perder, contudo, a perspectiva social. Tenreiro é bem o exemplo de
como o social e o estético podem conviver, sem que um submerja o outro, procurando-
se, antes, o equilíbrio que garanta a qualidade artística de que todo o texto necessita para
ser verdadeiramente literário.

São Tomé, 14-9-1984.


(in Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira, Salvato Trigo, Lisboa, Vega, s/d, pp. 89-95)

250
  

FRANCISCO JOSÉ TENREIRO A PRETO E BRANCO 

[…] A busca das identidades individual e nacional é sempre o cerne da questão


cultural, social e literária dos países africanos sob domínio colonial, quer se processe
através de formas combativas ou expositivas. Nenhuma das duas identidade é procurada
explicitamente, mas ambas são o desígnio desses poemas tão aparentemente alheios
quer a egocentrismos quer a etnocentrismos. Nunca essa busca desesperada — mas não
cega, porque iluminada por uma sólida preparação cultural — se apresentou tão
encoberta e indizível como na poesia de Francisco José Tenreiro: descobrimo-la latente,
nos espaços silenciosos (mas activos) entre os poemas, entre os títulos e os poemas,
entre grupos de poemas, entre significações adversas. […]
Nos dois livros de poemas há grupos dedicados à terra natal e todos eles carecem de
convicção poética, da luxo da estética, porque contaminados ora por um construtivismo
realista, na primeira fase, ora pela rasura da saudade, na última. O tema da terra e das
gentes insulares, batidos pelos ventos agrestes da história colonial, tratado de forma
empenhada ou nostálgica, responde às necessidades da construção de uma imagem
identificativa nacional. A emblemática nacional, forjada em irredutíveis especificidades,
erige-se contra a agressão de que o sujeito poético é vítima em meios sociais e
ecológicos que lhe provocam, no mínimo, a sensação de estranheza: “riam todos vocês
assistência sem vida.” (in Amor de África, 1963); “e o coração entristece à beira-mar da
Europa” (in Coração em África, 1953). A recusa (e a repulsa) da Europa, enquanto
símbolo do pai colonial, obriga à construção de paradigmas substitutos da orfandade
pátria, representada pela mãe-terra distante e perdida na memória, mas inequivocamente
amada. Não é por acaso que o poema-dedicatória que abre Ilha de Nome Santo refere
somente a mãe como destinatária do livro, constatando: “Entre nós: uma raça!”.
A raça, a cor rácica, conquanto categoria analítica destituída de pertinência
sistemática para a elaboração de uma conceptualização do indivíduo enquanto ser
social, serve como estigma diferenciador dos desníveis económicos e dos desencontros
sociais, marcados pela estratificação de classes e a detenção do poder político. A
coloração epidérmica aparece distribuída por seis núcleos e seus derivados semânticos:
branco, preto, negro, mulato, mestiço e moreno. Os lexemas indicativos de cor racial ou
para-racial são cerca de 175. O tipo de co-texto analisado permite detectar quatro
acepções sémicas fundamentais da coloração epidérmica: rácica propriamente dita,
política, social e simbólica. É muito curioso verificar que os lexemas preto e negro,
mais os seus derivados, incluindo os gramaticais, ultrapassam a centena. O lexema
branco, e seus derivados, encontra-se a 50 por cento. Os restantes, mulato, mestiço e
moreno, aparecem somente 21 vezes. Isto significa, muito simplesmente, que os poemas
de Tenreiro falam sobretudo do negro de todo o mundo e, em menor escala, do mestiço
santomense. O branco intervém como contraponto inevitável para a definição do sujeito
poético enquanto indivíduo, primeiro africano e, depois, santomense. O branco,
delineado sempre como ser estranho ao mundo insular, representa a ascendência
patrilinear que ajudou a fecundar uma nova civilização, a qual transporta em si a carga
negativa que urge recusar.

(Pires Laranjeira, “Francisco José Tenreiro a preto e branco, II” in: Les litteratures africaines de
langue portugaise : a la recherche de l'identite individuelle et nationale, org. José Augusto França, Paris,
Fondation Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 423-429.)

251
ANTOLOGIA POÉTICA 

 CICLO DO ÁLCOOL  

1  

Quando seu Silva Costa  


Chegou na ilha
Trouxe uma garrafa de aguardente  
Para o primeiro comércio.
 
A terra era tão vasta
Havia tanto calor 3
Que a água
Parecia não ter potência Mãe Negra contou:
Para acalmar a sede da sua garganta. "eu disse:
filhinho
Seu Silva Costa beba isso coisa não...
Bebeu metade... Filhinho riu tanto tanto!..."

E sua garganta ganhou palavra Nhá Rita calou-se.


Para o primeiro comércio. Só os olhos e as rugas
Estremeceram um sorriso
longínquo.
2
- E depois Mãe-Negra?
A lua batendo nos palmares
Tem carícias de sonho "Oh!
Nos olhos de Sam Márinha. Filhinho
Silêncio! Entrou no vinhateiro
O mar batendo nas rochas Vinhateiro entrou nele..."
È o eco da ilha.
Silêncio! Os olhos de nhá Rita
Lá no longe Estão avermelhando de tristeza.
Soluçam as cubatas
Batidas dum luar sem sonho. "Hum!
Silêncio! Filhinho
No canto da rua Ficou esquecendo sua mãe!.
Os brancos estão fazendo negócio
1942
A golpes de champagne!

252
 

ROMANCE DE SINHÁ ROMANCE DE SEU SILVA


CARLOTA COSTA

Na beira do caminho «Seu Silva Costa


sinhá Carlota chegou na ilha...»
está pitando no seu cachimbo.  
  Seu Silva Costa
Um círculo de cuspo chegou na ilha:
a seu lado... calcinha no fiozinho
  dois moeda de ilusão
Veio do sul e vontade de voltar.
numa leva de contratados.  
Teve filhos negros Seu Silva Costa
que trocam hoje o peixe chegou na ilha:
por cachaça. fez comércio di álcool
  fez comércio di homem
Teve filhos mestiços. fez comércio di terra.
Uns  
forros de a. b. c. Ui!
perdidos em rixas de navalhas. Seu Silva Costa
Outros foram no norte virou branco grande:
com seus pais brancos su calça não é fiozinho
e o seu coração e sus moeda não têm mais ilusão!
já não lembra o rostinho deles!
 
Sinhá Carlota
veio há muito do sul
numa leva de contratados...
 
Assim
embora pra seu branco
o seu corpo não baile mais no sòcòpé
ele ao passar
fica sempre dizendo:
                                    sàbuá?
 
Sinhá Carlota
nos olhos cansados e vermelhos
solta um achô distante
enquanto vai pitando
no seu cachimbo carcomido...

Ilha de Nome Santo

253
 

Os poemas dessa primeira obra (“Romance de seu Silva Costa”, “Romance de San
Marinha”, “Romance de Sinhá Carlota”, “Canção do Mestiço”, “Canção de Fiá
Malicha”, “Socopé”, etc) falam de situações e de gentes ligadas à terra distante, desde o
ambicioso "pequeno português" seu Silva Costa, que " chegou na ilha: calcinha no fiozinho,
dois moeda de ilusão e vontade de voltar"; que " fez comércio di álcool / fez comércio di
homem / fez comércio di terra " mas que  hoje " virou branco grande : su calça não é
fiozinho e sus moeda não tem mais ilusão...", passando pela desenraizada e desadaptada San
Marinha, filha da terra, que ainda menina "foi no norte" e aí se habituou aos "goles de
champagne", ou seja, aos requintes da Europa (tomados no seu sentido mais perverso) e a
quem a ilha já nada tem a oferecer.
Pungente é também o "Romance de Sinhá Carlota", dedicado à sua mãe, mas
suficientemente envolvente para parafrasear todas as mães negras vítimas do destino trágico
de verem perdidos os seus filhos, tanto negros como mestiços: " teve filhos negros que
trocam hoje o peixe por cachaça/ teve filhos mestiços / Uns / forros de a b c / perdidos em
rixas de navalhas / Outros foram no norte / com seus pais brancos / e o seu coração / já não
lembra o rostinho deles !"

(“Francisco Tenreiro: a angústia de um poeta dividido”, Lisboa, 24-05-2007,


http://www.cstome.net/diario/OPINIAO/2007/28/Francisco Tenreiro.htm)

EXORTAÇÃO 

Negro
para quem as horas são sol e febre
que colhes
nesse ritmo de guindaste.
 
Negro
para quem os dias são iguais
que respeitas teu patrão e senhor
como água que mexe o engenho.
 
Negro!
         Levanta os olhos prao sol rijo
e ama tua mulher
na terra húmida e quente!

Coração em África, 1982

O poema “Exortação”, como o próprio título indica, é uma advertência, um apelo


que se dirige a um sujeito-exortatório, isto é, um sujeito a quem o poeta sente ser lícito
dirigir a exortação. Mas quem é este negro, este sujeito-outro, a quem o poeta sente a
necessidade e a urgência de exortar? É ele o negro anónimo, representante de todos os
254
negros colonizados e explorados, aquele que perde o seu tempo trabalhando para
outrem, o que esgota o seu ritmo e desperdiça sentimentos de respeito para com aquele
que o subjuga, o que o poeta refere como sendo o “patrão e senhor” desse negro –
símbolo do povo africano. É por isso que a palavra “negro” surge cabeça de cada uma
das três estrofes do poema, repetição que ocorre não só com o intuito de chamar
constantemente a atenção desse negro para a sua situação, como também, numa segunda
instancia, para chamar a atenção do leitor para a situação em que se encontra esse negro
que urge alertar. É de notar que na última estrofe a palavra “negro” assume mais do que
nunca um aspecto imperativo, não só dada através do ponto exclamativo que a precede
(e que mostra até que ponto o poeta está emocionalmente envolvido com a situação do
negro exortativo), mas ainda pelo uso de verbos na forma imperativa – “Levanta” e
“ama” – o que expressa o carácter urgente e inevitável da exortação que é aqui feita,
conferindo estatuto de mandamento às palavras do poeta.
Enquanto na primeira estrofe se fala da exploração do negro em termos físicos.,
identificando-se o seu ritmo laboral com o de uma máquina – o “guindaste” –, na
segunda estrofe opõe-se à actividade física um sentimento moral: “que colhes” / “que
respeitas” – surgindo, então, um terceiro elemento, objecto desse respeito imerecido,
segundo o poeta, ou este não poria uma forte carga irónica na comparação que faz entre
a força do poder do ser humano sobre outro ser humano “para fazer mover o engenho” e
a força natural da “água que mexe o engenho” por si própria.
Há em ambas as estrofes referências temporais dadas através da metáfora das horas:
“as horas são sol e febre” e pela expressão “os dias são iguais”, que mostram como esse
negro passa o tempo da sua vida, chamando-se assim a atenção para a urgência temporal
da exortação.
Na terceira estrofe o poeta solta toda a emoção e lança o grito de alerta, de apelo
urgente e imperativo – é preciso despertar esse negro para que ele ganhe consciência
dos seus direitos enquanto ser humano que ao “levantar os olhos para o sol rijo”,
símbolo da vida, saia debaixo do jugo que o oprime. A simbologia da vida continua
então a ser evocada pelo poeta que se refere agora ao acto amoroso do negro para com a
mulher amada; é esse acto de amor um acto supremo de criação, expressão máxima da
força da natureza e da vida, símbolo de amor e de libertação, mas também de
preservação e de continuação da raça. Símbolo é ainda essa “terra húmida e quente”,
lugar onde, para o poeta, esse acto de amor deveria ser consumado. É essa terra-mãe,
terra-origem que o negro deve fecundar, pois é nela que está enraizado, nessa terra
africana “húmida e quente” como o próprio clima africano, como o próprio clima do
amor.
Há um afastamento evidente entre o sujeito poético e esse sujeito-outro que ele
exorta, “um olhar de longe” para a situação desse negro a quem urge exortar; mas esse
afastamento é atenuado na medida em que esse “olhar de longe” não se queda passivo,
antes opta pela exortação, prática oratória que visa exercitar à prática; é esse acto
poético que confere ao poeta o direito a advertir o outro, chamando-lhe desta forma a
atenção para a situação de escravidão em que vive e agitando a sua consciência para a
urgência que há na sua dignificação enquanto ser humano. Só então esse negro poderá
amar a sua mulher na plena força da natureza que é a sua pátria.

(Maria Paula Montez, Lisboa, 26/12/1991)

255
NEGRO DE TODO O MUNDO
 
 

O som do gongue A tua voz escurinha


ficou gritando no ar está cantando
que o negro tinha perdido. nos palcos de Paris.
                Harlém! Harlém!                 Folies-Bergères.
América!
                Nas ruas de Harlém Os brancos estão pagando
                os negros trocam a vida por o teu corpo
navalhas! a litros de champagne.
América!                 Folies-Bergères!
                Nas ruas de Harlém  
                o sangue de negros e de brancos Londres-Paris-Madrid
                está formando xadrez. na mala de viagens...
                               Harlém!  
                                               Bairro negro!                 Só as canções longas
                                                               Ringue                 que estás soluçando
da vida!                 dizem da nossa tristeza e
  melancolia!
Os poetas de Cabo Verde  
estão cantando... Se fosses branco
  terias a pele queimada
Cantando os homens das caldeiras dos navios
perdidos na pesca da baleia. que te levam à aventura!
Cantando os homens  
perdidos em aventuras da vida Se fosses branco
espalhados por todo o mundo! terias os pulmões cheios
  de carvão descarregado
                Em Lisboa? no cais de Liverpool!
                Na América?  
                No Rio? Se fosses branco
                               Sabe-se lá!... quando jogas a vida
  por um copo de whisky
— Escuta. terias o teu retrato no jornal!
É a Morna...  
  Negro!
Voz nostálgica do cabo-verdiano Na cidade da Baía
chamando por seus irmãos! os negros
  estão sacudindo os músculos
Nos terrenos do fumo  
os negros estão cantando. Ui!
  Na cidade da Baía
Nos arranha-céus de New-York os negros
os brancos macaqueando! estão fazendo macumba.
   
Nos terrenos da Virgínia                 Oraxilá! Oraxilá!
os negros estão dançando.  
  Cidade branca da Baía.

256
No show-boat do Mississípi                 Trezentas e tantas igrejas!
os brancos macaqueando!                                Baía...
                  Negra. Bem negra!
Ah! Cidade de Pai Santo.
Nos estados do sul  
os negros estão cantando!                 Oraxilá! Oraxilá!

Coração em África, 1982

A solidariedade sem fronteiras para com as pessoas da raça negra, não importando o
local de nascimento e sim a cor da pele e a origem comum, é uma das maiores
recorrências na poesia africana de língua portuguesa dos anos 40 e 50, e afrobrasileira
da década de 60 à de 80. É a apologia do “negro de todo o mundo”, na qual, o sujeito
poético assumindo um caráter coletivo torna-se o porta-voz da sua raça, e se solidariza
com todos os negros oprimidos, sejam aqueles que foram escravizados no passado ou os
que estão sofrendo a opressão colonial e o preconceito racial no presente, ao mesmo
tempo em que exalta as grandes personalidades do mundo negro que se tornaram
verdadeiros símbolos para a raça, como o líder revolucionário haitiano Toussaint-
Louverture, o pastor evangélico Martin Luther King, o músico Louis Armstrong, e os
poetas Langston Hughes, Nicolas Guillén, Aimé Césaire e Senghor, entre outros.

(Donizeth Aparecido dos Santos, “Poetas de todo o mundo” in Fênix – Revista de História e Estudos
Culturais, Abril/ Maio/ Junho de 2007 Vol. 4 Ano IV nº 2, www.revistafenix.pro.br)

  

CANÇÃO DO MESTIÇO  

Mestiço!  Ah!
                  Mas eu não me danei ...
Nasci do negro e do branco E muito calminho
e quem olhar para mim arrepanhei o meu cabelo para trás
é como se olhasse fiz saltar fumo do meu cigarro
para um tabuleiro de xadrez: cantei do alto
a vista passando depressa a minha gargalhada livre
fica baralhando cor que encheu o branco de calor! ...
no olho alumbrado de quem me vê.  
  Mestiço!
Mestiço!  
  Quando amo a branca
E tenho no peito uma alma grande                 sou branco...
uma alma feita de adição Quando amo a negra
como l e l são 2.                 sou negro.
                  Pois é...
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos

257
fez uma tabuada e falou grosso:
— mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do
negro.

Assim se introduziu na poesia uma outra categoria: a do mestiço. O conceito de


bivalência racial (não no sentido freudiano: amar e odiar) prolonga-se e reparte-se por
um lastro mais profundo: social, cultural, linguístico. Porque o mestiço, o mulato, não o
é pela fusão de sangues, mas sim, e sobretudo, pelo sincretismo de culturas. E daí
transformar-se naquilo a que alguns teóricos chamam o homem de dois mundos: o
Africano moderno, mais ou menos aculturado (há quem prefira desaculturado, citemos
M. Pinto de Andrade; e, sob um certo ponto de vista, muitas vezes com razão) – daí a
sua bipolaridade, a sua dual condição cultural, e o falar-se da sua natureza de indivíduo
problemático (designação que, se correcta, caberia bem a Costa Alegre). Portanto, em
desequilíbrio? Instável ou estável? Ou pura invenção dos sociólogos?
Na “Canção do Mestiço” de Tenreiro, como em poemas doutros autores que mais
tarde se fizeram eco do mesmo tema, a ironia e o humor que atravessam o texto, de
princípio ao fim, são uma exemplar afirmação da personalidade do sujeito de
enunciação. Retenha-se ainda o salto qualitativo obtido na poesia africana de expressão
portuguesa com a intervenção de Tenreiro.

(Manuel Ferreira, "Da dor de ser negro ao orgulho de ser preto", in: Revista Colóquio/Letras.
Ensaio, n.º 39, Set. 1977, p. 17-29.) 

      “[…] ainda em 1942, Francisco José Tenreiro já revela no poema “Canção do
Mestiço” um sujeito poético feito do negro e do branco que, manifestando-se na figura
do sujeito da enunciação, está privilegiadamente posicionado na fronteira entre os dois
mundos –  isto é, na “fronteira do asfalto” (LUANDINO VIEIRA, A Cidade e a Infância, 1957)
e aproxima os dois mundos: “Quando amo a branca/Sou branco/Quando amo a
negra/Sou negro/ Pois é...”. Portanto a proposta, ou a possibilidade de
complementaridade de opostos, ou de pseudo-divergentes, por ser recorrente, pode ler-
se como uma componente da anti-colonialidade que se vai transformar num dos
parâmetros da nossa expressão literária pós-colonial.”

(Inocência Mata, “O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa”, 2000,


http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/mata.rtf)

AMOR DE ÁFRICA

258
 1

Esparso e vago amor de África


como uma manhã outonal de nevoeiros calmos sobre o Tejo.
Difuso e translúcido amor de África
na sombra fugidia ao gás das travessas às três da madrugada.
Amor pálido de África num céu de andorinhas mortas
num campo branco sem malmequeres nem papoulas
Amor ténue e pálido, difuso e vago, translúcido de África
no coração murcho das multidões do Rossio olhando o placard
gente murcha e exausta, cansada e torturada
cansada e torturada para o amor.
(Quatro pulsações febris de um corpo só
oh África do Nilo e do Zaire oh África do Zambeze e do Níger
quem em ti está pensando de coração em África?
África dos rios velhos e ruínas ossificadas de Zimbabwé
China das muralhas de crisântemo e sangue
Malaias e Indonésias com encruzilhadas de sonho e febre
Indochina da virilidade com abraços tricolores de fraternité e palavras de balas
quem em vós está pensando de coração em África, nas Chinas e Malaias, Indonésias e
Indochinas de sonhos crispados?)
São sempre notícias de longe (terras exóticas meu avô andou lá veja a mala de cânfora
conheceu o Gungunhana)
são sempre notícias de longe bafejando corações murchos às cinco horas da tarde no
largo do Rossio.
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.
Vago amor de África pelas nove horas da manhã, comigo sentado num eléctrico
amarelo
deslizando nos carris ainda orvalhados do sonho e da ilusão
com pernas roliças de sopeiras a caminho da praça
e as vozes acordadas roucas dos embarcadiços encalhados
e as gralhas gentis e palradoras da agulha e linha
comigo sentado no eléctrico amarelo com carris de sonho
e uma mulher velha com o desejo-de-lugar nos olhos encovados
e eu deslizando com os sonhos dos outros e acordando para os olhos velhos da mulher
levantando-me e ela sentando-se no comentário para a do lado
há rapazes pretos muito gentis, muito gentis, muito gentis
e eu indiferente e vago com a vaguidade do amor daquela mulher esquecida do tempo
como um papiro
embalado pelo eléctrico amarelo de sonho e pelos carris
das gralhas mimosas e palradoras;
(ah não haver milho às mãos-cheias para os bichos gulosos de vida destes corpos
penugentos
nem os barcos de papel da infância seguros contra todos os riscos no Lloyd’s da nossa
imaginação
para os homens do mar feitos agora gaivotas cinzentas em terra).
Esparso e vago amor de África pelas calçadas da cidade.
Vago também as nove e trinta da manhã na tabacaria tolhida de
espanto
à esquina do prédio de oito andares

259
onde em dois brasidos se queimam olhos fosforescentes de pantera
e há uma mão felina estendendo na ponta das unhas recurvadas
pelo desejo e pela ambição o maço de Paris
uma mão de veludo e unhas de sangue
metendo conversas secretas e arrepios na espinha
solicitando encontros respeitáveis com carteiras concretas
casacos cio Alaska e jóias de Kimberley.
 
2
 
Aqui estou agora de coração em África
nesta noite fria e nu do capote das ilusões
ouvindo este sábio que tudo sabe tudo sabe de África.
 
De África e dos pretos claro está!...
 
Dos pretos que para arrelia das gentes à Terra vieram
pobrezinhas crianças crescidas em pretidão
mas que têm alma branca dizem uns
ou segundo outros alma danada.
Aqui estou eu agora vestido de África por dentro
por fora cheviote sorridente o sábio ouvindo
que das pirâmides diz e esquece os negros faraós
da poligamia reverbera olhos fechados à pederastia
fosforescente ao escuro das ruas velhas do mundo cansado
braço dado com damas de camélias emurchecidas
como as palavras que solta da sua caveira sem dentes.
Aqui estou eu agora coração oprimido e sorriso longe
ouvidos atentos ao linfatismo de repetidas ideias
sei lá quantas vezes e tantas como pingos sujando o meu coração.
 
Oh! minha África ter-te no peito o que vale
perante a clareza absoluta e homérica de afirmações tão sábias!
 
«Eu antes quero uma fuga de Bach que um batuque de cafres;
Prefiro um quadro de Rubens a um manipanso preto;
Sim, claro, o Ifé e o Benin são excepções ao resto
infantil, imaturo, caricatural da arte africana»
Casquinava arritmicamente, os dentes soltos na caveira consumida de sabedoria!
 
De Sabedoria de África e dos pretos claro está!...
 
Ri caveira morta, riam todos vocês assistência sem vida
Riam todos que o caso não é para menos;
mas deixem-me por favor este sorriso cheviote por fora
enquanto o meu coração serenamente conta
os minutos-tempo que faltam para a humanidade renascer!

Lisboa, 1963 (in Coração em África, 1982)

260
   

Em 1959, «o movimento anti-colonial dos estudantes e activistas africanos avança


com a palavra de ordem de "Deixar Portugal rumo ao exílio", sobretudo dos seus
principais elementos, que seguem para Paris, Argel, Suíça, etc. e, a partir daí, a
Negritude fenece drasticamente, cotando-se o poema "Amor de África" (1963), de
Francisco Tenreiro, como um dos últimos textos negritudinistas» (Pires Laranjeira, A
Negritude Africana de Língua Portuguesa, Lisboa, Edições Afrontamento, 1995). O
poema foi escrito no ano da sua morte, sendo que a sua segunda parte, na opinião do
professor Manuel Ferreira, «regista um bloqueio nas tentativas feitas pelo intelectual
Francisco José Tenreiro para estabelecer um diálogo franco e aberto com a Europa. O
grito que o poema, no fim, faz chegar até nós, mais do que a crença, a esperança, deixou
transparecer a raiva - uma raiva desesperada ainda tomada, talvez, pelo fogo vingador
da certeza» (idem)

(“Francisco Tenreiro : a angústia de um poeta dividido”, Lisboa, 24-05-2007,


http://www.cstome.net/diario/OPINIAO/2007/28/Francisco Tenreiro.htm) 

LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO


MUNDO, JOSÉ CARREIRO, 2008, <http://lusofonia.com.sapo.pt/tenreiro.htm>

CORAÇÃO
 
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
 
ao atravessar estes campos do trigo sem bocas
das ruas sem alegria com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos períodos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities
                                     [boulevards e baixa da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do
                                    [orçamento que não equilibra
do Benfica venceu Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho;
oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro clue

261
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) –
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadei-
                                                           [ra eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em  
                                               [África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
na inocência de Mac Gee) – ;
três linhas no jornal como falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas
                                                            [de Guillén
de coração em África com a impetuosidade viril de I tôo
                                                         [am América
de coração em áfrica com as árvores renascidas em
                     [todas estações nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro
                   [conheceu e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em
                                               [versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do
                                      [Congo de coração em África
de Coração em África ao meio-dia do dia de coração em
                                                                  [África
com o Sol sentado nas delícias do zênite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros.
Amodorrando no próprio calor da reverberação os mos-
                                   [quitos da nocturna picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o
                                               [olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou
                                               [escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que têm a beleza das rodas de crianças com papagaios
                                                                  [garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e
                                                                  [mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta sussura olha o preto (que
         [bom) olha um negro (óptimo) olha um mulato

262
                   [(tanto faz) olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho à brisa
                                                                [da tarde
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e
                                                    [sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata
                                 [perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e o pés trambolhos
                                                              [disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos
                                                [estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas
                                               [das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a
                                               [própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos
                                                                  [homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de
                            [homens negros escravos dos homens
e também aqueles que ninguém fala e eu Negro não
                                                           [esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu
                                                                     [sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu
                                                                  [coração
de uma só vez (oh órgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da
         [metralha e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de
                                 [Trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da
                                                                     [Terra
distribuíra o pão o vinho e o azeite pelos alíseos;
na esperança de que às entranhas hiantes de um menino
                                                                  [antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo
                            [que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
Deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela
                                               [paleta viva de Rivera
E pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;

263
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso
                                                        [sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração
                                                            [em África.
 
 

RITMO PARA A JÓIA DAQUELA ROÇA


 
Dona Jóia dona
dona de lindo nome
tem um piano alemão
desafinando de calor.
 
Dona Jóia dona
do nome de Sum Roberto
está chorando nos seus olhos
de outras terras saudades.
 
Dona Jóia dona
dona de tudo que é lindo:
do oiro cacaueiro
do café de frutos vermelhos
das brisas da nossa ilha.
 
Dona Jóia dona
dona de tudo que é triste:
meninos de barriga oca
chupando em peitos chatos;
negros de pezão grande
trabalhando pelos matos.
 
Ai! Dona Jóia,
dona de mim também –
Jesus, Maria, José
Credo! –
não me olhe assim-sim
que me pára o coração!
 
 

CANÇÃO DO MESTIÇO
 
Mestiço
 
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim

264
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.
 
Mestiço!
 
E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição.
 
Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
– mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.
 
Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...
 
Mestiço!
 
Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é... 
 
 

FRAGMENTO DE BLUES
(A Langston Hughes)
 
Vem até mim
nesta noite de vendaval na Europa
pela voz solitária de um trompete
toda a melancolia das noites de Geórgia;
oh! mamie oh! mamie
embala o teu menino
oh! mamie oh! mamie
olha o mundo roubando o teu menino.

265
 
Vem até mim
ao cair da tristeza no meu coração
a tua voz de negrinha doce
quebrando-se ao som grave dum piano
tocando em Harlem:
– Oh! King Joe
King Joe
Joe Louis bateau Buddy Baer
E Harlem abriu-se num sorriso branco
Nestas noites de vendaval na Europa
Count Basie toca para mim
e ritmos negros da América
encharcam meu coração;
– ah! ritmos negros da América
encharcam meu coração!
E se ainda fico triste
Langston Hughes e Countee Cullen
Vêm até mim
Cantando o poema do novo dia
– ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!
 
...logo com eles quero cantar
logo com eles quero lutar
– ai! os negros não morrem nem
nem nunca morrerão!     
 
 
MÃOS
 
Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.
Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.
 
Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra
o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da
ventura

266
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!
 
 
Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.
 
Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas
Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!
 
Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!
 
Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos
mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.
 
Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!
 
 

CANTO DE OBÓ
 
O sol golpeia as costas do negro
e os rios de suor ficam correndo.  
 
Ardor!  
 
Os olhos do branco
como chicotes
ferem o mato que está gritando... 
 
Só o água sussurante/calmo
corre prao mar
tal qual a alma da terra!

topo
 
 
O MAR 
 

267
A voz branca que está no mato
perde-se na imensidão do mar.
Lá vai!
O sol bem alto
é uma atrapalhação de cor.
-Abacaxi safo nona
carregozinho do barco!...  
 
Um tubarão passando
é um risco de frescura.
Lá vai! 
 
O barco deslizando
só com a vontade livre e certa do negro
lá vai!
........       

LITERATURA ORAL TRADICIONAL SÃO-TOMENSE

LITERATURA ERUDITA VS LITERATURA ORAL TRADICIONAL

1. Circuitos de Comunicação
 A literatura erudita apresenta-se sempre sob a forma de textos escritos, enquanto a
literatura tradicional que nos interessa se manifesta oralmente, quer ao nível da
produção, quer ao nível da transmissão.
 1.1. A oposição escrita/oralidade suscita uma primeira reflexão que diz respeito à
natureza da expressão em causa. A palavra inscreve-se no tempo e a escrita no espaço, o
que deixa supor que a primeira é muito mais efémera e fugaz do que a segunda. O que é
escrito pode-se reler, e nós temos tendência a considerar que é através dos manuscritos
ou dos livros que a memória dos homens e de uma cultura se constitui e se mantém.
Mas, na realidade, a escrita não é senão um meio de que nos servimos para guardar o
nosso património cultural. A palavra pode igualmente assegurar a transmissão e a
sobrevivência de um capital cultural, e a herança transmitida oralmente pode rivalizar

268
em termos de perenidade com as obras dos grandes autores. Se se prevê que estas
ultrapassem as barreiras do tempo e as fronteiras geográficas, pelo seu valor estético e
pela dimensão universal da sua problemática, não é menos verdade que a literatura oral,
apesar da ausência de um suporte material de fixação, persiste igualmente no tempo e
consegue estilhaçar as fronteiras geográficas — basta lembrar aqui a migração de
motivos de uma área geocultural para outra e a existência de versões muito semelhantes
de um mesmo conto-tipo em regiões muito distantes. Poder-se-ia mesmo dizer que a
literatura oral parece actualizar por toda a parte uma espécie de fundo arquétipo
universal, sobretudo na sua dimensão mítica. [...]
Com efeito, a literatura oral põe em jogo os códigos paraverbais e extraverbais
que a caracterizam. O código musical, por exemplo, mostra-se importante no campo da
poesia oral, que é frequentemente cantada durante os momentos de trabalho comunitário
com ritmo e cadência; o código quinésico, que regula os movimentos corporais, pode
funcionar enquanto complemento dos signos verbais quando alguém toma a palavra
para contar uma história ou lançar uma adivinha; o código proxémico, que regula a
estrutura significante do espaço humano, é igualmente pertinente para dar conta de
certas práticas ritualizadas da literatura oral; por fim, o código paralinguístico, ligado à
entoação, à qualidade da voz, ao riso, à ênfase, desempenha um papel decisivo na
constituição de todos os textos da literatura oral. O canal utilizado determina ou
condiciona o tipo de comunicação instaurada e as possibilidades de interacção entre o
código linguístico e os códigos paralelos.
 1.2. Analisemos agora os pólos do circuito de comunicação, isto é, o emissor e o
receptor. Na literatura erudita, o emissor é o escritor que programa e controla a
produção dos seus textos. Responsável e agente da enunciação literária, o escritor é um
indivíduo empírico historicamente situado. Podemos sempre identificá-lo e nomeá-lo,
desenhar o seu «perfil» socialmente modelado.
O estatuto do emissor da literatura oral mostra-se mais complexo. Esta literatura, já
o sublinhámos, engloba todos os discursos anónimos, transmitidos oralmente ao longo
do tempo, que fazem parte de um património cultural colectivo. É a comunidade que se
encarrega da transmissão desse património, pela voz de um conjunto indefinido de
sujeitos individuais.
Os «esquemas» [...] passam de intérprete para intérprete e sofrem, no acto de contar,
concretizações particulares, condicionadas ao mesmo tempo pelo contexto social e
situacional e pela imaginação criadora do sujeito que actua. Cada contador dispõe de
uma margem relativa de liberdade na actualização da tradição. Pode introduzir
inovações pontuais que enriquecem a tradição sem a alterar substancialmente: as várias
versões de um mesmo conto-tipo atestam esta liberdade relativa da instância de
emissão. [...]
Em síntese, diremos que o texto literário consagrado é sempre atribuído a um autor
determinado (aliás é interessante notar que o escritor se torna autor quando entra no
circuito de trocas próprio da instituição literária). Para os textos da literatura oral,
podemos sempre postular a existência de uma criação individual perdida num ponto
indeterminado de um passado longínquo mas, de um ponto de vista objectivo, é a
reprodução colectiva que lhes promove literalmente a existência, que os faz subsistir. O
sujeito anónimo que está na origem destes textos tradicionais multiplica-se numa
infinidade de sujeitos-emissores individuais quando nos colocamos no terreno do
desempenho.
 1.3. Vejamos agora o pólo da recepção. No caso da literatura consagrada, o receptor
identifica-se com o leitor. Este confronta-se com uma obra objectivada — quase sempre
sob a forma de livro — que pode descodificar em ritmos muito diferenciados. [...]

269
Completamente diferente é o estatuto do narrador e o tipo de comunicação na
literatura oral. As instâncias de emissão e de recepção estão in praesentia, a
comunicação é imediata e próxima. Existe mesmo uma reversibilidade possível entre os
dois pólos do circuito: o receptor pode tornar-se em qualquer momento o emissor, e
pode, no limite, condicionar o desempenho do contador com as suas intervenções,
questões, interpelações, etc. [...]
Os traços de ficcionalidade são bem perceptíveis na maioria dos textos da literatura
oral: são as fórmulas de recitação, os protocolos convencionais de apresentação e de
conclusão que nos situam imediatamente num mundo imaginário. O «Era uma vez...»
dos contos é uma fórmula que nos introduz exactamente no tempo-espaço míticos do
discurso.

Ana Cristina Macário Lopes, Analyse Sémiotique de Contes Traditionnels Portugais,


Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, pp. 16-20.)

A LENDA DO CANTA GALO

“Diz a lenda que, já lá vão muitos e muitos anos, outrora S. Tomé era o refúgio
de todos os galos do mundo. Viam-se galos por todas as partes da Ilha. Era
ensurdecedor o cocorococó dos galos.
A Ilha parecia estar sempre em festa por causa da algazarra e do cantar dos
galos, quase em todos os momentos e por todos os cantos. A alegria era infernal. Mas os
galos monopolizavam a Ilha, esquecendo-se de que não eram os únicos habitantes.
Havia pessoas que estavam contentes com os galos, por causa da sua alegria
contagiosa. Portanto, achavam adequado e apoiavam o barulho feito pelas aves. Outros
estavam indiferentes com a algazarra. Existia, no entanto, um terceiro grupo, o mais
numeroso, que achava impróprio o barulho feito pelos galos, encontrando-se, portanto,
zangados com os galináceos.
Não podendo aguentar por mais tempo tanto barulho, o terceiro grupo mandou,
através de um mensageiro, o seguinte aviso:
- Aconselhamo-vos a emigrarem e a fixarem-se num local muito afastado de nós.
Caso contrário, haverá guerra entre os nossos grupos no período de quarenta e oito
horas. O vencedor ficará no terreno.
Os galos, como eram muito educados e delicados, optaram pela primeira
hipótese, convocando imediatamente uma reunião cujo tema era a escolha do rei para
chefiar uma expedição que se iria processar imediatamente. A escolha recaía sobre um
galo preto, muito grande.
Depois dos preparativos, a emigração começou. Deram voltas e mais voltas às
ilhas e ilhéus, procurando incansavelmente um sítio bom, que reunisse todas as
condições para ter uma vida alegre. Depois de muito andarem e de muito procurarem,
passado um ano, encontraram o lugar ideal, que parecia criado de propósito para os
galos, fixando-se então aí.
Desde esse tempo, jamais se ouviu os galos cantarem desordenadamente de
norte a sul, de este a oeste, mas sim num lugar determinado e a horas certas. Então, os
habitantes das ilhas designaram esse lugar por Canta Galo.
Nos nossos dias, esse local ainda existe e surgiu um distrito com a mesma designação.”

270
in Contos Tradicionais Santomenses, Direcção Nacional da Cultura da República Democrática de S.
Tomé e Príncipe, 1984, pp. 47-51

Conto santomense 2 “A Tartaruga adivinhadora”

"a tartaruga e o imperador"

(desenho de Neves e Sousa)

A tartaruga adivinhadora*
.

271
Chegando uma ocasião, a Tartaruga que costumava a andar sempre no Palácio,
disse garantir que adivinhava qualquer sonho do Imperador, especialmente o que ele
tinha sonhado ontem e que ele era capaz de adivinhar o que era o sonho.
Uma vez, o senhor Imperador levantou-se de manhã muito cedinho, mandou
chamar o Tartaruga e disse assim, p’ra ele:
– Ó meu amigo Tartaruga! Você disse-me que qualquer pensamento que eu
tenho de noite, tu és capaz de dizer o que é! Você é capaz de dizer o que é que foi? Tu
és capaz de dizer o que ontem sonhei no meu sonho? Vamos lá a ver se sabe o que é!
Anda! Agora, diga-me lá!...
O Tartaruga, muito esperto, com o “casco tchibi-tchibi”, (muito inteligente) por
sua vez disse assim:
– Bom senhor Imperador dá-me licença que vá para minha casa, de maneira a
ver se sou capaz de dizer o que é…
O senhor Imperador disse que sim e o Tartaruga foi para casa por muitos dias e
nunca mais aparecia, sempre a estudar como é que vai saber o que o senhor Imperador
sonhou na semana passada, na sua cama. Meteu-se pelo mato, arranjou penas de muitos
pássaros, colocou-as no corpo a fingir que era pássaro, voltou para o Palácio e começou
a tremer:
– Hum… Hum… Hum…
Depois, a senhora Rainha, muito admirada disse:
– Olha este bicho! Se o Tartaruga cá estivesse, era muito capaz de dizer ao
senhor Imperador que pássaro é. Ele anda sempre no mato, é capaz de conhecer todos os
pássaros…
De maneira, que o senhor Imperador, disse assim:
– Olha; o Tartaruga é um bicho desgraçado. Ele disse-me que o meu sonho ele era capaz
de dizer, eu sonhei que era uma bala de izaquente [fruto de São Tomé] mas ele não há
maneira de adivinhar. Há uma semana que ele saiu p’ra estudar o assunto e nunca mais
apareceu com bala de izaquente.
O tartaruga ouviu esta conversa e fugiu imediatamente sem ninguém saber que
ele estava a fingir de pássaro, só para saber o sonho que o Imperador sonhou.
Nessa tarde o Tartaruga apareceu no Palácio e trazia uma bala de izaquente...
Vinha a rir, muito satisfeito e quando viu o senhor Imperador, gritou assim:
– Ó senhor Imperador! Cá estou eu outra vez! Aqui está a coisa com que o
senhor, sonhou! A bala de izquente!...
E mostrou a bala de izquente. O senhor Imperador achou muita graça e pagou a
aposta que era de muito dinheiro, ao esperto do senhor Tartaruga...

*transmitido por Manuel do Sacramento Pontífice (Sum Mé Cléclé)*


*(histórias populares santomenses compiladas por Fernando Reis, em "Soiá II", 1977)

Os dois caçadores e o leão


(Vimbundos de Caluquembe)

«Eteke limue akongo avali va ka yeva. Va ipa ombambi. Noke va ñualekelã longuli.
Umue hati kukuavo: «lia ombambi ame ndi pekela pokati». Ukuavo hati: «Nda tua
endele vatatu nda o pekela pokati, puãi tu vavali lika, o pekela ndati pokati?» Ukuavo
wa kopa uti unene yu wa pekela pokati kuti lukongo ukuavo. Osimbu ukongo wavali wa

272
lia ombambi onguli yeya yu ya lia ukongo ukuavo. Ukuavo ombambi wa yi lia. Eci kua
ca wa enda kimbo. Vo pulísa vati: «ukuene wo sia pi?» Eye hati: «ndo sia momo wa
yonguile okupekela pokati. Onguli yo kuata».«Pokuyuvuila ovitangi ka ci telã okulinga
tuti: «ndi linga ndeci nda panga!» Ci sukila vo okuyevelela ovisimilo via va kuavo loku
tala nda he ci tava ocili okulinga eci tua panga!»

«Dois caçadores foram à caça. Mataram um bambi. Depois encontraram um leão. Um


dos caçadores disse: «come o bambi, enquanto eu durmo entre os dois!» O outro
respondeu-lhe: «se fossemos três, tu podias dormir «entre dois», mas não somos senão
dois, como podes dormir «entre dois?» O primeiro pegou num tronco de árvore que ele
estendeu no chão e dormiu entre este tronco e o seu companheiro. Enquanto este último
estava comendo a seu bambi, veio o leão e devorou o que estava a dormir perto do
tronco. O outro caçador que não tinha sido comido foi-se para a sua aldeia ao nascer do
sol. Quando lhe perguntaram: «mas onde está o teu companheiro?» Ele respondeu: «ele
quis absolutamente dormir «entre dois», e o leão comeu-o».
Conclusão: «para evitar as dificuldades e triunfar na vida, é preciso saber adaptar-se às
circunstâncias, aceitar as recomendações dos outros e não desejar, a todo o custo, o
impossível».

CONTOS

O crocodilo que se fez Timor

Disseram, e eu ouvi, que desde há muito séculos um crocodilo vivia num


pântano. Este crocodilo sonhava crescer, ter mesmo um tamanho descomunal. Mas a
verdade é que ele não era só pequeno, como vivia num espaço apertado. Tudo era
estreito à sua volta, somente o sonho dele era grande.
O pântano é de ver, é o pior lugar para morar. Água parada, pouco funda, suja,
abafada por margens esquisitas e indefinidas. Ainda por cima, sem abundância de
alimentos ao gosto de um crocodilo.
Por tudo isto, o crocodilo estava farto de viver naquele pântano, mas não tinha
outra morada.
Ao longo do tempo, milhares de anos, parece, o que ia valendo ao crocodilo era
o ele ser grande conversador. Enquanto estava acordado, conversava, conversava... É
que este crocodilo fazia perguntas a si mesmo e, depois, como se ele próprio fosse
outro, respondia-se-lhe.
De qualquer maneira, conversar assim, isoladamente, durante séculos, gastava os
assuntos. Por outro lado, o crocodilo começava já a passar fome. Por dois motivos:
primeiro, porque havia naquele charco pouco peixe e outra bicharada que lhe conviesse
para a refeição; segundo, porque só muito ao largo passava caça de categoria e tenra:
cabritos, porquinhos, cães...
Muitas vezes, exclamava para si próprio:
- Que grande maçada viver com tão pouco, e num sítio destes!
-Tem paciência, tem paciência... - dizia a si próprio.
-Mas viver de paciência não é coisa que alimente um crocodilo - recalcitrava-se-
lhe.
Naturalmente que tudo tem um limite. Incluindo a resistência à fome. E o
crocodilo entrou a sentir uma fraqueza que lhe quebrava o ânimo e o definhava. Os seus
olhos iam-se amortecendo e já quase não podia levantar a cabeça e abrir a boca.
- Tenho que sair deste lugar, e procurar caça mais além...

273
Esforçou-se, galgou a margem e foi ganhando caminho através do lodo e,
depois, da areia. O sol estava a pino, aquecia a areia, transformava todo o chão em
brasas. Não havia safa, o crocodilo perdia o resto de suas forças e ia ficar, ali, assado.
Foi nesta altura que passou pelo sítio um rapazinho vivaz que exprimia os seus
pensamentos cantarolando.
- Que tens, Crocodilo, ha!, como tu estás?! Tens as pernas partidas, caíu-te
alguma coisa em cima?
- Não, não parti nada, estou completamente inteiro, mas apesar de ser pequeno
de corpo, há muito não aguento com o meu próprio peso. Imagina que nem forças tenho
já para sair deste braseiro.
Respondeu o rapazinho:
- Se é só por isso, posso ajudar-te - e logo de seguida, deu uns passos, carregou o
crocodilo e foi pô-lo à beira do pântano.
No que o rapazinho não reparava, era que, enquanto carregava o crocodilo, ele
se animava a ponto de arregalar os olhos, abrir a boca e passar a língua pela serra dos
seus dentes.
- Este rapazinho deve ser mais saboroso do que o que provei e vi em toda a
minha vida - e imaginava-se a dar-lhe uma chicotada com a cauda para adormecê-lo e
depois, devorá-lo.
- Não sejais ingrato - diz-lhe o outro com quem ele conversa e era ele mesmo.
- A fome tem seus direitos.
- Isto, é verdade, mas olha que trair um amigo é um ato indigno. E, este, é o
primeiro amigo que tens.
- Então, vou deixar-me ficar na mesma, e morrer à fome?
- O rapazinho fez-te o que era preciso, salvou-te. Agora, se quiseres sobreviver,
trabalha, e procura alimento.
- Isso é verdade...
E quando o rapazinho o pousou no chão molhado, o crocodilo sorriu, dançou
com os olhos, sacudiu a cauda e disse-lhe:
- Obrigado. És o primeiro amigo que encontro. Olha, não posso dar-te nada, mas
se pouco mais conheces do que este charco, aqui, tão à nossa vista, e se um dia quiseres
passear por aí fora, atravessar o mar, vem ter comigo...
- Gostava mesmo, porque o meu sonho grande é ver o que mais há por esse mar
a fora.
- Sonho... falaste em sonho? Sabes, eu também sonho... - arrematou o crocodilo.
Separaram-se, sem que o rapazinho sequer suspeitasse de que o crocodilo
chegara a estar tentado comê-lo. E ainda bem.
Passados tempos, o rapazinho apareceu ao crocodilo. Já quase o não reconhecia.
Via-o sem sinais das queimaduras, gordo, bem comido...
- Ouve, Crocodilo, o meu sonho não passou e eu não aguento mais cá dentro.
O prometido é prometido... Aquele meu sonho... Mas com tanta caça que tenho
arranjado, quase me esquecia dele. Fizeste bem em vir lembrar-mo, Rapazinho. Queres,
agora mesmo, ir por esse mar afora?
- Isso, só isso, Crocodilo.
- Pois eu, agora, também. Vamos então.
Ficaram ambos contentes com o acordo. O rapazinho acomodou-se no dorso do
crocodilo, como numa canoa, e partiram para o alto mar.
Era tudo tão grande e tão lindo!
O mais surpreendente para os dois, era o próprio espaço, o tamanho do que se
estendia à sua frente e para cima, uma coisa sem fim. Dia e noite, noite e dia, nunca

274
pararam. Viam ilhas de todos os tamanhos de onde as árvores e as montanhas lhe
acenavam. E as nuvens também. Não sabiam se eram mais bonitos os dias se as noites,
se as ilhas se as estrelas. Caminharam, navegaram, sempre voltados para o sol, até o
crocodilo se cansar.
- Ouve-me, Rapazinho, não posso mais! O meu sonho acabou...
- O meu não vai acabar.
Ainda o rapazinho não tinha dito a última palavra, o crocodilo aumentou,
aumentou de tamanho, mas sem nunca perder a sua forma primitiva, e transformou-se
numa ilha carregada de montes, de florestas e de rios.

De Canto e Lenda Maubere, recolhido por Fernando Sylvan

O gigante e a lua

Noutros tempos habitava em Timor um gigante chamado Beilera, duma estatura


tão desmedida, que, pondo-se de pé, facilmente com a mão chegava às estrelas.
Uma vez, um filho do gigante, estando ao colo do pai, estendeu-se o braço e com
a mão sujou a Lua com banana assada e cinza.
Este gigante teve um fim horrivelmente trágico. Casara. Ainda a noite não tinha
envolvido inteiramente na Terra no seu negro manto, já o gigante, cansado, recolhera
mais tarde. Já no leito, repara esta que entre os dois se interpusera uma jibóia gigante,
de grossura e comprimento assombroso.
Rapidamente agarra a espada (catana) de guerra do gigante e a golpes repetidos a
ataca. Só depois e já sem remédio, veio a reconhecer que o gigante se esvaía em sangue,
morrendo juntamente com a jibóia.
Na planície de Quirás, no posto de Fatu-Berilo, região de Manufai, foi enterrado
o gigante Beilera, mas para caber nas covas que lhe abriram, tiveram de o dividir em
sete partes.

De Mitos e Contos do Timor Português, de Correia de Campos

LENDAS

A princesa das flores e lágrimas

275
Soubera um príncipe que num reino vizinho vivia uma princesa de tão
surpreendente beleza que, ao falar, deitava flores pela boca e, ao chorar, lágrimas de
ouro.
Desejando-a em casamento, foi o príncipe procurar o irmão da princesa e propôs
a este, como em desafio, promovessem, segundo o uso tradicional, um combate entre
dois galos, um do príncipe e o outro do irmão da princesa. Se o galo deste último
vencesse o do primeiro, este perderia o reino; na hipótese contrária, o adversário dar-
lhe-ia a irmã.
Quis a sorte que saísse vencedor o galo do apaixonado príncipe, que assim
impôs a sua vontade. Marcado o encontro com a noiva na fronteira dos dois reinos, o
príncipe logo partiu para arranjar luzidio cortejo.
Devido a um equívoco havido com a data marcada, a princesa chegou ao local
combinado dois dias antes do príncipe. Uma escrava, enquanto dormia, amordaçou-a
para não gritar e arrastou-a até um alto escarpo, donde deitou ao mar. Seguidamente foi
ocupar-lhe o lugar, apoderando-se das vestes da princesa.
Realizado com toda a pompa o casamento, a falsa princesa nem por uma vez
pronunciara qualquer palavra. Mas o príncipe, já desconfiado, perante o mutismo da
consorte que durava três dias, viu-se forçado a bater-lhe para a faz gritar e chorar,
reconhecendo assim que a noiva não era a sua escolhida, porque não via as flores
derramadas da boca de sua amada, nem as pepitas de ouro, em que se transformavam as
suas lágrimas.
Julgando que fora propositadamente ludibriado pelo cunhado, dando-lhe outra
mulher, pensou apoderar-se do pretenso culpado pela astúcia, para o que, aparentando
muita amizade o convidou a visitar o seu reino.
A princesa, porém, ao ser deitada ao mar, tinha sido salva por um crocodilo,
dizendo-lhe este que ali estava para proteger, por ser seu avô.
O crocodilo todos os dias punha a princesa ao corrente do que se ia passando.
Logo que soube da traição feita ao irmão, a princesa pediu ao crocodilo que a
levasse a vê-lo. Irradiando de si uma suave claridade, o jacaré transportou-a docemente
até à praia.
A princesa dirigiu-se aos guardas da prisão, aos quais pediu que a deixassem ver
o irmão. Ao falar caíram-lhe flores pela boca, como de costume, o que convenceu logo
os guardas.
Entretanto na prisão, ao ver o príncipe, seu irmão, de gonilha (instrumento de
madeira, usado pelos nativos, para os presos não poderem fugir) aos pés e com os
braços fortemente ligados, chorou aflitivamente, caindo-lhe dos olhos belas pepitas de
ouro.
Acabada a visita, o irmão pediu-lhe que escondesse as flores e a pepita de ouro,
porque se a falsa princesa soubesse que ainda era viva, certamente os mandaria matar. A
princesa retirou-se, e ao outro dia apareceu novamente aos guardas para ir ver o preso, e
caindo-lhe, como na véspera, ao falar, flores pela boca.
Os guardas da prisão foram contar ao príncipe tudo quanto tinham presenciado
naqueles dois dias. O príncipe resolveu então vestir-se como um nativo para, ao outro
dia, se certificar das afirmações que lhe eram feitas.
Entrando abruptamente na prisão, e ao ver as lindas pepitas de ouro, que corriam
do meigo rosto da princesa e as braçadas das belas e aromáticas flores, que suplicava,
bem como ao irmão, mil perdões e dizia que só com a princesa desejava casar. Mas esta
respondeu ser impossível poder algum dia casar com ele, por ter ficado conspurcado
pela sua união com a escrava. Todavia, o príncipe tanto implorou, que ela por fim
condescendeu em casar com ele, mas com a condição de mandar queimar num forno a

276
escrava, e de dar metade do seu reino ao cunhado como indenização. É claro que o
príncipe aceitou e executou estas duas condições.

De Mitos e Contos do Timor Português, de Correia de Campos

Uma catanada corta a cabeça das estrelas

A mulher velha costumava ir todos os dias ao céu buscar o fogo. Tinha um filho
de mau gênio, que certa vez, por sua mãe se demorar mais do que habitualmente, corto a
árvore por onde ela subira. E assim o céu até então assentado na árvore, desabou,
soltou-se e foi ocupar o lugar que tem hoje, subindo no espaço.
Em seguida, e para evitar qualquer castigo, foi falar com tio Beiduro, contando-
lhe a maldade que fizera à mãe, cortando-lhe a árvore pela qual ela deveria ter descido.
Indignado, o tio Beiduro convidou Berloi, Carloi que, Beicolicáteri e Beibercoli a fim
de que todos fizessem guerra ao céu.
Por seu lado, Deus determinou às estrelas (que eram reis) dessem combate aos
homens com todas as forças ao seu alcance. Forças que eram os animais da criação.
Vagas sucessivas de soldado atacaram de repente os guerreiros e fizeram-nos
recuar.
Porém, os guerreiros contra-atacaram sem parar e o resultado era o mesmo -
tiveram de recuar, em virtude do ataque cerrado dos animais.
Depois de vários anos de fracassos, os homens convenceram-se que era
impossível vencer os animais pela força e recorreram à astúcia. Para dar combate aos
lacraus, serpentes e outros animais venenosos, incendiaram os arbustos e árvores: para
lutar contra as formigas, pintaram as árvores com uma fruta oleosa chamada cámi:
contra as vespas e abelhas, deram-lhes mel envenenado e contra os restantes animais
carnívoros a tiram-lhe a carne que deveriam comer.
E deste modo foram destruídos os animais inimigos do homem e os heróis
Berloi, Carloique, Beicolicáteri e Beibercoli surgiram instantaneamente no céu e
cortaram a cabeça às estrelas. A partir daí, quando vem a noite, o sangue jorra dos
corpos decapitados que reluzem no firmamento.
Deus não se vingara do corte das cabeças, mas, voltando-se para os heróis, disse-
lhes sabiamente: "Vós, que fostes mais fortes que as estrelas, levai para a Terra essas
colunas e pedras redondas", apontando os objetos. E acrescentou: "Mais ainda vos quero
dar como recompensa três laranjas, tantas quantas os meus filhos"
Beiduro comeu logo a sua pelo caminho, mas Berloi e Carloique guardaram.
Quando teve conhecimento da sorte dos seus antigos companheiros de luta,
Beiduro interpelou Deus, pedindo-lhe para guardar também uma laranja, mas Deus
entanto, para que Beiduro não ficasse tão amargo, ofereceu-lhe para guardar também
uma laranja, mas Deus respondeu-lhe que só tinha a três que já dera, tantas quantos os
seus filhos. No entanto, para que Beiduro não ficasse em desigualde, foram ter com
Deus e o Ser Supremo decidiu recompensá-los outra vez, ensinando aos dois a ciência
das segundas sementeiras.

277
De Mitos e Contos do Timor Português, de Correia de Campos

A ilha

Oi, meninas e meninos. Eu sou o professor Komodo, e quero contar histórias


para todas as crianças do Brasil. Acabo de chegar lá no Timor-Leste, que é um país
longe do Brasil, muito longe mesmo daqui. Tenho vigiado muito pelo mundo para
conversar com as crianças, aquelas que são estudiosas, obedecem aos pais a aos
professores.
Lá no Timor-Leste dizem que sou um professor muito careta, porque vivo
falando de crocodilos, e tenho um nome esquisito. Mas o meu nome Komdo é porque lá
perto do Timor, num país chamado Indonésia, há uns crocodilos enormes que têm este
nome Komodo. Mas vamos às histórias.
Havia um lugar chamado Celebres, em que o sol ficou tão quente, mas tão
quente, que a águia começou a secar, as árvores a morrer e os animais resolveram fugir
de lá. Sem o cantar dos pássaros, sem água e sem vegetação, as pessoas deixaram a ilha
de Celebes.
Um crocodilo muito teimoso não queira sair da sua morada, e ficou muito fraco
por não ter o que comer. A morada que era na lagoa ficou seca e, então resolveu
também deixar o lugar, mas não tinha forças para se locomover, ainda mais com aquela
escama grossa e pesada que ele tem, além da cauda que também não é leve. Não
conseguiu nem sair do lugar, pesadão como era.
Não foi só o crocodilo que ficou sozinho. Havia um menino muito preguiçoso,
malcriado e teimoso igual ao crocodilo e que não obedecia a ninguém, que também não
quis sair de Celebres. Então, o pai dele deixou um pouco de água e de comida, antes de
partir com o restaurante da família.
A água que o pai dele deixou, guardada na sombra, com aquele calor, estava
ficando pouca, dentro de um pote feito de barro. A comida só dava para poucas
refeições. Aí, o menino se arrependeu da rebeldia e de ter sido malcriado, e quis
acompanhar os pais que já estavam muito longe. Impossível mesmo de alcançá-lo. O sol
ardia demais, e sem nuvens no céu, descalço, continuou andando. Folhas secas aqui e
ali, pedregulhos e terra quente queimavam a sola dos pés do menino. Sem árvores que
dessem sombras e sem, pelo menos, algumas frutas para comer, cansado, com a mochila
feita de cipós, levada a sombra de uma grande pedra, onde antes era uma lagoa. Tudo
era silêncio, a não ser gravetos que, sob sol ardente, às vezes estalavam. Olhando com
os olhos quase fechados, pelo calor e cansaço, viu do outro lado da lagoa seca uma coisa
grossa e cascorenta se mexer. Oba! Exclamou o menino, contente por ver alguma coisa
ainda com vida.
O menino se aproximou daquilo, e viu que era um crocodilo quase morto pela
fome e sede. Então, repartiu a comida e a água com ele,o crocodilo comeu e ficou quase
forte, deu uma coalhada na cauda, levantando pó, e tentou sair do local. Mas ainda um
pouco fraco, um pequeno relevo na borda de onde antes era lagoa o enroscou. O
menino, então, puxou o crocodilo pela cauda, sentou-se ao lado dele e perguntou:
- Você está bem? O crocodilo, de olhos arregalados, olhou de lado para o
menino, lambeu os beiços, satisfeito pela refeição, respondeu que sim e disse: Não
podemos ficar aqui. Você é meu amiguinho a partir de agora, venha comigo, e vamos
encontrar um lugar para viver, quem sabe, uma ilha no grande oceano. Lá no mar,
monte nas costas e, como eu sei nadar muito bem, logo encontraremos algum lugar com

278
muita comida para nós. O menino sorriu e fez bilo-bilo no nariz do crocodilo, que sorriu
abrindo aquele bocão cheio de dentes agudos.
Até chegar ao mar, estava longe, demorava. O crocodilo começou a sentir fome,
olhava aquele menino queimadinho pelo sol, corpo limpinho, pensou em come-lo. Mas
mudou de idéia, pois seria muita ingratidão comer o menino que o salvou, foi solidário e
amigão.
Chegaram à praia, e o menino montou nas costas do crocodilo. Era cascudo,
duro mesmo, mas como não havia almofada, teve de agüentar firme sentado, com as
pernas abertas, sobre o lombo do crocodilo, e seguiram mar afora.
Em alto mar, um peixe grande, muito distraído, quando passava em frente do
crocodilo foi abocanhado. O crocodilo parou de nadar e, após comer o peixe, sentiu uma
coisa estranha, começou a crescer e se esticar, e o menino teve de juntar as pernas, o
crocodilo foi crescendo, crescendo... E se transformou numa grande ilha comprida, em
forma de crocodilo, cheia de árvores frutíferas e com muitas flores. O menino deu à ilha
o nome de Timor, que significa oriente e, como símbolo do Timor, ficou o crocodilo.

A Ilha (do livro Crocodilo Timorense, de Paulo Veiga)

No princípio, há muitos séculos

Em tempos passados, já muito distante, partiram para We-Hali alguns príncipes


de Samoro, a fim de aí contratarem a princesa que deveria casar com o príncipe desta
terra.
Quando chegaram a We-Hali, já ali encontraram gente de vários reinos, a
solicitar também a real donzela.
Os de We-Hali, manhoso, enfeitaram muito bem mulheres de nobre estirpe e
apresentaram-nas aos emissários, para que entre todas, escolhessem aquela que mais
prendesse os seus olhares.
Os de Samoro, antes que penetrassem no palácio real, em conversa amiga com
as serviçais do régulo, tentaram saber qual, de entre elas, será a verdadeira princesa.
Estas responderam que nenhuma daquelas era a verdadeira princesa, mas sim uma outra
que estav na cozinha, vestida de criada.
Assim, quando os de Samoro entraram no palácio para escolher sua rainha, não
se decidiram por nehuma das que os de We-Hali apresentaram aos seu olhares, mas
indicaram aquela criada que estava a trabalhar na cozinha.
Os de We-Hali, vendo isto, opuseram-se, não concordaram.
Os de Samoro, cientes de que os We-Hali não satisfariam os seus desejos,
combinaram levar a princesa, e fizeram-lho saber secretamente por meio de suas aias.
Esta, informada de tão arrojada decisão, concordou jubilosa.
Então, à meia noite em ponto, quanto todos dormiam, os de Samoro, com suas
artes mágicas, tomaram a princesa e fugiram logo naquela noite, caminhando sempre,

279
até que atingiram logo naquela noite, caminhando sempre, até que atingiram as
fronteiras de We_Hali, antes de romper o dia.
Deste modo, chegaram à margem duma ribeira chamada We-Nunuk.
De repente, a ribeira encheu, e apareceram à flor da água inúmeros crocodilos a
defender a sua rainha.
Então esta, sendo para eles a "Filha do Sol" e, por isso, senhora de todos os
elementos, falou-lhes amigavelmente e fez com eles o seguinte pacto: deviam
transportá-la, a ela e aos homens de Samoro, para a outra margem da ribeira. Feito isto,
os de Samoro e todos os seus descendentes, de geração em geração, jamais lhes fariam
mal, nem comeriam nunca a sua carne.
Os crocodilos aceitaram a proposta da princesa e puseram-na do lado de lá da
ribeira, a ela e a todos quantos vinham no seu séquito.
E depois que passou toda a gente de Samoro, as águas da ribeira começaram a
subir e apareceram ainda mais crocodilos à superfície, a barrar a passagem aos de We-
Hali, que vinham em perseguição dos de Samoro, a fim de se apoderarem novamente da
sua rainha.
Já na outra margem, os de Samoro deram largas ao seu regozijo pela vitória
alcançada, e inda hoje continuam a cantar:
"Gabavam-se de que We-Nunuk levava muita água,
Mas os de Samoro passaram-na a pé enxuto!"
Devido a esta lenda, os de Samoro, ainda hoje, têm em grande veneração os
crocodilos, não lhe fazem mal e chamam-lhe avô.
Quando, entram em qualquer represa das ribeiras onde possa haver crocodilos,
põem -se a dizer:
"Avô, não faças mal, nem mordas os teus netos!..."

De Textos em teto da Literatura Oral Timorense, recolhida por Artur Basílio de Sá

280
LITERATURA GUINEENSE

Hélder Proença 

VIDA E OBRA

Escritor da Guiné–Bissau, envolveu–


se, nos anos 70, no movimento
independentista do seu país, abandonando
os estudos liceais e partindo para a
guerrilha em 1973. Após o 25 de Abril,
regressou a Bissau, prosseguindo os seus
estudos.
Foi responsável-adjunto pelo sector de
educação na região de Bolama e professor de história. Frequentou, em 1979 e 1980, um
curso de Planificação Regional no Rio de Janeiro. De regresso à Guiné, trabalhou como
quadro no ministério da cultura, sendo ainda deputado na Assembleia Nacional Popular
e membro do Comité Central do PAIGC.

281
Tem colaboração nas publicações Raízes (cabo-verdiana), África (portuguesa),
Libertação e O Militante, estas duas ligadas ao PAIGC.
Hélder Proença começou por se dedicar à literatura era ainda adolescente,
escrevendo poemas anticolonialistas, de afirmação da identidade nacional, que
acompanharam a sua actividade política. Os textos desta fase foram reunidos no volume
Não Posso Adiar a Palavra, editado apenas em 1982. Este carácter panfletário foi-se
atenuando progressivamente, embora o autor nunca tenha descurado uma vertente de
intervenção política e social. Considerado uma das grandes figuras da nova literatura
guineense, escrevendo tanto em português como em crioulo, foi o co-organizador e
prefaciador da primeira antologia poética do seu país Mantenhas Para Quem Luta!
(1977). Alguma da sua produção continua inédita.

http://web.educom.pt/p-ccomum/2/biblioteca/biografias/guine.htm

De entre os poetas revelados nas primeiras antologias referidas, poucos


prosseguiram o ofício, com poesia dispersa. Hélder Proença é um deles, publicando,
em 1982, Não posso adiar a palavra, revelando-se, então com 26 anos, um poeta
«amadurecido» pelo tempo e pela visão desapaixonada do momento. Sem se
desvincular da enunciação ideológica (alguns poemas já haviam sido publicados), a sua
poesia já evidencia, de maneira sugestiva, o labor consciente que se manifesta nos
níveis formalizantes da mensagem literária: a concertação tecida da matéria sonora, das
imagens e da rítmica e até da utilização gráfica da página. Nessa performance técnico-
formal, o tecido social e ideológico engendra uma linguagem simbólica, transfigurada
do real, mas ainda vinculadamente radicada nele. Mas até os temas se diversificam:
além da celebração da pátria e dos heróis, o sentimento pátrio harmoniza-se com o
amoroso e até o erótico e o sujeito é, então, simultaneamente aquele que pensa e sente,
ama e odeia, ri e chora. É a catarse dos lugares comuns e o triunfo do homem pleno que
se deixa envolver pelo fascínio da volúpia e se verticaliza na reivindicação de uma
pátria de cidadãos individualizados.
O próprio macrotexto convida-nos a essa procura de discursos paralelos. Divide--se
em três partes: «As trincheiras também cantam, amor», «Entre mim e o canto, a poesia»
e «Vem, Pátria, nesta proposta do amanhecer». E o último poema é também um
manifesto: «Juramento». 

(Inocência Mata, “A Literatura da Guiné-Bissau” in Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa,


vol. 64, Pires Laranjeira, Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p.362)

Não posso adiar a palavra

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

282
Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terrae em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a “Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra”

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus


no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!

 RECENSÃO CRÍTICA

Os especialistas de poesia africana de expressão lusófona têm em alta estima os


escritos de Hélder Proença, vendo nele o promotor por excelência da literatura da
Guiné-Bissau. Interpretação problemática, visto que, segundo Manuel Ferreira, essa
literatura se caracteriza sobretudo pela sua quase-inexistência e pela dispersão extrema
dos contos ou provérbios que a constituem.
A publicação desta colectânea dá seguimento a textos publicados em 1977 em
Mantenhas para Quem Luta! (A Nova Poesia da Guiné-Bissau) e desenvolve os seus

283
temas primaciais. A palavra-chave é, naturalmente, o termo povo, cujo significado de
denotação abrange todas as vítimas da opressão estrangeira, mas cuja carga conotativa é
muito mais ampla. Nela se integram todos os valores morais individuais: esperança
irrecusável em “um amanhecer diferente” (p. 16); certeza de promover uma pátria do
humano, modelo ideal de toda e qualquer comunidade humana: “Nós avançamos no
lamaçal quente da história / mas firmemente nos nossos passos.” (p. 17); crença na
positividade do ardor revolucionário: “Nós somos / aqueles que dia e noite / fazem com
suas mãos / os alicerces da vida” (p. 20); e isso permite “olhar com confiança / o
amanhã que hoje construímos” (p. 31), em pugnacidade contra todas as formas da
exploração humana: “porque o povo jamais dormiu no silêncio!” (p. 35).
Ante esta poesia, porém, situamo-nos nos antípodas duma visão idealista e
moralística do povo, como a que é perfilhada, por exemplo, por Michelet. É evidente
que, para o autor, a ideia de povo se identifica, como em natural osmose, com o PAIGC.
Um poema é a este dirigido como homenagem e Amílcar Cabral é lembrado como
ponto de mira duma poesia cantada, duma poesia-acção, destinada a alimentar o
entusiasmo popular e a cobri-lo de glória (p. 86). O Partido é o indispensável catalisador
que converte em actos as virtudes inerentes às massas. Sem ele nenhuma progressão
seria possível — e daí a ansiedade (p. 68) que toma o militante na expectativa duma
decisão importante dos dirigentes.
Em tal situação, o artista não pode fazer mais do que dedicar-se de corpo e alma à
causa do povo (ou do Partido). Galvanizar as energias, mobilizá-las na luta contra o
invasor, incitar os camponeses-guerrilheiros à firmeza com a esperança num
«amanhecer diferente» — esses são os temas dominantes dos versos, que no entanto não
se confundem com o discurso da propaganda revolucionária. Não são formuladas
palavras de ordem para o dia a dia, não se denuncia ninguém à vindicta popular. E a
visão é, de facto, muito mais ampla do que isso. Traz a marca duma metafísica popular
que desvenda a “harmonia maravilhosa / da morte e nascimento” (p. 54) e, através dela,
a contribuição da degenerescência física para a regeneração das forças naturais. Essa
ideia relaciona-se, aliás, com o ideal revolucionário, para o qual a morte individual
contribui para preparar a vitória final: “prontos a morrer hoje / para ressuscitar amanhã /
no festim do povo.” (p. 31). O combatente, com a consciência da sua pequenez pessoal,
ignora o sentimento da morte desde o momento em que pensa em si mesmo como um
do da cadeia revolucionaria (ver L’Espoir de Malraux).
Esta poesia, que assim reforça o discurso dos combatentes, desenvolvendo ao
máximo o seu aspecto ético e humanitário, não é nova para o leitor ocidental. Éluard,
Aragon, também sentiram a urgência de pôr os seus dotes de escritores ao serviço de um
empenhamento político e ideológico, quando de situações em que os homens
confrontavam os seus pontos de vista mesmo na tortura e nos massacres. Assim se
forjou a apologia incondicional dos Partidos Comunistas francês ou soviético por
Aragon (La Diane Française, Hourrah I’Oural).
A opção por um campo ideológico, nestes poetas franceses, foi a condição que
tornou possível a ressurreição de um género épico que havia sido posto de parte desde
Victor Hugo. O mesmo não se pode dizer de Hélder Proença, para quem o alistamento
pessoal sob a bandeira do PAIGC motivou versos de evidenciada sensaboria, como
estes: “Ter confiança no Partido / é desbravar o mato de injustiça, abusos e humilhações
/ é aproximar a madrugada que além aponta / é ter em nós a certeza na vitória!” (p. 31).
A palavra de ordem política nunca pôde tomar o lugar da inovação poética.
Mas também quando Proença põe de lado o desígnio de propaganda para nos fazer
compartilhar o seu sentimento amoroso incorre por vezes numa puerilidade exemplar:
“Quando teu olhar / se afoga / na sensibilidade do meu sorriso / e palavras enlutadas de

284
rosas / se congelam / no divórcio das nossas línguas / descubro no Himalaia do teu
corpo / o crepúsculo incomunicável do inverno Moscovita.” (p. 42). Estamos aqui muito
longe dos achados de linguagem de Aragon quando canta a sua devoção a Elsa ou de
Paul Éluard ao escrever sobre a morte de sua mulher Nush: “Mon amour si léger prend
le poids d’un supplice”.
Poderá objectar-se que Proença perfilha uma visão universalizante dos
acontecimentos e por aí ultrapassa os limites histórico-geográficos da causa que
defende: a luta pela libertação travada na Guiné-Bissau toma o valor de exemplo ao
realizar-se na ordem e no respeito sacrossanto pela liberdade. Inscreve-se desse modo
num passado imemorial de lutas contra as dominações estrangeiras. A “Ode a
Abomey” (p. 47), que é sem dúvida um dos melhores momentos do livro, presta
homenagem ao rei do Daomé, Behanzin, pela sua “rebelião” e a sua “insubmissão”, com
a crença num “maravilhoso paraíso onde impera / a liberdade, o trabalho e a felicidade!”
(p. 24). Decerto que o tempo do combate é o da euforia sem nuvens; mas ninguém
ignora que, passado esse tempo, a reconstrução do país levanta dolorosos problemas e
que a alegria popular dá lugar às desilusões ante aquilo mesmo que era objecto duma
sacralização generalizada.
Este texto terá de ser lido, consequentemente, sob a perspectiva da circunstância
histórica que lhe determinou os temas e os destinatários. Fora dela, perde muito do seu
poder de galvanizar multidões. Mas bastará o seu testemunho para lhe assegurar valor
literário autêntico? 

Pierrete e Gérard Chalendar [Tradução de A. Salema] in Revista Colóquio/Letras. Recensões


Críticas, n.º 75, Set. 1983, p. 106-107.

NAS NOITES DE N’DJIMPOL 

Nas noites de N’djimpol


vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro.

Vi-os nas ondas tenebrosas


enfrentando e conquistando!

Vi braços robustos e livres


sonho campos loiros
espigas dardejando ao sabor do vento
brisas e pássaros cantando
sol e flautas beijando o suor fecundante.

Nas noites de N’djimpol


Vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
285
conquistando o caudal do futuro...

Vi-os nas ondas tenebrosas


enfrentando e conquistando

Sim,
Vi nas noites de N’djimpol
sonho mamãe terra
sonho compassos rítmicos no capinzal
dilatando a fé do homem-terra
o horizonte e o brilho das nossas mãos.

Oiço o grito das brisas loiras...


na imensidão farta dos campos
sim mamãe terra
firmemente sonho
na certeza gritante
de sermos loiros e fortes
            como espigas e o sol
fortes e loiros…
Mamãe terra
Sonho mas juramos-te!

ODE A ABOMEY[1]
 

«L ‘univers tient en oeuf que la terra desire.»


BÉHANZIN, 1858-1889. 

Há 240 anos
vi no horoscópio[2] da história
Abomey em prontos
vi-te de pé, Abomey
na sucessão vertiginiosa
de nove reinados

Vi também
na mesma altura
a caravela, a cruz
as quinquilharias
e Cristo eras tu!
Tu que pela graça do Espírito Santo
recebias homens em correntes imobilizados

286
            Aqui foi Ouidah[3]
Onde mercadorias humanas
redimiam-se sob «negras bandeiras da fome» e sangue.

Capitão Ambrósio[4]
aqui foi Abomey
há 190 anos
estes homens estendidos em longas proas
também foram
o Harlém[5] santificado pela bandeira das quinas
Aqui foi Abomey e Ouidah, capitão Ambrósio
e tu bandeira de armilar esfera – a civilização.

O ceptro à Agadja[6]
a porcelana Zinli[7] em tam-tam fúnebre
junto a Glélé[8] e suas donzelas eternas
            ainda repousam
a branca bandeira da hipocrisia

            à paternidade dos Panteras[9]


Tudo que em Cristo e por Cristo deixastes
            testemunham ainda a tua LusoCristo-picalidade
O manto real em púrpura
12 canhões para 24 cabeças, também e aleluia!

Vi órfãos e viúvas eternas


no horoscópio da história
enquanto o pecado se expiava no Harlém
Capitão Ambrósio!

Assim
sustido pela ferocidade da selva
e pelo Tigre totem
evoquei em prantos teu nome Segobolissa
e disse gritando em direcção ao Níger
qu’estas almas donzelas
p’lo alcolusófono voluntariadas
para de pé se cobrirem de terra
junto a ti Glélé na eternidade
            em paz repousem

E
foi assim
que a noventa anos passados

287
sobre este túmulo
que nosso silêncio hoje ameaça
em lágrimas,
Vi-te Béhanziri
coberto de rebeldia e insubmissão
E sobre
tua irreverência opulenta
fiz ecoar hinos em marfim
gravados
e sobre mármore
selados
Para te reencontrar
na largura indimensional
da nossa civilização.
 

«Pour le Danhomé j’ai sacrifié la vie de milliers de guerriers; je me suis réduit moi-
même à l’état de fugitif sans fétiches favorables, sans mulettes protectrices.»,
BÉHANZIN

[1]
Os palácios reais do Abomey são um grupo de estruturas construídas de barro pelos povos Fon entre
meados do século XVII e finais do século XIX. A cidade era circundada por uma muralha de lama com
uma circunferência estimada em seis milhas, atravessada por seis portões, e protegida por uma vala de 1,5
m de profundidade, preenchida com uma sebe densa de acácia espinhosa, a defesa usual das fortalezas
africanas ocidentais. Dentro das paredes, estavam as vilas separadas por campos, por diversos palácios
reais, por uma praça de mercado e por um campo grande que continha as choças. Em novembro de 1892,
Behanzin, último rei independente do Daomé, sendo derrotado por forças coloniais francesas, ateou fogo
a Abomey e fugiu para o norte. Os palácios reais de Abomey são a única lembrança deste reino
desaparecido.

[2]
Horóscopo: predição da sorte; destino; futuro de uma pessoa ou coisa.

[3]
Ouidah, Hweda, Ouidá, Uidá, Ajudá é uma cidade localizada na costa ocidental africana, actual
República de Benim – o território onde o Benim se localiza era ocupado no período pré-colonial por
pequenas monarquias tribais, das quais a mais poderosa foi a do reinado Fon de Daomé. A partir do
século XVII, os portugueses estabelecem entrepostos no litoral, conhecido então como Costa dos
Escravos. Os negros capturados são vendidos no Brasil e no Caribe. No século XIX, a França, em
campanha para abolir o comércio de escravos, entra em guerra com reinos locais. Em 1892, o reinado Fon
é subjugado e o país torna-se protectorado francês, com o nome de Daomé. Em 1904 integra-se à África
Ocidental Francesa. O domínio colonial encerra-se em 1960, quando Daomé torna-se independente, tendo
Hubert Maga como primeiro presidente. A partir de 1963, o país mergulha na instabilidade política,com
seis sucessivos golpes militares.

[4]
Certos levantamentos populares, como o de 1934, em São Vicente (Cabo Verde), contra a fome e
consequente falta de trabalho marcaram os escritores caboverdianos. Gabriel Mariano viria a imortalizar
esta revolta no poema «Capitão Ambrósio», como também Manuel Ferreira em Hora di Bai.

288
[5]
Harlem é um bairro de Manhattan na cidade de Nova Iorque, conhecido por ser um grande centro
cultural e comercial dos afro-americanos.

[6]
Agadjá, 1708-1732, um dos reis do Daomé.

[7]
Peça redonda da cerâmica, utilizada para fornecer o ritmo zinli, música tocada pelos antepassados que
vieram de tado, uma aldeia mahi, onde nasceu o Gota que é tocado principalmente nas cerimónias em
homenagem aos voduns, funerais e para acalmar os espíritos dos mortos; também serve para afastar as
aflições, moléstias e ofensas.

[8]
Glelé, 1856-1889, um dos reis do Daomé.

[9]
Partido negro revolucionário estadunidense, fundado em 1966 em Oakland - Califórnia, por Huey
Newton e Bobby Seale, originalmente chamado Partido Pantera Negra para Auto-defesa. A finalidade
original do partido era patrulhar guetos negros para proteger os residentes dos actos de brutalidade da
polícia. Os Panteras tornaram-se eventualmente um grupo revolucionário marxista que defendia o
armamento de todos os negros, a isenção dos negros no pagamento de impostos e de todas as sanções da
chamada "América Branca", a libertação de todos os negros da cadeia, e o pagamento de compensação
aos negros por séculos de exploração branca. Sua ala mais radical defendia a luta armada. Em seu pico,
nos anos de 1960, o número de membros dos Panteras Negras excedeu 2 mil e a organização coordenou
sedes nas principais cidades. Os conflitos entre os Panteras Negras e a polícia nos anos de 60 e nos anos
de 70 conduziram a vários tiroteios na Califórnia, em Nova Iorque e em Chicago, um desses resultando
na prisão de Huey Newton pelo assassinato de um policial. Na medida que alguns membros do partido
eram culpados de actos criminais, o grupo foi sujeitado a uma grande hostilização da polícia que algumas
vezes se deu na forma de ataques violentos, despertando investigações no Congresso sobre as actividades
da polícia com relação aos Panteras. Nos meados dos anos de 70, tendo perdido muitos de seus membros
e diminuído a simpatia de muitos líderes negros estadunidenses, levaram a uma mudança dos métodos do
partido, que mudaram da violência para uma concentração na política convencional e em um
fornecimento de serviços sociais nas comunidades negras. O partido estava efectivamente desfeito em
meados dos anos de 1980.

BADJUDA N’A[1] 

Neste desdém...
 vida marcha num vaivém
baloiçando
criando origens desconjunturadas
e tu badjuda n’a
desdenhosamente marchando no «infortúnio da vida»

Na certeza dos teus sonhos


de jardins suspensos
dum engate fixe do fim-de-semana
e de altas curtições
ao gosto de sol-praias
dos convívios-boîte e do jazz-band
excitando a confusão dos lábios, das luzes e do sexo:

289
            A-A-A-Ahh... baby
O sabor drogante do teu destino badjuda n’a!
mas continua...
sepulta e bem sepultadinho
a dignidade em alcatifas confortáveis
(pelo menos sairá mais confortável, badjuda n’a)
Deixa exalar
não negues os bafos MINE COOPER e VOLVO
não, não negues o exalo suave da prostituição clássica:
O vestidinho te ajustará melhor, badjuda n’a!
As calças apertadinhas
chamarão mais clientes
(e as fendas ficarão mais nítidas badjuda n’a)
Terás uma Corte distinta
Que magistral personalidade!
E tuas pestanas azuis, verdes ou cinzentas
tuas unhas de gato lagária — de luta e violácea
e tua cara, aqui verde acolá azul
que pintura catalogar an! extraordinária badjuda n’a!

Sim
falarás um português melhor — da Metropóle —
e o deserto do teu sonho encherá de flores
então poderás passar seguramente
em todas as artérias góticas da ilusão
que todos te admirarão
e com mais descontracção
subirás, subirás, subirás
até entranhares
crua e sangrenta nas vísceras do anonimato
O jazz e a confusão das luzes te esperam.

[1]
Badjuda: menina, moça.

CANTO A SUNDIATA[1] 

Esta é a noite
do perfume
            sorriso
brotando
            E digo-te
            canta flor

290
            mas fita sério!
Este luar-guitarra
é longo e suave
e jovem e sorridente
solfeja e dedilha
refina ancas
emacia o beijo e a ternura
            E também
            amo
            neste tom guitarra
            do luar, Sundiata
            E digo-te
            canta flor
            mas fita bem!
Neste luar prata
se atiçam sensibilidades
esqueço-me
            e afirmo-me
Como fumos sorridentes
e prateados
em longas andanças
            E digo-te
            canta flor
            mas fita bem!
            Esta é a noite
            do perfume sorriso
            brotando

Os olhos de ver
morrem na doçura prateada do horizonte
Enamoro a cruel dureza das rochas
Caso-me com o cristal mais negro
e triste do debaixo da 1ª terra

            E também
            sonho
            neste tom guitarra do luar, Sundiata

Neste luar prata


perfilo-me entre os lábios
mais usados
Hasteio como estandarte
o sexo de todos os Deuses,
enfim, e da virgem santíssima, também!

291
E digo-te
canta flor
mas fita sério
Também
agonizo neste tom guitarra do luar, Sundiata
E digo, Amem!
E digo-te — Sundiata:
«abô i fidjo di miséria
ca bu tchora bu sufrimentu»
Porque há sono de dormir
ainda
no solfejo cristalino
            de cada nuance pequeno-burguês
se assim é...
em cada coisa, em tudo ou
            em cada coisa?!
e digo, que assim seja, Sundiata!

Desenhando

este silêncio interno


esta música permanente
este retrato multifacético do luar e da agonia

Digo-te
não posso adiar a palavra, Sundiata
se pequei contra ti
e porque no
            Amem
e Aleluia subescrevendo
Agora?!
E digo-te, Sundiata
canta flor
mas fita bem
Porque
esta é a noite
do perfume
sorriso
brotando.

[1]
Sundiata Keita (ou Sundjata Keita, ou ainda Soundiata Keita) era o Imperador do Mali, nascido em
1190 em Niani (Reino Mandinga, atual Guiné) e faleceu em 1255. Filho de Naré Maghann Konaté
(também conhecido Maghan Kon Fatta ou Maghan Keita) e Sogolon Djata (a mulher búfalo). O épico de
Sundjata é contado pelos griots, através da tradição oral. A lenda conta a história de Sundiata um pouco

292
diferente do que realmente aconteceu, era mágica, magia e várias outras coisas. A história verdadeira foi
realmente apenas uma guerra que ele venceu e virou rei.

LINHAS DE LEITURA 

Atente no poema “Quando te propus”:


- o sujeito poético mostra a urgência de nada adiarmos das nossas vidas. E se nós não
nos adiássemos? O que faríamos? O que diríamos?
- tomando como exemplo as propostas do poema, imagine um amanhecer diferente a
nível individual e a nível colectivo.
Nos poemas apresentados, releve:
- uma poesia de amor e/ou identidade de um espaço;
- a definição histórica, cultural, afectiva de um espaço territorial;
- a constatação de uma situação adversa e a exortação à fundação de uma força vital,
libertadora, cosmogónica; o futuro ao alcance das mãos;
- a opção estrutural e discursiva em harmonia com as ideias veiculadas.
-…

(adaptado de Interacções, Fátima Azóia e Fátima Santos, Lisboa, Texto Ed., 2007)

JOSÉ CARLOS SCHWARZ

José Carlos Schwarz, poeta, músico e


compositor, pioneiro da música moderna guineense,
continua, ainda hoje, a ser fonte de inspiração,
sobretudo pelas músicas de intervenção que nos
deixou como legado, ele que, a par dos seus
camaradas de risco, iscos de então, nunca foi ou
ficou indiferente à situação na Guiné-Bissau quer no
período colonial, quer no pós-independência.
Um exemplo de cidadania, uma referência do
orgulho nacional que desapareceu, fisicamente,
muito jovem, tinha apenas 27 anos de idade.
Foi em 1977, dias antes da tragédia que o vitimou que o vi pela última
vez, no ginásio da UDIB, em Bissau, onde funcionava temporariamente a
Escola Nacional de Judo, na companhia do seu amigo de sempre, Duco Castro
Fernandes, que também era, tal como eu, praticante de Judo.
Dias depois Zé Carlos partiu de Bissau com destino a Havana, ele que
tinha sido nomeado Encarregado de Negócios da nossa embaixada em Cuba,
uma viagem que acabou em tragédia no aeroporto José Martí de Havana, a 27
de Maio de 1977.

293
A Guiné-Bissau tinha acabado de perder um dos seus filhos mais
esclarecidos, um bem intencionado e activo intervencionista em defesa do
interesse nacional.
Atendendo à evocação da data e como gesto de homenagem a Zé
Carlos, aceitam-se trabalhos literários ou mensagens de reconhecimento sobre
a sua figura para publicação neste MEMORÁVEL que fica em aberto,
tornando-se num compacto de registos sobre José Carlos Schwarz.
Trinta anos depois, Zé Carlos continua entre nós, pois o tempo valoriza
os Grandes Homens, eternizando-os.
Saibamos tirar proveito do legado de José Carlos Schwarz na Guiné-
Bissau de hoje.
 
Nasceu em Bissau a 6 de Dezembro de 1949. Estudou em Bissau e Dacar. É
considerado o pioneiro da musica moderna guineense. Preso político, foi
deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência foi director do
Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e
encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Músico, compositor e
intérprete, participou nas antologias de poesia guineense Mantenhas para
quem luta e Momentos primeiros de construção. Morreu a 27 de Maio de 1977
num acidente de aviação em Cuba.

ANTES DE PARTIR
 
Antes de partir
Encherei os meus olhos, a minha memória
Do verde (verde, verde!) do meu País
Para que quando tomado pela saudade
Verde seja a esperança
Do regresso breve
Antes de partir
Encherei os meus ouvidos, a minha memória
Do palpitar que esmorece, enquanto a noite
Cresce sobre a cidade e no campo
Feito o silêncio dos homens e dos rádis...
 

 
CANTA CAMARADA
 
Canta camarada
Deixa que o teu sonho verdade
Flua límpido nos anseios da tua voz quente
294
Pois este é o teu dever, o teu direito.
 
Canta camarada
Que a recordação da tua dor
Seja como a terra revolvida
Em cada época, para a sementeira.
 
Canta camarada
Apenas alguns nomes, para que seja exaltado o anónimo
Apenas os mortos, porque os vivos
Ainda podem desmerecer da nossa gratidão.
 
Canta camarada
Pois é a única benesse
Que te reservaste na oferta da tua juventude
Em Holocausto no altar da revolução.
 

LITERATURA TIMORENSE

XANANA GUSMÃO

O mítico líder da Resistência


maubere, Xanana (aliás José
Alexandre Gusmão), nasceu no
Verão de 1946 em Manatuto,
Timor-Leste. Filho de um
professor primário, foi criado no
campo, juntamente com um irmão
e cinco irmãs. Fez os estudos
primários e parte do secundário
numa missão católica, antes de
partir para Díli, onde, ainda muito
jovem, deu aulas na Escola
Chinesa. Em Abril de 1974, começou a trabalhar na "Voz de Timor", ao mesmo tempo
que aderia à FRETILIN, o que lhe valeu ocupar o posto de vice-presidente no
Departamento de Informação.

295
Após a invasão indonésia (Dezembro de 1975), os quadros da FRETILIN foram
sucessivamente dizimados. Em 1978, com a morte de Nicolau Lobato, Xanana herdou a
liderança da Resistência, que urgia reorganizar. Três anos depois, teve lugar a primeira
conferência nacional do movimento, que o elegeu como líder e comandante das
FALINTIL (Forças Armadas para a Libertação Nacional de Timor-Leste).
Sob o comando de Xanana, a FRETILIN entabulou (em 1983) as primeiras
conversações com o ocupante indonésio. Ao mesmo tempo, implementava aquilo que
designou por Política de Unidade Nacional, uma estratégia que em linhas gerais
pretendia incrementar os contactos com a Igreja Católica e desenvolver uma rede
clandestina nas áreas urbanas e noutras regiões ocupadas.
Em virtude do sucesso desta política, Xanana criou, em 1988, o Conselho Nacional
de Resistência Maubere.
Em Novembro de 1992, um ano após o massacre de Santa Cruz, Xanana foi
capturado pelas forças indonésias e encarcerado em Jacarta, onde, segundo a Amnistia
Internacional, passou os primeiros 17 dias de prisão incomunicável, sob custódia dos
militares, que o submeteram à tortura do sono. Levado a tribunal, foi condenado a
prisão perpétua, sentença mais tarde comutada para 20 anos.
Foi nestas circunstâncias, contudo, que Xanana se revelou um verdadeiro estadista.
Em pleno tribunal, para surpresa dos indonésios, denunciou perante a Imprensa
internacional o genocídio do povo maubere.
Atirado para a cadeia de Cipinang, Xanana continuou a elaborar a estratégia da
Resistência, enquanto estudava inglês, bahasa (língua indonésia) e Direito. Durante o
pouco tempo que lhe restava, pintava e escrevia poesia. Em 1994, foi publicada uma
parte dos seus ensaios políticos _ "Timor-Leste, um Povo, uma Pátria".
Para o povo maubere, Xanana, mesmo na prisão, continuava a representar um
símbolo da luta pela Paz, pela Justiça, pela Liberdade, sendo a verdadeira chave para
uma solução política que permitisse acabar com o conflito.
A dedicação de Xanana à causa maubere despertou a atenção da Imprensa
internacional, que o começou a tratar como o "Mandela de Timor".
O próprio Mandela, durante uma visita à Indonésia há dois anos, fez questão de
visitar Xanana em Cipinang. Após a reunião, o presidente sul-africano considerou-o a
"chave" para a resolução pacífica do conflito.
Em Abril de 1998, a Convenção Nacional da FRETILIN criou o Conselho Nacional
da Resistência Timorense (CNRT), com Xanana a ser reconduzido como líder por
aclamação dos delegados da Diáspora.
Um mês depois, Suharto demite-se e a campanha internacional para libertar Xanana
conhece um novo fôlego. E no início de 1999, o presidente do CNRT abandona
Cipinang e é colocado sob prisão domiciliária, tendo sido libertado na primeira semana
de Setembro do mesmo ano para, rapidamente, procurar refúgio na Embaixada britânica
em Jacarta.
Ainda em Setembro, depois de uma semana em Darwin, na Austrália, efectua uma
viagem aos Estados Unidos da América e à Europa, onde foi recebido com honras de
chefe de Estado.
A 23 de Outubro, já escolhido para receber o Prémio Sakharov, Xanana Gusmão
regressa a Timor, onde é recebido em apoteose. E este ano, em Março, desloca-se a
Portugal, Moçambique e Brasil, para contactos com os países da CPLP (Comunidade de
Países de Língua Portuguesa).

(in http://jn2.sapo.pt/biog/xanana/, 2000)

296
  

Em 1973, antes mesmo da Revolução dos Cravos, Xanana Gusmão já se destacava


na literatura, chegando a receber o Prémio Revelação da Poesia Ultramarina. Contudo,
foi a Guerra Civil Timorense, iniciada em 1975, que despertou em Gusmão a
necessidade de expressar-se através da escrita. Entre 1977 e 1979, ele publicou dois
livros: Pátria e Revolução (cujo título tornar-se-ia o lema da luta no país), e Guerra,
Temática Fundamental do Nosso Tempo, no qual ensaia todas as características das
chamadas Guerras Populares, descrevendo o papel de um líder carismático na condução
de seu povo.

(adaptado de Wikipédia)

Mar Meu

Mar Meu, de 1998, é uma colecção de poemas e


pinturas produzidos no período de 1994 e 1996 por
Xanana Gusmão, aquando da sua prisão em Cipinang.
1. Atente na capa do livro Mar Meu.
1.1. Relacione a sua apresentação com o título do livro.

1.2. Interprete a composição do título, com base na


sonoridade conseguida.

2. Leia o excerto do prefácio incluído no livro Mar Meu,


de Xanana Gusmão. 

O VERSO E O UNIVERSO 

Neste estilhaçar de tempo e mundo que lugar tem a solidariedade? Quanto nos pode
ocupar a injustiça que ocorre distante quando, tantas vezes, fechamos os olhos àquela
que tem lugar no nosso próprio lugar?
Timor parece erguer-se como prova contrária a estes sinais de decadência. Afinal, há
alma para sustentar causas, erguer a voz, recusar alheamentos. Uma nação distante se
reassume como nosso lar, nossa razão, nosso empenho. O sangue que se perde em
Timor escorre de nossas próprias veias. As vidas que se perdem em Timor pesam sobre
a nossa própria vida.
Foi assim que li os versos de Xanana. E naquelas páginas confirmei: pela mão de
um homem se escreve Timor. Um livro de Xanana Gusmão não poderia ser apenas um
livro. Por via da sua letra se supõe falar todo um povo, uma nação. Há ali não apenas
poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar, uma utopia
que queremos que seja nossa. […]

297
Quando perguntaram a Ho Chi Minh[1] como ele, em regime prisional, tinha
produzido tão belos poemas de amor, ele respondeu: “Desvalorizei as paredes”. A
estratégia da poesia será, afinal, sempre essa: a de desqualificar o escuro.
Numa cela isolada, um homem escreve versos. Reclama o simples direito de ter um
mar, um céu que, sem temor, embale Timor. Neste simples acto, este homem de
aparência frágil desqualificou as paredes, convocou a nossa solidariedade e negou o
isolamento.
De novo, o tempo se abraça ao mundo e, no espreitar do novo milénio, nos chega
mais um pretexto para acreditarmos que a justiça se faz por construção nossa.
Afinal, um simples verso refaz o Universo. 

Mia Couto, Maputo, 21-06-1998 (excerto)

  

Neste excerto reflecte-se sobre uma das formas de poder da palavra poética.
2.1. Refira a forma de poder que lhe é atribuída.

2.2. Explique, por palavras próprias, as frases dadas:


       “pela mão de um homem se escreve Timor”
       “este homem […] desqualificou as paredes...”

2.3. Explique a expressividade dos verbos utilizados na frase: “Reclama o simples


direito de ter um mar, um céu que, sem temor, embale Timor”.

2.4. Relacione os dois últimos nomes sublinhados na frase anterior, quanto ao nível
gráfico e de conteúdo.

2.5. Retire do excerto expressões relativas às atitudes de Xanana Gusmão para


conseguir, através de “um simples verso”, refazer “o Universo”.

2.6. Comente a expressividade do título do excerto.

[1]
Vietnamita que teve papel preponderante na guerra entre o Vietname do Norte e o do Sul (1954-75),
tendo-se tornado líder espiritual do actual regime político do Vietname do Norte (estado comunista).

OH! LIBERDADE!  

Se eu pudesse
pelas frias manhãs
acordar tiritando
fustigado pela ventania
que me abre a cortina do céu
e ver, do cimo dos meus montes,
o quadro roxo
de um perturbado nascer do sol
a leste de Timor

298
Sem título, Abril de 1994.
Se eu pudesse
pelos tórridos sóis
cavalgar embevecido
de encontro a mim mesmo
nas serenas planícies do capim
e sentir o cheiro de animais
bebendo das nascentes
que murmurariam no ar
lendas de Timor

Se eu pudesse
pelas tardes de calma
sentir o cansaço
da natureza sensual
espreguiçando-se no seu suor
e ouvir contar as canseiras
sob os risos
das crianças nuas e descalças
de todo o Timor

Se eu pudesse
ao entardecer das ondas
caminhar pela areia
entregue a mim mesmo
no enlevo molhado da brisa
e tocar a imensidão do mar
num sopro da alma
que permita meditar o futuro
da ilha de Timor

Se eu pudesse
ao cantar dos grilos
falar para a lua
pelas janelas da noite
e contar-lhe romances do povo
a união inviolável dos corpos
para criar filhos
e ensinar-lhes a crescer e a amar
a Pátria Timor!

Cipinang, 8-10-1995

  

3. A arte consegue encontrar diferentes formas de expressão para se manifestar.


3.1. Estabeleça pontos de contacto entre o quadro e o poema “Oh! Liberdade!”.
3.2. Justifique o primeiro verso das estrofes em função do título do poema.

4. O poema “Oh! Liberdade!”está construído segundo uma progressão lógica associada

299
às fases do dia.
4.1. Evidencie essa progressão, apoiando-se em expressões textuais.
4.2. Relacione cada fase do dia com os verbos utilizados em cada uma das estrofes.
4.3. Demonstre como a progressão textual acompanha a intencionalidade do sujeito
poético.
4.4. Interprete a expressividade da pontuação forte presente no poema.
4.5. Demonstre a utilização de recursos estilísticos que evidenciem funcionalidade
significativa para a construção da mensagem.
  
5. O poema "Pátria" tornou-se um verdadeiro hino da causa timorense:

PÁTRIA 

Pátria é, pois, o sol que deu o ser


Drama, poema, tempo e o espaço,
Das gerações, que passam, forte laço
E as verdades que estamos a viver.
Pátria.., é sepultura... é sofrer
De quem marca, co’a vida, um novo passo.
Ao povo — uma Pátria— é, num traço
simples… Independência até morrer!
Do trabalho o berço, paz, tormento,
Pátria é a vida, orgulho, a aliança
Da alegria, do amor, do sentimento.
Pátria… é tradições, passado e herança!
O som da bala é... Pátria, de momento!
Pátria… é do futuro a esperança!

  

5.1. Interprete o conceito de «Pátria» assumido no poema.


5.2. Explique o sentido do verso «O som da bata é... Pátria, de momento!» (v. 13)
5.3. Relacione os versos «Pátria… é sepultura... é sofrer / […] Independência até
morrer! / […] Pátria… é do futuro a esperança!» (vv. 5, 8 e 14) com os acontecimentos
da História de Timor Lorosae.
5.4. Exponha aos seus colegas o seu conceito de «Pátria». Discuta, então, o que é ser
patriota. Sintetize os consensos alcançados.

GERAÇÕES   

Nomes sem rosto  


corações esfaqueados
de lembranças  
nas lágrimas de crianças
chorando pelos pais...  Um pai se ofendera
no último não da sua vida

300
Mais do que a morte a mulher violada
que os fez calar assassinada sob os seus olhos 
em cada gota de lágrima
a cena cruel  O cheiro da pólvora
vinha de muitos furos
...uma mãe que gemia daquele corpo
sem forças seu corpo desenhava que já não era corpo
marcas da angústia estendido
esgotada  sem forma de morte 

Os farrapos que a cobriam e...


Rasgados As lágrimas secaram
no ruído da sua própria carne nas lembranças das crianças
sob o selvático escárnio veio o suor da luta
dos soldados indonésios porque as crianças cresceram 
em cima dela, um por um 
Quando os jovens seios
Já inerte, o corpo da mulher estremecem sob o choque eléctrico
se tornou cadáver e as vaginas
insensível à justiça do punhal queimadas com pontas de cigarro
que a libertara da vida  quando testículos de jovens
estremecem sob o choque eléctrico
enquanto... e os seus corpos
golpes de coronhadas rasgados com lâminas
se repercutiam eles lembram-se, eles lembram-se
nas gotas de lágrimas que iam caindo sempre: 
da mesma face das crianças 
A luta continuará sem tréguas!
 
 

301
AVÔ CROCODILO

Diz a lenda
e eu acredito!

O sol na pontinha do mar


abriu os olhos
e espraiou os seus raios
e traçou uma rota

Do fundo do mar
um crocodilo pensou buscar o seu destino

e veio por aquele rasgo de luz

Cansado, deixou-se estirar


no tempo
e suas crostas se transformaram
em cadeias de montanhas
onde as pessoas nasceram
e onde as pessoas morreram

Avô crocodilo
– diz a lenda

302
e eu acredito!
é Timor!

303

Você também pode gostar