Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DEZEMBRO DE 1988.
Não lembro mais o dia exato, talvez 10 ou 11 de dezembro. Estou
chegando à Europa pela primeira vez. De São Paulo para Madri e depois
Barcelona. Tenho de estar no dia 2 de janeiro de 1989 no Instituto Goethe
de Schwäbisch Hall, uma pequena cidade próxima de Stuttgart, na
Alemanha, primeira parada antes de iniciar o período de pesquisa do
doutorado em Berlim. Seriam dois meses para aperfeiçoamento na língua
alemã. Antes, a passagem obrigatória por Paris.
Também não lembro a hora em que subi no trem noturno para Paris. O
horário deve continuar o mesmo. Mas o trem certamente se modernizou.
Naquela época, era um trem daqueles que habitavam a imaginação do
menino que nunca viajara de trem. Talvez a do trem cortando a neve nas
estepes russas em Dr. Jivago. Trem lotado – os aviões eram muito caros e o
trem, o transporte preferencial na Europa. Trem noturno, apenas cabines
com quatro camas, “beliches”, como dizemos no Brasil. Naquela época,
para entrar na França nós, brasileiros, precisávamos de um visto que
tirávamos no Brasil e que deveria estar registrado no passaporte. Como
até hoje, quando viajamos para países que nos exigem visto. Trem
internacional, isso era bem antes da criação da União Europeia.
Cheguei cedo à estação. Costume de criança. Viajar da ilha do Marajó
para Belém exigia preparação, e chegar cedo ao porto para pegar o navio, e
um bom lugar para sentar era uma espécie de “imperativo categórico”. A
voz da razão, no caso a voz da mãe, um alerta permanente. Até hoje sou
assim. Chegar atrasado num porto, numa estação rodoviária ou num
aeroporto é uma falha grave. A possibilidade de perder o barco, o ônibus
ou o avião me enche de angústia. Longas filas no anden, na plataforma. Os
passageiros entravam um a um, os passaportes de todos os estrangeiros,
ou seja, dos que não eram franceses ou não moravam legalmente na
França, eram cuidadosamente examinados e retidos. Só seriam entregues
próximos à chegada, às 9 da manhã, na Gare d’Austerlitz (disso lembro!).
Assim, eram classificados os “gregos” e os “bárbaros”.
Meu companheiro de cabine era um negro. Um negro que “luzia”,
como dizemos. O reflexo da luz na sua pele como que emitia raios de luz.
Disse um “Bon soir” e eu respondi com um “Merci, bon soir!”. Minhas
primeiras palavras em francês fora do Brasil. Todas as minhas professoras
de francês passaram como num filme na minha cabeça: Enedina, Beth,
Lucia, Risoleta. Queria fazer jus ao esforço delas. Meu corpo, cansado da
flânerie pelas ramblas de Barcelona, venceu a excitação da chegada, que
aconteceria 10 horas depois, em Paris. Adormeci logo.
Perto da meia-noite, o trem parou completamente. Mesmo assim, nem
abri os olhos e tentei voltar a dormir. Ouvia vozes, portas do trem abrindo
e fechando. De repente, batidas fortes na porta da cabine. Acordamos
assustados. O negro levantou e acendeu a luz, enquanto as batidas fortes
continuavam. Ele abriu a porta e vimos dois policiais. Eram franceses.
Abri os olhos e continuei deitado. Aí começou a discussão entre os
policiais e o negro. Os policiais pediam documentos. O negro os mostrou.
Continuou a discussão e, à medida que os policiais permaneciam duros e
inflexíveis, o negro levantava a voz e continuava discutindo. Eu, tenso,
nervoso. A questão girava em torno do documento de permanência do
negro na França, a carte de séjour. Os policiais se retiraram. O negro
fechou a porta e esbravejou um “la policie française... c’est la merde” ou
qualquer coisa assim. Falamos rapidamente, perguntou de onde eu era:
“ah, du Brésil, le meilleur ‘seleção’ du monde”. “Et vous?”, perguntei. “Côte
d’Ivoire”, respondeu... só mais tarde, já em Paris, perguntei a uma amiga
brasileira que país era aquele. “Costa do Marfim, leso”, me respondeu,
rindo.
O trem parado. De repente, resolvi abrir a cortina. Queria saber onde
estávamos. Abri, pus os óculos e, bem diante de minha janela, naquelas
placas típicas de sinalização nas estações de trem, pude ler: Portbou.
Levantei e, de pé, abri mais a cortina, para me certificar. Eu estava em
Portbou, palavra que, em catalão, significa “Porto do Boi”. O trem
começou a se movimentar. Meus olhos se encheram de lágrimas. Um
homem, ofegante, com uma pasta presa ao corpo, caminha entre os
Pirineus. Ele faz parte de um grupo de judeus alemães que tentava fugir da
França ocupada. Era setembro de 1940. Exatamente ali, em Portbou, na
fronteira fatídica, não suportando a possibilidade de vir a ser entregue à
Gestapo, ele pratica a “morte livre”, a “morte voluntária”, a Freitod, como
Empédocles, Sócrates... não um suicídio, Suizid, por fraqueza ou covardia,
como se costuma dizer, de forma moralmente condenável ou
patologizante, sobre os que “tiram a vida”, das Leben nehmen. Quase 50
anos depois, a fronteira entre a França e a Espanha continuava a ser esse
lugar onde a polícia interpelava, com violência, os estrangeiros. Talvez
também para marcar a relação entre fronteira e violência, na sua obra dos
anos 1930 Walter Benjamin tenha feito uma distinção entre Grenze,
“fronteira” – uma fronteira entre dois países por exemplo, que só pode, em
princípio, ser atravessada legalmente – e Schwele, “limiar”, “umbral” – que
pode e deve ser atravessado pelo pensamento e, assim, produzir novos
modos de expressão ou ainda outras narrativas.
SETEMBRO DE 2003.