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Sumário

entrevista Yara Frateschi

dossiê Walter Benjamin entre fronteiras


Apresentação
O indivíduo desfigurado
Entre filosofia e literatura
A potência política da tradução
O cômico e o anúncio do trágico
Diário de Portbou

colaboraram nesta edição


entrevista Yara Frateschi
Repensar as utopias
MÁRCIO FERRARI

A filósofa Yara Frateschi, professora da Universidade Estadual de


Campinas (Unicamp), vê na pandemia do coronavírus um momento de
exposição sem disfarces das desigualdades econômicas e sociais
brasileiras. Ao mesmo tempo, a própria experiência cotidiana dos efeitos
do vírus e do isolamento social trouxe para perto das pessoas as
contradições do atual estágio do capitalismo, o que pode ser um momento
de “repensar nossas utopias”, isto é, rever prioridades, desejos e
necessidades reais de toda a população.
Frateschi participou recentemente de uma polêmica suscitada pelo
texto “Reflexões sobre a peste”, do filósofo italiano Giorgio Agamben, no
qual ele definiu como “frenéticas, irracionais e totalmente desmotivadas”
as medidas de distanciamento social. A filósofa escreveu um artigo –
“Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia” – que
refutou essa análise. Um grupo de estudiosos da obra do pensador italiano
respondeu cordialmente com o artigo “Agamben sendo Agamben: por que
não?”, e Frateschi publicou uma tréplica igualmente cordial. Os detalhes e
as implicações dessa discussão são abordados na entrevista a seguir.
Na polêmica, Frateschi recorreu às ideias de pensadoras
contemporâneas que advogam um cânone renovado, distanciado do
desequilíbrio de gênero e raça que marcou a história oficial da filosofia. A
professora da Unicamp faz parte do grupo criador e mantenedor do blog
Mulheres na Filosofia, no portal da universidade. A iniciativa se dá
simultaneamente a várias outras que pretendem trazer à luz a atividade,
os projetos e o pensamento femininos no Brasil e no mundo.

Que reflexões a pandemia desperta em você como filósofa?


São reflexões muito distintas, que apontam para muitos lugares. Mas
aquilo que mais me interessa é o fato de que, muito embora todos nós, de
todos os grupos sociais, estejamos suscetíveis ao vírus, a pandemia vem
tornar ainda mais evidentes as desigualdades. O vírus é mais cruel quando
incide nos mais vulneráveis. Sua ação parece democrática, mas quem
mais morre ou mais sofre os efeitos da pandemia são os pobres, os negros,
os indígenas.

E a situação de isolamento, que pensamentos desperta?


Penso em algo muito elementar, a condição dos humanos como seres
relacionais. Filosoficamente, o que mais pulsa na minha vida cotidiana é
algo muito antigo, que eu busco em Aristóteles: a definição dos seres
humanos como animais políticos, isto é, sociais. É uma ideia que a história
da filosofia sempre soube elaborar e atualizar, chegando ao pensamento
de Hannah Arendt, Seyla Benhabib e Judith Butler, para quem somos
seres corporificados que precisam uns dos outros não só para sobreviver e
satisfazer necessidades, mas também para ter uma vida qualificada nos
âmbitos político, moral, afetivo, emocional. Na quarentena, percebemos
de forma muito violenta a falta que as pessoas fazem. Muitos de nós estão
em situação solitária ou restrita a um grupo privado e reduzido. Isso
empobrece nossas potencialidades criativas e afetivas.

Mas não haveria algo de desafiador ou estimulante neste momento


de crise?
Respondo como uma mulher de classe média que tem condições de
guardar o isolamento, o que me permite refletir e usar meu repertório
filosófico acumulado. O fato de eu poder viver essa situação já traz um
ganho. Mas nesse mesmo espaço da casa as mulheres estão precisando
também dar conta do trabalho que garante o sustento e de dois outros que
historicamente são atribuídos às mulheres: o cuidado da casa e dos filhos
(e muitas vezes dos idosos). A ausência de escolas e a impossibilidade de
contar com a rede de pessoas que poderiam auxiliar essas crianças nos
levam a uma situação de esgotamento absoluto. Nunca vimos com tanta
clareza essa condição que as mulheres pobres enfrentam há muito tempo.
Como vem apontando Nancy Fraser, a crise do cuidado se acentua como
contradição no atual estágio do capitalismo neoliberal, porque quanto
menos há Estado, mais esses encargos estão sob responsabilidade das
mulheres e das famílias.

O aprofundamento dessa situação poderia levar a mudanças


sociais?
Eu venho de uma tradição de pensamento que aposta na possibilidade de
que as crises e as contradições, ao se intensificarem, podem vir a gerar
cenários de transformação social. Foi interessante ver, logo no início da
pandemia, filósofos como o Slavoj Žižek e Angela Davis dizerem que o
mundo pode estar diante de uma chance de repensar a continuidade de
uma configuração social capitalista, que é racista, sexista, patriarcal. As
contradições talvez se tornem evidentes a ponto de abrir-se um interstício
que possibilite mudanças. É um momento fértil, já que o capitalismo tenta
esconder as contradições, e vem a pandemia para torná-las visíveis. É
inegável que ela obriga a rever nossas utopias e a repensar a distribuição
de recursos, da terra ao atendimento à saúde.

Recentemente você escreveu um artigo em reação a um texto do


filósofo Giorgio Agamben sobre a pandemia, iniciando uma
polêmica. Como isso se deu?
O prognóstico de Agamben é que a pandemia reforçaria a passividade
social, dominada pelo pânico. O medo de morrer sustentaria a prioridade
da sobrevivência, o que aniquilaria a possibilidade de agência e
resistência. Mas não foi isso que aconteceu. Basta lembrar as revoltas nos
Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd ou, no Brasil, a
mobilização dos entregadores de comida via aplicativos e a organização
das comunidades periféricas para conseguir aquilo que o Estado não
supre. São focos importantes de ação e resistência apontando para nossas
deficiências estruturais mais profundas, as mesmas que tornam a
pandemia tão violenta para certas camadas da população.

Para os estudiosos do filósofo, provavelmente o que mais


incomodou foi sua afirmação de que o artigo de Agamben é coerente
com o arcabouço teórico que ele criou.
A análise de Agamben é o resultado da aplicação de um esquema teórico
que está sendo apresentado desde os anos 1990 para explicar uma crise
que ele identifica como própria da modernidade. Esse estado de coisas –
numa exposição bastante breve – implicou o estabelecimento do valor da
“vida nua” como principal sustentação da sociedade moderna. O
resultado é um declínio – que Agamben chama de eclipse – do humano e
de sua dimensão política: uma sociedade inerte, passiva, controlada pelo
medo de perder a própria vida. A epidemia seria para ele uma invenção
que sustenta o estado de exceção e torna os cidadãos submissos em troca
de satisfazer o desejo de segurança, e o medo é a afecção mais importante
desse desejo. Essa foi a visão que Agamben manteve por vários artigos,
mesmo depois que os fatos provaram que o vírus não era uma invenção,
nem o isolamento social uma medida excessiva. O artigo dele provocou
em muitas pessoas uma reação de desconcerto, porque o discurso se
parece com o de Jair Bolsonaro e da extrema direita no mundo todo,
inclusive na condenação da atitude da mídia, que seria parte de um
conluio para disseminar o medo. Para ele, a pandemia estaria agora
exercendo o papel anteriormente desempenhado pela guerra ao
terrorismo. Portanto, o esquema teórico estava pronto. Não me parece a
melhor forma de fazer filosofia. Como ensinou Hannah Arendt, para
compreender o tempo presente é preciso pensar a partir dos fenômenos,
não antes deles.
Sujeitar fatos a esquemas prontos seria um risco que todo cientista
corre?
Quando faz uma análise, todo cientista ou filósofo procura uma
construção teórica pronta, claro que sim. O que não pode haver é um
congelamento desse quadro categorial, sem abertura para as
peculiaridades do fenômeno em questão. É importante dizer que a
filosofia costuma tender à abrangência e tem uma natureza especulativa,
o que a diferencia da sociologia, por exemplo. Isso não implica fazer o que
o Agamben faz, ou seja, essencializar o que está analisando. Nesse
sentido, é uma filosofia muito tradicional, que o fez perder a chance de
enxergar as contradições da atividade do Estado. Se por um lado o Estado
é uma máquina de controle, por outro não se pode imaginar o trato da
pandemia sem ele.

A crítica à ciência sempre foi uma tarefa da filosofia. Entretanto,


essa crítica pode às vezes ser inoportuna?
A filosofia tem sempre o papel “inoportuno” de ir na contramão do
estabelecido, e sempre precisa estar atenta às relações de poder, das quais
a ciência não está a salvo. Nós vimos o que aconteceu no nazismo – motivo
suficiente para ficarmos permanentemente em estado de alerta. Mas os
artigos de Agamben ignoram o extraordinário crescimento do
negacionismo científico, corresponsável pela morte de milhares de
pessoas. No Brasil o negacionismo conta até com o fomento da
administração central. É uma marca assustadora dos nossos tempos.

Mesmo reconhecendo a necessidade das medidas de controle para


conter o coronavírus, elas poderiam também, de alguma forma, ser
um laboratório para o aperfeiçoamento das táticas autoritárias?
Não nego que seja importante olhar para as técnicas de controle, inclusive
notar quanto somos uma sociedade vigiada. De fato é perturbador que os
governos meçam a adesão ao isolamento por meio do acesso das pessoas
aos telefones celulares. Mas não se pode perder de vista a necessidade de
monitorar a situação para diminuir os riscos de doença e morte. O
desenvolvimento dessas estratégias pode ser usado contra nós? Sim. Essa
é uma das contradições mais agudas da sociedade contemporânea.

Em seus dois artigos motivados pelos escritos de Agamben você


recorre a pensadoras contemporâneas. Que contribuições elas
trouxeram?
O pensamento de Angela Davis não é só importante pela análise dos fatos
inerentes à pandemia, mas também porque está sempre atenta ao Brasil,
disposta a estabelecer um diálogo com os aspectos que nos aproximam
dos Estados Unidos, como a atitude genocida dos presidentes dos dois
países. Ela destaca o fato de o vírus intensificar problemas como a
pobreza, a misoginia e o feminicídio. O isolamento social deixa mulheres
numa vulnerabilidade extrema. Em algumas cidades houve aumento de
100% na taxa de feminicídios. Davis e Naomi Klein previram desde o
início que isso aconteceria, uma vez que muitas mulheres passariam 24
horas por dia trancadas com seus abusadores e possíveis assassinos.
Klein me ajuda a pensar nos efeitos da pandemia neste mundo em que
os ricos se tornam mais ricos – basta ver as últimas estatísticas – enquanto
o vírus provoca seus efeitos mais cruéis e letais nos mais pobres. É o que
ela chama de capitalismo do desastre, um sistema social que só faz
sentido para 1% da população, enquanto promove a destruição da
natureza, dos sistemas democráticos, da assistência social, da saúde e da
educação. No Brasil, a não gestão da crise do coronavírus pelo governo
federal deixa bem evidente que o desastre é um projeto.
Judith Butler também examina a pandemia à luz das desigualdades. A
crise expõe uma vulnerabilidade global, uma vez que todos os seres
humanos estão sujeitos ao vírus e também porque o cotidiano é feito de
compartilhamentos entre seres corporificados que podem contaminar uns
aos outros. Ela fala em modos de compartilhamento recíprocos que
mostram a interdependência entre todas pessoas e, por outro lado,
sublinha a desigualdade entre os grupos. A abordagem que eu chamo de
metafísica tende a perder de vista que os marcadores sociais tornam
certas populações mais vulneráveis que outras. A filosofia precisa ser
sensível a essas diferenças ou não terá muito o que dizer ao tempo
presente.

Essa visão de interdependência seria o oposto do que você chamou,


no caso da teoria agambeniana, de solilóquio?
O que eu vejo como solilóquio é a construção de um discurso filosófico
que prescinde da contribuição dos colegas de outras áreas, como
cientistas, médicos e sociólogos. As análises das três pensadoras que eu
mencionei – Davis, Klein e Butler – têm maior possibilidade de capturar o
tamanho das trevas do presente, parafraseando Agamben, porque estão
atentas aos dados da realidade. Filósofos não produzem análise social
sozinhos e precisam se municiar dessas informações se quiserem falar do
tempo em que vivem. Para Davis elaborar sua tese de que o
encarceramento é uma versão moderna da escravização, foi necessário
conhecer análises sobre o sistema carcerário, a composição da população
presa, as estatísticas de reincidência – estudos feitos por outras pessoas.

Nos últimos meses, você participou da criação do blog Mulheres na


Filosofia, num momento em que se multiplicam iniciativas em
torno do assunto. A que você atribui essa simultaneidade?
É um movimento muito interessante e animador que está acontecendo na
filosofia, particularmente no Brasil. Há poucos anos houve uma tomada
de consciência de que a filosofia é um campo marcado por um
desequilíbrio de gênero violento: os homens são 73% dos que atuam na
área, entre docência e pesquisa. Percebemos que isso é um problema, e
não apenas de natureza social. Nenhuma área do conhecimento pode ser
plenamente fecunda e criativa se guardar tamanha desigualdade. Nós nos
reunimos na Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Mesmo em minoria,
somos muitas e estamos em vários lugares do país. A rede permitiu que a
gente se conhecesse e compartilhasse nossos projetos. Eu participei, com
Carolina Araújo, Nastassja Pugliese e Gisele Secco, da criação do blog
Mulheres na Filosofia, que está sediado na rede de blogs da Unicamp,
voltada para a divulgação científica. O blog está estruturado em verbetes
sobre filósofas que ficaram à margem do cânone e em posts sobre temas
feministas. A intenção é que seja acessado dentro e fora das
universidades, e está dando certo.

Que tipo de descoberta está acontecendo?


Nosso trabalho arqueológico comprova que, desde a Grécia Antiga,
sempre houve mulheres fazendo e escrevendo filosofia, embora elas não
sejam reconhecidas. Uma personagem tão extraordinária quanto
inusitada é Cristina de Pisano, que nasceu em 1364 em Veneza e morreu
em 1430. Ela deixou uma produção teórica e literária, uma reflexão
filosófica que talvez nos permita dizer que foi a primeira a exercer a
atividade profissionalmente. O que estamos descobrindo é que, seja
pensando a metafísica ou os costumes, todas se dão conta, cedo ou tarde,
de que têm diante de si um grande obstáculo social que bloqueia ou
dificulta o exercício da função de filósofas. São obstáculos que se
manifestam no preconceito de que a mulher não foi feita para pensar.
dossiê Walter Benjamin entre fronteiras
Apresentação
PATRÍCIA LAVELLE

Depois de uma longa caminhada pela cadeia montanhosa dos Pirineus,


Walter Benjamin, que integrava um grupo de exilados guiado pela
resistente Lisa Fittko, deparou-se com uma fronteira fechada. Impossível
passar da França, então sob ameaça da ocupação alemã, para a Espanha,
de onde ele pretendia embarcar para os Estados Unidos. O pensador, que
era cardíaco e tinha então 48 anos, não resistiria àquela noite de angústia
na cidade fronteiriça de Portbou. As circunstâncias exatas de seu
falecimento e de seu enterro nunca foram elucidadas, mas é provável que
tenha cometido suicídio, ingerindo medicamentos que trazia consigo,
antes que a fronteira fosse reaberta no dia seguinte e permitisse a
passagem de seus companheiros de viagem.
Ocorrida em 1940, há 80 anos, essa trágica morte tem sido considerada
emblemática da trajetória de muitos intelectuais judeus ante a
perseguição nazista. Entretanto, é de uma triste atualidade. Benjamin
morreu diante de um impasse, como tantos refugiados de hoje – e neste
momento de pandemia as fronteiras se fecham ainda mais. Mas ele viveu
cruzando fronteiras, inventando passagens. E não apenas porque esteve
em vários países e se interessou por diversas culturas, tanto pelo gosto
cosmopolita das viagens como pela necessidade do exílio.
Como tradutor, ao trazer Charles Baudelaire e Marcel Proust para o
alemão, cruzou fronteiras linguísticas na contramão das duas Grandes
Guerras, que opuseram França e Alemanha. E com as traduções tematizou
teoricamente a experiência de passagem entre línguas. Também em sua
própria obra ultrapassou fronteiras disciplinares: realizou pesquisas que
abarcam diversos domínios do conhecimento, como as reunidas no livro
Passagens, que permaneceu inacabado, e produziu textos híbridos, nos
limiares entre filosofia e literatura, como os de Infância berlinense por
volta de 1900.
Assim, os textos deste dossiê apresentam, discutem e comemoram não
o triste impasse da morte, mas a vida de um intelectual entre fronteiras –
propondo passagens que se originam do presente.
O indivíduo desfigurado
KATIA MURICY

Nos vinhedos da cidade francesa de Banyuls-sur-Mer, as uvas estavam


quase maduras naquele 27 de setembro, quando chega, vindo das encostas
dos Pirineus, o pequeno grupo que tenta alcançar a fronteira com a
Espanha. Walter Benjamin, colado à pasta de couro, vela por seu
manuscrito – mais importante do que ele próprio, como explica aos
companheiros. Tratava-se, provavelmente, de “Teses sobre o conceito de
história”, o testamento filosófico de um judeu alemão sobre a derrocada
final do que ainda restava do mito de uma Europa iluminista.
A disciplina do andarilho cardíaco vacila: o corpo, exausto pelo esforço
da escalada, será amparado pelos companheiros. Sua vida, nesse
momento, começa a ganhar a forma final de uma alegoria da catástrofe.
Benjamin transmuta-se no Angelus Novus do pequeno quadro de Paul
Klee, que o acompanhava em sua errância pela Europa agonizante. Penso
no que escreveu sobre a experiência de dor profunda despertada no corpo,
ao evocar o esgotamento na escalada de uma montanha. Ao descer,
escreve, as alterações físicas produzem um afrouxamento do tempo e,
caminhando como em um sonho, no ritmo da descida que não pode parar,
percebe que seu corpo “se tornou um caleidoscópio que, a cada passo, lhe
apresenta figuras cambiantes da verdade”. Que sucessão de imagens da
monstruosidade irracional, que se prenunciava iminente naquele mundo
moribundo, teria desfilado em seu caleidoscópio fatigado? Conhecemos a
tragédia que se segue, na noite seguinte, em Portbou. O equilibrista das
fronteiras é impedido de atravessar a última, que salvaria sua vida.
Porque Benjamin é, desde sempre, o homem das fronteiras, das
passagens. Desloca-se entre elas, habita seus interstícios: sua escrita
poética transita, sem visto de permissão, pelos continentes da filosofia, da
história, da crítica de arte, da literatura. Move-se entre eles, criando
formas inesperadas de escrita teórica: ensaios, fragmentos, aforismos,
poemas, peças radiofônicas. Ousa atravessar fronteiras nas milhares de
páginas em que espalha, letra miúda e elegante, a prosa refinada e
audaciosa do seu amor pelo mundo, da sua identificação com as coisas do
real, que ele quer ler como quem lê um texto.
Se tomar consciência de si sem sustos era sua ideia de felicidade, eu me
pergunto como Benjamin resistiu à avalanche de perdas que foi a sua vida.
Escrevendo sobre Marcel Proust, identifica-se com ele e descobre o
mesmo refúgio que permitia, a ambos, vencer uma tristeza desolada e
construir, “com os favos da rememoração, uma casa para o enxame dos
pensamentos”. Ali também habitaria sua escrita, na primitiva felicidade
elegíaca, voltada para um paraíso perdido desde sempre, evocado no
presente com a avidez do desejo de ser feliz. O “impulso de felicidade”
que ele reconhece no romance de Proust, Em busca do tempo perdido,
ilumina com um farol sua própria obra.
Ler o que escreve sobre Proust é, de certa maneira, encontrar a
autobiografia de Benjamin. A fascinante escrita de Infância em Berlim por
volta de 1900 modela-se em Proust, do qual Benjamin foi tradutor. No
romance de Proust, ele encontra a tentativa, talvez a mais radical na
literatura ocidental, de autoimersão. Mas, se Em busca do tempo perdido
persiste uma interioridade, em Infância em Berlim é deliberada a
preocupação em suprimir o biográfico. É a perda de uma identidade
psicológica, na dispersão das coisas, que constrói a experiência da cidade
de Berlim, no alvorecer do século 20. A percepção da criança, identificada
à materialidade urbana dos objetos, permite a diluição das fronteiras
entre o sujeito e o mundo exterior. Pela infância, caem as alfândegas do
interior e do exterior e revela-se uma passagem entre os séculos, entre o
que morre e o que se anuncia na forma de um assombro: “Como um
molusco em sua concha, eu vivia no século 19, que está agora oco diante
de mim como uma concha vazia. Levo-a ao ouvido”.
Quando as novidades tecnológicas fazem sua entrada nos lares
abastados, ganham a desconfiança dos senhores – o telefone, por
exemplo, é segregado no quarto dos fundos, “entre o baú de roupa suja e o
medidor de gás”. Os aposentos nobres, repletos de bibelôs, lustres,
tapetes, almofadas e palmeiras decorativas, não se deixam invadir pela
campainha que assusta a paz burguesa. A criança, ao contrário, não resiste
e, ao ouvir a voz mágica, aceita qualquer proposta que lhe chegue pelo
aparelho. Sucumbe à autoridade do mito, despersonaliza seus desejos,
fundindo-os aos da máquina.
Uma série de metamorfoses conta o mistério das coisas que
desaparecem no mundo almofadado da classe burguesa oitocentista. No
oco do século 19, aconchega-se o menino que ouve os estertores das coisas
findas. O menino que caça borboletas submete-se ao “antigo estatuto da
caça”: de caçador se transforma em caça, até que a captura lhe devolva a
forma humana. Quando, atrasado na escola, entra depois da chamada do
professor, torna-se invisível pela ausência na nomeação, como Peter
Schlemihl, o personagem de Adelbert von Chamisso que perdera a
sombra. A criança escondida atrás da porta transfigura-se em porta. Ao
sentimento de segurança diurna que a casa paterna dá ao menino
corresponde a metamorfose do pesadelo noturno, quando ela se torna um
“arsenal de máscaras”.
Nas formas sombrias das coisas que desaparecem na noite da casa
burguesa, mas também da velha Berlim, revelam-se a beleza insuspeitada
do que se extingue e o conhecimento crítico sobre o século que finda. Uma
sucessão de mapas afetivos desdobra os quarteirões em classes e traz, na
rememoração das ruas e dos espaços, não a criança interior na lembrança
do adulto, mas Berlim e o século que morre. A rememoração retoma a
percepção da criança, que, na sua metamorfose em coisa, revela o aspecto
fantástico do carretel Odradek, o personagem de Franz Kafka: “Odradek é
o aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento. Elas são
desfiguradas”.
A experiência, desagradável para a criança, de fixar uma identidade é
narrada por meio da ida ao fotógrafo. A representação idílica do fundo
desenhado de montanhas, a pose paralisada de montanhês alpino, os
adereços para a cenografia ingênua – tudo desfigura a criança, que se
torna semelhante ao cenário e nele some, assim como o pintor chinês
sumira na paisagem pintada. Benjamin se desfigura como indivíduo para
integrar-se na experiência coletiva. Seu método desviante: mascarar-se
nas palavras para captar semelhanças com as quais constrói sua leitura do
mundo. Pela linguagem, faz-se semelhante “às casas, aos móveis, às
roupas”. Tece semelhanças com os autores que estuda: põe, nas mãos do
menino fotografado de Infância em Berlim, o imenso chapéu que o menino
Kafka segura em uma fotografia. Nos gestos de Constantin Guys
pintando, descritos por Charles Baudelaire, Benjamin vê o ato de escrever
do poeta, mas também seus próprios movimentos esgrimistas na escrita.
Ele, o estrategista, que acreditava que a verdade só se deixa capturar com
golpes audaciosos e com o rompimento das fronteiras do pensar.
Walter Benjamin entre o irmão, Georg, e a irmã, Dora, por volta de 1905.
Entre filosofia e literatura
PATRÍCIA LAVELLE

Ainda não sou capaz de decidir se é a filosofia ou a literatura que


predominará em meus estudos universitários.”Essa conclusão do
curriculum vitae redigido por Walter Benjamin em 1912 reveste,
retrospectivamente, um caráter profético. A transgressão das fronteiras
tradicionais, embora nunca bem demarcadas, entre literatura e filosofia
caracteriza toda a obra dele. Embora tenha optado por um doutorado em
filosofia sobre o conceito de crítica do primeiro romantismo alemão, ele
pensava poeticamente – é o que conta não por acaso Hannah Arendt, sua
amiga e correspondente.
Contra a lógica argumentativa do sistema, Benjamin reivindicou o uso
de recursos poéticos no interior do discurso teórico, explorando passagens
entre formulações conceituais e metafóricas. Mas, se por um lado seus
ensaios tendem a apagar demarcações rígidas entre filosofia e literatura,
por outro a produção literária de sua maturidade mantém-se nos limiares
do pensamento teórico-especulativo, explicitando a abertura da
construção poética ao pensamento. Basta lembrarmos da prosa
enigmática de Infância berlinense por volta de 1900, na qual o material
biográfico se transforma e se deforma à luz de elementos conceituais, ou
de sua menos conhecida produção de contos, atravessada por uma
reflexão teórica sobre a narrativa, ou dos aforismos de Rua de mão única e
da forma inclassificável de suas “imagens de pensamento”.
Durante a Primeira Grande Guerra, Benjamin trabalhou na retradução
da poesia de Charles Baudelaire e mais tarde traduziria também Honoré
de Balzac e Marcel Proust. Na contramão dos conflitos que opuseram
Alemanha e França no início do século 20, foi um passeur, como se diz
significativamente em francês, pois a palavra associa tradutores de
literatura estrangeira a guias de migrantes e de refugiados. Mas o que o
tradutor permite passar além das fronteiras linguísticas? O que implicam
tais passagens? O que delas podemos esperar?
Benjamin situava a tradução literária entre os muitos gêneros
limítrofes que praticou, indicando sua vizinhança com a filosofia. Haveria,
segundo ele, “um engenho filosófico, cujo mais íntimo desejo é alcançar
aquela linguagem que se anuncia na tradução”. A frase, que se encontra
no ensaio sobre “A tarefa do tradutor” (1921), incluído como prefácio à
edição de suas próprias traduções dos Quadros parisienses de Baudelaire,
precede a citação de um poeta.
Mantendo em português a sintaxe desconstruída e a pontuação
estranha do original, traduzo aqui o trecho da “Crise de vers” (Crise de
verso) de Stéphane Mallarmé, que ele próprio não traduz em alemão: “As
línguas imperfeitas, nisso que várias, falta a suprema: pensar sendo
escrever sem acessórios nem sussurros, mas tácita ainda a imortal
palavra, a diversidade, sobre a terra, dos idiomas não impede ninguém de
proferir as palavras que, senão se encontrariam, numa cunhagem única,
ela própria materialmente a verdade”. Numa continuação não incluída na
citação dessa passagem, Mallarmé aponta o verso como aquilo que
“filosoficamente remunera o defeito das línguas, complemento superior”,
mas Benjamin atribuirá tal tarefa à tradução. Situando-a não apenas nas
fronteiras linguísticas, mas também entre poesia (Dichtung) e teoria
(Lehre), dela espera a “língua da verdade”, que seria também a
“verdadeira língua”.
Um trecho de Infância em Berlim por volta de 1900 permite pensar essa
verdade poética para a qual a tradução – como também, de outro modo, a
crítica – abre passagem. Nele, Benjamin nos conta sobre o exame infantil
da gaveta das meias e a interessante descoberta que o acompanhava.
Enrolado e dobrado sobre si mesmo, cada par de meias se apresentava à
mão do menino como um pequeno bolso. Ao mesmo tempo envelope e
envelopado, forma e conteúdo, a meia-bolso era uma pequena totalidade
fechada em si. Entretanto, a criança não se contentava em segurar o
mistério encerrado na bola de lã. A melhor surpresa era justamente o
momento no qual procurava extrair “o que vinha junto” de sua bolsa.
Nessa passagem, a totalidade encantada se desfazia, revelando, no
instante de sua fragmentação, a verdade enigmática que escondia, isto é,
“que a forma e o conteúdo, que a coberta e o encoberto, que ‘o que vinha
junto’ e a bolsa eram uma única coisa”. Uma única coisa e entretanto
também uma terceira: o simples par de meias no qual os dois primeiros se
transformavam.
É o gesto de esvaziar a bola de lã que desvela a magia, ao mesmo tempo
que a desfaz. A experiência interessante está na passagem da pequena
totalidade – a forma que é seu próprio conteúdo – ao duplo fragmento no
qual a mágica unidade do todo é negativamente simbolizada. Não é por
acaso que na última versão manuscrita de Infância em Berlim a brincadeira
das meias evoca o tema da crítica: “Nunca me cansei de pôr à prova esse
exercício. Ele ensinou-me que a forma e o conteúdo, o invólucro e o que
ele envolve, são uma e a mesma coisa. E levou-me a extrair da literatura a
verdade com tanto cuidado quanto a mão da criança ia buscar a meia
dentro de sua bolsa”.
Todo poema é uma meia-bolso fechada em si mesma, e como tal
também reforça fronteiras linguísticas. Levando ao que há de mais
singular em cada língua, desafia a experiência da tradução. Esse é o
problema que está no ponto de partida do projeto da transcriação poética
de Haroldo de Campos, que procura transpor justamente o que aparece
como intransponível: a emoção estética que repousa sobre o que há de
indissociável entre a forma e o conteúdo do texto poético, entre sua
configuração discursiva única e a língua na qual foi escrito. Mas ele o
encontra formulado pela primeira vez em “A tarefa do tradutor”. Para
Benjamin, além de toda comunicação de conteúdos, o “poético” é
justamente aquilo que incita a traduzir.
Nesse sentido, a densidade intraduzível do texto literário não é uma
fronteira que se fecha, mas um lugar de passagem: a própria
traduzibilidade que, segundo ele, certas obras possuem como uma
virtualidade nelas contida, mesmo que não tenham sido nem possam ser
adequadamente traduzidas. A singularidade da configuração linguística
do poema é também aquilo que, em sua própria língua, aparece como
estrangeiro: a expressividade do que resiste à comunicação de conteúdos,
remetendo ao núcleo irredutível da pura linguagem (reine Sprache).
Nada pareceria mais absurdo a Benjamin do que estabelecer
hierarquias entre as diferentes línguas históricas que, animadas por
múltiplas vozes, estão sempre em constante transformação no devir das
falas e dos textos. Embora a palavra alemã Sprache não faça distinção
entre língua e linguagem, o que Benjamin chama de reine Sprache não
deve ser compreendido como uma língua entre outras ou como sua
origem histórica, mas como o medium expressivo no qual todas se movem,
fertilizando-se mutuamente nas traduções. Dinâmica de produção de
afinidades, atravessa as línguas em constante mutação e nelas visa à
totalidade dos modos de olhar o real, conferindo ao tradutor sua tarefa: “É
o grande tema da integração das várias línguas em uma única, verdadeira,
que acompanha o seu trabalho. Essa linguagem, porém, em que as frases,
obras e juízos isolados jamais se entendem – razão pela qual permanecem
dependentes da tradução – é aquela na qual, entretanto, as línguas
coincidem entre si, completas e reconciliadas no seu modo de visar”.
O ponto de partida estético dessa filosofia da tradução contém assim
uma política. Ao mirar o âmago secreto em que o poema adere à sua
própria expressão linguística, o tradutor descortina o horizonte utópico no
qual as línguas se tocam e se transformam mutuamente, híbridas e
fecundas.
A potência política da tradução
ISABELA PINHO

Em 1921 Walter Benjamin publica o célebre ensaio “Para uma crítica da


violência”. Reflexo do conturbado momento histórico em que foi
redigido, a tese principal é de que a violência (Gewalt) é um meio cujo fim
é a instauração e a manutenção do direito como estrutura de poder
(Macht). O monopólio da violência por parte do direito de Estado não tem
em vista a proteção da vida de seus súditos, mas a própria manutenção
desse direito. A queda do império de Guilherme 2º, coincidindo com a
instauração da República de Weimar em 1919, explicita o ciclo dialético
entre uma violência que instaura um novo direito e uma violência que o
mantém. De Império a República, de um determinado ordenamento
jurídico a outro, persiste o monopólio da violência por parte do Estado. No
ensaio, Benjamin procura por uma violência como puro meio, que
interrompa o ciclo entre violência instauradora e violência mantenedora
do direito.
Estabelecer fronteiras (Grenzsetzung) é o fenômeno originário da
violência instauradora do direito em geral, diz Benjamin. O ato jurídico-
político originário é o estabelecimento de fronteiras que delimitam dentro
e fora, incluídos e excluídos, amigos e inimigos da pátria. Em seus
primórdios, “todo direito foi um direito de prerrogativa
[Vorrecht/privilégio] dos reis ou dos grandes, em suma: dos poderosos”. O
privilégio primordial de apropriar a terra, nomeá-la e ordená-la indica o
nexo território-Estado-nascimento que caracteriza o antigo e ainda atual
nómos da terra, cujo fechamento de fronteiras em tempos de pandemia é
mero sintoma. Se a figura do refugiado nos é tão inquietante, é porque
coloca em questão uma vida humana em terra de ninguém.
Em O nómos da terra, o controverso jurista alemão Carl Schmitt, com
quem Benjamin trocou correspondências, descreve a origem do termo
nómos, palavra grega para lei. Nómos indica a ordenação espacial original
necessária para o estabelecimento de toda e qualquer ordem jurídica.
Nómos indica que o direito está objetivamente enraizado na apropriação
da terra. A constituição jurídica de um nómos, ou seja, a apropriação
jurídica do espaço, tem por pressuposto a capacidade de nomear. No
termo alemão Landnahme, apropriação ou tomada da terra, encontramos
o termo Nahme, antiga grafia de Name, nome. Nomear e constituir uma
ordem jurídica são atos similares, na medida em que implicam
apropriação. Exemplos históricos – incrivelmente ainda frequentes – são a
imposição do nome do marido à mulher, que é “tomada em casamento”,
ou o patronímico imposto à criança no momento do nascimento.
Quando Benjamin, no célebre ensaio “Sobre a linguagem em geral e
sobre a linguagem humana” (1916), constata uma origem mítica do direito
na ordem da nomeação, deve-se ter em vista essa origem jurídica que
simultaneamente nomeia e se apropria do espaço nomeado. Em “Para
uma crítica da violência” (1921), além de Benjamin se referir ao
estabelecimento de fronteiras como fenômeno originário da violência
instauradora do direito em geral, também afirma que a violência que pode
destituir o direito aniquila fronteiras (vernichtet grenzenlos).
Se, por um lado, nomear é apropriar e, por outro lado, apropriar é o ato
jurídico-político primordial, linguagem e direito parecem ter um vínculo
fundamental. No mesmo ano em que sai o ensaio sobre a violência,
Benjamin publica “A tarefa do tradutor” (1921). A ambivalência da
comunicabilidade da linguagem (Medium) e da linguagem como
comunicação (Mittel), trabalhada em “Sobre a linguagem” (1916), é
retomada agora em outros termos. No ensaio de 1916, Benjamin considera
a linguagem para além de seu caráter comunicativo e instrumental, de ser
meio (Mittel) para fins, um meio para comunicação de conteúdos através
de si mesma. Uma experiência da linguagem como Medium, meio puro,
em que o que se comunica é o próprio fato de que há linguagem, pode ser
feita quando ouvimos palavras de uma língua estrangeira desconhecida –
para além de todo conteúdo e de todo significado, fazemos a experiência
de que há linguagem. A glossolalia infantil também pode indicar uma
dessas experiências de comunicabilidade da linguagem para além de toda
e qualquer comunicação: a língua pura (die reine Sprache).
Em “A tarefa do tradutor”, o Medium da linguagem será concebido
como parentesco supra-histórico entre as línguas históricas. Para além das
barreiras entre as línguas históricas, a tradução tem em vista a língua
pura, uma experiência comum entre todos os falantes da Terra, para além
das fronteiras políticas e linguísticas. Se, por um lado, as línguas históricas
são imprescindíveis para constituir as identidades nacionais, em seu
vínculo território-Estado-nascimento, a língua pura, por outro lado, indica
uma experiência comum para além de toda diferença. Essa perspectiva
traz à tona o aspecto político da tradução: “Em nome da pura língua, o
tradutor rompe as barreiras apodrecidas [morsche Schranken] da sua
própria língua: [Martinho] Lutero, [Johann Heinrich] Voss, [Friedrich]
Hölderlin, [Stefan] George ampliaram as fronteiras [die Grenzen] do
alemão”.
Nesse trecho é evidenciada a dimensão política da linguagem: para
além das barreiras (Schranken) e fronteiras (Grenzen) entre as línguas
históricas, “a tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua,
exilada na estrangeira”. Se aqui Benjamin fala em barreiras apodrecidas
(morsche Schranken) entre as línguas, no ensaio sobre a violência aparece a
mesma palavra: há algo podre no direito (etwas Morsches im Recht). Entre
barreiras e fronteiras, Schranken e Grenzen, o termo alemão Rand, borda,
margem, ou limiar, pode auxiliar a pensar a tarefa e a experiência da
tradução. Assim como entre a borda de um copo e os lábios que o tocam há
encontro, e não separação, traduzir também é tocar o limiar, a borda, o
ponto de contato entre as línguas. Mas essa não é nem uma experiência
metafísica nem mera abstração.
Por exemplo, entre aqueles que traduzem, acredito ser comum
deparar-se com o esquecimento dos termos da própria língua: comumente
a palavra estrangeira nos faz esquecer da palavra na língua materna,
produzindo uma espécie de estranhamento da própria língua. “Como se
diz mesmo...?” De repente, a palavra cai em nossos lábios: “ah, é isso, é
assim que se diz”. O que ocorre no átimo de segundo em que não se está
nem no registro da língua materna, nem no registro da língua estrangeira?
No limiar entre duas línguas, o tradutor faz a experiência de que há
linguagem. Essa experiência também ocorre quando, por exemplo,
tentamos recordar o nome de um livro ou de uma peça e só lembramos
que começa com determinada letra – nesse átimo em que a palavra está
“na ponta da língua”, fazemos a experiência de que há linguagem, para
além e aquém de toda e qualquer significação.
É o contato com a outra língua que nos permite redimir, em nossa
própria língua, a pura língua exilada na estrangeira. É do encontro entre as
línguas que fazemos a experiência de que há linguagem, ou de nosso ser
falante. Talvez seja esta a tarefa política da tradução: pensar a
possibilidade de uma comunidade com base no fato de que somos falantes
para além das barreiras e fronteiras estatais e linguísticas. Se a tradução é
apenas um modo provisório de lidar com a estranheza da língua, ela
indica também a experiência de que somos todos estrangeiros em terra de
ninguém. Passagens entre fronteiras: a potência política da tradução é a
estranha lembrança de nossa singularidade mais comum – nosso ser
falante.
O cômico e o anúncio do trágico
CARLA MILANI DAMIÃO

Quando Benjamin era um jovem envolvido no movimento estudantil


radical e já havia iniciado seus estudos em Filologia, História Geral e
Filosofia na Universidade de Friburgo em 1912, viaja “anonimamente”,
como disse num cartão-postal, para o Norte da Itália com amigos da
época: Erich Katz e Friedrich Simon. Essa rápida Bildungsreise [viagem de
formação] de Benjamin, de Lucerna aos lagos de Como e Maggiore,
passando pelo maciço ou passo de São Gotardo, na Suíça italiana, partindo
para Milão, Verona, Vicenza e Veneza, resultou em um dos ensaios de
escrita do autor. A preocupação de Benjamin sobre o gênero de escrita
sempre existiu e nunca o abandonou – sua consciência da forma fez com
que a regrasse com intenções claras. O que poderia ser um diário de
viagem se torna uma forma que – seguindo os passos de Johann Wolfgang
von Goethe, como deixa claro logo de início – aproxima-se de uma
definição própria de relato de viagem, pouco distinta dos experimentos
autobiográficos mais tardios de Benjamin. O diário intitula-se “Minha
viagem à Itália, Pentecostes 1912”.
Lemos no primeiro parágrafo as “regras” dessa escrita: “Do diário que
quero escrever, apenas a viagem deve emergir. Gostaria que nele o todo
essencial da viagem se manifestasse, a síntese silenciosa e espontânea de
que uma viagem de formação precisa e que constitui sua essência. É ainda
mais claro para mim que nenhuma vivência isolada tenha influenciado
fortemente a impressão de todo o caminho. Natureza e arte culminaram
harmoniosamente em toda parte naquilo que Goethe chama de ‘solidez’.
Não é aventura, nem gosto pela aventura da alma, [que] apresenta um
chão eficaz ou fascinante”.
Quando pensamos no gênero “diário de viagem” – ao estilo de grandes
viajantes como Alexander von Humboldt, ou na versão considerada
“menor”, como a do “diário íntimo” –, notamos que a proposição citada
requer um entendimento especial. Em primeiro lugar, não se trata de uma
escrita de viagem guiada por autorretratos que marcariam, como
pequenas assinaturas escritas em rochas e árvores, o caminho do viajante.
Ao retirar-se de cena e buscar a “solidez” goethiana da narrativa que
reúne natureza e arte, percebemos que o que deve vir à frente é a natureza
– descrita no caminho percorrido em trens, coches, bondes e barcos a
vapor – e a arte, acompanhada de discussões estéticas, em galerias,
museus e igrejas italianas.
É um propósito semelhante ao da escrita autobiográfica mais tardia e
que também apresenta parentesco com De minha vida: poesia e verdade, de
Goethe. Não apenas se supõe que o tempo (auto)biográfico e o tempo
histórico estejam reunidos na busca pela apresentação da verdade em
Goethe, seguido por Benjamin, como a memória que se constitui deve
corresponder à memória de si e à do mundo, simultaneamente. Em
termos espaciais, a “solidez” que reúne natureza e arte pode ser entendida
na mesma reunião que é posta à frente do “eu”, tornando-o secundário a
quem vê, e a quando e onde se vê. Como Benjamin nos diz em seu verbete
sobre o grande poeta e pensador alemão tão presente em seu pensamento,
trata-se de um intuito mimético em refletir o mundo: “[...] havia [em De
minha vida] o impulso de imitar, em sua vida, a imagem do mundo e trazê-
la à tona” (Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe, Editora 34, 2009). Em
sua viagem à Itália, Benjamin parece seguir os passos de Goethe, tendo
claramente a viagem deste como guia. Na arena de Verona, filtra sua visão
pela de Goethe ao perceber os mesmos arcos em meio às ruínas.
É possível, no entanto, perceber que Benjamin não consegue realizar
seu propósito esmerado na mímese goethiana que pretende reunir
natureza e arte de forma sólida, pois o leitor se acerca na leitura de um
“eu” que saltita comicamente em descrições e eventualmente toma a
cena. Foi talvez preciso descer ao Sul da Itália para, mais tarde, realizar a
tarefa narrativa a que se propõe em seu diário de juventude. “Nápoles”,
em Imagens de pensamento, realiza mais de perto essa tarefa. Mas, na
escrita conjunta com Asja Lācis, é difícil encontrar o autor nos
instantâneos fotográficos da “cidade porosa”, entre os vários outros
atributos imagéticos e antropológicos que materializam a visão dessa
cidade.
Há vários aspectos marcantes em torno da viagem de um jovem de
família burguesa que provavelmente não sabe de sua ida – visto que, como
Benjamin diz em carta, ele viaja com amigos, mas de maneira incógnita. O
que há de interessante é que a viagem de 1912, além de anteceder vários
acontecimentos históricos que modificaram o mundo como um todo,
torna-se um precedente da vida daquele que, em particular, furtou-se ou
foi furtado da existência entre quatro paredes, sejam elas paredes
familiares, de um gabinete de professor ou de uma sala de aula na
universidade. A casa, o lar, a pátria... todas as instâncias seguras de um
bem-nascido ruíram e, ruídas, tornaram a vida de Benjamin um exercício
de nomadismo físico e intelectual – de forma mais dramática a partir de
1933, quando parte forçosamente para o exílio.
Em 1912, dois anos antes do início da Primeira Guerra Mundial,
Benjamin embarca numa viagem que talvez fosse um dos episódios mais
comuns na vida de um estudante alemão que crescia à sombra da ideia do
grand tour, da viagem de formação, da ideia cultivada de educação
sentimental ou de educação intelectual e moral que permeou muitas
narrativas desde o século 18, povoando a imaginação de seus leitores e
instigando o desejo de, ao desvelar novos mundos, descobrir a si mesmo e
experimentar – na transposição de limites geográficos – a própria
liberdade.
Leitor de Goethe e de sua Viagem à Itália (1786-1788), Benjamin,
mesmo com apenas vinte anos, não é um viajante ingênuo. E seu relato dá
mostras de um misto de sagacidade e perturbação. Há de um lado uma
demanda de exigência e rigor de conduta de viagem, de outro, um
absoluto descontrole, que aparece na dificuldade com a língua italiana
que ele e seus amigos mal conhecem. O descontrole emerge nas tentativas
de falar francês, nos pequenos golpes aos quais estavam dispostos como
turistas alemães e que rendem certa comicidade ao relato. Por meio
desses impasses, algo de um retrato cultural e antropológico, nem sempre
positivo, escapa às observações que reúnem natureza e arte e ganha
densidade subjetiva, fazendo surgir um “eu” atrapalhado. O lado lúdico e
dramático da viagem mostra também um Benjamin que se perde quase
propositalmente de seus amigos, talvez porque eles parecessem
comedidos e controlados demais em seus movimentos, seja nas refeições
ou nas negociações com os locais. A visita A última ceia de Leonardo Da
Vinci é um dos episódios mais angustiantes do relato, mas mistura o
dramático e o cômico, ao reunir a dificuldade com a língua italiana e a
impressão causada pela obra de Da Vinci. “Vejo uma igreja, corro para
dentro, está escuro, vejo alguém e vou em sua direção: ‘Leonardo da
Vinci?’ [pergunto] Ele me mostra a saída, corro para fora da igreja e entro
no prédio adjacente, pago e preciso deixar o bastão de caminhada
novamente. É realmente ultrajante que tenha agora o ingresso e precise
esperar neste buraco até que um dos homens se levante lentamente e
venha até o portão. Além do portão, há uma grande sala e o afresco de
Leonardo. Sua desolada degradação é fascinante. As imagens parecem ser
o produto de uma decomposição enigmática saindo das paredes. Eu só
vejo a obra de Leonardo. Uma parede mantém o observador a dois metros
de distância. Fico na frente do afresco, pingando suor, meu pincenê cai no
chão, recolho-o assustado, não posso guardá-lo. Pus no bolso – coloco os
óculos. Não consigo perceber mais nada, exceto o espaço e a consciência
de ter à frente, grande e descolorido, o que tanto admiro nas reproduções.
Tudo isso durou apenas meio minuto. Corro para o lado de fora e os
funcionários uniformizados sentados na antecâmara estão perplexos.
Começo a correr de novo, corro para o primeiro bonde, depois de dois
minutos desço novamente e ligo para um coche. O cocheiro trouxe um
cavalo moribundo. ‘Presto’ e bati com o bastão no chão. Deus!... ele me
leva a passear, vejo que claramente faz um desvio. Mas sou incapaz de me
expressar, apenas grito ‘presto’. Então procuro pelo pincenê, remexendo
em todos os bolsos e não encontro. Estou verdadeiramente exausto.”
Esse é um Benjamin que se descreve quase como Chaplin. Em outras
passagens, como quando se perde em Veneza, há mais desconsolo, mas
não menos desconcerto regrado por ironia. Não raro esta se avizinha da
melancolia, como a impressão de um limiar entre seu passado e seu
futuro, quando descreve seu sentimento em Veneza: “Fiquei sozinho no
passeio da Riva degli Schiavoni e, como muitas vezes acontece comigo,
sentia uma repentina solidão, estranha no contexto dos últimos dias,
percebi novamente a incerteza dos meus anos de estudante e de minha
vida futura”.
Diário de Portbou
ERNANI CHAVES

DEZEMBRO DE 1988.
Não lembro mais o dia exato, talvez 10 ou 11 de dezembro. Estou
chegando à Europa pela primeira vez. De São Paulo para Madri e depois
Barcelona. Tenho de estar no dia 2 de janeiro de 1989 no Instituto Goethe
de Schwäbisch Hall, uma pequena cidade próxima de Stuttgart, na
Alemanha, primeira parada antes de iniciar o período de pesquisa do
doutorado em Berlim. Seriam dois meses para aperfeiçoamento na língua
alemã. Antes, a passagem obrigatória por Paris.
Também não lembro a hora em que subi no trem noturno para Paris. O
horário deve continuar o mesmo. Mas o trem certamente se modernizou.
Naquela época, era um trem daqueles que habitavam a imaginação do
menino que nunca viajara de trem. Talvez a do trem cortando a neve nas
estepes russas em Dr. Jivago. Trem lotado – os aviões eram muito caros e o
trem, o transporte preferencial na Europa. Trem noturno, apenas cabines
com quatro camas, “beliches”, como dizemos no Brasil. Naquela época,
para entrar na França nós, brasileiros, precisávamos de um visto que
tirávamos no Brasil e que deveria estar registrado no passaporte. Como
até hoje, quando viajamos para países que nos exigem visto. Trem
internacional, isso era bem antes da criação da União Europeia.
Cheguei cedo à estação. Costume de criança. Viajar da ilha do Marajó
para Belém exigia preparação, e chegar cedo ao porto para pegar o navio, e
um bom lugar para sentar era uma espécie de “imperativo categórico”. A
voz da razão, no caso a voz da mãe, um alerta permanente. Até hoje sou
assim. Chegar atrasado num porto, numa estação rodoviária ou num
aeroporto é uma falha grave. A possibilidade de perder o barco, o ônibus
ou o avião me enche de angústia. Longas filas no anden, na plataforma. Os
passageiros entravam um a um, os passaportes de todos os estrangeiros,
ou seja, dos que não eram franceses ou não moravam legalmente na
França, eram cuidadosamente examinados e retidos. Só seriam entregues
próximos à chegada, às 9 da manhã, na Gare d’Austerlitz (disso lembro!).
Assim, eram classificados os “gregos” e os “bárbaros”.
Meu companheiro de cabine era um negro. Um negro que “luzia”,
como dizemos. O reflexo da luz na sua pele como que emitia raios de luz.
Disse um “Bon soir” e eu respondi com um “Merci, bon soir!”. Minhas
primeiras palavras em francês fora do Brasil. Todas as minhas professoras
de francês passaram como num filme na minha cabeça: Enedina, Beth,
Lucia, Risoleta. Queria fazer jus ao esforço delas. Meu corpo, cansado da
flânerie pelas ramblas de Barcelona, venceu a excitação da chegada, que
aconteceria 10 horas depois, em Paris. Adormeci logo.
Perto da meia-noite, o trem parou completamente. Mesmo assim, nem
abri os olhos e tentei voltar a dormir. Ouvia vozes, portas do trem abrindo
e fechando. De repente, batidas fortes na porta da cabine. Acordamos
assustados. O negro levantou e acendeu a luz, enquanto as batidas fortes
continuavam. Ele abriu a porta e vimos dois policiais. Eram franceses.
Abri os olhos e continuei deitado. Aí começou a discussão entre os
policiais e o negro. Os policiais pediam documentos. O negro os mostrou.
Continuou a discussão e, à medida que os policiais permaneciam duros e
inflexíveis, o negro levantava a voz e continuava discutindo. Eu, tenso,
nervoso. A questão girava em torno do documento de permanência do
negro na França, a carte de séjour. Os policiais se retiraram. O negro
fechou a porta e esbravejou um “la policie française... c’est la merde” ou
qualquer coisa assim. Falamos rapidamente, perguntou de onde eu era:
“ah, du Brésil, le meilleur ‘seleção’ du monde”. “Et vous?”, perguntei. “Côte
d’Ivoire”, respondeu... só mais tarde, já em Paris, perguntei a uma amiga
brasileira que país era aquele. “Costa do Marfim, leso”, me respondeu,
rindo.
O trem parado. De repente, resolvi abrir a cortina. Queria saber onde
estávamos. Abri, pus os óculos e, bem diante de minha janela, naquelas
placas típicas de sinalização nas estações de trem, pude ler: Portbou.
Levantei e, de pé, abri mais a cortina, para me certificar. Eu estava em
Portbou, palavra que, em catalão, significa “Porto do Boi”. O trem
começou a se movimentar. Meus olhos se encheram de lágrimas. Um
homem, ofegante, com uma pasta presa ao corpo, caminha entre os
Pirineus. Ele faz parte de um grupo de judeus alemães que tentava fugir da
França ocupada. Era setembro de 1940. Exatamente ali, em Portbou, na
fronteira fatídica, não suportando a possibilidade de vir a ser entregue à
Gestapo, ele pratica a “morte livre”, a “morte voluntária”, a Freitod, como
Empédocles, Sócrates... não um suicídio, Suizid, por fraqueza ou covardia,
como se costuma dizer, de forma moralmente condenável ou
patologizante, sobre os que “tiram a vida”, das Leben nehmen. Quase 50
anos depois, a fronteira entre a França e a Espanha continuava a ser esse
lugar onde a polícia interpelava, com violência, os estrangeiros. Talvez
também para marcar a relação entre fronteira e violência, na sua obra dos
anos 1930 Walter Benjamin tenha feito uma distinção entre Grenze,
“fronteira” – uma fronteira entre dois países por exemplo, que só pode, em
princípio, ser atravessada legalmente – e Schwele, “limiar”, “umbral” – que
pode e deve ser atravessado pelo pensamento e, assim, produzir novos
modos de expressão ou ainda outras narrativas.

SETEMBRO DE 2003.

Aproveito a viagem para um congresso sobre Nietzsche na França e


combino de visitar um velho amigo em Barcelona. Desta vez, com plena
consciência, queria aproveitar a viagem para visitar Portbou e o cemitério
onde Benjamin supostamente foi sepultado. O congresso havia sido
realizado na Fondation des Treilles, num pequeno lugarejo belíssimo no
sul da França, nas proximidades de Cannes. Era final do verão europeu. A
viagem seria demorada até a fronteira da Espanha, porque o trem era
pequeno e serpenteava ao longo do Mediterrâneo. Mais adiante, Banyuls-
sur-Mer, a cidade onde os fugitivos iniciavam o caminho pelos Pirineus,
transformado hoje em trilha de caminhada mas também, para muitos
outros viajantes, uma espécie de “peregrinação” pela conhecida rota de
fuga nos anos 1940. Dia ensolarado, o céu azul, as águas tranquilas do
Mediterrâneo, pequenas cidades, pequenas praias cheias de gente. Dentre
as cidades que apareciam nas placas, mais uma me chamou atenção:
Sanary-sur-Mer, refúgio de alemães, judeus ou não, como Thomas Mann
e sua família, em fuga do nazismo. As cidades e os lugarejos desapareciam
cada vez mais para dar lugar a uma vegetação densa e, lá no alto, os
Pirineus. Chegando a Portbou, pude ver, ainda do trem, sob o sol do fim
da manhã, a enseada, a praia e algumas pessoas, que fazem da cidade um
lugar muito frequentado no verão.
Desço do trem, com minha mochila às costas, orgulhoso de ser um
“jovem” viajante que tinha acabado de completar 46 anos. Mas, de
imediato, caio na real. Estou na fronteira. Dois “armários” da polícia
espanhola estão de pé, no meio da plataforma, um ao lado do outro.
Apalpo o bolso interno da minha jaqueta, pois já conheço o vento frio do
final de verão europeu e por isso sempre uso uma, para me certificar de
que meu passaporte, minha passagem de volta para o Brasil e o endereço
do meu amigo em Barcelona estão lá, bem guardados. A fronteira é
sempre assustadora. A de Portbou, mais ainda. Era como se eu estivesse
chegando a um lugar manchado para sempre pelo sangue de um inocente.
Passo altivo, de cabeça erguida, entre os guardas, que nada me pedem,
nada me perguntam. Respiro aliviado. Alguma coisa tinha mudado na
então recente União Europeia. Há tempos já não precisávamos mais de
vistos. De todo modo, foi um alívio. Nenhuma polícia de fronteira é
agradável e educada.
Estava cansado e com fome. A cafeteria da estação, quase vazia. Tiro a
mochila, escolho uma mesa, olho o cardápio. A garçonete, meio
sonolenta, se aproxima, não lembro o que pedi. Na época, ainda tomava
Coca-Cola para saciar a sede. Como rapidamente. Ansioso para sair dali e
conhecer a pequena cidade. Na hora de pagar, ensaio meu portunhol e
pergunto à garçonete como posso chegar ao cemitério. Ela olha para mim
e pergunta: “Viniste por Walter Benjamin?”. Levei um susto, devolvo o
olhar entre perplexo e curioso. “Como ela sabe que vim por causa de
Walter Benjamin?” Não consegui sequer abrir a boca e dizer um “sim”.
Simplesmente acenei com a cabeça. A linguagem universal dos gestos. Ela
me disse para descer as escadas e seguir os cartazes e as placas.
Desço as escadas e chego a uma rua estreita, de paralelepípedos,
cercada de árvores, que formavam um túnel. Quando olho mais
atentamente, em cada um dos postes de iluminação pública vejo um
cartaz com uma fotografia de Benjamin. Aí então, e só aí, me dei conta de
outra coisa, que escapou à programação consciente dessa viagem: eu
estava em Portbou no dia 25 de setembro de 2003, apenas dois dias antes
da data oficial da morte de Benjamin. Em dois dias, uma espécie de
associação dos amigos de Walter Benjamin faria um pequeno colóquio,
cuja programação estava colada numa das portas por onde eu havia
passado.
Na caminhada até o cemitério, a história contada por Hannah Arendt
voltou a minha memória. Em lá chegando, logo depois do fim da guerra,
ela descobriu que diante do elevado número de pessoas que procuravam
pelo túmulo de Benjamin, a administração do cemitério tinha inventado
um túmulo falso, numa das gavetas que se encontram no alto muro que se
ergue defronte ao mar. Desde então, nessa gaveta ninguém é sepultado.
No centro do cemitério, um pequeno monumento em homenagem a
Benjamin, no qual se lê a famosa passagem das “Teses sobre o conceito da
história”: “Não há monumento da cultura que não seja um monumento à
barbárie”, escrita em alemão e catalão, creio eu. Fico ali alguns minutos
parado, sob um vento frio. Mais uma vez as lágrimas vieram. Estou
sozinho, completamente sozinho, não há ninguém no cemitério. Procuro e
encontro algumas pedrinhas em volta, que deposito na base do
monumento, relembrando um antigo costume judaico de reverenciar os
mortos. Não há no cemitério nenhum lugar do qual se tenha certeza de
que é onde Benjamin foi sepultado.
Saio lentamente. A paisagem é belíssima. Ao transpor o portão, resolvo
entrar no outro monumento em homenagem a Benjamin, um pouco antes
da porta do cemitério. Inaugurado em 15 de maio de 1994, com a presença
de Lisa Fittko, a austríaca que conduziu Benjamin e seu grupo na
caminhada de fuga pelos Pirineus, é uma espécie de caixa de concreto, um
corredor, criado pelo artista israelense Dani Karavan. Acompanha a forma
da pequena elevação onde está situado o cemitério e segue na direção do
mar. Quase no fim desse corredor, há outra inscrição, desta feita com o
trecho, em alemão, de um dos inúmeros apontamentos de Benjamin para
as “Teses”: “É mais difícil honrar a memória dos sem nome do que a dos
conhecidos. A construção histórica é dedicada à memória dos sem nome”.
Talvez não haja outra frase de Benjamin mais eloquente para definir sua
concepção de história.
Desde 2007 há uma trilha sinalizada, que liga a cidade francesa de
Banyuls-sur-Mer a Portbou, seguindo o mesmo caminho percorrido por
Lisa Fittko. Seu nome é Ruta/Chemin Walter Benjamin. Espero ter tempo,
fôlego e euros para, qualquer dia, fazer essa trilha. Desta feita,
acompanhado da memória dos “sem nome”.
Vista de Portbou.
colaboraram nesta edição
Carla Milani Damião é doutora em filosofia pela Unicamp e professora
da Faculdade de Filosofia da UFGO
Ernani Chaves é professor titular da Faculdade de Filosofia da UFPA,
pesquisador do CNPq e escritor
Isabela Pinho é doutora em Filosofia pela UFRJ e pesquisadora dos
arquivos de Walter Benjamin em Berlim.
Katia Muricy é ensaísta, doutora em Filosofia pela UFRJ e professora
emérita da PUC-Rio
Patrícia Lavelle é poeta, professora da PUC-Rio e doutora em Filosofia
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS-Paris)

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