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Sumário

entrevista Gilson Rodrigues


República de Paraisópolis

dossiê A atualidade estratégica da semiótica


Apresentação
A semiótica também é filosofia
Os rastros da verdade
Como podemos entender o outro?

livros
Por uma imprevisível luta política

colaboraram nesta edição


entrevista Gilson Rodrigues
República de Paraisópolis
DOUGLAS VIEIRA

O Brasil passa dos 80 mil mortos por Covid-19 e, nas casas da classe média, as
pessoas discutem se vão ou não para a rua. Os dados mostram que os números
do isolamento social caem e, logo nas primeiras frestas, um grande número de
pessoas decide que a rua é um lugar seguro outra vez. Quem não se lembra do tal
bar no Leblon, que no dia 3 de julho aparentava a rotina de uma noite comum de
verão, com mais de uma centena de pessoas aglomeradas nas calçadas? A rotina
começa a procurar os rastros do novo normal. Dez dias depois, em 13 de julho, o
relógio marcava 14h56 quando Gilson Rodrigues pediu para interromper por um
minuto a conversa telefônica que estava tendo com a Cult.
“Boa tarde, comunidade. Primeiro, muito obrigado por terem vindo até aqui.
Aqui é o Pavilhão Social, uma das seis bases de atuação nossa aqui na
comunidade. Ali, acontece o projeto Mãos de Maria, são mais de 10 mil
marmitas sendo distribuídas por dia. Ali fica a coordenação, ali embaixo fica a
ambulância, e ali do lado uma fábrica de máscaras...” A interrupção durou cerca
de oito minutos, tempo em que ele explicou aos moradores de Paraisópolis, uma
das favelas mais conhecidas e populosas do Brasil, detalhes da estratégia local
de enfrentamento à pandemia.
Na zona sul de São Paulo, a comunidade conta com cerca de 100 mil
habitantes – apenas 324 municípios dos 5.570 que formam o Brasil ultrapassam
essa marca, segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Não é estranho, portanto, descobrir que, para os moradores
de Paraisópolis, Rodrigues é o “prefeito”. Aos 36 anos, ele está em seu terceiro
mandato, ou há 10 anos, à frente da União dos Moradores e do Comércio de
Paraisópolis, fundada há 35 anos. Porém, diante dessas mais de três décadas, é
agora que a visibilidade da associação foi amplificada – no momento em que o
Brasil, sem atuação do Ministério da Saúde no enfrentamento, atravessa uma
pandemia.
Fruto dessa ausência, o trabalho que Paraisópolis tem feito repercute
inclusive no exterior, em jornais como The Washington Post. Rodrigues explica
que foram 34 dias para pôr de pé toda a operação, que, além das ações
assistenciais – como distribuição de cestas básicas, marmitas e material de
higiene e de proteção –, conta com uma infraestrutura de saúde. Para as duas
frentes, há um grande número de pessoas. “A gente tem hoje 1.450 pessoas
voluntárias de dentro de Paraisópolis, 201 pessoas voluntárias de fora e 311
pessoas com algum tipo de remuneração, seja bolsa auxílio ou salário – sendo
que 95% delas são da comunidade. Além disso, tem um trabalho a nível
nacional, em 14 estados, que também demanda nossa coordenação aqui, com
uma orientação para o trabalho ou para a captação de recursos, distribuição de
materiais”, conta Rodrigues.
O resultado é uma estrutura em Paraisópolis que conta com uma ambulância
permanentemente à disposição dos moradores – já foram três, no início da
pandemia –, dois médicos, quatro enfermeiros e dois socorristas. Todos eles são
serviços contratados pela União dos Moradores e do Comércio, que também
converteu duas escolas da comunidade em centros de acolhimento para receber
pessoas sintomáticas que não têm como se isolar dos outros moradores de suas
casas.
Iniciativas como a casa de acolhimento impressionam inclusive quem vem da
área da saúde, como o médico sanitarista Arthur Chioro, mestre e doutor em
saúde coletiva e professor da Escola Paulista de Medicina, da Universidade
Federal de São Paulo (EPM/Unifesp): “Deixa eu explicar a importância do que
eles fizeram. Eu tenho atendido na unidade de Covid do Hospital São Paulo e
diagnostiquei um caso leve, estava no terceiro dia e precisava completar os 14 de
isolamento. Eu falei assim: ‘Você vai tomar líquido, comer bem, ficar de
repouso em casa até completar mais 11 dias. Estou te dando um atestado e você
vai ficar em casa, isolado em um quarto, tira todo mundo de perto, pega toalha
separada, utensílios domésticos...’. O cara olha para mim e diz: ‘Doutor, você
está de sacanagem? Morando oito pessoas em casa, não tem nem como. É uma
sala, quarto, tem mais um banheirinho e a cozinha, não tem como’. Essa é a
situação”, diz Chioro, que foi Ministro da Saúde (2014-15) no segundo mandato
de Dilma Roussef.
Nas ações de Paraisópolis, assim como ocorre em todas as favelas e bairros
periféricos do Brasil, o desafio não é atravessar a pandemia. É saber, segundo as
palavras de Rodrigues, que lá não existe um “novo normal” à espera: “Neste
momento em que são criadas hashtags como #onovonormal, nós ainda estamos
buscando o nosso normal, porque não é normal que na favela falte água, que o
serviço do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] não venha aqui,
que a gente esteja sofrendo mais nessa crise com a questão do desemprego e da
fome e que isso tenha aumentado a violência na favela. Nós sofremos para além
das questões da saúde, e vamos continuar sofrendo, porque falta por parte do
poder público criar uma política efetiva para a favela”.
A seguir, Rodrigues conta para a Cult sobre a rotina de autogestão da
estratégia que a União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis criou
localmente para combater a pandemia.

Quando e como vocês começaram a se preparar para enfrentar a pandemia


em Paraisópolis?
Nós iniciamos um processo no dia 19 de março e demoramos 34 dias para
colocar todas as operações de pé, desde a contratação de ambulâncias até a
transformação de duas escolas em casas de acolhimento para isolar as pessoas
com Covid. Começamos distribuindo 50 marmitas e hoje estamos distribuindo
10 mil, montamos um projeto de telemedicina, outro de apoio a refugiados,
fizemos um conjunto de suporte para o comércio local e distribuímos mais de 32
mil cestas básicas e cartões de vale-alimentação. Criamos uma condição mínima
para que o morador pudesse se proteger. E a gente constatou efetivamente o
abandono do Estado – nada aconteceu a não ser mensagens de parabéns, que, se
fosse fisicamente, seria aquele tapinha nas costas.

Como vocês definiram as ações?


Fomos olhando para a nossa realidade. Paraisópolis é um território muito grande,
são 100 mil pessoas. Sou chamado de prefeito e nossa primeira perspectiva é
que, diante de uma pandemia em que não poderíamos fazer reuniões,
aglomerações, teríamos que ter mais “prefeitos”, mais gente para cuidar uns dos
outros. Então montamos uma grande rede de solidariedade mapeando todo o
bairro e identificando voluntários que pudessem ser o que chamamos de
“presidentes de rua”. Cada um monitora 50 casas, são 656 presidentes. Foi uma
coisa de intuição, do que foi acontecendo a partir da nossa necessidade de
organização e, depois disso, a gente somou esforços com os agentes
comunitários de saúde [profissionais do Sistema Único de Saúde, SUS, que
atuam cobrindo determinado território dentro do próprio bairro, visitando a
casa e monitorando a saúde dos moradores]. Percebemos que já existia um
trabalho de acompanhamento nas casas onde a rede do SUS cobre, e que
trabalhar em conjunto com eles facilitaria, porque os agentes já sabem onde
estão os idosos e os doentes crônicos e ter essa informação nos ajudaria no
monitoramento.

Os hospitais eram um recurso apenas quando era um paciente realmente


grave?
Sim, temos três Unidades Básicas de Saúde (UBS) e uma Assistência Médica
Ambulatorial (AMA) na região de Paraisópolis e estabelecemos uma parceria
com elas e com a instituição que administra, que é o Hospital Albert Einstein,
parceiro também no projeto da casa de acolhimento. A gente contou com o apoio
das unidades e dos profissionais de saúde, sempre contamos com eles no nosso
dia a dia.

Quantas pessoas cabem nessas casas de acolhimento?


Somando as duas, 520 pessoas. Não sei o número hoje, mas deve ter uns 40, 50
acolhidos e não chegou a estar lotado em nenhum momento.
É inevitável pensar em como esta pandemia, para além das questões
sanitárias, expôs de maneira angustiante a desigualdade social.
A situação da população das periferias é de muito mais vulnerabilidade, mas
também de muito mais solidariedade do que na sociedade em geral. A gente não
consegue se proteger da mesma forma que a população com casas mais
organizadas, com acesso a boas condições de higiene, produtos de limpeza. O
álcool em gel era praticamente um produto de luxo em um primeiro período, e as
máscaras eram inviáveis de serem compradas. A população precisava escolher se
comprava comida ou se buscava proteção. E a maioria na periferia sofre com
falta de água. A população está muito exposta e de várias maneiras.

As máscaras distribuídas são vocês mesmo que fazem?


Nós temos um projeto, o Costurando Sonhos Brasil, que capacita em corte e
costura as mulheres em vulnerabilidade. Na pandemia, elas estão fazendo
máscaras, distribuímos mais de 70 mil. Nesta semana, vamos distribuir mais 100
mil. Nós atendemos, por semana, 45 presidentes de rua e suas famílias. É uma
rotina bastante intensa, com 6 mil mensagens diárias no WhatsApp. Mas a gente
está feliz porque está dando resultados.

Como vocês receberam o slogan “Fica em casa”?


A gente faz parte de uma população em que a maioria trabalha em serviços
essenciais. Ou seja, durante o fechamento, essa população precisou trabalhar –
quem não foi demitido – e lotou os ônibus e metrôs deste país. A periferia estava
indo trabalhar para garantir que aqueles que estavam em casa pudessem
continuar lá. É uma grande contradição. Neste momento em que são criadas
hashtags como #onovonormal, nós ainda estamos buscando o nosso normal,
porque não é normal que na favela falte água, que o serviço do Samu não venha
aqui, que a gente esteja sofrendo mais nessa crise com a questão do desemprego
e da fome e que isso tenha aumentado a violência na favela. Nós sofremos para
além das questões da saúde, e vamos continuar sofrendo, porque falta por parte
do poder público criar uma política efetiva para a favela.

Tem um novo normal para emergir nas favelas?


A gente continua mais vulnerável e, passada a questão do coronavírus, não
acreditamos em uma pós-pandemia que não tenha começado agora. Para mudar a
realidade da favela, teríamos que ter começado já, porque depois vem uma crise
e tudo se justifica. São dois países: um Brasil que fala de Alphaville e um que
fala de Alfavela, um de pessoas que podem ter acesso e outro em que falta água
e as pessoas moram em córregos, um que quer dividir a cidade em muros e outro
que só quer ter a vontade de usar um parque. Esse novo normal, na favela, é fake
news, assim como o “Fica em casa”, a quarentena e o home office.

E daí a necessidade de uma estratégia própria de enfrentamento...


A favela foi largada à própria sorte, então tínhamos que achar alternativas. O que
vimos foi que a maioria das pessoas que morreu morava em favelas e, neste
momento, existe um relaxamento da quarentena e a abertura do comércio. Dá,
mais uma vez, a sensação de que as 14 milhões de pessoas que vivem em favelas
neste país não valem nada. Não acredito em uma pós-pandemia de pessoas mais
conscientes. Muita gente descobriu a favela, a periferia e seus problemas. Mas
continuam em suas bolhas. Temos que sair das redes sociais e começar a
praticar, fazer com que as coisas aconteçam, senão vira um discurso bonito e só.
A favela precisa do apoio da sociedade, é disso que mais precisamos. O próximo
período é de agravamento da situação social, e é aí que a favela está inserida.

Consegue enxergar algo bom na tragédia atual?


O principal legado que fica é o posicionamento das favelas como potência –
econômica e também de organização, mobilização e criação das suas próprias
soluções. As soluções da favela vão sair de dentro para fora, e não de fora para
dentro, é isso que estamos mostrando quando a iniciativa começa em
Paraisópolis e é replicada em mais de 14 estados. E tem outras ações pelo Brasil.
Aqui, em Paraisópolis, fica também a organização das comunidades em que, na
pandemia ou não, as pessoas vão poder contar com seus presidentes de rua, com
os brigadistas que foram formados. Fica a política de organização, de o morador
ser agente da própria transformação, dessa rede de solidariedade em que um
pode contar com o outro.

Onde está a raiz dessa atuação de 35 anos da associação?


Paraisópolis é uma comunidade com um histórico de mobilização e de luta por
melhoria. Ninguém foi morar na favela, em cima do córrego e para passar
dificuldade, por ter vontade. As pessoas querem morar em um bairro e ter espaço
para crescer, se desenvolver. Mas, por ausência de Estado, a gente se tornou a
segunda maior favela de São Paulo. Nós não acreditamos que o governo tem
criado soluções, então agora, por exemplo, estamos criando um conjunto de
iniciativas com o apoio da Fundação Dom Cabral. Nosso principal projeto se
chama Pra Frente G10, que é um conjunto ações de formação voltadas para
empreendedorismo, para qualificar pessoas para que possam montar seus
negócios, suas redes de produção, cooperativas e assim fazer girar cada vez mais
recursos dentro da própria comunidade. Temos agora mais de cem dias de
combate à pandemia e não há uma solução efetiva dos governos para as favelas.
Então, estamos construindo.

Quando você percebeu sua vocação para líder comunitário?


Eu não percebi, aconteceu. Nunca quis ser líder de bairro, não era essa a
perspectiva que eu tinha para a minha vida. Eu só queria ser gente. Sou filho de
uma mulher surda-muda, que teve 14 filhos, que foram adotados. Fui dado para
um casal de italianos, mas em seguida minha avó materna me pediu de volta. Fui
criado por ela e, depois, pelas minhas tias. Tive contato com minha mãe, mas ela
morreu quando eu tinha sete anos. Fui criado de mão em mão e as pessoas
diziam que os filhos da muda iam crescer e virar bandido. Não queria aceitar
essa predestinação e resolvi estudar. E aí, na minha escola, acabei me
envolvendo em um processo de melhoria. Era uma escola muito ruim e decidi,
com outros amigos, criar um grêmio estudantil.

O que vocês fizeram na escola?


Conseguimos implantar uma biblioteca, uma sala de informática, uma rádio…
Fizemos um jornal, fomos um grupo muito ativo. E aí, por conta dessa gestão,
outras quatro escolas pediram para a gente ajudar a organizar grêmios, com um
outro grande grupo de jovens muito mobilizados. Nisso, vimos que dava para
construir ações para o bairro. Até então, o objetivo era a escola. Percebemos que
o sonho de morar em um bairro e parar de dizer que morava no Morumbi era
possível. Daí criamos um plano para divulgar e transformar Paraisópolis e
ajudamos a construir o maior projeto de urbanização que existiu aqui, asfaltando
todas as ruas, construindo duas escolas e criando espaços de moradia.

Você tinha quantos anos quando iniciaram o grêmio?


Tinha 16 anos. E foi a partir desse trabalho que fui parar na União dos
Moradores e do Comércio, que tem 35 anos. Fui eleito presidente há 10, estou no
terceiro mandato. A eleição se dá pelo voto direto da população.

Você chegou a trabalhar em outra coisa antes de ser líder comunitário?


Dei aula de informática, trabalhei em lava-rápido. Com 9 anos, eu já trabalhava e
aos 11 tinha três empregos: era catador de bolinha em uma quadra de tênis,
também trabalhava em um ferro-velho e aos sábados em uma feira.

Você também é um dos fundadores do G10 Favelas. Como é a atuação nessa


frente? Foi a partir dela que replicaram o modelo de Paraisópolis em outros
estados?
Sim, pegando um pouco desse exemplo. Fundamos o G10 Favelas em 2018 e
falávamos do potencial de consumo dessas dez maiores favelas, que em 2018 e
2019 faturaram 10 bilhões de reais no seu comércio interno. Nós nos inspiramos
no G20 e no G7, dos países mais ricos, e decidimos nos intitular como favelas
ricas que podem se transformar através do empreendedorismo. Acreditamos na
favela como potência, e não como coitadinha, como marginal. A gente quer dar
o protagonismo para o morador ser o agente da própria transformação.
Laryssa da Conceição Silva é Presidente de Rua em Paraisópolis e distribui
marmitas preparadas pelo projeto Mãos de Maria, que produz 10 mil refeições
por dia
dossiê A atualidade estratégica da semiótica


Apresentação
LUCIA SANTAELLA

O boom da semiótica como uma nova ciência ocorreu entre os anos 1960 e 70,
tendo seu centro de distribuição na Europa Central e nos Estados Unidos. Como
explicar essa explosão? Foi justamente nessas décadas que se deu o clímax da
cultura de massas, já composta pelo jornal, cinema, publicidade e, então,
amadurecida pelo rádio e pela TV como uma cultura da difusão de informações
e entretenimento. Foram muitas as consequências socioculturais por conta das
misturas na antiga separação entre cultura erudita versus popular, e também
foram muitas as transformações psíquicas decorrentes de novos hábitos
implantados no estilo de vida dos receptores.
Na miríade de transformações, destaca-se o fim da soberania da cultura
livresca como fonte exclusiva de conhecimento e de saber. Tornou-se, assim,
imperiosa a necessidade de uma ciência que fosse capaz de estudar a profusão
diferenciada de tipos de signo que brotam nos processos de comunicação visuais,
verbo-visuais, verbo-sonoros, audiovisuais. Primeira lição a ser extraída: após a
Revolução Industrial, com os novos aparelhos que ela trouxe para a produção,
reprodução e difusão de tipos de signo diversificados, o universo da cultura e da
vida cotidiana deixou de ser exclusivamente verbal. E os outros tipos de signo,
antes reclusos às salas de teatro, concertos e museus, passaram a habitar nossos
lares, entrando em nossa casa com a mesma facilidade com que entram a água e
a luz. Importante lembrar disso, para que os rastros do passado sejam mantidos e
ajudem a entender o atual estado de coisas que emergiu a partir da revolução
digital. Quando falamos de comunicação e cultura, nunca se deve perder a
dimensão do tempo, pois o imediato engana.
Se há mais de meio século já era importante o estudo dos tipos de signo
verbal nas suas misturas com signos extra, intra e infraverbais, aquém e além do
verbal, o que dizer sobre o universo pós-digital? Se não estivermos
enclausurados no “linguocentrismo”, não é difícil perceber que há dois séculos
os signos entraram em processo acelerado de diversificação e crescimento no
mundo, para os quais a digitalização e a cultura mediada por computador
funcionam como um dínamo. Desde os anos 1990, o computador tem se
transformado cada vez mais em uma mídia de todas as mídias produtoras de
signos – signos que nele se misturam e se complementam em sua própria
morfogênese e que são transportados no tempo e no espaço a uma velocidade
que faz inveja à luz. Instaurou-se com isso a comunicação planetária, a galáxia
da internet, hoje inundada por mídias sociais, motores de busca, aplicativos. E,
junto com isso tudo, engendrou-se a inteligência coletiva, sempre paradoxal e
contraditória, hoje monitorada pelos algoritmos de inteligência artificial. Estes, à
sua maneira, dão conta da avalanche de dados que correm pelos ares e que já
estão se abrigando nas próprias coisas ao nosso redor. O que se pode inferir
disso?
O mundo está demandando, exigindo uma atenção competente aos modos
como os signos são capazes de produzir sentido, como se dão as passagens entre
signos e quais são os processos multideterminados que entram em ação quando
os signos são interpretados. A semiótica se propõe a realizar essas tarefas.
Há várias correntes de semiótica, uma ciência que já nasceu diversificada. Há
semióticas que tomam as operações modelares da linguagem verbal para
entender como funcionam os outros sistemas de signos. Há semióticas, e são
várias, que desenvolvem a análise dos discursos e dos processos de significação.
Há ainda semióticas, de várias cepas, que apontam conceitos capazes de levar à
compreensão dos fenômenos da cultura. Todas elas desenvolvem-se como
ciências, criam uma teia de conceitos inter-relacionados que exigem esforço de
aprendizagem e tomam algum tempo de dedicação e formação. Mas com a
semiótica de C. S. Peirce, que será apresentada neste dossiê, há um problema sui
generis.
O ser humano é um ser semiótico por natureza. Isso significa que estamos
dotados da capacidade de interpretar signos intuitivamente. A intuição, no
entanto, é paradoxal, e ao mesmo tempo poderosa e sujeita a muitos equívocos
que precisam ser testados para que tenham validade. O estudo da semiótica
cumpre essa função de testagem de nossas intuições interpretativas, as quais,
quando não passam pelo crivo da análise e da exposição à alteridade, terminam
em crenças fixas e cegas. Nesses casos, em vez de funcionar como mediadores
de nossos acessos à realidade, os signos passam a atuar como biombos opacos.
A semiótica que será apresentada ao leitor neste número da revista Cult é a
semiótica de C. S. Peirce. Não é preciso exercitar o péssimo hábito de minimizar
as outras semióticas para engrandecer a que escolhemos. O que está sob o pico
do iceberg de nossas escolhas? Grande mistério. No caso das escolhas
intelectuais, somos muito mais escolhidos do que escolhemos, pois operam aí a
história de vida, a genealogia do pensamento e, last but not least, lembrando o
Foucault do cuidado de si, as forças de atração que nossos guias exercem sobre
nós. Diga-me quem são teus guias que te direi quem és. E, quando não há guias,
o pensamento se dispersa como poeira no ar.
Peirce era cientista de laboratório, apaixonado pela filosofia e criador de uma
lógica extensiva, concebida como semiótica, cujo propósito era compreender por
que e como a inteligência e o conhecimento humano evoluem e crescem. Mas
como se dá esse crescimento? Eis a questão. Peirce começou pelo estudo da
fenomenologia, uma fenomenologia a céu aberto, muito distinta da famosa
fenomenologia continental. A partir do exame de nosso estar no mundo,
recebendo e absorvendo chuvas incessantes de perceptos, Peirce chegou a três
categorias abstratas e universais – as quais de modo algum anulam as categorias
particulares das regiões específicas das diferentes ciências, apenas ajudam a
compreendê-las. Sobre a fenomenologia erigiu-se a semiótica como doutrina de
todos os tipos de signos, suas distintas modalidades, seus diferenciados poderes
referenciais e suas aptidões para serem interpretados.
O mais importante, entretanto, é que a semiótica não é autossuficiente. Ela
necessita da ética – e esta, da estética – para se complementar. Por fim, sobre os
alicerces da fenomenologia e da tríade – semiótica, ética e estética – eleva-se a
metafísica concebida como o estudo da realidade, que depende da mediação dos
alicerces sobre os quais se funda. A concepção peirciana da ética e da estética,
especialmente desta última, é originalíssima. A estética não é a ciência do belo,
mas a ciência do admirável, para onde nossa sensibilidade, aquilo que de mais
valoroso temos como seres humanos, deve ser atraída: para o admirável
contribuir para o crescimento da razoabilidade no mundo. Por mais modesta que
seja nossa tarefa, seu valor é medido pela capacidade de tornar o mundo mais
razoável e, portanto, mais admirável.
Outra originalidade radical de Peirce encontra-se na noção triádica do signo,
que funciona como um modelo lógico dinâmico, em perpétuo movimento e
devir, do processo de crescimento dos signos, em função das interpretações que
os humanos são capazes de produzir em cada momento de sua história – e que
hoje exorbitam entre cacofonias, clichês, mas também preciosidades
interpretativas que estão voando pelo mundo e que chegam aos terminais que
agora habitam até mesmo a palma de nossas mãos. Urge desenvolver
interpretações triádicas contra a herança mecanicista e cartesiana que ainda
persiste. O Ocidente, pela própria natureza dualista das línguas indo-europeias, é
vítima da praga até agora incurável das dicotomias. Não vem do acaso a cultura
dos extremos, que infesta a vida social contemporânea. De nada adianta a
pregação contra os discursos de ódio quando se continua preso à lógica das
dicotomias, que é a fonte de todos os antagonismos.
A convite da revista Cult, oferecemos ao leitor uma pequena viagem pelo país
da semiótica. Viajar é preciso. Ainda mais necessário quando se trata das
paisagens e paragens de um pensamento que fertilize. Que a viagem seja
prazerosa e que traga consequências pragmáticas na vida de cada um, quer dizer,
que funcione como guia para a ação deliberada e continuamente submetida à
crítica. Essa é uma das lições do pragmaticismo peirciano.
A semiótica também é filosofia
VINCENT COLAPIETRO

Independentemente de qualquer outra coisa que ela possa ser, a filosofia hoje
também é uma teoria dos signos. O que Friedrich Nietzsche observou no século
19, na Genealogia da moral, é ainda verdadeiro no 21: nós, seres humanos do
conhecimento, “não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e
não sem motivo. Nunca nos procuramos – como poderia acontecer que um dia
nos encontrássemos?”. Nem todos os filósofos contemporâneos se veem como
semioticistas. Como a maioria dos filósofos anglófonos, com certeza. Alguns
rejeitam em voz alta a possibilidade de desenvolver uma teoria abrangente dos
signos, no entanto praticamente endossam o que rejeitam na teoria. Pois, apesar
de seus protestos, ainda que de modo involuntário estão contribuindo para a
compreensão dos signos. O que Peirce disse sobre a metafísica pode ser dito com
a mesma verdade sobre a semiótica: aqueles que negam a metafísica não se
desprendem desse compromisso ontológico, mas apenas permitem que sua
própria metafísica não seja examinada.
Muitos filósofos contemporâneos são semioticistas conscientes,
explicitamente – ou algum equivalente aproximado (gramatologistas,
desconstrucionistas ou genealogistas). Mesmo aqueles que fogem do rótulo
estão, como acabamos de observar, contribuindo para nossa compreensão não só
de tipos específicos de uso de signos, mas também das dimensões mais
profundas do significado, em seu sentido mais amplo.
A virada linguística da filosofia sempre foi uma virada semiótica e, além
disso, uma virada para os signos que sempre fez um convite para explorar todo o
espectro de nossas práticas significantes. As consequências práticas da semiótica
para a filosofia têm sido, entre outras coisas, uma abordagem cada vez mais
pragmatista dos filósofos em relação a essas práticas. Embora tenha havido uma
aproximação entre filósofos e pensadores analíticos enraizados em diferentes
tradições filosóficas, não houve muito movimento em relação à semiótica. A
ignorância deliberada dos analistas tradicionais em relação à teoria dos signos
permanece profundamente arraigada.
Por sua vez, entre os filósofos contemporâneos dedicados a articular uma
teoria dos signos há profundas divergências. Essas divergências são tanto
metodológicas como substantivas. Abordagens altamente formais da semântica
e, por implicação, da semiótica não foram completamente abandonadas.
Abordagens mais informais da questão do significado, contudo, tendem a
predominar. O foco unificador é a própria pergunta: o que é significado? As
respostas divergem dramaticamente. Para o mainstream analítico, Peirce tem
sido e continua sendo um obstáculo. De um lado, provou-se impossível negar
seu gênio ou sua relevância. De outro lado, esse reconhecimento não garante um
endosso a seu fascínio por signos. Alguns analistas adotam a estratégia de retirar
a semiótica de sua filosofia em geral.
Repetimos: independentemente de qualquer outra coisa que a filosofia possa
ser, ela também é semiótica. Alguns filósofos sabem disso, outros não. Mesmo
assim, praticamente todos estão contribuindo, seja de maneira implícita, seja
involuntária, para nossa compreensão dos processos de significação e práticas
significantes. Por mais estranho que possa parecer, para alguns, a figura de C. S.
Peirce permanece uma tarefa para o futuro – tarefa que apela para que nos
juntemos a ele em sua exploração. Seguindo muito trabalho que já foi feito nesse
sentido (e foi feito de modo sólido e bom, até mesmo brilhante, inovador), obter
uma compreensão reflexivamente crítica dos usos dos signos consiste em uma
tarefa contínua. Uma razão é que isso apela para a fecundidade de nossa
imaginação relativa às novas mídias e, portanto, a novos modos de significação.
Outra razão é que nem mesmo nós, intelectuais, somos e nunca seremos
transparentes para nós mesmos. O anticartesianismo de Peirce significa que a
autocompreensão é, em grande parte, uma conquista árdua.
O eu não pode simplesmente olhar dentro de si e captar sem esforço os
próprios sentimentos ou pensamentos, em sua profundidade ou complexidade.
Em grande medida, nossos pensamentos e sentimentos nos iludem. Aqui é onde
a semiótica abraça uma ou outra forma de psicanálise como um recurso para a
autocompreensão. Um pensamento distinto nunca é um fenômeno isolado. É
definido por seus pressupostos e implicações. Deixar de discernir o que qualquer
pensamento pressupõe ou implica consiste em não compreender esse
pensamento. Para alguns filósofos, isso torna a semiótica duplamente suspeita.
Por si só, já é suspeita; em conjunto com a psicanálise, é duplamente suspeita!
Para outros, essa conjunção põe em foco uma das características mais
importantes da teoria dos signos.
Em O livro azul, Ludwig Wittgenstein levantou a questão inaugural da
investigação semiótica. “Se dissermos”, como ele fez nesse texto, que “pensar é
operar com signos, a primeira pergunta que você pode fazer é: ‘O que são
signos?’.” No lugar da esperada resposta, ele apresentou uma proposta dupla:
“Em vez de dar qualquer tipo de resposta geral a essa pergunta, proponho a você
[meu leitor] que examine com atenção casos particulares que deveríamos chamar
de ‘operação com signos’. Vejamos um exemplo simples de operação com
palavras”.
Primeiro, Wittgenstein propôs resistir à atração da questão geral; então,
propôs começar examinando uma instância específica do uso linguístico. Ele
advertiu contra “nosso desejo de generalidade”, vendo isso como indicativo de
“nossa atitude de desprezo em relação ao caso particular”. Mas e se a questão
geral fosse abordada pela atenção mais meticulosa a inúmeras instâncias?
Na filosofia anglófona, Peirce representa o “caminho não percorrido”.
Entretanto, a profunda suspeita de Wittgenstein sobre certas formas de
generalidade e sua atenção primordial às formas linguísticas de significação
marcam o caminho percorrido pela maioria dos filósofos profissionais na
tradição analítica. Porém, insiste Peirce, “ampla generalização é gloriosa quando
é o inevitável suco extraído dos pequenos detalhes dolorosamente amadurecidos
do conhecimento; ao contrário, quando não é isso, é um espírito grosseiro que
incita apenas clichês entre cem pequenos dogmas”.
A metáfora implícita é praticamente explícita: quando as uvas estão no ponto
do amadurecimento e quando são colhidas com cuidado e pressionadas de forma
artística, prometem produzir um vinho “glorioso”. Não há aqui nenhum indício
de desprezo em relação ao particular – muito pelo contrário. Peirce está dizendo
que o próprio Wittgenstein em suas investigações filosóficas é conduzido, pela
lógica de seu pensamento, a perguntar: “Todo signo por si só parece morto.O
que lhe dá vida? Em uso, está vivo. A vida é soprada para lá? Ou o uso é sua
vida?”. No entanto, ele se afasta dessa questão para considerar usos específicos
de signos (dando uma ordem ou fazendo um gesto). Sem constrangimento,
Peirce afirmou: “Todo símbolo é uma coisa viva, em um sentido muito estrito
que não é mera figura de linguagem”. Com certeza, qualquer signo em si –
separado de seu funcionamento contextual – não pode deixar de parecer morto.
Mas um signo concebido na abstração do uso e do contexto é apenas isto: uma
abstração.
Uma das consequências mais práticas da semiótica como filosofia e para a
filosofia é um convite constante: somos, de fato, chamados a prestar atenção
permanente nas várias maneiras como os signos reais funcionam
contextualmente e, com base nisso, a projetar possibilidades ainda não realizadas
na natureza ou na história. A teoria dos signos de Peirce, além de emitir esse
convite, também mostra com detalhes esclarecedores a promessa, infelizmente
em grande parte ainda não cumprida, das consequências de aceitar esse convite.
O respeito ao caso particular e o trabalho da generalização “gloriosa” andam de
mãos dadas.

Tradução de Lucia Santaella.


Os rastros da verdade
WINFRIED NÖTH

Se a cultura abrange tudo o que os seres humanos criam, em contraste com a


natureza, que os humanos não criaram, mas transformaram, a semiótica é
predestinada a estudar os produtos da cultura, por ela ser a ciência dos signos e
ter como premissa que todos os objetos de cultura são signos. Com efeito, a
semiologia estruturalista dos anos 1970, de Roland Barthes, Umberto Eco,
Algirdas Greimas e outros pensadores, definia-se exclusivamente como um
estudo de cultura, ou como “uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da
vida social”, nas palavras de Ferdinand de Saussure, em seu primeiro curso de
Linguística Geral, em novembro de 1908.
Há quem acredite que os produtos das diversas culturas se interpõem entre
nós e os objetos da realidade que eles pretendem representar. Como
testemunhas, recorrem ao mito da Torre de Babel, evento primordial responsável
pela diversidade das línguas e que impede a comunicação direta entre os povos
das diferentes culturas. Sem a confusão babilônica dos signos verbais, não
precisaríamos dos semioticistas para nos traduzirem os signos, que formam, por
assim dizer, véus ideológicos que se interpõem entre nós e as coisas reais,
tornando-as opacas. Com base em premissas como essa, a tarefa da semiótica
seria desvendar as coisas, tirar o véu entre nós e o mundo, para assim obtermos
acesso e conhecimento diretos sobre os produtos da cultura em sua verdadeira
essência.
Entretanto, esses críticos, que lamentam a falta do acesso direto, são vítimas
da saudade romântica da coisa em si – a nostalgia de Novalis pela linda flor azul,
que o poeta procurou, mas nunca encontrou. A semiótica de Charles S. Peirce,
porém, nos ensina que a nostalgia do real é uma profunda ilusão. Os objetos em
si ficam, de certa forma e até certo ponto, escondidos de nós porque qualquer
conhecimento das coisas se dá necessariamente por meio dos signos delas.
Nunca serão os objetos reais que se apresentarão à nossa mente, mas sempre
seus signos, pois, nas palavras de Peirce, “todo pensamento e conhecimento se
dá por meio de signos”.

O QUE É REAL?
O verbal constitui só o pico do iceberg das culturas. Por baixo, a cultura também
se forma dos signos não verbais mais variados: imagens, artefatos, mercadorias,
tecnologias, edifícios, cidades, paisagens, pratos culinários, cheiros e odores,
gestos e costumes, ritos e cultos religiosos, os sons da música. A ilusão de que o
signo seria um mero artifício, que intercepta nosso acesso aos objetos reais da
cultura, já havia sido desconstruída pelo poeta Plínio, o Velho, na Grécia Antiga.
O escritor nos conta que o pintor Parrásio participou de uma competição sobre a
obra de arte mais bem-sucedida na tarefa de imitar uma cena real. Seu quadro
parecia estar escondido atrás de uma cortina. Zêuxis, o jurado do concurso,
pediu que a cortina fosse retirada para que ele pudesse julgar a obra, e foi
quando Parrásio revelou que seu quadro não era outra coisa senão a pintura de
uma cortina. Com essa enganação bem-sucedida, Parrásio só podia mesmo
ganhar o merecido prêmio.
A pintura revela a necessidade da ação do signo para nos dar a conhecer a
cortina real, seja esse signo fruto da percepção ou de uma pintura. A semiótica,
porém, não deixa o espectador desse cenário sem esperança, porque o artista não
só faz só uma mediação, ele também pode deixar sua cortina mais transparente –
sua tarefa é talvez deixar esse véu tão translúcido quanto possível. Foi isso que
Eça de Queiroz quis nos dizer no romance A relíquia, ao mencionar o manto
diáfano da fantasia jogado sobre a nudez crua da verdade. De qualquer modo, o
objeto real pode ser revelado, ao menos parcialmente – vislumbre que se torna
possível por meio de rastros que conseguimos enxergar e examinar. É a
possibilidade do estudo crítico de tais rastros que nos dá esperança no confronto
com as fake news. Erram os que pensam que podem esconder a verdade por trás
de pesadas cortinas semióticas. A realidade insiste através dos índices de seus
objetos, e assim se mantém o potencial para denunciar mentiras.
Ninguém poderia duvidar que a comunicação só pode funcionar por meio de
signos, pois não existe caminho direto à mente do outro a não ser por meio deles.
Contudo, muitos também estão ingenuamente convencidos de que há caminhos
diretos para o próprio self pela via da autorreflexão. Acreditam que esse seja o
objeto real das selfies. Evidentemente, elas são um signo do self, mas o erro
generalizado, que a semiótica pode detectar, consiste em crer que o self em si
seja o real objeto da selfie.

O IMPOSSÍVEL RETRATO DE SI MESMO


A cultura contemporânea dos autorretratos e os discursos sobre as psicotécnicas
do autoconhecimento divulgam essa ilusão. É uma quimera a ideia de que o
autoconhecimento pode nos dar acesso direto ao self, revelando sua própria
realidade, pois até nossos pensamentos sobre o self não passam de signos
mentais. Nossos pensamentos são sempre signos em uma cadeia infinita, na qual
cada signo é precedido e seguido por outro, sem que esse encadeamento jamais
possa nos levar a uma parada em algum objeto final. A cadeia infinita dos signos
só pode ser interrompida, mas nunca chegará a um objeto final ou real que não
seja mais do que um signo. A verdade desse insight peirciano emerge com a
simples reflexão de que o próprio self só pode ser pensado em relação ao outro.
A ideia do eu não faz sentido sem a ideia de um tu.
A semiótica de Peirce é uma semiótica geral e os signos das culturas são um
de seus campos de pesquisa. Entre seus outros ramos, destacam-se a
biossemiótica, a semiótica das plantas e dos animais e a semiótica das máquinas,
campos de estudo de signos não humanos – estes se manifestam nas plantas, que
se orientam na direção do sol; nas células e nos neurônios, que se comunicam
entre si; no sistema imunológico e sua capacidade de reconhecer o vírus como
invasor alheio à sua endossemiose; nas abelhas, que se orientam conforme a
posição do sol e de sua fonte de alimento; nos pássaros, capazes de se comunicar
com os outros membros de sua espécie. Para Peirce, os signos ou quase-signos
comparecem até nos cristais e nos objetos sem vida do universo físico.
O escopo tão amplo da semiótica geral não diminui sua relevância e seu
interesse nos signos da cultura, ao contrário: a semiótica da cultura ganha a partir
dessa perspectiva. Com ela, a semiótica da cultura adquire resistência contra as
velhas tendências antropocêntricas humanistas, que erigiram barreiras falsas
entre a natureza não humana e a cultura dos humanos, sem reconhecer o erro dos
indivíduos quando se opõem, com seus preconceitos antropocêntricos, ao resto
da natureza, em vez de admitir que os humanos são um mero produto que
evoluiu naturalmente dela.
Assim, a semiótica geral apresenta o potencial de construir pontes entre a
natureza e a cultura, e uma delas é a ecossemiótica, o estudo das interações
semióticas responsáveis pelas ligações entre o meio ambiente natural e cultural.
A ecossemiótica nos ensina que os signos com os quais nos comunicamos não
são só os nossos, pois o universo todo está permeado por signos, e assim nos
leva a assumir a responsabilidade por uma ecologia mental em nossa atuação
com os signos de nosso meio ambiente natural e cultural. Quem poderia negar a
urgência ecossemiótica de um tal programa, tendo em vista a destruição atual da
natureza não humana e da nefasta poluição semiótica do meio ambiente cultural?
A semiótica peirciana é radical. “Nunca esteve em meus poderes estudar
qualquer coisa – matemática, ética, metafísica, gravitação, termodinâmica, ótica,
química, anatomia comparativa, astronomia, psicologia, fonética, economia, a
história da ciência, jogo de cartas, homens e mulheres, vinho, metrologia, exceto
como um estudo de semiótica”, escreveu Peirce em 1908. Em sua radicalidade,
essa declaração nos conscientiza da onipresença dos signos no universo e da
necessidade do estudo competente e cuidadoso deste universo permeado de
signos.
Como podemos entender o outro?
FERNANDO ANDACHT

Em um texto escrito há mais de cem anos, o pensador C. S. Peirce avançou em


ideias sobre a comunicação que poderiam ter sido escritas amanhã. Isso não
aconteceu por acaso. O esplêndido edifício teórico que ele construiu durante
meio século – a semiótica – descreve a base orgânica necessária, em constante
evolução, sobre a qual se dão a circulação e a troca de signos na vida e, assim, a
faz funcionar. O método que desenvolveu para fundamentar a teoria da
significação é o pragmaticismo, o qual, com modéstia, explicou em The
Essential Peirce: Selected Philosophical Writings, volume 2: “Não é uma
tentativa de determinar a verdade das coisas”, porque só serve para “descobrir os
significados de palavras difíceis e de conceitos abstratos”.
Sobre o conceito “comunicação”, poderíamos dizer o que já foi dito por Santo
Agostinho a respeito do tempo: se ninguém perguntar, sabemos, mas se
quisermos explicar a quem faz a pergunta, já não saberíamos o que dizer. É
admirável que uma pessoa isolada do mundo moderno, que morou no final de
sua vida afastado da vida da metrópole, tenha analisado de modo tão luminoso o
processo que explica o complexo funcionamento da comunicação em nosso
tempo.
Há dois modelos históricos mais influentes que procuraram explicar a
comunicação nas mídias, e ambos caíram na armadilha do dualismo, a filosofia
que, conforme nos alertou Peirce, “realiza suas análises com um machado que
deixa como elementos derradeiros pedaços de ser sem relação alguma”. Dois são
os modelos históricos mais influentes que procuraram explicar a comunicação
nas mídias. Ambos caem na armadilha do dualismo, ou seja, a filosofia que,
conforme nos alertou Peirce, “realiza suas análises com um machado que deixa
como elementos derradeiros pedaços de ser sem relação alguma”. Assim, não
são capazes de explicar a comunicação nem a bala de prata ou a hipodérmica
infalível das todo-poderosas mídias, nem o invencível e criativo receptor. A
lógica da continuidade desenvolvida pelo lógico Peirce, por sua vez, propõe
como modelo uma conversa, uma autêntica comunhão de signos entre emissor e
receptor. A noção talvez tenha um ar litúrgico, mas deve ser compreendida como
o processo lógico necessário para que, por meio de signos externos, duas ou
mais consciências consigam algo que é aparentemente impossível: a construção
de uma ponte poderosa para a troca e o compartilhamento de ideias, sensações,
sonhos e emoções.
A proposta do modelo comunicacional semiótico baseia-se em uma ideia que
continua sendo ousada um século depois: a interação humana só pode acontecer
se houver a criação de uma mente compartilhada, “fusionada”, afirma Peirce.
Um processo que ele descreve com o termo “co-mentes” (em inglês, commens).
Para compreender como acontece essa fusão semiótica, é necessário apresentar
alguns conceitos que explicam o funcionamento do processo cognitivo que
define nossa humanidade comum.
No início é o signo: “Todo conceito e todo pensamento, além da percepção
imediata, é um signo”. Um corolário do princípio peirciano é que nosso próprio
pensamento tem um funcionamento dialógico e que “essa conversa está
composta de signos”. Quando Peirce procura a melhor definição possível do
elemento que está no cerne do edifício teórico da semiótica, explica que essa
definição deve incluir “uma análise da natureza essencial de um signo”. O que
ele propõe serve para descrever o universo das redes sociais tanto como o
enorme interesse do telejornal em tempos de crise sanitária: “Percebemos como
algo muito característico, que os signos funcionam principalmente entre duas
mentes ou teatros da consciência, dos quais um deles é o agente que enuncia o
signo (quer acústica, oticamente ou de outro jeito), enquanto o outro é a mente
paciente que interpreta o signo”. A presença do termo “paciente” parece nos
conduzir na direção tradicional e dualista da existência de um emissor ativo e de
um receptor passivo, como o público cativo, incapaz de resistir ao hipnótico
apelo midiático, é descrito com menosprezo. Mas Peirce propõe um processo
comunicacional e hermenêutico que é fiel à lógica da continuidade: “Antes de o
signo ser enunciado, ele já estava virtualmente presente na consciência do
enunciador na forma de um pensamento. Depois que um signo foi interpretado,
ele fica virtualmente na consciência de seu intérprete, onde será um signo –
quiçá a decisão de agir de acordo com o significado do signo comunicado – e
sendo um signo deve ter um outro intérprete, e assim por diante”.
Foi nessa época que Peirce explicou, a um de seus poucos interlocutores, que
conseguiu chegar à importância do conceito de “interpretante comunicacional”
ou “cominterpretante” para a comunicação. Esse signo é “uma determinação da
mente na qual as mentes do enunciador e do intérprete devem estar fusionadas
para que alguma comunicação aconteça. Essa mente pode ser chamada de ‘co-
mentes’ (commens). Ela consiste em tudo aquilo que é e que deve ser entendido
pelo enunciador e pelo intérprete já no início, para que o signo em questão possa
cumprir sua função”.
O que podemos conservar hoje do modelo analítico peirciano da
comunicação, quer natural ou midiática? Muito, como ilustrarei agora com um
exemplo extraído de um telejornal uruguaio de 1993. Na edição de 28 de junho
de um canal privado, houve uma breve matéria registrada ao vivo por um
repórter, no centro da capital. No espaço tradicional de manifestações políticas,
naquela noite fria de inverno austral, aconteceu a primeira marcha de orgulho
gay no país. Apenas um meio televisivo registrou o evento. O grupo de pessoas
reunidas em torno do obelisco que comemora a primeira constituição do
pequeno país latino-americano era diminuto; descrever a dúzia de pessoas
congregadas lá como uma “marcha” era correr o risco da hipérbole. Os balões de
cores gritantes e as vestimentas berrantes não conseguiam ocultar o resultado
fraco da primeira convocatória a sair do armário.
Depois de algumas perguntas óbvias do repórter – “estão de acordo com o
resultado dessa primeira marcha de orgulho gay?” –, ele se voltou ao estúdio de
televisão. Lá o apresentador não falou absolutamente nada, mas comunicou
muito. Depois de observar com uma expressão severa a matéria numa pequena
tela sobre a mesa, ele arqueou as sobrancelhas. Como se tivessem total
autonomia, suas mãos se elevaram ligeiramente sobre a mesa, como se não
quisessem ficar lá um instante mais e desejassem tirar o resto do corpo daquele
espaço incômodo. Assim terminou a matéria daquele telejornal sobre a primeira
marcha de orgulho gay no Uruguai, no único meio que a inseriu em seu cardápio
de notícias.
Sem a evidência que viria de uma enquete do público que assistiu aquela
noite à matéria e à reação do apresentador, considero plausível afirmar que esse
gesto mínimo foi perfeitamente compreendido pela imensa maioria dos
espectadores. Aqueles sucintos signos não verbais do rosto e das mãos foram
produzidos pelo funcionário televisivo cuja única função é ser o vaga-lume
ideológico dos signos que chegam do mundo a cada dia. Sua tarefa é ajudar os
espectadores a receber o som e a fúria da realidade exterior do modo mais
conveniente, conforme a direção do telejornal. O corpo do apresentador é o
palco, um “teatro da consciência” amplificado e iluminado, guiando o corpo das
pessoas que estão no lar e que vão interpretar os signos televisivos à imagem e
semelhança desse orientador profissional do sentido.
É difícil encontrar um exemplo melhor do que Peirce chamou de
“interpretante comunicacional” do signo, um exemplo capaz de produzir a fusão
da mente do enunciador com a do intérprete, do “comum” que gerou o leve
movimento das sobrancelhas acompanhado pela discreta, mas visível, elevação
das mãos acima da mesa. É possível supor, inclusive, que alguns espectadores
ouviram o apresentador exclamar indignado: “Que chocante!”, “Isso já é
demais!” ou alguma outra expressão análoga, em vez do silencioso e bem
coordenado movimento de seu corpo. Não parece plausível que alguém pudesse
ter interpretado que o apresentador, com os sinais emitidos pelo seu corpo –
signos silenciosos, mas eloquentes –, tenha apoiado ou celebrado essa primeira e
triste tentativa de afirmação de uma identidade estigmatizada.
Longe de ser um apoio à teoria dualista do receptor passivo e do emissor
ativo e todo-poderoso, a leitura semiótica desse episódio televisivo produzido
quase três décadas atrás demonstra a fusão das mentes, um encontro antes
preparado pela cultura compartilhada, pelos preconceitos presentes e ativos em
ambos os lados da tela. O que Peirce descobriu sobre a comunicação é que,
quando ela funciona com eficácia, só pode provir da comunhão, da unificação
das mentes em um único teatro da consciência. O micromovimento da pequena
área recoberta de pelos curtos acima dos olhos só teve a possibilidade de ser tão
eloquente em função da real fusão das mentes na comunidade interpretativa.
Mesmo para divergir do discurso gestual do apresentador, seria necessário
compartilhar seu significado primeiro. Sem saber, o apresentador e os
espectadores confiam e apoiam-se nessa mente comum, sem a qual nem poderia
haver as possíveis ou previsíveis divergências.
Esse é um dos muitos presentes magníficos que o lógico C. S. Peirce nos
legou: a compreensão semiótica do processo que nos permite participar da
conversação da humanidade.
livros
Por uma imprevisível luta política
TANIA RIVERA

Em Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação, o filósofo


Vladimir Safatle conjuga o rigor intelectual em filosofia e psicanálise ao corpo a
corpo com os acontecimentos desta época tão agitada e sombria. E encara a
questão de nossos tempos: como transformar a gramática do poder para
combater de modo efetivo os novos fascismos? Concebido em resposta ao
convite de uma editora francesa para uma apresentação concisa e acessível das
elaborações de Jacques Lacan sobre política, o livro explicita as bases do
pensamento do próprio Safatle de maneira clara e vigorosa, sendo a obra mais
importante de um dos principais comentadores políticos do país.
Mais que introduzir o leitor às concepções lacanianas sobre política, Safatle
propõe uma introdução à teoria do psicanalista francês em chave política. Para
isso, declina as implicações políticas de algumas das principais noções
trabalhadas por Lacan, como identificação, transferência, gozo e ato. Não se
trata em absoluto de “psicologizar” complexas questões sociais, tampouco de
aplicar a teoria ao campo político, mas de mostrar que as próprias entranhas do
pensamento lacaniano exalam política. Trata-se de defender que a psicanálise,
longe de circunscrever a “psicologia profunda” e a intimidade de cada um, pode
ser considerada uma verdadeira teoria política, na medida em que a instauração
da “vida psíquica” está associada à adesão a modalidades de “sujeição social”,
ou seja, a maneiras singulares de sofrimento – de mal-estar, de desconforto,
como diria Freud – na cultura.
No entreguerras, Freud não recuou diante da necessidade de dissecar a
estrutura do poder e denunciar o infantilismo da relação de cada indivíduo que
compõe a massa com o líder idealizado. Analistas como Erich Fromm e Wilhelm
Reich seguirão seu caminho nos anos 1930 e 1940, em análises do fascismo que
também dialogam com o marxismo. E é nessa mesma trilha que Safatle
posicionará as preocupações do jovem Lacan com a decomposição da ordem
patriarcal e as tentativas autoritárias de compensação social que ela ensejaria.
A experiência do fascismo seria, para ele, o pano de fundo das elaborações
lacanianas sobre o Eu, que ressaltam a agressividade, a rigidez e a redução
narcísica do outro – em suma, a incapacidade de lidar com a alteridade e a
diferença – em uma concepção de identidade marcadamente defensiva.
Consequentemente, o psicanalista recusa o direcionamento da clínica para o
fortalecimento do Eu e empreende uma revisão teórica dos princípios da
identificação, defendendo uma espécie de despersonalização como horizonte de
uma análise.

DECOMPOSIÇÃO DAS RELAÇÕES DE AUTORIDADE

Lacan também busca dissecar a estrutura do poder para esvaziar a figura do líder
de suas vicissitudes imaginárias e afirmar sua importância como lugar simbólico.
Tal tarefa, que talvez em si deva ser considerada um ato político, corresponde ao
motor de todo processo analítico: a transferência. A argumentação de Safatle
conduz à evidência de que ela consiste em vigorosa reflexão política, ao
explicitar a força terapêutica da “decomposição das relações de autoridade” e do
desvelamento dos mecanismos de sujeição, e de que deve mesmo ser
reconhecida como genuína potência de emancipação.
Creio que todo psicanalista tenderia a concordar com essa afirmação – ou não
se dedicaria a tal ofício –, mas a tomaria com muito cuidado e alguma
desconfiança. No horizonte incerto de uma análise, é certo que paira alguma
transformação do sujeito, mas ela não se confunde com promessas de cura ou
salvação e deve ser criteriosamente apartada de qualquer ideal de liberdade ou
autonomia. É justamente isso que busca Safatle: propor, com a psicanálise, outro
léxico para as lutas sociais, que não seja aquele da racionalidade soberana e da
identidade compartilhada. Ele encontrará uma via na ideia de que o analista, ao
fim de um processo analítico, decai como um resto, explicitando a função
atribuída por Lacan ao objeto a.
O lugar do poder não se revela propriamente vazio: nele, age algo como um
corpo estranho, “irredutivelmente desidêntico e inassimilável”. Algo que,
faltando, causa o desejo; e que provoca angústia quando deixa de faltar. Em um
dos melhores momentos de Maneiras de transformar mundos, Safatle aponta
que isso arruína a ilusão fundamental de identidade entre os membros de uma
comunidade (e a correspondente miragem da identidade entre o poder e seus
sujeitos), exigindo “uma teoria de corpos políticos desidênticos”.
Talvez possamos mesmo dizer que hoje esta é a tarefa histórica que nos cabe,
com a psicanálise: recolher da subversão do sujeito uma potência de construção
do comum que não opere por semelhança e conjunção de identidades (de si para
si mesmo, e de si para o outro semelhante, ao qual se opõe o outro distinto e
eventualmente odiado), mas, sim pela disparidade, pela disjunção de
singularidades. O gérmen lançado por Safatle nessa direção deve nos chamar a
mais elaborações – que sejam elas próprias disjuntivas e dessemelhantes e
possam destronar os mestres; que sejam feitas por todos e não por um, como a
poesia, segundo Lautréamont.

O GOZO DE LACAN

Tal dispositivo de desidentificação, ao ser agenciado em reflexões e ações, põe


necessariamente em crise o social. Como Safatle observa com astúcia, ele
convoca a potência disruptiva a que Lacan dá o nome de gozo e declina
politicamente ao afirmar que o capitalismo mudou nossa forma de gozar. Não se
trata no social, portanto, de simples repressão do desejo, mas, sim, de adesão
libidinal à espoliação do gozo, ou seja, de “inscrição de seu excesso e desmedida
no interior das dinâmicas de reprodução social”, nas palavras de Safatle. Nossa
tarefa implicaria, então, “retirar tal gozo para fora do modo de produção que o
coloniza”. Mas como fazê-lo?
A resposta delineada por Safatle segue uma das vias mais sedutoras do
pensamento lacaniano, mas também uma das mais arriscadas: o gozo feminino.
Para chegar nele, é necessário passar pela questão fálica e destacá-la do
patriarcalismo normativo ao qual leituras apressadas costumam atrelá-la,
mostrando que “o falo não é uma norma generalizada, mas uma inadequação
generalizada”.
Infelizmente, Safatle não dispõe do espaço necessário para percorrer os
meandros das questões de gênero e tomar posição nos debates atuais, que
convocam com urgência psicanalistas e estudiosos. Ele chega contudo a ressaltar
que não se trata, no gozo feminino, de “reconhecer a falta para sustentar o
complemento fantasmático de um Outro não castrado”, mas, sim, de “um
processo ativo que visa quebrar os limites dos modos atuais de existência, os
limites das formas de gozo avalizadas pelo capitalismo e seu patriarcado”. Resta-
nos o desafio de esboçar algumas vias abertas por tal quebra – e parece-me
convocar as mulheres, especialmente, a respondermos à observação lacaniana
segundo a qual “não é possível dizer se a mulher pode dizer algo do gozo”.
Afinal, experiências de dessubjetivação, longe de nos calarem, convocam-nos
justamente a buscar transmiti-las, em ato.
Por isso, o último conceito trabalhado por Safatle é aquele de ato analítico:
aquilo que acontece em uma análise como ação efetiva e transformadora, que
destitui seu agente e performa, é, portanto, a própria subversão do sujeito. Em
uma rápida passagem, Lacan o articula ao efeito “revolucionário” que o sintoma
pode vir a exercer, desde que não seja “dirigido pela varinha dita marxista”.

O FRACASSO É REVOLUCIONÁRIO

Levando adiante essa indicação, Safatle vê no ato analítico uma operação de


subversão no sentido preciso da derrubada de “uma ordem estabelecida através
da ruína de suas bases, modificando o sentido no qual ela se fundamenta”.
Assim, revolucionado, o sujeito perderia predicados como identidade, autonomia
e substância para passar “a seu contrário”, no qual se daria “a realização efetiva
de suas exigências iniciais de liberdade”.
É importante notar que a própria ideia de liberdade também aí se subverte,
deixando de lado qualquer idealização para se articular ao “incurável”, ou seja,
ao que resta e falha em todo processo analítico. Em vez de fracasso, Safatle
propõe que se veja aí uma potência revolucionária no sentido do que dissolve
formas anteriores para instaurar outras formas, pondo em movimento uma
espécie de “devir revolucionário” do sujeito.
É esse o lance final do complexo xadrez teórico que o autor maneja em
resposta à tarefa urgente de pensar modos não identitários de reconhecimento e
organização social. O jogo se interrompe, no livro, em uma configuração que
incita a outras jogadas, agenciadas por outros jogadores. O teórico não poderia ir
além, argumenta o autor, sob pena de prefixar aquilo que deve surgir
imprevisivelmente no seio da luta política. Mas o gesto não deixa de refletir,
talvez, a paralisia que hoje nos acomete, especialmente no cenário nacional,
marcado pelo que Safatle caracteriza como desrecalque do “Estado suicidário” –
em uma ideia que me parece importante complexificar para além do
autoextermínio desinteressado, na medida em que interesses do capital
internacional em destruir as próprias bases institucionais e econômicas do país
parecem antes configurar uma tentativa de assassinato. Nada de novo sob o sol:
apenas mais um capítulo da violência colonialista que bem conhecemos.
Resta a aposta na possibilidade de assumirmos posições no xadrez teórico e
político, a fim de fazer do pensamento, ato. De contribuirmos na reconfiguração
de operações de subversão das forças de exploração e exclusão social que hoje
não escondem sua vocação ao genocídio. Afinal, como dizia Mário Pedrosa, “ser
revolucionário é a profissão natural de um intelectual”.
colaboraram nesta edição
Douglas Vieira é jornalista, com passagens por redações como O Estado de S.
Paulo, MTV Brasil e Trip, entre outras publicações. Neste número, atuou na
edição de textos.
Fernando Andacht é professor e coordenador do departamento de comunicação
na Universidad de la República, Montevidéu.
Lucia Santaella é professora titular e coordenadora do PEPG em Tecnologias
da Inteligência e Design Digital da PUC-SP.
Marcos Vilas Boas é fotógrafo. Tem trabalhos publicados pela Trip Editora,
BEI, Companhia das Letras, Musée Magazine (EUA), entre outros.
Renata d’Angelo, fotógrafa e arquiteta brasileira, vive em Barcelona. Um de
seus retratos acaba de ficar em 2º lugar no IPPA Awards.
Tania Rivera, ensaísta e psicanalista, é professora na Universidade Federal
Fluminense e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Vincent Colapietro é professor emérito da Pennsylvania State University e
professor atual na University of de Rhode Island.
Winfried Nöth foi professor na Universität Kassel e na Humboldt Universität.
Hoje, é professor no PEPG em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da
PUC-SP.

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