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Por uma imprevisível luta política
O Brasil passa dos 80 mil mortos por Covid-19 e, nas casas da classe média, as
pessoas discutem se vão ou não para a rua. Os dados mostram que os números
do isolamento social caem e, logo nas primeiras frestas, um grande número de
pessoas decide que a rua é um lugar seguro outra vez. Quem não se lembra do tal
bar no Leblon, que no dia 3 de julho aparentava a rotina de uma noite comum de
verão, com mais de uma centena de pessoas aglomeradas nas calçadas? A rotina
começa a procurar os rastros do novo normal. Dez dias depois, em 13 de julho, o
relógio marcava 14h56 quando Gilson Rodrigues pediu para interromper por um
minuto a conversa telefônica que estava tendo com a Cult.
“Boa tarde, comunidade. Primeiro, muito obrigado por terem vindo até aqui.
Aqui é o Pavilhão Social, uma das seis bases de atuação nossa aqui na
comunidade. Ali, acontece o projeto Mãos de Maria, são mais de 10 mil
marmitas sendo distribuídas por dia. Ali fica a coordenação, ali embaixo fica a
ambulância, e ali do lado uma fábrica de máscaras...” A interrupção durou cerca
de oito minutos, tempo em que ele explicou aos moradores de Paraisópolis, uma
das favelas mais conhecidas e populosas do Brasil, detalhes da estratégia local
de enfrentamento à pandemia.
Na zona sul de São Paulo, a comunidade conta com cerca de 100 mil
habitantes – apenas 324 municípios dos 5.570 que formam o Brasil ultrapassam
essa marca, segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). Não é estranho, portanto, descobrir que, para os moradores
de Paraisópolis, Rodrigues é o “prefeito”. Aos 36 anos, ele está em seu terceiro
mandato, ou há 10 anos, à frente da União dos Moradores e do Comércio de
Paraisópolis, fundada há 35 anos. Porém, diante dessas mais de três décadas, é
agora que a visibilidade da associação foi amplificada – no momento em que o
Brasil, sem atuação do Ministério da Saúde no enfrentamento, atravessa uma
pandemia.
Fruto dessa ausência, o trabalho que Paraisópolis tem feito repercute
inclusive no exterior, em jornais como The Washington Post. Rodrigues explica
que foram 34 dias para pôr de pé toda a operação, que, além das ações
assistenciais – como distribuição de cestas básicas, marmitas e material de
higiene e de proteção –, conta com uma infraestrutura de saúde. Para as duas
frentes, há um grande número de pessoas. “A gente tem hoje 1.450 pessoas
voluntárias de dentro de Paraisópolis, 201 pessoas voluntárias de fora e 311
pessoas com algum tipo de remuneração, seja bolsa auxílio ou salário – sendo
que 95% delas são da comunidade. Além disso, tem um trabalho a nível
nacional, em 14 estados, que também demanda nossa coordenação aqui, com
uma orientação para o trabalho ou para a captação de recursos, distribuição de
materiais”, conta Rodrigues.
O resultado é uma estrutura em Paraisópolis que conta com uma ambulância
permanentemente à disposição dos moradores – já foram três, no início da
pandemia –, dois médicos, quatro enfermeiros e dois socorristas. Todos eles são
serviços contratados pela União dos Moradores e do Comércio, que também
converteu duas escolas da comunidade em centros de acolhimento para receber
pessoas sintomáticas que não têm como se isolar dos outros moradores de suas
casas.
Iniciativas como a casa de acolhimento impressionam inclusive quem vem da
área da saúde, como o médico sanitarista Arthur Chioro, mestre e doutor em
saúde coletiva e professor da Escola Paulista de Medicina, da Universidade
Federal de São Paulo (EPM/Unifesp): “Deixa eu explicar a importância do que
eles fizeram. Eu tenho atendido na unidade de Covid do Hospital São Paulo e
diagnostiquei um caso leve, estava no terceiro dia e precisava completar os 14 de
isolamento. Eu falei assim: ‘Você vai tomar líquido, comer bem, ficar de
repouso em casa até completar mais 11 dias. Estou te dando um atestado e você
vai ficar em casa, isolado em um quarto, tira todo mundo de perto, pega toalha
separada, utensílios domésticos...’. O cara olha para mim e diz: ‘Doutor, você
está de sacanagem? Morando oito pessoas em casa, não tem nem como. É uma
sala, quarto, tem mais um banheirinho e a cozinha, não tem como’. Essa é a
situação”, diz Chioro, que foi Ministro da Saúde (2014-15) no segundo mandato
de Dilma Roussef.
Nas ações de Paraisópolis, assim como ocorre em todas as favelas e bairros
periféricos do Brasil, o desafio não é atravessar a pandemia. É saber, segundo as
palavras de Rodrigues, que lá não existe um “novo normal” à espera: “Neste
momento em que são criadas hashtags como #onovonormal, nós ainda estamos
buscando o nosso normal, porque não é normal que na favela falte água, que o
serviço do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência] não venha aqui,
que a gente esteja sofrendo mais nessa crise com a questão do desemprego e da
fome e que isso tenha aumentado a violência na favela. Nós sofremos para além
das questões da saúde, e vamos continuar sofrendo, porque falta por parte do
poder público criar uma política efetiva para a favela”.
A seguir, Rodrigues conta para a Cult sobre a rotina de autogestão da
estratégia que a União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis criou
localmente para combater a pandemia.
Apresentação
LUCIA SANTAELLA
O boom da semiótica como uma nova ciência ocorreu entre os anos 1960 e 70,
tendo seu centro de distribuição na Europa Central e nos Estados Unidos. Como
explicar essa explosão? Foi justamente nessas décadas que se deu o clímax da
cultura de massas, já composta pelo jornal, cinema, publicidade e, então,
amadurecida pelo rádio e pela TV como uma cultura da difusão de informações
e entretenimento. Foram muitas as consequências socioculturais por conta das
misturas na antiga separação entre cultura erudita versus popular, e também
foram muitas as transformações psíquicas decorrentes de novos hábitos
implantados no estilo de vida dos receptores.
Na miríade de transformações, destaca-se o fim da soberania da cultura
livresca como fonte exclusiva de conhecimento e de saber. Tornou-se, assim,
imperiosa a necessidade de uma ciência que fosse capaz de estudar a profusão
diferenciada de tipos de signo que brotam nos processos de comunicação visuais,
verbo-visuais, verbo-sonoros, audiovisuais. Primeira lição a ser extraída: após a
Revolução Industrial, com os novos aparelhos que ela trouxe para a produção,
reprodução e difusão de tipos de signo diversificados, o universo da cultura e da
vida cotidiana deixou de ser exclusivamente verbal. E os outros tipos de signo,
antes reclusos às salas de teatro, concertos e museus, passaram a habitar nossos
lares, entrando em nossa casa com a mesma facilidade com que entram a água e
a luz. Importante lembrar disso, para que os rastros do passado sejam mantidos e
ajudem a entender o atual estado de coisas que emergiu a partir da revolução
digital. Quando falamos de comunicação e cultura, nunca se deve perder a
dimensão do tempo, pois o imediato engana.
Se há mais de meio século já era importante o estudo dos tipos de signo
verbal nas suas misturas com signos extra, intra e infraverbais, aquém e além do
verbal, o que dizer sobre o universo pós-digital? Se não estivermos
enclausurados no “linguocentrismo”, não é difícil perceber que há dois séculos
os signos entraram em processo acelerado de diversificação e crescimento no
mundo, para os quais a digitalização e a cultura mediada por computador
funcionam como um dínamo. Desde os anos 1990, o computador tem se
transformado cada vez mais em uma mídia de todas as mídias produtoras de
signos – signos que nele se misturam e se complementam em sua própria
morfogênese e que são transportados no tempo e no espaço a uma velocidade
que faz inveja à luz. Instaurou-se com isso a comunicação planetária, a galáxia
da internet, hoje inundada por mídias sociais, motores de busca, aplicativos. E,
junto com isso tudo, engendrou-se a inteligência coletiva, sempre paradoxal e
contraditória, hoje monitorada pelos algoritmos de inteligência artificial. Estes, à
sua maneira, dão conta da avalanche de dados que correm pelos ares e que já
estão se abrigando nas próprias coisas ao nosso redor. O que se pode inferir
disso?
O mundo está demandando, exigindo uma atenção competente aos modos
como os signos são capazes de produzir sentido, como se dão as passagens entre
signos e quais são os processos multideterminados que entram em ação quando
os signos são interpretados. A semiótica se propõe a realizar essas tarefas.
Há várias correntes de semiótica, uma ciência que já nasceu diversificada. Há
semióticas que tomam as operações modelares da linguagem verbal para
entender como funcionam os outros sistemas de signos. Há semióticas, e são
várias, que desenvolvem a análise dos discursos e dos processos de significação.
Há ainda semióticas, de várias cepas, que apontam conceitos capazes de levar à
compreensão dos fenômenos da cultura. Todas elas desenvolvem-se como
ciências, criam uma teia de conceitos inter-relacionados que exigem esforço de
aprendizagem e tomam algum tempo de dedicação e formação. Mas com a
semiótica de C. S. Peirce, que será apresentada neste dossiê, há um problema sui
generis.
O ser humano é um ser semiótico por natureza. Isso significa que estamos
dotados da capacidade de interpretar signos intuitivamente. A intuição, no
entanto, é paradoxal, e ao mesmo tempo poderosa e sujeita a muitos equívocos
que precisam ser testados para que tenham validade. O estudo da semiótica
cumpre essa função de testagem de nossas intuições interpretativas, as quais,
quando não passam pelo crivo da análise e da exposição à alteridade, terminam
em crenças fixas e cegas. Nesses casos, em vez de funcionar como mediadores
de nossos acessos à realidade, os signos passam a atuar como biombos opacos.
A semiótica que será apresentada ao leitor neste número da revista Cult é a
semiótica de C. S. Peirce. Não é preciso exercitar o péssimo hábito de minimizar
as outras semióticas para engrandecer a que escolhemos. O que está sob o pico
do iceberg de nossas escolhas? Grande mistério. No caso das escolhas
intelectuais, somos muito mais escolhidos do que escolhemos, pois operam aí a
história de vida, a genealogia do pensamento e, last but not least, lembrando o
Foucault do cuidado de si, as forças de atração que nossos guias exercem sobre
nós. Diga-me quem são teus guias que te direi quem és. E, quando não há guias,
o pensamento se dispersa como poeira no ar.
Peirce era cientista de laboratório, apaixonado pela filosofia e criador de uma
lógica extensiva, concebida como semiótica, cujo propósito era compreender por
que e como a inteligência e o conhecimento humano evoluem e crescem. Mas
como se dá esse crescimento? Eis a questão. Peirce começou pelo estudo da
fenomenologia, uma fenomenologia a céu aberto, muito distinta da famosa
fenomenologia continental. A partir do exame de nosso estar no mundo,
recebendo e absorvendo chuvas incessantes de perceptos, Peirce chegou a três
categorias abstratas e universais – as quais de modo algum anulam as categorias
particulares das regiões específicas das diferentes ciências, apenas ajudam a
compreendê-las. Sobre a fenomenologia erigiu-se a semiótica como doutrina de
todos os tipos de signos, suas distintas modalidades, seus diferenciados poderes
referenciais e suas aptidões para serem interpretados.
O mais importante, entretanto, é que a semiótica não é autossuficiente. Ela
necessita da ética – e esta, da estética – para se complementar. Por fim, sobre os
alicerces da fenomenologia e da tríade – semiótica, ética e estética – eleva-se a
metafísica concebida como o estudo da realidade, que depende da mediação dos
alicerces sobre os quais se funda. A concepção peirciana da ética e da estética,
especialmente desta última, é originalíssima. A estética não é a ciência do belo,
mas a ciência do admirável, para onde nossa sensibilidade, aquilo que de mais
valoroso temos como seres humanos, deve ser atraída: para o admirável
contribuir para o crescimento da razoabilidade no mundo. Por mais modesta que
seja nossa tarefa, seu valor é medido pela capacidade de tornar o mundo mais
razoável e, portanto, mais admirável.
Outra originalidade radical de Peirce encontra-se na noção triádica do signo,
que funciona como um modelo lógico dinâmico, em perpétuo movimento e
devir, do processo de crescimento dos signos, em função das interpretações que
os humanos são capazes de produzir em cada momento de sua história – e que
hoje exorbitam entre cacofonias, clichês, mas também preciosidades
interpretativas que estão voando pelo mundo e que chegam aos terminais que
agora habitam até mesmo a palma de nossas mãos. Urge desenvolver
interpretações triádicas contra a herança mecanicista e cartesiana que ainda
persiste. O Ocidente, pela própria natureza dualista das línguas indo-europeias, é
vítima da praga até agora incurável das dicotomias. Não vem do acaso a cultura
dos extremos, que infesta a vida social contemporânea. De nada adianta a
pregação contra os discursos de ódio quando se continua preso à lógica das
dicotomias, que é a fonte de todos os antagonismos.
A convite da revista Cult, oferecemos ao leitor uma pequena viagem pelo país
da semiótica. Viajar é preciso. Ainda mais necessário quando se trata das
paisagens e paragens de um pensamento que fertilize. Que a viagem seja
prazerosa e que traga consequências pragmáticas na vida de cada um, quer dizer,
que funcione como guia para a ação deliberada e continuamente submetida à
crítica. Essa é uma das lições do pragmaticismo peirciano.
A semiótica também é filosofia
VINCENT COLAPIETRO
Independentemente de qualquer outra coisa que ela possa ser, a filosofia hoje
também é uma teoria dos signos. O que Friedrich Nietzsche observou no século
19, na Genealogia da moral, é ainda verdadeiro no 21: nós, seres humanos do
conhecimento, “não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e
não sem motivo. Nunca nos procuramos – como poderia acontecer que um dia
nos encontrássemos?”. Nem todos os filósofos contemporâneos se veem como
semioticistas. Como a maioria dos filósofos anglófonos, com certeza. Alguns
rejeitam em voz alta a possibilidade de desenvolver uma teoria abrangente dos
signos, no entanto praticamente endossam o que rejeitam na teoria. Pois, apesar
de seus protestos, ainda que de modo involuntário estão contribuindo para a
compreensão dos signos. O que Peirce disse sobre a metafísica pode ser dito com
a mesma verdade sobre a semiótica: aqueles que negam a metafísica não se
desprendem desse compromisso ontológico, mas apenas permitem que sua
própria metafísica não seja examinada.
Muitos filósofos contemporâneos são semioticistas conscientes,
explicitamente – ou algum equivalente aproximado (gramatologistas,
desconstrucionistas ou genealogistas). Mesmo aqueles que fogem do rótulo
estão, como acabamos de observar, contribuindo para nossa compreensão não só
de tipos específicos de uso de signos, mas também das dimensões mais
profundas do significado, em seu sentido mais amplo.
A virada linguística da filosofia sempre foi uma virada semiótica e, além
disso, uma virada para os signos que sempre fez um convite para explorar todo o
espectro de nossas práticas significantes. As consequências práticas da semiótica
para a filosofia têm sido, entre outras coisas, uma abordagem cada vez mais
pragmatista dos filósofos em relação a essas práticas. Embora tenha havido uma
aproximação entre filósofos e pensadores analíticos enraizados em diferentes
tradições filosóficas, não houve muito movimento em relação à semiótica. A
ignorância deliberada dos analistas tradicionais em relação à teoria dos signos
permanece profundamente arraigada.
Por sua vez, entre os filósofos contemporâneos dedicados a articular uma
teoria dos signos há profundas divergências. Essas divergências são tanto
metodológicas como substantivas. Abordagens altamente formais da semântica
e, por implicação, da semiótica não foram completamente abandonadas.
Abordagens mais informais da questão do significado, contudo, tendem a
predominar. O foco unificador é a própria pergunta: o que é significado? As
respostas divergem dramaticamente. Para o mainstream analítico, Peirce tem
sido e continua sendo um obstáculo. De um lado, provou-se impossível negar
seu gênio ou sua relevância. De outro lado, esse reconhecimento não garante um
endosso a seu fascínio por signos. Alguns analistas adotam a estratégia de retirar
a semiótica de sua filosofia em geral.
Repetimos: independentemente de qualquer outra coisa que a filosofia possa
ser, ela também é semiótica. Alguns filósofos sabem disso, outros não. Mesmo
assim, praticamente todos estão contribuindo, seja de maneira implícita, seja
involuntária, para nossa compreensão dos processos de significação e práticas
significantes. Por mais estranho que possa parecer, para alguns, a figura de C. S.
Peirce permanece uma tarefa para o futuro – tarefa que apela para que nos
juntemos a ele em sua exploração. Seguindo muito trabalho que já foi feito nesse
sentido (e foi feito de modo sólido e bom, até mesmo brilhante, inovador), obter
uma compreensão reflexivamente crítica dos usos dos signos consiste em uma
tarefa contínua. Uma razão é que isso apela para a fecundidade de nossa
imaginação relativa às novas mídias e, portanto, a novos modos de significação.
Outra razão é que nem mesmo nós, intelectuais, somos e nunca seremos
transparentes para nós mesmos. O anticartesianismo de Peirce significa que a
autocompreensão é, em grande parte, uma conquista árdua.
O eu não pode simplesmente olhar dentro de si e captar sem esforço os
próprios sentimentos ou pensamentos, em sua profundidade ou complexidade.
Em grande medida, nossos pensamentos e sentimentos nos iludem. Aqui é onde
a semiótica abraça uma ou outra forma de psicanálise como um recurso para a
autocompreensão. Um pensamento distinto nunca é um fenômeno isolado. É
definido por seus pressupostos e implicações. Deixar de discernir o que qualquer
pensamento pressupõe ou implica consiste em não compreender esse
pensamento. Para alguns filósofos, isso torna a semiótica duplamente suspeita.
Por si só, já é suspeita; em conjunto com a psicanálise, é duplamente suspeita!
Para outros, essa conjunção põe em foco uma das características mais
importantes da teoria dos signos.
Em O livro azul, Ludwig Wittgenstein levantou a questão inaugural da
investigação semiótica. “Se dissermos”, como ele fez nesse texto, que “pensar é
operar com signos, a primeira pergunta que você pode fazer é: ‘O que são
signos?’.” No lugar da esperada resposta, ele apresentou uma proposta dupla:
“Em vez de dar qualquer tipo de resposta geral a essa pergunta, proponho a você
[meu leitor] que examine com atenção casos particulares que deveríamos chamar
de ‘operação com signos’. Vejamos um exemplo simples de operação com
palavras”.
Primeiro, Wittgenstein propôs resistir à atração da questão geral; então,
propôs começar examinando uma instância específica do uso linguístico. Ele
advertiu contra “nosso desejo de generalidade”, vendo isso como indicativo de
“nossa atitude de desprezo em relação ao caso particular”. Mas e se a questão
geral fosse abordada pela atenção mais meticulosa a inúmeras instâncias?
Na filosofia anglófona, Peirce representa o “caminho não percorrido”.
Entretanto, a profunda suspeita de Wittgenstein sobre certas formas de
generalidade e sua atenção primordial às formas linguísticas de significação
marcam o caminho percorrido pela maioria dos filósofos profissionais na
tradição analítica. Porém, insiste Peirce, “ampla generalização é gloriosa quando
é o inevitável suco extraído dos pequenos detalhes dolorosamente amadurecidos
do conhecimento; ao contrário, quando não é isso, é um espírito grosseiro que
incita apenas clichês entre cem pequenos dogmas”.
A metáfora implícita é praticamente explícita: quando as uvas estão no ponto
do amadurecimento e quando são colhidas com cuidado e pressionadas de forma
artística, prometem produzir um vinho “glorioso”. Não há aqui nenhum indício
de desprezo em relação ao particular – muito pelo contrário. Peirce está dizendo
que o próprio Wittgenstein em suas investigações filosóficas é conduzido, pela
lógica de seu pensamento, a perguntar: “Todo signo por si só parece morto.O
que lhe dá vida? Em uso, está vivo. A vida é soprada para lá? Ou o uso é sua
vida?”. No entanto, ele se afasta dessa questão para considerar usos específicos
de signos (dando uma ordem ou fazendo um gesto). Sem constrangimento,
Peirce afirmou: “Todo símbolo é uma coisa viva, em um sentido muito estrito
que não é mera figura de linguagem”. Com certeza, qualquer signo em si –
separado de seu funcionamento contextual – não pode deixar de parecer morto.
Mas um signo concebido na abstração do uso e do contexto é apenas isto: uma
abstração.
Uma das consequências mais práticas da semiótica como filosofia e para a
filosofia é um convite constante: somos, de fato, chamados a prestar atenção
permanente nas várias maneiras como os signos reais funcionam
contextualmente e, com base nisso, a projetar possibilidades ainda não realizadas
na natureza ou na história. A teoria dos signos de Peirce, além de emitir esse
convite, também mostra com detalhes esclarecedores a promessa, infelizmente
em grande parte ainda não cumprida, das consequências de aceitar esse convite.
O respeito ao caso particular e o trabalho da generalização “gloriosa” andam de
mãos dadas.
O QUE É REAL?
O verbal constitui só o pico do iceberg das culturas. Por baixo, a cultura também
se forma dos signos não verbais mais variados: imagens, artefatos, mercadorias,
tecnologias, edifícios, cidades, paisagens, pratos culinários, cheiros e odores,
gestos e costumes, ritos e cultos religiosos, os sons da música. A ilusão de que o
signo seria um mero artifício, que intercepta nosso acesso aos objetos reais da
cultura, já havia sido desconstruída pelo poeta Plínio, o Velho, na Grécia Antiga.
O escritor nos conta que o pintor Parrásio participou de uma competição sobre a
obra de arte mais bem-sucedida na tarefa de imitar uma cena real. Seu quadro
parecia estar escondido atrás de uma cortina. Zêuxis, o jurado do concurso,
pediu que a cortina fosse retirada para que ele pudesse julgar a obra, e foi
quando Parrásio revelou que seu quadro não era outra coisa senão a pintura de
uma cortina. Com essa enganação bem-sucedida, Parrásio só podia mesmo
ganhar o merecido prêmio.
A pintura revela a necessidade da ação do signo para nos dar a conhecer a
cortina real, seja esse signo fruto da percepção ou de uma pintura. A semiótica,
porém, não deixa o espectador desse cenário sem esperança, porque o artista não
só faz só uma mediação, ele também pode deixar sua cortina mais transparente –
sua tarefa é talvez deixar esse véu tão translúcido quanto possível. Foi isso que
Eça de Queiroz quis nos dizer no romance A relíquia, ao mencionar o manto
diáfano da fantasia jogado sobre a nudez crua da verdade. De qualquer modo, o
objeto real pode ser revelado, ao menos parcialmente – vislumbre que se torna
possível por meio de rastros que conseguimos enxergar e examinar. É a
possibilidade do estudo crítico de tais rastros que nos dá esperança no confronto
com as fake news. Erram os que pensam que podem esconder a verdade por trás
de pesadas cortinas semióticas. A realidade insiste através dos índices de seus
objetos, e assim se mantém o potencial para denunciar mentiras.
Ninguém poderia duvidar que a comunicação só pode funcionar por meio de
signos, pois não existe caminho direto à mente do outro a não ser por meio deles.
Contudo, muitos também estão ingenuamente convencidos de que há caminhos
diretos para o próprio self pela via da autorreflexão. Acreditam que esse seja o
objeto real das selfies. Evidentemente, elas são um signo do self, mas o erro
generalizado, que a semiótica pode detectar, consiste em crer que o self em si
seja o real objeto da selfie.
Lacan também busca dissecar a estrutura do poder para esvaziar a figura do líder
de suas vicissitudes imaginárias e afirmar sua importância como lugar simbólico.
Tal tarefa, que talvez em si deva ser considerada um ato político, corresponde ao
motor de todo processo analítico: a transferência. A argumentação de Safatle
conduz à evidência de que ela consiste em vigorosa reflexão política, ao
explicitar a força terapêutica da “decomposição das relações de autoridade” e do
desvelamento dos mecanismos de sujeição, e de que deve mesmo ser
reconhecida como genuína potência de emancipação.
Creio que todo psicanalista tenderia a concordar com essa afirmação – ou não
se dedicaria a tal ofício –, mas a tomaria com muito cuidado e alguma
desconfiança. No horizonte incerto de uma análise, é certo que paira alguma
transformação do sujeito, mas ela não se confunde com promessas de cura ou
salvação e deve ser criteriosamente apartada de qualquer ideal de liberdade ou
autonomia. É justamente isso que busca Safatle: propor, com a psicanálise, outro
léxico para as lutas sociais, que não seja aquele da racionalidade soberana e da
identidade compartilhada. Ele encontrará uma via na ideia de que o analista, ao
fim de um processo analítico, decai como um resto, explicitando a função
atribuída por Lacan ao objeto a.
O lugar do poder não se revela propriamente vazio: nele, age algo como um
corpo estranho, “irredutivelmente desidêntico e inassimilável”. Algo que,
faltando, causa o desejo; e que provoca angústia quando deixa de faltar. Em um
dos melhores momentos de Maneiras de transformar mundos, Safatle aponta
que isso arruína a ilusão fundamental de identidade entre os membros de uma
comunidade (e a correspondente miragem da identidade entre o poder e seus
sujeitos), exigindo “uma teoria de corpos políticos desidênticos”.
Talvez possamos mesmo dizer que hoje esta é a tarefa histórica que nos cabe,
com a psicanálise: recolher da subversão do sujeito uma potência de construção
do comum que não opere por semelhança e conjunção de identidades (de si para
si mesmo, e de si para o outro semelhante, ao qual se opõe o outro distinto e
eventualmente odiado), mas, sim pela disparidade, pela disjunção de
singularidades. O gérmen lançado por Safatle nessa direção deve nos chamar a
mais elaborações – que sejam elas próprias disjuntivas e dessemelhantes e
possam destronar os mestres; que sejam feitas por todos e não por um, como a
poesia, segundo Lautréamont.
O GOZO DE LACAN
O FRACASSO É REVOLUCIONÁRIO