HUCITEC EDITORA

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A contrafissura é u m sintoma social contemporâneo que
opera na mídia, na pol ítica, na clínica - na subjetividade
m contrafissu ra e
contemporânea.
Plasticidade psíquica refere as mutações subjetivas dos plasticidade psíquica
cuidadores que protagonizam experiências promissoras
e as transformações que ocorrem nos usuários da Rede
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de Atenção Psicossocial Brasileira.

Com este lançamento atingimos o número 50 da coleção

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antonio lancetti
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ISBN: 978-85-8404-054-4

Capa: Arnaldo de Melo i

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© Direitos autorais, 2015,

de Antonio Lancetti.
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02532-000 São Paulo, SP.
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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
L238c
Lancetti, Antonio, 1949-
Contrafissura e plasticidade psíquica/ Antonio Lancetti. - 1. ed.
- São Paulo: Hucitec, 2015.
134 p.; 18 cm. (Saúde loucura, 50; Políticas do desejo, 5)
ISBN 978-85-8404-054-4
1. Saúde pública -Brasil. 2. Política de saúde mental. 3. Serviços
de saúde mental. 4. Psiquiatria. I. Título. II. Série.
15-26626 CDD: 362.2
CDU: 364.269
 LISTA DE ABREVIATURAS E EXPRESSÕES

Biqueira ou bocada: nome dado às zonas de venda e uso de dro­

gas proibidas.
Caps 1: Centro de Atenção Psicossocial que funciona em muni­
cípio de 20.000 a 70.000 habitantes. É o menor e conta com
pelo menos nove funcionários. Funciona das 8 às 18 horas, de
segunda a sexta -feira.
Caps II: Centro de Atenção Psicossocial que funciona em municí­
pios de acima de 200.000 habitantes. Tem pelo menos doze
funcionários. Em municípios maiores há Caps II que funcio­
nam com horário ampliado, também aos sábados, com maior
número de funcionários.
Caps III: Centro de Atenção Psicossocial com funcionamento
24 horas, conta com camas para hospitalidade. Dependendo
do Caps há seis ou oito camas para hospitalidade noturna (HN).
Caps AD: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas.
Caps ADi: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas des­
tinado a adolescentes.
Caps i: Centro de Atenção Psicossocial lnfantojunvenil.
Centro Legal: nome dado ao Programa de Agentes de Saúde e
11
 Enfermeiras que atuava desde 2009 na região da cracolândia.
Posteriormente foram transformados em Consultórios na Rua.
Drogas enteogênicas: Drog as que substituíram o sacrifício de
sere s humanos para conectar- se com Deus. Na atualidade se
usam em rituais religiosos como o Daime e a lbogaína.
ESF: Estratégia de Saúde da Fa mília. Essa denominação substi­
tui a anterior que era PSF (Programa de Saúde da Família).
Fluxo: Nome dado a zona de uso do bairro da Luz de São Paulo,
é um agrupamento de centenas de pessoas.
Naps: Núcleo de Atenção Psico ssocial. Equivalente a Caps. Fo­
ram assim chamados em Santos e noutras cidades brasileiras.
Nasf: Núcleo de Apoio à Saúde da F amília. Criados pelo Minis­
tério da Saúde em 2006, são grupos multiprofissionais com­
po sto s por médico s de várias e s pecia lida des , psicólogo s ,
terapeutas ocupacionais. . . destinados a potencializa r a ação
da ESF.
Noias: nome dado a frequentadores de zonas de uso de crack
pelas baforadas paranoicas que produz o uso da pedra fumada.
Rapas: operação de limpeza urbana realizada por policiais ou
gua rdas municipais mediante as quais retiram os pertences
das pessoas em situação de rua.
Ritornelo: Inspirado em Mikhail Bakhtin (Questões de literatura
e de estética - a teoria do romance, São Paulo: Hucitec, 1988).
Guattari e Deleuze criaram o conceito que refere a repetições
de sons, como por exemplo o canto de ninar da mãe para o
bebê, ou a TV ou o rádio ligados enquanto se faz tarefas do-
12
mésticas. Essas repetições estão sempre ligadas a territórios e
são fundamentais para constituição dos territórios existenciais.
Pa ra aprofundamento do conceito ver: Félix Guattari: "Da
subjetivida de". ln: Cosmose - um novo paradigma estético, São
Paulo: Ed. 34, l.ª edição, 1992. E Gilles Deleuze & Félix
Guatta ri: Mil platôs - capitalismo e esq uizofrenia, vol. 4, São
Paulo: Ed. 34, 2002.
SRT: Os Serviços Residenciais Terapêuticos são moradias ocupa­
das por egressos de hospitais psiquiátricos, com longa perma­
nência instituciona l e dificuldade de retorno à família.
SRTE: As Unidades de Acolhimento, foram assim chamadas na
cidade de São Paulo até 2013.
UA: As Unidades de Acolhimento são casa s lig adas aos Caps
AD onde, aproximadamente, uma dezena de pessoas moram
durante um tempo para reorganizarem suas vidas. Existem
unidades destina das à mor adia de a dolescentes e a jovens adul­
tos. Em São Bernardo do Campo se cham am Repúblicas.
13
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 PREFÁCIO

ANTONIO NERY FILHO

Confesso minha surpresa quando Lancetti, com seu so­

taque inconfundível, me perguntou, clara e diretamente: "você
quer escrever o prefácio para o livro que estou concluindo?". A ra­
zão do convite talvez estivesse no Jato que, desde 1985, não ces­
sei de alardear meu desinteresse pelas drogas e meu extremo inte­
resse pelos humanos - homens, mulheres, adolescentes e crianças
de rua - usuários de psicoativos legais e ilegais, em geral como
solução para suas vidas miseráveis e, só muito raramente, como
causa, em que pese a luta constante para conseguir uma droga ou
outra, a violência, as doenças físicas e da alma, a violência do
tr4fico, a falta de sensibilidade ou o interesse disfarçado do poder
público, mediado pela mão pesada da polícia. Talvez o convite
tenha sido motivado pela experiência que denominei em 1989,
de "Banco de Rua", em parceria com alguns colegas do Centro de
Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad), Serviço Especia­
lizado da Faculdade de Medicina da UFBA, dez anos mais tar­
de transformada no Consultório de Rua, que tinha como norte o
encontro e o cruzamento de olhares entre os que chegavam e os
r;ue há muito experimentavam as possibilidades de vida e de morte
nas ruas de Salvador da Bahia.
15
iL11
Ultrapassada a surpresa, os textos que pouco a pouco foram
ocupando minha alma, me remeteram à recente experiência do
''Ponto de Encontro", no Pelourinho, quando os invisíveis ocupa­
ram a cena na Casa Rosa e puderam viver as alegrias da convi­
vência sem medo e "dormir com os dois olhos fechados", por pouco
tempo, é verdade, porque a intolerância e a hipocrisia se impuse­
ram na lógica do "tudo bem, desde que seja longe de mim". O lon­
ge nos levou à implantação dos "Pontos de Cidadania", espaços
mínimos de acolhimento construídos para servir de chegada àqueles
destinados a representarem a parte lixo da sociedade, o "lixo hu­
mano", conduzidos por jovens trabalhadores da saúde, inconfor­
mados e dispostos a transformar. Encontrei neste novo texto de
Antonio Lancetti, a continuidade de sua "Clínica Peripatética",
de 2006, cartográfica, "praticada em movimento, fora dos espaços
de reclusão convencionais, com o que se inauguram outras formas
de engate terapêutico, bem como outras possibilidades de conexão
com os fluxos da cidade e da cultura". Sob o título Contrafissura
e Plasticidade Psíquica, Lancetti convida-nos a continuar por
uma clínica em movimento. Para tanto, coloca-nos diante do fu­
ror proibicionista dos anos setenta que se prolonga até 2012, com
a ocupação militar da "Cracolândia Paulista", prisão de cente­
nas de pessoas, ou as internações compulsórias, para desespero dos
técnicos da saúde, envolvidos na aproximação e cuidado destes ho­
mens e mulheres, usuários de drogas, em situação de rua. Se 'Jis­
sura" tem sido compreendido como "impulso incoercível para con­
sumir drogas", a contrafissura, que nomeia o livro, quer se referir
às tentativas desesperadas de tantos - governos, políticos, igre­
jas - "apoiados por uma mídia sensacionalista, para resolver de
16
111otlo simplificado, problemas complexos, voltados, todos, para as
drogas e não para as pessoas". Como "plasticidade psíquica", o autor
//(IS propõe a capacidade técnica de responder de outro modo, à
r'lfj>(/ridade nascida na Reforma Psiquiátrica e consolidada nos
( .'1'11tros de Atenção Psicossocial (Caps), dando origem aos Caps
// ), como "primeira resposta da saúde mental, na substituição dos
//'//lamentos morais e reducionistas centrados na abstinência, na
listío da subjetividade dos corpos e da cidadania das pessoas usuá­
' iN.1' de crack"; as práticas redutoras de danos, tão combatidas ini-
1 tl//111ente e paradigmaticamente representadas pela proibição da
lt ()((f de seringas, inicialmente em Santos (SP), conduziram os
tt'l'11iros "ao encontro dos usuários, sem censurar o uso de drogas e a
,,,.,,itar essas pessoas do modo como elas eram". Isto exigiu adapta­
i n1•s extraordinárias, que denominei, tratando dos Consultórios
d,· Rua, de "destituição de olhares e lugares, para instituição de
111/mspossibilidades". Lancetti reconhece, tratando das experiên­ "
1
, 111.1· de "baixa exigência" (Low Threshold Service), também re-
11111/.Jf'cidas como "tecnologias leves", caracterizadas por práticas
11111• induzam a novas subjetividades, longe das propostas que des-
1111/l'ideram o saber e a experiência de cada um, sobretudo, longe
,l,1 ro11trajissura, cujo propósito é a abstinência e o retorno a uma
,,,,/11 em geral impossível, porque não implica permanentes tro-
1 ,, 1 ,. /ransjõrmações de uns e de outros, pacientes, familiares e pes-
111,,/ rir, saúde. Práticas como acolhimento em momentos de crise,
,1/t'llrlimento sem preconceito na unidade de saúde, entrada e per-
1,1111 111ria em um local provisório para dar tempo a uma reorga-
11 ,11(r10, passeios esportivos e culturais, projetos de moradia, ali-
11·11tnrão e trabalho constituem o que o autor chama de "primeiro
17
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disparo", reservando o "segundo disparo" àquelas circunstâncias
inusitadas, enigmáticas, e inexplicáveis que impelem alguns a "fu­
girem do circuito: zona de uso, cadeia, clínica de recuperação, abri­
go, Caps". Como exemplo destas novas possibilidade plásticas, em
que o pessoal da saúde "se carrega" ou "recarrega" como pilhas, nes­
tas práticas que "operam em superfície não submetidas à moral e
à contrafissura", somos convidados a transitar pelo ''Projeto Axé
e sua Pedagogia do Desejo", desejo de mudança construída com
meninos e meninas de Salvador, reafirmando - como para ter a
certeza de que não nos esqueceremos - da importância do "Pro­
grama Terapêutico Singular", "flecha propulsora mas para ser cer­
teira, precisa contar com o conhecimento e a participação dos usuá­
rios. Só pode ser construído com eles"; ou ainda, pelo Projeto "De
Braços Abertos" da Prefeitura de São Paulo, ousada e contra-he­
gemônica proposta para cuidar dos desassistidos e sempre destituí­
dos de tudo, moradores da Cracolândia do centro da Cidade de
São Paulo, cujo norte é dado pelo "pacote de direitos": moradia,
alimentação, trabalho e cuidados de saúde; ou ser espectador do
interessante diálogo com Davi Benetti sobre a recente proposta
do "Consultório na Rua", do Ministério da Saúde, apoiado na
Atenção Básica, confrontada à antiga experiência do "Consultório
de Rua", inseridafundamentalmente no campo da saúde mental.
Contudo, se este Prefácio parece linear, o livro não o é. Não é
ortodoxo. É um relato topológico: os capítulos dão, por vezes, a
impressão de deixar algo em suspensão ou nos puxam para o campo
do afeto, do compartilhamento, como no último capítulo quando
somos testemunhas da declaração de saudade através do texto sen­
sível que Antonio Lancetti leu em 2002, na Câmara de Verea-
18
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dores de São Paulo, dirigindo-se ao amigo David Capistrano Fi­
lho, em memória, não sem antes nos deixar com a alma suspensa
('das reflexões escritas em parceria com Gabriel Donizete Batis­
/11, o Gabriel, que começa com a enigmática afirmação: "hoje nos
1•11rontramos com o amanhã de ontem e com o ontem de amanhã
11111• nos é dado em forma de presente. Presente que não pedimos e
11111ito menos merecemos", para concluir: "você não entende. Só
1/i•pois vim a entender por que fiquei dois anos na cadeia. É que
1011 anjo mas não estou podendo sair do corpo".
lfqui, valho-me de Rubem Alves, quando em uma de suas crô-
11ims aconselhou que os professores dessem notas aos seus alunos de­
/toi.,·, muito depois de concluídos os estudos; após verificarem o que
111/1ro1t numa espécie de escorredor de conhecimento. Gostaria de
1'1(1'1•·ver este Prefácio, muito tempo depois de ter lido e relido os
/1',\'IO.I', de ter começado pelo final, de misturar Gabriel e Benetti,
./1'jJoi.1· de retornar aos lugares por onde já andei. Aí, talvez, escre-
1'1'11·1' 111n verdadeiro texto, que desse conta do longo trabalho de
l ,111/'l'!ti, de suas ''aventuras e desventuras" no mundo da saúde
,·, l(J/1rl'ludo, de sua imensa capacidade de compreender a diferen-
1,,, 1· os diferentes, e de seu reconhecimento pelo acolhimento que
//1,· 1/1·rr1m e que ele não cessa de nos dar.
S11!11r1do1; setembro de 2015.
19
AGRADECIMENTOS

José Ruben de Alcântara Bonfim

Gastão Wagner de Sousa Campos
Heidi Tabacof
Leon Garcia
Myres Cavalcanti
Danilo Fernandes Costa
Roberta Melão
Matías Lancetti
Mariana Monteiro
Alejandro Viviani
Cibele Neder

21
�

INTRODUÇÃO

"La terapia, per Freud e per Basaglia e la stessa

cosa - e l'incontro del amare con la libertà"
- ANGELO RIGHETTI, em conversa com
Antonio Lancetti e Franco Rotelli

Os últimos anos de minha vida me encontraram

transitando pelo Brasil apoiando e participando de experiên­
cias complexas e preciosas.
Estas páginas nascem da imperiosa necessidade de trans­
mitir os conceitos e as ideias-força traçadas nessas trajetórias
com valiosos trabalhadores de saúde, de saúde mental e de
outras áreas sociais como assistência social e trabalho.
E especialmente do encontro com usuários, pacientes e ami­
gos que não param de nos questionar e nos levar ao limite do
pensamento clínico, ético e político.
Muito se tem falado do proibicionismo e de seu fracasso,
mas aqui entramos no seu funcionamento, na sua eficácia e
num sintoma social que chamamos contrafissura.
Os capítulos foram provocados pela urgência de apreciar e
tornar visíveis as valiosas experiências desenvolvidas nos Caps

23
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que atendem pessoas que usam drogas de forma suicida, muitas

em condições existenciais e sociais dramáticas.
Buscamos também dialogar com as práxis dos consultórios
de rua e na rua e com práticas de nova geração como a "De
Braços Abertos".
Por respeito aos trabalhadores que operam na ponta e aos 1.
gestores de todas as experiências citadas, buscamos praticar a A CONTRAFISSURA
heterogênese e a franqueza, tentando ser ao mesmo tempo
crítico e construtivo. Por exemplo, na droga haveria alguma coisa de
muito particular, é que o desejo investiria direta­
Mas ultrapassar os planos da moral e da judicialização da mente o sistema-percepção.
clínica e da vida exige uma constante revisão de nossas concep­ [ ...]
Sim, de que modo o desejo entra diretamente
ções e de práticas ditadas pelo senso comum e pelo bom senso. na percepção, investe diretamente a percepção
O último capítulo, datado de 2002, transcreve as palavras (daí o fenômeno de dessexualização da droga).
Um tal ponto de vista permitiria encontrar a li­
que proferi por ocasião de entrega do título de cidadão pau­ gação com as causalidades exteriores mais gerais,
listano pela Câmara Municipal de São Paulo a David Capis­ sem no entanto se perder: assim, o papel da per­
cepção, a solicitação de percepção nos sistemas
trano Filho e é incluído neste livro por três razões: foi David sociais atuais, que faz Phil Glass dizer que, de
quem me aproximou desta editora; porque por sua iniciativa qualquer maneira, a droga mudou o problema
da percepção, mesmo para os não drogados.
e liderança se instituiu, em Santos, o primeiro programa de
- GrLLES DELEUZE1
Redução de Danos do Brasil e finalmente porque, enquanto
líamos as provas do livro, Flávio George Aderaldo, o editor, Uma corrente entorpecedora em favor do enfrenta­
disse: o David tinha tanta força interior que se estivesse vivo o mento da chamada epidemia do crack ensombrece a socieda­
Brasil não estaria claudicante como está. de brasileira. Essa corrente predominantemente midiática foi
Nestas páginas pretendemos contribuir para uma corrente intensificada a partir de 2010 e desapareceu dos meios de co­
em estado emergente no Brasil e no mundo que pensa que o municação durante a recente ocupação das ruas pelas multi­
contrário da droga e da miséria não são a abstinência nem a dões monstruosas.
pena, mas a ampliação da vida, a liberdade, o direito, o co­
mum, o perdão e a fuga. 1 Gilles Deleuze. "Duas questões". ln: Herbert Daniel et ai. SaúdeLoucu­
ra 3. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 64.
24
25
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O tema, depois das jornadas de junho de 2013 e da Copa,
reapareceu com força durante o período eleitoral e, dada a
conjuntura política e a composição do Congresso Nacional
deverá oferecer muita matéria para vigência da contrafissura.
Mas a disseminação do crack pode ser considerada uma
epidemia?
Os americanos que resistiram à política da guerra contra as
drogas nos primeiros tempos perguntavam atônitos: como pode
ser epidemia se a substância é inerte?2
A palavra epidemia (bti significa sobre e Õf\µoç; povo) já se
encontra em textos hipocráticos, há dois mil e quinhentos
anos, e significa o aumento de determinadas doenças num
determinado lugar e num determinado tempo cronológico.
O conceito foi utilizado para doenças transmissivas gera­
das por vírus ou bactérias que se transmitem de um ser para
outro. Desse ponto de vista, o crack não pode ser considerado
epidemia já que não se transmite por si mesmo.
Mas do ponto de vista da epidemiologia dos séculos XIX e
XX, o conceito se estendeu a outras doenças. Poderiam existir
epidemias causadas por doenças transmissivas e por doenças
não transmissivas, desde que haja aumento do número de atin­
gidos num determinado lugar e num determinado período de
tempo.
Os argumentos que comparam a quantidade de pessoas
2 Craig Reinarman & Harry G. Levine (eds.). Crack in America. Demon
Drugs and Social Justice. Berkeley-Los Angeles-Londres: University of Califor­
nia Press, 1997, p. 9.
que se tornaram consumidores compulsivos de crack, com seus
agravos à saúde, como os dependentes de álcool, por exemplo,
servem para desmontar o exagero da mídia e de governantes,
mas não para desconstruir essa ideia da epidemia.
Simulacro de epidemia
É impressionante que em tão pouco tempo tenham se na­
turalizado a proibição e a demonização das drogas.
Em 1970, nos EUA, em pleno furor proibicionista, as pri­
meiras pesquisas mostravam que 53% da população adulta
consumia álcool, 16% maconha, 10% ansiolíticos, 3% cocaína
e 1 % heroína. 3
O Congresso Americano promoveu uma comissão de fa­
macêuticos e cientistas de prestígio, a National Commission
on Marihuana and Drug Abuse, que não concordava com a
proibição das drogas.
O governo Nixon, na contramão, criou a Special Action
Office for Drug Abuse Prevention liderada pelo psiquiatra
Jerome Jaffe conhecido na mídia como o "czar das drogas",
cujas ideias funcionam tão deletéria como eficazmente até hoje.
A utopia de um mundo sem drogas era tão fundamentalista
que achavam que não se deveria administrar morfina mesmo
em pessoas sofrendo dores como produto de câncer ou outros
sofrimentos às vezes em estado terminal.
3 Antonio Escohotado. Historia general de las drogas. Madri: Espasa Calpe,
1998, pp. 944-5.

26 27

De modo que comparar o número de usuários de drogas
legais e seus agravos com as ilegais não muda a situação nem
acalma a fissura. Também o enfrentamento desse sintoma so­
cial não se resolve mudando de problema de segurança para
problema de saúde porque uma das raízes do proibicionismo
foi precisamente a autoridade médica moral.
Friedrich Engels, num livro clássico A situação da classe tra­
balhadora na Inglaterra publicado em 1845, foi precursor da
moderna epidemiologia ao descrever as condições de trabalho
e de vida dos operários ingleses como causadoras de muitas de
suas doenças. A descoberta do primeiro micróbio, do car­
búnculo, deu-se em 1881 por Louis Pasteur.
No século XX outro clássico da epidemiologia, John Eve­
rett Gordon, lavrou um conceito de epidemiologia fundamen­
tado na tríade agente, hospedeiro e meio ambiente.
Depois de Gordon, o conceito de epidemia foi expandido
para doenças psicossociais e doenças da nutrição. Desse ponto
de vista é possível incluir como epidêmicas doenças não trans­
missivas como as doenças degenerativas e as doenças crônicas,
e também as doenças psicossociais.
Mas o certo é que foi veiculada a noção de epidemia como
uma peste que se alastra por todos os cantos do País, nas cida­
des e no campo.
Oliando Dráusio Varela mostrou no "Fantástico" a diferença
entre o crack e o oxi, disse quanto custava, onde era vendida e
que a droga é tão poderosa que se a experimentarmos uma vez
não é possível se livrar dela, a população da chamada cracolân-
28
..."")"·
'li
dia mais do que duplicou no final de semana seguinte.
Poucos dias depois adolescentes frequentadores de zonas
de uso de Vitória, Espírito Santo, perguntaram aos técnicos
do Consultório de Rua: "Tia, quando vai chegar o oxi a
Vitória?"
As campanhas alarmistas fazem parte da guerra às drogas,
produzem o efeito contrário ao supostamente desejado e têm
contribuído para expandir o mercado negro, o mercado bran­
co e o consumo de drogas ilícitas e lícitas.
A Oficina das Nações Unidas contra as Drogas organizou
um programa preventivo de uso problemático que permitiu
reduzir de vinte a vinte e cinco por cento o consumo proble­
mático de drogas. O programa4 é de corte predominante­
mente educativo e busca por diversos meios atrair os jovens
que se relacionam com drogas para a comunidade e para a
família em vez de expulsá-los delas ou segregá-los.
As campanhas preventivas baseadas em palestras moralizan­
tes proferidas por policiais mostraram-se ineficazes. Os depoi­
mentos de arrependidos que contam que ficaram por anos
submetidos à droga, mas que hoje estão com "Deus no coração
trabalhando de monitor em clínica de recuperação de drogados"
se mostraram iatrogênicos, provocando aumento do consumo.
Em 2012, a polícia ocupou militarmente a cracolândia pau­
listana, prendeu e coagiu centenas de pessoas a se internarem
voluntariamente e, o que foi mais patético, obrigou grandes
4 Educaci6n de base escolarpara la prevenci6n dei uso indebido de drogas. Oficina
contra la droga y el delito Viena. Nova York: Nações Unidas, 2004.
29
 m """"'"'""""'"'""'"'""""""'""'"'"",. 1l,ITl"T.,-Tlrm!'1l'

grupos de pessoas maltrapilhas a andar em procissão e sem A epidemia de crack, ou o simulacro de epidemia como bom
rumo pelas obscuras ruas do bairro paulistano da Luz e hu­ simulacro, independente de sua veracidade, existe e funciona.
milhou os funcionários das equipes de Saúde da Família fa­ É tentador considerar o agente o crack, hospedeiro o usuá­
zendo-os desfilar pelas ruas, fora de seus territórios de atua­ rio e meio ambiente o território onde esse sujeito vive.
ção, para mostrar serviço. Essa ação teve mais de noventa por A contrafissura também se manifesta em cada cuidador e
cento de aprovação popular. terapeuta que imagina salvar a vida das pessoas, que pelas ra­
Esse fenômeno de desespero, de fissura por resolver ime­ zões mais complexas está habitando as bocadas e zonas de uso
diatamente, se manifesta na prática de internações forçadas ou simplesmente de pessoas que procuram ajuda.
muitas vezes de adolescentes que tiveram seu primeiro conta­ O consumo de crack pode ou não ser considerado uma epi­
to com alguma droga ilegal. demia, mas o problema central que focalizamos neste capítu­
A esse afã por resolver imediatamente e de modo simpli­ lo é o modo como essa noção de epidemia atua, a sua eficácia
ficado problemas de tamanha complexidade chamamos con­ imediata e os riscos que acarreta.
trafissura. Considerar simplesmente o crack uma doença crônica e
Como diz o samba: "nós é que bebemos e eles é que ficam recidivante que age no cérebro produzindo tolerância é um
tontos" ( Turma dofunil, marcha de carnaval de 1956 de auto­ reducionismo perigoso que, aliado às políticas proibicionistas,
ria de Mirabeau, M. de Oliveira e Urgel de Castro). demagógicas e midiáticas, alimentam a contrafissura por toda
Noias queimam pedra, e autoridades, políticos e editores a superficie expressiva social inserindo-se nos processos de sub­
de jornais escritos e televisionados ficam alterados. jetivação dos drogados e dos não drogados.
Mas a contrafissura não se manifesta somente em matérias A Reforma Psiquiátrica brasileira já foi considerada exem­
sensacionalistas de jornais, revistas e televisão, ela orienta tam­ plar por haver desativado aproximadamente 60.000 leitos e
bém programas de governo como o Programa Recomeço que por ter substituído grande parte dos velhos hospícios por uma
se inicia com internação para estabilização e continua com rede de atenção territorial.
internação em comunidade terapêutica para aprender a viver A Reforma Psiquiátrica desenvolveu uma poiésis, isto é,
em sociedade. produziu uma obra e se consolidou como política de Esta­
O programa é tão eficaz do ponto de vista da propaganda do. Com mobilização social, participação de usuários e fa­
política como fracassado na prática, porque é focado na droga miliares fundada na utopia de uma sociedade sem manicô­
e não na pessoa. mios, hoje se vê acuada e confrontada a utopia de uma
30 31
 sociedade sem drogas.
A contrafissura é uma das causas da criação de numerosas
chácaras e outros locais mais ou menos isolados que se auto­
denominam comunidades terapêuticas.
A expressão Comunidade Terapêutica foi lavrada pela expe­
riência inglesa e depois americana de Maxwell Jones, Bion e
outros que buscavam, por meio de assembleias, grupos, psico­
dramas, modificar as estruturas rígidas dos hospitais psiquiá­
tricos com o objetivo de transformar uma instituição fechada
e iatrogênica numa instituição aberta e terapêutica.
Por comunidade terapêutica entendemos um conjunto de
pessoas consideradas doentes e outro conjunto de pessoas con­
sideradas terapeutas desses doentes.
Dadas a iatrogenia e a institucionalização produzidas pelas
instituições psiquiátricas, o objetivo fundamental das comu­
nidades terapêuticas inglesas e americanas era a desconstrução
dos espaços-tempos institucionais com o objetivo de reverter
as relações de poder vigentes.
Nas assembleias praticadas em algumas dessas comunidades,
profissionais e pacientes tinham o mesmo poder de voto.
A contrafissura também se manifesta na tergiversação dos
termos. Se a comunidade terapêutica inglesa buscou descons­
truir a psiquiatria objetivando tornar terapêuticas instituições
iatrogênicas, as comunidades terapêuticas atuais as reificam.
De base moral, retornam às velhas concepções psiquiátricas
que entendiam a doença mental como desvio da razão, daí os
tratamentos corretivos aplicados, como banhos de água fer-
32
vente e água gelada, a laborterapia, os choques insulínicos, as
celas fortes, etc.
Algumas comunidades terapêuticas praticam corretivos
como carregar pedras e outros procedimentos repetitivos, cas­
tigos e penitências.
Em 201 1 uma Comissão de Direitos Humanos do Conse­
lho Federal de Psicologia realizou uma inspeção em sessenta e
oito locais onde havia internação de usuários de drogas e cons­
tatou diversas formas de desrespeito aos direitos humanos. 5
Depois de a lei de saúde mental outorgar direitos às pes­
soas com existências transtornadas ou consideradas loucas, es­
sas práticas acontecem cada vez menos. Há também abusos,
abandono, moradores crônicos de hospícios, mas o controle
social não se exerce mais por meio de instituições que Fou­
cault chamou de disciplinares, mas ao ar livre; os velhos hos­
pícios não são mais rentáveis nem funcionais como outrora.
Vivemos hoje sob a égide da sociedade de controle. 6
Hoje, a prática de exceção acontece majoritariamente com
usuários e pequenos traficantes de drogas ilegais, e muitas prá­
ticas profissionais a justificam.
Essa corrente dos que entram no mundo da droga como
uma cruzada de salvadores ou corretores de almas une-se às
correntes cientificistas que fazem uma leitura contrafissurada
5 < http:// site. cfp. org.br/publicacao/relatorio-da -4a-inspecao-n acional-de­
direitos-humanos-locais-de-in ternacao-para-usuarios-de-drogas-2a-edicao/ >.
6 Gilles Deleuze. "Controle e devir (entrevista a Toni Negri) " - p. 209 e
"Post-scriptum sobre as sociedades de controle" - p. 219. ln: Conversações.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
33
 das neurociências que propõem o tratamento do doente ba­
seado n um sistema reducionista de castigo e recompen sa.
A esse par epistêmico vem somar-se o da psicologia com­
portamentalista.
Ess a agrupação epistemológica alia-se a uma psiquiatria au­
toproclamad a científica e moderna que reencontra com a pro­
d ução de senso comum midiático sua velha morada - a ins­
tituição total.
O drogado ora é um afastado de Deus, um ser poss uído
por satanases, ora uma vítima de um cérebro doente que per­
deu toda possibilidade de autodeterminação. Um sujeito sem
subjetividade qu e precisa ser sequestrado, reprogramado se­
gundo procedimentos b aseados na abstinência prolongada e
na reengenharia d a vida.
Segundo reza o Programa Recomeço,7 o tratamento se or­
ganiza em fases: a primeira, de estabilização, a segun da, da
reabilitação em comunidades terapêuticas onde supostamen ­
te o sujeito se prepara para seu retorno à sociedade.
As informações sobre as s ucessivas internações e o retorno
às zonas de uso nad a importam ante a fissura generalizada
por intern ar quem us a drogas ilegais. É por isso que muitas
adolescentes de catorze ou quinze anos são internadas nesses
locais de sequestro, depois de terem sido surpreendidas fumando
maconha. Já se pode imaginar o que aprendem nesses locais . . .
Porém, as comunidades terapê uticas não são o simples re­
torno dos manicômios, como bradam muitos dos queridos
7 <http://programarecomeco.sp.gov. br/ >
34
companheiros da luta antimanicomial. Elas são criadas por
grupos comu nitários oriundos de uma larga faixa d a socieda­
de que vai de grupos de ex- us uários, de grupos religiosos a
uma certa elite acadêmica.
A criação e expansão das comunidades terapêuticas, espe­
cialmente as administradas de maneira mais violenta, repre­
sentam uma ameaç a para a Reforma Psiquiátrica Brasileira
mas fazem p arte do co njunto-droga: produção-comercializa­
ção-j udici alização-repressão-cuidado-terapêuticas-exposição
mediática. Fazem p arte do mesmo sintoma.
Gregory B ateson, 8 em págin as in citantes sobre a teologia
do alcoolista, mostrou como o orgulho do alcoólatra faz parte
de um sistema que chamou de prova invertida e consiste em vi­
venciar uma interminável abstinência: bebo porque essa é a pro­
va cabal que posso p arar. O drogado, diz Deleuze no texto epi­
grafado, é o etern o abstinente, aquele que nunca p ara de parar.
Daí a eficácia sempre relativa do primeiro dos doze passos:
Diante da demanda de abstinência o representante do AA
dirá: "você não vai conseguir. . . precisa se entregar a um po­
der superior". O u da filosofia da Redução de Danos. Diante
da mesma demanda, ele dirá: "Você não vai conseguir, é me­
lhor você experimentar u m pequeno triunfo que um grande
fracasso; é melhor tentar outra droga menos nociva. . . ou usar
de outra maneira".
8 Gregory Bateson. "Orgullo o prueva invertida". ln: Pasos bacia una ecologia
de la mente - una aproximación revolucionaria a la autocomprensión dei hombre.
Buenos Aires: Planeta, 1991, p. 356.
35
 Nos dois casos, o que funci ona é um deslo camento episte­
mológi co . De maneira que a abstinência pode ser uma redução
de danos em caso de risco extremo, mas faz parte do sintoma
d o alcoolista, dos drogados em geral e de toda a série de re­
pressores e terapeutas e outros salvadores.
A abstinência como contrário da droga, bebo não bebo ,
uso não uso , faz parte da dialéti ca e da teologia do drogado.
As internações e as prisões fazem parte da circulação dos
territórios drogados: cena de uso , internação, prisão. São com­
ponentes d os territórios existenciais dessas pessoas.
As comunidades terapêuticas fazem parte desse si ntoma
contemporâneo que pretendemos alcançar em parte com o
conceito de contrafissura.
Mas assim com o exi stem comunidades terapêuticas que
ferem direitos humanos, há outras que trabalham em parceria
com os Caps. Elas são um fenômeno complexo que convém
enfrentar de modo não fissurado .
Outra das maneiras da expressão da contrafissura é a vio­
lentação d o Direito; no Rio de Janeiro , por exemplo, a Assis­
tência So cial, sob comando d o ex-secretário muni cipal Ro­
drigo Bethlem, em nome de medidas de proteçã o, apli co u
medidas de i nternação . Na prática, foram caçadas crianças e
adolescentes. Transportadas para abrigos lo nge do centro da
cidade, acabaram p or gerar aí conflitos insustentáveis.
Essa ação foi uma tergiversação do Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), pois os adolescentes foram caçados
invo cando -se a aplicação de medida protetiva; o corre que a
36
perda da liberdade é uma medida so cioeducativa que deveria
ser prescrita por juiz.
A experiência não foi somente uma ilustração da práxis do
estado de exceção. Como outras, teve efeito midiático rápido,
pois a opinião pública já doutrinada a aprovou; no entanto ,
foi prejudicial porque os meninos e meninas não so mente es­
caparam de abrig os infernais mas voltaram às cenas de uso
mais arredios e muito mais difíceis de tratar.
Além de autoritário e grotesco, o empreendimento mos­
trou-se prejudi cial e ineficaz e, graças à resistência de organi­
zações de direitos humanos e de trabalhadores da saúde, as
ações pararam e estão sendo substituídas pelo Projeto Casa
Viva, que parece promissor.
01iantos deputados e senadores não pautaram suas campa­
nhas políticas com o mote de co mbate às drogas asso ciado à
proposta da redução da idade penal!?
Esta ideia de focar o tratamento numa substância não é
somente equivocada. Ela opera como álibi para criação de novos
territórios de estado de exceção.
Agamben cunhou o conceito de Estado de Exceção inspi­
rado na experiência de um tip o de subjetividade produzida
nos campos de concentração.
Prisioneiros conhecidos por muçulmanos eram assim cha­
mados, não por sua orientação religiosa, mas por se curvarem
às botas dos opressores em posição de reza.
9 Giorgio Agamben. "O muçulmano". ln: O que resta de Auschwitz. O testigo
e a testemunha. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, p. 49.
37
 O livro precursor de Agamben ao Estado de exceção se
chama O que resta de Auschwitz9 que descreve esses sujeitos
desprezados pelos presos e pelos alemães, sujeitos sem palavra,
sem vontade.
É obra da contrafissura a flagrante diferença que se verifica
nas zonas de uso como a de São Paulo e outras regiões do País
onde não houve repressão sistemática. Em Recife,João Pessoa,
Aracaju e outras capitais sem ações de repressão como houve
em São Paulo ou no Rio de Janeiro, as pessoas se escondem
para fumar, e o diálogo com elas é muito mais fácil e fluido.
Na cracolândia paulistana, por exemplo, as pessoas fumam
na cara de qualquer um e a vinculação com os profissionais
dos Consultórios na Rua é muito mais difícil.
Os noias das cracolândias, maltrapilhos e confundidos com
o asfalto e suas extravagâncias, como os muçulmanos dos cam­
pos de concentração, ocupam o lugar de sujeito sem voz; sem
direito e sem desejo, eles são uma porta para a constituição de
campos de exceção.
Mas os noias de nossas cracolândias, diferentemente dos
muçulmanos dos campos de concentração, não obedecem.
Por isso, esses sujeitos sem subjetividade, que devem ser
salvos pela ciência que estuda o cérebro, logo viram inimigos,
como dizia Basaglia a respeito dos pacientes da época da psi­
quiatria asilar.
Por exemplo, quando dizemos que a drogadicção não é um
problema de segurança mas um problema de saúde, devemos
lembrar que ela só se tornou um problema de segurança por-
38
que foi considerado um problema de saúde, isto é, depois é
que foi proibida.
Foi exatamente o agenciamento das corporações médicas
com a pressão dos meios de comunicação que deu consistên­
cia à política triunfante da guerra às drogas.
Se do ponto de vista de seus resultados foi um fracasso pois
o mercado negro, a violência, o encarceramento cresceram, para
o senso comum e o bom senso são políticas exitosas do ponto
de vista eleitoral e, consequentemente, comercial.
Em outros períodos da história houve proibição por moti­
vos religiosos de drogas enteogênicas, e até de café.
Ou por motivos econômicos como a guerra do ópio; 10 se­
gundo Escohotado, diante do desnível da balança comercial,
pois o ópio consumido era proveniente da Índia e levado à
China por navios ingleses e portugueses.
O uso e a comercialização do ópio foram penalizados com
enforcamento, mas tais medidas só fizeram aumentar o merca­
do negro e o consumo. Somente depois de permitido o cultivo
em território nacional, o consumo e a violência diminuíram.
Porém, na nossa história mais recente o proibicionismo está
intimamente ligado à incisividade do poder psiquiátrico, ao
oportunismo político e à própria subjetividade contemporâ­
nea francamente compulsiva, como o demonstram a hiperco­
municação por celulares, computadores, tablets e aplicativos
de relacionamento sexual. O uso abusivo dessas telas talvez
seja a maior expressão de compulsividade.
10 Antonio Escohotado, op . cit., p . 534.
39
 A contrafissura é uma paixão propriamente capitalística. nambuco tornou-se o único estado do Nordeste brasileiro onde
Como uma alma, atravessa todos os territórios da existência e houve diminuição da violência.
não se manifesta exclusivamente nos proibicionistas. Todos No interstício dessas experiências se expressa também a con­
estamos nela como habitantes e habitados pela sociedade de trafissura, ela habita as subjetividades neuróticas, os limites
controle. impostos pelo senso comum e o bom senso ao longo de todas
No nosso entender, a contrafissura é a primeira barreira a as práticas bem-sucedidas.
ser enfrentada por gestores e cuidadores. A contrafissura é o primeiro obstáculo a ser vencido para
Embora minoritárias, existem políticas não fascistas como poder se relacionar com pessoas, biografias, corpos e também
as desenvolvidas no Uruguai, com a legalização da cannabis, para elaborar políticas inteligentes e eficazes.
na Holanda com instalação das salas de uso seguro, ou pro­ Mas quando os programas assistenciais começam a funcio­
tegidas, nos Estados Unidos e no Canadá com as experiên­ nar os egos crescem paralelamente aos drogados que assistem,
cias de Housing First, em São Paulo com o Programa "De Bra­ e a contrafissura, metamorfoseada, reaparece. Nunca nos li­
ços Abertos", em São Bernardo do Campo com a Rede de vramos dela.
Saúde Mental e a incorporação e reinvenção da Redução de
Danos.
Destaque especial merece a experiência do Programa Ati­
tude do Governo de Pernambuco que durante a gestão do ex­
-governador Eduardo Campos reunia todas as polícias, orga­
nismos de Direitos Humanos e outros atores com o objetivo
de diminuir a mortalidade e o encarceramento de pessoas en­
volvidas com drogas.
Atitude com seu trabalho de rua, e seus equipamentos de
funcionamento durante vinte e quatro horas, mais a ação de
valorização da vida pelas forças de segurança, conseguiram re­
duzir em torno de cinquenta por cento o encarceramento e a
mortalidade dos usuários de crack.
O resultado dessa ação integrada no estado foi que Per-
40 41
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2.
A FORMAÇÃO DO CARÁTER
DO TRABALHADOR DE CAPS AD
Em 1965 Mario Tommasini, operário comunista,
tornou-se secretário de saúde da cidade de Parma (Itália) e aí
protagonizou uma série de experiências libertárias que embe­
lezam a história das revoluções psiquiátricas.
Tommasini foi um dos precursores na expansão dos prin­
cípios e da pragmática de Psiquiatria Democrática para o cui­
dado e a desinstitucionalização de velhos, crianças, deficientes
e jovens drogados.
Por essa época ele conheceu Franco Basaglia e o encontro
foi decisivo para a história de desconstrução manicomial que
Tommasini liderava na cidade de Parma.
Durante o período em que Mario Tommasini foi secretá­
rio de saúde e ocupou outros cargos, foram desativados mi­
lhares de leitos psiquiátricos, todos os asilos para velhos, os
orfanatos, e uma vetusta edificação foi transformada em Caste­
lo dos Direitos, onde foi criada uma prisão de portas abertas.
Uma das passagens mais emocionantes do livro de Franca
Ongaro Basaglia, Mario Tommasini - vida eflitos de um de-
42
mocrata radical, 1 narra o momento em que restavam apenas
duas crianças deficientes para fechar um orfanato. Tommasi­
ni convocou as velhas partisans (combatentes comunistas contra
os nazistas) e conseguiu que elas levassem essas crianças para
morar com elas. Dessa forma, tanto as velhas senhoras como as
crianças melhoraram significativamente suas vidas.
Mario Tommasini entendeu logo, com Basaglia, que o pro­
cesso terapêutico era inerente ao processo de desinstituciona­
lização.
Em Santos, durante a gestão do prefeito David Capistrano
Filho, tivemos a sorte de conhecer Tommasini, homem que
inundava os ambientes de alegria e dignidade.
No livro que publicamos com prólogo de David Capistra­
no Filho e Aldaiza Sposati, Franca Ongaro Basaglia narra a
experiência de uma ocupação com jovens marginalizados de
um espaço abandonado da cidade. Nesse local e numa expe­
riência de confronto e de profunda escuta dos desejos e ma­
neiras de entender o mundo dos jovens, liderou a criação de
uma cooperativa à revelia da burocracia de esquerda, dispu­
tando palmo a palmo a opinião pública.
Como diz no prefácio Franca Ongaro Basaglia, nas expe­
riências lideradas porTommasini e seu amigo inspirador Franco
Basaglia, se constatou que tudo é possível no auge da partici­
pação e da solidariedade.
Porém, quando ele tomou contato com jovens usuários de
1 Franca Ongaro Basaglia. Mario Tommasini vida e feitos de um democrata
radical. São Paulo: Hucitec, 1993.
43
 heroína, a experiência se complicou a tal ponto, que ele che­
gou a afirmar: "estou convencido que não se pode administrar
a toxicodependência".
Esse enunciado tem uma potência paradoxal: de uma par­
te, afirma a dificuldade de conviver com pessoas que traem,
enganam, desafiam. . . que sofrem e gozam de maneira inu-
sual. "Com relação ao problema dos toxicodependentes, creio
que seja um dos setores mais difíceis, mais difíceis que a psi­
quiatria, que os deficientes".
Mas esses enunciados, para quem acompanhou a experiên­
cia de Maria Tommasini, só expressam intensidades e a verti­
gem de levar as relações a limiares inesperados.
Também Anton Semionovitch Makarenko na ex-União
Soviética, arriscou a vida no confronto com os jovens da Colô­
nia Górki, ele que era um homem frágil, acompanhado so­
mente de duas pedagogas.
Num momento, narrado no Poema pedagógico,2 a impli­
cação e o desepero foram tais que Makarenko chegou a tentar
suicídio mas foi surpreendido por um jovem que o instou a
não tirar a vida.
Acredito que seja difícil, na história da humanidade, veri­
ficar outra experiência com tamanha transformação de jovens
delinquentes em médicos, engenheiros, jornalistas, militares e
revolucionários.
Maria Tommasini foi um dos precursores da Redução de
2 Anton Semionovtch Makarenko. Poema pedagógico. São Paulo: Editora
34, 2012.
44
Danos ao ir ao encontro dos usuários sem censurar o uso de
drogas e por aceitar essas pessoas da maneira como elas eram.
Ele discordou da posição conservadora do governo italiano
de esquerda que não conseguiu resistir à tentação repressiva
que levou ao fracasso tantas experiências.
Dessa forma criaram um antecedente que pode ser enun­
ciado assim: a dupla postura de reprimir e cuidar ao mesmo
tempo está fadada ao fracasso.
Makarenko queimava os prontuários dos jovens em pleno
governo bolchevique, pois acreditava como poucos no futuro.
François Tosquelles, além de comparar os hospitais psiquiá­
tricos a campos de concentração, e protagonizar a revolução
psiquiátrica levada a cabo em Saint-Alban (França), também
se insurgiu contra o stalinismo a ponto de enviar uma carta de
discordância ao próprio Stálin. As experiências fundadoras
foram marcadas por alta intensidade e transitaram transbor­
dando os limiares da clínica, da pedagogia e da política.
De modo similar à Reforma Psiquiátrica de Parma, mas
em escala sumamente maior, o advento da epidemia de crack
obrigou a Saúde Mental a dar respostas para as quais não
estava preparada.
Os trabalhadores de saúde mental aprenderam a tratar de
pessoas graves como, por exemplo, esquizofrênicos, mas se vi­
ram e se veem atropelados pela pressão política, midiática, pelos
setores da psiquiatria refratária aos avanços da Reforma Psi­
quiátrica Brasileira e por grupos de pessoas bem-intenciona­
das por "resolverem" o problema dos "drogados".
45
 As políticas não fascistas que se iniciaram com a práxis da
Redução de Danos resistiram e resistem bravamente às tenta­
tivas de reinstituir a internação e as soluções simplificadoras e
punitivas.
As políticas do governo brasileiro desenvolvidas depois de
2002, ao mesmo tempo que resistiram à onda por internação
compulsória, empenharam-se na construção de uma rede de
Caps denominados de Álcool e Drogas, articulados a outros
serviços e que têm por fundamento a atuação em rede com
base no trabalho de território.
O nascimento dos Caps AD
Identificamos cinco experiências - pode haver outras -
que originaram os primeiros Caps AD.
Em 1989, em Santo André, dentro de um Ambulatório
de Saúde Mental, foi criado um serviço para servidores de­
pendentes de drogas, basicamente para alcoolistas.
O serviço era frequentado majoritariamente por funcionários
da prefeitura usuários de álcool. À diferença dos Caps tinham
enorme adesão ou, melhor dizendo, dependência institucional.
Sob a coordenação do psicólogo Décio de Castro Alves o
serviço entrou em crise pois os pacientes mais graves, como
por exemplo os meninos em situação de rua, não eram atendi­
dos pelo serviço.
Por assim dizer, o Caps de Santo André foi fundado diante
de uma crise institucional que o levou a dar prioridade aos
46
pacientes mais graves e a modificar a dinâmica institucional.
Em 1 999 começou a ser construído o Caps DQ(Dependên­
cia Qyímica) que, em 2002, virou Naps AD III.
Em 1989, na cidade de Vitória, Espírito Santo, na gestão
do prefeito Victor Buaiz foi criado o CPTT - Centro de
Prevenção e Tratamento de Toxicômanos.
Esse serviço foi um dos primeiros do Brasil e se inspirou
no Centro Mineiro de Toxicomania (Fhemig).
Criado em 1983 pela Secretaria de Segurança Pública do
Estado de Minas Gerais com o nome de Unidade de Interna­
ção Social, esse serviço passou a ser administrado pela Secre­
taria de Estado da Saúde e chamar-se CMT. Pouco conheço
desse serviço e de suas transformações.
O CPTT de Vitória também sofreu influência do Cetad
- Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Uni­
versidade Federal da Bahia, cujo diretor, professor Antonio
Nery Filho, foi quem idealizou os Consultórios de Rua.
Com um pé na abstinência e outro na Redução de Danos,
foi transformado em Caps AD II e também foi criado sob
forte controversa.
Durante a gestão da coordenadora de saúde mental, An­
drea Romagnoli e sua equipe (2003 a 2011), Vitória desen­
volveu a construção de uma rede consistente de saúde mentaP
entremeada na Atenção Básica e dialogando com a Assistência
3 Luiza Helena de Castro Victal e Bastos & Andrea Campos Romagnoli.
"Saúde Mental na Cidade de Vitória, a Rede Tensionada". ln: SaúdeLoucura 9,
Hucitec, São Paulo, 2010, p. 193.
47
Social e outras políticas públicas. O Caps AD de Vitória, as­
sim como os outros dispositivos de saúde mental, ampliou
suas ações atuando em parceria com outros serviços da rede de
saúde, além do funcionamento de diversos grupos terapêuti­
cos; de lá surgiu o Consultório de Rua de Vitória. Em 201 1
veio a s e constituir em Caps A D III. Uma parte se desmem­
brou num Caps ADI III inaugurado em 2012.
Outro serviço precursor, criado em 1998, foi o Espaço Fer­
nando Ramos da Silva, assim chamado em homenagem ao
protagonista do filme Pixote, a lei do mais fraco, de Héctor
Babenco. Foi um centro de convivência para jovens com vidas
difíceis. Em 2008 transformou-se em Caps III.
Em Santos não sentimos necessidade de criar Naps para
usuários de drogas.
Antes da criação dos abrigos para adolescentes, fizemos a
experiência de produzir agenciamentos entre meninos e me­
ninas em situação de rua e pacientes crônicos do hospital. Não
havia então um lugar de convivência nem abrigos, que logo
após foram criados.
A experiência foi fantástica, os moradores do hospital psi­
quiátrico em processo de desinstitucionalização ativaram seus
interesses vitais, os meninos respeitavam-lhes o espaço e cui­
davam dos velhos internos.
A ideia era promover a convivência entre uma população
nômade e outra sedentária, para ver o que se produzia entre
essas séries aparalelas que se inspiravam no conceito de agen­
ciamento de desejo de Félix Guattari e Gilles Deleuze.
48
Fomos processados e vilipendiados pela mídia local pois,
segundo eles, estávamos pondo em prática o método Capis­
trano baseado no erotismo.
Sem dúvida, foi uma experiência baseada no encontro do
amor com a liberdade, como a maior parte das acontecidas
sob a direção do grande revolucionário que foi David Capis­
trano Filho.
Em Santos funcionou também um serviço para atender
meninos e meninas usuários de cola de sapateiro e crack, no
último período da Casa de Saúde Anchieta, mas que não per­
durou.
Durante a minha gestão de secretário da Assistência Social
de Santos, mantivemos relações estreitas com meninos em si­
tuação de rua e meninas prostituídas.4
A intensidade e abrangência do Projeto Meninos e Meni­
nas de Santos tornou desnecessários dispositivos médico-psi­
cológicos especializados para usuários abusivos de drogas; eles
eram atendidos nas redes de assistência social, saúde e saúde
mental locais.
Em Santos foi criada uma casa para pessoas infectadas pelo
vírus da aids5 que funcionava com uma metodologia gru­
pal. Nessa casa moravam muitos usuários de cocaína injetá­
vel. Na época eles se picavam em roda, quem pagava mais
4 Antonio Lancetti ( org. ) . Assistência social & cidadania. São Paulo: Hucitec,
1 99 6 .
5 Lúcia Frigério Paulo & Tânia Maria Santos Vieira. "Convivência com
portadores de aids e dependentes de drogas: uma clínica de solidariedade". ln:
Sa1ídeLoucura 3. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 55.
49
1 tomava primeiro e quem pagava menos tomava a picada com
o sangue de todos os participantes da roda.
Recordo ter ouvido de vários membros do grupo relatos de
sonhos com cocaína e em conversas mais reservadas que o fato
de saber que alguém da roda estava contaminado com o vírus
da aids dava mais vontade.
Mesmo assim, a distribuição de seringas e de insumos para
Redução de Danos foi proibida por ação do Ministério Pú­
blico. Como era de se esperar, a lei e seus administradores
sempre andam de contramão com a vida.
Aquele serviço não era focado na droga, mas na subjetivi­
dade e nas condições de vida das pessoas para as quais ainda não
havia tratamento. Mas assim que foi possível, apesar dos tantos
impedimentos, a Secretaria de Saúde de Santos iniciou a dis­
tribuição dos antivirais pelo SUS e, por isso e por tantas ou­
tras ações, é que se reverteu a epidemia de aids na cidade com
a maior incidência de infecção por HIV do Brasil.
Fui supervisor por pouco tempo em Santo André durante
o período de transformação do Ambulatório em Naps e acom­
panhei o início da crise que o levou à construção do Naps AD
III. Também fui supervisor da Rede de Saúde Mental de
Vitória, e supervisionei ainda o CPTT/Caps AD; aí conheci
pessoas muito resistentes a mudança e outras criativas que
sustentavam coletivos e uma clínica da Redução de Danos. As
equipes dos Caps de Vitória estavam em contato com todos
os territórios da ilha e da parte continental de Vitória e sua
violência.
50
As ideias que proporemos a seguir foram inspiradas pelas
experiências citadas e principalmente pelas minhas atividades
em São Bernardo do Campo onde venho acompanhando a
formação da rede de Saúde e de Saúde Mental e particular­
mente os serviços de atenção de Álcool e Drogas: Caps AD,
ADi, as Repúblicas de Adulto e de adolescentes e a equipe do
Consultório de Rua que se transformou em Consultório na
Rua, e também pela supervisão de trabalhadores dos Caps
AD situados no centro de São Paulo, minha experiência mais
recente.
Enquanto os leitos de hospital psiquiátrico se desativavam,
a rede nacional de Caps se expandia pelo Brasil.
Os Caps e Naps da primeira hora, e muitos da atualidade,
nasceram como instituições que vieram substituir os velhos
manicômios e serviram de modelo para criação de outros ser­
viços denominados Caps Álcool e Drogas. Perante a avalan­
che da contrafissura, os Caps AD foram a primeira resposta
dada pela Saúde Mental, convocada para substituir os trata­
mentos morais e as estratégias reducionistas centradas na abs­
tinência e na elisão da subjetividade, dos corpos e da cidada­
nia das pessoas que usam sistematicamente crack.
Porém, enquanto a rede de Caps AD era instalada, as Co­
munidades Terapêuticas intensificaram a sua expansão. Elas
começaram a existir nos anos 70 e embora em muitas delas se
pratiquem crueldades e desrespeito aos direitos humanos, não
são a mesma coisa que os manicômios. Muitas foram criadas
por ex-usuários, como já foi dito, outras trabalham em parceria
51
 com Caps AD que não funcionam em regime de vinte e quatro
horas e participam dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS).
Em momento de pressão proibicionista e de aumento
(muito menor do que é propagandeado largamente) do con­
sumo de crack, de judicialização da saúde, da política e da
vida, o Ministério de Saúde promoveu uma rede de atenção;
um dos pontos estratégicos dessa política de Estado são os
Caps AD.
As portarias que regulamentam o funcionamento rezam que
Caps é um "Serviço Ambulatorial de atenção diária que funciona
segundo a lógica do território". Atende prioritariamente pa­
cientes com transtornos mentais severos e persistentes em que
o comprometimento requer monitoramento intensivo, se­
mi-intensivo e não intensivo. Deve ser indicado para a fase de
reabilitação visando a reinserção social do cidadão. Auxilia
na recomposição da estrutura interna e social da pessoa como
um todo.
As funções do Caps são as seguintes:
• regular a rede de atenção à saúde mental;
• organizar a rede de serviços de saúde mental em seu ter­
ritório;
• coordenar as atividades de supervisão de unidades hospi­
'
1, talares psiquiátricas;
• supervisionar e capacitar as equipes de atenção básica,
serviços e programas de saúde mental;
• realizar e manter atualizado o cadastro de pacientes que
utilizam medicamentos especializados;
52
• gerenciar projetos terapêuticos oferecendo cuidado clíni­
co eficiente e personalizado para o paciente e sua família;
• promover a inserção social dos usuários mediante ações
intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cul­
tura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamen­
to dos problemas.
É como se o Governo falasse - não podemos, nem preten­
demos eliminar as drogas nem os drogados, mas podemos ofe­
recer uma rede de cuidados.
Mas como se operam essas práticas nos Caps AD?
Como um trabalhador de saúde, por exemplo, um enfer­
meiro ou auxiliar de enfermagem treinado para operar pro­
tocolos aprende a cuidar das crises existenciais às vezes ex­
plosivas?
Como um psicólogo capacitado para atender em consultó­
rio desenvolve sua clínica nas ruas, nas parcerias com profissio­
nais da estratégia de Saúde da Família e outros coletivos que
operam no território?
Como pessoas treinadas para operar individualmente con­
seguem coordenar grupos?
Como os médicos psiquiatras produzidos na instituição
hospitalar e nas consultas psiquiátricas tradicionais se trans­
mutam para operar nos mais complexos territórios violentos,
ou inesperados?
Como se atende a crise em Rede diferenciada da urgência
médica?
Como os Acompanhantes Terapêuticos das Unidades de
53
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Acolhimento (UAs) conseguem conviver em casas e comuni­ Doentes graves encontraram diversos modos de vida depois
dades se eles foram produzidos subjetivamente sob o senso de muitos anos de cronificação institucional.
comum e o bom senso social? Mas os Caps AD não são simples substitutos dos manicô­
Certa oportunidade, num grupo de uns trinta Agentes de mios e comunidades terapêuticas. Os casos bem-sucedidos são
Saúde e enfermeiros que operavam no centro da cidade de aqueles que escapam do circuito - zona de uso, internação
São Paulo, uma espécie de Pacs de rua (Programa de Agentes em comunidades terapêuticas e outras instituições, prisão,
Comunitários que atuavam inicialmente no Norte e Nordes­ etc. . .
te do Brasil), se discutiu a questão da internação compulsória Os territórios geográfico e existencial dos usuários com­
e da redução legal da idade penal. pulsivos de crack, cocaína e álcool são zonas de uso, cadeia,
A absoluta maioria desses profissionais que trabalhavam na comunidades terapêuticas. Os territórios existenciais se cons­
dita cracolândia paulistana era contra a internação compul­ tituem no ethos e nos ritornellos craquianos que organizam
sória e a lei atual de drogas, mas na hora de discutir a redu­ vidas escapadas da miséria da sociedade.
ção da maioridade penal a maioria se manifestou a favor até Como é possível introduzir mudanças nesses fluxos?
que a voz dissonante de uma mulher negra disse: "essa lei só Os Caps AD são, por definição e método de trabalho, ins­
vai prender adolescente, preto e pobre", e se estabeleceu uma tituições abertas.
polêmica. Esta é a primeira tensão que se cria no dia a dia dos Caps
A primeira tese é que somente com alta tensão antimani­ AD. Diferentemente de instituições que exigem abstinência,
comial é possível produzir uma rede de atenção que não su - os Caps AD estão de portas abertas. Eles priorizam as situações
cumba à pressão dos políticos, das forças de segurança e dos de maior risco, às vezes à custa de mobilizar o serviço inteiro.
agentes do Poder Judiciário. Como é possível para uma pessoa não formada ou não su­
Um exemplo dessa tensão é a Saúde Mental de São Ber­ ficientemente deformada que visa supostamente a diminui­
nardo do Campo coordenada por Suzana Campos Robortella ção do uso de drogas aceitar pessoas que chegam nas mais
" e depois por Stellamaris Pinheiro. variadas condições, muitas vezes machucadas, ébrias, depri­
Mas assim como os processos terapêuticos e as transforma­ midas ou exaltadas pela diminuição do uso e condições exis­
ções subjetivas são inerentes ao processo de desinstitucionali­ tenciais tétricas?
ção, da mesma forma, os Caps são serviços substitutivos dos Pessoas que retornam depois de abandonar o processo te­
manicômios e produtores de novos territórios existenciais. rapêutico ou que demandam benefícios secundários, como
54 55
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laudos médicos, ou que levam drogas para dentro da insti­ Essas demandas judiciais, muitas vezes, não ouvem o inte­
tuição? ressado e são prescritas a pedido de familiares que expressam
os mais variados conflitos, às vezes de interesse financeiro.
Os casos de ofício Em São Bernardo do Campo, onde há diálogo com o Po­
der Judiciário e funcionamento do atendimento em rede, a
Joana Pagliarini, psicóloga que trabalha no Caps AD Pra­ tensão é permanente.
tes do centro de São Paulo, queixava-se de os atendimentos se Em recente encontro organizado pela Defensoria Pública
tornarem "fabris". A população Caps desse é majoritariamen­ de São Paulo, uma técnica do Judiciário perguntou inocente­
te composta por homens e mulheres com história de situação mente por que no hospital Jacques Lacan, situado no muni­
de rua, encarceramento, internações e principalmente abriga­ cípio de São Bernardo do Campo, não havia pacientes oriun­
das. Pessoas institucionalizadas. dos dessa cidade.
Com a expressão fabril queria mostrar a mecanização do É porque todos os pacientes desse município foram resga­
atendimento. tados do manicômio e estão morando nos SRTs - serviços
Mas, em contraposição, nos Caps AD como o de São Ber­ residenciais terapêuticos - criados pela administração muni­
nardo do Campo e mesmo nos citados de São Paulo, o cipal. Os SRTs são moradias situadas nas comunidades.
atendimento éfebril, dada a enorme demanda e intensidade do Funcionários dos Caps AD de São Bernardo afirmam que
dia a dia. na maioria das vezes esses casos de oficio são menos graves que
Não bastasse a tensão permanente dos inúmeros acolhi­ os j á atendidos no Caps.
mentos realizados diariamente, as intervenções em territórios Enfim, além das crises familiares, das tensões das ruas, do
para atender em parceria com profissionais da Atenção Bási­ acompanhamento de pessoas que estão em regime de Hospi­
ca, que descobrem situações de violência e de crise, procura­ tal Noite em cuidado intensivo, dos egressos de comunidades
dores e juízes prescrevem condutas como internações com­ terapêuticas, atendem também a ansiedade contrafissural de
pulsórias ou busca ativa pela demanda dos familiares de juízes e promotores.
usuários de drogas sem ouvir o próprio usuário nem os profis­ As equipes dos Caps se esforçam para atender essas famí­
sionais que lidam com eles. Eles nunca se meteriam na pres­ lias e esses pacientes, sendo fiéis à metodologia, à ética e à
crição de um cardiologista indicando uma cirurgia em campo melhor opção clínica encontrada.
aberto ou um tratamento medicamentoso. Um exemplo dessa situação foi o de um paciente com
56 57
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cento e quarenta internações. O juiz decretou-lhe a interna­
ção compulsória depois de uma briga com o pai e a morte da
mãe por parada cardíaca, enquanto assistia à cena.
Os técnicos foram até a casa do homem e lhe explicaram a
situação. Depois de bastante conversa ele aceitou ir para o
Caps. Tempo depois soubemos por um enfermeiro que tra­
balhou no hospital psiquiátrico Jacques Lacan, que o pacien­
te em questão era o terror do hospital, protagonizara várias
rebeliões e por várias vezes era-lhe dada alta, pelo medo do
caos que ele promovia no hospício.
Durante mais de dois anos o sujeito foi mantido no Caps
com a força dos vínculos construídos. Várias vezes o levaram
para o Pronto Atendimento por estar em pleno furor.
Em 2012, quando o governo do estado deflagrou a campa­
nha da internação compulsória, o movimento antimanicomial
de São Bernardo criou o "Carnaval da Internação Compulsó­
ria". A equipe do Consultório de Rua fez um molde de gesso
com o corpo do paciente e o colocou numa jaula com rodas, e
o homem foi no bloco pelas ruas do centro da cidade carre­
gando a si mesmo.
Tempos depois de a equipe suportar várias crises, entrada
de drogas na instituição, falsos homicídios . . . um dia chegou
com uma faca ensanguentada dentro da mochila, dizendo que
havia matado alguém, mas a equipe, tarimbada, descobriu que
era sangue de boi.
Ele acabou se apaixonando por uma usuária do Caps
III que se situa próximo do Caps AD. A equipe percebeu que
58
__
o Projeto Terapêutico Singular passava pelo casamento dos
enamorados, entretanto ele estava interditado j udicialmente.
Um dia, um ator fazendo as vezes de padre, fez-se o casa­
mento dos noivos com festa e participação do coletivo de usuá­
rios e profissionais.
Faz tempo que, depois do casamento, moram numa casa
alugada num bairro próximo ao Caps, e levaram para morar
no seu bairro a líder dos moradores de rua de uma praça cen­
tral da cidade.
Há muito trabalha como pintor e em outras empreitadas,
parou de usar drogas de modo compulsivo, cuida de sua mu­
lher e o juiz revogou a interdição. Virou um cidadão.
Esse caso é um verdadeiro exemplo de PTS: desobediência
às determinações judiciais, ou resposta à demanda j udicial de­
pois de analisá-la, intervenção fundada na Estratégia da Re­
dução de Danos, muito suporte e sustentação da posição de
terapeutas e, fundamentalmente, criatividade.
Lembram-se do filme O filho da noiva dirigido por Juan
José Campanella e protagonizado por Ricardo Darín, Norma
Aleandro, Héctor Alterio e Eduardo Blanco?
Plasticidade psíquica e atletismo afetivo
Em várias obras de sua extensa literatura psicanalítica, Freud
se preocupa com os limites da terapia psicanalítica. 6 Nas Novas
6 Sigmund Freud. Tres ensayos sobre una teoría sexual [1905]. Obras comple­
tas, vol. I. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1967.
59
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conferências de 1915 confronta o conceito de Carl Jung de Uma acompanhante terapêutica disse numa supervisão que
inércia psíquica, que era para Jung a causa fundamental do quando chegava em casa continuava sentindo os pacientes no
fracasso dos neuróticos. Ele confronta o conceito de inércia corpo dela. O grupo partilhou com ela a implicação de cada
psíquica, inspirado na aptidão para fixação psíquica enunciada um. Mas as pessoas consideraram que também se curavam
por Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. com os pacientes. "Eu me tornei uma pessoa muito melhor do
Ele diz que a rigidez psíquica aumenta com a idade, mas que era, aqui aprendi a mudar e entrar e sair de situações
que há pessoas que conservam a plasticidade psíquica por difíceis", disse Geneide de Barros, psicóloga que lidera a ma­
muitos anos. 7 nutenção de um tônus vital.
Essa plasticidade ou rigidez psíquica não é privativa dos Cada vez que aparece uma situação tanática ela faz algum
neuróticos, é uma espécie de traço único, "uma espécie de comentário erótico ou humorístico (não é a única) e por isso
número primo, impossível de ser dividido", uma pura sin­ batizamos essas intervenções de "efeito Geneide".
gularidade. No texto acima citado, Freud afirma que a rigidez psíqui­
No Caps AD de São Bernardo que também começou como ca não somente involuciona, impede o desmanche das forma­
um ambulatório de Saúde Mental, transformado em Caps ções neuróticas, e está ligada também a processos de entropia
III em 2010, reina um clima de erotismo, de bom humor psíquica.
e de inventividade permanente. No entanto, muitos funcio­ O trabalho dos terapeutas, ou seja, de todos os membros da
nários não suportam o dia a dia, notadamente os que acredi­ equipe de Caps AD exige uma plasticidade psíquica extraor­
tam que drogado é safado ou que encarna algum mal especial, dinária, daí a importância de artistas na equipe; no Caps AD
produto da própria formação familiar, comunitária e midiática. de São Bernardo há um músico, Luciano Galhardo, que co­
Tanto no Caps AD como no Caps ADi de São Bernardo nhece profundamente as pessoas que frequentam o Caps e
que acompanho mais de perto, como em outros, há pessoas tem mais tino clínico que muitos especialistas. No Caps ADi
com as mais variadas formações familiares, religiosas e profis­ há um professor de educação física, Ricardo Augusto da Cos­
sionais com plasticidade psíquica imprescindível para lidar ta, que lidera o Projeto Remando Pela Vida que opera uma
com a angústia diante da repetição das mal chamadas recaídas verdadeira clínica peripatética.
ou das manipulações, roubos, traições e sofrimento. Adolescentes e jovens, inicialmente, e também adultos re­
mam na represa Billings, desterritorializam as pessoas das bi­
7 Sigmund Freud. Historia de una neurosis infantil [1905]. Obras comple­
tas, vol. II. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1967, p. 838. queiras das famílias expulsivas e dos próprios Caps, aumentam
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a presença dos educadores e desenvolvem, no sentido spinozia­ musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos
no, bons encontros ou encontros que aumentam a potência vital. sentidos.
Mas a constante mudança de situações, ora repetitivas, ora "O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressal­
explosivas, as diversas crises que os profissionais acolhem, o va surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde
encontro com histórias de vida terrificantes ou situações de um organismo afetivo análogo, e que é paralelo ao outro, que
horror tornadas habituais ou banalizadas, exigem plasticida­ é como o duplo do outro embora não aja no mesmo plano.
de psíquica e outro olhar. "O ator é um atleta do coração."
Um usuário chegou ao Caps acolhido pela equipe do Con­ O conceito de atletismo afetivo de Artaud refere a potên­
sultório na Rua com um buraco na parte posterior da cabeça, cia do corpo do ator: por meio de vários tipos de respiração e
infeccionado e com a massa encefálica exposta. "Estava reci­ vários tipos de gritos o ator vai ao corpo orgânico para produ­
clando cobre", disse o homem para se referir a sua tentativa de zir um corpo sem órgãos que lhe permita sair da representa­
pegar fios de alta-tensão. ção e alcançar o interlocutor. "Não basta que essa magia do
Ou uma moça forte e desafiadora, uma espécie de mulher espetáculo prenda o espectador, ela não o aprisionará se não
bomba que chegava aos serviço desafiando a todos e destruindo souber onde pegá-lo."9
o que lhe estava ao alcance das mãos. Era tanto o ódio que sen­ "Alcançar as paixões através de suas forças em vez de consi­
tia pela sua profissional de referência que uma segunda tera- derá-las puras abstrações confere ao ator um domínio que o
peuta pedia para falar para ela e ela lhe transmitia o que que­ iguala a um verdadeiro curandeiro."10
ria expressar, um trabalho de tansferência em rede que permite O conceito de atletismo afetivo nos remete ao corpo do
introduzir modos de expressão substitutivos da violência. terapeuta. Ele, em primeiro lugar, busca curiosamente o cor­
Para suportar paixões violentas como essas ou mergulhar po de seu interlocutor, se aproxima, escuta, olha, toca. . . e
na biografia de pessoas silenciadas carcerariamente, além de uma vez iniciada essa relação se dispõe às mais diferentes rea­
plasticidade psíquica, os terapeutas de Caps AD exercitam ções: de desconfiança, de amor, de ódio ou busca de uso, de
uma espécie de atletismo afetivo. dependência e de autonomia.
Antonin Artaud enunciou o conceito em O teatro e seu du­ O terapeuta ou o redutor de danos não dá sermões, olha o
plo.8 Diz ele: "É preciso admitir, no ator, uma espécie de corpo, escuta suas expressões, se interessa pela biografia. Aí

8 Artaud Antonin. "Um atletismo afetivo". ln: O teatro e seu duplo. São 9 Ibidem, p. 1 60 (itálico de A. Artaud) .
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1 5 1 . 10 Ibidem, p. 154.

62 63
onde os outros veem uma droga ele enxerga uma pessoa. Des­
sa maneira ele se dispõe a bancar repetições de vidas às vezes
violentas, institucionalizadas, desgarradas por injustiças e aplai­
nadas pela ordem social.
Os terapeutas do Caps AD de São Bernardo do Campo re­
ferem-se a alguns usuários como sujeitos de pouca vida e ao
mesmo tempo sete vidas, ou, como disse a psicóloga Deise
Kuroiwa, setenta vidas.
Antonio Nery Filho11 diz que o Redutor de Danos deve
ter inteligência emocional. Acreditamos que ele se refira à
mobilidade e processamento permanente dos afetos, das de­
positações, dos roubos (nos Caps AD os técnicos andam com
seus pertences bem guardados). Eles aprendem a ser mais es­
pertos que os que têm cultura de bocada, de cadeia ou de
Comunidade Terapêutica.
Eles buscam alcançá-lo onde o usuário menos espera. Ele
se coloca nas linhas de mudança, mesmo as mais aparente­
mente insignificantes, as raras, inesperadas.
É o corpo do usuário que o terapeuta busca encontrar e
esses encontros vão formando uma musculatura afetiva e uma
velocidade; como diz Davi Benetti, o Consultório na Rua opera
tecnologias leves.
A denominada baixa exigência opera com alta exigência dos
redutores de danos e trabalhadores de saúde mental.
É preciso atravessar a superficie discursiva sobre as drogas, a
11 Antonio Nery Filho, Andréa Leite Ribeiro Valério & Luiz Felipe Mon­
teiro. Guia do Projeto Consu/t6rio de Rua: <http://www.obid. senad.gov.br>.
64
das pessoas que usam drogas destrutivamente e a dos que su­
postamente curariam os drogados.
É comum que os usuários que mais defendem a abstinência
sejam os primeiros a recair. Como observou Gregory Bateson,12
o drogado é um eterno abstinente, o que bebe ou usa porque
essa é a prova cabal que vai parar.
De maneira que a escuta do terapeuta de Caps AD se orien­
ta para aquém dos discursos dos drogados e dos não drogados.
E é exatamente no plano dos corpos.
E os corpos não são abjetos, apesar da afirmação de Taniele
Rui,13 abjeta é a sociedade da qual os craqueiros escapam. Abjeta
é a prática de acertar noias, isto é, pessoas que ficam no fluxo,
com estilingue como contam usuários referindo-se a policiais.
Abjeta é a atitude de desenhar cruzes suásticas no parietal
de um homem gay e negro na madrugada de São Paulo.
Abjeta, como disse Deleuze, é a dependência onde cada
drogado tem seu próprio buraco negro. É quando a droga
para de fazer novas conexões e tudo rebate sobre si. O mo­
mento de meu papel, meu pino, minha pedra, minha dose, é o
próprio narc1S1smo.
Abjetos são os presídios nos quais são trancafiados tan­
tos negros, jovens e mulheres pobres, a maioria das vezes por
adicção punitiva14 de juízes, policiais e políticos produzindo
violência e infindável injustiça.
12 Gregory Bateson, op. cit., p. 1 56.
13 Taniele Cristina Rui. Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio
de crack. Doutorado. Campinas: Unicamp, 2012.
14 Expressão cunhada pelo politólogo colombiano Juan Carlos Garzón Vergara.
65
 Por mais estropiadas que estejam as pessoas que são atendi­
das no serviço público, é de seus corpos que partirá alguma
mudança.
Esse tipo de manifestação narcísica é confrontada na con­
vivência dos Caps AD, e o terapeuta precisa ser um atleta
afetivo para suportar relações que só manifestarão mudanças
com o tempo.
Encontro de corpos terapeutas-usuários mas também en­
contro de corpos em situações grupais. Os coletivos que se
produzem nos Caps, nas Unidades de Acolhimento (UAs)
que são moradias onde habitam até doze pessoas, são expe­
riências contrárias à droga.
Um exemplo interessante é o já citado Projeto Remando
Pela Vida do Caps ADi de São Bernardo do Campo que se
desenvolve na Represa Billings e os tantos grupos desenvolvi­
dos nos Caps AD.
Nesses coletivos, nos Caps AD de São Bernardo funcio­
nam mais de quarenta grupos e nos Caps do centro de São
Paulo também operam dezenas de grupos semanais.
Nesses grupos se produzem novas sociabilidades e o co­
mum gerado é o único dispositivo antidroga.
Ou seja, a equipe é o grupo fundamental, ela precisa ser
operante, forte e flexível e a coordenação precisa ser como a
exercida pela psicóloga Leila Vituzzo no Caps AD de São
Bernardo, firme e sempre favorecendo o desenvolvimento e as
potencialidades de cada membro da equipe técnica.
Durante uma supervisão institucional no Caps ADi de São
66
Bernardo do Campo discutiram-se abertamente os problemas
de relação entre a república de jovens onde moram vários ado­
lescentes e o Caps que em tese devem operar conjuntamente.
Uma das operadoras, também música, disse: "a culpa toda é
do PTS, esse, esse, esse, abaixo o PTS!" e disparou um jogo
dramático onde abolimos o PTS, o acolhimento, o vínculo, a
escuta e o trabalho em Rede. Escrevemos todos esses nomes,
que são ferramentas de trabalho, em papéis e os destruímos.
- E agora? - perguntei.
- Agora vamos fazer tudo de novo! - disse o grupo.
A convivência com essa coleção de meninos e meninas aban­
donados pelos pais, devolvidos pelos pais adotivos, é uma ex­
periência de verdadeiros atletas afetivos.
Numa supervisão uma menina irrompeu gritando:
- Não adianta vocês fazerem o que fizerem, eu quero ir
pra rua, quero usar pó e crack. Vender, transar.
Um dos educadores lhe respondeu com a mais doce e firme
das calmas:
- Não adianta, Clara, 14 nós gostamos de você e nós vamos
continuar cuidando de você.
Pela presença terapêutica e pedagógica, 15 as pessoas se mis­
turam como água e azeite mas uma hora, como dizia o mestre
Cláudio Ulpiano, 16 passa-se o dedo e se separam, como a acom­
panhante terapêutica que sentia no corpo os pacientes quan-
14 Nome fictício.
15 Antônio Carlos Gomes da Costa. Pedagogia da presença: da solidão ao
encontro. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 1999.
16 <www.claudioulpiano.org.br>.
67
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do chegava em casa. Mas no trabalho coletivo da supervisão mente criticado o Projeto "De Braços Abertos" da Prefeitura
conseguiu se sentir bem e saiu fortalecida e alegre. de São Paulo por ficar no território e disse que era como pôr
O trabalhador de Caps é como uma pilha, se for uma pi­ alcoolistas a trabalhar em bar. Acontece que no Caps AD de
lha tradicional aguenta até determinado momento mas uma São Bernardo do Campo há seis pacientes que trabalham em
hora se torna descartável. Por isso, a pilha precisa ser auto­ bar. O que há mais tempo está sem usar já computa seis anos
carregável. e o que há menos tempo está sem se embriagar desastrosa­
E existem muitas maneiras de se recarregar. Supervisões, mente já computa seis meses; e ainda cuidam dos bêbados
discusões de caso, estudo, festas, grupos de WhatsApp, etc. que frequentam o bar e os encaminham ao Caps.
Porém, o mais importante é operar em superfícies não sub­ Em meio a um clima adverso, de retrocesso, vemos emergir
metidas à moral e à contrafissura não só para não perder de um novo tipo de profissional que está lavrando novos sulcos
vista os pacientes e suas imperceptíveis mudanças mas para da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
não se separar do que cada um pode. Essa reinvenção constante da saúde mental é obra desses
Nos Caps e noutras experiências como a "De Braços Aber­ preciosos trabalhadores de saúde.
tos" vemos emergir experiências de potencialização de usuá­
rios e operadores.
Mas para isso é preciso transitar por caminhos cheios de
arapucas; além das já citadas, uma das mais complexas é a
denominada empoderamento de usuários e funcionários. O
empoderamento se expressa em modo de reivindicação, recla­
mação e benefícios secundários como remédios, certidões mé­
dicas, dependência, pequenos ressentimentos e instituciona­
lização ao ar livre.
A maior parte das vezes é preciso passar por isso, sustentar
a posição de cuidador até que um dia emerja o segundo dis­
paro, o segundo threshold do qual trataremos mais à frente,
mas que consiste nas mudanças inesperadas.
Exemplo: o psiquiatra Ronaldo Laranjeira tem insistente-
69
68

3.
CONVERSAÇÕES COM
DAVI ABDO BENETTI SOBRE
CONSULTÓRIOS DE E NA RUA
ANTONIO LANCETTI
Eu já acompanhei muitos campos no Nordeste e no Sul do
Brasil, também na cracolândia paulistana, mas o que mais me
impressionou quando saí com vocês foi o fato de chegar ao
território, estacionar a van e logo os usuários começarem a
procurar a equipe do consultório.
Lembro que naquela noite um usuário tentava convencer
vocês sobre o malefício das drogas e vocês relativizavam, al­
guém falou até na etimologia da palavra.
O homem acabou pedindo atendimento e depois foi ao
Caps AD; antes de ir embora foi falar com alguém que estava
em uso a uns sessenta metros da equipe e disse a ele: "quando
passar a noia vai falar com eles".
De repente um homem alcoolizado caiu na nossa frente;
ele bateu no meio-fio e estava desacordado com a garrafa de
pinga quebrada. E enquanto vocês o atendiam, chegou um
70
auxiliar de enfermagem que estava saindo de seu plantão de
um hospital privado e outras pessoas moradoras da comuni­
dade que se aproximaram e se prontificaram a ajudar.
Uma viatura de polícia que tinha ido embora voltou para
oferecer ajuda.
- ()gerem que chamemos o Samu?
- Não precisa, já chamamos, muito obrigado.
O Samu chegou logo a seguir. E enquanto essa cena acon­
tecia passava uma camionete com um cartaz em favor da não
legalização da maconha. As pessoas que estavam no automó­
vel viram a situação mas escafederam-se.
A outra coisa que me impressionou foi o trabalho sistemá­
tico de desterritorialização que operam quando fazem pique­
nique ou passeios, fortalecendo os vínculos com os usuários,
além do samba das sextas-feiras e o preparo de comidas. . .
E por último o trabalho que fazem com a rede, talvez po­
deríamos começar por aí. . .
DAVI B ENETTI
A Redução de Danos, em seus primórdios, quando era mal­
dita, não aceita pelos governos, no início de sua existência como
Programa, teve as ações vinculadas à questão educativa, à es­
cuta, conversar com usuário, fazer o vínculo. . . Essa é a estra­
tégia da Redução de Danos.
Essa é a base principal da Estratégia da Redução de Danos.
O conteúdo do Consultório de Rua.
O Consultório de Rua, quando não era aceito pelas esferas
71

de governo, começou a desenvolver ações de vinculação e de
educação, agora é diferente.
ANTONIO LANCETTI
Isso tem que ver com a mudança de Consultório de Rua
para Consultório na Rua?
DAVI B E N ETTI
Consultório de Rua é a invenção de Antonio Nery, na Rua
é a marca do Ministério da Saúde.
ANTONIO LANCETTI
Acho que Antonio Nery enunciou os conceitos fundamen­
tais do Consultório de Rua e na rua; ele levantou a questão do
desejo do usuário de maneira mais radical que o Cesare de
Florio La Roca do Projeto Axé (de educação na rua e não só
na rua), que se autodenominou pedagogia do desejo. Ele disse
que as pessoas não se drogam para morrer mas para viver. Ele
também estabeleceu bases para a metodologia do consultório
de e na rua. Ele disse que o operador precisa ter inteligência
emocional e criatividade.
DAVI B EN ETTI
Sim essas são as bases, o conteúdo do consultório. Mas ho­
je em dia o Consultório na Rua ganhou toda a potência den­
tro da Saúde ao se tornar um dispositivo do SUS. O Consul­
tório na Rua é o veículo. Ele é o veículo e o principal difusor
72
'I
f
da Estratégia de Redução de Danos. . . com essa normatiza­ 1:
ção o Redutor pode vir a ter futuramente outra posição como
classe. Mas hoje está dentro da Saúde como um todo, fazendo
parte do Sistema Único de Saúde.
ANTONIO LANCETTI
Você acha que essa evolução, por assim dizer, tem que ver
com a passagem de Consultório de Rua para Consultório na Rua?
DAVI B EN ETTI
Depende. Depende da vontade política dos governos e da
potencialidade das equipes. . .
ANTONIO LANCETTI
Vamos falar mais desses modelos diferentes e das diferentes
maneiras de operar dos diferentes Consultórios de Rua e na Rua.
D AVI B EN ETTI
Hoje nós damos acesso à rede de saúde aos usuários e cir­
culamos pelas zonas de uso, pelas redes de saúde, pelos zonas
de prostituição e pelas baladas de adolescentes.
Mas também temos uma ação mais incisiva em situações
de crise. Por exemplo, outro dia nós fomos requisitados para
intervir com uma mulher em situação de rua que estava jo­
gando pedras nos carros e havia agredido uma mãe com seu
bebê. O caso já estava nos jornais, mas ainda não havia chega­
do ao juiz.
73
,- De maneira que o consultório primeiro foi até o local para
uma avaliação. Identificando a mulher debaixo de três guar­
da-chuvas, tentamos uma abordagem, a mulher falou que não
queria ajuda nenhuma e que ela não sairia dali e não sabia que
a prefeitura de SBC agora não permitia as pessoas dormirem
nas ruas.
Qyando saímos do local notamos que a mulher nos obser­
vava como quem esperava uma reação da equipe.
Reuni a equipe e pactuamos não tentar insistir no acolhi­
mento dela naquele momento, porém quando observamos no
entorno, alguns vizinhos moradores vieram discretamente e re­
lataram que a mãe também não aceitava ajuda e parecia estar
também enlouquecida, ficando com ela na praça, o irmão a ex­
pulsara de casa, acrescentando que o irmão era usuário de crack.
No dia seguinte levamos o caso para discutir com o Caps
III Centro e voltamos com as equipes ao local, uma casa apa­
rentando família de classe média que mora numa boa casa de
esquina. Encontramos o irmão que a expulsou de casa.
Declarou que já havia sido internada duas vezes: na Uni­
camp e no Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde
Mental) da Vila Mariana e não havia adiantado nada; ela sem­
pre fugia e que também a irmã o havia denunciado por estupro.
Então disse: como vou estuprar a minha irmã? Eu sou gay,
não gosto de mulher. Para mim o que vocês podem fazer é
levar ela, isso já fará bem à minha saúde mental. . .
Perguntamos se haveria outro familiar para contatar, ele
nos forneceu o nome e endereço do irmão que ajudava a
74
manter a família. Ligamos para este irmão e o encontramos,
aproximando-o da equipe para criar uma estratégia de acolhi­
mento.
Qyando nós voltamos pela quinta vez, com o Samu, técni­
cos do Caps III, a mãe e o irmão, foi só abrir a ambulância
que ela entrou, agora está no Pronto Atendimento sendo me­
dicada. Agora estamos pensando com as outras pessoas da rede
de saúde mental como continuar o atendimento, o irmão está
em Santos, pois o pai que mora lá infartou.
ANTONIO LANCETTI
Há várias inversões nesse caso. Em vez de tirar a pessoa da
rua vocês provocaram o pedido de ajuda da mulher, e de saída
pensaram na família.
De certa forma, não obedeceram à demanda, ou melhor
dizendo, analisaram a demanda de todos os implicados e atua­
ram segundo a própria metodologia.
O craqueiro que é sempre o expulsado de casa, neste caso
foi o que expulsou. Mas o que é eficaz é o trabalho em Rede.
Com a Rede de Saúde Mental e com a Rede de Saúde, mas
também operam em parceria com a assistência social e com a
guarda municipal que cada vez mais faz menos "rapas".
O que é mais difícil no consultório?
DAVI B EN ETTI
Pensando em tantos casos que a gente acolheu, pergunto­
-me: quantos continuaram o tratamento no Caps AD? Não é
75
que tenha essa expectativa . . . Nós tivemos discussões no
começo sobre luta antimanicomial e Redução de Danos, todo
dia as coisas vão mudando. Acho que o mais difícil é o contato
com os adolescentes, mas hoje o consultório atende um grupo
de vinte e cinco adolescentes que começaram a frequentar o
samba, a oficina de capoeira. . . Eles moram num dos bairros
mais problemáticos da cidade, nenhum deles faz uso, pode
ser uma maconha, mas não fazem uso problemático. Nós infor­
mamos a respeito de drogas, antes que eles usem. Nós infor­
mamos a respeito do sexo com e sem camisinha. Eles fazem
uso do espaço do Caps e fizeram até mesmo um refrão sobre
o Caps. Eu chamo isso de Redução de Danos Preventiva.
DAVI B EN ETTI
Eu diria que nós operamos tecnologias leves. Suave . . .
ANTONIO LANCETTI
Félix Guattari falava em novas suavidades. C2!,ie não são
menos intensas mas sem dúvida são mais velozes. É isso. Vo­
cês são as novas suavidades transitando pela dureza, legalista e
brutal de uma parte de nossa sociedade que outra parte da
sociedade não quer ver.

ANTONIO LANCETTI
Vocês têm também trabalho com travestis . . .

DAVI B EN ETTI
É o nosso campo de madrugada, a dos profissionais do sexo.

ANTONIO LANC ETTI

Você sabe que eu não gosto muito do nome Redução de
Danos. Na Clínica peripatética falamos em ampliação da vida.
Antonio Nery ao dizer que a função do Consultório de
Rua é tornar visíveis as pessoas que estão em situação de rua,
propõe um enunciado que é preciso sopesar. Visível é mais
forte que reduzir danos.
Se você tivesse de dar um nome ao modo de operar, à meto­
dologia?
76 77

4.
MAIS DUAS Q!JESTÕES SOBRE
OS CONSULTÓRIOS NA RUA
Nos anos 90 experimentamos uma tensão metodo­
lógica entre o Projeto Meninos e Meninas de Santos1 que
comandávamos com o poder local, na Prefeitura de Santos e o
Projeto Axé, de Salvador, Bahia.
Para nós, o Projeto Axé era considerado o irmão mais ve­
lho. Além da paixão pedagógica que exalava o seu condutor,
sabíamos muito pouco a respeito de Cesare de Florio La Roc­
ca. O nome completo é Projeto Axé: Pedagogia do Desejo.
Os educadores do Projeto Axé adotaram uma versão laca­
niana de desejo que consistia numa ideia-força: o menino só
vai sair da rua quando desejar.
Nós tínhamos uma posição de exercício do poder público
ancorada na potência de nossos operadores. Éramos muito sim­
páticos à paixão que respirava aquele homem quando narrava
a sua Pedagogia dei Desiderio.
1 Antonio Lancetti. "Como construímos o Projeto Meninos e Meninas de
Santos" (p. 1 7) e Alexandro De Brito Zuffo. "O mundo da rua" (p. 37 ) . ln:
Assistência social e cidadania. São Paulo: Hucitec, 1996.
78
Cesare era um homem entregue autenticamente, como pou­
cos, à causa dos meninos e meninas com vidas difíceis.
Nós éramos influenciados pela Pedagogia da Presença de
Antônio Carlos Gomes da Costa. Numa das preciosas con­
versas que tive com ele ouvi histórias sobre a generosidade
daquele homem, generosidade que não era só de pensamento.
Mas os educadores do Projeto Axé adotaram uma versão
lacaniana do desejo dos meninos e meninas, uma espécie de
ampliação e transposição da prática psicanalítica de consultó­
rios para a rua.
Em Santos, quando o crack chegou à cidade, iniciamos ati­
vidades de presença nas ruas de madrugada; quando os meni­
nos estavam dormindo, os acordávamos pelo nome e os leváva­
mos para uma jornada de convivência.2 Nessa experiência vimos
como esses encontros provocavam nos meninos desejos de
mudança e de engajamento numa infinidade de oportunida­
des que as redes e o forte trabalho do território ofereciam.
Porém, se o desejo é provocado pela falta ou pela presença a
questão é a mesma - como provocar no outro desejos e afec­
ções vitais e enriquecedoras.
Com o passar dos anos observamos que o Projeto Axé pe­
netrou na cultura baiana e tratou com luxo (educação, arte,
moda. . . ) o que é produzido e tratado como lixo.
O Projeto Axé foi desenvolvido em território complexo e
violento - só para se ter ideia, vi há pouco tempo meninos
2 Antonio Lancetti. "Crack, endurecer sem perder a ternura". In: Assistên­
cia social e cidadania. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 31.
79
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com marcas de queimaduras provocadas por ácido no centro A detestavelmente chamada cracolândia paulistana, junto
de Salvador, mas o Projeto Axé é um projeto vencedor, entre com a invisibilidade das pessoas e suas vidas e histórias criou
outras coisas, porque expôs a questão do desejo dessas crian­ uma hipervisibilidade. Uma espécie de Reality Show. Há uma
ças e Jovens. hiperabundância de holofotes e câmeras. E há também tensão
Desde a criação dos primeiros Consultórios de Rua até ho­ constante, tensão entre traficantes, usuários, polícia, projetos
je, muitas experiências foram desenvolvidas no Brasil, e o ad­ antagônicos, mídias.
vento do Programa "De Braços Abertos" traz muitas questões Esse, como outros territórios, coloca as equipes dos consul­
ao debate dos Consultórios de Rua e dos Consultórios na Rua. tórios na rua na defensiva. A aproximação torna-se mais difí­
Como afirmou Davi Benetti no capítulo anterior, o con­ cil, o que exige repensar a cada dia a metodologia dos Consul­
teúdo, o fundamento dos consultórios de rua ou na rua de­ tórios na Rua.
vena ser o mesmo. Os Consultórios na Rua hoje contam com mais recursos
A questão do desejo está ligada imediatamente à questão onde se adotaram os conceitos de casa primeiro (Housing First),
ética. como em São Paulo, nos locais em que funcionam os pontos
Nos Princípios Éticos enunciados no Guia do Projeto Con­ de apoio e maior acesso às Redes de Saúde e Assistência.
sultório de Rua,3 Antonio Nery e sua equipe afirmam: Diante dessas transformações seria importante sempre re­
1. "toda conduta humana é portadora de significação pes- visitar os três enunciados éticos antes citados, não só para não
soal"; perder os princípios, mas para potencializar a clínica.
.
2. deve-se "respeito ao sofnmento
' e ao eth os humano" ;
3. ter "responsabilidade dos atos", ou conduzir o cuidado
dos danos associados ao álcool e outras drogas de modo não
assistencialista.
Os territórios conhecidos como zonas de uso são muito
diferentes. Nos locais onde os governos trabalham juntos e
não houve repressão sistemática, como em São Paulo e no Rio,
os usuários são muito mais fáceis de se relacionar.

3 Guia do Projeto Consultório de Rua: <http://www.obid.senad.gov.br> .

80 81
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de abrigos permanentes. Enfim, com a mudança de gestão os

abrigos continuaram abrigos.
O Boraceia, que era um centro de cidadania, com diversos
dispositivos de autonomização e proteção (havia um canil para
os recicladores de materiais com carroças e cães, que são compa­
5. nheiros e protetores), com a mudança de gestão perdeu todo o
"DE BRAÇOS ABERTOS", brilho, se transformou numa espécie de depósito de pessoas.
PROJETO DE UMA NOVA Anos depois, em 2008 foi inauguarada a UBS Boraceia com
POLÍTICA PÚBLICA estratégia de Saúde da Família que cobriu vários territórios do
centro de São Paulo como a Favela do Moinho (útima grande
Minhas primeiras lembranças de homens fumando favela encravada no centro de São Paulo).
pedra no bairro de Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, Durante a gestão do prefeito Serra os meninos e meninas
devem ser de 1 997. Depois de ter sido secretário de Ação foram se tornando mais agressivos em razão do trato repressivo
Comunitária em Santos, ver essas pessoas fumando na aveni­ da guarda municipal e da tradicional ação higienista da polí­
da Duque de Caxias me chocou porque em Santos ninguém cia militar. E a zona de uso chamada cracolândia ia crescendo.
fumava na frente de todo mundo e muito menos na cara de Em 2009, na gestão do prefeito Kassab, foram criadas equi­
um educador ou de um assistente social. pes de agentes de saúde e enfermeiras, uma espécie de Pacs
Em Santos conhecíamos todos os meninos e meninas e a (Programa de Agentes Comunitários) de rua. Foram contra­
grande maioria de homens e mulheres em situação de rua. tados também alguns médicos1 e uma parte do projeto se
Durante a gestão da prefeita Marta Suplicy foi desenvolvi­ transformou em PSF de rua.
do um trabalho com bases de política pública e princípios de As equipes de PSF de rua eram recebidas com reticências,
cidadania, e alguns abrigos melhoraram. quando não com maus modos pelas profissionais de saúde
Na época fui chamado para organizar uma intervenção com que trabalhavam na região.
inclusão que focava na população com uso problemático de Os transeuntes paravam para desqualificá-las. O que esta-
álcool e outras drogas, mas não foi possível criar um grupo
intersecretarial e também, com outras pessoas da saúde men­ 1 Antonio Lancetti & Leon Garcia. "Cuidado, território e crack: notas
sobre os enxugadores de gelo ou caçadores de noias". ln: SaúdeLoucura 9. São
tal, com horror à institucionalização, éramos contra a criação Paulo: Hucitec, 2010, p. 243.

82 83
vam fazendo esses profissionais de saúde? Cuidando de vaga­
bundos? Gastando dinheiro público com essa gente? Houve
casos de policiais que pediram emprestado o jaleco de agente
de saúde para prender traficantes.
Muitas vezes esses profissionais de saúde foram agredidos
por guardas municipais e policiais.
Essas equipes cumpriam a dupla função de atravessar o
muro que existia e existe entre essas pessoas e a sociedade e de
enfrentar a refração dos profissionais de saúde, assistência e
segurança.
Os profissionais contratados pela Associação Saúde da Fa­
mília, organização social que administrava e administra as unida­
des de saúde do SUS, UBS Sé, UBS República, Caps AD,
Caps geral e Caps I situados próximos à praça da Sé além do
grupo de agentes de saúde e enfermeiros do chamado Centro
Legal.
Sob a direção de Leon Garcia formaram uma rede de Saúde
entre os Caps e equipes de Saúde da Família; contribuí com
ela, dirigindo vários sociodramas de integração.
Essa integração, e as capacitações ocorridas na época, foram
importantes para a resistência exercida pelos trabalhadores de
saúde que atuavam na cracolândia comandados pela enfer­
meira Isabel Campos.
Na gestão Kassab foram contratadas várias comunidades
terapêuticas, e os dirigentes da Atenção Básica da Secretaria
de Saúde demandavam aos agentes de saúde e enfermeiros
que atuavam nas ruas que convencessem os moradores do bairro
84
da Luz e do Centro que fumavam crack a se internarem nes­
sas comunidades.
Muitos usuários se internaram confiando nos agentes de
saúde que, salvo exceções, não conseguiam visitá-los depois.
Houve casos de médicos psiquiatras do Nasf que não conse­
guiram visitar seus pacientes. A prefeitura descredenciou al­
gumas comunidades terapêuticas depois de denúncias de
maus-tratos, com choques elétricos e outros tipos de tortura,
até mesmo de mortes.
É oportuno lembrar que durante esse período foram cria­
dos vários Caps e vários Caps AD na cidade de São Paulo
depois de processo instaurado pelo Ministério Público e aco­
lhido pelo Judiciário, com base em análise e planejamen­
to elaborado na gestão da prefeita Marta Suplicy quando
Roberto Tykanori foi coordenador de Saúde Mental do mu­
nicípio.
Nessa época também foram criados vários Serviços Resi­
denciais Terapêuticos e Serviços Residenciais Terapêuticos
Especiais (SRTE), assim batizados para não usar a mesma
nomenclatura do Ministério da Saúde que é Unidade de Aco­
lhimento (UA).
A discordância não era só de nome. A Secretaria municipal
também idealizou um fluxo que era do PSF de rua para as
comunidades terapêuticas e destas aos SRTEs, ao passo que a
indicação da Coordenação Nacional de Saúde Mental era li­
gar as casas onde as pessoas podem reorganizar-se por um
tempo aos Caps AD.
85
 ·- - - •rnm-- ,
Praticamente todos os egressos de comunidades terapêuti­
cas saíram dos SRTE em poucos dias ou horas. Muitos fala­
vam "já paguei, fiquei nove meses rezando" e voltavam para a
zona de uso.
Os poucos egressos de comunidades terapêuticas que fica­
ram nos SRTE tinham alguma vinculação com os Caps AD.
As unidades de acolhimento foram programadas para fun­
cionar junto dos Caps AD, tanto é que em muitos locais o
Caps AD e a UA têm um único coordenador.
A cracolândia paulistana foi constituindo-se como um ter­
ritório controverso - de um lado, um exército de trabalhadores
de saúde se implicaram no cuidado, de outro, a repressão.
Houve noites em que não havia um morador ou frequen­
tador da cracolândia depois de grandes operações policiais.
No dia seguinte os que não tinham sido presos ou internados
em comunidades terapêuticas ou clínicas conveniadas volta­
vam à zona de uso.
Os trabalhadores de saúde, além de cuidar das feridas pro­
duzidas por funcionários da mesma empresa pública, Guarda
Civil Metropolitana (GCM) ou por policiais, tiveram de su­
portar serem passados para trás em filas de prontos-socorros, e
de serem mal recebidos em cada instituição aonde fossem.
Nas reuniões de discussão de casos falávamos da síndrome
da muquirana, pelo horror que provocam pessoas que há me­
ses não tomam banho. E muquirana (piolho que pula) é ao
mesmo tempo sinônimo de irritante, estorvo e de mão fecha­
da, avareza, sovinice.
86
De um lado a rejeição dos outros profissionais de saúde,
de outro, o homem ou a mulher que têm uma relação com o
tempo diferente das pessoas que moram em casa e trabalham
ou estudam.
As pessoas em situação de rua vivem em outra temporali­
dade: em vez de olhar para o relógio ou para o calendário, eles
dizem "ainda não almocei. . . " e, basicamente, desconfiados,
não suportam esperar, às vezes mesmo com dor.
As equipes de saúde entravam nas chamadas movucas, ca­
sas abandonadas ou em ruínas ocupadas por dezenas de pessoas.
Nessa batalha vários combatentes se perderam. Alguns por­
que deprimiram, outros passaram para o outro lado, e outros
ainda morreram, como o doutor Marcelo dos Santos Clemente,
um jovem médico de vinte e sete anos, brilhante. Formou-se
na USP depois de ter estudado em escola pública da periferia
de São Paulo. Muito comprometido com o trabalho, dedicou­
-se intensamente ao cuidado clínico e ao conhecimento das
vidas dessas pessoas. Testemunhei a preocupação dos compa­
nheiros de equipe com sua hiperimplicação e as tentativas de
ajudá-lo.
O encontro dos agentes de saúde, médicos e enfermeiros
após o falecimento de Marcelo foi um dos acontecimentos
mais emocionantes desses trabalhadores unidos pela persis­
tência por tornar a população da cracolândia visível, mas que
se tornou invisível e não reconhecida.
Uma das cenas mais humilhantes foi ter de andar pela cra­
colândia ao léu, debaixo do sol, depois das operações policiais,
87
 -·-·----·tt·--....,........ .........._,,,,.,-- -,1111,....,....,..,., -.........-,

saindo de sua área de trabalho, abandonando provisoriamente pais ou policiais retiravam as mochilas ou pacotes com tudo
os usuários aos quais estavam ligados. dentro e lá se iam os documentos, os antivirais ou antibióticos
Essa situação aconteceu na mesma época em que a polícia e quando não a última foto da família ou de qualquer amor.
militar realizava as procissões nas quais os usuários andavam Isso contribuiu para o desânimo dos trabalhadores de saúde
tocados como gado pelas noites da cidade de São Paulo. A que precisavam se recarregar nas poucas supervisões, em dis­
estratégia partia do princípio de que essas pessoas estavam cussões de casos ou em festas e encontros.
doentes neurologicamente e que não tinham mais domínio Seria difícil listar todos os grupos que frequentaram e
de si. Só a crueldade e o sofrimento provocariam a demanda frequentam a cracolândia paulistana: religiosos dos mais di­
de internação. versos tipos, ONGs, etnógrafos, jornalistas, cinegrafistas, am­
Essas procissões foram suspensas depois de ação impetrada bulâncias particulares para caçar noias de maior poder aquisi­
pela Defensoria Pública de São Paulo que teve presença pre­ tivo, o Projeto Qyixote que cuida de adolescentes e que
ciosa de defesa dessas pessoas sem direitos. continua como ponto de apoio e um Caps para jovens - o
Na época foram divulgadas centenas de internações "vo­ Projeto É de Lei - um dos precursores na práxis da Redução
luntárias", ou seja, muitos optaram por internar-se em vez de de Danos em São Paulo. . .
serem presos como traficantes. Em 2012, em plena campanha do governo do estado pela
Foi nobre o papel das equipes de Saúde da Família de rua, internação compulsória, um grupo liderado pela assistente so­
mas a atividade da polícia e da Guarda Civil Metropolitana cial Tina - Maria Albertina França - lançou a Terapia do
contrariava a ação do cuidado. A Guarda Civil Metropolita­ Abraço que consistia em andar pelas noites quando ninguém,
na, baseada numa lei municipal criada na época, acordava as por assim dizer, se aventura a adentrar-se nofluxo, abraçando
pessoas dormindo na rua. as pessoas. Andei algumas noites pelo meio daquele amon­
Essas ações e os encarceramentos de usuários que vendiam toado de pessoas com Tina e seu grupo de artistas; fomos re­
para usar, foi minando a relação desses trabalhadores de saúde cebidos calorosamente até mesmo por alguns que estavam em
com seus usuários. Eles desconfiavam que os prontuários de uso. Tina faleceu em 13 de maio de 2015, e deixou saudade.
saúde fossem usados para prendê-los. E vários trabalhadores Um enfermeiro do PSF disse numa supervisão que a cra­
de saúde também. colândia era o lugar mais democrático da cidade: qualquer
Já era difícil a adesão a tratamentos de tuberculose, sífilis um pode entrar, pobre, negro, loiro, ex-presidiário, prostituta,
ou outras doenças, e nos constantes "rapas", guardas munici- religioso, estrangeiros de qualquer índole. . .

88 89
 E ela oferece atrativos difíceis de investigar. Por que nos
fascina tanto?
Na manhã seguinte a uma das operações policiais mais vio­
lentas acontecidas na região, perguntei a uma mulher que se
achava na rua Dino Bueno o que eram os enormes hemato­
mas que tinha nas pernas e nos braços. Ela disse que não era
nada, mas quando o agente de saúde que estava comigo e que
a conhecia a interpelou, ela contou que estava numa das casas
abandonadas, posteriormente fechadas e emparedadas pela
prefeitura, quando que lá soltaram bombas de gás e que "os
homes bateram em mim", etc . . .
- E por que você voltou? - perguntei.
- Eu já estive quatro anos na Febem, dez anos presa. . .
estou acostumada. . .
O outro elemento fundamental da composição desse terri­
tório chamado cracolândia é a mídia. Jornais, revistas e televi­
sões fazem parte do cotidiano. Estão lá, na maioria das vezes,
para produzir medo social ou criticar as iniciativas que não
fossem repressivas. Com exceções, é claro.
Como já falamos no Capítulo 4, a invisibilidade dessas
pessoas contrasta com a hipervisibilidade das câmeras, holo­
fotes e matérias de jornais.
Olianto mais alarmistas eram as matérias mais aumentava
o número de frequentadores. Se uma droga é tão poderosa
que usada uma vez dá dependência, custa cinco ou dez reais e,
além do mais, a matéria fornecendo também o endereço onde
pode ser achada, dá vontade de usar.
90
Se as equipes de Saúde da Família se tornaram invisíveis,
mais invisíveis se tornaram as centenas e até milhares de en­
carcerados, internados em clínicas especializadas ou em co­
munidades terapêuticas.
Mas existe outro número também não mensurado de pes­
soas que desapareceram para fugir do circuito cracolândia­
-prisão-comunidades terapêuticas. Num dos dias posteriores
à mesma operação policial apareceu um homem bem-apessoa­
do (não foi o único), bem-vestido, irreconhecível para quem
o acompanhava no fluxo, para avisar a equipe de saúde que
não estava preso nem internado e que tinha optado por outra
vida junto de seus seres queridos e já estava encaminhado num
trabalho.
A cracolândia paulistana foi crescendo e chegou a ser a maior
cena de uso do Brasil. Diferentemente de outras existentes no
País onde há menos repressão e os usuários se escondem para
fumar, na cracolândia paulistana passaram a usar na frente de
qualquer pessoa.
Como em outras cenas de uso de grande porte que optaram
pela dupla ação de reprimir de um lado, cuidar do outro, ela foi
aumentando.
Recentemente recebemos a visita de Juan Carlos Garzón
Vergara, um dos maiores especialistas no combate ao crime orga­
nizado e ao fim da guerra às drogas; ele afirmou que a maior
zona de uso de Bogotá (Colômbia) chamada El Bronx tem cer­
ca de cinco mil pessoas, e que estão com dificuldade de entrar
nela depois de anos de dura repressão e cuidado ao mesmo tempo.
91
 Como já afirmamos, muitos dos trabalhadores não supor­
taram a intensidade e desistiram e outros foram se confor­
mando, depois de tanta controvérsia e insegurança a respeito
também de sua situação empregatícia.
Esses trabalhadores, muitos deles com plasticidade psíqui­
ca extraordinária, conseguiram manter o entusiasmo e inicia­
tiva terapêutica, mas sem dúvida as tantas tensões e ações con­
traditórias minguaram sua potência de cuidadores.
Em 3 de janeiro de 2013 foi lançada outra operação pelo
governo do estado, com base no Cratod (Centro de Recupera­
ção de Álcool, Tabaco e outras drogas). Esse serviço estadual
funcionava como um ambulatório com grupos e outros disposi­
tivos e, depois dessa iniciativa, o serviço sofreu grandes alterações.
Foram ofertadas vagas em comunidades terapêuticas no
molde do que seria o Programa Recomeço que prevê interna­
ção para estabilização e ida para comunidades terapêuticas
para ressocialização.
Se, segundo a descentralização do Sistema Único de Saúde,
a responsabilidade é do município, por que o estado defla­
grou essa campanha há três dias do início da gestão municipal
de Fernando Haddad?
Com grande apelo midiático, a iniciativa provocou demanda
de familiares que solicitaram internação por razões variadas, a
maioria das vezes sem consentimento do usuário, alterando a
dinâmica do local que foi ocupado por promotores de justiça,
juízes e defensores públicos. A maior parte dessas demandas
não deram em nada.
92
A ação provocou protestos do movimento antimanicomial
e de defensores históricos da população em situação de rua
como o padre Julio Lancellotti.
Era mais uma investida contrafissural com apelo de mídia.
As primeiras intervenções de "limpeza" urbana gozaram de
mais de oitenta por cento de aprovação, segundo pesquisas
divulgadas na época.
Mas. . . a cracolândia continuou a crescer chegando a reu­
nir em torno de mil e quinhentas pessoas, cada vez mais arre­
dias e difíceis de se relacionar para as equipes de saúde.
Com a invisibilidade a respeito das vidas, dos motivos que
levaram essas pessoas a habitar ou transitar pelofluxo convive
uma hipervisibilidade de câmeras e holofotes. A cracolândia
paulistana chegou às novelas de televisão!
Nesse território controverso foi criado o Projeto "De Bra­
ços Abertos" da Prefeitura de São Paulo.
O início do Programa "De Braços Abertos"
No início da gestão municipal, em 2013, em sintonia com
o Programa do Governo Federal Crack é Possível Vencer, foi
criado o GEM (Grupo Executivo Municipal) composto por
treze secretarias municipais e de representantes de centros de
estudos e pesquisas.
Esse grupo, além de discutir e planejar a Política Munici­
pal para Crack, Álcool e Outras Drogas, manteve diversos
encontros com representantes de movimentos da população
93
em situação de rua, promotores e defensores públicos, traba­
lhadores dos órgãos envolvidos e outros representantes da so­
ciedade civil.
Em 22 de julho de 2013 foi criado um Ponto de Apoio na
rua Helvétia, 64, encravado na cracolândia. Um lugar que os
moradores e frequentadores da região podem frequentar para
uso do banheiro, atividades culturais, práticas de cuidado do
corpo, como acupuntura, ou simplesmente para descansar.
Nesse espaço, construído com os usuários, que inicialmen­
te era uma extensão da rua, foram realizadas várias assembleias
para decidir com os moradores da região o nome do local e
outras questões.
Durante as primeiras assembleias uma viatura policial es­
tacionava na entrada, o que dificultava a participação das pes­
soas e manifestava o modus operandi local. Mas com o decorrer
do tempo a participação foi aumentando e foi numa assem­
bleia que ficou decidido o nome "De Braços Abertos" para
designar o local e posteriormente o próprio Programa.
Esse Ponto de Apoio intensificou e ampliou o vínculo de
confiança entre os moradores da região e agentes de saúde,
médicos, enfermeiros e outros técnicos dos dois Consultórios
na Rua e os assistentes sociais.
Mais de trezentas pessoas ocupavam uma via pública na
denominada "Favelinha da Rua Helvétia" situada no coração
da cracolândia paulistana e focalizada por jornais e televisões.
Elas foram cadastradas e convidadas para um diálogo com os
funcionários da prefeitura.
94
Cada tauba que caía "não" doía no coração
Estava tudo preparado para ocorrer no dia 15 de janeiro de
2013, o prefeito Fernando Haddad tinha conversado com lí­
deres locais e tinha sido pactuada a desmontagem da favela e
a ida para hotéis alugados pela prefeitura, três refeições por
dia e trabalho de varrição das ruas do centro da cidade.
Na última reunião com o prefeito defendi que a operação
deveria ser deflagrada um dia antes pois o efeito-surpresa era
fundamental e deveria ocorrer antes da chegada das câmeras e
dos repórteres, o que poderia pôr o plano a perder ou iria di­
ficultá-lo.
E assim aconteceu, no dia 14 de janeiro um homem disse:
"eu fiz meu barraco eu é que vou desmontá-lo" e muitos bar­
racos foram desmontados pelos seus moradores ou em parce­
ria com os funcionários municipais.
"Cada tauba que caía doía no coração", disse Adoniran Bar­
bosa, mas naquele 14 de janeiro não só não doía como essa in­
tervenção operada com autoridade e sem autoritarismo mar­
cou um ponto de inflexão a respeito de como essas pessoas são
tratadas.
A pesquisa nacional sobre uso de crack realizada durante o
ano de 2012 e publicada em 20142 mostrou em primeiro
2 Francisco Inácio Bastos & Neilane Bertoni ( orgs ) . Pesquisa nacional sobre
o uso de crack - Quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são
nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: lcict/Fiocruz, 2014: <http://www. icict.
fiocruz. br/sites/www.icict. fio cruz. br/files/Pesquisao/o 20N acional o/o 20sobreo/o
20o%20U so%20de%20Crack. pdf> .
95
lugar que a média de tempo de uso dos frequentadores das
zonas de uso das capitais brasileiras é de aproximadamente
oito anos, o que desmente o alarmismo divulgado a respeito
da mortalidade por uso de crack.
Em segundo lugar que oitenta por cento são homens, não
brancos, de baixíssima escolaridade, cinquenta por cento já
estiveram encarcerados.
A grande maioria dessas pessoas são integrantes de uma
parte da sociedade que Jessé Souza3 chamou de ralé brasileira:
sujeitos não produzidos para fazer parte da sociedade nem
como exército de reserva. Criados pela brutalidade e tratados
com má-fé.
C29em se conecta com a vida e as biografias dessas pessoas
confirma imediatamente a tese. A cada dia quem se relaciona
com esses corpos regulados pelo uso e fissura penetra o campo
da insuportabilidade da existência.
E quando perguntados se queriam algum tipo de ajuda res­
ponderam que além de curativos queriam moradia e trabalho.
"De Braços Abertos", em vez de focar na droga vai direta­
mente ao problema, ao oferecer o que Tykanori, Garcia &
Vitore4 chamaram de pacote de direitos: moradia, alimenta­
ção, trabalho e cuidados de saúde. Uma revolução a respeito
do que tinha sido feito até então.
3 Jessé Souza. A ralé brasileira - quem é como vive. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011.
4 Roberto Tykanori Kinoshita, Leon Garcia & Vitore Maximiano. "Uma
perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as
políticas públicas". ln: <http://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/
files/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20o%20Uso%20de%20Crack.pdf>.
96
Ainda durante o ano de 2013, a Secretaria Municipal de
Saúde, sob a coordenação de saúde mental da médica Myres
Cavalcanti, optou pela integração, fortalecimento e ampliação
da Rede de Atenção Psicossocial com seus 80 Caps, 31 para
adultos e 25 Caps AD, 24 Caps I, 24 Residências Terapêuti­
cas (SRT) para pacientes cronificados em hospitais psiquiá­
tricos, 16 Unidades de Acolhimento (UAs) e o Samu, que
recebeu uma capacitação para operar em casos de urgência e
emergência para atender essa população.
Da intervenção participaram funcionários e dirigentes da
Saúde, Segurança Urbana, Assistência Social, Direitos Hu­
manos, Trabalho, o próprio prefeito, pessoas da comunidade
local e entidades da sociedade civil.
Os conceitos inspiradores
As ideias-força que norteiam o Projeto "De Braços Aber­
tos" são: Baixa exigência, Pacote de direitos, Ação integrada
dos dirigentes e trabalhadores da prefeitura e relacionamento
a uma rede de saúde, de assistência e a iniciativas de trabalho
fundamentadas na metodologia da economia solidária e ou­
tras estratégias.
Um dos conceitos inspiradores foi o de Housing First. No
Canadá, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo foi
testado e avaliado um programa que consiste na oferta de casa
para pessoas que se encontram em situação de rua há muito
tempo e usuários crônicos de álcool (pelo menos há seis anos
97
-.immum!l!IO!Qllff!ffl!IIIH• ..............,,_...___ ................................................................,,,,,,,,,,,,,,,,, ,,,, .......____

em alguns casos) e outras drogas (algumas similares às consu­ Nós preferimos denominar esse ponto de partida de pri­
midas nas nossas cidades) e que não aderem a tratamentos de meiro disparo. Em capítulo próximo nos referiremos ao se­
saúde, nem aceitam ir para abrigos convencionais, ou não são gundo disparo. Fundamental, difícil de compreender e mais
aceitos nessas instituições. difícil de praticar e de perceber seus efeitos.
A experiência demonstrou que pessoas que foram morar nes­ O primeiro exemplo de efeito da baixa exigência e dispa­
sas casas, onde não se exigia abstinência, aderiam a programas ro pode ser aferido no relato de um usuário: "antes eu dor­
de saúde em proporção sumamente maior dos que estavam mia com um olho só fechado, agora eu durmo com os dois
sendo atendidas por equipes ambulantes, e também dimi­ fechados".
nuíram significativamente o consumo de álcool e outras dro­ Outro aspecto importante é o que podemos qualificar como
gas se comparadas com as que continuaram morando nas ruas. feitos de contratualidade. O contrato operou introduzindo
Outro resultado da pesquisa do Housing First 5 foi a dimi­ uma nova dimensão temporal; eles recebem pagamento, pelo
nuição da violência, as intercorrências de chamada de ambu­ trabalho de varrição, uma vez por semana.
lâncias e a desordem urbana. A perspectiva de pagamento opera introduzindo uma du­
Housing First é um programa de baixa exigência e, pela ração diferente ao imediatismo: uma cunha no tempo repeti­
narrativa de Liz Evans, enfermeira líder da experiência pio­ tivo da droga e da fissura.
neira de Vancouver, se baseou no aluguel de hotéis e em salas Na primeira semana foram injetados R$3 6.000,00 que
de uso protegido de heroína e numa intensa sociabilidade. movimentaram o comércio local. Os seja, essas pessoas que
"De Braços Abertos" acrescentou à moradia e aos cuidados estavam à margem da dinâmica das trocas locais - diferente
de saúde trabalho e alimentação. Esse ponto de partida é o da dinâmica das trocas ocorridas nofluxo - passaram a parti­
chamado disparo ou lançamento de uma nova experiência cipar da circulação de mercadorias e de trocas afetivas com a
subjetiva. comunidade local. Segundo uma usuária, "antes não me da­
A expressão em inglês low threshold service significa literal­ vam um copo d' águ a agora me oferecem até café". É de co­
mente baixo limiar de entrada, ou de exigência e disparo. nhecimento público que eles gastaram o dinheiro com pro­
dutos de limpeza, higiene pessoal, roupas, etc.
5 Jesse B. Milby et al. To house or not to house: the effects of providing hous­
ing to homeless substance abusers in treatment. American ]ournal ofPublic Health, Durante os primeiros dias de DBA, pela primeira vez, es­
July 2005, vol. 95, n.º 7, pp. 1259-65. E Sam Tsemberis, et al. Housing first, ses usuários apareceram como pessoas nas páginas dos jornais.
consumer choice, and harm reduction for homeless individuais with a dual diag­
nosis. American ]ournal of Public Health, April 2004, vol. 94, n. 0 4, pp. 651-6. De diversas formas se produziu uma capacidade de poupar,
98 9
de fazer projeções, gerando perspectiva de futuro. O DBA
introduziu um fluxo no fluxo.
Enquanto vou avançando nestes escritos o Programa está
passando por uma reorganização no modo de mensurar as suas
ações e os seus efeitos, mas já podem ser observados impor­
tantes passos:
1. O primeiro foi ter conseguido operar de maneira inte­
grada: saúde, trabalho, assistência e direitos humanos. Diri­
gentes de todas essas áreas coordenam o Projeto e operam con­
juntamente. Os usuários do DBA que participam de várias
frentes de trabalho estão acompanhados por pessoas de diversas
secretarias e organizações parceiras. É a única maneira de su­
perar o empurra-empurra dos encaminhamentos burocráticos.
Uma das metodologias adotadas é a dos trios. Compostos
por um trabalhador da saúde, outro da assistência e outro do
trabalho, esses trios acompanham de vinte a vinte e cinco
usuários.
2. Já nos primeiros dias de iniciação do DBA muitos fami­
liares apareceram e dezenas de pessoas deixaram o local para
reunir-se com seus seres queridos. Foram várias as surpresas:
pessoas que nunca esperaríamos que saíssem do território tra­
çaram uma linha de fuga e saíram do circuito.
3. A adesão aos tratamentos de doenças sexualmente trans­
missíveis aumentou significativamente. Há uma iniciativa cha­
mada Caminhos da Prevenção que capacitou monitores entre
os usuários que, com triciclos, distribuem 33.000 camisinhas
por mês nas casas noturnas do centro da cidade de São Paulo.
100
Os técnicos dos Caps do Centro fazem intervenções no
território para facilitar a vinculação com usuários que não pro­
curam nenhum serviço. Muitos dos numerosos pacientes que
atendem os Caps AD da Sé e Caps AD Prates têm o perfil
dos usuários do território da Luz ou são conduzidos até os
Caps pelos consultórios na rua.
Alguns adolescentes e jovens, a maioria, no momento em
que começou o DBA, foram morar nas duas UAs de adoles­
centes e de jovens adultos, e outros homens e mulheres tam­
bém foram acolhidos em outras UAs (Unidades de Acolhi­
mento).
As grávidas são acompanhadas passo a passo pelas equipes
de saúde lideradas por ginecologista.
Merece destaque a mudança da práxis da saúde bucal:
antes os usuários não iam às consultas e alguns preferiam
arrancar os dentes com alicate na rua. Desde que adotaram
a filosofia da Redução de Danos e organizaram um acolhi­
mento dentário sem agendas, a adesão aumentou considera­
velmente.
4. Há oficinas ambulantes ligadas aos direitos humanos
que mantêm uma tensão constante com as ações de seguran­
ça, o que mostra a heterogênese do projeto.
As atividades culturais não estão suficientemente sistema­
tizadas mas mostraram sua eficácia; a música no ponto de
apoio, as diversas oficinas e acontecimentos conseguem con­
tribuir com a construção de coletivos que são o contrário que
o narcisismo do uso.
101
 5. Outro êxito do DBA foi anunciado pela Folha de S.Paulo
com uma manchete que afirmava que depois de mais de um
ano de trabalho quarenta por cento dos usuários tinham aban­
donado o Projeto. Ou seja sessenta por cento continuavam
nele. Como se sabe, os melhores tratamentos de usuários de
drogas não passam de vinte por cento. Na atualidade, dos apro­
ximadamente quinhentos usuários, cem não conseguem acom­
panhar a rotina de trabalho. O que é um sucesso, pois mesmo
os que ainda não conseguem se organizar estão dormindo "com
os dois olhos", e isso já é uma mudança subjetiva. Sem contar
os que saíram do circuito e foram morar em outras localidades.
6. O trabalho de varrição tem um forte simbolismo: os su­
jos estão limpando a cidade e são cada dia mais simpáticos à
comunidade local. Existem várias modalidades de trabalho, a
saber: a Fábrica Verde que produz plantas para embelezar a
cidade; núcleos de cooperativas de reciclagem, de carroceiros;
pessoas trabalhando em serviços de saúde acompanhados por
um responsável cuidador; por conta da descentralização, um
grupo de usuários moradores de um hotel na Freguesia do Ó
(zona norte da cidade) está organizando ações de cuidado de
praças da região; emprego formal em empresas de limpeza.
Existem inúmeras iniciativas de produção coletiva, no entan­
to, a toda hora é preciso perguntar se as pessoas não aderem
porque não têm condições ou se a exigência foi excessiva.
7. A transformação do trabalho de assistentes sociais não só
para que operar de maneira integrada; as mesmas pessoas que
num passado próximo eram orientadas para tratar a população
102
de rua de maneira assistencialista e até hostil, embora com
resistência a mudança, agora as acolhem e as ouvem.
No início do DBA havia grupos de capacitação de usuários;
mas foram esses, na prática, que acabaram capacitando os tra­
balhadores da assistência e outros profissionais.
A assistência social também está implementando projetos
de moradia e geração de renda que visam a autonomia dos
usuários. Um deles se chama Autonomia em Foco. A secretária
da Assistência Social da cidade de São Paulo, Luciana Temer,
exerce liderança construtiva e ousada defendendo diante de
juízes e promotores a necessidade das salas de uso protegido.
Bem que o Programa DBA mereceria ter essa chance, para
cortar de vez a relação traficante/usuário!
O Programa "De Braços Abertos" está mostrando sua pro­
dutividade mas, como afirmamos anteriormente, se desenvol­
ve em terreno controverso.
Um dos principais obstáculos é a insidiosa pressão da mídia.
Há poucos dias constatou-se que estava se formando uma nova
feira de venda de pedras de crack. Guardas municipais e ou­
tros membros do DBA disseram que não podiam permitir
esses guarda-chuvas e guarda-sóis. Os moradores do fluxo
concordaram e retiraram os guarda-chuvas. Numa noite cho­
veu, uma das poucas noites de chuva nestes tempos de seca de
São Paulo, e no dia seguinte saiu na capa do jornal Folha de
S.Paulo a foto das pessoas embaixo de guarda-chuvas e lonas
com a chamada ''A favela da cracolândia voltou". Além de
muitas matérias francamente sensacionalistas.
103
 Outra dificuldade é a oposição permanente do Programa
da prefeitura e do estado de São Paulo. Para quem não conhece
a região, exatamente em frente do Ponto de Apoio do DBA
acha-se a sede do Programa Recomeço, do estado.
Pouco tempo depois de iniciado o Projeto DBA foi reali­
zada uma reunião com autoridades municipais e estaduais,
com a presença do ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
Todos os trabalhadores dos dois programas estavam na Sala
São Paulo, para supostamente operarem de maneira coorde­
nada. Naquele dia participei de um debate com o Dr. Ronal­
do Laranjeira, tudo de acordo com os preceitos do Programa
Crack é Possível Vencer do Governo Federal que prevê a atua­
ção conjunta de estados e municípios.
Poucas horas depois policiais civis estavam soltando bom­
bas de efeito moral no fluxo.
Mas logo a seguir a polícia militar desapareceu do território.
No pacto que deu início ao DBA tinha ficado acordado
que eles não iriam montar mais barracas, mas por descuido das
autoridades municipais as barracas foram sendo montadas até
formar um núcleo fechado ao qual se acessava por uma espé­
cie de labirinto. Ao centro uma espécie de feira organizada no
corredor central do fluxo. Com mesinhas, pratos e oferta de
pedras de tamanho bem maior que o habitual, atrás das mesas
estavam sentadas pessoas que evidentemente não usavam.
O coordenador do DBA liderou um acordo com os ocupan­
tes dessa segunda favela. Eles se retirariam de lá pacificamen­
te, pois no local seria construída uma praça.
104
Todos os integrantes da prefeitura operaram em muti­
rão bem-sucedido até que um desconhecido de roupa clara
começou a filmar com uma espécie de iPad ou celular grande,
e quando os usuários foram pedir explicações e exigir que
interrompesse a filmagem, o sujeito pegou sua arma e atirou.
Era novamente um policial à paisana.
Por sorte só houve feridos e como sempre operando na con­
trariedade.
As pactuações que tinham sido um dos pontos de partida
do DBA começaram a não funcionar, tanto com os represen­
tantes do estado como com os líderes dos habitantes dofluxo.
Um dos maiores impasses do DBA é que, se não há presen­
ça das forças municipais de segurança, os traficantes do penúl­
timo escalão tomam o território e isso repercute no Programa.
E cada vez que há repressão e enquadramentos na região, os
usuários ficam mais arredios, e o trabalho de aproximação e
de produção de novas sociabilidades se torna mais difícil.
Adverso mas não impossível. Recentemente num dia de
muita tensão, até com uma morte acontecida num hotel da
região não pertencente ao DBA, por iniciativa do secretário
de Direitos Humanos, Eduardo Matarazzo Suplicy, durante
a noite foi passado o filme Sabotage ao lado dofluxo. O evento
aconteceu com muita participação e harmonia.
Na última festa junina houve cooperação dos funcionários
do Projeto Recomeço e parece promissor que de baixo para
cima comece a haver integração com os funcionários do Proje­
to Recomeço que têm simpatia pelo DBA e seus integrantes.
105
Es-pecialmente os que trabalham no Ponto de Apoio liderados
pela assistente social Zelia Pagliarde, uma das almas do
Programa.
O Projeto é promissor e, mesmo com todas as adversidades,
está demonstrando sua eficácia, apesar das dificuldades meto­
dológicas que tem de enfrentar.
Como entender a situação dos que não querem trabalhar à
luz do conceito de baixa exigência?
Numa assembleia de usuários e membros dos trios que os
acompanham, Maria Angélica Comis, psicóloga dos direitos
humanos, perguntou: - O que sentiram quando colocaram
o uniforme do DBA?
- Medo, respondeu uma jovem mulher.
- E os outros? - perguntei.
- Medo. Não entendo por que eu que estava há tanto
tempo na rua, sem tomar banho por dias, tinha medo de pôr
o uniforme. Mas eu pensei: minha mãe era cozinheira e vestia
uniforme, então eu também vou vestir e tomei coragem.
A entrada no DBA e sua permanência implica uma mu­
dança de identidade, ou induz a produção de subjetividade
ou de mudanças subjetivas difíceis de perceber.
E ao mesmo tempo é preciso avaliar a persistência da iden­
tidade e a toda hora devemos lembrar que entre homens,
mulheres, jovens e crianças em situação de rua há algo do que
Guattari chamou de não garantido, ou aquele que não quer
cartão de crédito, nem CPF, nem RG, nem família, nem
horários.
106
Como os trios e os Consultórios na Rua podem contribuir
para a produção de coletivos e sociabilidades que operem na
contramão do retraimento autocentrado?
A denominada busca ativa, se burocratizada, pode promo­
ver resultado contrário do esperado.
Como entender as dificuldades que muitos usuários mani­
festam para cumprir os horários e atividades combinadas?
O que promoveram os cuidadores, como escutaram, que
inventaram, para gerar vontades vitais e de mudança?
Como avaliar as relações produzidas peripateticamente no
trânsito pelas ruas da cidade na varrição ou nos trajetos provo­
cados pelos vários empreendimentos?
Na área do trabalho começam a ser criados coletivos ope­
rantes com trabalhadores que reciclam materiais e outros em­
preendimentos orientados pela metodologia da economia so­
lidária. Como multiplicar esses processos produtivos?
Como foi afirmado a respeito da formação do caráter do
trabalhador de Caps, as pessoas não podem trabalhar no au­
tomático sob risco de perder a paciência que precisam para
compreender subjetividades estragadas, às vezes violentas e
muitas vezes violentadas. Exemplo dessa insuportabilidade e
angústia é o que vivenciam os guardas civis metropolitanos.
Os dois consultórios na rua que operam na região foram
montados com outra metodologia e outros propósitos que os
do DBA. Com o número de pessoas numa mesma zona de
uso, a dinâmica é diferente da de outros consultórios de rua.
Há ocasiões em que rejeitam o contato de maneira expressa e
107
só pedem interve nção e m momentos de urgênci a, quando
algué m convulsiona ou passa mal e pre cisa da presença do
Samu.
As ações de desterritorialização como passe ios ou e mpre­
endimentos culturais ficam prejudicados por velhas concep­
ções e pela pressão do conflito polícia/tráfico. Evide nte mente
a dinâmica dos consultórios de rua precisa ser revisad a e p ar a
essa revisão é preciso escutar quem está n a ponta.
Mas a maior dificuldade interna é a desintegração da Guarda
Civil Metropolitana que ora atu a integrad a com o DBA ora
reedita velhas práticas repressivas. Este é , no nosso modo de
ver, o m aior dos perigos: a te ntação repressiva ante a imens a
pressão política e midiática que a experiência suporta.
Sempre que ap arecem matéri as n egativas, os responsáveis
pela comunicação respondem com o número de usuários e de
ate ndimentos e com a diminuição de uso de pedr as de cr ack.
Mas redução de danos não é redução de pedras, é um a das
consequências d a Re dução de Danos.
Qy ando vemos os usuários varrendo ruas, alegres e conver­
sando, podemos im aginar que não usaram p edra pelo m enos
em qu antid ade p ar a achar em-se assim, mas é pre ciso mostr ar
p ar a a sociedade que, indepe ndentemente da redução do con­
sumo, o importante é a elevação d a vida e d a dignidade dessas
pessoas. E su as alegrias.
Te mos visto enorme vontade política do atual prefeito e
dos secretários municipais na busca constante de erros a se­
rem reparados, ou de prátic as a serem revisadas.
108
Acreditamos que o êxito do DBA depende da m aior inte­
gração que está acontecendo sob a coordenação do sociólogo
Benedito Mariano:
- com a adoção de primazia da autoridade e não do auto­
ritarismo que ocorrerá com a integração da GCM ao grupo
condutor do DBA;
- com a sistematização e m e nsuração do Programa;
- com a cap acitação desses funcionários;
- com a sistematização d a produção de novas sociabilida-
des e promoção real de autonomia.
de ,
DBA e Recomeço deveriam le mbrar do Program a Atitu
­
comandado pelo falecido governador Eduardo Campos. Repre
cre­
sentantes das polícias, dos direitos humanos e de todas as se
amen­
tarias da área social se empenharam em reduzir o encarcer
e foi o único
to e a mort alidade e m cinquenta por cento. Recif
e st a do do Nord este br a sileir o
que regis trou redu ção de
violência.
O DBA mereceria ser acompanhado por um a intervenção
ório
urbana mais incisiva que ocupe civilizadamente esse territ
do centro da cidade .
a
Já há usuários do DBA h abitando em hotel situado na zon
o. M a s
norte, e os próprios usuários quere m se afastar do centr
al
o Programa precisaria do apoio de uma política habitacion
em de
baseada no aluguel social, isto é , que as pessoas pagu
a cordo com o que ganham e não por
v alore s de mercado.
Sem a de cisiva e persistente liderança do prefeito Fernando
er
H addad, o Programa não existiria, ele pode não se reeleg
109
mas é importante que conserve os princípios de cidadania que
o fundamentaram.
O DBA precisa ser mensurado para mostrar sua eficácia,
para mostrar aos operadores seus êxitos mesmo porque quan­
do um usuário experimenta uma transformação subjetiva sai
do campo de visão dos trabalhadores do território; para au­ 6.
mentar sua consistência, pois ele tem eficácia contundente e GABRIEL E O MUNDO
práticas dignas de transformar-se numa nova e promissora DO SUBMUNDO
política pública. ANTONIO LANCETTI E GALILEU*

Hoje nos encontramos com o amanhã de ontem e

com o ontem de amanhã que nos é dado em forma de presen­
te. Presente esse que não pedimos e muito menos merecemos.
E por que não merecemos?
Não merecemos porque não sabemos o significado de nos­
sa existência. E se soubéssemos não daríamos valor, pois ainda
que tudo seja submisso ao poder supremo do criador, toda
criação um dia se revolta.
Acho esse papo de criação um pouco careta, papo de clí­
nica . . .
Negócio é o seguinte: você nunca vai ser dono do que não é
seu, por isso você vai ter tudo que você precisa e nada do que
você deseja porque quem não sabe o que faz, não sabe o que
quer.
Esse amanhã de ontem e ontem de manhã tem alguma
coisa a ver com algum estado existencial?
* Escrito em parceria com Gabriel Donizete Batista (autodenominado Galileu).
110 111

Sim. O estado existencial em que a própria existência sen­
te-se inexistente, como se nada do que fizermos vá fazer alguma
diferença. Isso é triste. Mas não precisa ser porque cada gota
de lágrima que a chuva derrama na terra faz brotar uma se­
mente de esperança. Eu prefiro viver sem esperança porque
muita esperança dá fissura. Por que queres ir ao Bairral? Mes­
mo depois de ter estado preso fumando somente maconha e
cheirando às vezes pó, por que o Bairral? Porque no Bairral
está minha Branquinha. Ela está também aqui escrita na pele
do meu pulso.
Não vamos continuar contando história de vida, é chato e
olha como é bonita essa moça que passa célere. Só gosto da
minha Branquinha que está lá na recuperação. Olieria tanto
vê-la. . .
Na verdade estou aqui porque não posso sair do corpo e
quando fui preso na Luz vim a descobrir que fui para salvar
aquele homem que estava sendo eletrocutado.
Você não entende, só depois vim a entender por que fiquei
dois anos na cadeia. É que sou anjo mas não estou podendo
sair do corpo. . .
112
.J
!�
7.
O SEGUNDO DISPARO*
Como se produz um usuário persistente de crack?
Uns acham que é uma enfermidade puramente cerebral e
que esses sujeitos perderam a capacidade de autodetermina­
ção. Outros que é obra do demônio.
Há um paralelismo entre as teorias etiológicas monocau­
sais focadas na droga e na abstinência; entre as teorias do de­
mônio e do neurônio. As duas são morais e para a moral a vida
é indigna de autorregulação, a vida é corrupta para a moral,
como diz o filósofo Luiz Fuganti, da Escola Nômade de Fi­
losofia ( <escolanomade.org> ).
Outros acham que são condições sociais as que levaram
essas pessoas, que, na tentativa de fugir da insuportabilidade
da existência, foram parar numa zona de uso e aí conviver.
Outros, como Claude Olievenstein,1 afirmaram que o ver­
dadeiro toxicômano foi gerado por narcisismos mal consti­
tuídos a que denominou de espelho quebrado.
Nós preferimos desacreditar de qualquer causalidade úni-
1 Claude Olievenstein e colaboradores: A clínica do toxicómano - a falta da
falta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
113

ca. Esse enunciado foi produzido por Deleuze2 em 1979. Mas
a observação de territórios existenciais, geográficos, biografias
propiciatórias e a própria subjetividade capitalística ou pro­
dução de ritornellos de falta-consumo nos levam a reforçar a
tese de que não existe uma causalidade única.
A Pesquisa Nacional Sobre Uso de Crack, realizada em
todas as capitais brasileiras mostrou o caráter determinante da
situação social dos usuários pesquisados - maioria absoluta
de não brancos, com baixa educação e com alto índice de en­
carceramento, aproximadamente a metade era egressa do sis­
tema prisional.
Não é por acaso que na Historia general de las drogas, 3
Antonio Escohotado se refira ao crack como a cocaína do
pobre.
O neurocientista Carl Hardt afirma ainda, baseado nas suas
experiências, que "muito antes da introdução do crack, diver­
sas famílias já eram dilaceradas pelo racismo institucionaliza­
do, a pobreza e outras forças". 4
Parece evidente que subjetividades mais estragadas e vio­
lentadas na família, na escola, nos interstícios da trama social,
sejam mais aptas para se internarem em territórios marginais
que incluem as drogas e todo o conjunto que ela implica -
comercialização, circulação, repressão, tratamento.
2 Obra citada no Capítulo 1: Gilles Deleuze. "Duas questões". ln: Herbert
Daniel et ai. SaúdeLoucura 3. São Paulo: Hucitec, 1991.
3 Antonio Escohotado. "La cocaína dei pobre". ln: Historia general de las
drogas, cit., p. 1 0 1 1 .
4 Carl Hart. Um preço muito alto - a jornada de u m neurocientista que desafia
nossa visão sobre as drogas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 33.
1 14
�
Na Clínica peripatética tínhamos falado nos mimados ou
sujeitos criados sem pulso e sem afeto ou com afetos duvido­
sos, relações ao mesmo tempo simbióticas e abandonadoras. E
essas relações não são privativas de classe social. Existem os
mimados pobres que chegam com a moto roubada em casa
aos quinze anos e a mãe não percebe (e depois se desespera)
que o filho chegou chapado. Existe a mãe de classe alta que
não percebe quando o filho lhe toma dinheiro ou cartão de
crédito da carteira e também depois se desespera.
Outra evidência que depõe contra a teoria e prática da cau­
salidade única é o fato de tantos pacientes atendidos em Caps,
ou os usuários do DBA, que aderem à programação, são aco­
lhidos, exercem direitos e mudam rapidamente.
Ao lado desses que mudam com poucas intervenções gru­
pais há os persistentes. Às vezes a Redução de Danos consis­
te em cuidado continuado para que o usuário continue vivo
mesmo sabendo ou supondo que nunca desistirá de sua
adicção.
Os componentes sociais e raciais são tão gritantes na popu­
lação que habita ou transita pelas zonas de uso que os trata­
mentos baseados em direitos como DBA e Atitude têm eficá­
cia surpreendente.
Eles vão direto ao ponto e isso indica uma fonte de pesqui­
sa para resposta da pergunta inicial, isto é - como se produz
um usuário de crack?
Optamos por este recorte (crack) para não complicar de­
mais a questão.
1 15
 • .�
A Pesquisa Nacional de Uso de Crack e as experiências
desenvolvidas pela corrente nacional que adotou a filosofia e
a práxis da Redução de Danos tornam flagrante que a produ­
ção social de subjetividade é decisiva para entender as pessoas.
Porém, quando entramos na singularidade e na história de
cada pessoa a complexidade aumenta sobremaneira.
Se é difícil dar conta da produção de um dependente, muito
mais difícil é entender por que uma pessoa parou de usar
compulsivamente ou fez uma mudança radical na sua vida.
O que cura não é a pena, é o perdão.
Embora o senso comum e os ideologemas proibicionistas
suponham que a droga é um mal e que a pessoa deve pagar
por isso, o que a clínica mostra é exatamente o contrário.
Uma paciente atendida num Caps situado em algum lugar
do Brasil foi estuprada e ameaçada de morte dos doze aos
dezessete anos. Um dia a moça montou uma arapuca, foi to­
mar banho de rio com outra moça e quando o homem estava
voltando do banho descarregou nele todas as balas do revólver
do próprio homem. Esconderam o cadáver que nunca mais
foi achado.
A moça se transformou numa justiceira que dava um trato
em maridos violentos de uma comunidade. Com o tempo co­
meçou a cheirar cocaína e, após intenso uso e depressão, ten­
tou suicídio.
Chegou assim àquele Caps e depois de tempo de tratamento
contou a história para sua terapeuta de referência. A terapeu­
ta sugeriu que narrasse a história no grupo de mulheres.
116
Assim o fez e ninguém a culpou.
Ela separou-se de um companheiro com quem tinha uma
relação patológica, estudou e hoje é uma técnica de saúde,
uma cuidadora.
Muitas histórias como essa se entrelaçam nessa dura con­
temporaneidade da práxis da Reforma Psiquiátrica, mas não é
só por perdão que se produzem mudanças.
Antes da existência do "De Braços Abertos" qualquer con­
flito era mediado por vários líderes que se diziam do tráfico.
Moradores de longa data no território.
Um deles que vamos chamar de João, nos primeiros dias da
desmontagem da favela e da ida das pessoas para os hotéis
encontrou a família e voltou com ela. Leva agora vida de cida­
dão com casa e trabalho.
Diferentemente de outros que manifestam vontade de pa­
rar de fumar pedra, João nunca falou em parar. Lembro-me
de ter ouvido dele uma noite: "o que nós precisamos é de
serviço de saúde e de banheiros limpos, o resto nós já temos
aqui. . . ".
Como entender essas mudanças e a produção dessas subje­
tividades livres ou com altos índices de liberdade e autonomia
à luz da experiência da Redução de Danos?
A expressão que fundamenta os denominados low thres­
hold treatment programs condensa várias ideias fundamentais
para organizar, orientar e monitorar experiências contempo­
râneas.
A primeira ideia-força é a de baixa exigência. Para iniciar a
117

compreensão do conceito de baixa exigência o confrontamos
com o conceito e a prática da alta exigência. Programas fim­
damentados na abstinência exigem um limiar mais alto, um
ponto de partida radicalmente diferente do ponto de partida
dos programas de baixa exigência.
A palavra inglesa threshold significa patamar, soleira, ponto
inicial, ponto de partida. A baixa exigência está relacionada a
um ponto de partida ou disparo:
há disparo ou ponto de partida no acolhimento ativo do
consultório de rua ou na rua;
no acolhimento do Caps em momentos de crise;
no atendimento sem preconceitos nas unidades de saúde;
na entrada numa casa para se organizar por um tempo e
participar de uma intensa vida coletiva como nas UAs;
na ida à Represa para participar do Programa Remando
para a Vida de São Bernado do Campo;
e mais claramente no DBA com o pacote inicial de direitos
- moradia, alimentação e trabalho.
Em todas essas experiências se dispara um processo.
A esse processo de indução de novas subjetividades deno­
minamos primeiro disparo.
Dormir com os dois olhos propicia mudanças na psique.
Tomar banho diariamente e vestir uniforme de trabalha­
dor propicia novas identidades alimentadas pelos olhares dos
transeuntes que não os enxergam mais como noias.
Participação de novos coletivos gera em ato uma experiên­
cia subjetiva antidroga ou diferente do retraimento e do nar-
118
�
cisismo que gera a repetição suicidária de algumas experiên-
cias drogadas.
Ou seja, a baixa exigência dispara processos de transforma­
ção subjetiva que funcionam de modo diferente em cada pessoa
mas que estão ancorados nos dispositivos criados e recriados
dos programas da geração da Redução de Danos.
Mas às vezes, pelas razões mais inesperadas, pessoas como
as duas citadas anteriormente fogem do circuito: zona de uso,
cadeia, clínica de recuperação, abrigo, caps, etc.
A esses acontecimentos chamamos segundo disparo. Esses
traçados de linhas de fuga são tão enigmáticos quanto poten­
tes porque emergem do corpo dos seus protagonistas.
Essas experiências são surpreendentes mas em muitas oca­
siões, e isso verificamos na clínica, elas ocorrem depois de
longos investimentos nos quais os terapeutas persistiram na
posição de nunca sucumbir. Depois de sobreviver a investi­
das transferenciais negativas, à cultura carcerária, à cultura de
comunidade terapêutica, à institucionalização sob diversas
formas e a outras repetições de histórias familiares e institu­
cionais inseguras, traumáticas ou violentas, acontece o segun­
do disparo.
O segundo disparo, ou disparo de segunda ordem, nos sur­
preende, mas na maioria das vezes fica fora do campo de visão
dos profissionais de saúde, de saúde mental e de outros seto­
res afins que trabalham em parceria.
Acreditamos que a observação mais detalhada dessas ex­
periências é importante para avaliar e medir os programas de
119
 �

Redução de Danos mas são fundamentais para os cuidadores

protagonistas não se relacionarem exclusivamente com as di­
ficuldades e as crises do dia a dia.
Para avaliar seu trabalho pelos frutos obtidos e para abrir
campos de investigação promissores.
8.
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
O PROGRAMA TERAPÊUTICO
SINGULAR
Nessa concepção de análise, o tempo deixa de
ser vivido passivamente; ele é agido, orientado,
objeto de mutações qualitativas. A análise não
é mais interpretação transferencial de sintomas
em função de um conteúdo latente preexisten­
te, mas invenção de novos focos catalíticos sus­
cetíveis de fazer bifurcar a existência. Uma sin­
gularidade, uma ruptura de sentido, um corte,
uma fragmentação, a separação de um conteú­
do semiótico - por exemplo, à moda dadaísta
ou surrealista - podem originar focos mutan­
tes de subjetivação.
- FÉLIX GUATTARI 1

O denominado Programa Terapêutico Singular ou

PTS é uma das ferramentas consagradas como fundamentais
para a práxis da saúde mental proposta pela Reforma Psiquiá­
trica Brasileira.
Nas últimas décadas, com a desativação de sessenta mil lei­
tos manicomiais e a criação de instituições e práticas substitu­
tivas da prática asilar - Caps STRS, C de R e na R, UAs -
1 Félix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora
34, 1992, p. 30.

120 121

leitos em hospitais gerais, serviços de urgência e emergência
que atendem a crises e aos matriciamentos ocorridos na Aten­
ção Básica tornaram-se dispositivos de uma política pública e
de Estado.
Em todas essas práticas acha-se presente o conceito de PTS
como um organizador do cuidado.
O PTS é um organizador do cuidado que inclui a famí­
lia, a biografia, o território geográfico onde a pessoa habita,
os recursos desse território e - o que é mais difícil de conside­
rar - o território existencial2 do usuário e seu contexto. E,
por fim, a potencialidade do sujeito individual e coletivo em
questão.
Consideramos a elaboração de um PTS uma das produções
mais complexas da prática clínica que acontece na Raps.
Muitas vezes o PTS se reduz a uma agenda: "O PTS de
fulano é duas vezes por semana no Caps e consulta psiquiá-
trica uma vez por mês". . .
A organização do PTS depende, em primeiro lugar, da
prioridade adotada: tanto na Atenção Básica como nos Caps,
quando se opta por dar prioridade às pessoas em situação de
maior gravidade, parte-se de condições diferentes que as dos
serviços que exigem inicialmente por exemplo abstinência de
drogas ou as ações de saúde mental na Atenção Básica que
encaminham os casos de maior gravidade e vão transforman­
do a prática dos Nasfs em atendimento ambulatorial.
2 Félix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora
34, 1992, p. 30.
122
e!:\
Muitos dos casos mais graves permanecem escondidos na
comunidade por efeito do silêncio imperante no território, ou
porque a situação é tão gritante ou desgarradora, a exemplo
de pessoas que estão trancafiadas em casa em situação de pri­
são domiciliar. Porém, um dia explodem no corpo da agente
comunitária de saúde.
Nem todos os Caps atendem pessoas embriagadas ou em
intensa crise. Já o Caps I de Santa Gertrudes, sob coorde­
nação da psicóloga Fernanda Aguiar Giovanni, situado no in­
terior de São Paulo próximo ao maior parque manicomial do
estado, desde 2007 até hoje não internou nenhum paciente
em hospital psiquiátrico. As dez pessoas que aí trabalham se
revezam para cuidar das situações mais críticas e acompanham
os usuários às emergências psiquiátricas e nos seus domicílios.
Qyando se priorizam as situações mais graves ou de maior
risco parte-se de outro patamar. Para menor exigência maior
complexidade e maior intensidade. E, consequentemente,
maior chance de inaugurar uma vinculação consistente.
Um dos critérios de funcionamento da saúde mental na
atenção básica é a participação dos profissionais da equipe de
ESF, especialmente o médico, nas reuniões de discussão de
caso e de elaboração e monitoramento de PTSs. Essa é uma
das vias para conquistar essa adesão é intervir nas situações de
maior dificuldade para dar curso ao processo do cuidado.
Daí que é fundamental intervir no território e mais in­
cisivamente no domicílio, também em locais de difícil
acesso.
123

As intervenções no domicílio precisam ser planej adas com
a equipe de ESF e outros profissionais que trabalham nas
UBSs para procurar o melhor horário, para encontrar o maior
número de familiares em casa e operar de saída a parceria saú­
de mental/saúde da família.
As intervenções familiares provocam um duplo efeito-sur­
presa.3 O primeiro consiste no fato de alguém se interessar
por conhecer o grupo familiar; as pessoas são demandadas de
diversas formas por alguém que quer convertê-las a uma reli­
gião, que quer vender alguma coisa.
A dupla de profissionais de saúde mental e de saúde da
família, da Atenção Básica e da Saúde Mental ou do Nasf,
está aí para escutar e inaugurar empatias ou antipatias, isto é,
estabelecer relações de afeto ou de força.
A primeira surpresa consiste no acolhimento ativo que os
trabalhadores de saúde oferecem quando reúnem no domicí­
lio o grupo familiar, e enunciam que estão aí para conhecer a
família e ver de que maneira podem ajudar.
A segunda surpresa pode ou não pode acontecer e consis­
te nas insólitas maneiras de aderir ao PTS quando ele fun­
ciona.
Mas como elaborar e, principalmente, enunciar PTSs?
Para o PTS não ser reduzido a um procedimento buro­
crático é preciso analisar as demandas, avaliar as necessida-
3 Antonio Lancetti. O Programa Terapêutico Singular e o trabalho de matri­
ciamento. ln: Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental da Unasus-Unifesp.
Em breve no endereço virtual da Unasus-Unifesp.
124
,)
des e descobrir as potencialidades que muitas vezes não são
evidentes e em outras dependem de longo processo de cui­
dado.
O PTS é como uma flecha propulsora, mas para ser certei­
ra precisa contar com o conhecimento e a participação dos
usuários. Só pode ser construído com eles. Roberto Tykanori
em texto recente4 fala em considerar demandas, necessidades
e projetos potenciadores.
Daí a importância de elaborar uma cartografia para cada
grupo familiar ou cada usuário. Essa cartografia visa ampliar o
mundo das pessoas, produzir repetições que provoquem pe­
quenas diferenças. A cartografia é um mapa em movimento e
opera em plano inconsciente ou com vários componentes da
subjetividade e nos orienta na avaliação passo a passo de cada
sujeito singular.
Singular não é oposto de coletivo nem é sinônimo de indi­
vidual. Daí a importância dos grupos e das atividades coleti­
vas e comunitárias. Como afirmou Jean Oury5 nos seminários
realizados sobre sua experiência com psicóticos graves - o
coletivo é uma máquina de produzir singularidades.
Às vezes um PTS pode ser enunciado no início do proces­
so de cuidado; em outras é preciso de muito tempo.
As pessoas se vinculam afetivamente mas depois repetem
transferencialmente relações vividas anteriormente e as equi-
4 Roberto Tykanori Kinoshita. ln: < https://unasusufc.br/alcooleoutras­
drogas//, .
5 Jean Oury. O coletivo. São Paulo: Hucitec, 2009.
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pes as suportam até que essa repetição produza pequenas di­

ferenças que irão dar curso a mudanças insólitas.
Mas as pessoas não mudam só porque ressignificam as suas
histórias numa clínica puramente memorial, os de focos mu­
tantes de subjetividade se inserem no PTS com agenciamen­
tos de desejo, isto é, experiências que acontecem entre a clíni­ 9.
ca e a vida cultural, laboral ou artística na aquisição de novas DAVID AMIGO
identidades ou na ruptura de repetições autocentradas ou
quando da produção de novas sociabilidades. Sou favorável a uma estratégia de confronto, de con­
Mas essas mudanças são quase que imperceptíveis e na cons­ flito; se não fizermos confronto, conflito, não va­
trução e desenvolvimento dos PTSs é preciso desenvolver uma mos avançar nem mudar nada. Uma das piores ver­
curiosidade e um gosto pelo diverso. tentes da tradição brasileira é o horror ao conflito, a
Uma alegria do diverso. busca do consenso, a valorização do consenso que
gerou um tipo humano especial, que é chamado de
"homem cordial brasileiro". Essa ideia de consenso,
de mascarar o conflito, só serve à conservação das
coisas como estão.

- DAVID CAPI STRANO FILHO

1·
126 127
 .
�
O texto do anverso reproduz a última fala de David Ca­
pistrano Filho proferida no 6.º Congresso Brasileiro de Saúde
Coletiva, promovido pela Abrasco (Associação Brasileira
de Saúde Coletiva), em Salvador, BA, em agosto de 2000.
Boa noite a todos os presentes. Tenho feito um luto muito
silencioso. Dentre os amigos sou um dos poucos que não fa­
lou nem escreveu nada até hoje sobre David. Sei que posso ter
dificuldades para falar, mas me tocou e aceitei. Vamos lá.
Começo, então, cumprimentando Eduardo Cardozo, Adria­
no Diogo, Carlos Neder, Arselino Tatto, José Mentor, An­
tônio Goulart e todos os vereadores presentes, Ruy Falcão e
Eduardo Jorge, secretários municipais e a todos os membros
da Mesa.
<2!,iero congratular-me com a iniciativa de Celso Jatene de
propor o título de cidadão paulistano a David Capistrano Fi­
lho. Acabei de conhecer Celso por intermédio de Carmo, seu
irmão, que coordena o Projeto <2!,ialis, procurando manter vi­
vas as ideias de David.
Mas a iniciativa de Celso é precisa, certeira, se lembrarmos
o conceito de cidadão. Os gregos, que o inventaram, diziam
que a cidadania se adquiria pelo exercício do 1tóÀ.Eµoç, que
129
era uma prática que acontecia na 1tóÀtÇ, na cidade, mas por
meio do diálogo. A cidadania, então não se adquire pelo fato
e ter nascido na cidade mas praticado a polêmica.
E David protagonizou extraordinárias polêmicas nesta ci­
dade, quando diretor da Unidade de Saúde da Vila Prudente,
experiência que o professor Adib Jatene conhece mais que
todos, como membro da Associação Paulista dos Sanitaristas,
e do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), como
militante comunista e como diretor do Projeto Qyalis.
Por isso é que quero, em primeiro lugar, expressar a sauda­
de política do David, ressaltando sete características:
1.ª) Ele não tinha a caretice da maioria dos políticos que pen­
sam em termos de espaço, de terreno, de lote. Seu lema pode­
ria ser enunciado assim: as ideias primeiro, depois os acordos.
Ideias claras, ideias para transformar, nítidas, eletrizantes.
2.') A velocidade. Ele via antes que os outros, era o homem
do tempo político. Não somente saber o que fazer mas quan­
do fazer. É sabido que ele foi precursor, e a experiência de
Santos foi mais do que eloquente: primeiro programa de in­
ternação domiciliar, primeira cidade brasileira sem manicô­
mios, o primeiro município a comprometer recursos substan­
ciais de contrapartida, transformando a capital brasileira da
aids no principal modelo brasileiro de prevenção e assistência.
Enfim no seu governo se inovou em todas as áreas: educação,
assistência, meio ambiente, etc.
3 .') A sua irifinita capacidade de esquecimento. Embora fos­
se dotado de memória prodigiosa, era incapaz de guardar
130
mágoas. Todo mundo sabe da briga com Telma de Souza. Eu
sou testemunha que, da UTI do Hospital Sírio-Libanês, onde
estava internado, com toda alegria ajudou-a na campanha.
Guerreiro que era, muitos o achavam autoritário, mas nunca
desfavoreceu ninguém porque discordasse dele.
4.a) A generosidade. David achava que fazer política era pas­
sar. Ele andava sempre com textos na pasta para passar e com
presentes para dar. Presentear era uma de suas paixões. Um
lema seria: primeiro dê e depois dê. Ele não hesitou em cola­
borar com pessoas de outras correntes políticas como, por
exemplo, o ministro Serra, se sua ação acarretasse, como ele
dizia, numa real diminuição do sofrimento de nosso povo.
5.a) O David antimanicomial. Foi um dos que mais fez
pela Reforma e pela Revolução Psiquiátrica no Brasil e no
Mundo. Preso político prematuro, conheceu os internatos para
menores na adolescência e viu, muito criança, seu pai na ca­
deia. Ele adorava desmontar hospícios, e um dos seus sonhos
era fazer o mesmo com a Febem [atual Fundação Casa]. Da­
vid era disruptivo e nos ensinou que para avançar neste país
de quatrocentos anos de escravidão é preciso romper. Por isso
ele dizia: primeiro faça e depois pense. E assim você era obri­
gado a pensar e a inventar.
6.a) Cabe recordar o sonho de David para São Paulo, expresso
em parte no Projeto Qyalis. A ideia de David não era um
nomefantasia, como dizem ou escrevem alguns, mas realizar a
fantasia de construir, com urgência, um sistema de saúde inte­
gral, rico, original. Foi ele quem trouxe ao PSF de São Paulo
131
os ambulatórios de especialidade, os programas de saúde bu­
cal, mental, de prevenção da aids, do deficiente, etc. Nas inau­
gurações de unidades de saúde ele destacava o zelo, a beleza e
gostava de cantar um samba que diz: a vida não é só isso que
se vê, é um pouco mais, é um pouco mais. Como Lênin, acha­
va que é preciso acreditar nos sonhos.
7.ª) Por último a coragem. Destemido, sempre destemido,
para ele não havia obstáculos em nenhuma tarefa. Venceu um
câncer e muitas batalhas políticas. Mas também lhe infringi­
ram derrotas e é por isso que, apesar de ser tão honesto, seu
inventário está cheio de dívidas.
Filho do combatente internacionalista David pai, que lu­
tou na guerra civil espanhola, na resistência francesa, etc. e de
Maria Augusta, paraibana que há mais de sessenta anos já
conhecia e lutava pelos direitos da mulher e pela liberdade.
Em segundo lugar quero in memoriam parabenizar David
por ter tido a companheira que teve - Haidé Benetti de
Paula. Grandiosa! Pela infinita paciência de aguentá-lo, pois
David era um paciente muito difícil. Pela nobreza e altura e
pelo pique e amor com que sustentou seu posto de parceira
até o último minuto.
Em terceiro lugar, quero contar que fiquei devendo a Da­
vid uma conversa sobre peronismo. Desde que o conheci, e até
numa viagem que fizemos a Buenos Aires, ele dizia: temos
que conversar mais sobre peronismo. David, como todos os
verdadeiros revolucionários, pensava o mundo e era profun­
damente cosmopolita.
132
A última vez que conversei com ele foi no dia 17 de outu­
bro de 2000. Com dificuldade me disse: Lancetti, hoje é o
dia da Lealdade Justicialista.
E, por lealdade, devo finalmente destacar o humor de Da­
vid, seu gosto pela vida, pelas boas comidas e pelos bons vi­
nhos. Gargalhamos muito com ele.
Uma vez em Santos um juiz o processou por iniciar o Pro­
grama de Redução de Danos, e ele disse: "sua excelência, o
senhor está me processando por incitar ao uso de drogas, justa­
mente a mim um sujeito careta que não fuma nem cigarros?"
David não gostava de drogas mas não era careta, era muito
divertido, como todos os homens que vivem metidos na vida.
Talvez ele não gostasse do que vou dizer, mas havia na sua
paixão um profundo vitalismo. O lema seria: primeiro a vida
depois a burocracia. Primeiro a vida e depois as leis.
Para terminar, vou ler um texto de Cícero* sobre a amizade
que acredito expresse como os amigos nos sentíamos e nos
sentimos com ele. O texto diz:
"01ianto à amizade, ela contém uma série de possibilida­
des. Em qualquer direção que a gente se volte, ela está lá,
prestativa, jamais excluída de alguma situação, jamais impor­
tuna, jamais embaraçosa. Por isso, nem água nemfago, como se
diz, nos são mais prestimosos que a amizade. E aqui não se trata
da amizade comum ou medíocre, que no entanto proporcio­
na igualmente satisfação e utilidade, mas da verdadeira, da
perfeita, à qual me refiro, tal como existiu entre poucos. Pois
* Marco Túlio Cícero. Da amizade. Porto Alegre: LPM, 1997.
133
a amizade torna mais maravilhosos os favores da vida, e mais
leves, porque comunicados e partilhados, seus golpes duros.
"Ora, se a amizade encerra todas as vantagens, e a valer, ela
as ultrapassa todas é porque aureola o futuro de otimismo e
não admite nem a desmoralização dos espíritos nem sua capi­
tulação. De fato, observar um verdadeiro amigo equivale a
observar uma versão exemplar de si mesmo: os ausentes são
então presentes, os indigentes são ricos, os fracos, cheios de
força e, o que é mais difícil de explicar, os mortos são vivos, na
medida em que o respeito, a lembrança, o pesar de seus ami­
gos continuam ligados a ele."

São Paulo, 28 de fevereiro de 2002

Nota: Foram incorporadas neste pronunciamento sugestões de Maria Eu­

gênia Lemos Fernandes, Isamara Gouvêa e Sérgio Gomes. Ubiratan de Paula
Santos, Elci Pimenta, Lídia Tobias, Socorro Matos, Cenise Monte Vicente
e Breno Altman tiveram também influência nele, de uma ou de outra forma.

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Capa: Arnaldo de Melo i