Você está na página 1de 27

Todos os direitos desta edição reservados a Pontes Editores Ltda.

Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia


sem a autorização escrita da Editora.
Os infratores estão sujeitos às penas da lei.
A Editora não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S326r Scherer, Amanda Eloina (org.) et al.

Restos de horror / Organizadores: Amanda Eloina Scherer,


Dantielli Assumpção Garcia, Fábio Ramos Barbosa Filho, Lauro
Baldini e Lucília Maria Abrahão e Sousa.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022.
gs.; fotogra as.

Inclui bibliogra a.
ISBN: 978-65-5637-430-7.

1. Análise do Discurso. 2. Luto. 3. Psicanálise.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Índices para catálogo sistemático:


1. Análise do discurso. 401.41
2. Sistemas psicoanalíticos / Psicoanálise. 150.195
3. Linguística. 410
Amanda Eloina Scherer
Dantielli Assumpção Garcia
Fábio Ramos Barbosa Filho
Lauro Baldini
Lucília Maria Abrahão e Sousa
(Organizadores)
Copyright © 2022 –Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Dos organizadores
Editoração: Vinnie Graciano
Capa e créditos das colagens: Cristina Rios Leme

CONSELHO EDITORIAL:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas – SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br

Impresso no Brasil – 2022


Colando nossos cacos, no intervalo signi cante de nosso
experienciar e bordejar o horror, Cris (Cristina Rios Leme)
nos coloca no pendular da vida com a sua poesia-colagem,
nos con gurando nos restos do ainda sempre lá.
SUMÁRIO

O QUE RESTA DO HORROR? 11


Lauro Baldini, Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia, Amanda
Eloina Scherer e Fabio Ramos Barbosa Filho

PARTE 1

ARTICULAÇÕES ENTRE A PSICANÁLISE E O DISCURSO: AS MARGENS


DO INOMINÁVEL 21
Lauro Baldini, Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia, Amanda
Eloina Scherer e Fabio Ramos Barbosa Filho
MELANCOLIZAR PARA GOVERNAR: O COLAPSO FUNERÁRIO
BRASILEIRO COMO DISPOSITIVO NECROGOVERNAMENTAL 39
Fábio Luís Ferreira Nóbrega Franco
ESCREVER, AINDA? 57
Paulo Miranda
A QUAL RAZÃO RECORRER QUANDO SE TRATA DO HORROR? 67
Maria Maia Brasil
LUTORATURA 87
Thales de Medeiros Ribeiro
EL ODIO INTRAZABLE EN EL CIBERESPACIO: RESTOS DE UN HORROR
PRETECNOLÓGICO 103
Juan Manuel López-Muñoz e Paola Capponi

PARTE 2

LUTO-DENÚNCIA E A MATERIALIDADE FOTOGRÁFICA 135


Rogério Modesto
NO RISCO DO TESTEMUNHO: ENTRE O TRAUMA E A INCOMPLETUDE 151
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi
ENTRE GRITOS E SUSSURROS: UMA INQUIETAÇÃO SOBRE OS MODOS
DE CONTROLE E DOMINAÇÃO 163
Marilda Aparecida Lachovski
LUTO E LAMENTO: LEVANTAR A VOZ; CANTAR AOS MORTOS 179
Marcos Barbai e Pedro de Souza

PARTE 3

NÓS E ELES 197


Fábio Ramos Barbosa Filho e Valdemir de Souza Vicente
RESTOS DE CENSURA E TORTURA: CLOROQUINA OU A MORTE? 221
Andréia da Silva Daltoé
FAHRENHEIT BRASIL – PSICANÁLISE, ARTE E UTOPIA 239
Edson Luiz André de Sousa
O LUTO E AS FOLHAGENS VERMELHAS: O GRITO EM DISCURSO 251
Lucília Maria Abrahão e Sousa

PARTE 4

O MUSEU DO ISOLAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEMPO


PRESENTE 275
Verli Petri e Maria Cleci Venturini
EFEITOS DA LUTA E DO POLÍTICO NA ARTE: O ESPETÁCULO
EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES/RIO GRANDE DO SUL 293
Mirela Schröpfer Klein
O INOMINÁVEL DE UMA PANDEMIA: O TRAUMA DO SÉCULO? 309
Dantielli Assumpção Garcia
PEÇAS DE UM ARQUIVO NAS CONJECTURAS DE UM ESTUDO EM
SUSPENSO 325
Amanda E. Scherer

NOTAS SOBRE OS AUTORES 339


ARTICULAÇÕES ENTRE A PSICANÁLISE E O
DISCURSO: AS MARGENS DO INOMINÁVEL

Lauro Baldini
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Dantielli Assumpção Garcia
Amanda Eloina Scherer
Fabio Ramos Barbosa Filho

Em Análise de Discurso, um primeiro momento de teoriza-


ção do conceito de arquivo aparece em Pêcheux (1982). Ali, o arquivo
é de nido como “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre
uma questão”1. Mas não apenas. O conceito de arquivo é submetido
ao que Pêcheux denomina a “materialidade da língua na discursividade
do arquivo”2. E é justamente a consideração da materialidade da língua
o que permite romper com um viés que ousamos chamar de arquivismo:
uma concepção de arquivo que destitui, precisamente, a sua materialida-
de, compreendida como as múltiplas determinações linguístico-históri-
cas que compõem o arquivo em seu efeito de unidade. Ou seja, para con-
ceber o conceito de arquivo a partir de uma posição discursiva, não basta
considerá-lo como um conjunto pertinente e disponível de documentos,
mas interrogá-lo a respeito das condições de sua emergência e, sobretu-

1 Pêcheux, 1982, p. 59.


2 Pêcheux, 1982, p. 59

21
RESTOS DE HORROR

do, sobre as condições materiais–isto é, linguístico-históricas – de sua


pertinência e de sua disponibilidade. Assim rompemos com o protocolo
instrumentalista das “gestões documentais” insistindo na incontornável
Política de arquivo.
Pêcheux insiste numa posição radicalmente discursiva, a rmando
que “o fato da língua foi, e permanece, consideravelmente subestima-
do em todos os projetos de leitura de arquivo”3. Nesse mesmo sentido,
Robin (1973) toma partido por uma crítica do arquivismo conteudista,
a rmando que “a ‘leitura’ de um texto e de um conjunto de textos traz
à baila problemas tais como a produção do sentido”, ou seja, que é preci-
so romper com o olhar empírico que produz o arquivo enquanto reposi-
tório de um conteúdo ou testemunho de um fato. Rea rma-se, portanto,
a necessidade de um projeto de leitura, que coloque o próprio conceito
de leitura em jogo e que permite relacionar, de um lado, a língua como
sistema sintático intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade
como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história: isso consti-
tui o nó central de um trabalho de leitura de arquivo4.
A partir disso, diremos que o arquivo não é um suporte de informa-
ções, mas um intervalo entre a textualização, compreendida como “um
processo linguístico-histórico de formulação do dizer”5 e o acontecimen-
to, compreendido em sua opacidade constitutiva, irredutível ao “fato”.
Intervalo, pois, na medida em que há, no arquivo, esse limiar entre o dito
e o não-dito, entre o escrito e o inscrito. Cabe, portanto, compreender
de que modo é formulada a trama textual6 que o constitui enquanto
ponto de in exão de uma miríade de discursividades. Uma perspectiva
discursiva permite o deslocamento de uma leitura pautada no conteúdo
para outra que toma como base a própria materialidade da língua, to-
mada como constitutivamente equívoca. Considerando-se essa materia-
lidade especí ca como ponto de partida para a análise de documentos,

3 Pêcheux, 1982, p. 58.


4 Pêcheux, 1982, p. 85.
5 Barbosa Filho, 2018, p. 12.
6 Robin, 1977.

22
RESTOS DE HORROR

aparentes contradições, ambiguidades e elipses não são tomadas como


defeitos de um texto, mas como algo que produz efeitos.
Segundo Farge (1989), o arquivo “é permanentemente uma fal-
ta” e utilizá-lo hoje “é traduzir esta falta em questão”7. Dessa forma,
o trabalho de pesquisa e leitura de arquivos numa perspectiva discursiva
não pretende o esgotamento da grande quantidade de documentos exis-
tentes sobre a ditadura, visto a inviabilidade empírica de tal tarefa e da
impossibilidade de apreensão de uma verdade inteira (já que a própria
relação entre verdade e arquivo não se dá através de uma relação uní-
voca, e sim de disputa pelo sentido no âmbito do político), mas antes
a fabricação de um novo objeto a partir da escrita de um novo arquivo.
Para Derrida (1995), a psicanálise permite reformular o próprio
conceito de arquivo e de arquivamento a partir de sua dimensão con-
traditória. Nesse âmbito, tem-se um questionamento acerca dos limites
entre interioridade e exterioridade, marcas e impressões sobre determi-
nado suporte, além de ensejo de preservação do passado e antecipação
de um futuro sempre por vir, questões que se re etem no próprio fun-
cionamento do aparelho psíquico. O arquivo, não mais detentor de uma
verdade incontestável, passa a ser tomado como algo que exprime um
“desejo de memória”, mas ao mesmo tempo é colocado “em lugar da fal-
ta originária e estrutural”8 dessa mesma memória. Do mesmo modo
que faz lembrar, o arquivo não está isento da ameaça de sua própria des-
truição e apagamento, a qual constitui o próprio mal de arquivo.
Ao mesmo tempo, há os “arquivos do mal”, entendidos aqui como
marcas de violência dirigidas ao corpo, como lugares em que se encon-
tram textualizadas formas de sofrimento, pois uma aparente ausên-
cia de memória e, consequentemente também uma aparente ausência
de arquivo, no entanto, não impedem que haja “sintomas, sinais, guras,
metáforas e metonímias que atestam, ao menos virtualmente, uma do-
cumentação arquivística onde o ‘historiador comum’ não identi ca na-

7 Farge, 1989, p. 58.


8 Derrida, 1995, p. 22.

23
RESTOS DE HORROR

da”9. Dessa forma, colocam-se também questões acerca da legibilida-


de e daquilo que se escreve e daquilo que não se escreve. O interesse
da Psicanálise reside nessas outras marcas deixadas na memória, que não
são legíveis aos olhos da historiogra a e que implicam confrontar com a
heterogeneidade irredutível das materialidades discursivas (PÊCHEUX,
1999), ou seja, testemunhos, fotogra as, escritos, vídeos, performan-
ces, arquitetura, objetos, monumentos, folders etc, fragmentos de um
arquivo que, muitas vezes, se constrói nas margens, nas bordas, nas zo-
nas litorâneas. Tais materiais consistem em uma espécie de profusão
que coloca, por um lado, a questão da memória como central e incontor-
nável e, por outro, expõe problemas a qualquer pretensão de uma leitura
totalizante da história.
Seligmann-Silva (2003) argumenta que a historiogra a do século
XX prolongou o sonho do historicismo oitocentista de que seria possível
conhecer o passado “tal como ele de fato ocorreu”. Contra o historicis-
mo positivista que pensa a história como uma acumulação dos “rastros”
e das “marcas” deixadas no tempo, Friedrich Nietzsche destacou que “é
totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”:

Assim como devemos nos “lembrar de esquecer”,


do mesmo modo não nos devemos esquecer de lembrar.
Esse mandamento da memória – na sua versão judaica
(Zakhor) ou secularizada via psicanálise – vale também
para a História. No que tange à dicotomia História e me-
mória, creio que um registro não deve apagar o outro10

Em outro quadro teórico, Ansart (2004) mostra que os concei-


tos de história, memória e ressentimento levantam o problema central
da relação entre a política e os afetos, entre os sujeitos singulares e as
práticas sociais e políticas. Esse olhar sobre a relação entre o político
e os afetos nos coloca diante de um impasse entre a história e a psi-

9 Derrida, 1995, p. 84. Pensamos aqui, por exemplo, nos modos em que presença do período
da ditadura civil-militar se dá a ver e se esconde, nos modos como são tornados (in)visíveis
os rastros (longínquos e ao mesmo tempo atuais) do genocídio dos povos originários e da
população negra, lgbtqia+ etc.
10 Seligmann-Silva, 2003, p. 61–62.

24
RESTOS DE HORROR

canálise. O historiador De Certeau (2011) a rma que os dois campos


se constituem a partir de uma diferença fundamental em relação à pro-
blemática do tempo. A psicanálise articularia o passado e o presente
sob as formas do esquecimento e do vestígio mnésico. A historiogra a
moderna, por sua vez, seria marcada por uma vontade de objetividade
e se desenvolveria a partir de um corte entre passado e presente. Tal cor-
te é o resultado das relações de saber e poder que atravessam o traba-
lho do historiador e os lugares (museus, arquivos, bibliotecas etc.) onde
são “conservados” os materiais que possibilitam a análise dos sistemas
ou acontecimentos do passado11. Acrescentaríamos que o conjunto com-
plexo de questões ligadas ao campo teórico, político e poético do tes-
temunho tem se constituído como uma questão de importância crucial
para os dois campos, sobretudo quando há, por parte dos historiadores,
o reconhecimento das contribuições freudianas para o campo da his-
toriogra a. Nesse aspecto, Robin (2003) escreve um percurso histórico
e crítico sobre a convocação ao não esquecimento que se estabelece
na tradição inaugurada pelos julgamentos dos crimes da Segunda Guerra
que pode nos servir de orientação, na medida em que a Psicanálise é uma
de suas guras. Como seu escopo é amplo, sua pesquisa traz um quadro,
ainda que não seja esse o objetivo do livro, que nos permite identi car
o lugar incontornável da Psicanálise nas políticas da memória e do tes-
temunho em momentos e espaços diversos do século XX e início do XXI.
Essas questões–pensadas aqui a partir dos campos da loso a,
da psicanálise, da história e da análise de discurso–se relacionam for-
temente com as políticas de rememoração em torno das ditaduras, so-
bretudo no que tange aos espaços institucionalizados tais como museus
e memoriais. Como se constitui, então, um inventário dessas ditaduras,
tendo em vista que as políticas de rememoração se compõem também
daquilo que “está em ausência”, daquilo que “não pode ser lembrado”
e daquilo que “não pode circular”? Robin a rma que os esquecimentos
sistemáticos em forma de perdões ou de anistias são uma tentativa de re-
alizar o apagamento do passado das sociedades, por mais que essa polí-
tica do esquecimento não apague efetivamente a história. Para a histo-

11 Robin, 1973.

25
RESTOS DE HORROR

riadora, “o passado ‘nulo e não ocorrido’ é, então, o que as leis da anistia


procuram fazer, a m de acelerar os processos de reconciliação nacional,
evitar novas guerras civis, garantir a continuidade do Estado”12.
Gagnebin (2010) a rma que a anistia deveria con gurar, no máxi-
mo, uma política de sobrevivência imediata e não uma política de nitiva
de regulamento da memória histórica. Essa imposição ao esquecimento
instaurado como gesto forçado de fazer como se não houvesse havido
tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida do passado vai na direção contrá-
ria às “funções positivas do esquecer para a vida. Impor um esquecimen-
to signi ca, paradoxalmente, impor uma única maneira de lembrar–por-
tanto um não lembrar, uma ‘memória impedida’”13.
Assim, às questões relativas à anistia, somam-se outras políticas
e processos do esquecimento descritos por Robin (2003) como a “demo-
lição”, a “substituição” e o “apagamento”. Em relação ao último, refe-
rente aos silêncios e tabus do e no arquivo, fazemos uma aproximação
com os estudos de Orlandi (1999) e Orlandi (1992) sobre o silêncio. Para
a autora, a tortura, a censura e a agressão das ditaduras à sociedade e à
cidadania têm por efeito tornar impossíveis uma série de sentidos an-
tes viáveis: “há, assim, ‘furos’, ‘buracos’ na memória, que são lugares,
não em que o sentido se ‘cava’ mas, ao contrário, em que ‘falta’ por in-
terdição. Desaparece. [...] Como a memória é, ela mesma, condição do di-
zível, esses sentidos não podem ser lidos” (ORLANDI, 1999, p. 65-66).
Esse processo de dessigni cação dos sentidos afeta, portanto, o trabalho
da memória, fato perceptível nos testemunhos pela falta de palavras,
pela “di culdade de dizer, de se identi car e de transferir (metaforizar)
sentidos [...], na tensão dos gestos, dos olhares e do silêncio constrangi-
do” (ORLANDI, 1999, p. 71).
Nesse sentido, na contramão da “amnésia histórica” produzida
pelas políticas de esquecimento, Kehl (2010) argumenta que as vítimas
dos abusos da ditadura civil-militar brasileira não se recusaram a “ela-
borar publicamente o trauma” e lembra que um ano antes do governo

12 Robin, 2003, p. 83.


13 Gagnebin, 2010, p. 179.

26
RESTOS DE HORROR

instituir uma política de “reparação” às famílias dos desparecidos da di-


tatura, a professora Maria Lígia Quartim de Moraes, viúva de um mili-
tante desaparecido, organizou na universidade um debate sobre a tortu-
ra e os assassinatos políticos da ditadura (projeto “Brasil: Nunca Mais”).
No evento, a autora participou da mesa-redonda sobre testemunhos
de mulheres torturadas e observou, posteriormente, que “o ato de tornar
públicos o sofrimento e os agravos in igidos ao corpo (privado) de cada
uma daquelas mulheres poderia pôr m à impossibilidade de esquecer
o trauma”14.
Para Pêcheux (1999), falar sobre o papel da memória a partir
de seus pontos de regularização e desestruturação implica compreendê-
-la não no sentido de uma “memória individual” ou “orgânica”, mas na
direção de um “entrecruzamento” da memória social inscrita em práti-
cas e da memória construída pelo historiador. No confronto da memó-
ria constituída pelo esquecimento e da memória que não esquece (ou
institucionalizada), há espaço de interpretação (ORLANDI, 2014). Se as
políticas do esquecimento produzem uma espécie de “memória impedi-
da”, as diversas políticas que tentam organizar e administrar a memória
histórica–como a criação e gestão de mausoléus, memoriais e museus
dedicados às ditaduras–podem também, eventualmente, impor uma
“única maneira de lembrar”: “Entre os aspectos que podem bloquear
a emergência de uma memória crítica, em primeiro lugar, estão o ‘pe-
dagogismo’ e uma vontade vertiginosa de transmitir, sem que se saiba
exatamente o que se quer transmitir”15. Por m, gostaríamos de concluir
essa re exão sobre a memória e o esquecimento a partir do escrito de um
ex-preso político um ano após a promulgação da lei da anistia no Brasil:

Existe uma prisão onde já estivemos e que é ao mesmo


tempo um patrimônio artístico da cidade. Nela, alguns
de nós foram torturados, levaram surra de corrente, dor-
miram em solitárias onde foram jogadas bombas de gás
lacrimogênio e passaram dias em celas medievais onde
o teto não chegava a um metro de altura. Pois bem, nesse

14 Kehl, 2010, p. 127.


15 Robin, 2003, p. 329.

27
RESTOS DE HORROR

local onde coexistiu durante muito tempo turismo e tor-


tura, paisagem o cial de cartão postal e subterrâneos
secretos, en m, nesse local tão ‘Brasil’, tem um lugar (e
inclusive uma foto dele nesse livro) onde se lê em enor-
mes letreiros: ‘Cova da Onça’ e ‘Salas de Tortura do pas-
sado’. Lá se torturava e depois se jogava o corpo na cova,
que vinha a ser um túnel que dava pro mar. Taí o nó dos
tempos que virão. Hoje em dia, ao se procurar orientar
os turistas num determinado monumento histórico,
tem que se ter o cuidado de escrever junto à ‘sala de tor-
tura’, o complemento ‘do passado’. Prá não confundir
com ‘as do presente’, é claro. E o pior de tudo: nada indica
até agora, que as atuais ‘mudanças democráticas’ ora em
curso sejam por si só su cientes para erradicar as salas
do presente. Apenas deixaram de atirar gente nas vá-
rias covas da onça que haviam por aí. Porque não tava
mais dando pé, a maré baixou e os corpos começaram
a aparecer. E só teremos caminhado para alguma coisa
verdadeiramente justa e humana quando pudermos es-
crever simplesmente ‘sala de tortura’, isso porque esta-
remos absolutamente certos que ninguém pensará numa
sala de tortura que não seja do passado, coisa de museu.
Mas até esse tempo, pelo qual falta muito o que fazer,
que os DOI CODIS e as delegacias policiais sejam tomba-
dos pelo patrimônio histórico, com letreiros e legendas
isentas de culpa. Até lá, algo me diz que muitas águas
rolarão. Quem tá pensando que esse processo é o mesmo
que se vive hoje, cairá na certa do cavalo. Até lá, por que
não também escrever poemas?16

Luto e melancolia apresentam em comum o corpo sulcado por uma


falta. Que não é qualquer falta, mas àquela cujo objeto havia sido inves-
tido de amor: se o objeto não tiver para o ego um signi cado tão grande,
reforçado por milhares de laços, sua perda não se prestará a provocar
um luto ou uma melancolia. Essa característica da execução minuciosa

16 Polari, 1980, p. 12.

28
RESTOS DE HORROR

do desligamento da libido deve ser, portanto, atribuída, do mesmo modo,


tanto à melancolia quanto ao luto, e provavelmente se apoia nas mes-
mas relações econômicas e serve às mesmas tendências17. Dizemos isso
porque não é óbvia, em uma análise mais detida, a dissociação, especial-
mente em um momento de intensa dor, daquilo que funde o eu ao outro.
No caso do melancólico, o objeto da perda não é tão claro e pode se es-
conder nas camadas de seu entristecimento. Apesar de algo o denunciar.
Freud nos diz que para o melancólico “queixar-se é dar queixa.” Isso por-
que, um traço típico da melancolia, inclusive o que o diferencia do luto,
é a falta de estima por si, as autoacusações in igidas: a melancolia se ca-
racteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão
do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibi-
ção de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima,
que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a
expectativa delirante de punição (FREUD, 1917).
Ao serem investigados por Freud o rebaixamento da autoestima
e a expectativa de punição, notou-se que as palavras acabavam não por
denunciar uma ideia sobre si mesmo, mas uma mágoa que incidia, in-
diretamente, sobre o objeto de amor perdido, denunciando por uma
queixa aquilo que lhe ferira e esperando uma punição para o objeto
que o inconsciente deslocou para si. Também contribui para a di culda-
de de dissociação, o fato do “eu” não ser o senhor em sua própria casa–A
terceira ferida narcísica da humanidade in igida por Freud na desco-
berta do inconsciente, ou seja, ao Eu acontece de se dispensar, muitas
vezes, o tratamento de objeto, já que apenas a consciência não dá conta
da totalidade de seus atos.

O eu trata a si mesmo como um objeto, e é isso que lhe


permite matar a si mesmo, fazendo talvez de todo sui-
cídio um autoassassinato (Selbstmord, em alemão,
traz esse signi cado literal). Na melancolia mostra-se
em toda a sua radicalidade algo estrutural, mas habitu-
almente encoberto: o eu se toma como objeto de crítica
e morti cação, graças a uma identi cação com o objeto

17 Freud, 1917, p. 45.

29
RESTOS DE HORROR

perdido, e assim, ao queixar-se de si mesmo, “queixa”


do objeto “queixar-se é dar queixa”.18

O que desejamos dizer é que o “eu” não é uma unidade homogê-


nea e coesa e que, muitas vezes, acaba por se amalgamar aos objetos
de seu interesse ou amor. O “eu” é tanto mais um mosaico de histórias,
cores, linguagens e presenças do que uma constituição de corpo em uma
ordem imóvel. O reconhecimento disso é que torna tão dolorido tanto
a perda–por vezes insondável–na melancolia quanto à perda mais de-
lineada e “concreta” no caso do luto. Para Rivera (2012), longe de con-
sistir em uma unidade narcísica irredutível e capaz de assegurar alguma
identidade, o “eu não é mais do que (...) traços de objetos perdidos, como
uma mulher na qual seria possível reconhecer as características dos ho-
mens com os quais já se relacionou na curiosa observação de Freud”19.
Tributário da perda do objeto, o eu se constitui apartado de si mesmo,
e pode mais ou menos facilmente voltar a se “situar” no outro, exerci-
tando suas identi cações plurais. Na melancolia, o eu se revolta contra
a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa
a ela se con-formar, identi ca-se maciçamente ao objeto perdido, a pon-
to de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia
e pode se instalar como uma “ferida aberta” que suga a libido e doloro-
samente empobrece o eu. Se essa atitude se opõe ao trabalho de luto,
ela não deixa, porém, de consistir também em um “trabalho” que “con-
some” o eu, nos termos de Freud (RIVERA, 2012). Observamos aqui que a
melancolia produz o efeito de deixar o sujeito absolutamente submerso
na impotência de tocar, alcançar e lutar por seu objeto: algo inalienável
se dá a viver e até a língua se afunda na impossibilidade e ine cácia
de ser pronunciada. Por isso, Hassoun (2002) a rma que:

O melancólico é o coveiro da sua história, o arqueólogo


surpreso que não para de exumar os ossos alvacentos,
testemunhos de uma vida inimaginável e petri cada.
Ele percorre Pompéias em que os corpos, surpreendidos

18 Rivera, 2012, p. 45.


19 Rivera, 2012, p. 235.

30
RESTOS DE HORROR

pela lava, estão em toda parte, desprovidos de quaisquer


traços que permitissem identi cá-los20.

No luto, ca claro que o eu não se faz sozinho no mundo, é sem-


pre uma experiência de co-existência e de con-vivência em que histórias
entrelaçadas produzem possibilidades de identi cações, idealizações,
queda de ideais, etc. É como, portanto, a sensação de ter sido arrancado
de uma porção de coisas sem sair do lugar. A perda de um ser amado
não é apenas perda do objeto, é também a perda do lugar que o sobre-
vivente ocupava junto ao morto. Lugar de amado, de amigo, de lho,
de irmão (KEHL, 2011). Não raro encontramos na música e na poesia
a dilacerante sensação de perda do outro como se fosse parte de uma
própria constituição biológica do eu. Allouch (1995) nos dirá: “O enlu-
tado está às voltas com um morto que está indo embora levando consi-
go um pedaço de si”21.
Falamos um pouco da falta e como diferem nos dois casos. Mas nos-
so objeto, o luto, o que o caracteriza em sua singularidade? O luto é a
sensação dolorosa da perda que se acredita de nitiva, por morte, en-
cerramento, ou outros motivos nalísticos de uma relação ou situação
investida de amor. O estado de ânimo pungente faz o enlutado se desin-
teressar pelo mundo externo já que este não lhe faz mais lembrar o mor-
to, há uma resistência a quaisquer novas atividades que não têm relação
com a memória do morto, não se tem vontade de investir de imediato
novos objetos de amor ou criar ligações profundas no ambiente externo
que possam ancorar o empobrecimento do ego e estreitamento de seu
mundo. Há um momento de dedicação exclusiva a vivência de tudo o que
a perda rememora. Freud a rma, em “Luto e Melancolia”, que apenas
por ser possível explicá-lo tão bem é que esse comportamento não nos
parecerá patológico (FREUD, 1917). Há algo interessante na fala de Freud.
Não é possível determinar em psicanálise tão facilmente esta-
dos patológicos ou vivências naturais e doloridas considerando que a
vida submete a experiências intensas as quais um sujeito pode mani-

20 Hassoun, 2002, p. 91-92.


21 Allouch, 1995, p. 30.

31
RESTOS DE HORROR

festar e reagir temporariamente de maneira muito similar ao que seria


um adoecimento, um surto, um enlouquecimento sem que isso seja pa-
tológico. O luto nos dá essa dimensão ao ser considerado pelo psicana-
lista um momento “natural” de trabalho elaborativo. Mas natural apenas
porque lhe é sondável as fases frente a algo tão inerente quanto à morte.

A psique, como um cristal, só mostra suas linhas de es-


trutura quando se quebra. Não existe, portanto, uma cla-
ra oposição entre normal e patológico. Enquanto não se
quebrar, o cristal parecerá “normal”–entretanto, ele é
composto de fraturas que, no momento em que alguma
circunstância desencadeadora o zer “cair”, guiarão
o modo como ele se partirá22.

Ao enlutado é importante que empreenda um trabalho psíquico


que, mesmo fazendo-o lembrar incessantemente de sua perda e empo-
brecendo seu ego em um primeiro momento, poderá, com o tempo, aju-
dá-lo a ressigni car sua vivência traumática atribuindo-lhe cores menos
mortíferas e também promoverá um paulatino desligamento libidinal
em relação aquele objeto de satisfação narcísica que o ego perdeu aquém
de seu controle. O investimento libidinal, aos poucos então, poderá re-
tornar sua atenção ao mundo externo e a possibilidade de novos laços
e novos objetos de satisfação. Mas é normal, escreve Freud, que o apego
do enlutado ao seu morto diminua aos poucos, e que a “psicose alucina-
tória de desejo” (...) ceda lugar à aceitação da realidade. Embora a libido
tenha enorme resistência em abandonar posições prazerosas já experi-
mentadas, aos poucos a ausência do objeto impõe o doloroso desliga-
mento, até que o ego se veja “novamente livre e desinibido”, pronto para
novos investimentos. Pronto para voltar a viver. É válido lembrar que os
efeitos do trabalho do luto, ou seja, o desinvestimento emocional do ob-
jeto, ocorre (bem como na melancolia) de maneira inconsciente para
o sujeito, mas sem resistência para chegar à consciência, sendo possível
a veri cação de algum desapego paulatino por parte do enlutado. E ape-
sar da tendência a uma superação “natural”, isso não quer dizer que não

22 Rivera, 2012, p. 234.

32
RESTOS DE HORROR

demande um esforço hercúleo e nem sempre bem-sucedido. É possível


que se desenvolva um estado de luto patológico em que a libido ca apri-
sionada no objeto de amor perdido. Isso porque a ocasião de uma perda
é uma oportunidade para que algo do sujeito enlutado possa emergir.
Como é o caso de ambivalências amorosas em relação ao objeto perdido,
bem como naqueles que possuem uma tendência à neurose obsessiva,
o con ito de ambivalência poderá conferir ao luto uma conformação
patológica e levar o sujeito a se expressar na forma de autorrecrimina-
ções, sentindo se culpado pela perda do objeto do amor, isto é, de tê-lo
desejado.

Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto?


Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte manei-
ra: a prova de realidade mostrou que o objeto amado
já não existe mais e agora exige que toda a libido seja
retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso
se levanta uma compreensível oposição; em geral se ob-
serva que o homem não abandona de bom grado uma po-
sição da libido, nem mesmo quando um substituto já se
lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocor-
re um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto
por meio de uma psicose alucinatória de desejo. O nor-
mal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incum-
bência não pode ser imediatamente atendida. Ela será
cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo
e de energia de investimento, e enquanto isso a existên-
cia do objeto de investimento é psiquicamente prolonga-
da. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais
a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinves-
tidas e nelas se realiza o desligamento da libido. Por que
essa operação de compromisso que consiste em executar
uma por uma a ordem da realidade, é tão extraordinaria-
mente dolorosa, é algo que não ca facilmente indicado
em uma fundamentação econômica. E o notável é que
esse doloroso desprazer nos parece natural. Mas de fato,

33
RESTOS DE HORROR

uma vez concluído o trabalho de luto, o ego ca nova-


mente livre e desinibido23.

Objetivamente quais poderiam ser os mecanismos empreendidos


nesse árduo processo de elaboração do luto? Que às vezes expõe o cerne
do trauma como uma ferida exposta? Berlinck (2008) indica uma possi-
bilidade de resposta ao a rmar que: “o vínculo da libido ao objeto se efe-
tua por meio de lembranças e expectativas. O trabalho do luto consis-
te em evocá-las e investi-las fortemente uma a uma, de maneira a que,
paulatinamente, a libido se desligue”24. É possível pensar em algumas
possibilidades como ressigni cação de vivências, celebrações e ritu-
ais mortuários ou que marquem a despedida do morto e ainda, em um
plano mais coletivo, tendendo a elaborar e reservar um lugar especial
de reconhecimento, pertencimento e compartilhamento de memórias
e traumas coletivos, os memoriais, os museus. Vamos trabalhar breve-
mente com cada hipótese: a ressigni cação é uma ação atualizante para
uma memória. Um ash, que se cristalizou traumático, em um deter-
minado tempo e circunstâncias passadas que, muitas vezes, se trazidas
para as circunstâncias atuais da vida de um paciente, não tivesse mais
a mesma intensidade ou eco. No caso do luto que se desenvolve patoló-
gico, pode ser um bom exercício no sentido de contornar as autorrecri-
minações e a culpa sentida pelo sujeito, usando uma nova interpretação
para a relação vivida que não a de amálgama, por exemplo.
Lacan, no documentário “Um encontro com Lacan”, tem uma
de suas belas histórias contadas. Suzanne Hommel havia sido sua pa-
ciente e, alemã, na época da segunda guerra, havia vivido os horrores,
as angústias, a fome que aquele período tenebroso poderia oferecer.
Um dia, Suzanne teve um sonho e relatou que acordava todos os dias às 5h
da manhã, pois era o horário que os o ciais da GESTAPO vinham pro-
curar os judeus em suas casas. Lacan, prontamente lhe acariciou na face
em um “Geste à peau”. Sugerindo, em sua generosidade de analista,
um novo caminho para a lembrança. Era sua sugestão de ressigni cação.

23 Freud, 1917, p. 34.


24 Berlinck, 2008, p. 88.

34
RESTOS DE HORROR

Allouch (1995) critica a máxima do “Trabalho de luto”, propon-


do uma visão mais articulada à noção de ato. Para o que nos interessa
aqui, talvez o mais importante seja seguir a prudência de Allouch (1995)
quando este a rma que “conviria primeiramente admitir que não sabe-
mos o que é um luto, tampouco se há um ou vários. O problema do luto
seria então colocado como uma incógnita, como um x, de que se espe-
raria de cada caso que ele lhe desse seu valor. Com certeza, heuristica-
mente, tal política analítica em relação ao luto como clínica seria a mais
pertinente”25.
A escrita foi seu ritual de expurgar-lhe a dor. Uma das principais
ideias no livro é a da “Morte seca”, uma perda silenciada e sem com-
pensação. A falta de celebração e de rituais no contemporâneo não tra-
ria um desamparo maior ao enlutado? No horizonte de uma perda seca,
segundo Allouch, lidamos com uma tripla ausência: não há mais mor-
te no grupo, não há mais morte de si e, como consequência, não há
mais luto. Dito em outras palavras, a morte deixa de ser um fato social
e não há mais o seu reconhecimento público no grupo; ela deixa de ser
um acontecimento esperado e experienciado pelo sujeito e passa a se
realizar escondida nos ambientes hospitalares, amenizada e marcada
de pudor; por m, em decorrência desses outros fatores, o próprio luto
é tornado indecente e declarado como não sendo mais. A elaboração cô-
mica é oposta a frieza, é espécie de celebração às avessas, mas ainda
assim celebração.

O exercício masoquista, aliás, com o qual a libido analy-


sandi tem muita coisa em comum (todas, dizia Lacan, ex-
ceto o domínio), usa e abusa dessa possibilidade segun-
do a qual o sofrimento se nutre de afetação. Ver também
o tango, ou a mãe judia. Ao evocar de imediato esse cômi-
co do luto, essa afetação do falar da morte, esse ridículo
no sobrevivente, estaria eu pretendendo a isso escapar?26

25 Allouch, 1995, p. 172.


26 Allouch, 1995, p. 27.

35
RESTOS DE HORROR

É importante também considerarmos as memórias coletivas em re-


lação ao luto. E acolhê-las como algo que se inscreve na história e faz som-
bra à própria temporalidade da morte. O que pode signi car, inclusive,
para nós, um espaço de resistência à indesejada das gentes. Onde se con-
ta nossa história, lá estamos, permanentemente. Esse tipo de “segurança
existencial” de que as vivências e convivências não serão aniquiladas
talvez assegurem um retrato de se ter existido. Ao olharmos para do jogo
da constituição de memoriais e museus dedicados à memória dos com-
bates contra os regimes ditatoriais, devemos nos atentar à observação
da maneira como o luto daqueles que vivenciaram e sofreram com estes
regimes ou de seus entes queridos se inscreve ou não nessas instalações.
Se pensamos, com Allouch, a questão do luto é a questão da constituição
do desejo, passar para uma posição desejante implica um ato sacri cial
que inaugura essa posição subjetiva. Em outras palavras, a constituição
do sujeito está toda atravessada pelo tema do luto. O que signi caria
se perguntar, por exemplo, das relações do luto com o assujeitamento?
Fazer isso não abriria uma via para se pensar numa mesma via a questão
da constituição do sujeito, do sentido, do desejo, do discurso? Não seria
importante para nós levar em conta como se constituem, se formulam
e circulam discursos de e sobre o luto?
Além disso, poderíamos pensar o luto como um acontecimento,
um acontecimento que convoca o sujeito para um ato, um ato que pro-
porciona uma abertura para que algo se encerre, “pois um luto, como
uma psicanálise, por essência, tem um m”27. Em uma versão freudia-
na do luto, o objeto perdido é perfeitamente substituível, pois, ao nal
de um longo trabalho de desinvestimento e reinvestimento libidinal,
um objeto substituto apresentará a mesma carga pulsional que aquele
anteriormente perdido. Em contrapartida, na versão lacaniana (segundo
Allouch), há uma disparidade profunda entre a situação de antes e de-
pois do luto, já que o ato de luto instaura uma posição subjetiva até en-
tão inédita. O objeto perdido, na leitura de Allouch, é tido aqui como
insubstituível e o luto consiste em passar da experiência de um desapa-
recimento do ser amado para o reconhecimento, tomado em ato, de sua

27 Allouch, 1995, p. 12.

36
RESTOS DE HORROR

inexistência28. Assim, a relação de uma sociedade com seus mortos per-


passa também uma relação de elaboração a posteriori, principalmente
ao se relacionar com os símbolos dessa perda. Nossa sociedade ocidental
utiliza-se de rituais e ambientes que acabam concentrando os símbolos
de perda, dor e lembrança, como no caso dos cemitérios e seus túmulos.
Ao se construir um memorial aos combatentes de regimes ditatoriais
podemos perceber tal atitude como um ato de recordar de modo ativo
o passado, de não permitir seu esquecimento e de não deixar de levar
em conta as dores do luto. No entanto, seria possível simbolizar uma me-
mória total do fato ou de sua dor? Nossa aposta é de que simbolizar
o inominável é a única possibilidade de dar um tratamento ao horror.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLOUCH, J. (1995) Erótica do luto: no tempo da morte seca. Rio de Janeiro:


Companhia de Freud, 2004.
ANSART, P. (2004) História e memória dos ressentimentos. In: NAXARA, M.;
BRESCIANI, S. (orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. Campinas: Editora UNICAMP, 2004. p. 15–36.
BARBOSA FILHO, F. R. (2018) O discurso antiafricano na Bahia do século
XIX. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018.
BERLINCK, L. C. (2008) Melancolia rastros de dor e de perda. São Paulo:
Humanitas, 2008.
DE CERTEAU, M. (1987) História e Psicanálise – Entre ciência e cção. São
Paulo: Autêntica, 2011.
DERRIDA, J. (1995) Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
FARGE, A. (1989) O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.
FREUD, S. (1917) Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

28 Allouch, 1995, p. 126.

37
RESTOS DE HORROR

GAGNEBIN, J. M. (2010) O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELES, E.;


SAFATLE, V. (orgs.).. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Coleção
Estado de sítio. 1a ed ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 177–186.
HASSOUN, J. (1995) A crueldade melancólica. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
KEHL, M. R. (2010) Tortura e sintoma social. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (orgs.)..
O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Coleção Estado de sítio. 1a ed
ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 123–132.
KEHL, M. R. (2011) Melancolia e criação. In: Luto e melancolia. São Paulo:
Cosac Naify, 2011.
ORLANDI, E. P. (1992) As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3.
reimpr ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
ORLANDI, E. P. (1999) Maio de 1968: os silêncios da memória. In: ACHARD, P. et
al. (orgs.). Papel da Memória. Campinas: Pontes, 1999, p. 59–71.
ORLANDI, E. P. (2014) Discursos e museus: da memória e do esquecimento.
Entremeios: revista de estudos do discurso, v. 9, jul. 2014.
PÊCHEUX, M. (1982) Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. P. (Ed.).. Gestos de
leitura: da história no discurso. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010,
p. 49–59.
PÊCHEUX, M. (1983) Papel da Memória. In: ACHARD, P. et al. (orgs.). Papel da
Memória. Campinas: Pontes, 1999, p. 49–58.
POLARI, A. (1980) Camarim de prisioneiro. São Paulo: Global, 1980.
RIVERA, T. (2012) Luto e melancolia, de Freud, Sigmund. Novos Estudos–
CEBRAP, n. 94, p. 231–237, nov. 2012.
ROBIN, R. (1973) História e Linguística. Campinas: Cultrix, 1977.
ROBIN, R. (2003) A memória saturada. Campinas: Editora da UNICAMP, 2019.
SELIGMANN-SILVA, M. (2003) Re exões sobre a memória, a história e o
esquecimento. In: História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 59–88.

38

Você também pode gostar