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com

PSICANÁLISE E
PARENTALIDADE HOJE
com Vera Iaconelli
2021

Um conteúdo original da
Casa do Saber
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Uma parte de mim


é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim


é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim


pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim


almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim


é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim


é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte


na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar - “Traduzir-se”


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AVISO
Este material é exclusivo para os inscritos no curso “Psicanálise e
Parentalidade Hoje”, com Vera Iaconelli, realizado pela Casa do Saber
em outubro de 2021. É proibida a reprodução ou divulgação deste
material, parcial ou em sua totalidade, sem autorização. Os direitos
autorais são exclusivos da Casa do Saber.

QUEM PRODUZIU O MATERIAL


CONTEÚDO

Ronaldo Vitor da Silva


Curador Assistente
Isadora Jardim Salazar
Curadora

REVISÃO E APROVAÇÃO

Isadora Jardim Salazar


Curadora

DESIGN
Ana Luiza dos Santos
Designer

FALE COM A GENTE


suporte@casadosaber.com.br
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ÍNDICE:
5 APRESENTAÇÃO

8 PARTE UM

12 PARTE DOIS

15 PARTE TRÊS

18 PARTE QUATRO

CURADORIA RECOMENDA:

21 LIVROS

28 FILMES

34 VÍDEOS
Casa do Saber

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A criação de Adão (1511), Michelangelo

APRESENTAÇÃO
Nos primeiros anos do século XVI, o artista italiano Michelangelo pintou uma
das mais significativas obras da arte ocidental: A criação de Adão. Nessa
pintura presente na cúpula da Capela Sistina (Vaticano), vemos a passagem
bíblica que dá origem à humanidade, nela duas figuras ocupam o primeiro
plano da cena: Deus e Adão, um é força criadora, já o outro é consequência
dessa potência. Ao lado esquerdo da obra, Adão, um homem jovem, de rosto
vulnerável, está nu e estende o braço em direção ao pai que, do céu e com
seus anjos, também se estica para o contato com o filho. Ainda que as mãos
desses personagens quase se encontrem, não há o toque entre elas, mais
do que isso, elas se afastam com as correntes de ar, a ponto de uma leve
rachadura ser vista no plano de fundo entre os dedos de Adão e de Deus. É
este desgarrar-se que teria originado os seres humanos.

Se a obra de Michelangelo nos emociona com seus traços e cores, ao colo-


car frente a frente esse instante de afastamento podemos questionar algumas
Casa do Saber

das grandes questões que nos desconcertam ao longo do tempo: de onde


viemos? O que somos? Para onde vamos? De quem cuidaremos e quem cui-
dará de nós?

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Pensar as nossas origens, refletir sobre nossa capacidade de adotar uma


vida e cuidar dela, questionar até que ponto nos colocamos como deuses
para nossos filhos e o quanto se apoiamos como Adão com nossos pais;
foram algumas das principais preocupações da Casa do Saber ao organizar
o curso Psicanálise e parentalidade hoje, com Vera Iaconelli. A chegada dos
filhos é uma ruptura que nos desloca para algo novo, incerto e por isso fas-
cinante, não à toa buscamos abrir uma janela que se afaste de valores positi-
vos ou negativos da maternidade e paternidade para ampliá-los no conceito
de parentalidade. Acreditamos que com essa reorganização do pensamento
possamos encontrar diferentes significados, limites e ideologias que envol-
vem o cuidado com os filhos e consigo mesmo.

Hoje, mais do que nunca, nos vemos em crise com nossas identidades e
com as possibilidades do futuro, questionamos nossas certezas ao mesmo
tempo em que defendemos nossos desejos. Repensar a psicanálise e sua re-
lação com a parentalidade, nesse sentido, é um movimento importante tanto
para nós, quanto para o mundo que ajudaremos a construir.

Nessa proposta de ver as proximidades e afastamentos entre cuidadores e


filhos, gostaríamos que este curso e toda experiência que ele envolve tenha o
mesmo efeito que a rachadura que separa os dois personagens de Michelan-
gelo: transformação e criação de autonomia.

Isadora Jardim Salazar


(Curadora)

Ronaldo Vitor da Silva


(Curador assistente)
Casa do Saber

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VERA IACONELLI
Vera Iaconelli é psicanalista, mestre e doutora em psicologia pela
Universidade de São Paulo. Faz parte do Fórum do Campo Lacaniano e do
Instituto Sapientiae. Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, é também
autora de livros e artigos sobre psicanálise, dentre eles, “Mal-estar na
Maternidade: Do Infanticídio à Função Materna” e “Criar Filhos no Século 21”.
Atualmente faz parte do grupo de colunistas do Jornal Folha de São Paulo e
do Podcast “Quem Lê Tanta Notícia”.
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PARTE UM

Meus Avós, Meus Pais e Eu (1936) - Frida Kahlo

“Meu pai grande


Inda me lembro
E que saudade de você
Dizendo, eu já criei seu pai
Hoje vou criar você
Casa do Saber

Inda tenho muita vida pra viver(...)”

“Pai Grande”
Milton Nascimento

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Muitas vezes perguntas aparentemente simples são difíceis de serem


respondidas, a ponto de eventuais conclusões ou não satisfazerem nossa
ambição ou questionarem nossas certezas, tornando alguns pensamentos
tão nebulosos quanto incertos. Dúvidas como “o que é uma mãe?” ou “o
que é um pai?”, por exemplo, são mostras claras de como uma reflexão curta
pode levar a uma resposta indeterminada, se não frágil.

Mãe é quem cuida? É quem coloca o filho no mundo? Pai é aquele


que provém? É quem acompanha a mãe na criação dos filhos? Se nos
restringíssemos a qualquer alternativa imediata que surja como explicação
para essas questões, certamente afirmaríamos imprecisões, erros e até
preconceitos inconcebíveis para os dias de hoje. Se as mães fossem apenas
as mulheres que gestam, como tratar as mães adotivas? Se pais são aqueles
que acompanham as mães, como compreender famílias homoafetivas?
Se para um bebê se desenvolver de forma saudável e segura é necessário
ter uma família heterossexual e estável, de que forma compreenderíamos
realidades de orfanatos, de cuidadores separados, de mães solo e até
mesmo pessoas transsexuais? Pensar sobre o que é uma mãe, um pai ou um
cuidador, portanto, é também se abrir para uma reflexão ampla das nossas
origens, valores, ideologias e, em certo grau, limitações.

Ainda que num primeiro momento seja costumeiro associar as mulheres com
o cuidado dos bebês, sobretudo por razões biológicas, percebemos nessa
visão a permanência de raciocínios calcados em lastros históricos, culturais
e sociais que entendem o corpo feminino como caminho de reencontro com
um elo perdido no ato do nascimento. Se ao longo do tempo a humanidade
constantemente debruçou-se sobre questões filosóficas que tentam
compreender nossa origem subjetiva e razão de existir no mundo (de onde
viemos? Por que estamos aqui?), uma resposta rápida foi projetada sobre
o corpo das mulheres, a ponto de não definirmos as fronteiras do que é o
corpo e do que é o sujeito, do que é físico-biológico e do que é subjetivo.

Nessas inferências de cunho filosófico não foram poucas as vezes em


que confundimos a origem de nossos corpos com a origem de nossa
subjetividade, isto é, associamos que se nascemos de um corpo feminino,
talvez neles residissem um grau de invisibilidade que constitui nossos
desejos, sonhos, fissuras, medos e alegrias. A partir de uma concepção
restritamente biológica e funcionalista, o corpo da mulher foi visto como
Casa do Saber

campo onde a dúvida sobre “o que faz de nós humanos?” pudesse ser
resolvida. Nesse percurso, se das mulheres viemos, somente elas poderiam
cuidar de nós, criar-nos e ensinar-nos a viver em sociedade.

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O famoso quadro A origem do mundo, de Gustave Coubert, talvez seja uma


das iconografias mais representativas dessa forma de compreensão que,
a despeito de mudanças significativas, sempre leu as mães e as mulheres
como cruciais para o cuidado dos bebês e dos filhos. Isso porque nesta obra
de potência única, a origem do mundo não parte de uma ação divina como
em Michelangelo, não é algo espiritual como em diferentes religiosidades;
mas sim natural, pois toma a vulva de uma mulher como horizonte, o corpo
que se mostra de pernas abertas para que miremos em direção ao órgão
sexual. O mundo – visto como espírito da sociedade ocidental – é, assim,
nascido do mesmo lugar de onde nascem os fetos.

O grande ponto de inflexão reside na ocasião em que nosso interesse maior


não está na concretude da origem de nossos corpos ou do que fazemos
com eles, todos sabemos que nascemos de um processo de reprodução
(natural ou não) e gestação que teve como premissa o envolvimento
hormonal masculino e feminino. A incompletude humana está na razão que
organiza nossa psique, no grau de pensamento que constitui um sujeito,
ou seja, o humano em sua dimensão social e subjetiva, ética e psíquica.
Quando em 1947, após viver os horrores dos campos de concentração
nazistas, Primo Levi escreveu seu romance que relatava essa experiência de
dor, nomeou-o com um título que é, antes de tudo, uma dúvida: “É isto um
homem?”. A pergunta não objetiva descobrir se os nazistas eram humanos
por terem braços, pernas, boca, pênis ou olhos, mas sim como após tanta
violência e ira poderia existir dentro do corpo biológico um sujeito. Tal como
a colocação de Primo Levi, pensar de onde viemos e o que somos também
não se restringe ao momento exato em que respiramos e choramos, e sim
ao primeiro instante em que a subjetividade emerge. Sob essa lente, tomar
as perguntas “o que é uma mãe?” em conexão com o significante mulher é
absolutamente limitado, embora compreensível pelas associações históricas.

Ao longo deste curso, na medida em que buscamos nos afastar de leituras


restritas às dimensões corporais e de gênero, passamos a entender o
cuidado com os nascidos sob o prisma da parentalidade. Por parentalidade
compreende-se uma produção de condições e discursos (pensamentos e
ideologias) que uma geração anterior oferece para que uma nova geração de
nascidos se constitua subjetivamente numa determinada época, a ponto de
criar sujeitos singulares vinculados com o tecido social que os envolve e que,
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no limite, terão a responsabilidade de suceder essa geração anterior.

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Embora a parentalidade seja um conceito amplo, o núcleo duro dessa forma


de pensar está no afastamento da tendencia de ver a mãe/bebê como
central para às funções de cuidado parental, uma vez que a substituição
geracional pode abarcar diferentes sujeitos e discursos, não apenas aquelas
características ligadas a mãe ou corpo da mulher. Dessa maneira, as muitas
circunstâncias que envolvem a parentalidade ganham ênfase em detrimento
de leituras que associam a reprodução de corpos com a reprodução dos
sujeitos, a ponto de não ser estranho o papel de cuidador adquirido por avós,
pais, cuidadores profissionais, pessoas que adotam, entre outros.

Numa outra via, há também uma necessidade de apropriação do conceito de


perinatalidade, a compreensão alargada para se pensar o ciclo reprodutivo
humano da gravidez, parto e puerpério, ou seja, todo o processo que analisa
exclusivamente a reprodução de corpos. Tal compreensão é relevante porque
embora a parentalidade e a perinatalidade se choquem, se aproximem e
mesclem, não é possível afirmá-las como fenômenos indissociáveis. Em
suma: é possível haver perinatalidade sem que haja parentalidade, a gestação
e parto não implicam na prática da função parental pela(o) gestante e a
constituição do sujeito não é condicionada pelo período uterino

Ao tomar a perinatalidade e a parentalidade pelo viés psicanalítico, assim


como pela consideração de que nem toda experiência gestacional se torna
um cuidado parental, partimos em direção aos encontros e desencontros das
experiências das pessoas que vivenciam ou não o ciclo grávidico-puerperal,
do entendimento das particularidades de diferentes sujeitos, da análise
integral dos eventos como fenômenos inseridos no processo social, nunca
isolados.
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PARTE DOIS

A Origem do Mundo (1866) - Gustave Courbet

“(...)Fosse eu rei do mundo


Baixava uma lei
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho”
Casa do Saber

“Para Sempre”
Carlos Drummond de Andrade

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Em seus sentidos mais amplos e diluídos ao longo do tempo, a cultura


ocidental compreendeu que as mães, logo, as mulheres, eram os sujeitos
mais apropriados para cuidar dos recém-nascidos, criando-os até a
maturidade. De modo geral, as práticas culturais confirmam e validam a
experiência perinatal pela associação com a realização do ciclo gravídico-
puerperal, ou seja, apenas as gestantes – mulheres, neste caso – poderiam
se adequar às prudências necessárias ao tratamento dos bebês. Neste
sentido restrito, toda a sorte de sujeitos que não vivenciam as etapas
completas de gravidez e parto são julgados de maneira negativa e até mesmo
ilegítima, o que incluiria cuidadores que adotaram, pessoas transsexuais,
famílias estendidas (tios, avós), e outros mais.

No entanto, para que possamos nos aprofundar no entendimento da


parentalidade e mesmo desse papel alocado às mulheres, necessitamos
realizar um recuo temporal que possibilite olhar para os processos sócio-
históricos que circunscrevem os cuidados com as gerações futuras.

Uma das etapas fundamentais para a compreensão histórica das funções


alocadas nas mulheres reside na transição do feudalismo para o capitalismo
(modernidade), isto é, o momento de declínio das atividades agrícolas nos
feudos europeus para o recrudescimento do comércio mercantil e urbano
protagonizado pela burguesia. Nesse momento que ainda hoje movimenta
importantes debates historiográficos, há também a gênese de uma pujante
forma de pensamento e concepção artística, o renascimento, que valorizou
a antiguidade clássica e rompeu com os valores do mundo medieval. Embora
entendido como época de luminosidade das criações humanas, é também
durante o renascimento que as conhecidas caça às bruxas atingem seu auge,
isto é, nunca haviam sido queimadas tantas mulheres em praça pública até
aquele momento.

A aproximação entre as mulheres e qualquer estereótipo de bruxaria, no


entanto, afirma a intolerância moderna a diferentes práticas culturais e
religiosas que não o protagonismo da igreja católica. Sob essa perseguição
que tem um plano de fundo econômico, artístico e epistêmico, os laços
afetivos, as práticas sociais e de solidariedade entre mulheres foi entendida
como ameaça, a ponto de serem rompidas em detrimento do isolamento
das funções que elas poderiam ter na nova realidade que se desenhava.
Aliás, é importante frisar que a cisão imposta ao corpo feminino também
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é fragilização de domínios coletivos do mundo reprodutivo, dos rituais de


cuidado das gestantes e do trabalho consciente do corpo, como demonstra a
filósofa italiana Silvia Federici.

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O ponto nuclear, portanto, está em como os valores modernos espelharam


um prejuízo às mulheres pela restrição de sua humanidade. Mais do que
isso, é também nesse período que surge uma outra chave fundamental para
o debate da parentalidade: a ideia de infância. Essa noção de que há um
período de proteção anterior a vida adulta não é natural, já que relacionada
com eventos históricos sobre os quais a manutenção e legado da família
portuguesa tem papel central. Ou seja, pela consonância entre os papeis
destinados as mulheres, a emergência da infância e a centralidade da
família burguesa na nova ordem econômica e de pensamento; passou-se a
concretizar uma forma de agir que tem na mãe biológica a figura modelo e
única de cuidado com os filhos e o futuro da comunidade.

Aliás, uma vez que as mulheres são entendidas como figuras únicas de
dedicação, atenção, desenvolvimento e cuidado com os filhos, cresce
em conjunto o referencial de instinto materno, aquelas características
que, em suma, seriam exclusivas das mães biológicas, cujo aprendizado
ou compartilhamento com outros sujeitos também seria impossível. Ainda
que constantemente comentado, o instinto materno também é fruto desse
conjunto de leituras que avaliam o papel de cuidado solitário às mulheres,
pois o desenvolvimento de teorias ou argumentos científicos que o comprove
é decorrente da pressuposição do papel de liderança feminina em relação
ambiente de criação dos filhos. Ampliando o escopo, o instinto materno
seria um mito amparado pela ciência para justificar uma mudança social mais
intensa.

Para que entendamos os contingentes ligados a parentalidade e


perinatalidade por meio da psicanálise, portanto, é fundamental que os
conflitos do tecido social, da cultura, da história e de outros campos
disciplinares, sejam mobilizados numa análise plural e atenta com a
transformação. Sem munir-se de repertórios outros, a clínica psicanalítica --
atravessada pelas dinâmicas da sociedade e do tempo – sozinha não seria
capaz de minimizar ou evitar o prosseguimento dos muitos mal estares que
envolvem a vida de qualquer tipo de cuidador.
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PARTE TRÊS

Assentamento (2013) - Rosana Paulino

“Depois que um corpo


comporta
outro corpo

nenhum coração
suporta
o pouco”
Casa do Saber

“Dois em um”
Alice Ruiz

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São bastante comuns em nossa cultura as celebrações em torno do parto.


Se pensarmos rapidamente, provavelmente nos lembraremos de algum filme,
novela ou série em que uma pessoa grávida ocupa as salas de cirurgia de
um hospital, onde inúmeros médicos a atendem enquanto seu companheiro
espera que o filho nasça, consagrando um instante de alegria e emoção
comuns.

O processo de idealização e celebração da perinatalidade tem custos altos


para quem vive este período de intensa reelaboração psíquica. Uma vez
estabelecidas e romantizadas as expectativas da gravidez, os sujeitos as
assimilam como realidade, pressupondo uma experiência que deverá ser,
necessariamente, igual ou maior àquela sonhada; contudo, ao vivenciar
situações diferentes das imaginadas ou cobradas pela cultura, a partir
do parto a(o) gestante se vê sem repertórios comparativos concretos, o
que motiva um estranhamento particular em que suas experiências não
encontram lastro ou enraizamento no discurso social. Diante das dificuldades
causadas pelo estranhamento, tristeza e luto pelas expectativas frustradas,
não é incomum, por exemplo, a medicalização das(os) parturientes, a fim
de que reajam contra qualquer sentimento falsamente compreendido como
incompatível com as idealizadas glórias do parto.

Essa ação da cultura contra um(a) parturiente em sofrimento é marca


narcísica de uma coletividade que se projeta tanto no bebê, quanto em quem
o pare. Nesse mecanismo, a mãe do bebê seria uma síntese de nossas mães,
enquanto o filho corresponderia a um espelho de nós mesmos. O limbo entre
o ato do parto e a criação de vínculos afetivos com o(a) nascido(a) faz com
que questionemos se também nossas mães, em alguma proporção, nos
rejeitaram. Ou seja, por qualquer indício de recepção negativa da criança
recém-nascida abrimos a possibilidade de aceitar que, talvez, também
sejamos vítimas de uma pessoa insuficiente.

O comportamento narcísico não tange apenas os gestos externos, mas


os de constituição do bebê. Frente a um adulto que o visualiza não como
par igualitário, mas como nascido que exige amor, cuidado, atenção e
investimento para construir o futuro, o bebê se espelha-se pouco a pouco
no outro e conhece a si mesmo numa experiência de júbilo compartilhada
entre o olhar do cuidador e seus próprios olhos. É essa constituição narcísica
que o insere como estranho num espetáculo idealizado, a ponto de fraturar
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com incerteza um sonho depositado pelos cuidadores e, em certo grau,


pela sociedade. Somente a partir desse estranhar-se, desse descompasso

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ambivalente entre proximidade e afastamento, idealização e realização


que gestantes e gestados podem tornar-se autônomos, individuais e,
possivelmente, fraternais.

A gestação é, assim, processo completamente narcísico mediado pela


cultura, já que o que está em jogo é a tentativa a construção do outro e a
partir de si mesmo, numa fantasia de constituição que toma como referências
os desejos, valores, imaginações e ambições pessoais.

É curioso destacar que mesmo a gestação tomando a si e a coletividade


como ponto de partida, ela coloca uma camada outra de responsabilidade
sobre os nascidos: o papel de substituto de gerações. O nascimento
pode ser visto como a confirmação do envelhecimento dos pais e de toda
uma geração, num processo de reposição e substituição acompanhado
pela chegada do novo que empurra os demais à finitude. Não à toa, a
concretização da longa espera da perinatalidade é permeada de uma
equação complementar de amor e ódio, em que se espera que o sujeito
gerado seja perfeito a ponto de materializar uma força quase divina na qual
os cuidadores se apoiam quando enxergam-se como criadores de vida. Aqui
uma palavra deve ser destacada para circunscrever esse desejo único que
seria capaz de oferecer um legado de nós mesmos ao futuro: a sensação de
onipotência.

Por outro lado, se a onipotência dos pensamentos eleva o desejo humano


sobre os filhos para um grau elevado, sua concretização com a chegada
dos bebês é prova cabal de uma criação com imagem e semelhança do
que somos. Dessa maneira o estranhamento entre filhos e cuidadores é
preenchido de esperança, mas expõe a crua realidade que nos acompanha
durante toda a vida, o completo oposto das forças criadoras, a angústia da
impotência.
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PARTE QUATRO

Hospital Henry Ford (1932) - Frida Kahlo

“Refleti: preciso ser tolerante com os


meus filhos. Eles não têm ninguém no
mundo a não ser eu”
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Carolina Maria de Jesus

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A chegada de um bebê é sempre carregada de expectativas, sejam elas


positivas ou não, de modo que o ato de gestar e parir uma criança envolva
pensamentos, pressuposições e mudanças no corpo de quem gesta e nos
comportamentos das pessoas que se colocam entorno da(o) gestante. O
ponto central, contudo, é que este período posterior a gravidez – o puerpério
– se compõe de um conjunto de fenômenos que orbitam uma possível volta
à normalidade. No entanto, há como retornar para uma vida pré-gravidez ou a
chegada dos bebês impõe uma transformação radical no que somos?

Essa centralidade da do puerpério faz com que precisemos observá-lo


como momento multidimensional de tensões entre as esferas individuais,
familiares, institucionais, sociais e até mesmo culturais, no sentido mais
amplo da palavra; e não como evento isolado. Na medida em que o puerpério
coloca frente a frente a materialização de uma expectativa e alguém ainda
desconhecido, ele mostra um limite das idealizações experenciadas durante
a gestação, ou seja, faz do bebê uma figura de renovação e possibilidade de
futuro que substituirá toda uma geração anterior. Fruto de um gesto muitas
vezes visto como onipotente – a criação de vida – o puerpério também nos
deixa em contato com o abismo da finitude. Os bebês chegam para substituir
os que falecem.

É curioso destacar, porém, que por meio desta nova relação cria-se uma
ambivalência que permeia o nascimento dos bebês e a própria existência
humana: a duplicidade amorosa. Ainda que determinado pelo investimento
de energia e encanto, o amor faz sofrer pela possibilidade de falta ou perda
da figura amada. Ou seja, ele é eminentemente ambivalente e neste caso não
diz respeito apenas a quem pare, mas também a quem nasce e a coletividade
que se vê emocionada pelos recém-chegados.

Se há uma ambivalência envolvida com o nascimento, assim como uma


projeção de futuro e visualização de finitude, não são incomuns as
competições geracionais entre os sujeitos que experenciam este novo
momento da vida. Aliás, não se trata apenas de sujeitos, mas sim de toda
cadeia que o fenômeno do puerpério mobiliza: as tradições, as instituições,
a família e outros. Entre bebês, pais, avós, irmãos e cuidadores, criam-se
relações de competitividade e busca por protagonismo, um duelo pendular
que ora acata a mudança, ora reage a perda de eventuais posições de poder.
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A competição com os filhos seria, de certa forma, um deslocamento de


perdas e ganhos necessários para a adequação a uma realidade alterada

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após o fim do ciclo gravídico-puerperal. Esse processo pressupõe um luto


que não é apenas unilateral, mas sim dual, envolvendo memórias, aquisições,
experiências sensoriais e contatos plurais de gestantes e gestados.

Ainda que ancoradas em necessidades e aspirações coletivas, a chegada


dos bebês não é tomada por índices restritos de sobrevivência da espécie,
pelo contrário, ela é abundante e por isso caminha na contramão das
expectativas sociais dos sujeitos. Esse conflito que muitas vezes é esperado
ou desejado, porém, realça concorrências e competitividades que sintetizam
sentimento de perda para quem gestou, daí que ter filhos expõe tensões
extraordinárias ao ato de gestar e parir em si, como a dessexualização da
mulher e as transformações médicas sobre seu corpo (o conhecido ponto
do marido talvez seja um dos exemplos mais invasivos), a perda da imagem
corporal e da sensação de juventude, a diminuição da frequência sexual no
casal, as dificuldades no trabalho, entre outros.

Aliás, um marco da composição cultural e que envolve o fenômeno do


puerpério está no desejo de reinserção imediata da puérpera no mercado
de trabalho. Valor principal de reconhecimento narcísico e social em nossa
sociedade, o trabalho é visto como polo de oposição a invisibilidade do
cuidado com os filhos e a infância, a ponto de se tornar um dilema de escolha
difícil para o sujeito que gesta, uma vez que exige a harmonia entre dois polos
quase inconciliáveis: o cuidar da próxima geração (privado) e as obrigações
do mercado (público).

Do ponto de vista histórico, porém, a compreensão sobre o dilema


entre cuidar das próximas gerações e adequar-se ao mundo do trabalho
remete ao renascimento e traz uma discussão sobre o papel da mulher na
criação dos bebês, sobretudo pelo conceito do maternalismo. A partir de
uma aproximação ligada a maternidade e ao papel das mães, o discurso
maternalista tem como eixo a preocupação em como as mulheres devem
cuidar das próximas gerações. O limite dessa visão, no entanto, reside na
desresponsabilização dos homens para a criação dos filhos, isto é, a retirada
das exigências de ajuda ou colaboração masculina no desenvolvimento
das crianças. Como conceito que norteou políticas públicas, elaborações
intelectuais, estereótipos e reflexões diversas, o maternalismo ainda é
influente, mesmo após severas críticas e argumentos de feministas de
diferentes épocas.
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LIVROS
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1.
Como Criar Filhos no século XXI
por Vera Iaconelli

2.
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Bebês e suas mães


por Donald Wood Winnicott, Gilberto Safra
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3.
Calibã e a bruxa: Mulheres, corpos
e acumulação primitiva
por Silvia Federici

4.
O ponto zero da revolução: trabalho
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doméstico, reprodução e luta feminista


por Silvia Federici
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5.
Um Amor Conquistado:
O Mito Do Amor Materno
por Elisabeth Badinter

6.
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O conflito: A mulher e a mãe


por Elisabeth Badinter
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Gênero
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Laço
Casa do Saber

por Daniela Teperman, Thais Garrafa,


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10.
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Mães arrependidas
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11.
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(2008, Alemanha)

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Tudo Sobre Minha Mãe


(1999, Espanha)
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Juno
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(2016, Brasil)
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Central do Brasil
(1998, Brasil)

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(2015, EUA)
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9.
The Mask You Live In
(2015, EUA)

10.
Casa do Saber

Que Horas Ela Volta?


(2015, Brasil)
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A CURADORIA RECOMENDA:

VÍDEOS
Casa do Saber
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A FAMÍLIA COMO FETICHE
Maria Homem

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2.
CONSERVADORISMO,
RUPTURAS E NOVAS
CONFIGURAÇÕES DE FAMÍLIA

Belinda Mandelbaum

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3.
O MITO DO AMOR PARENTAL
Maria Homem

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Casa do Saber

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4.
A SUBJETIVIDADE E A
EVOLUÇÃO DO SIGNIFICADO
DE FAMÍLIA
Andréa Pachá

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5.
PSICANÁLISE E
PARENTALIDADE
Vera Iaconelli

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6.
QUEM PODE SER MÃE E
QUEM PODE SER PAI?
Vera Iaconelli

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Casa do Saber

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7.
AMOR E DESAMOR
NA PANDEMIA

Vera Iaconelli e Mario Vitor Santos

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8.
LIVE UNESP -
PARENTALIDADE E MAL-ESTAR
CONTEMPORÂNEO
Vera Iaconelli

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Casa do Saber

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