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TERAPIA DE CASAIS E FAMÍLIAS

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Sumário
Introdução ................................................................................................ 2

Um Esboço Histórico Conceitual da Psicoterapia de Casal ..................... 5

Fase do Aconselhamento Matrimonial ..................................................... 6

Contribuições da Psicanálise ................................................................... 9

Contribuições da Terapia de Família à Terapia de Casal ...................... 14

Transformação das Relações Familiares: Antes e Depois da Modernidade


......................................................................................................................... 16

Modelos de Família e Intervenção Terapêutica: Relato dos Terapeutas de


Família ............................................................................................................. 21

Bibliografia ............................................................................................. 27

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Introdução

Figura 1

A Terapia familiar, muitas vezes associada à sua variante de terapia de


casal, e conhecida como terapia familiar sistêmica — devido à sua origem no
seio do Modelo Sistêmico —, é um tipo de terapia que se aplica a casais
ou famílias, onde os membros possuem algum nível de relacionamento. A terapia
familiar sistêmica tende a compreender os problemas em termos de sistemas de
interação entre os membros de uma família. Desse modo, os relacionamentos
familiares são considerados como um fator determinante para a saúde mental e
os problemas familiares é vistos mais como um resultado das interações
sistêmicas, do que como uma característica particular de um indivíduo.

Os terapeutas familiares costumam orientar o seu foco de intervenção


mais para o modo como os padrões de interação sustentam um problema, do
que propriamente para a identificação das suas causalidades. Considera-se que
a família como um todo é maior do que a soma das partes.

Teve como criadora e maior expoente, a terapeuta norte-americana,


Virgínia Satir. Ela, juntamente com Fritz Perls e Milton Erikson, teve seus
atendimentos gravados com microcâmaras e posteriormente suas estratégias
terapêuticas, padrões de interação minunciosamente estudados por Richard
Bandler e John Grinder, até que os dois pudessem decifrar suas hábeis
estruturas.

Desta forma, o modelo sistêmico se tornou uma das bases filosóficas do


que viria a se tornar a Programação Psicanalítica.

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A denominada terapia familiar sistêmica recebeu influência,
predominantemente, da teoria geral dos sistemas (TGS) e da teoria da
comunicação. No que se refere à TGS foi desenvolvida pelo biólogo austríaco
Von Bertalanffy a partir da década de 20 e postula que em toda a manifestação
da natureza há uma organização sistêmica, que pressupõe não apenas um
aglomerado de partes, mas sim um conjunto integrado a partir de suas interações
(OSÓRIO, 2002; LOPEZ e ESCUDERO, 2003).

As propriedades do sistema que podem ser observadas na família são:


totalidade, causalidade circular, equifinalidade, equicausalidade, limitação,
regras de relação, ordenação hierárquica e teleologia. A propriedade de
totalidade considera que o entendimento de uma família não se constitui apenas
pela soma das condutas de seus membros, mas sim pela compreensão das
relações entre eles. A causalidade circular descreve as relações familiares como
recíprocas pautadas e repetitivas, de forma que a resposta de um membro A
para a conduta de outro membro B é um estímulo para que B dê uma resposta
que pode servir de estímulo para A.

No que se refere à equifinalidade, entende-se que um sistema pode


alcançar o mesmo estado final a partir de condições iniciais distintas, o que
dificulta buscar uma única causa para o problema.

A equicausalidade significa que a mesma condição inicial pode resultar


em estados finais diversos. Estas duas propriedades equifinalidade e
equicausalidade estabelecem a conveniência de abandonar a busca de uma
causa passada originária do sintoma e centrar-se no aqui e agora, nos fatores
que estão mantendo o problema.

Em relação à limitação, entende-se que quando se adota uma


determinada sequência de interação, a probabilidade de que o sistema emita
uma resposta diversa é diminuída, de modo que, se esta for uma conduta
sintomática, ela tende a converter-se em patológica porque contribui para manter
o problema.

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As regras de relação definem a interação entre seus componentes e a
maneira que as pessoas enquadram a conduta ao comunicar-se entre si.

A ordenação hierárquica postula que em toda a organização há uma


hierarquia, na qual certas pessoas possuem mais poder e responsabilidade do
que outras. Na família, além do domínio que uns exercem sobre os outros, é
inerente a ajuda, a proteção e o cuidado que oferecem aos demais, sendo que
há uma relação hierárquica entre as pessoas e também entre os subsistemas.
Por fim, teleologia significa que o sistema familiar se adapta às diferentes
exigências dos diversos estágios de desenvolvimento a fim de assegurar
continuidade e crescimento psicossocial a seus membros (OCHOA DE ALDA,
2004).

Por outro lado, os estudos sobre comunicação foram iniciados pelo


biólogo e antropólogo norte-americano Gregory Bateson na década de 50,
identificando uma relação entre a patologia comunicacional e a gênese da
esquizofrenia. Ele passou a perceber que a sequência de situações
ambivalentes e confusas poderia levar à desestruturação esquizofrênica, por
conta da falha nos padrões comunicacionais, ocasionando conflitos internos
(OSÓRIO, 2002).

Desse modo, propôs-se evitar os conceitos psicológicos tradicionais,


baseados no indivíduo e sugerir uma compreensão da doença como relacional
(FÉRES-CARNEIRO e PONCIANO, 2005). O trabalho de Bateson foi essencial
para o desenvolvimento das noções sistêmicas em relação ao comportamento
do indivíduo.

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Um Esboço Histórico Conceitual da Psicoterapia de
Casal
A história da Terapia de Casal apresenta diferentes inícios, de acordo
com o critério de corte adotado por diferentes revisores. Os trabalhos de
pioneiros como C.C. Jung que escreveu no contexto de sua obra, já no início do
século XX, sobre aspectos ligados ao relacionamento conjugal, e pesquisaram
aspectos ligados à transmissão transgeracional de complexos inconscientes,
podem ser adotados como ponto de partida (Jung, 1977; Clarck, 1993). Porém,
esta contribuição não é sequer mencionada pela maioria dos revisores.

No entanto, todos apontam para as contribuições ocorridas no início do


século XX, nos EUA, como significativas. Tal posição parece dever-se ao fato de
que a maior parte das escolas de Terapia de Casal ter surgido, nos EUA, durante
o século XX. Gurman e Fraenkel (2002) incluem em sua revisão o período do
Aconselhamento Matrimonial que, por sua natureza peculiar, oferece campo
para divergências como antecedente ou mesmo membro da tradição da
Psicoterapia de Casal. Seguiremos o esquema de interpretação de Gurman e
Fraenkel (2002), para os quais a história do Aconselhamento Matrimonial é a
primeira fase, no sentido histórico, sendo a de menor contribuição teórica e
metodológica, mas que respondeu de maneira algo ingênua, à demanda por
tratamento psicológico das relações conjugais.

Figura 2

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Fase do Aconselhamento Matrimonial
Broderick e Scharder (1991), ao traçarem a história do Aconselhamento
Matrimonial, identificam quatro estágios:

A primeira fase, que vai de 1929 até 1932, e que chamam


de “Estágio do Pioneirismo”, começa com a fundação de
três maiores Institutos Clínicos de Aconselhamento
Matrimonial de 1929 a 1932, embora já houvesse a prática
pelo menos cinco anos antes. Nesta fase predominava
uma abordagem a-teórica de profissionais de diferentes
formações, guiados pelo “bom senso”. Broderick e
Scharder (1991) descrevem os primeiros conselheiros
matrimoniais como um grupo mais ou menos ingênuo de
profissionais, para os quais o Aconselhamento Matrimonial
representava uma atividade auxiliar de sua principal
profissão.

Eram clérigos, médicos, educadores, que procuravam auxiliares,


eminentemente de forma preventiva, os jovens casais a lidar com as dificuldades
e ajustamentos da vida conjugal. Na maior parte das vezes, suas intervenções
visavam ao esclarecimento das realidades biológicas, da vida a dois, além de
fornecerem admoestações e conselhos sobre a necessidade de seguir os papéis
conjugais, conforme o esperado pela sociedade. Não havia, de fato, nenhuma
pretensão de ver esta atividade como ligada à área de saúde, nem tampouco a
preocupação com a formação dos profissionais para lidar com problemas
conjugais mais graves ou quadros psiquiátricos.

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A abordagem dos conselheiros era muito focal, de curto prazo e
essencialmente pedagógica. O modelo clínico envolvia o atendimento aos
casais, mas em sessões em separado, e raramente ocorria atendimento
conjunto ao casal (Barker, 1984). A segunda fase, que vai de 1934 a 1945,
nomearam de “Estágio do Estabelecimento” assinalado pela formação da AAMC,
“American Association of Marriage Counselors”. A fundação de centros de
treinamento e da AAMC, tornaram-se importantes fatores tanto para melhoria da
formação, como da busca por melhor qualificação profissional. No entanto, o
modelo de atendimento permaneceu o mesmo.

A terceira fase, que iria de 1946 a 1963, foi considerada por Broderick e
Scharder (1991) como o “Estágio de Consolidação”, levando ao reconhecimento
oficial da profissão em 1963. A quarta fase foi de 1964 até 1981sendo o estágio
de “Formação” caracterizado pelo que L’abate e MacHenry (1983) classificam
como período de “intenso crescimento, clarificação de padrões e competências”.
Entretanto, Gurman e Fraenkel (2002) discordam quanto ao término deste
período em 1981, propondo na classificação de sua revisão, realizado em 2002,
o término deste período em 1978.

Este seria marcado com o fim do termo “Aconselhamento Matrimonial”,


como assinalado pela mudança da então AAMFC “Americam Association for
Marriage and Family Conseling”, para AAMFT “Americam Association for
Marriage and Family Therapy”. Do ponto de vista do formato do tratamento, o
modelo de atendimento individual predominou até a década de mil novecentos e
sessenta. Michaelson (1963) estimava, a partir de relatos de casos de três
centros de Aconselhamento Matrimonial que, nos anos quarenta, cerca de
apenas 5% dos atendimentos ocorreram com a presença de ambos os cônjuges.

Este número sobe para 9% na década de cinquenta até atingir 15%, nos
início dos anos sessenta. Apenas no final da década de sessenta é que a
entrevista conjunta passou a ser predominante na prática clínica,
aparentemente, pela influência de profissionais de outras formações que
praticavam a Terapia de Casal (Gurman e Fraenkel, 2002).

O modelo de tratamento dominante do Aconselhamento Matrimonial


sofria o que Olson (1970) classificou como séria ausência de princípios testados

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empiricamente. E sem uma teorização derivada desta fundamentação não era
possível operar na clínica de modo consistente. Broderick e Schrader (1991)
notam ainda que, durante o período de predomínio da abordagem do
Aconselhamento Matrimonial, havia uma ausência de qualquer compromisso
com qualquer filosofia clínica em particular, o que levou Manus (1966) a declarar
que “o Aconselhamento Matrimonial era simplesmente uma técnica em busca de
uma teoria”.

Assim, durante este período a situação, do ponto de vista clínico, parecia


oferecer uma grande dificuldade, pois de um lado ocorria um aumento
significativo de demanda por atendimento a casais, por outro, havia uma
ausência de teoria psicológica que fundamentasse modelos que respondessem
a estas demandas da prática clínica.

Alguns conselheiros matrimoniais buscaram a abordagem psicanalítica


como resposta. Porém, esta era uma
Figura 3
teoria que oferecia um modelo
eminentemente individual, levando a
conclusão de que “... se a terapia
progride fatores inconscientes são
descobertos... e o caso cessa de estar
no campo do aconselhamento
matrimonial” (Laidlaw, 1957). Esta afirmativa revela o pouco espaço teórico e
prático existente para a clínica do Aconselhamento Matrimonial, e também
aponta para uma das questões que seriam fatores para a sua dissolução em
1978 (Gurman e Fraenkel, 2002). Gurman e Fraenkel (2002) consideram
compreensivo que o Aconselhamento Matrimonial tenha adquirido um traço
psicanalítico, pois a Terapia Sistêmica de Família estava, nos anos sessenta,
ainda no berço e não ganhara credibilidade social.

E o grande grupo de profissionais ligados ao Aconselhamento


Matrimonial, à medida que as relações conjugais tornaram-se objeto de estudo
e intervenções cientificamente importantes, perdiam gradativamente prestígio e
campo de atuação. Assim, após a Segunda Grande Guerra, estes profissionais
procuraram ligar-se ao mais prestigioso grupo de prática clínica que, nesse
período, era a Psicanálise.

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Este movimento apresentou, contudo, consequências imprevistas, pois o
campo da Terapia Sistêmica de Família, ao emergir, apesar de muitos de seus
primeiros líderes e fundadores possuírem formação e treinamento formal em
Psicanálise, colocou-se em uma posição radicalmente crítica quanto à
abordagem psicanalítica, criticando seu modelo e sua compreensão altamente
individual.

Cabe notar que o Aconselhamento Matrimonial não produziu nenhum


teórico de peso nos seus primeiros anos e, ao ligar-se ao movimento
psicanalítico que declinava frente à emergência de outras abordagens,
desapareceu no final dos anos setenta. O mesmo não ocorreu com o
pensamento psicanalítico que, embora tenha vivido um período de retraimento
teórico e na prática do campo de atendimento a casais, ressurgiu com
importantes contribuições na década de oitenta (Gurman e Fraenkel, 2002).

Contribuições da Psicanálise
As contribuições do pensamento psicanalítico à Terapia de Casal podem
talvez for divididas em três períodos, segundo as tendências metodológicas,
teóricas e contribuições técnicas (Gurman e Fraenkel, 2002). O primeiro período
vai da década de 1930 até a década de 1960, sendo caracterizado por
experimentações e aplicação dos princípios e técnicas psicanalíticas tradicionais
à situação de tratamento do casal.

Ocorre, em um segundo período, que vai da metade da década de 1960


até a década de 1980, um arrefecimento do interesse na aplicação da psicanálise
à situação conjugal. Por um lado, devido às criticas do próprio movimento
psicanalítico ao uso da psicanálise em situações não tradicionais, e, por outro,
devido ao interesse despertado pelo movimento de Terapia Sistêmica de
Família, que elaborou fortes críticas à abordagem psicanalítica, considerando-a
excessivamente personalista e voltada ao intrapsíquico. Apenas a partir da
década de 1980 observamos o aparecimento de um interesse renovado na

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abordagem psicanalítica, caracterizando um novo período que se estende até os
dias de hoje.

No entanto, importantes contribuições foram feitas pelos pioneiros em


suas tentativas de responder à demanda crescente de atendimento por parte dos
casais. As intervenções psicanalíticas de casal desenvolveram-se de modo
autônomo em relação ao Aconselhamento Matrimonial. É importante notar que,
neste período, apenas psiquiatras eram admitidos como psicanalistas.

Assim, um grupo de profissionais interessados em responder à demanda


das dificuldades conjugais, incluindo problemas psiquiátricos, e insatisfeitos com

Figura 4 os resultados do método analítico


tradicional, iniciou uma série de
experimentações e modificações na técnica, de um modo algo ambivalente.
Aparentemente a questão era: como fazer tratamento em casais com uma
técnica desenvolvida e voltada para o
individuo? A seleção do parceiro na
formação do casal e fatores que
levavam à manutenção das relações
conjugais, mesmo em situações de
extremo estresse, já despertava o
interesse de psicanalistas neste
período.

Obernoff (1931) apresentou um trabalho sobre a Psicanálise de Casais,


descrevendo a relação das neuroses na formação do sintoma do casal. Anos
depois, em 1938, Obernoff apresentou um artigo sobre Psicanálise Conjugal
Consecutiva na qual a análise de um dos esposos começava quando terminava
a do outro. Mittelman (1948) propôs outro enfoque ao descrever o tratamento
conjugal como processo de análise individual concomitante de ambos os
esposos pelo mesmo analista.

Essas abordagens despertaram, obviamente, críticas e restrições, pois


contrariavam dramaticamente o método tradicional, no qual, qualquer contato
com qualquer membro da família, deveria ser evitado, sob pena de
“contaminação” da transferência Greene (1965). Mittelman (1948) foi ainda mais

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longe, ao realizar, provavelmente, primeira sessão de casal conjunta na
abordagem psicanalítica, motivado pela diferença das histórias dos casais, que
não combinavam em aspectos significativos (Sager, 1966).

Embora essa intervenção tenha sido considerada, teoricamente,


incorreta para a abordagem psicanalítica e, politicamente, incorreta para o
período, revela a essência da hipótese que guiava a intervenção nos casais; era
tarefa do terapeuta destacar e corrigir as percepções distorcidas de ambos os
cônjuges, permitindo uma relação liberta da irracionalidade. Assim, caberia ao
analista decidir ou auxiliar na decisão do que era “mais racional”. Mesmo
Mittelman (1948) sentia-se ambivalente quanto a sessões conjuntas e acreditava
que este método só deveria ser usado em casos específicos, que atingiriam não
mais que 20% das situações, e que os demais seriam mais beneficiados com
análises em separado com diferentes analistas.

Outras cautelosas experimentações ocorreram durante o final da década


de 1950 e inicio da década de 1960, mas, como nota Sager (1966), “estas
contribuições não evidenciavam nenhum desenvolvimento significativo da
teoria”. De fato, envolviam propostas de diferentes formatos para terapia, como
a “Terapia Colaborativa” na quais dois analistas atendiam o casal, comunicando-
se sobre os processos, com o objetivo de manter o casamento (Martim, 1965).

Tratamentos combinados também foram propostos com sessões


conjuntas, com sessões individuais e de grupo com vários propósitos e
combinações (Greene, 1965). É importante notar que nos métodos de
tratamento conjugal psicanalítico conjuntos a visão individual prevalecia, embora
desafiando a aderência aos métodos clássicos como a livre associação e a
análise dos sonhos. A análise da transferência continuou como instrumento
central do trabalho terapêutico, ampliada para incluir a transferência recíproca
entre os cônjuges e a importância do “real” (Greene, 1965; Gurman e Fraenkel,
2002).

Durante a década de 1960 ocorreu uma mudança na abordagem


psicanalítica de casal, prevalecendo à realização de sessões conjuntas, no
entanto, esta transição não foi feita sem ambivalência. Watson (1963), por
exemplo, recomendava, em um artigo sobre o tratamento conjunto do casal, a

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realização de duas ou três sessões de anamnese com cada um dos cônjuges
antes da realização de sessões conjuntas. Tal prescrição seguia o pressuposto
da necessidade do analista compreender o modo de conexão e sistema
comunicativo do casal, bem como seus padrões de homeostase.

Estes deveriam ser apreciados através de uma cuidadosa avaliação dos


aspectos psicodinâmicos e desenvolvi mentais de cada um dos cônjuges
individualmente. A abordagem psicanalítica de casal começava a emergir
oferecendo hipóteses que orientaram o campo, como aponta Manus (1966); “A
mais influente hipótese é que o conflito conjugal é baseado na interação
neurótica dos parceiros... um produto da psicopatologia de um ou ambos os
parceiros”.

Leslie (1964), em um artigo clássico dos anos de 1960, coloca que a


técnica central de trabalho com casais era a identificação de distorções nas
percepções mútuas dos parceiros, na transferência e contratransferência, e sua
correção, permitindo a plena manifestação do conflito na sessão e sua direta
alteração.

Mesmo com o aumento e prevalência de métodos de abordagem


conjunta do casal, a visão teórica e as técnicas terapêuticas permaneceram sem
maiores mudanças. A ênfase ainda era na interpretação das defesas, que agora
incluíam as defesas do casal além das individuais, o uso das técnicas de
associação livre realizada conjuntamente pelo casal, e análise dos sonhos, que
agora incluíam além das associações individuais, as associações do cônjuge
(Sager, 1967; Gurman e Fraenkel, 2002).

Sager (1967b), um dos mais influentes terapeutas de casal do período,


ilustra bem esta ambivalência ao escrever: “Eu não estou envolvido
primariamente em tratar desarmonias conjugais, que são um sintoma, mas em
tratar os dois indivíduos no casamento”. Esse autor (Sager 1967) ainda
mantinha-se ligado à perspectiva tradicional psicanalítica, com forte ênfase nos
processos de transações transferenciais trianguladas e na atenção aos
elementos edípicos. Mas, no mesmo ano, ele escrevia sobre os riscos do
terapeuta envolver-se em diálogos com os cônjuges que, ao tentarem falar
apenas com o terapeuta evitariam o diálogo com o parceiro.

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Sager (1967) apontava a importância de o terapeuta evitar assumir um
lugar onipotente e encaminhar a sessão para que os cônjuges, ao dialogarem,
desenvolvessem suas próprias e criativas soluções. Essa ambivalência técnica
refletia uma ambivalência teórica ainda maior para os psicanalistas do período.
O lugar central daquilo que tradicionalmente seria o caráter distintivo da
Psicanálise, ou seja, a análise da transferência.

Skynner (1980), ao avaliar a produção do período, uma década mais


tarde, influenciado pela escola das relações objetais nota que a abordagem
psicodinâmica parece ter perdido o seu caminho, na identificação das técnicas
indutoras de mudança do casal, ao focar de modo inapropriado o conceito de
transferência, e as técnicas interpretativas. Retrospectivamente notou que, na
abordagem psicanalítica de casal, os conflitos inconscientes deveriam ser
considerados presentes e totalmente desenvolvidos em padrões projetivos. E
que esses poderiam ser mais bem trabalhados diretamente do que através de
métodos indiretos como a interpretação da transferência.

A ambivalência em relação ao núcleo central da teoria psicanalítica


parecia não oferecer, no final da década de 1960, uma saída simples para o
impasse teórico e técnico levando a uma diminuição temporária de interesse na
abordagem psicanalítica. Essa sofreu, ainda na década de sessenta, fortes
críticas das escolas de Terapia de Família, que começavam a expandir o seu
movimento. Como notam Broderick e Scharder (1991), o artigo de Sager (1966)
sobre uma revisão histórica do desenvolvimento da Terapia de Casal de
orientação psicanalítica “parece ser o verdadeiro zênite de seu desenvolvimento
independente”.

A ausência de desenvolvimentos teóricos e técnicos próprios e as fortes


críticas, tanto da Psicanálise mais ortodoxa como da abordagem da Terapia de
Família, levaram a um período de declínio de interesse na Terapia Psicanalítica
de Casais. Apenas na década de 1980, com importantes mudanças teóricas e
novas metodologias, é que surgiu um novo interesse na aplicação do enfoque
psicanalítico à clínica da conjugal idade (Gurman e Fraenkel, 2002).

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Contribuições da Terapia de Família à Terapia de
Casal
Durante as décadas de 1950 e 1960, outro paradigma desenvolveu-se a
partir de estudos, reflexões e novas descobertas que colocavam novos enfoques
sobre a questão das “patologias psicológicas”. Estudos pioneiros como de
Bateson, Haley, Weakland (1956), Lidz (1958), Wynne (1958), Lang e Esterson
(1964) criaram, juntamente com o desenvolvimento de novas abordagens
teóricas e metodológicas (Bertalanffy, 1968), um novo campo de estudo e
intervenção: a Terapia Sistêmica de Famílias (Foley, 1985). Os estudos de
Wynne (1958), Lidz (1958) e Lang e Esterson (1964) colocaram em relevo o
envolvimento da família na esquizofrenia.

Estes trabalhos parecem ter se inspirado no, hoje, clássico estudo


Toward a theory of esquizofreny de Bateson, Jackson, Haley, Weakland (1956),
no qual apresentaram pela primeira vez a teoria do duplo vínculo, e nos estudos
sobre família e doença mental, que concluíram pelo envolvimento da estrutura
familiar na emergência e manutenção da psicopatologia (Foley, 1995). Todos
estes autores desenvolveram, independentemente, a partir de pesquisas
próprias, envolvendo a observação de famílias com membros “portadores de
esquizofrenia”, conceitos teóricos, que apontaram para a possibilidade e
necessidade de intervenções, não no individuo como membro, mas na família
como campo de tratamento (Foley, 1995; Féres-Carneiro, 1996).

É curioso notar que muitos dos pioneiros da Terapia de Família, como


Akerman, Jackson, Framo,
Bowen, entre outros, tinham
sólida formação em Psicanálise
(Foley, 1995; Féres-Carneiro,
1996). No entanto, apesar de
Figura 5
muitos autores, hoje em dia,
integrarem criativamente conceitos psicodinâmicos e sistêmicos em larga
medida, a história inicial da Terapia de Família Sistêmica foi marcada por uma
forte e, às vezes, radical discordância de muitos dos princípios aceitos da
Terapia Psicanalítica e Psicodinâmica, em especial, do foco nos aspectos

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psicodinâmicos individuais como princípios teóricos explicativos e de
intervenção.

Estas fortes críticas somadas ao interesse pela abordagem da família, e


não mais do casal, juntamente com os impasses teóricos levaram a um
esmaecimento da abordagem psicanalítica de casal. Não se tratou de fato de um
desaparecimento, pois, apesar de sua menor visibilidade em termos de
publicações, ocorreram algumas significativas contribuições como as de Framo
(1976, 1981), Paul (1969, 1975), e Sander (1979).

O pensamento psicanalítico não morreu, mas ficou fragmentado e


marginalizado pelas escolas dominantes de terapia do período. Revendo a
história do campo da Psicoterapia, talvez o evento de maior impacto, desde o
desenvolvimento da Psicanálise, seja o aparecimento do que na época, por
questionar radicalmente seus pressupostos, pareceu ser o seu maior
contraponto; a Terapia Sistêmica de Família. Como nota Fraenkel (1997):

As abordagens sistêmicas desenvolveram-se em larga


medida como uma reação às limitações percebidas nas
terapias que atribuíam as disfunções psicológicas e sociais
a apenas problemas no individual, seja este visto como de
natureza biológica, psicológica, psicodinâmica ou
comportamental.

Porém, os historiadores do período descrevem o seu surgimento como


resultado, de também, uma absorção do campo da Terapia de Casal pela
abordagem sistêmica de família. Broderick e Scharder (1991) referem-se a “uma
mistura ou amalgama das abordagens”. Nichols e Schwartz (1998) referem-se à
“Terapia de Família absorvendo a Terapia de Casal”.

E Olson (1980) concluem que “no início da década de oitenta a distinção


entre Terapia de Família e Terapia de Casal havia desaparecido”, notando ainda
que o campo havia se tornado ”unitário, mas não totalmente unificado e
integrado”. Essa situação é o reflexo da diferença conceitual e metodológica que

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separava ambos os campos e que marcou a evolução histórica de ambas as
abordagens.

Haley (1984a) revela o que pode ser visto como a dinâmica do campo,
no período, quando observa que:

“não houve uma única escola de Terapia de Família que se


originasse do grupo das escolas de Aconselhamento
Matrimonial, ou há agora”.

Transformação das Relações Familiares: Antes e


Depois da Modernidade
Houve um tempo em que as relações familiares – incluindo pai, mãe,
filhos, parentes, agregados, vizinhos, amigos, entre outros – perdiam-se em
meio a uma ampla comunidade. As relações familiares, como a do casal e a dos
pais com seus filhos, eram permeadas por relações comunitárias, consideradas
mais importantes, na maioria das vezes. Quando as relações extensas faziam
parte das relações familiares não existiam poderes especializados ou seculares,
externos a essas relações, que ditassem as normas do comportamento: os
papéis eram definidos “desde sempre”.

A comunidade de pertença não deixava dúvidas quanto ao que fazer. A


família era a sociedade, confundindo-se com ela. O indivíduo perdia sua
visibilidade em meio às relações. A hierarquia ditava as regras para as relações
familiares, e os conflitos, quando surgiam, submetiam-se ao rigor da lei. A
desobediência equivalia à exclusão e à falta de proteção, que era o mesmo que
ser entregue ao pauperismo e à morte (Ariès, 1986; Shorter, 1995).

Nessa configuração não havia necessidade de uma prática terapêutica,


conforme relatam os estudos de Costa (1989) sobre o Brasil, de Donzelot (1986)
sobre a França, e de Lasch (1991) sobre os Estados Unidos, referindo-se à
transformação das relações familiares, que na modernidade caracterizam-se
pela intervenção do Estado em aliança com especialistas da saúde. Nessa
mesma direção encontram-se os estudos de Sennett (1993) a respeito da
transformação da sociabilidade pública em domínio privado, com a consequente
psicologização das relações sociais.

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Em um momento anterior havia uma concepção particular da família: a
linhagem. Compreendida como solidariedade estendida a todos os
descendentes de um mesmo ancestral, a linhagem constituía proteção na
ausência do Estado, não levando em conta os valores da coabitação e da
intimidade. A posição social era sustentada pelo patrimônio material, pela
herança familiar (Casey, 1992). Todos os membros do grupo familiar deviam
obediência e respeito ao pai, aquele que os deveria proteger, vigiar e corrigir.
Nos séculos XVI e XVII, os “sentimentos dolorosos” e “maus” eram os
predominantes nas relações familiares, e não o amor.

De acordo com Antoine de Blanchard (apud Flandrin, 1995), eram vários


os sentimentos “maus”, como: inveja, ciúme, aversão, ódio, desejo de morte etc.
A moral caracterizava-se mais pelo pecado do que pelo amor. Podemos observar
a diferença que nos separa da antiga sociedade pela relação pais-filhos e pelos
sentimentos surgidos e expressos na
convivência doméstica: de um lado os
“maus sentimentos” gerados pelo poder
total, direito de vida e de morte, que era
concedido ao pai; de outro,
caracterizando o modelo nuclear, o
dever paterno de proteção, baseado no
Figura 6
sentimento de amor.

Na antiga mentalidade, o pai tinha todo poder sobre os filhos, como o


senhor sobre os seus escravos; eles pertenciam-lhe em propriedade plena,
porque os fizera; ele nada lhes devia. Na nossa mentalidade contemporânea,
pelo contrário, o fato de tê-los feito confere-lhe mais deveres do que direitos para
com eles. Eis uma viragem fundamental dos princípios da moral familiar
(Flandrin, 1995).

Na Europa, no fim do século XVII e início do XVIII, ocorreu uma mudança


marcante no lugar da criança e da família (Aries, 1986). A afeição tornou-se
necessária entre os cônjuges, e entre os pais e os filhos. O “sentimento de
família” nasceu simultaneamente com o “sentimento de infância”: com o objetivo
de melhor cuidar de suas crianças, a família recolheu-se da rua, da praça, da
vida coletiva, em que antes se encontrava, para a intimidade, fazendo

17
desaparecer a antiga sociabilidade. Paulatinamente, através dos séculos, o valor
social da linhagem transferiu-se para a família conjugal.

Quando essa passagem se consolidou, a família tornou-se a “célula


social”, a “base dos Estados”. A família afastou-se, assim, cada vez mais da
linhagem, da integridade do patrimônio, prevalecendo a “reunião incomparável
dos pais e dos filhos”, firmando o modelo nuclear. Passou-se a privilegiar e
marcar as semelhanças físicas entre pais e filhos, inclusive nas situações de
adoção. A criança tornou-se a “imagem viva de seus pais”.

A família assumiu uma função moral e espiritual. Os pais tornaram-se


responsáveis pela criação de seus filhos, mudando a concepção de educação
(Aries, 1986). Quanto à relação conjugal, o casal moderno pauta-se pelo
comportamento expressivo, enquanto o casal tradicional achava-se limitado aos
seus papéis, sem “procurar saber se eram felizes”.

A partir do século XVIII, porém, os jovens começaram a considerar os


sentimentos para a escolha do cônjuge, desvalorizando aspectos exteriores
como propriedade e desejo dos pais. Esta, para Shorter (1995), foi à primeira
revolução sexual. O casamento por amor só foi defendido abertamente no século
XIX, quando o essencial do capital herdado passou a ser o capital cultural: as
transformações econômicas, advindas da Revolução Industrial, permitiram as
condições materiais necessárias para uma liberação da escolha conjugal, que
não ameaçava mais o patrimônio familiar.

Shorter (1995) estuda o que chamou de um “surto de sentimento”,


ocorrido desde o século XVIII, fazendo desaparecer a família tradicional. Este
surto desenvolveu-se em três áreas: primeiramente no namoro, caracterizado
pela busca de felicidade e desenvolvimento individual; depois na relação mãe-
bebê, que passou a se caracterizar pelo bem estar do bebê acima de tudo; e por
último na mudança da relação entre a família e a comunidade circundante, na
qual os laços entre os membros da família reforçaram-se, caracterizando a
“domesticidade”.

18
O namoro transformava-se, incorporando duas características: a
substituição de um sistema de valores baseado na fidelidade, na cadeia de
gerações e na responsabilidade perante a comunidade, por um sistema de
valores baseado na felicidade pessoal e no autodesenvolvimento; e com a
possibilidade de escolha, o controle pela comunidade dos encontros dos dois
sexos cessa-se.

Esta segunda característica está ligada ao desejo de ser livre, de


desenvolver a própria personalidade e de realizar ambições pessoais. Desse
modo, na forma do amor romântico, o sentimento tomou o poder. A
espontaneidade permitiu a substituição dos roteiros tradicionais pelo diálogo, e
a empatia iniciou a quebra da divisão sexual do trabalho, modificando os papéis
desempenhados pelos sexos.

O casal afastou-se da comunidade, buscando isolar-se dos “olhares


curiosos” e investiu na “experimentação e inovação” dos “jogos do amor”
(Shorter, 1995). Só é possível entender a formação do que Shorter (1995)
denomina “domesticidade”, isto é, a “malha de privacidade e intimidade que
cerca a totalidade da família”, ao entendermos a nova relação surgida entre mãe
e bebê.

O conceito de “domesticidade” como unidade emocional, constituída pela


privacidade e isolamento da família, foi à terceira área na qual o surto de
sentimento na modernidade manifestou-se: “Os membros da família passaram a
sentir muito mais solidariedade uns com outros...” (Shorter, 1995). Nas palavras
de Sennett, a família deixou de ser vista como uma região “não pública, e cada
vez mais como um refúgio idealizado, um mundo exclusivo, com um valor moral
mais elevado do que o domínio público” (Sennett, 1993).

A família na modernidade, além de ser o lugar privilegiado para o domínio


da intimidade, é também o agente ao qual a sociedade confia à tarefa da
transmissão da cultura, consolidando-a na personalidade (Lasch, 1991). Para
realizar sua tarefa a família conta com duas fontes de tensão: uma originada da
nova relação com a infância, e a outra de uma transformação no papel da mulher.

As crianças, que ocuparam um lugar central nessa família, são da


responsabilidade dos pais, gerando sobrecarga para estes devido ao seu

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isolamento da comunidade. A mulher, ao mesmo tempo “degradada e exaltada”
nesse novo sistema familiar (Donzelot, 1986), precisava ser “educada” para criar
seus filhos, precisava ser companheira de seu marido e executar as tarefas
domésticas. Ao domesticar a mulher provocou-se uma “desordem geral”.
Surgiram aspirações ao crescimento pessoal, o feminismo.

A estas aspirações a união conjugal e a família não podiam mais


satisfazer, gerando uma crise do casamento no final do século XIX. Estas
tensões no interior da família levaram-na à busca dos especialistas, que
consideravam os pais inaptos e necessitados de suas informações. Os atos mais
íntimos passaram a ter uma publicidade sem precedentes (Lasch, 1991). Pode-
se estabelecer uma relação entre a vida familiar, baseada na intimidade, e a
noção de democracia. Hoje, pela crescente democratização das relações, a
intimidade é definida pela via do “relacionamento puro”, isto é, nada externo –
seja a comunidade ou patrimônio familiar, dentre outras possibilidades – pode
determinar o início ou continuidade de um relacionamento (Giddens, 1993).

Figura 7

O amor, vinculado ao direito de escolha, permitiu a contaminação da

família pelos valores democráticos. A diversidade estendeu-se ao casal, aos pais


e filhos, aos parentes e amigos, gerando uma multiplicação de novas relações.
Nessa nova configuração, as relações familiares baseiam-se na intimidade, na
comunicação livre e aberta, pautando-se no diálogo e na democracia. Desse
modo, novos caminhos são indicados, caracterizando o que pode ser chamado
de pós-modernidade.

20
Há um paradoxo na construção moderna da família nuclear: é uma
imposição modelar, mas não pode mais ser controlada, já que se advoga o direito
à livre escolha. A esse paradoxo segue-se outro: a liberdade é regulada pelo
saber médico-psicológico, prescrevendo as normas do comportamento de todos
os membros da família. Na convivência dessas duas alternativas, aparentemente
opostas – a do controle pelo saber especializado e a da liberdade de escolhas –
, constrói-se a possibilidade de não se seguir a um modelo único, tal qual o da
família conjugal. Surge a imprevisibilidade; surgem inúmeras configurações
familiares, ou pelo menos elas têm a liberdade de se tornarem mais visíveis do
que antes.

Supondo uma caracterização para este momento, considerado o da pós-


modernidade, a família tende a ser pautada na ideia da diversidade e da
ausência de um parâmetro norteador único. Ainda há, entretanto, uma ideia de
família determinada por valores, os quais pautam as relações, como: o
sentimento de amor, a realização pessoal na convivência com o outro
significativo, e por consequência a formação da identidade humana por meio da
filiação e da transmissão geracional.

Embora o modelo nuclear tenha sido questionado, a família não foi


substituída por nenhum outro grupo ou instituição social. Enquanto isso,
paralelamente instaura-se a exacerbação do individualismo, o que leva à
flutuação das identidades pessoais e das relações familiares.

Modelos de Família e Intervenção Terapêutica:


Relato dos Terapeutas de Família
Os relatos apresentados compõem uma parte da pesquisa empreendida
sobre a história da terapia de família no Rio de Janeiro (Ponciano, 1999). Do
conhecimento de oito terapeutas pioneiros, com as seguintes características
quanto ao aspecto da formação profissional e do gênero:

T.1 – Psicologia (1976), Mestre em Psicologia, formação em Terapia de Família


em 1987, sexo feminino;

21
T.2 – Medicina – Especialização em Psiquiatria (Início dos anos 70), Psicanalista,
formação em Terapia de Família realizada em grupo de estudos no início dos
anos 80, sexo masculino;

T.3 – Psicologia (1976), Psicanalista, formação em Terapia de Família em 1985,


sexo feminino;

T.4 – Psicologia (1971), Psicanalista, formação em Terapia de Família “ao longo


do caminho (no exterior)” com início nos anos 70, sexo feminino;

T.5 – Psicologia (1975), Mestre em Comunicação Social (1999), formação em


Terapia de Família em 1978, sexo feminino;

T.6 – Psicologia (1972), Psico dramatista, Especialista em Psicologia Social,


formação em Terapia de Família no início dos anos 80, sexo feminino;

T.7 – Psicologia (1978), Doutora em Psicologia Clínica (1995), Psicanalista,


formação em Terapia de Família no final dos anos 70, sexo feminino;

T.8 – Medicina – Especialização em Psiquiatria (1974), Psicanalista e


Psicodramatista, formação em Terapia de Família com Andolfi, Minuchin,
Whitaker, Haley no final dos anos 70, sexo masculino.

A terapia de família chegou ao Brasil nos anos 70. Foi, porém, no final
dos anos 50 que ela começou a tomar forma nos Estados Unidos, orientando-se
principalmente pela Teoria dos Sistemas. Nesse momento foi forte a presença
do modelo de família nuclear, tendo o casal, com uma maior centralidade do que
na sociedade tradicional, a função de constituir um núcleo em torno dos filhos.

22
Esse modelo, característico da modernidade, tem sido questionado em
sua forma nuclear, preservando-se algumas características, como a intimidade
e a privacidade. Nesse sentido, para a terapia de família foi necessário, ao longo
de sua história, posicionar-se de modos diferentes em relação à configuração
familiar, constituindo o contexto da intervenção terapêutica em estreita relação
com as transformações histórico-sociais.

Uma das principais fontes de questionamento e transformação, tanto


para a família quanto para a terapia de família, foi o movimento feminista, a partir
dos anos 70 (Goodrich, 1990; Perelberg, 1994; Rampage e Avis, 1998).
Começamos com duas das falas dos entrevistados, terapeutas de família
cariocas, que se vinculam à tradição da terapia de família, privilegiando a família
nuclear fundada no biológico, na união heterossexual e na procriação. Para
esses terapeutas, pode-se entender o que se convencionou chamar família a
partir de um sentido único, compreendendo que “novas formas” devam receber
novas denominações, diferenciando-as da família conjugal.

“Só acontece família com filho. A estruturação da


família para mim necessita ter duas gerações. (...) Então,
para mim, a formação básica da família é: três pessoas,
necessariamente duas gerações diferentes” (T.2).

“Junção de um homem e uma mulher. Não vou entrar nas


novas organizações familiares. É junção de um homem e
de uma mulher e o nascimento de um primeiro filho. União
de um homem e uma mulher e o nascimento do primeiro
filho. É isso. Nascimento ou adoção do primeiro filho” (T.8).

Salvador Minuchin, psiquiatra, terapeuta de família da Escola Estrutural,


compreende a família pela forma predominantemente nuclear, fundamentado no
biológico, coadunando-se com a posição dos terapeutas acima referidos.
Minuchin é insistente quanto à importância de o terapeuta possuir uma definição
teórica de família que permita um nexo com a ideia de intervenção terapêutica,
demonstrando assim a forte ligação entre ambos.

23
Resumimos as ideias de Minuchin, que configuram a relação familiar a
partir da relação conjugal: o casal, ao se constituir, precisa separar-se de suas
relações anteriores, principalmente com os respectivos pais, isto é, “o
investimento no casamento é feito a expensas de outras relações”; o casamento
é um primeiro momento em que os participantes irão confirmar ou não suas
novas identidades; “um contexto poderoso para confirmação e desqualificação”;
“refúgio para as tensões de fora” (Minuchin, 1990). Pelo descrito, percebe-se
a necessidade de a constituição familiar, iniciada pelo casal, separar-se como
um núcleo isolado e diferenciado.

A terapia de família, por consequência, visa a separar as fronteiras com


o exterior, nos casos em que o casal tenha essa dificuldade específica. Com a
chegada dos filhos, o casal adquire uma nova função: a parental, que caracteriza
a família como “uma instituição para educar as crianças”, sendo a vida familiar
dependente “de um sólido vínculo de casal” (Minuchin, 1995).

É nesse momento que surgem mais especificamente as tarefas ligadas


à socialização; a família exerce seu lugar de “matriz da identidade”,
possibilitando a seus membros a experiência de pertinência a um grupo, assim
como a experiência de sua separação, de sua autonomia. Entre pais e filhos,
como entre o casal e o mundo exterior, é preciso que existam fronteiras bem
definidas e reguladas por regras que determinam quem e como se participa das
relações familiares. É indubitavelmente uma definição da família conjugal,
constituída na modernidade. Mais um dos entrevistados faz eco a essas
formulações, concordando que família é necessária como grupo social, com a
função de cuidar de um ser dependente biológica e psicologicamente.

As mudanças impostas pelas novas tecnologias de reprodução refletem


na família, possibilitando novas transformações, mas sua participação social

24
como um grupo que cuida de um ser dependente permanece e permanecerá.
Outras formas de cuidado poderão surgir, ainda que os papéis familiares não
continuem os mesmos. Mantém-se assim a ideia de proteção fornecida por esse
grupo formador das identidades pessoais, seja ele biológico ou não.

O processo da construção da personalidade permanece localizado no


interior da família e da convivência íntima, apesar das transformações sociais.

“... a gente necessita do relacional pra saber até quem eu sou. No


meu referencial a família é necessária, importante para as
organizações sociais. Não acho que é uma coisa falida, eu acho que
ela está mudando as suas formas de constituição. Necessária e
importante porque nós nascemos e a gente vem de um pareamento,
se a gente pensar também em termos biológicos, um pareamento que
nos faz ser um serzinho humano que é totalmente dependente, e ele
precisa de um grupo para dar consistência a esse ser dependente,
para ele vir a se desenvolver e poder ser um indivíduo. Então, a
existência do grupo constituído para dar continente pra que esse ser
venha a se desenvolver nunca vai deixar de existir, sempre existiu e
sempre vai existir. (...) Então quando a gente pensa agora nessa
reprodução assistida, bebê de proveta, clone, vão existir, talvez,
novas estruturas de grupo. (...) o ser humano precisa de um grupo
para provar a existência dele, dar identidade àquela existência. (...)
Então, o núcleo que eu chamo de familiar é um grupo de pessoas que
vai receber esse elemento, e na hora que recebe esse elemento cada

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um define um papel, um que vai cuidar dessa forma, um que vai cuidar
daquela forma. (...) Talvez no futuro não seja pai, mãe e filho, possam
ser outras coisas. O ser humano precisa dessa estrutura... ela vai
mudar, mas nunca vai sair de foco” (T.6).

A ênfase na família nuclear caracteriza uma concepção moderna.


Minuchin corrobora a afirmação de que a família é a melhor maneira para criar
indivíduos autônomos, gerando estabilidade interior, diante da constante
mutação do mundo exterior à família. Ela é, portanto, o meio mais eficaz de
manutenção da sociedade enquanto protege contra o mundo exterior. Para
Minuchin (1990), a família nuclear pode estar correndo riscos devido à
sobrecarga de suas funções.

Portanto é na família tradicional que se mantêm estruturada para


enfrentar as dificuldades e provações que a vida oferece.

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