Você está na página 1de 12

CAPOEIRA

ATIVIDADES EPILINGUÍSTICAS NO
ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
_____________________________________
RESUMO
Texto da palestra proferida por Joao Wanderley Geraldi no V
SIELP – Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa,
Revista de Humanidades e Letras Universidade do Minho, 27-29 de janeiro de 2016 sobre
ISSN: 2359-2354 atividades epilinguísticas no ensino da língua materna.
Palavras-chave: atividades epilinguísticas; ensino de português;
Vol. 2 | Nº. 1 | Ano 2015
educação; língua materna.

____________________________________
ABSTRACT
João Wanderley Geraldi
UNICAMP
Transcript of the lecture given by João Wanderley Geraldi in
Universidade do Minho, January, 27-29, 2016, at the V SIELP –
Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa on
epilinguistic activities in teaching of native language..
Key-words: epilinguistic activities; portuguese teaching;
educação; native language.

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com
Editores
Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br

Pedro Acosta-Leyva
leyva@unilab.edu.br
João Wanderley Geraldi

ATIVIDADES EPILINGUÍSTICAS NO ENSINO DA


LÍNGUA MATERNA1
João Wanderley Geraldi2

Em busca da correção formal (estritamente gramatical), é esquecida a tarefa de educar a


individualidade discursiva dos alunos. Os professores temem a audácia discursiva dos
seus estudantes e às vezes simplesmente recomendam que não abandonem os lugares-
comuns linguísticos ‘para não cometer erros’.
Mikhail M. Bakhtin
Introdução

Nos já muitos anos de militância acadêmica e política, sempre com foco no ensino
escolar de Língua Portuguesa para os falantes desta língua, que talvez seja somente
metaforicamente nossa língua materna (porque nossa primeira língua, aquela do choro, dos
gestos, dos olhares com singularidades próprias no entorno de nossos berços, nós a perdemos
definitivamente), no chamado ensino da língua materna, tenho defendido desde os inícios dos
anos 1980 que as concepções de linguagem é que embasam o trabalho pedagógico que fazemos
no ensino de qualquer das facetas do uso ou da descrição de uma língua. Enquanto esta
concepção não for assumida como própria, qualquer que ela seja – muito embora eu defenda uma
concepção particular - as atividades de ensino não serão geridas pelo professor, mas repetidas por
ele como uma rotina, sem construir uma prática verdadeira porque seu passado de ontem não
ilumina o futuro, e este sempre ficará dependendo de orientações que lhe venham de fora, quer
na forma de livros didáticos, quer na forma de exercícios e aulas disponíveis em portais a que
acessa não para construir sua aula, mas para executar uma aula de forma automática e não
autônoma. O que não provém de si, mas é dado de fora sem internalização dos princípios e
concepções que orientam o fazer do professor, faz deste um eterno dependente de novas
orientações, de novos exercícios, e novas aulas prontas a serem “executadas”, sem jamais
ministrá-las com assinatura própria, com autoria.
Neste círculo vicioso, em que a dependência é continuamente alimentada, aumentando-a
e ao mesmo tempo justificando a multiplicação dos produtos prontos para cada aula, sobre cada
tema – desconhecendo os sujeitos que compõem a sala de aula – jamais se romperão os elos da
produção e consumo, ruptura necessária para aqueles que não compactuam com a concepção da

1
Transcrevo aqui texto da conferência proferida em 28.01.2016, no V SIELP, na Universidade do Minho, Braga
(Portugal)
2
Professor Titular aposentado da Unicamp. Texto elaborado para exposição no V SIELP – Simpósio Internacional
de Ensino de Língua Portuguesa. Universidade do Minho, 27-29 de janeiro de 2016. jwgeraldi@yahoo.com.br

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 55


Atividades epilinguísticas no ensino da língua materna

educação como mercado e os conhecimentos e competências como mercadorias que se compram


e vendem no atacado dos beneficiados pelos programas ao estilo do Programa Nacional do Livro
Didático, e no varejo das salas de aulas pouco atrativas porque não encarnadas por professores e
alunos.
Obviamente, não é apenas a concepção de linguagem que está em jogo: uma concepção
de educação e uma concepção de sociedade devem se articular de forma coerente com a
concepção de linguagem. Não adianta fazer referências a Bakhtin, e ao mesmo tempo agir
discricionariamente, com laivos de racismo, olhando a seus alunos como incapazes de aprender,
como inferiores, não lhes descortinando qualquer horizonte de possibilidade que os inclua no
mundo da escrita de forma ativa, como autores tanto de suas leituras quanto de seus textos. Hoje,
que as condições de circulação de textos se modificaram graças à internet, ser autor publicado se
tornou possível. Se na sociedade burguesa defendemos a liberdade de expressão, hoje podemos
defender o direito à expressão já que os meios para fazer a expressão circular se alteraram e não
são somente os proprietários dos meios de impressão que definem que textos vão circular.3 Neste
contexto começam a vir à luz inúmeras experiências realizadas em sala de aula, às vezes às
escondidas, em silêncio. E também se expressam vontades de encontrar outros caminhos para a
ação em sala de aula. Professores, insatisfeitos e inquietos com os resultados de seu trabalho,
queriam propostas, respostas a suas indagações. Um diálogo frutífero estava em andamento e
quando secretarias começam a elaborar suas propostas curriculares fazem-no contando com a
participação não só de assessores universitários, mas, sobretudo, com a presença de professores
que procediam do chão da escola como representantes de seus colegas. As elaborações, salvo
exceções, se faziam num vai-e-vem entre a secretaria e as escolas, que liam as primeiras versões
e apresentavam sugestões e exigiam alterações. Práticas e perspectivas teóricas dialogavam
tentando elaborar propostas que, não ficando na rotina da escola, apontavam caminhos possíveis
para o ensino das diferentes disciplinas do currículo escolar.
Este modus operandi não se restringiu apenas à elaboração dos planos curriculares
estaduais e de algumas grandes cidades. Foi assim, por exemplo, a grande discussão da proposta
da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação elaborada com a participação de inúmeras
entidades da sociedade civil, depois engavetada e substituída pelo então ministro Paulo Renato
Souza por uma proposta de gabinete aparentemente elaborada por Darcy Ribeiro e enviada como
projeto de lei como se fosse uma homenagem a este educador brasileiro.

3
Pessoalmente, participei de eventos com mais de 4.000 participantes, em Belo Horizonte (promovido pela UTE),
em São Paulo (promovido pela Secretaria Estadual de Educação), em Porto Alegre (promovido pela Secretaria
Municipal de Educação). Eventos, cursos, conferências (de que as Conferências Brasileiras de Educação – CBE são
exemplares), simpósios eram frequentes e os espaços ficavam lotados.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 56


João Wanderley Geraldi

A nossa pouca experiência democrática associada à urgência dos problemas a serem


resolvidos e à pretensão de condensar o processo histórico de mudança social em passos de curta
duração (como passes de mágica ou como milagres de magos) encerram este tempo vivido sob o
signo da participação popular, reemergindo no cenário brasileiro um novo conjunto de políticos
“competentes, eficientes, capazes e sábios” que poderiam concretizar as mudanças com a rapidez
com que tinham tido sucesso no plano econômico (com a implantação da nova moeda, o real,
‘esquecendo’ por completo que a estabilização da moeda que ocorre então em vários países era
uma necessidade do processo galopante da globalização). Encerra-se o período da participação,
que exige ‘desperdício de tempo’ e por isso não é eficiente. Os técnicos, os especialistas, os
consultores competentes trazem as respostas: basta agrupá-los. E em lugar da participação,
poderia haver a consulta àqueles especialistas que não estavam no grupo de assessores4 definindo
metas, objetivos, modos de gestão, índices desejados etc. etc. Inicia-se a implantação
verticalizada do novo como exigência e não como opção abraçada pelos verdadeiros agentes
educativos. As avaliações de larga escala, obrigatórias e já agora com consequências até mesmo
na renda de professores e gestores5. Treinar para responder eleva os índices e dão aparente
sucesso às inúmeras consultorias prestadas aos diferentes sistemas de ensino. Surgem as
empresas de consultorias, mas também os centros e grupos universitários que se caracterizam
como pesquisadores-consultores. No entanto, a manutenção destes índices de sucesso e seu
crescimento não se mantêm no longo prazo, o que exige novas consultorias num círculo vicioso
(de consultores bem remunerados)6 desvela este deslocamento ocorrido e até hoje são frequentes
as questões formuladas pelos professores: “como ensinar a gramática através dos textos?”. Os
chamados exercícios de leitura e interpretação, apresentados nos livros didáticos na forma de um
conjunto de perguntas, independentemente da análise que se possa fazer destas perguntas,

4
Ainda que neste texto faça referência somente aos PCNs, listemos alguns dos programas que inundaram as escolas:
PCNs em ação, Programa do Livro Didático, Portal do MEC com aulas disponíveis, portais com as provas aplicadas
nas avaliações de larga escala, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), também ela produto de consultorias
universitárias, de comitês de especialistas, de técnicos competentes. Seguindo o mesmo diapasão: implantação
vertical, referência para os sistemas de avaliação. Imposição, enfim. Como ocorreram com os Parâmetros
Curriculares Nacionais, assim que aprovada a BNCC, surgirão os programas “BNCC em ação” para tentar chegar ao
chão da escola, copiando o programa “PCNs em ação”. Provavelmente os assessores e consultores, dos centros
universitários e das ONGs e OSs, já estão com os projetos elaborados para apresentarem assim que saírem os novos
editais que serão sugeridos por eles mesmos.
5
Damasceno (2014) estuda uma escola de cidade do interior de São Paulo, que obteve os melhores índices e por isso
se tornou modelo de gestão a ser seguido pelas demais escolas. É impressionante o quanto de treinamento ocorre na
escola nos meses que antecedem a aplicação dos testes de avaliação, com simulados constantes com base nas provas
anteriores. Ensina-se a responder a testes, sem qualquer preocupação com a educação. Até Diane Ravitch, a toda
poderosa ex-diretor de avaliação dos EEUU já reconheceu que os testes e as avaliações (e as consequentes
‘complementações’ salariais a professores e gestores das escolas bem sucedidas) é uma aposta inadequada em que
embarcou durante quase toda sua vida.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 57


Atividades epilinguísticas no ensino da língua materna

mostram que a compreensão de um texto já não era dada como evidente, natural, mas que
resultava de um trabalho e como tal demandava a intervenção didática. Em outras palavras, era
necessário ensinar a interpretar um texto. Certamente as perguntas formuladas dirigiam as
leituras, superficiais ou não, mas a entrada do texto para dentro da sala de aula, não mais como
uma mera superfície textual em que localizar exemplos, mas como objeto de reflexão se
constituiu num considerável avanço na didática da língua materna.
Momentos posteriores, agora sob a inspiração da linguística da enunciação e dos estudos
do discurso, radicalizaram um pouco mais esta perspectiva, tornando o texto ainda mais central
no processo de ensino e aprendizagem, com um deslocamento considerável: tratava-se agora de
visar muito mais a aprendizagem da língua do que o ensino da língua. Por isso o uso da língua7.
Considerando que o texto não é produto mecânico de aplicação de regras; que sua
produção demanda muito mais do que o conhecimento da própria língua e não requer
absolutamente o conhecimento das descrições da língua para sua elaboração, o processo de
ensino se viu corroído em suas seguranças: para haver o que ensinar há que ter o que ensinar
definido, fixado e distribuído em diferentes graus (em geral homeopáticos, mas isso pouco
importa).
A questão óbvia que emerge do deslocamento para o texto é relativa ao capital escolar:
os objetos de ensino definidos e buscados nos produtos da atividade objetivante do analista são
substituídos por um capital outro, o capital cultural, valorizando os tateios do aprender e não as
certezas do ensinar, e, sobretudo, tornando ainda mais complexo este processo pelo
reconhecimento das variedades de capitais culturais disponíveis numa sociedade, expressos
também por variedades linguísticas que a escola não valoriza.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais tornam oficial esta perspectiva que centra o
processo de ensino/aprendizagem no texto/discurso, mas produz um deslocamento metodológico
essencial: em lugar de práticas de leitura, produção e reflexão sobre os recursos linguísticos
mobilizados e mobilizáveis nestes processos de uso da língua (leitura e escrita), passa-se a dar
ênfase aos gêneros do discurso e às esferas de comunicação social em que estes gêneros
circulam. De um ensino fundado em práticas, passa-se a ter um objeto de ensino – o gênero, suas
características, seu estilo, seus temas, sua esfera de circulação. Leem-se textos no gênero em

6
Este é o título de uma coleção de livros didáticos de autoria de Magda Soares e a autora chama atenção para o fato
de que a correlação entre ‘português’ e ‘textos’ se faz como se o próprio texto já não fosse em si português, ou em
outros termos, como se o português fosse algo a ser ‘encontrado’ nos textos porque pairava acima deles.
7
Entendida esta como uma reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados tanto na produção quanto na leitura
de textos. Isto não excluiria, por princípio, um estudo da gramática, mas o importante deixou de ser conhecer a
descrição gramatical, para se dar mais ênfase à atividade do falante de refletir sobre a linguagem. O trabalho com a
intuição do aluno se sobrepunha ou deveria se sobrepor ao trabalho descritivo, produto da reflexão teórica do
analista.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 58


João Wanderley Geraldi

estudo e pede-se a produção do aluno dentro deste gênero, independentemente de um projeto de


produção que tinha como horizonte a autoria. Volta-se a produzir textos como um exercício, e
não como uma prática mais ou menos equivalente aos modos de funcionamento da linguagem
fora dos bancos escolares.
Certamente encontramos neste documento um avanço em relação ao ensino, então
chamado de tradicional. Mas há um retrocesso em relação à mudança das práticas aos objetos de
estudos. E a necessidade deste objeto não variado, mais ou menos delimitado segundo os anos
escolares, foi uma necessidade do processo de avaliação de larga escala.
Desta forma, encontrando um objeto de ensino, o espírito normativo reencontra sua
tranquilidade, ampliando sua extensão para além do sistema linguístico a que se reduziu a língua
no ensino do passado, para incluir também as enunciações nas fórmulas da composição, pré-
definidos os temas e os estilos. Nada poderia ser mais útil ao encarceramento das práticas. Nada
poderia ser mais útil ao ensino descompromissado como o futuro, com o devir, para fazer repetir
o já sabido e fixado pela atividade objetivante do analista, agora aquele que incorpora enunciação
e discurso. Nada poderia ser menos bakhtiniano do que esta redução do conceito de gênero sem
gênesis, já que as esferas de atividades ‘didaticamente transpostas’ passam a ser apenas ‘práticas
sociais de referência’, já que nelas não estão incluídos os alunos, a não ser como sujeitos
ficcionais de uma sequência didática!8.

2. Atividades epilinguísticas no ensino

Quando se propunha uma “prática de análise linguística”, visava-se referir a um


conjunto de atividades que tomam uma das características da linguagem como seu objeto: o fato
de que ela pode remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos sobre o mundo ou
sobre nossa relação com ele e com os outros, mas também falamos sobre como falamos.
Estas atividades estão presentes nos processo interlocutivos e são neles detectáveis: uma
paráfrase, uma repetição, uma explicação sobre o que se disse, os processos de negociação de
sentidos são fenômenos que exemplificam o funcionamento do epilinguismo. Este tipo de
atividades aparece bastante cedo entre os falantes: mais ou menos entre os 4 e 5 anos, as crianças
fazem muito mais do que perceber a relação dos signos com as coisas; elas brincam com o
sistema da língua, elaborando rimas e explorando a sonoridade das palavras, dizendo a mesma
coisa de outro modo, as autocorreções, as reelaborações, perguntando e explicando para si
mesmas o que ouvem. Podemos caracterizar as atividades epilinguísticas como atividades que

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 59


Atividades epilinguísticas no ensino da língua materna

tomando as próprias expressões como objeto, suspendem o tratamento do tema da conversação


ou do texto para refletir sobre os recursos expressivos postos em funcionamento.
A passagem de Bakhtin (2013) que serve de entrada para este texto, retirada de nota dos
editores russos do artigo “Questões de estilística no ensino da língua”.9 Tratava-se de examinar
resultados de uma destas provas de avaliação promovidas pelos sistemas de ensino. No caso, uma
prova aplicada aos alunos pernambucanos, cujos escores haviam sido muito baixos. A prova era
extensa para o nível de escolaridade a que se destinava: duas dezenas de perguntas, e ao final um
excerto da obra de Érico Veríssimo – Clarice – em que a personagem contava uma de suas
travessuras de infância: comer doces das compotas da avó. Após o texto vinha a demanda dos
examinadores: como toda criança, você também fez suas travessuras, narre uma delas.
Destaco aqui algumas das respostas que mais chamaram nossa atenção, mas que foram
avaliadas com nota zero porque não atendiam ao que foi demandado pela pergunta:

1) Eu sou evangélica e evangélico não faz travessuras.


2) Eu fiz muitas travessuras, mas não sou bobo, não vou contar nenhuma.
3) Eu estava na calçada e tinha muito movimento de carros. Não pude fazer a travessura da
rua.

Os enunciados proferidos pelos alunos dialogavam seriamente com a ordem dada,


quando se esperava apenas que executassem a ordem e mostrassem que dominavam um gênero
de discurso – o narrativo. Das respostas dadas não se pode deduzir que estas crianças não saibam
construir uma narrativa com personagens, espaços, tempos, ações etc. Nem que não dominam
este gênero na forma escrita (porque oralmente é mais ou menos óbvio que narram). A nota
atribuída, no entanto, é zero e as conclusões apressadas são aquelas que atribuem
desconhecimento ao aluno, como faz a imprensa toda vez que temos divulgação de dados de
provas deste estilo: atribui-se uma falta (um não saber) sem considerar absolutamente nada das
condições discursivas das respostas dadas.
Nestes três exemplos os enunciadores respondem discursivamente ao demandado, não
obedecendo à demanda feita. O primeiro transmite uma informação que justifica não ter o que
contar; o segundo desconfia da honestidade da demanda – afinal, se toda travessura pode levar a
um castigo, quem lhe garante que ao contar uma das suas (e portanto confessar uma falta) não
será dedurado pelo leitor desconhecido?; o terceiro, por fim, faz uma curta narrativa, mas mostra

8
Saramago, em História do Cerco de Lisboa, aponta para esta característica da linguagem, em seu personagem
revisor que ao acrescentar um “não” em um enunciado, desencadeia todo o enredo da história narrada no romance.
9
Narro aqui uma sessão com minha ex-orientanda Profa. Lívia Suassuna, nos primeiros encontros de orientação de
sua tese de doutoramento. Obviamente nada aqui é textual, pois narro de memória.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 60


João Wanderley Geraldi

que o termo “travessura” não faz parte de seu vocabulário, e por isso constrói-lhe um sentido,
aliás um sentido construído com base numa análise morfológica que toma o radical da palavra
em consideração – através, atravessar, travessura têm o mesmo radical. Que é uma “travessura”
se não atravessar limites dados?
Nada destas considerações de ordem dialógico-discursivas são levadas em conta quando
simplesmente não se lê o que o estudante escreve, mas se busca no que escreve aquilo que se
quer ler. E então as respostas ficam incompreensíveis porque o próprio avaliador não tem
qualquer autonomia para perceber sentidos, e lê como autômato, como máquina, que não quer
ler/ouvir o que não espera. E muitos zeros são assim distribuídos…
Consideremos agora um exemplo didático, que usei várias vezes em sala de aula.
Trata-se de narrativa curta, de fato dos tempos de minha infância.

Éramos muitos em casa. As tarefas eram distribuídas. Um lavava a louça; outro secava;
outro retirava e mesa e guardava a louça limpa e seca; outro levava os restos de comida
para o cachorro, e outro levava os restos de saladas para as galinhas, O galinheiro tinha
cerca alta e um portão. Coube-me levar os restos ao galinheiro. Tinha duas opções: abrir
o portão e jogar tudo lá dentro (com o risco de alguma galinha escapar) ou subir numa
caixa e jogar por cima da cerca. Fiz isto, mas o prato me escapou das mãos e caiu no
chão. Quando retornei, a mãe perguntou pelo prato, e respondi:
- O prato quebrou.

Queria aqui explicar que um enunciado faz um recorte de uma cena no mundo para
apresentá-lo ao outro, mas esta apresentação não se faz sem que nela interfiram os fenômenos
típicos da enunciação, incluídos aí os objetivos do falante. Neste caso, “o prato quebrou” orienta-
se pelo interesse do locutor em não se incriminar. Seria totalmente diverso se dissesse:

- Eu quebrei o prato.
- Eu derrubei o prato e ele quebrou.

A escolha de uma ou outra expressão tem efeitos discursivos distintos, daí não ser possível
simplesmente tratá-las como sinônimas. Uma análise apenas sintática, com base numa gramática
de casos, em que o complemento do verbo (em “Eu quebrei o prato”) se torna sujeito do verbo
(em “O prato quebrou”), esconderia que os processos enunciativos se deixam dirigir por aquilo
que não é enunciado, até mesmo numa estrutura sintática simples. Reconstruir a cena, como
ouvinte/leitor, é sempre um modo de descobrir que elementos podem ter sido deixados de lado,
ou na escrita literária, verificar que pormenores geralmente desconsiderados tornam-se
fundamentais para mostrar até mesmo o estado de espírito de uma personagem, a angústia ou

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 61


Atividades epilinguísticas no ensino da língua materna

alegria que vive. A título de exemplo, tomo pequena passagem de um romance de Erich Maria
Remarque (1941):
Kern dirigia-se vagarosamente ao Correio Central. Sentia-se cansado. Não dormira
quase, durante as últimas três noites. Ruth já deveria estar aí, há três dias. Durante todo
esse tempo não conseguira notícias dela, nem uma carta. Procurava se tranquilizar
resolutamente, atribuindo isso a alguma causa trivial, e imaginava mil explicações. Mas
agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca. Sentia-se estranhamente
entorpecido. O barulho da rua penetrava atavés de seu pesar, como vindo de uma grande
distância, e ele andava tal como um autômato, pondo maquinalmente um pé depois do
outro.
Demorou algum tempo para identificar um casaco azul. Parou. “É algum casaco azul
qualquer, pensou. É algum dos cem casacos azuis que me têm andando enlouquecendo,
esta semana”. Desviou o olhar, depois fitou novamente. Alguns carteiros, e uma mulher
gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista. Susteve a respiração e notou
que estava tremendo. O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras
vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemente lhe atravancava o
caminho. Pôs-se a andar cautelo, como se estivesse sobre um fio de arame, com medo de
cair a qualquer momento. E mesmo quando Ruth se voltou e ele lhe pôde ver o rosto,
supôs ainda que estava sendo vítima de um truque diabólico da sua imaginação. Só
depois que o rosto dela se iluminou foi que correu para a frente, para abraçá-la.
(Remarque, 1941, p.268-269)

Duas passagens chamam atenção pelos detalhes:


(1)Alguns carteiros, e uma mulher gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista.
(2) O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras vermelhas, chapéus,
bicicletas, embrulhos e gente que constantemente lhe atravancava o caminho.

Note-se a diferença entre (1) e (1*), e entre (2) e (2*):

(1*) Alguns carteiros e uma mulher lhe boqueavam a vista.


(2*) O casaco azul movimentou-se por entre as pessoas e as bicicletas que atravancavam o
caminho.

Estes detalhes mobilizam recursos linguísticos que chamam o leitor para o pormenor, ao
mesmo tempo que demonstram um personagem angustiado que procura alguém, que já se
decepcionou por não ter encontrado e que agora renova, na angústia, as esperanças de um
encontro que por fim acontece.
Há outro enunciado, na mesma passagem, que chama a atenção face à sintaxe de
colocação posta a funcionar para produzir efeitos de sentido como se uma voz dissesse algo, e
logo depois esta mesma voz, como se fosse uma segunda voz, acrescenta um desespero ainda
maior. Veja-se a diferença entre o que escreve o romancista (ou a tradutora, neste caso) e o uso
mais comum da colocação dos dois advérbios no enunciado:

Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 62


João Wanderley Geraldi

(3*) Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria nunca mais.

No primeiro enunciado, há que fazer uma pausa, um gesto, depois de “viria mais” para
em outro tom dizer “nunca”, enquanto que em (3*) esta pausa não existe e perde-se o efeito de
jogo de tons, de vozes.
Análises que partem da concepção dialógica da linguagem e que a tomam como uma
atividade constitutiva das línguas em seu sentido sociolinguístico, das consciências dos sujeitos
falantes (“a palavra concebe o seu objeto”), permitem que se compreendam mais amplamente os
recursos linguísticos mobilizados na construção de qualquer enunciado, de modo que se pode
assim “revisar as formas da língua em sua compreensão linguística comum” mesmo que estas
compreensões sejam feitas de forma inicialmente intuitiva.

Bakhtin (2013), nas indicações metodológicas para o ensino do período composto por
subordinação sem conjunção, apresenta análises estilísticas partindo da intuição de seus alunos
sobre o uso de uma ou outra forma disponível no sistema, defendendo o ponto de vista de que

… no estudo das formas sintáticas paralelas e comutativas, isto é, quando o falante ou o


escrito tem a possibilidade de escolher entre duas ou mais formas sintáticas igualmente
corretas do ponto de vista gramatical. Nesses casos, a escolha é determinada não pela
gramática, mas por considerações puramente estilísticas, isto é, pela eficácia
representacional e expressiva dessas formas. (BAKHTIN, 2013, p. 25)

Penso que uma proposta de ensino da língua lastreada nas possibilidades que o sistema
da língua oferece, cuja exploração pelo professor depende crucialmente de seus conhecimentos
sobre a língua, mas também de seu amor à língua, de sua capacidade de explorar o sistema de
forma mais aberta do que seguir um roteiro de conteúdos a serem transmitidos (sejam estes de
conhecimentos descritivos da língua ou dos gêneros discursivos), apoiando-se nas atividades
epilinguísticas, estatui uma diferença entre saber uma língua, isto é, dominar as habilidades de
uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados,
percebendo as diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra coisa é saber analisar uma
língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se
apresentam suas características estruturais e de uso (GERALDI, 1984, p.47).
Um ensino assim concebido, em que a uniformidade não é a regra, em que a imaginação
pode orientar mais do que a prescrição, em que a centralidade do texto não produza a fixidez de
seus sentidos, mas que mantenha seus perigos porque abre portas às compreensões, seria um
ensino de língua materna que ultrapassaria o estado prosaico para permitir a chegado ao
cotidiano da sala de aula do estado poético.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 63


Atividades epilinguísticas no ensino da língua materna

Que a palavra parede não seja símbolo


de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre no tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.

(Manoel de Barros. Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. 11. O guardador de Águas)

REFERÊNCIAS

BALSAMO, L. M. A avaliação da escola: um estudo sobre os sentidos produzidos nos sujeitos


protagonistas de uma realidade escolar. Dissertação (mestrado), Universidade Federal de São
Carlos, Campus Sorocaba, Sorocaba, 2014.

BAKHTIN, Mikhail M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas


de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo : Editora 34, 2013.

BARROS, Manoel de. O guardador de Águas. São Paulo : Art Editora, 1989.

GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

GERALDI, João Wanderley (org) O texto na sala de aula. Cascavel : Assoeste, 1984.

REMARQUE, Erich Maria. Náufragos. Tradução de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro : José
Olympio Editora, s/data (original de 1941).

João Wanderley Geraldi


João Wanderley Geraldi possui graduação em Letras
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijui
(1980), graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Universidade Federal de Santa Maria (1970), mestrado
em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas
(1978) e doutorado em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas (1990). Foi Diretor do Instituto
de Estudos da Linguagem e Pró-Reitor de Assuntos
Comunitários da Unicamp. Foi presidente da ALB por
uma gestão e colaborou significativamente para com o
crescimento e consolidação de trabalho da entidade.

Capoeira – Revista de Humanidades e Letras | Vol.2 | Nº. 1 | Ano 2015 | p. 64

Você também pode gostar