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ATIVIDADES EPILINGUÍSTICAS NO
ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
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RESUMO
Texto da palestra proferida por Joao Wanderley Geraldi no V
SIELP – Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa,
Revista de Humanidades e Letras Universidade do Minho, 27-29 de janeiro de 2016 sobre
ISSN: 2359-2354 atividades epilinguísticas no ensino da língua materna.
Palavras-chave: atividades epilinguísticas; ensino de português;
Vol. 2 | Nº. 1 | Ano 2015
educação; língua materna.
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ABSTRACT
João Wanderley Geraldi
UNICAMP
Transcript of the lecture given by João Wanderley Geraldi in
Universidade do Minho, January, 27-29, 2016, at the V SIELP –
Simpósio Internacional de Ensino de Língua Portuguesa on
epilinguistic activities in teaching of native language..
Key-words: epilinguistic activities; portuguese teaching;
educação; native language.
Site/Contato
www.capoeirahumanidadeseletras.com.br
capoeira.revista@gmail.com
Editores
Marcos Carvalho Lopes
marcosclopes@unilab.edu.br
Pedro Acosta-Leyva
leyva@unilab.edu.br
João Wanderley Geraldi
Nos já muitos anos de militância acadêmica e política, sempre com foco no ensino
escolar de Língua Portuguesa para os falantes desta língua, que talvez seja somente
metaforicamente nossa língua materna (porque nossa primeira língua, aquela do choro, dos
gestos, dos olhares com singularidades próprias no entorno de nossos berços, nós a perdemos
definitivamente), no chamado ensino da língua materna, tenho defendido desde os inícios dos
anos 1980 que as concepções de linguagem é que embasam o trabalho pedagógico que fazemos
no ensino de qualquer das facetas do uso ou da descrição de uma língua. Enquanto esta
concepção não for assumida como própria, qualquer que ela seja – muito embora eu defenda uma
concepção particular - as atividades de ensino não serão geridas pelo professor, mas repetidas por
ele como uma rotina, sem construir uma prática verdadeira porque seu passado de ontem não
ilumina o futuro, e este sempre ficará dependendo de orientações que lhe venham de fora, quer
na forma de livros didáticos, quer na forma de exercícios e aulas disponíveis em portais a que
acessa não para construir sua aula, mas para executar uma aula de forma automática e não
autônoma. O que não provém de si, mas é dado de fora sem internalização dos princípios e
concepções que orientam o fazer do professor, faz deste um eterno dependente de novas
orientações, de novos exercícios, e novas aulas prontas a serem “executadas”, sem jamais
ministrá-las com assinatura própria, com autoria.
Neste círculo vicioso, em que a dependência é continuamente alimentada, aumentando-a
e ao mesmo tempo justificando a multiplicação dos produtos prontos para cada aula, sobre cada
tema – desconhecendo os sujeitos que compõem a sala de aula – jamais se romperão os elos da
produção e consumo, ruptura necessária para aqueles que não compactuam com a concepção da
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Transcrevo aqui texto da conferência proferida em 28.01.2016, no V SIELP, na Universidade do Minho, Braga
(Portugal)
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Professor Titular aposentado da Unicamp. Texto elaborado para exposição no V SIELP – Simpósio Internacional
de Ensino de Língua Portuguesa. Universidade do Minho, 27-29 de janeiro de 2016. jwgeraldi@yahoo.com.br
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Pessoalmente, participei de eventos com mais de 4.000 participantes, em Belo Horizonte (promovido pela UTE),
em São Paulo (promovido pela Secretaria Estadual de Educação), em Porto Alegre (promovido pela Secretaria
Municipal de Educação). Eventos, cursos, conferências (de que as Conferências Brasileiras de Educação – CBE são
exemplares), simpósios eram frequentes e os espaços ficavam lotados.
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Ainda que neste texto faça referência somente aos PCNs, listemos alguns dos programas que inundaram as escolas:
PCNs em ação, Programa do Livro Didático, Portal do MEC com aulas disponíveis, portais com as provas aplicadas
nas avaliações de larga escala, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), também ela produto de consultorias
universitárias, de comitês de especialistas, de técnicos competentes. Seguindo o mesmo diapasão: implantação
vertical, referência para os sistemas de avaliação. Imposição, enfim. Como ocorreram com os Parâmetros
Curriculares Nacionais, assim que aprovada a BNCC, surgirão os programas “BNCC em ação” para tentar chegar ao
chão da escola, copiando o programa “PCNs em ação”. Provavelmente os assessores e consultores, dos centros
universitários e das ONGs e OSs, já estão com os projetos elaborados para apresentarem assim que saírem os novos
editais que serão sugeridos por eles mesmos.
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Damasceno (2014) estuda uma escola de cidade do interior de São Paulo, que obteve os melhores índices e por isso
se tornou modelo de gestão a ser seguido pelas demais escolas. É impressionante o quanto de treinamento ocorre na
escola nos meses que antecedem a aplicação dos testes de avaliação, com simulados constantes com base nas provas
anteriores. Ensina-se a responder a testes, sem qualquer preocupação com a educação. Até Diane Ravitch, a toda
poderosa ex-diretor de avaliação dos EEUU já reconheceu que os testes e as avaliações (e as consequentes
‘complementações’ salariais a professores e gestores das escolas bem sucedidas) é uma aposta inadequada em que
embarcou durante quase toda sua vida.
mostram que a compreensão de um texto já não era dada como evidente, natural, mas que
resultava de um trabalho e como tal demandava a intervenção didática. Em outras palavras, era
necessário ensinar a interpretar um texto. Certamente as perguntas formuladas dirigiam as
leituras, superficiais ou não, mas a entrada do texto para dentro da sala de aula, não mais como
uma mera superfície textual em que localizar exemplos, mas como objeto de reflexão se
constituiu num considerável avanço na didática da língua materna.
Momentos posteriores, agora sob a inspiração da linguística da enunciação e dos estudos
do discurso, radicalizaram um pouco mais esta perspectiva, tornando o texto ainda mais central
no processo de ensino e aprendizagem, com um deslocamento considerável: tratava-se agora de
visar muito mais a aprendizagem da língua do que o ensino da língua. Por isso o uso da língua7.
Considerando que o texto não é produto mecânico de aplicação de regras; que sua
produção demanda muito mais do que o conhecimento da própria língua e não requer
absolutamente o conhecimento das descrições da língua para sua elaboração, o processo de
ensino se viu corroído em suas seguranças: para haver o que ensinar há que ter o que ensinar
definido, fixado e distribuído em diferentes graus (em geral homeopáticos, mas isso pouco
importa).
A questão óbvia que emerge do deslocamento para o texto é relativa ao capital escolar:
os objetos de ensino definidos e buscados nos produtos da atividade objetivante do analista são
substituídos por um capital outro, o capital cultural, valorizando os tateios do aprender e não as
certezas do ensinar, e, sobretudo, tornando ainda mais complexo este processo pelo
reconhecimento das variedades de capitais culturais disponíveis numa sociedade, expressos
também por variedades linguísticas que a escola não valoriza.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais tornam oficial esta perspectiva que centra o
processo de ensino/aprendizagem no texto/discurso, mas produz um deslocamento metodológico
essencial: em lugar de práticas de leitura, produção e reflexão sobre os recursos linguísticos
mobilizados e mobilizáveis nestes processos de uso da língua (leitura e escrita), passa-se a dar
ênfase aos gêneros do discurso e às esferas de comunicação social em que estes gêneros
circulam. De um ensino fundado em práticas, passa-se a ter um objeto de ensino – o gênero, suas
características, seu estilo, seus temas, sua esfera de circulação. Leem-se textos no gênero em
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Este é o título de uma coleção de livros didáticos de autoria de Magda Soares e a autora chama atenção para o fato
de que a correlação entre ‘português’ e ‘textos’ se faz como se o próprio texto já não fosse em si português, ou em
outros termos, como se o português fosse algo a ser ‘encontrado’ nos textos porque pairava acima deles.
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Entendida esta como uma reflexão sobre os recursos linguísticos mobilizados tanto na produção quanto na leitura
de textos. Isto não excluiria, por princípio, um estudo da gramática, mas o importante deixou de ser conhecer a
descrição gramatical, para se dar mais ênfase à atividade do falante de refletir sobre a linguagem. O trabalho com a
intuição do aluno se sobrepunha ou deveria se sobrepor ao trabalho descritivo, produto da reflexão teórica do
analista.
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Saramago, em História do Cerco de Lisboa, aponta para esta característica da linguagem, em seu personagem
revisor que ao acrescentar um “não” em um enunciado, desencadeia todo o enredo da história narrada no romance.
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Narro aqui uma sessão com minha ex-orientanda Profa. Lívia Suassuna, nos primeiros encontros de orientação de
sua tese de doutoramento. Obviamente nada aqui é textual, pois narro de memória.
que o termo “travessura” não faz parte de seu vocabulário, e por isso constrói-lhe um sentido,
aliás um sentido construído com base numa análise morfológica que toma o radical da palavra
em consideração – através, atravessar, travessura têm o mesmo radical. Que é uma “travessura”
se não atravessar limites dados?
Nada destas considerações de ordem dialógico-discursivas são levadas em conta quando
simplesmente não se lê o que o estudante escreve, mas se busca no que escreve aquilo que se
quer ler. E então as respostas ficam incompreensíveis porque o próprio avaliador não tem
qualquer autonomia para perceber sentidos, e lê como autômato, como máquina, que não quer
ler/ouvir o que não espera. E muitos zeros são assim distribuídos…
Consideremos agora um exemplo didático, que usei várias vezes em sala de aula.
Trata-se de narrativa curta, de fato dos tempos de minha infância.
Éramos muitos em casa. As tarefas eram distribuídas. Um lavava a louça; outro secava;
outro retirava e mesa e guardava a louça limpa e seca; outro levava os restos de comida
para o cachorro, e outro levava os restos de saladas para as galinhas, O galinheiro tinha
cerca alta e um portão. Coube-me levar os restos ao galinheiro. Tinha duas opções: abrir
o portão e jogar tudo lá dentro (com o risco de alguma galinha escapar) ou subir numa
caixa e jogar por cima da cerca. Fiz isto, mas o prato me escapou das mãos e caiu no
chão. Quando retornei, a mãe perguntou pelo prato, e respondi:
- O prato quebrou.
Queria aqui explicar que um enunciado faz um recorte de uma cena no mundo para
apresentá-lo ao outro, mas esta apresentação não se faz sem que nela interfiram os fenômenos
típicos da enunciação, incluídos aí os objetivos do falante. Neste caso, “o prato quebrou” orienta-
se pelo interesse do locutor em não se incriminar. Seria totalmente diverso se dissesse:
- Eu quebrei o prato.
- Eu derrubei o prato e ele quebrou.
A escolha de uma ou outra expressão tem efeitos discursivos distintos, daí não ser possível
simplesmente tratá-las como sinônimas. Uma análise apenas sintática, com base numa gramática
de casos, em que o complemento do verbo (em “Eu quebrei o prato”) se torna sujeito do verbo
(em “O prato quebrou”), esconderia que os processos enunciativos se deixam dirigir por aquilo
que não é enunciado, até mesmo numa estrutura sintática simples. Reconstruir a cena, como
ouvinte/leitor, é sempre um modo de descobrir que elementos podem ter sido deixados de lado,
ou na escrita literária, verificar que pormenores geralmente desconsiderados tornam-se
fundamentais para mostrar até mesmo o estado de espírito de uma personagem, a angústia ou
alegria que vive. A título de exemplo, tomo pequena passagem de um romance de Erich Maria
Remarque (1941):
Kern dirigia-se vagarosamente ao Correio Central. Sentia-se cansado. Não dormira
quase, durante as últimas três noites. Ruth já deveria estar aí, há três dias. Durante todo
esse tempo não conseguira notícias dela, nem uma carta. Procurava se tranquilizar
resolutamente, atribuindo isso a alguma causa trivial, e imaginava mil explicações. Mas
agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca. Sentia-se estranhamente
entorpecido. O barulho da rua penetrava atavés de seu pesar, como vindo de uma grande
distância, e ele andava tal como um autômato, pondo maquinalmente um pé depois do
outro.
Demorou algum tempo para identificar um casaco azul. Parou. “É algum casaco azul
qualquer, pensou. É algum dos cem casacos azuis que me têm andando enlouquecendo,
esta semana”. Desviou o olhar, depois fitou novamente. Alguns carteiros, e uma mulher
gorda, carregada de embrulhos, lhe bloqueavam a vista. Susteve a respiração e notou
que estava tremendo. O casaco azul começou a dançar diante dos seus olhos, entre caras
vermelhas, chapéus, bicicletas, embrulhos e gente que constantemente lhe atravancava o
caminho. Pôs-se a andar cautelo, como se estivesse sobre um fio de arame, com medo de
cair a qualquer momento. E mesmo quando Ruth se voltou e ele lhe pôde ver o rosto,
supôs ainda que estava sendo vítima de um truque diabólico da sua imaginação. Só
depois que o rosto dela se iluminou foi que correu para a frente, para abraçá-la.
(Remarque, 1941, p.268-269)
Estes detalhes mobilizam recursos linguísticos que chamam o leitor para o pormenor, ao
mesmo tempo que demonstram um personagem angustiado que procura alguém, que já se
decepcionou por não ter encontrado e que agora renova, na angústia, as esperanças de um
encontro que por fim acontece.
Há outro enunciado, na mesma passagem, que chama a atenção face à sintaxe de
colocação posta a funcionar para produzir efeitos de sentido como se uma voz dissesse algo, e
logo depois esta mesma voz, como se fosse uma segunda voz, acrescenta um desespero ainda
maior. Veja-se a diferença entre o que escreve o romancista (ou a tradutora, neste caso) e o uso
mais comum da colocação dos dois advérbios no enunciado:
Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria mais nunca.
(3*) Mas agora, de súbito, parecia-lhe que ela não viria nunca mais.
No primeiro enunciado, há que fazer uma pausa, um gesto, depois de “viria mais” para
em outro tom dizer “nunca”, enquanto que em (3*) esta pausa não existe e perde-se o efeito de
jogo de tons, de vozes.
Análises que partem da concepção dialógica da linguagem e que a tomam como uma
atividade constitutiva das línguas em seu sentido sociolinguístico, das consciências dos sujeitos
falantes (“a palavra concebe o seu objeto”), permitem que se compreendam mais amplamente os
recursos linguísticos mobilizados na construção de qualquer enunciado, de modo que se pode
assim “revisar as formas da língua em sua compreensão linguística comum” mesmo que estas
compreensões sejam feitas de forma inicialmente intuitiva.
Bakhtin (2013), nas indicações metodológicas para o ensino do período composto por
subordinação sem conjunção, apresenta análises estilísticas partindo da intuição de seus alunos
sobre o uso de uma ou outra forma disponível no sistema, defendendo o ponto de vista de que
Penso que uma proposta de ensino da língua lastreada nas possibilidades que o sistema
da língua oferece, cuja exploração pelo professor depende crucialmente de seus conhecimentos
sobre a língua, mas também de seu amor à língua, de sua capacidade de explorar o sistema de
forma mais aberta do que seguir um roteiro de conteúdos a serem transmitidos (sejam estes de
conhecimentos descritivos da língua ou dos gêneros discursivos), apoiando-se nas atividades
epilinguísticas, estatui uma diferença entre saber uma língua, isto é, dominar as habilidades de
uso da língua em situações concretas de interação, entendendo e produzindo enunciados,
percebendo as diferenças entre uma forma de expressão e outra. Outra coisa é saber analisar uma
língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se
apresentam suas características estruturais e de uso (GERALDI, 1984, p.47).
Um ensino assim concebido, em que a uniformidade não é a regra, em que a imaginação
pode orientar mais do que a prescrição, em que a centralidade do texto não produza a fixidez de
seus sentidos, mas que mantenha seus perigos porque abre portas às compreensões, seria um
ensino de língua materna que ultrapassaria o estado prosaico para permitir a chegado ao
cotidiano da sala de aula do estado poético.
(Manoel de Barros. Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho. 11. O guardador de Águas)
REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel de. O guardador de Águas. São Paulo : Art Editora, 1989.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.
GERALDI, João Wanderley (org) O texto na sala de aula. Cascavel : Assoeste, 1984.
REMARQUE, Erich Maria. Náufragos. Tradução de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro : José
Olympio Editora, s/data (original de 1941).