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AULA 4

O ENSINO DA GRAMÁTICA
NO CONTEXTO ATUAL

Prof. Eugênio Vinci de Moraes


CONVERSA INICIAL

Cara aluna, caro aluno, seja bem-vinda, seja bem-vindo!


Chegou a hora de olharmos mais de perto para as novas propostas de
ensino do português brasileiro. Desde a elaboração dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), na década de 1990, buscam-se novas metodologias de ensino
da língua que consigam, ao mesmo tempo, incluir todo usuário da língua em seus
propósitos – evitando a discriminação de falantes do português brasileiro – e
ensinar-lhe a norma culta ou padrão. Nesta aula, veremos isso mais de perto
estudando esta virada metodológica e a proposta de ensino pela perspectiva da
gramática intuitiva por meio destes tópicos:

1 – Português brasileiro e ensino


2 – Os PCNs de língua portuguesa: ensinar ou não ensinar gramática?
3 – A gramatica intuitiva – a proposta de Carlos Franchi
4 – Gramática intuitiva: estimular os saberes disponíveis
5 – Atividade de ensino gramatical com viés epilinguístico

CONTEXUALIZANDO

Observe estas sentenças:

(1) – Como está a cabana lá no topo da serra?


(2) – Ih! Na cabana só tem sujeira. As portas não abrem e as
janelas quebraram todas.
(3) - Mas quem quebrou as janelas?
(4) – Não sei mas parece que um tiro de caçador, (elipse:
quebrou as janelas).” (Franchi, 1991, p. 17)

Agora, indique o sujeito delas com base nesta definição: “sujeito é o


elemento que pratica a ação expressa por um verbo na forma ativa”, ou nesta:
“sujeito é o elemento de que se fala na oração”. Experimente aplicar a primeira
definição para as sentenças 1 e 2. Nem “a cabana”, nem “as portas” e “as janelas”
praticam a ação verbal de “estar (está)”, abrir (abrem) e quebrar (quebraram).
Tampouco se aplicarmos a segunda definição, por exemplo, na sentença “Ih! na
cabana só tem sujeira”, em que se fala da “cabana” (que é o tópigo geral e principal
da conversa), mas não é sujeito, pois a oração é impessoal.
Em boa parte de nossas aulas ainda se utilizam essas definições, o que
acaba dificultando a vida dos alunos. Por essa razão, é preciso evitá-las, isto é,
revisá-las ao ensinar o português brasileiro. É preciso mostrar ao aluno a

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variedade de “sujeitos” que existem, ou melhor, apresentar os diferentes recursos
expressivos que a língua dispõe para expormos nossos pontos de vista sobre o
mundo. Esta aula começa a apresentar propostas que busquem caminhos
diferentes para o ensino do português brasileiro. Vamos conhecê-las?

TEMA 1 – PORTUGUÊS BRASILEIRO E ENSINO

Na aula anterior, vimos que a gramática virou gramáticas, que a fala foi
incorporada a algumas delas e que o português brasileiro firmou-se como variante
legítima e independente do português europeu. Vimos também as primeiras
propostas para ensinar gramática levando em consideração o português
brasileiro. Esse novo cenário acolhe na escola o ensino e o estudo da língua
materna junto com o ensino da língua escrita, cuja norma (padrão) ainda obedece
a regras do português europeu.
Língua materna é o português brasileiro, que se aprende em casa, com
familiares, parentes e amigos. É com a gramática desse português que o aluno
chega à escola. Nesta, aluno e aluna encontram com o português europeu, cuja
gramática estrutura a língua escrita que se aprende ali.
As gramáticas do português brasileiro buscam consolidar uma outra
gramática, a da fala. Sem deixar a norma de lado. Propõem a adoção de novas
metodologias para o ensino da norma urbana culta. O objetivo é incluir as novas
“regras” do português brasileiro sem excluir as da norma padrão, que seguem o
português formal escrito, boa parte fundamentado no português europeu.
Outras propostas de ensino de língua portuguesa centram sua metodologia
no acolhimento dos conhecimentos internos da língua trazidos pelo aluno sem
discriminá-los com base na norma padrão:

É preciso lembrar que, no Brasil, este ensino, por décadas a fio,


não se constituiu exatamente como ensino de língua “materna”.
Ao contrário: o que se trabalhou na escola do século XX brasileira
foi, em larga medida, a língua de um outro país: a língua padrão
de Portugal (Sousa, 2012, p. 682).

O surgimento dessas novas propostas do ensino do português brasileiro se


deu no fim da ditadura militar, quando um documento do Ministério da Educação
propôs mudanças na metodologia de ensino de língua portuguesa, uma vez que
o perfil do aluno mudara muito a partir dos anos 1970. O documento, redigido em
1986, propunha que houvesse “uma reformulação dos conteúdos e procedimentos
de ensino de língua, que tem, como objetivo último, o domínio da língua de cultura,
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sem estigmatização das variedades linguísticas adquiridas no processo natural de
socialização” (Sousa, 2012, p. 683).
Onze anos depois, essa mudança se consolida no papel com a elaboração
dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Resta estabelecer-se na prática.

TEMA 2 – OS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA: ENSINAR OU NÃO ENSINAR


GRAMÁTICA?

Os PCN da década de 1990 refletem a Constituição democrática de 1988.


Entre as diretrizes principais da carta de 1988 estavam o combate à desigualdade,
o respeito pelas minorias, a ampliação dos direitos de cidadania. Os PCN seguem
esse norteamento no campo da educação.
A essa altura, a linguística já ocupava seu lugar na universidade brasileira
há 30 anos. Os PCN de língua portuguesa resultam dessa virada nos estudos da
área. Eles buscaram incorporar esse novo conhecimento produzido nas
universidades ao ensino de língua portuguesa nos níveis básico, fundamental e
médio das escolas brasileiras.
Um dos princípios dos PCN de língua portuguesa é o de “criar condições
para que o aluno possa desenvolver sua competência discursiva” (Brasil, 1997, p.
23). Ou seja, subordina de alguma forma a gramática ao discurso ou à interação
sociocomunicativa.
Nos PCN sugere-se e incentiva-se a adoção de novas práticas em sala de
aula por meio de um tripé sobre o qual o ensino de língua portuguesa deve se
sustentar: 1. Escuta de textos orais e leitura de textos escritos; 2. Produção de
textos orais e escritos; e 3. Prática de análise linguística (Brasil, 1997, p. 65).
O ensino da metalinguagem não aparece no tripé. Não é descartado, mas
perde lugar para propostas mais processuais de ensino da língua.
Essa virada nas diretrizes do ensino de língua portuguesa, segundo a
professora da Universidade de São Paulo, Maria Clara Paixão de Sousa, provocou
uma crise. Os professores viram-se desorientados, boa parte deles não tinha
formação adequada para adotar as novas linhas pedagógicas sugeridas pelos
PCN: “(...) esse trabalho sempre constituiu dificuldade para o professor, que se
encontrava (e ainda hoje, em muitos casos) sem condições técnicas e teóricas
para enfrentar o problema.” (Sousa, 2012, p. 685). Tornou-se um problema
relacionar os conteúdos aprendidos nos cursos de Letras e Linguística ao que
deve “ser ensinado em sala de aula” (Santos, 2006, p. 6).
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Perdidos, boa parte dos professores abandonou o ensino de gramática.
Mas, como vimos, esse não é o caminho proposto por ninguém. Linguistas como
Ataliba Castilho, Marcos Bagno, Mário Perini, Maria Helena Moura Neves, entre
outros, escreveram gramáticas. Os dois primeiros publicaram gramáticas
escolares, inclusive. A questão então não é não ensinar gramática na escola, mas
como ensiná-la.
Sempre respeitando a variedade que o aluno traz para a escola, a questão
é como apresentar-lhe a norma culta, (Sousa, 2012, p. 684) e ao mesmo tempo
fazê-lo desenvolver as habilidades gramaticais que traz do berço. Há diferentes
propostas, metodologias variadas: conciliação entre pesquisa e gramática, ênfase
na competência comunicativa, desenvolvimento da gramática intuitiva, entre
outras. No tema a seguir, apresentamos a proposta do professor Carlo Franchi
(1932-2001), desenvolvida no livro Criatividade e Gramática, de 1987.

TEMA 3 – A GRAMÁTICA INTUITIVA: A PROPOSTA DE CARLOS FRANCHI

Carlos Franchi (1932-2001) foi professor do ensino médio, deu aulas no


Colégio de Aplicação e lecionou na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), onde chegou ao título de professor emérito. Participou de vários
projetos de elaboração de currículos para as escolas públicas do Estado de São
Paulo, e foi um dos responsáveis pela implantação do Departamento de
Linguística da Unicamp, na década de 1970, onde criou o programa de pós-
graduação na área.
Franchi produziu muito, mas publicou pouco. Uma das suas obras, no
entanto, influenciou e influencia o trabalho de professores e pesquisadores de
língua portuguesa: Criatividade e gramática (1987). Nela, o professor nascido em
Jundiaí, propõe novas formas de lidar com a gramática na escola. Franchi critica
o método tradicional de ensino centrado sobretudo na transmissão da
metalinguagem gramatical – “normativismo renintente”, segundo ele (Franchi,
1991, p. 7). No lugar da gramática, propõe aproximar dois campos tidos muitas
vezes como conflitantes: criatividade e gramática:

a criatividade é fruto de um comportamento original e


assistemático, realimentado a cada momento em cada
circunstância da ação humana; a gramática, ao contrário, seria um
trabalho de "arquivamento", de assujeitamento dessa liberdade a
certos parâmetros teóricos e formais (Franchi, 1991, p. 7).

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Contra essa concepção, o ex-professor da Unicamp defende a criatividade
a partir da e na gramática, uma vez que ela dispõe para todos nós as formas pelas
quais construímos sentidos:

A criatividade se manifesta ainda ao nível da construção das


expressões. De um modo mais radical, no fato de que é o sujeito
que constrói, do modo que lhe convém, as múltiplas formas que
vai compondo linearmente. Não há nada de mecânico nisso, [...]
as línguas naturais oferecem inúmeros procedimentos que
asseguram ao falante sua liberdade de relacionar e conectar as
expressões para torná-las adequadas aos efeitos de sentido que
pretende provocar (Franchi, 1991, p. 13)

Mais adiante, veremos como essa concepção de criatividade aparece nas


sugestões de atividades de ensino de gramática propostas por Franchi.

TEMA 4 – GRAMÁTICA INTUITIVA: ESTIMULAR OS SABERES DISPONÍVEIS

Como Celso Luft, Franchi também acredita nos saberes gramaticais dos
alunos. Para Franchi, baseado nas ideias do linguista norte-americano Noam
Chomsky, “[...] toda a criança chega à escola dominando em larga escala sua
‘gramática’; possui já um saber linguístico que não pode ser ignorado pelo
professor: não é uma tábula rasa”. (Franchi, 1991, p. 35). Partindo desse princípio,
as sugestões que Franchi dá para o ensino de língua portuguesa estão voltadas
para as transformações de períodos e de textos, de modo a mostrar para o aluno
“a riqueza das formas linguísticas disponíveis para suas mais diversas opções”
(Franchi, 1991, p. 35). O estudante torna-se consciente das estratégias
expressivas que a língua oferece, recuperando, desse modo, segundo Franchi, o
potencial criativo da gramática.
Um dos cuidados iniciais que o professor deve ter é com a terminologia da
gramática normativa. Evitar usá-la, a princípio, ou, se usá-la, ter noção de seus
limites e problemas. “Antes de saber o que é um substantivo, um adjetivo, um
advérbio, é preciso ter-se servido efetivamente dessas distinções gramaticais no
trabalho de construção e reconstrução das expressões”, segundo Franchi (1991,
p. 35). Ou seja, primeiro trabalhar efetivamente com a língua para, depois –
quando necessário –, partir para a terminologia.
Franchi chama esta atividade de epilinguística, ou seja, uma ação que

opera sobre a própria linguagem, compara as expressões,


transforma-as, experimenta novos modos de construção
canônicos ou não, brinca com a linguagem, investe as formas

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linguísticas de novas significações. Não se pode ainda falar de
“gramática” no sentido de um sistema de noções descritivas, nem
de uma metalinguagem (Franchi, 1991, p. 36).

Nesse caso, nem sempre se espera que o aluno aprenda formas


cristalizadas de elaboração e transformação de expressões, mas sim que aprenda
a “operar” mais refinadamente com o sistema linguístico que ele já conhece.

TEMA 5 – ATIVIDADE DE ENSINO GRAMATICAL COM VIÉS EPILINGUÍSTICO

Para Franchi, a gramática é “o estudo das condições linguísticas de


significação” (1991, p. 32). Isso acontece – inclusive – na sintaxe. Nesse sentido,
ele propõe um exercício em que se trabalha com as formas nominais. Ou seja,
uma atividade de simples distribuição e redistribuição das construções nominais
a partir de duas orações.

(01) “A inflação continuava a crescer rapidamente. E isso irritava o


presidente”. (Franchi, 1991, p. 34)

São duas orações justapostas por coordenação. A segunda começa com


um pronome demonstrativo em uma função anafórica. “Isso” retoma toda a oração
anterior. Dessa forma, é possível transformar a primeira oração em sujeito da
segunda, nominalizando-a por meio de sua transformação em uma subordinada
substantiva:

(2) Irritava o presidente que a inflação continuasse a crescer rapidamente.

Ou usando formas infinitivas (continuar a crescer):

(3) Irritava o presidente o fato de a inflação continuar a crescer rapidamente.

Outro processo de nominalização interessante é propor o uso do


substantivo crescimento derivado do verbo principal crescer:

(4) Irritava o presidente o contínuo e rápido crescimento da inflação.

Perceba que ao derivar crescimento de crescer fomos “obrigados” a


transformar o verbo continuar e o advérbio rapidamente em adjetivos: “contínuo”
e “rápido”. Repare que não há troca de palavras por sinônimos ou hiperônimos,
mas só redistribuição dos termos nas orações e mudanças morfológicas. Mais
enxuta, a oração (4) expressa com mais ênfase a ideia de crescimento, dado que
é acompanhada de duas qualificações (contínuo e rápido crescimento).

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É possível dar ênfase a um dos aspectos que qualificam a inflação, por
exemplo, a rapidez, transformando-a no principal fator da irritação do presidente:

(5) Irritava o presidente a rapidez do crescimento contínuo da inflação.

Neste caso, o advérbio rapidamente transformou-se em substantivo


abstrato – rapidez – e núcleo do sujeito de irritava, aspecto mais visível se
colocarmos a oração na ordem direta:

(6) A rapidez do crescimento contínuo da inflação irritava o presidente.

Veja que é possível trabalhar com morfossintaxe, uma vez que foram
necessárias várias adaptações morfológicas para mudar a significação das
orações, operadas pela redistribuição dos seus termos. Essa estratégia pode ser
usada em exercícios de paráfrase, acrescentando a eles operações de sinonímia,
introduzindo o campo da semântica na atividade. A produção de paráfrase
funciona muito bem na elaboração de gêneros que exigem a retextualização de
textos originais, como em resenhas, ensaios e artigos acadêmicos, entre outros.

FINALIZANDO

Nesta aula, você acompanhou uma das formas de trabalhar com a


gramática no contexto atual. Proposta por Carlo Franchi, ela busca estimular os
conhecimentos gramaticais do aluno mediante exercícios de distribuição,
reformulação e substituição de formas nominais em sentenças.
Você deve ter reparado que apareceram várias alternativas para expressar
de formas diferentes uma mensagem inicial. Tais diferenças se devem a
transformações linguísticas no campo da distribuição dos termos na frase (na
sintaxe), na flexão das palavras (morfologia). E essas diferentes formas produzem
significados distintos.
Exercitar o aluno e a aluna desse modo contribui para aprimorar o saber
gramatical do aluno sem tocar – ainda – em níveis mais complexos, como a
análise desses procedimentos e sua abstração mediante a discussão
terminológica.

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LEITURA OBRIGATÓRIA

Texto de abordagem teórica

FARACO, C.; ZILLES, A. M. Norma linguística. São Paulo: Contexto, 2017.


Disponível na Biblioteca Virtual

Texto de abordagem prática

CAILLOU, D. Gramática, variação e norma. In: VIEIRA, S. R.; BRANDÃO, S. F.


Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2009, p. 13-30.

SILVA, R. V. M. e. Perfil histórico. Tradição gramatical e gramática tradicional.


5. ed. São Paulo: Contexto, 2016 (Repensando a Língua Portuguesa), p. 15-31.

Saiba mais

1. Assista ao vídeo em que o professor e linguista Carlos Faraco fala do


ensino de língua portuguesa no Brasil. Nele, o autor trata de vários temas
que abordamos nesta aula e serve de complemento ao livro Norma
linguística. Acesse o vídeo pelo link:
<https://www.youtube.com/watch?v=CUKfzAeGNrE>. Acesso em: 21 out.
2022.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Secretaria de


Educação Fundamental. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1997.

CASTILHO, A. Carlos Franchi (1932-2001). Revista do Gel, n. especial, p. 77-81,


2002.

FRANCHI, C. de. Criatividade e Gramática. 3. reimp. São Paulo: SE/CENP,


[1987] 1991.

SANTOS, L. W. dos. O ensino de língua portuguesa e os PCNs. Disponível em:


<https://goo.gl/ojXuRh>. Acesso em: 22 abr. 2018.

_____. Práticas de linguagem e PCN: o ensino de língua portuguesa. In:


PAULIUKONIS, M. A. L.; SANTOS, L. W. dos (orgs.). Estratégias de leitura: texto
e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. p. 59-68.

SOUSA, M. C. P. de. Prescrição versus criatividade no ensino da gramática do


português. In: LOBO, T., CARNEIRO, Z.; SOLEDADE, J.; ALMEIDA, A.; RIBEIRO,
S. (orgs.) Rosae: linguística histórica, história das línguas e outras histórias
[online]. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 679-698.

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