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METODOLOGIA

DO ENSINO DA
LINGUAGEM

Aline Azeredo Bizello


Livros didáticos da língua
portuguesa: história e usos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar conceitos linguísticos nos livros didáticos.


 Reconhecer uma tarefa completa nos livros didáticos.
 Avaliar o que é um livro didático adequado.

Introdução
O livro didático acompanhou a história da educação brasileira: desde a
ditadura, quando o governo controlava o que era ensinado e buscava
formar mão de obra especializada, até a atualidade, momento em que
os professores se desdobram para organizar aulas mesmo trabalhando
muitas horas semanais. Portanto, o uso desse recurso é uma realidade
brasileira; encontrar a opção mais adequada é um passo inicial significativo
na qualificação do processo de ensino e aprendizagem.
A área de língua portuguesa, em especial, merece atenção e cui-
dado. Afinal, as diferentes concepções de linguagem marcaram a
história e os usos do livro didático. Logo, reconhecer os conceitos que
fundamentam esse recurso e saber avaliar as suas propostas é funda-
mental para o docente de português. Por isso, neste capítulo, você
vai ver como os conceitos linguísticos aparecem nos livros didáticos.
Você também vai verificar como tarefas completas são apresentadas
nesses materiais. Além disso, vai ver como avaliar a qualidade de um
livro didático.
2 Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos

1 Os conceitos linguísticos nos livros didáticos


Sabe-se que, independentemente da área de conhecimento, a seleção dos recur-
sos didáticos ocupa um espaço fundamental na escolarização dos alunos. Com
o ensino de língua portuguesa, não é diferente. Entretanto, há um agravante:
muito se tem debatido sobre os problemas de leitura e escrita na escola, e a
função das aulas de língua portuguesa tem sido questionada. Além disso, o
livro didático associa-se à leitura, pois:

[...] ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor.
Pode não ser tão sedutor quanto as publicações destinadas à infância (livros e
histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado
em todas as etapas da escolarização do indivíduo (LAJOLO; ZILBERMAN,
2003, p. 121).

Como se nota, o livro didático atua não só como recurso; ele orienta a
leitura, seleciona os textos e, por meio das concepções que fundamentam as
atividades, assume uma posição política. Sua história revela essas peculiari-
dades e orienta a identificação dos conceitos linguísticos nesses “manuais”.
Durante o período do regime militar, o interesse em produzir mão de
obra e a expansão do ensino para a rede privada favoreceram a escassez de
discussões sobre o currículo, e o pensamento crítico não tinha utilidade. Com
o período de redemocratização, se buscou mudanças na educação brasileira,
mas a desigualdade social marcou a política educacional. Nos anos 1990, foi
promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
que, entre outras determinações, indicou a construção de currículos com uma
base nacional comum. Com a nova LDB, surgiu a definição dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN). Nessa época, a importância dos livros didáticos
ganhou nova dimensão.
A prática de ensino de língua portuguesa no Brasil atendia, desde os anos
1950 até o final do século XX, às camadas sociais mais elitizadas. Assim,
os alunos passavam da alfabetização aos estudos da retórica e da poética da
língua latina. Apenas com a massificação do acesso à escola, na segunda
metade do século XX, é que a disciplina de português sofreu modificações:
seu foco passou a ser o ensino do padrão da norma culta da língua. Em 1971,
foi promulgada a Lei nº 5.962, que estabelecia a necessidade de ressaltar o
valor da língua nacional.
Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos 3

Dessa forma, a concepção de linguagem passou do sistema da norma


culta para o elemento da comunicação. Em razão disso, o ensino pretendia
contemplar os mais diversos tipos de leitura. Veja o que afirma Soares
(1998, p. 58):

[...] o ensino da língua teve como referencial a teoria da comunicação nos


anos 70 e os primeiros anos de 80. Já na segunda metade dos anos 80 surgem
críticas a respeito do ensino da língua por parte daqueles que denunciavam os
problemas de leitura e de escrita ocorridos em redação de vestibular.

Com o surgimento e o aprofundamento de estudos na área de textos (teoria


do texto e do discurso), houve mudanças nas concepções de ensino de portu-
guês. Abriu-se espaço para a sociolinguística e para as variações linguísticas.
Assim, incorporaram-se nas aulas de língua portuguesa questões de interação
com os diversos tipos de textos.
Nos anos 1990, o ensino de português ganha fundamentação na linguís-
tica, na pragmática, na linguística textual, na psicolinguística e na análise
do discurso. Assim, surge a necessidade de reformular as bases teóricas e
metodológicas das aulas. Afinal, a língua passa a ser vista como discurso, e não
só comunicação; além disso, se insere num contexto relacionado às questões
sociais e históricas (SOARES, 1998). Isso significa que o aluno de português
também recebe um novo olhar: ele passa a ser um sujeito que interage com o
texto e que constrói conhecimento com a linguagem. Os PCN de 1997 e 1998
revelam sintonia com essas ideias e concepções de língua.
Em 2018, foi divulgada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que,
além de revelar sua concepção de língua para a área de língua portuguesa,
indica o trabalho com linguagem em diferentes disciplinas. Aliás, essa indi-
cação já aparece desde a educação infantil, no campo das experiências. Na
área de língua portuguesa, há a seguinte afirmação:

O componente Língua Portuguesa da BNCC dialoga com documentos e orien-


tações curriculares produzidos nas últimas décadas, buscando atualizá-los
em relação às pesquisas recentes da área e às transformações das práticas de
linguagem ocorridas neste século, devidas em grande parte ao desenvolvimento
das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC). Assume-se
aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em
outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
2017a, p. 67).
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Como você pode notar, a concepção de linguagem é um conceito linguís-


tico importante na elaboração de um livro didático. De forma geral, há três
possibilidades de concepções: “[...] linguagem como expressão do pensamento,
linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma de
interação [...]” (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011, p. 479).
Para a primeira perspectiva, o ensino de português centra-se na aplicação de
regras gramaticais e na leitura de textos literários reconhecidos, como ocorreu
no Brasil na década de 1960. Para a segunda, as atividades de português devem
oferecer modelos a serem seguidos, e os textos são tratados como pretextos
para atingir outros objetivos, como os relacionados às questões gramaticais.
Portanto, o ensino da língua é descritivo: constata-se a existência de variantes
linguísticas, mas as que não são a padrão não são tratadas como formas legí-
timas da língua. Para a terceira perspectiva, “[...] a reflexão sobre a língua é
feita mediante a compreensão, a análise, a interpretação e a produção de textos
verbais [...]” (FUZA; OHUSCHI; MENEGASSI, 2011, p. 490).
A concepção de linguagem escolhida permeia o trabalho com todos os
conceitos linguísticos. A forma como eles são tratados no livro didático indica
a concepção de linguagem que fundamenta a obra. Assim, a maneira como
os conhecimentos linguísticos são sistematizados revela os posicionamentos
dos autores.
Portanto, identificar os conceitos e analisar como eles são sistematizados
é uma ação fundamental no uso do livro didático em aulas de língua portu-
guesa. Por exemplo, se há debate sobre o tema e exercícios estruturais antes
da apresentação dos conceitos, é sinal de que existe um interesse maior em
trabalhar a gramática a serviço do texto, e não o contrário. No entanto, se a
língua é encarada de forma desvinculada do uso social, as atividades parecerão
descontextualizadas e distantes da vivência dos alunos.
De forma geral, os livros didáticos atuais buscam introduzir novos enfoques
a partir de uma concepção de língua que considera o contexto. Entretanto,
essa maneira de trabalhar e compreender a disciplina convive com teorias e
práticas mais antigas.
Aliás, esta é uma característica do ensino de língua portuguesa atual: as
transformações se misturam com as permanências. Isso pode ser visto nos
conceitos linguísticos dos livros didáticos. Afinal, se os modelos mais antigos
tinham como foco o ensino gramatical centrado na frase e na palavra, se
estavam fundamentados na teoria da comunicação, se o ato da escrita não
era priorizado e se a oralidade era ignorada, os atuais modelos modificaram
o enfoque: o texto é o centro, aliado à interlocução, ao ato da escrita, à leitura
e às particularidades da língua falada.
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De forma geral, deve-se observar:

 como a seção de análise linguística é organizada;


 como as atividades dessa seção são formuladas;
 quais são os objetos de ensino privilegiados por essas atividades;
 quais são as unidades e os níveis linguísticos a serem observados por
quem usa o livro, ou seja, os alunos;
 quais são os procedimentos metodológicos propostos para que os alunos
acessem e compreendam os conceitos;
 quais são as referências teórico-metodológicas de ensino de língua que
orientam as atividades.

Em suma, cada conhecimento linguístico presente em um livro didático estará


sistematizado de acordo com a visão de língua e a perspectiva de ensino de portu-
guês. Identificar a forma como os conhecimentos são tratados é um passo impor-
tante para escolher um recurso didático. Para tanto, é preciso observar com atenção
os estudos gramaticais a fim de verificar se são tratados com contextualização e
associados a variações linguísticas, ou se se privilegia o exercício da gramática
tradicional. Também é necessário verificar se as atividades são vinculadas às
vivências dos alunos, ou se não há articulação com uma situação de uso social.

Como as mudanças sempre são gradativas, é natural que coexistam visões de ensino e
formas diferentes de trabalhar os conceitos linguísticos. Consequentemente, os livros
didáticos acompanharão essa coexistência de perspectivas.

2 Uma tarefa completa nos livros didáticos


Os livros didáticos de português costumam se organizar em unidades. Essas
unidades geralmente são divididas por temáticas que orientam a escolha dos
textos trabalhados. Dentro de cada unidade, há seções dedicadas à leitura, à
interpretação de texto, à produção textual e à análise linguística. Os livros
atuais costumam apresentar essas seções sem uma divisão clássica entre texto
e gramática, como era comum nas décadas anteriores.
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Esse conjunto de seções, que costuma constituir uma unidade, forma


uma tarefa completa no livro didático. As unidades facilitam a análise do
professor: pode-se avaliar se é possível realizar um trabalho completo como
a unidade indica. Isso significa que o docente deve encontrar numa mesma
unidade uma abordagem que permita ao aluno utilizar as habilidades de
compreensão e produção textual com a apreensão e a aplicação das questões
gramaticais num trabalho único, que articule todas as dimensões de estudos
da língua portuguesa.
A organização de uma tarefa completa associa-se aos objetivos de apren-
dizagem, que devem se articular com:

 conteúdos procedimentais, de compreensão e de valorização da cultura


escrita e de apropriação do sistema da escrita, da leitura e da produção
de textos;
 linguagem oral;
 reflexão sobre a língua e a linguagem;
 construção de conhecimentos linguísticos.

Essa estrutura contemporânea surgiu em um contexto em que a concepção


de língua como interação passou a ser prioridade. Nesse contexto, surgiram
novos programas do governo destinados à avaliação do livro didático e foram
promulgados os PCN.
Dessa forma, um dos elementos essenciais de uma tarefa de livro didá-
tico de português é a compreensão da escrita. Esse processo inclui não só
a convivência com livros, mas também o uso de recursos de estruturação
do texto. Para tanto, o autor do livro didático pode usar textos literários ou
apenas indicar que o usuário busque livros em bibliotecas. Nas palavras de
Rangel (2006, p. 46):

Quanto mais um LDP [Livro Didático de Português] se apresenta bem edito-


rado, como livro, mais esses aspectos da cultura escrita podem ser percebidos
pela criança e explorados pelo professor em sala de aula. A organização da
matéria evidenciada por recursos gráficos apropriados — como a indivi-
dualização de capítulos e unidades, a demarcação de seções, a sinalização
gráfica do texto etc. — e o diálogo do livro com o aluno, na forma de ilustra-
ções adequadas e motivadoras, por exemplo, são itens relevantes para uma
avaliação desse aspecto.
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Outro elemento da unidade de um livro de português diz respeito à leitura,


isto é, à exploração de textos presentes na unidade e à atividade de compreen-
são e interpretação. Já o item linguagem oral deve estar presente nas seções
referentes às atividades de leitura e produção de textos para que leve à reflexão
sobre as relações entre fala e escrita. Isso significa que os textos apresentados
e as propostas de produção devem contemplar gêneros orais. Além disso, as
atividades devem se associar ao desenvolvimento das habilidades necessárias
à proficiência oral em diferentes situações.
Na unidade do livro didático, a seção destinada à construção de conheci-
mentos linguísticos deve apresentar uma articulação com a reflexão sobre a
linguagem e com a análise de fatos. Isso implica o oferecimento de situações
de leitura e produção de texto. Na Figura 1, veja um esquema que representa
essa organização.

Tarefa completa Unidade Dividida em


Capítulos/
seções

Deve desenvolver
Leitura,
habilidades
produção de
esperadas no ensino
textos,
contemporâneo de
oralidade,
língua portuguesa
análise
linguística/
semiótica

Figura 1. Organização de unidade de livro didático.

Em suma, em cada unidade do livro didático, há a articulação entre as


habilidades que se deseja trabalhar no ensino de língua portuguesa. Quer ver
um exemplo? O livro Português: linguagens, de Cereja (2013), costuma ser
uma das principais opções dos docentes da área de linguagens para utilização
em sala de aula. Na Figura 2, observe a organização do sumário da Unidade
1 do volume destinado ao ensino médio.
8 Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos

Figura 2. Sumário do livro Português: linguagens.


Fonte: Adaptada de Cereja (2013).
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Note que o tema que articula todas as seções da Unidade 1 é relacionado


à história da literatura, à literatura na Baixa Idade Média. Pelo sumário, se
percebe que a seleção de textos para leitura e interpretação abarca tanto escri-
tos literários quanto textos teóricos sobre o tema. As propostas de produção
textual também se articulam com o assunto da unidade e se desdobram de
acordo com o gênero textual trabalhado na seção.
Veja que a indicação da habilidade enfocada no capítulo está indicada logo
abaixo do número do capítulo. Assim, Português: linguagens apresenta uma
divisão para o trabalho com cada elemento indicado nos currículos para ser
desenvolvido nas aulas de português: literatura, produção de texto, língua (uso
e reflexão) e interpretação de texto. Nessa divisão, um ponto se destaca: não há
uma seção para a gramática ou para a apresentação de conceitos linguísticos;
isso é sinal de que as questões gramaticais são selecionadas de acordo com
a necessidade do texto. Aliás, a desvinculação do enfoque da norma culta
garante que se explorem assuntos e conceitos de acordo com a textualidade
(CEREJA, 2013).
O Capítulo 7 da Unidade 1 é dedicado exclusivamente às variedades lin-
guísticas. Contudo, a forma como esse assunto é apresentado revela que a
finalidade não é discorrer sobre o tema isoladamente, e sim levar o aluno/
leitor a compreender o uso e a adequação de cada variedade na construção
do texto (CEREJA, 2013).
O exemplo do livro didático Português: linguagens revela que uma uni-
dade pode, sim, oferecer uma tarefa completa com as habilidades que se
espera desenvolver em aulas de língua portuguesa. Contudo, é preciso que o
docente faça as “costuras” necessárias e articule as propostas do livro com
as necessidades dos alunos. Muitas vezes, o livro apresenta uma sequência de
capítulos que não condiz com os interesses dos estudantes e dos professores
(CEREJA, 2013).
Considere, por exemplo, a Unidade 3 do livro Português: linguagens, inti-
tulada “Barroco: a arte da indisciplina”. No Capítulo 2, destinado à produção
de textos, o tema é “gêneros instrucionais”. Nesse caso, o assunto geral da
unidade é deixado de lado para que um assunto mais contemporâneo ganhe
espaço. O interessante é que o capítulo apresenta uma diversidade de textos,
autores e veículos de publicação. Consequentemente, o aluno tem acesso a
linguagens e estruturas textuais diversas. Além disso, é possível observar
as variedades linguísticas. As atividades buscam problematizar os assuntos
tratados nos textos considerando o gênero em destaque e oferecem ao aluno
a oportunidade de ser escritor de situações semelhantes às vividas por ele no
seu dia a dia (CEREJA, 2013).
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Ainda na Unidade 3, no Capítulo 9, destinado ao uso e à reflexão sobre


a língua, a construção do conceito de acentuação gráfica é articulada com
a leitura de um poema e com perguntas que visam à compreensão do texto.
Nesse processo, observa-se o papel dos acentos na construção de sentido do
texto. Dessa forma, mais uma vez, os conhecimentos linguísticos trabalha-
dos no livro didático estão a serviço do texto. Apenas após esse processo
de construção é que o autor apresenta o conceito de acento tônico e acento
gráfico. Os exercícios misturam questões estruturais (como as que pedem
que o aluno acentue corretamente as palavras e indique a regra de acentuação
correspondente) com questões contextualizadas, que consideram situações
reais de uso da língua (como as que pedem que os alunos analisem placas
encontradas na internet e no trânsito). Além de utilizar situações do cotidiano,
o autor trabalha as relações do assunto “acentuação gráfica” com a construção
do texto, explorando a comicidade de uma tira (CEREJA, 2013).
Na Unidade 3, no capítulo destinado à interpretação de texto, há um es-
forço para que o aluno desenvolva sua reflexão crítica. Para tanto, os assuntos
“comparação” e “memorização” são apresentados depois de o aluno realizar
uma atividade que exige operações concomitantes (análise, identificação,
comparação de informações de textos) e depois de ele consultar seu conhe-
cimento prévio sobre o mundo medieval. Nesse ponto, evidencia-se a relação
do capítulo com o assunto geral da unidade (CEREJA, 2013).
Para finalizar a unidade, o autor ainda disponibiliza uma série de questões
do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A ideia é que o leitor identifique,
no concurso aplicado para selecionar alunos para ingressar na graduação, os
assuntos trabalhados na unidade do livro (CEREJA, 2013).

Em síntese, uma tarefa completa no livro didático exige a articulação de diferentes


habilidades e assuntos aos quais o ensino de língua portuguesa se dedica hoje. Entre
eles, destacam-se: leitura, interpretação e produção de textos, reflexão sobre a lingua-
gem, linguagem em uso, conhecimentos linguísticos na construção e na compreensão
de textos. Portanto, é importante que o docente de português observe as unidades
integralmente para analisar a pertinência de seu uso a fim de desenvolver os objetivos
traçados para essa disciplina.
Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos 11

3 O que é um livro didático adequado?


A história do livro didático brasileiro se associa diretamente à história do
País. Dessa forma, quando se iniciou o processo de redemocratização do
acesso aos sistemas de ensino brasileiros, surgiu também a necessidade de
livros didáticos com novas funções. Desde os anos 1970, o governo apoiava
a distribuição de livros didáticos, que passaram a ser produzidos de acordo
com programas de ensino. Entretanto, foi a partir dos anos 1990 que ocorre-
ram as principais mudanças. Uma dessas mudanças diz respeito à avaliação
pedagógica dos livros didáticos inscritos no Programa Nacional do Livro e
do Material Didático (PNLD).
Essa avaliação pretendia auxiliar os professores e as escolas na seleção dos
livros a serem adotados. Mas, para além disso, contribuiu de forma significativa
com o aumento da responsabilidade das editoras e dos autores na elaboração
de materiais com qualidade técnica e em sintonia com as concepções de ensino
de língua portuguesa contemporâneas.
Ademais, sabe-se que a maior parte das escolas brasileiras é mantida pelos
governos; logo, a escolha dos recursos utilizados nessas escolas é um fator
relevante para a qualidade do ensino desenvolvido. Afinal, muitos professo-
res têm apenas o livro didático como recurso para suas aulas e costumam
orientar-se somente por esse instrumento para planejar e mediar o processo
de aprendizagem de seus alunos.
O PNLD, por meio do Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, determinou
o seguinte:

Art. 10. A avaliação pedagógica dos materiais didáticos no âmbito do PNLD


será coordenada pelo Ministério da Educação com base nos seguintes critérios,
quando aplicáveis, sem prejuízo de outros que venham a ser previstos em edital:
I – o respeito à legislação, às diretrizes e às normas gerais da educação;
II – a observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania
e ao convívio social republicano;
III – a coerência e a adequação da abordagem teórico-metodológica;
IV – a correção e a atualização de conceitos, informações e procedimentos;
V – a adequação e a pertinência das orientações prestadas ao professor;
VI – a observância às regras ortográficas e gramaticais da língua na qual a
obra tenha sido escrita;
VII – a adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico; e
VIII – a qualidade do texto e a adequação temática (BRASIL, 2017b, docu-
mento on-line).
12 Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos

Além desses critérios gerais, para avaliar a adequação de um livro didático,


é preciso que o professor de português recorra aos objetivos do ensino de língua
portuguesa. Para tanto, observe a afirmação da BNCC (BRASIL, 2017a, p. 67):

Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos estudantes


experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a
possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais
permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens.

Essa indicação da BNCC orienta o percurso das aulas de português: deve-se


desenvolver a reflexão crítica por meio de atividades relacionadas à realidade so-
cial e do uso da variedade de linguagens. Mais adiante, a BNCC (BRASIL, 2017a,
p. 71) indica práticas de linguagem que devem estar presentes nos currículos:

Considerando esse conjunto de princípios e pressupostos, os eixos de integração


considerados na BNCC de Língua Portuguesa são aqueles já consagrados nos
documentos curriculares da Área, correspondentes às práticas de linguagem:
oralidade, leitura/escuta, produção (escrita e multissemiótica) e análise linguís-
tica/semiótica (que envolve conhecimentos linguísticos — sobre o sistema de
escrita, o sistema da língua e a norma-padrão —, textuais, discursivos e sobre
os modos de organização e os elementos de outras semioses). Cabe ressaltar,
reiterando o movimento metodológico de documentos curriculares anteriores,
que estudos de natureza teórica e metalinguística — sobre a língua, sobre a
literatura, sobre a norma padrão e outras variedades da língua — não devem
nesse nível de ensino ser tomados como um fim em si mesmo, devendo estar
envolvidos em práticas de reflexão que permitam aos estudantes ampliarem
suas capacidades de uso da língua/linguagens (em leitura e em produção) em
práticas situadas de linguagem.

Para tanto, a BNCC estabelece eixos de desenvolvimento dos objetivos da


área: leitura, produção de textos, oralidade, análise linguística/semiótica. Esses
eixos auxiliam o professor de português a avaliar inicialmente os livros didáticos.
A leitura é a ação básica para a compreensão e a valorização da cultura
escrita. Portanto, um importante critério de avaliação do livro didático é se ele
apresenta os aspectos da cultura; e é fundamental que os recursos gráficos e
as imagens contribuam para isso. Rangel (2006, p. 47) afirma que o professor
deve se perguntar:

– A obra é bem editorada?


– Contribui satisfatoriamente para apresentar e familiarizar o aluno com a
forma do livro e com o funcionamento social da escrita?
Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos 13

– A organização da obra — unidades, capítulos, seções — é facilmente per-


ceptível pela criança?
– Os volumes fazem referências a outros livros e a outros tipos de impresso?
– Propõem ou sugerem alguma atividade que demande o recurso a outros
livros ou impressos?
– Manifestam, na reprodução dos textos, diversidade de suportes de escrita?
– Despertam no aluno a curiosidade e o interesse pela cultura escrita?

Além da conexão com a cultura, a leitura também se associa às atividades


de compreensão e interpretação textual. A experiência de leitura, portanto,
exige o acesso a diferentes textos, isto é, a variados gêneros, à diversidade
da produção escrita. Para Rangel (2006, p. 48), as questões que devem ser
avaliadas nesse item são:

– Que gêneros e que tipos de texto o LDP propõe para cada série ou ciclo?
– Que tradições letradas — como o cordel, a literatura, a correspondência
pessoal, as letras de música — estão representadas?
– Os autores selecionados compõem um conjunto representativo da literatura
brasileira disponível para crianças e jovens?
– Outros setores da literatura de língua portuguesa estão contemplados?
– A complexidade dos textos está bem dosada, em cada volume?
– Há gradação de complexidade, de um volume ao outro?
– Encaram a leitura como uma prática social e, portanto, como um processo
dialógico entre o autor, o leitor e o texto?
– Resgatam aspectos do contexto como parte da compreensão textual?
–Colaboram para a reconstrução dos sentidos do texto pelo leitor?
– Conduzem à depreensão de suas “ideias centrais”?
– No caso dos textos literários: permitem a depreensão do que há de particular
e único em cada um deles?
– Exploram procedimentos e recursos expressivos empregados no texto?
– Colaboram para a formação do leitor literário?

Quanto à produção de textos, a necessidade recai sobre o desenvolvi-


mento da habilidade escrita demandada pela sociedade. Da mesma forma que
acontece com a leitura, a escrita deve ser uma oportunidade de contato com
diferentes gêneros e propostas. Além disso, é fundamental que se explorem
os textos midiáticos atuais, inclusive hipertextos e textos digitais. Aliás, o
processo de redação não pode estar desvinculado de um processo reflexivo,
de leitura (de textos, de mundo, de imagens, etc.). Vale ressaltar que a escrita
não necessariamente deve ser individual nem solitária. A produção de textos
colaborativos facilita a reflexão e a produção de uma análise crítica coletiva.
Rangel (2006, p. 49) seleciona os seguintes questionamentos sobre esse item:
14 Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos

– O LDP considera a produção de textos como um processo?


– As diferentes etapas desse processo — planejamento, escrita, avaliação,
reescrita e revisão — são exploradas?
– As atividades envolvem situações de produção plausíveis, com destinatários
definidos?
– Os gêneros e tipos de texto que o LDP leva o aluno a produzir contemplam
o currículo definido pela escola?
– Os temas propostos são pertinentes e viáveis para o aluno?
– O LDP fornece subsídios significativos para a construção do texto pelo
aluno, quanto ao tema, à organização dos conteúdos e quanto à estruturação
global que é mais usual para o gênero a ser produzido?

A linguagem oral é outro elemento constituinte dos eixos de trabalho com


a disciplina de português. Ela trata tanto da produção de textos orais espontâ-
neos — oriundos, por exemplo, de debates — quanto de textos pré-elaborados,
como as apresentações de seminários e mesas-redondas. Para Rangel (2006,
p. 50), esse item merece os seguintes questionamentos:

– Em que medida o LDP favorece o uso da linguagem oral, tanto na interação


em sala de aula quanto nas atividades de leitura e produção?
– As diferenças e semelhanças entre a oralidade e a escrita são exploradas?
– No caso de livro de alfabetização: há, no livro do aluno, propostas de análise
e reflexão sobre as relações entre fala e escrita relevantes para a compreensão
da natureza alfabética e ortográfica do sistema de escrita do português?
– Há, no manual do professor, recomendações para que o docente esteja atento
às prováveis interferências da linguagem falada pelos alunos nas hipóteses que
eles elaboraram quanto à grafia das palavras? Há orientações ou sugestões
sobre como intervir em alguns casos mais típicos?
– Há propostas de ensino-aprendizagem de gêneros orais próprios de situações
públicas mais formais?
– As atividades propostas mobilizam as capacidades e habilidades necessárias
ao desenvolvimento da proficiência oral do aluno?

Já as questões relacionadas à linguagem devem se articular com os conhe-


cimentos linguísticos de forma a contribuírem com a leitura e com a produção
de textos. Quando os conhecimentos linguísticos oportunizam a reflexão e
a análise dos fatos, cumprem seu papel no contexto da comunicação e da
linguagem como interação. Os aspectos que devem ser questionados, segundo
Rangel (2006, p. 51), são:

– Os momentos de reflexão sobre a linguagem estão relacionados a situações


de uso da língua, como a leitura, a produção de textos e a linguagem oral?
– Os conceitos mobilizados são pertinentes, do ponto de vista dessas situações?
Livros didáticos da língua portuguesa: história e usos 15

– A terminologia empregada é adequada, precisa e correta?


– As atividades permitem a observação, a análise, a generalização, a memo-
rização e a aplicação?
– A concepção de língua construída ao longo da coleção é cientificamente válida?
– A variação linguística é objeto de estudo?
– A norma-padrão é abordada adequadamente, ou seja, como uma normati-
zação artificial da língua, e não como a própria língua?
– No caso de livro de alfabetização: a obra encaminha o processo de modo a
proporcionar ao aprendiz situações sistemáticas e suficientes de observação,
comparação e análise dos fenômenos que estão em jogo na compreensão da escrita
alfabética e ortográfica (fonemas, letras, sílabas, partes de palavras, palavras)?

Em suma, a escolha do livro didático é de grande relevância para o de-


senvolvimento da aprendizagem dos alunos e, consequentemente, para a
qualidade do ensino de português. O êxito da escolha depende, em especial,
da análise dos eixos principais que permeiam o trabalho em língua portuguesa
atualmente: leitura, produção de texto, oralidade e conhecimentos linguísticos.

BRASIL. Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017. Brasília: Presidência da República, 2017b.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/
D9099.htm. Acesso em: 01 fev. 2020.
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