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LEITURA DE TEXTOS ACADÊMICOS EM LÍNGUA ESPANHOLA

A PARTIR DA ABORDAGEM MULTICULTURAL

Aline Silva Gomes1


(PG - Universidade do Estado da Bahia/Bolsista CAPES)

A formação docente no Brasil tem sido um dos temas mais discutidos e explorados no
âmbito educacional nas últimas décadas e, no que se refere ao processo de
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras, os conceitos de interculturalidade e
multiculturalidade têm servido de alicerce para práticas pedagógicas, gerando bons frutos.
Com a finalidade de contribuir de alguma maneira nestas discussões e no contexto em
que estamos inseridos, decidimos compartilhar nossa experiência docente com o objetivo de
fazer uma reflexão sobre o ensino de leitura de textos acadêmicos em língua espanhola,
tomando como referência o trabalho desenvolvido entre os alunos dos cursos de graduação da
Universidade Federal da Bahia – UFBA, no segundo semestre de 2010.
Para iniciar nossa exposição gostaríamos de relembrar que definir o conceito de
compreensão leitora, tanto na aprendizagem de língua materna, quanto na aprendizagem de
língua estrangeira, é uma tarefa complexa, devido ao fato de que nesta atividade estão
envolvidas diversas variáveis como cognitivas, sociais, biológicas, culturais, etc., que se
entrecruzam de forma dinâmica. Para Kleiman (1989, p. 10), a leitura vai muito além de um
ato cognitivo, ou seja, “é um ato social onde leitor e autor interagem entre si, dialogam, e
seguem os objetivos e necessidades estabelecidos na sociedade em que se encontram.”
Concordamos com a autora, quando cita também que nós, os docentes, obviamente,
não podemos ensinar um processo cognitivo, mas que nossa missão nesse cenário é fomentar
meios e oportunidades que possibilitem aos alunos o desenvolvimento da habilidade leitora.
Entretanto, precisamos conhecer cada vez mais os processos e estratégias que fazem parte
dessa tarefa e, consequentemente, este conhecimento nos ajudará a realizar uma prática
pedagógica sólida e frutífera. A leitura constitui um instrumento imprescindível na vida
acadêmica, não somente pela atividade em si mesma, mas porque significa, em muitas
situações, o ponto inicial para as inúmeras tarefas que exigem para a sua execução a
compreensão prévia de um texto escrito, como, por exemplo, as orientações dos exercícios,

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB.
consulta de esquemas gramaticais, a preparação de apresentações orais (os chamados
seminários) a partir da leitura de artigos, entre muitas outras.
Refletindo sobre a realidade brasileira, nos perguntamos: Qual o propósito dos alunos
dos cursos de Graduação ao se matricularem na disciplina Leitura de textos Acadêmicos em
Língua Espanhola? Por que e para que os estudantes dessa universidade almejam desenvolver
habilidades de compreensão leitora em espanhol em nível acadêmico?
Ao realizar o levantamento das necessidades do público alvo, através da sondagem
dos alunos no início do curso, constatamos que em geral os estudantes são atraídos pela
disciplina: a) pela possibilidade de encontrar ferramentas que facilitem a leitura de textos de
caráter científico ligados a sua área de estudo; b) pela afinidade que têm com a língua
espanhola, ou seja, por gosto; c) pela oportunidade de ter um contato com a cultura hispânica
em geral; d) pela crença de que o espanhol é uma língua “fácil”, devido à proximidade desta
com a língua portuguesa em diversos níveis.
Para discorrer sobre o tema proposto, dividimos esta apresentação em quatro seções:
na primeira, entregaremos breves noções sobre texto acadêmico, discurso acadêmico e gênero
textual. Em seguida discorreremos, de forma introdutória, sobre a abordagem multicultural de
ensino de línguas estrangeiras. Mais adiante, explicaremos o funcionamento da disciplina
Leitura de Textos Acadêmicos em Língua Espanhola desenvolvido na Instituição, dando
detalhes sobre a ementa, objetivos, programa, materiais utilizados nas aulas e um exemplo de
atividade desenvolvida. Nas considerações finais, trataremos as relações entre o leitor e o
texto na prática de compreensão leitora.

1. O TEXTO ACADÊMICO, O DISCURSO ACADÊMICO E GÊNERO TEXTUAL.

Segundo Marcuschi (2005), as noções de texto e de discurso normalmente são


confundidas entre os estudiosos de diferentes áreas. Entretanto, o autor propõe definições
pragmáticas para ambos os termos, a fim de facilitar sua compreensão, ele define texto como
“uma unidade concreta realizada materialmente e corporificada através de um gênero textual”
e discurso como “aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância
discursiva”.
Adotamos também o conceito de gêneros textuais, apresentado por Marcuschi (2005,
p. 22) que os define como “textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilos e composição característica”. Em outras palavras, os gêneros textuais se
manifestam através de práticas sociais e históricas relacionadas, de maneira intrínseca, com a
vida cultural e social de um determinado povo. Estão presentes nas atividades humanas do
dia-a-dia e têm como objetivo organizar as comunicações interpessoais. Eles são inúmeros e
ilimitados, podem adaptar-se a novos contextos sócio-históricos, surgem e podem
desaparecer, conforme as mudanças e transformações que ocorrem na sociedade.
Entendemos domínios discursivos, expressão utilizada por Marcuschi (2005), como a
especificação dos espaços em que se dão os discursos, na atividade humana. Esses espaços,
por suas características, favorecem ao surgimento de práticas comunicativas específicas, que
diversas vezes são inerentes a eles. Como exemplo, temos os domínios jurídico, jornalístico,
religioso e acadêmico, sendo este último o objeto de nossa discussão. Dessa forma, podemos
considerar que as atividades acadêmicas, tanto orais, quanto escritas, como o elenco de
práticas ou rotinas de comunicação desenvolvidas em um ambiente institucionalizado: o
ambiente acadêmico.

2. SOBRE A ABORDAGEM MULTICULTURAL

Mota (2004) propõe reflexões sobre o ensino/aprendizagem de línguas a partir da


perspectiva multicultural. O multiculturalismo é uma abordagem que argumenta que ensinar
uma língua estrangeira não é apenas se ater a aspectos linguísticos, mas sim associá-los à
cultura a qual eles representam.
Ao falar do multiculturalismo no livro Recortes Interculturais na Sala de Aula de
Línguas Estrangeiras, a autora afirma que o ensino e a cultura em classe devem tentar
estabelecer o diálogo entre os conteúdos culturais que circulam nas práticas de
ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras.
Conforme a autora, a pedagogia multicultural pode ser descrita da seguinte forma:

A pedagogia multicultural acredita na valorização da voz do sujeito/professor e do


sujeito/estudante, assim como no desenvolvimento da sensibilidade de escuta às múltiplas
outras vozes, desconstruindo a polarização dos saberes e assumindo, através do
dialogismo, uma perspectiva de construção do conhecimento de forma dialética e
multidimensional. (MOTA, 2004, p.41).

Banks (1993, p. 23) e Mota (2004, p. 44) afirmam que a proposta multicultural de
ensino, que pretende trabalhar de forma crítica e ao mesmo tempo revolucionária, deve
considerar quatro áreas de ação com objetivos específicos que são: a integração dos
conteúdos, a construção do conhecimento, a pedagogia da equidade e o empoderamento da
cultura popular. Segundo este modelo de ensino, a sala de aula deverá ser um ambiente que
proporcione oportunidades para que discentes e docentes compartilhem suas experiências,
façam reflexões e questionamentos, expressando suas idéias de forma autêntica.
Esta abordagem, assim como outras, como o comunicativismo, por exemplo, possui
suas próprias concepções de língua/linguagem, ensinar e aprender e o papel do professor em
classe.
Em seguida, trataremos do funcionamento da disciplina Leitura de Textos Acadêmicos
em Língua Espanhola.

3 A ORGANIZAÇÃO DO CURSO DE LEITURA DE TEXTOS ACADÊMICOS EM


LÍNGUA ESPANHOLA DA UFBA

3.1 Justificativa e objetivo geral da disciplina

A disciplina Leitura de Textos Acadêmicos em Língua Espanhola, criada pelo


Departamento de Letras Românicas da UFBA no ano de 2005, tem como objetivo atender as
necessidades dos alunos matriculados em todos os cursos de graduação oferecidos pela
Instituição que necessitam desenvolver a prática leitora de textos acadêmicos em espanhol. A
disciplina em questão visa a capacitação dos estudantes na aplicação de estratégias específicas
que os levem a compreensão de textos na área de Ciências Humanas, na língua mencionada.
A carga horária total é de 68 horas que são ministradas em um semestre, sendo um
componente curricular obrigatório para os estudantes dos cursos de Bacharelado em Letras
Vernáculas e Bacharelado em Letras Clássicas e optativo para os alunos dos demais cursos de
graduação. É importante salientar que, para matricular-se na matéria, exige-se como pré-
requisito a aprovação na disciplina Leitura de Textos em Língua Espanhola, que tem como
objetivo a aplicação de estratégias específicas que levem ao nível inicial de compreensão de
textos de natureza diversa em espanhol.

3.2 Objetivos específicos

Para alcançar o nosso objetivo central, estabelecemos alguns objetivos específicos que
foram: a) revisar as estratégias básicas de leitura que os auxiliassem na compreensão de textos
escritos; b) promover entre os alunos uma reflexão crítica acerca dos conteúdos abordados,
através da leitura de textos de diferentes tipologias e gêneros textuais; c) dar prosseguimento à
reflexão de algumas diferenças entre a gramática do espanhol e do português a fim mostrar
que a língua materna pode funcionar como um elemento facilitador no desenvolvimento da
habilidade leitora na língua meta, em nosso caso o espanhol; d) promover a produção de
leituras críticas dos textos, considerando a intencionalidade de cada discurso; e) possibilitar
que o aluno tenha acesso aos bens culturais, ampliando sua capacidade de reflexão no mundo
letrado.

3.3 Programa

Conforme o conteúdo programático, apresentamos durante a disciplina os seguintes


conteúdos: 1) elementos e características dos textos científicos; 2) formas de exposição das
idéias num texto; 3) modos de organização dos textos do tipo argumentativo e expositivo; 4)
descrição como elemento da exposição; 5) técnicas mais frequentes empregadas na exposição
e na argumentação; 6) elementos e características do ensaio; 7) noção de resumo; 8) gramática
em contexto.

3.4 Sobre os materiais utilizados

Ao elaborar o plano de curso da disciplina, e fazer um levantamento da bibliografia


específica para este fim, constatamos que, infelizmente, ainda são escassas as iniciativas de
elaboração de materiais didáticos na área de leitura de textos em espanhol e, em especial, de
publicações específicas que serviriam aos nossos objetivos. Desta forma, decidimos trabalhar
com materiais autênticos - seguindo o que sugere a teoria de ensino de línguas em geral -
estimulados também pelo motivo de que o nosso público alvo tinha contato com frequência,
fora do contexto acadêmico, com textos dessa natureza. Utilizamos textos escritos de
diferentes gêneros textuais, em especial ensaios, resumos, artigos científicos extraídos da
Internet e de revistas especializadas na área humanística, através do quais apresentamos os
conteúdos ao grupo.

3.5 Exemplos de atividades

Conforme o programa, propusemos aos estudantes da disciplina uma reflexão


sobre a argumentação. O tema foi introduzido em dois encontros. No primeiro, ministramos
uma aula expositiva acerca da argumentação e dos elementos que constituem o texto desta
natureza como a tese, os argumentos (explicando os tipos mais comuns) e a conclusão. Em
seguida, lemos um texto, predominantemente argumentativo2, do gênero ensaio, cujo título
era “Reflexiones sobre la Corrupción en México”. Queremos deixar claro que trabalhamos o
conceito de ensaio, com os estudantes, nas aulas anteriores.
Como o texto era extenso, o utilizamos nas classes seguintes, com outros
objetivos, conforme a programação. Durante a leitura, o grupo teve a oportunidade de colocar
em prática as estratégias de leitura que os auxiliou na compreensão do texto. Ao mesmo
tempo, realizamos uma reflexão sobre o assunto abordado - a corrupção no México-,
comparando-o com a realidade brasileira. Após a leitura e discussão do ensaio, os estudantes
realizaram uma atividade avaliativa escrita em duplas que consistiu na identificação –através
de perguntas - dos elementos da argumentação no ensaio lido, como a tese, os argumentos
utilizados e a conclusão do autor.
No segundo encontro tratamos também a argumentação, mas nesta ocasião
destacamos as características linguísticas consideradas mais comuns neste tipo de texto e as
técnicas mais frequentes. Para iniciar, exibimos uma charge, como texto complementar ligado
ao assunto do ensaio, para relembrar as discussões da aula anterior e dar seguimento ao
conteúdo programático. Mais adiante, apresentamos uma aula expositiva sobre a linguagem
dos textos argumentativos, destacando: as estruturas sintáticas, o emprego do léxico e as
partículas que servem para organizar o discurso – os marcadores e suas funções. Após a
exposição, os estudantes realizaram uma atividade que consistiu na seleção de marcadores
discursivos do texto e explicação de sua função no mesmo. Por último, eles produziram um
resumo escrito - prática comum no ambiente acadêmico - sobre o assunto abordado no ensaio.

3.6 Avaliação e análise geral das aulas

Ao longo da disciplina realizamos três atividades avaliativas: a primeira e a segunda


consistiram em provas escritas a partir da leitura de textos acadêmicos curtos das áreas de
Ciências Humanas como, por exemplo, psicologia, história, sociologia, etc. Nessas avaliações
os alunos deveriam encontrar respostas para perguntas elaboradas: uma prova foi aplicada na
metade do curso, e a outra, no final do semestre, para avaliar a compreensão de idéias do
texto, a partir de textos acadêmicos. A terceira avaliação consistiu tanto na observação da
participação ativa dos alunos durante a disciplina, examinando-os de forma processual em

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Segundo Marcuschi (2005), a heterogeneidade tipológica se dá quando um gênero apresenta mais de
um tipo.
suas práticas de resumo oral em sala de aula e práticas de resumo escrito de textos, fora de
sala de aula.
Após uma análise geral das aulas no final do semestre, verificamos que os objetivos
estabelecidos no início da disciplina foram alcançados de maneira satisfatória. Os alunos
participaram ativamente das atividades propostas e foram capazes de, ao longo do curso,
desenvolver estratégias cognitivas de leitura a partir de conhecimentos linguísticos, textuais e
conhecimento de mundo, de forma crítica. Também, pudemos observar que a cada encontro
os estudantes iam deixando de lado o temor à exposição pública e assim puderam expressar
livremente suas opiniões.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para terminar, concordamos com Mendes (2008) quando diz que os procedimentos
que o leitor utilizará para acercar-se ao texto estão diretamente relacionados ao gênero. Em
outras palavras, textos de gêneros diferentes exigem processos de leitura e escrita
diferenciados. Assim como a autora mencionada, acreditamos na necessidade de construção
de espaços nas instituições de ensino para pactos de leitura e de escrita, os quais devem
consistir na compreensão de que cada texto estabelece uma relação diferente com o seu
receptor e que o tipo de texto, o gênero e o suporte em que este está disponível orientarão a
forma como o leitor se acercará a ele.
Para finalizar, concordamos com Kleiman (1989, p. 8) quando diz que “o caminho
para chegar a ser um bom leitor consiste em ler muito”, ou seja, através da leitura o indivíduo
poderá alcançar uma compreensão melhor do mundo que o rodeia e, consequentemente,
transformar-se em um agente de mudanças na sociedade.

REFERÊNCIAS

BANKS, J.& BANKS, C. Multicultural education: issues and perspectivas. Needham


Heights, MA: Allyn & Bacon, 1993.

BASSOLS TOMASSINI, A. Reflexiones sobre la corrupción en México. In: Instituto de


Investigaciones Filosóficas UNAM. Disponível em: <
http://www.filosoficas.unam.mx/~tomasini/ENSAYOS/Corrupcion.pdf>. Acesso em: 5 de
out. 2010.

KLEIMAN, Â. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7ª ed. Campinas: Pontes, 1989.
MARCUSCHI, L.A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Â.;
MACHADO, A. R; BEZERRA, M.A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna,
2005.

MENDES, E. Tipos e gêneros textuais: modos de leitura e de escritura. Revista Signum:


Estudos de Linguagem, Londrina, n. 11/1, 2008. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/signum/article/view/3089>. Acesso em: 3 de mai.
2011.

MOTA, K.M.S. Incluindo as diferenças, resgatando o coletivo – Novas perspectivas


multiculturais no ensino de línguas estrangeiras. In: MOTA, K.M.S; SHEYERL, D.(Orgs.).
Recortes Interculturais na sala de Línguas Estrangeiras. Salvador: EDUFBA, 2004 p. 37 –
60.

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