Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
LÍNGUA PORTUGUESA
Resumo: Estabelecido oficialmente há duas décadas, com a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Fundamental (BRASIL, 1998) e, mais recentemente, com a publicação da Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), o ensino de Língua Portuguesa instaura a sua
significância no desenvolvimento da capacidade sociodiscursiva dos alunos, corroborando um
entendimento de língua como atividade social, processo de interação entre sujeitos que se realiza na
apropriação dos diversos gêneros textuais/discursivos. Dessa forma, o professor deve pensar em
situações didáticas que desenvolvam as práticas de linguagem – leitura, análise linguística/semiótica e
produção de textos – apoiando-se o trabalho pedagógico em uma dinâmica de ação e reflexão. No
entanto, apesar de o texto estar presente na sala de aula, a noção do que seja ensinar língua portuguesa
a falantes nativos dessa língua no Brasil ainda não ultrapassou o domínio de uma prática pedagógica
“conteudista” e “gramatiqueira” para uma prática focada no uso efetivo da língua, manifesto nos mais
diversos textos. A partir da análise de exercícios propostos em livro didático de Ensino Médio, este
trabalho discute a abordagem da língua na relação da prática de leitura com a análise
linguística/semiótica, refletindo sobre a persistência de uma abordagem pedagógica distanciada dos
preceitos sociointeracionistas.
Considerações iniciais
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina
(UEL), área de concentração em Linguagem e Educação. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS). E-mail: lucyenepaula@gmail.com
583
apresentaremos a análise de exercícios de um livro didático formulados a partir de excertos de
três textos literários, apresentando, por fim, as considerações/reflexões pertinentes.
2
Ainda que este documento seja referente aos anos finais do Ensino Fundamental e o livro analisado seja para o
Ensino Médio, a consideração do documento é válida, uma vez que os PCN ainda se constituem como base de
orientação para a Educação Básica e apresenta orientações mais concretas que os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), ademais de o Ensino Médio, como etapa posterior, dever
potencializar os objetivos pretendidos expressos nos PCN.
3
No Brasil, as críticas ao ensino de língua materna, baseado nas atividades metalinguísticas e no chamado
ensino tradicional de gramática tomou força já na década de 1980. A publicação de “O texto na sala de aula”, em
1984, organizado por João Wanderley Geraldi, constitui o marco do início da luta para uma mudança de
perspectiva em relação ao ensino de Língua Portuguesa.
584
p. 33). Receber ativamente o texto, refletir sobre a presença dos elementos linguísticos
pertinentes para o(s) significado(s) nele engendrado(s) e agir como produtor eficiente de
texto(s) configuram o desenvolvimento das práticas de leitura, análise linguística e produção
de textos.
No entanto, apesar de o texto estar presente na sala de aula, a noção do que seja
ensinar língua portuguesa a falantes nativos dessa língua no Brasil ainda não ultrapassou o
domínio de uma prática pedagógica “conteudista” e “gramatiqueira” para uma prática focada
no uso efetivo da língua, manifesto nos mais diversos textos. E a prática de análise linguística
constitui-se como ponto nevrálgico no trabalho pedagógico com a língua materna, na medida
em que os seus estudos teóricos, em detrimento da leitura e da produção, ainda não tiveram
repercussão significativa no campo de ensino de língua, acarretando em um trabalho
tradicionalista com a língua materna ou ainda preso a um processo de transição, em que o
texto não chega a assumir o papel de unidade básica de ensino (BEZERRA & REINALDO,
2013, p. 33-34).
A prática de análise linguística4 visa à reflexão sobre “os elementos e fenômenos
linguísticos e sobre estratégias discursivas, com o foco nos usos da linguagem”
(MENDONÇA, 2006, p. 206), constituindo-se como ferramenta para a prática de leitura e
produção. A consideração da língua como atividade interacional implica em um ensino que
trabalhe os elementos linguísticos enquanto fenômenos discursivos, contextualizando-os pela
unidade textual e pela situação discursiva.
Nos limites a que se propõe este artigo, portanto colocando-nos no terreno do texto
literário, concebemos, como Vincent Jouve (2002, p. 61), a leitura como uma interação
produtiva entre o texto e o leitor, de modo que a obra literária precisa, em sua constituição, da
participação do destinatário. No contexto escolar, conforme os documentos de orientação 5, a
prática de leitura de textos escritos inscreve-se em uma série de estratégias, tais como seleção,
4
Na Base Nacional Comum Curricular adota-se a expressão “Análise Linguística/Semiótica”, considerando-a
um eixo que “envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas de análise e avaliação consciente, durante
os processos de leitura e de produção de textos (orais, escritos e multissemióticos), das materialidades dos textos,
responsáveis por seus efeitos de sentido, seja no que se refere às formas de composição dos textos, determinadas
pelos gêneros (orais, escritos e multissemióticos) e pela situação de produção, seja no que se refere aos estilos
adotados nos textos, com forte impacto nos efeitos de sentido”. (BRASIL, 2017, p. 78).
5
Neste artigo, consideramos os documentos de orientação os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC).
585
antecipação, inferência e verificação, que devem ser apreendidas pelos alunos para que se
constituam leitores proficientes (BRASIL, 1998, p. 69). Espera-se que essas estratégias sejam
trabalhadas pelo professor de maneira significativa, ou seja, de modo a valorizar os textos
literários e levar os alunos a deles se apropriarem.
A literatura fragmentada
A presença constante do fragmento do texto literário no livro didático aponta para uma
prática de leitura pouco significativa, uma vez que apenas considerar um pedaço do texto não
é suficiente para a produção de um sentido possível àquele texto, como no excerto
selecionado do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, a seguir.
6
Essa organização do trabalho pedagógico com a língua portuguesa – leitura, gramática e produção – sinaliza
que a perspectiva tradicional de ensino não foi rompida e não há a consideração, de fato, da língua como meio de
interação social, vivenciada/concretizada por meio de textos. O livro analisado constitui-se como exemplar do
professor.
587
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p. 291.
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p. 292.
Ainda que haja um quadro ressaltando que o poema já foi estudado em capítulo
anterior, na parte destinada à Literatura7, torna-se evidente que o objetivo maior para a
presença do texto é a identificação do conteúdo gramatical, no caso o vocativo, e pela maneira
como foi trabalhado o texto, considerando as duas perguntas feitas (1. A quem ou a que se
referem os termos destacados nos versos?; 2. Qual é a função desses termos?), as condições
de produção da leitura ou as condições para que o sentido do texto seja processado não são
construídas. O texto torna-se mero pretexto para se trabalhar (identificar) o conteúdo
gramatical, o que parece confirmar a atividade mecanizada, não significativa que a prática de
leitura se torna no espaço escolar, o que há tempos vem sido denunciado/constatado.8
Temática e subjetividade
7
Na referida parte (p. 129), o poema também não foi apresentado integralmente e os elementos linguísticos que
poderiam ser pertinentes ao(s) sentido(s) do texto, dentre eles o próprio vocativo, não foram explorados.
8
Conferir, a esse respeito: LAJOLO, Marisa. Leitura-Literatura: mais do que uma rima, menos do que uma
solução. In: ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. (Org.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática,
1999. Nesse texto, ressalta a autora: “Protocolos e convenções da leitura literária circulam, por exemplo, na
escola brasileira, através de materiais didáticos que fazem desfilar figuras de linguagem a serem reconhecidas,
funções de linguagem a serem identificadas, fatos históricos a serem justapostos a certas ocorrências formais ‘
interpretando-as’ etc.” (p. 92)
588
Outro texto literário presente e trazido como um excerto em cinco versos, em
detrimento dos dezessete que o compõem, é Da morte, de Hilda Hilst9:
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 227.
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 227.
9
Segue o poema na íntegra: “II / Passará / Tem passado / Passa com a sua fina faca. / Tem nome de ninguém. /
Não faz ruído. Não fala. / Mas passa com a sua fina faca. / Fecha feridas. É unguento. / Mas pode abrir a tua
mágoa / Com a sua fina faca. / Estanca ventura e voz / Silêncio e desventura. / Imóvel / Garrote / Algoz / No
corpo da tua água passará / Tem passado / Passa com a sua fina faca.”
589
Annie Rouxel (2004, p. 82). E a escola acaba criando o seu paradoxo de pretender formar
leitores de textos literários desconsiderando a subjetividade desses alunos na relação com o
texto. Conforme a mesma autora, “tentando preservá-los dos delírios do sujeito leitor, o
ensino médio transforma a leitura em uma prática formal, descarnada, ao mesmo tempo em
que busca desenvolver a sensibilidade dos alunos” (Id. Ibid, p. 82-83).
A compreensão do texto, quando adentramos o terreno do literário, é limitada quando
a subjetividade é desconsiderada. Ao aluno cabe o papel de observador da linguagem que
deve recuperar os sentidos que já estão prontos, já estão postos no texto, afinal, “como
observador da linguagem, não lhe cabe interferir nela, ele só deve organizá-la de acordo com
uma organização a priori externa a ele” (PFEIFFER, 2003, p. 97). A leitura polissêmica é
inviabilizada em detrimento do reconhecimento de um sentido já estabelecido.
Vejamos mais um fragmento, parte de um parágrafo da obra Infância, de Graciliano
Ramos, e as perguntas propostas a partir dele:
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 245.
590
SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 246.
(...) a literatura nos prepara para ler melhor todos os discursos sociais. É uma
ideia que sustenta que os textos literários constituem um bom andaime
educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para
aprender os mecanismos do funcionamento linguístico em geral.
(COLOMER, 2007, p. 36)
591
porque se realiza pela interação. Ademais da relação autor-leitor, também há a relação entre
os leitores, o leitor instaurado pelo texto, necessidade para a sua (do texto) criação e o leitor
real, o próprio aluno. O sentido do texto está no espaço da interação, no espaço discursivo dos
interlocutores (ORLANDI, 1987, p. 194). Quando as atividades apresentadas/comentadas
desconsideram a subjetividade do aluno, a contextualização do texto e o funcionamento dos
elementos linguísticos propulsores de sentidos construídos na/pela temática apresentada, o
livro didático – e por consequência a escola/o discurso escolar – não considera o leitor real
como potencialmente correspondendo ao leitor virtual, nem mesmo o leitor virtual é
considerado, uma vez que as perguntas feitas a partir dos textos não exploram proficuamente
os sentidos que podem ser acessados pelos textos, sentidos que precisariam ser pensados pelo
autor no processo de construção/produção do texto. As condições para que a relação entre o
leitor virtual, inscrito no texto, e o leitor real seja estabelecida não são concretizadas no
espaço escolar pelo uso desse material didático.
Considerações finais
Referências
ANDRUETTO, Maria Teresa. A leitura, outra revolução. São Paulo: Edições SESC, s/d.
592
BEZERRA, Maria Auxiliadora; REINALDO, Maria Augusta. Análise Linguística: afinal, a
que se refere? São Paulo: Cortez, 2013. (Coleção leituras introdutórias em Linguagem; v. 3).
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global,
2007.
GOULEMONT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentidos. In: BOURDIEU, P. et al. (Orgs).
Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
GRAÇA, Sette; et al. Português: trilhas e tramas. Volume 2. São Paulo: Leya, 2016.
593