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LIVRO DIDÁTICO E ATUAÇÃO DOCENTE: EVIDÊNCIAS DO ENSINO DE

LÍNGUA PORTUGUESA

Luciene Paula Machado Pereira1

Resumo: Estabelecido oficialmente há duas décadas, com a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Fundamental (BRASIL, 1998) e, mais recentemente, com a publicação da Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), o ensino de Língua Portuguesa instaura a sua
significância no desenvolvimento da capacidade sociodiscursiva dos alunos, corroborando um
entendimento de língua como atividade social, processo de interação entre sujeitos que se realiza na
apropriação dos diversos gêneros textuais/discursivos. Dessa forma, o professor deve pensar em
situações didáticas que desenvolvam as práticas de linguagem – leitura, análise linguística/semiótica e
produção de textos – apoiando-se o trabalho pedagógico em uma dinâmica de ação e reflexão. No
entanto, apesar de o texto estar presente na sala de aula, a noção do que seja ensinar língua portuguesa
a falantes nativos dessa língua no Brasil ainda não ultrapassou o domínio de uma prática pedagógica
“conteudista” e “gramatiqueira” para uma prática focada no uso efetivo da língua, manifesto nos mais
diversos textos. A partir da análise de exercícios propostos em livro didático de Ensino Médio, este
trabalho discute a abordagem da língua na relação da prática de leitura com a análise
linguística/semiótica, refletindo sobre a persistência de uma abordagem pedagógica distanciada dos
preceitos sociointeracionistas.

Palavras-chave: Ensino de língua materna. Prática de leitura. Prática de Análise Linguística.

Considerações iniciais

Sob o trabalho com a língua materna na escola pesa a responsabilidade de preparar o


aluno para o bom desempenho como leitor e produtor de textos, considerando o domínio
consciente e reflexivo da gramática de sua língua. Esse trabalho pressupõe uma concepção
sociointeracionista de língua(gem) e o entendimento de que o trabalho com a gramática deve
ser realizado pela reflexão dos elementos linguísticos em uso em determinado texto, de modo
que a chamada prática de análise linguística seja ferramenta para o desempenho em leitura e
produção de textos. Já estabilizada nos documentos oficiais que regem o ensino de Língua
Portuguesa nos Ensinos Fundamental e Médio, essa orientação geral ainda não se efetiva
plenamente na prática da sala de aula se considerarmos o livro didático como importante
indicativo da organização e metodologia da disciplina de Língua Portuguesa atualmente.
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a maneira como a prática de leitura é
trabalhada quando considerado o conteúdo gramatical em sua relação com a leitura do texto.
Para tanto, inicialmente faremos considerações sobre o ensino de língua portuguesa hoje e
sobre a prática de leitura, esta sob o viés dos estudos da Análise do Discurso; em seguida

1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina
(UEL), área de concentração em Linguagem e Educação. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS). E-mail: lucyenepaula@gmail.com
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apresentaremos a análise de exercícios de um livro didático formulados a partir de excertos de
três textos literários, apresentando, por fim, as considerações/reflexões pertinentes.

O ensino de língua portuguesa/língua materna

Querendo-se significativo, o ensino de Língua Portuguesa, enquanto língua materna,


instaura a sua significância no desenvolvimento da capacidade sociocomunicativa dos alunos,
ou seja, no saber agir eficazmente por meio da língua nas mais diversas situações sociais que
estes venham a vivenciar. Estabelecido oficialmente há duas décadas, com a publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental2 (BRASIL,
1998) e, mais recentemente, com a publicação da Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2017), esse objetivo maior perpassa as orientações e consequentes reflexões e
apontamentos teóricos de orientação ao professor.3
Um ensino que vise a esse objetivo maior enquadra-se na perspectiva
sociointeracionista, em que o sujeito da aprendizagem (aluno) precisa agir sobre o objeto, com
o auxílio da mediação do professor, para construir o seu conhecimento. Nesse quadro de
referência, a língua(gem) é concebida como lugar de interação social, de modo que o texto é a
unidade básica de ensino, o que corrobora um entendimento de língua como atividade social,
processo de interação entre sujeitos que se realiza na apropriação dos diversos gêneros
textuais. Esse enfoque atribui às práticas com a linguagem – leitura, análise linguística e
produção – o lugar de verdadeiro objeto de conhecimento para o aluno, que em contrapartida
traz, para o professor, o conhecimento linguístico e discursivo como objeto de ensino.
Dessa forma, as situações didáticas em sala de aula devem propiciar um trabalho que
desenvolva as práticas de linguagem em um caminho metodológico que vai da ação à reflexão
sobre a língua, tudo permeado pelo uso, pelo posicionamento ativo do sujeito frente às
situações comunicativas. Nessa perspectiva, os conteúdos de Língua Portuguesa devem ser
organizados nos eixos do USO e da REFLEXÃO, ou seja, o trabalho pedagógico – para o
professor e para o aluno – está apoiado em uma dinâmica de ação e reflexão (BRASIL, 1998,

2
Ainda que este documento seja referente aos anos finais do Ensino Fundamental e o livro analisado seja para o
Ensino Médio, a consideração do documento é válida, uma vez que os PCN ainda se constituem como base de
orientação para a Educação Básica e apresenta orientações mais concretas que os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), ademais de o Ensino Médio, como etapa posterior, dever
potencializar os objetivos pretendidos expressos nos PCN.
3
No Brasil, as críticas ao ensino de língua materna, baseado nas atividades metalinguísticas e no chamado
ensino tradicional de gramática tomou força já na década de 1980. A publicação de “O texto na sala de aula”, em
1984, organizado por João Wanderley Geraldi, constitui o marco do início da luta para uma mudança de
perspectiva em relação ao ensino de Língua Portuguesa.
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p. 33). Receber ativamente o texto, refletir sobre a presença dos elementos linguísticos
pertinentes para o(s) significado(s) nele engendrado(s) e agir como produtor eficiente de
texto(s) configuram o desenvolvimento das práticas de leitura, análise linguística e produção
de textos.
No entanto, apesar de o texto estar presente na sala de aula, a noção do que seja
ensinar língua portuguesa a falantes nativos dessa língua no Brasil ainda não ultrapassou o
domínio de uma prática pedagógica “conteudista” e “gramatiqueira” para uma prática focada
no uso efetivo da língua, manifesto nos mais diversos textos. E a prática de análise linguística
constitui-se como ponto nevrálgico no trabalho pedagógico com a língua materna, na medida
em que os seus estudos teóricos, em detrimento da leitura e da produção, ainda não tiveram
repercussão significativa no campo de ensino de língua, acarretando em um trabalho
tradicionalista com a língua materna ou ainda preso a um processo de transição, em que o
texto não chega a assumir o papel de unidade básica de ensino (BEZERRA & REINALDO,
2013, p. 33-34).
A prática de análise linguística4 visa à reflexão sobre “os elementos e fenômenos
linguísticos e sobre estratégias discursivas, com o foco nos usos da linguagem”
(MENDONÇA, 2006, p. 206), constituindo-se como ferramenta para a prática de leitura e
produção. A consideração da língua como atividade interacional implica em um ensino que
trabalhe os elementos linguísticos enquanto fenômenos discursivos, contextualizando-os pela
unidade textual e pela situação discursiva.

A prática de leitura na teoria

Nos limites a que se propõe este artigo, portanto colocando-nos no terreno do texto
literário, concebemos, como Vincent Jouve (2002, p. 61), a leitura como uma interação
produtiva entre o texto e o leitor, de modo que a obra literária precisa, em sua constituição, da
participação do destinatário. No contexto escolar, conforme os documentos de orientação 5, a
prática de leitura de textos escritos inscreve-se em uma série de estratégias, tais como seleção,

4
Na Base Nacional Comum Curricular adota-se a expressão “Análise Linguística/Semiótica”, considerando-a
um eixo que “envolve os procedimentos e estratégias (meta)cognitivas de análise e avaliação consciente, durante
os processos de leitura e de produção de textos (orais, escritos e multissemióticos), das materialidades dos textos,
responsáveis por seus efeitos de sentido, seja no que se refere às formas de composição dos textos, determinadas
pelos gêneros (orais, escritos e multissemióticos) e pela situação de produção, seja no que se refere aos estilos
adotados nos textos, com forte impacto nos efeitos de sentido”. (BRASIL, 2017, p. 78).
5
Neste artigo, consideramos os documentos de orientação os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC).
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antecipação, inferência e verificação, que devem ser apreendidas pelos alunos para que se
constituam leitores proficientes (BRASIL, 1998, p. 69). Espera-se que essas estratégias sejam
trabalhadas pelo professor de maneira significativa, ou seja, de modo a valorizar os textos
literários e levar os alunos a deles se apropriarem.

Leitura parafrástica e leitura polissêmica

Podemos conceber a apropriação do texto literário, em terreno escolar, com foco no


sujeito aluno e na relação que estabelece com o texto: interpretado e/ou compreendido.
Segundo Orlandi (1999, p. 74), o sujeito interpreta a partir do seu trato usual com a
linguagem, mas compreende pela complexa relação com a cultura, com a história, com o
social e com a própria linguagem. Nesse sentido, podemos instaurar a relação de interação
reguladora das possibilidades de leitura pelo jogo entre a paráfrase e a polissemia. A leitura
parafrástica, como limitada ao reconhecimento do sentido dado pelo autor, difere da leitura
polissêmica, em que outro(s) sentido(s) é(são) dado(s) pelo leitor, de maneira que a
proficiência leitora se instaura nessas possibilidades de leitura, cuja escolha está atrelada à
situação discursiva, origem do(s) sentido(s) de um texto (Id. Ibid, p. 194). Isso nos mostra que
a compreensão não se limita a saber parafrasear ou apreender os significados literais, embora
a escola, muitas vezes, valorize a paráfrase do texto lido, incentivando a recepção passiva e
mecânica, uma escola que, dessa forma, responde positivamente ao sistema vigente (SILVA;
ZILBERMAN, 1999, p. 114).
Sendo o texto literário polissêmico (GOULEMONT, 2001, p. 108), trabalhá-lo implica
conceber efetivamente a leitura como uma atividade produtiva que, em razão disso, apresenta
algumas condições para a sua produção, como a necessidade de que o texto seja relacionado
ao contexto e de que o leitor se relacione com a situação, de modo que, distanciando-se do
texto, possa acessar o seu sentido (ORLANDI, 1987, p. 195). Está engendrada na relação
interativa leitor-texto-autor a relação entre o leitor instaurado pelo/no texto e o leitor real, que
deve produzir sentido. Essa relação entre o leitor virtual e o leitor real precisa ser considerada
para se estabelecer a legibilidade de um texto (Id. Ibid, p. 182), uma vez que esta é vivenciada
pelo ponto de vista do leitor.
Na próxima sessão, procuraremos mostrar como essa relação entre leitor virtual e
leitor real se concretiza na escola, pela análise de algumas atividades de um livro didático de
Língua Portuguesa.
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A prática de leitura em análise

O livro didático “Português: trilhas e tramas”, volume 2, de Graça Sette, Ivone


Ribeiro, Márcia Travalha e Rozário Starling, publicado pela Editora Leya, está no Programa
Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio – PNLEM 2018 e foi adotado em escolas da
rede estadual de ensino de Mato Grosso do Sul. Destinado ao segundo ano do Ensino Médio,
o livro está organizado em três partes6: 1) Literatura e leitura de imagens; 2) Gramática e
estudo da língua e 3) Produção de textos orais e escritos, sendo que cada parte está dividida
em capítulos: 14 na primeira; 12 na segunda e 7 na terceira parte. Para os propósitos de
análise deste artigo foram escolhidos exercícios presentes na parte 2 – Gramática e estudo da
língua – por ser a parte que, dentro da divisão estabelecida, prioriza a análise dos elementos
linguísticos, utilizando-se para essa análise também textos literários. Passemos as
considerações.

A literatura fragmentada

A presença constante do fragmento do texto literário no livro didático aponta para uma
prática de leitura pouco significativa, uma vez que apenas considerar um pedaço do texto não
é suficiente para a produção de um sentido possível àquele texto, como no excerto
selecionado do poema Navio Negreiro, de Castro Alves, a seguir.

6
Essa organização do trabalho pedagógico com a língua portuguesa – leitura, gramática e produção – sinaliza
que a perspectiva tradicional de ensino não foi rompida e não há a consideração, de fato, da língua como meio de
interação social, vivenciada/concretizada por meio de textos. O livro analisado constitui-se como exemplar do
professor.
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SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p. 291.

SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p. 292.

Ainda que haja um quadro ressaltando que o poema já foi estudado em capítulo
anterior, na parte destinada à Literatura7, torna-se evidente que o objetivo maior para a
presença do texto é a identificação do conteúdo gramatical, no caso o vocativo, e pela maneira
como foi trabalhado o texto, considerando as duas perguntas feitas (1. A quem ou a que se
referem os termos destacados nos versos?; 2. Qual é a função desses termos?), as condições
de produção da leitura ou as condições para que o sentido do texto seja processado não são
construídas. O texto torna-se mero pretexto para se trabalhar (identificar) o conteúdo
gramatical, o que parece confirmar a atividade mecanizada, não significativa que a prática de
leitura se torna no espaço escolar, o que há tempos vem sido denunciado/constatado.8

Temática e subjetividade

7
Na referida parte (p. 129), o poema também não foi apresentado integralmente e os elementos linguísticos que
poderiam ser pertinentes ao(s) sentido(s) do texto, dentre eles o próprio vocativo, não foram explorados.
8
Conferir, a esse respeito: LAJOLO, Marisa. Leitura-Literatura: mais do que uma rima, menos do que uma
solução. In: ZILBERMAN, R.; SILVA, E. T. (Org.). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática,
1999. Nesse texto, ressalta a autora: “Protocolos e convenções da leitura literária circulam, por exemplo, na
escola brasileira, através de materiais didáticos que fazem desfilar figuras de linguagem a serem reconhecidas,
funções de linguagem a serem identificadas, fatos históricos a serem justapostos a certas ocorrências formais ‘
interpretando-as’ etc.” (p. 92)
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Outro texto literário presente e trazido como um excerto em cinco versos, em
detrimento dos dezessete que o compõem, é Da morte, de Hilda Hilst9:

SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 227.

SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 227.

Percebe-se que a temática da morte e da passagem do tempo é trabalhada a partir da


referenciação e da reflexão sobre o uso de formas verbais. Não há espaço para uma discussão
acerca do tema que considere o posicionamento do aluno e, por exemplo, o reconhecimento e
confrontamento de seu posicionamento frente ao que foi expresso pelo eu-lírico. Não há
espaço para a subjetividade do leitor, subjetividade necessária ao sentido da leitura, conforme

9
Segue o poema na íntegra: “II / Passará / Tem passado / Passa com a sua fina faca. / Tem nome de ninguém. /
Não faz ruído. Não fala. / Mas passa com a sua fina faca. / Fecha feridas. É unguento. / Mas pode abrir a tua
mágoa / Com a sua fina faca. / Estanca ventura e voz / Silêncio e desventura. / Imóvel / Garrote / Algoz / No
corpo da tua água passará / Tem passado / Passa com a sua fina faca.”

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Annie Rouxel (2004, p. 82). E a escola acaba criando o seu paradoxo de pretender formar
leitores de textos literários desconsiderando a subjetividade desses alunos na relação com o
texto. Conforme a mesma autora, “tentando preservá-los dos delírios do sujeito leitor, o
ensino médio transforma a leitura em uma prática formal, descarnada, ao mesmo tempo em
que busca desenvolver a sensibilidade dos alunos” (Id. Ibid, p. 82-83).
A compreensão do texto, quando adentramos o terreno do literário, é limitada quando
a subjetividade é desconsiderada. Ao aluno cabe o papel de observador da linguagem que
deve recuperar os sentidos que já estão prontos, já estão postos no texto, afinal, “como
observador da linguagem, não lhe cabe interferir nela, ele só deve organizá-la de acordo com
uma organização a priori externa a ele” (PFEIFFER, 2003, p. 97). A leitura polissêmica é
inviabilizada em detrimento do reconhecimento de um sentido já estabelecido.
Vejamos mais um fragmento, parte de um parágrafo da obra Infância, de Graciliano
Ramos, e as perguntas propostas a partir dele:

SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 245.

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SETTE, Graça et al. Português: trilhas e tramas. São Paulo: Leya, 2016. p . 246.

Novamente observamos não haver espaço para a expressão da subjetividade do aluno e


do reconhecimento da temática. Ademais, o elemento linguístico retirado do texto,
especificamente na questão 2 da seção Palavras na lupa, é trabalhado sem nenhuma
vinculação ao próprio texto e ao possível sentido que pode ter se vinculado ao texto. Ao aluno
é solicitado que identifique, e ao texto cabe o papel de pretexto à atividade de “caçar”
palavras. Nesse tipo de atividade, os elementos linguísticos não são explorados como recursos
estéticos que o autor lançou mão para conseguir determinados efeitos ou relacionados aos
sentidos possíveis construídos pelo texto. Isolando a palavra do texto que a engendra, cria-se a
falsa ideia de que há um significado isolado atribuído a ela, mas a palavra sozinha não
significa. Conforme Orlandi, “quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou
seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade
significativa”. (1996, p. 52)
Com esse trabalho com a língua a Literatura se perde e o próprio entendimento da
função dos elementos linguísticos também, uma vez que a língua trabalhada dessa forma é
sistema abstrato expresso por metalinguagem, não atividade interativa significativamente
funcional. A prática de análise linguística, que é ferramenta para a prática de leitura, não se
concretiza e isso distancia o ensino de língua materna de seu objetivo maior, o de formar
indivíduos competentes no uso que fazem de sua língua. E a construção de leitores de
Literatura aproxima desse objetivo, já que propicia uma intimidade com a língua que perpassa
todas as esferas da vida:

(...) a literatura nos prepara para ler melhor todos os discursos sociais. É uma
ideia que sustenta que os textos literários constituem um bom andaime
educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para
aprender os mecanismos do funcionamento linguístico em geral.
(COLOMER, 2007, p. 36)

Da intimidade com a língua à complexidade – da vida e do pensamento – a Literatura


nos ajuda na construção de um pensamento próprio (ANDRUETTO, s/d, p. 80) que poderia
ser desenvolvido pela escola se o texto fosse efetivamente trabalhado, significado, e não
apenas considerado pretexto para o reconhecimento/identificação do conteúdo gramatical.
Os textos instauram leitores, os poemas e os romances significam a partir do momento
em que alguém lhes atribui sentido. E esse processo de produção de sentidos é complexo

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porque se realiza pela interação. Ademais da relação autor-leitor, também há a relação entre
os leitores, o leitor instaurado pelo texto, necessidade para a sua (do texto) criação e o leitor
real, o próprio aluno. O sentido do texto está no espaço da interação, no espaço discursivo dos
interlocutores (ORLANDI, 1987, p. 194). Quando as atividades apresentadas/comentadas
desconsideram a subjetividade do aluno, a contextualização do texto e o funcionamento dos
elementos linguísticos propulsores de sentidos construídos na/pela temática apresentada, o
livro didático – e por consequência a escola/o discurso escolar – não considera o leitor real
como potencialmente correspondendo ao leitor virtual, nem mesmo o leitor virtual é
considerado, uma vez que as perguntas feitas a partir dos textos não exploram proficuamente
os sentidos que podem ser acessados pelos textos, sentidos que precisariam ser pensados pelo
autor no processo de construção/produção do texto. As condições para que a relação entre o
leitor virtual, inscrito no texto, e o leitor real seja estabelecida não são concretizadas no
espaço escolar pelo uso desse material didático.

Considerações finais

Propomos apresentar uma sucinta análise de exercícios presentes em um livro didático


atual, elaborados a partir da relação com textos literários, considerando como o conteúdo
linguístico é trabalhado para o apoio à atividade de leitura a ser realizada. Constatamos que a
prática de análise linguística não se realiza, uma vez que os elementos linguísticos não são
explorados satisfatoriamente como possibilitadores de sentidos, e a prática de leitura
igualmente fica prejudicada em sua realização. Esse modo de se trabalhar língua e leitura
impresso no livro didático concretiza uma prática que nega ao aluno, mas também ao
professor, assumir a posição de responsabilidade pelo gesto interpretativo, como já observou
Cláudia Pfeiffer (2003, p. 97).
E enquanto os sentidos possíveis são reduzidos e o leitor real não se apropria das
estratégias necessárias para atribuir os sentidos ao texto, para vivenciar a leitura, o ensino de
língua portuguesa permanecerá em um espaço de transição, em que a um ensino significativo
posto pelo discurso oficial se contrapõe a prática de um trabalho mecanizado, desprovido dos
sentidos que só a linguagem pode produzir e compreender.

Referências
ANDRUETTO, Maria Teresa. A leitura, outra revolução. São Paulo: Edições SESC, s/d.
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BEZERRA, Maria Auxiliadora; REINALDO, Maria Augusta. Análise Linguística: afinal, a
que se refere? São Paulo: Cortez, 2013. (Coleção leituras introdutórias em Linguagem; v. 3).

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