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Profa. Dra.

Érica Silina
Dezembro de 2023
Durante a trajetória da psicanálise, muitos autores criaram novas
correntes, transformando e contribuindo para o estudo neste campo
do saber, criando ou expandindo conceitos. Advindos, sobretudo, das
experiências clínicas e reflexões sobre como é a estrutura do
inconsciente humano, por técnicas psicanalíticas, acerca do que trata
esse saber.

Nesse sentido, a obra deixada por Lacan foi umas das maiores
contribuições para a Psicanálise, podendo ser considerada um alicerce
filosófico, renovando a teoria freudiana e influenciando diversas
ciências humanas. Alguns textos de Lacan foram escritos por ele; mas
a maior parte da sua obra hoje reconhecida como tal advém dos
seus Seminários: “aulas” ministradas por Lacan e depois transcritas
como livros por alguns de seus discípulos.

Lacan é um dos maiores interpretes de Freud. Dizia Lacan a seus


alunos: “A vocês compete ser lacaniano; da minha parte, sou
freudiano“. Isso reforça a ideia da inspiração lacaniana em relação a
Freud. Dizia Lacan (um tanto modesto) que seu único conceito
realmente original seria de “objeto a”. Tudo o mais seriam retomadas
a Freud.
I - Textos em psiquiatria

Lacan foi um médico que fez residência em psiquiatria. Aliás, os


primeiros papers do médico Dr. Lacan foram feitos nessa área e sua
primeira clínica foi literalmente uma clínica psiquiátrica. Em algum
momento de sua formação como psiquiatra, ele se aproximou de
outros grupos e círculos culturais. Há quem diga que ele se aproximou
da psicanálise pela via da literatura, pela via do movimento surrealista.
Isso tem algo de verdadeiro sim ou, em termos, não é absurdo.

Lacan fez uma tese de doutorado que trata de questões da psicose: Da


psicose paranoica em suas relações com a personalidade (1932). Ele
encaminhou essa tese para Freud, que não deu muita importância ao
seu texto. De algum modo, o Dr. Lacan já estava imerso no campo
psicanalítico em 1932, antes dos seus textos propriamente
psicanalíticos. Sua tese de doutorado foi uma contribuição ao problema
do tratamento dos conflitos psíquicos.

Podemos dizer que Lacan entrou na psicanálise por um lado que era
muito polêmico, no sentido de que havia a pergunta se a técnica
psicanalítica tinha um alcance que ia até o limite das neuroses de
transferência. Inicialmente, Freud entendia que a psicanálise era uma
técnica para as histerias. Depois, percebeu que casos de neurose
obsessiva também poderiam ser trabalhados. Avançou, então, nas
perversões e no tratamento de psicoses, esquizofrenias.
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Ele fez uma análise de um texto literário Memórias de um doente dos
nervos, do Presidente Schreber, a autobiografia de um membro do
poder judiciário que psicotizava e apresentava fenômenos de delírio.

Havia a questão se era possível que a psicanálise avançasse no


tratamento de psicoses e neuroses narcísicas. Parece que Lacan estava
insistindo em entrar na psicanálise por essa via. Naquela época, a partir
dos trabalhos de Donald Winnicott, o movimento dos winnicottianos
começou a oferecer outro tipo de dispositivo clínico e teórico e outra
abordagem das psicoses. A questão das psicoses não era, portanto, só
um problema de Lacan, mas desse momento da história da psicanálise.
Vários psicanalistas buscavam técnicas e dispositivos que permitissem
avançar no tratamento de conflitos psíquicos relacionados ao fenômeno
e à estrutura da psicose.

II - O ensino de Lacan

Dito isso, vemos como Lacan entrou no movimento psicanalítico e quais


foram os elementos que ele nos ofereceu em nome próprio. Há uma
série de textos “clássicos”, que, aliás não são textos propriamente
ditos. Quer dizer, eles se transformaram em texto, mas originalmente
eram o ensino de Lacan. O seu ensino é composto por 26 Seminários.
Alguns foram estabelecidos por seu genro, Jacques-Alain Miller, e já
se encontram publicados em francês, português e outras línguas. Ao
todo, contam-se 26 Seminários mais um, o 27, que seria a carta de
dissolução.

Lacan iniciou o seu primeiro Seminário em 1953. Nota-se que ele


terminou sua tese de doutorado, fez uma análise com Rudolph
Loewenstein entre 1932 e 1934. Esse seria seu ingresso no campo
psicanalítico. No entanto, seu ensino propriamente dito começou a ser
contado em 1953. A partir daí, todo ano teríamos um Seminário:

1. Os escritos técnicos de Freud (1953-1954).


2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-1955).
3. As psicoses (1955-1956).
4. A relação de objeto (1956-1957).
5. As formações do inconsciente (1957-1958).
6. O desejo e sua interpretação (1958-1959).
7. A ética da psicanálise (1959-1960).
8. A transferência (1960-1961).
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9. A identificação (1961-1962).*
10. A angústia (1962-1963).
11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964).
12. Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965).*
13. O objeto da psicanálise (1965-1966).*
14. A lógica do fantasma (1966-1967).*
15. O ato psicanalítico (1967-1968).*
16. De um Outro ao outro (1968-1969).
17. O avesso da psicanálise (1969-1970).
18. De um discurso que não seria semblante (1971).
19a ...ou pior (1971-1972).
19b O saber do psicanalista (conferências em Sainte-Anne) (1971-
1972).*
20. Mais, ainda (1972-1973).
21. Les non-dupes errent [Os não-tolos erram] (1973-1974).
22. RSI (1974-1975).*
23. O sinthoma (1975-1976).
24. L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre (1976-1977).*
25. Momento de concluir (1977-1978).*
26. A topologia e o tempo (1978-1979).*
27. Dissolução (1980).*

Principais conceitos de Lacan

1. O inconsciente enquanto linguagem

Ferdinand de Saussure, pai da linguística e precursor do


estruturalismo, foi uma influência para Lacan. A psicanálise de Lacan é
também vista como uma psicanálise estruturalista. Inclusive, é uma
conhecida frase de Lacan: “o Inconsciente se estrutura como
linguagem”, tendo Lacan devolvido à Linguística também uma grande
contribuição, especial para a área de Análise do Discurso.

Uma ideia relevante ao estruturalismo e à linguística saussurreana


(que deriva do estruturalismo) é que o todo é maior que a simples
soma das partes. Isto é, um elemento é parte de um sistema, e só
pode ser entendido em oposição ou complementação a outros
elementos do sistema.

Assim também se dá em relação ao sistema psíquico, que funciona


como linguagem porque um elemento não tem significado absoluto,
mas sim relativo. Ou seja, um significante como um sonho tem seu
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significado reconhecido apenas em relação ao sistema discursivo do
sujeito (o “sonhador”).

Assim, dizer que o inconsciente se estrutura como linguagem é


semelhante a dizer que:

• o inconsciente é um sistema ou
• o inconsciente é uma estrutura.

Isso porque Lacan concebe a linguagem na tradição do estruturalismo


linguístico. Não significa que o inconsciente seja uma linguagem
idêntica à linguagem do consciente. Mas o inconsciente teria seu
próprio sistema de representações, ainda que possivelmente mais
fragmentário e não acessível diretamente pela consciência. A
linguagem do inconsciente é uma lógica por trás do “ilógico”.

Ampliando a noção, podemos entender a psique humana como um todo


como sendo um sistema ou estrutura. Neste sentido, os elementos
representativos (os signos) não possuem valor absoluto ou valor em
si. Dependem do sistema de representações: um elemento só tem
significado por suas semelhanças e oposições que guardam com os
outros elementos do sistema.

Por isso, não há como avaliar dois sistemas psíquicos exatamente da


mesma forma, o que faz a psicanálise um fazer único, específico a cada
analisando.

2. Objeto a

O “objeto a” (em minúscula) é uma noção central na psicanálise de


Jacques Lacan, sob a qual ele descreve um elemento que está presente
na relação entre o sujeito e a alteridade (as outras pessoas), e que é
responsável pela significação do desejo. O objeto a é o que Lacan
chamou de “objeto do desejo”, ou o objeto que o sujeito deseja
alcançar. Seria a “natureza humana do desejo”, o ato propriamente
humano de constantemente desejar.

O objeto “a” seria um elemento da ordem do desconhecido. Por isso, o


objeto do desejo humano não é “ser astronauta” ou “ter uma casa”
(estes são objetos nomeáveis), mas um objeto que não sei o que é,
um desejo de “a” (ou de “x”).

O sujeito cria sua identidade a partir daquilo que deseja. Por exemplo,
alguém pode se definir assim: “meu nome é José e eu desejo ser
astronauta”.
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Então, nossa mente consciente consegue captar elementos desejados
(como “quero ser astronauta” ou “quero ter uma casa”) mas, ainda
assim, haveria o desejo em si mesmo inominável. Esse desejo não
cessa: quando o sujeito conseguir “ser astronauta” ou “ter uma casa”,
desejará outra coisa e outra coisa.

Por exemplo, o objeto de desejo pode ser o amor ou o conhecimento,


que são desejados, mas que nunca podem ser alcançados
completamente. O resquício do que não se alcança é sempre o objeto
“a” e sempre repousa sobre outra coisa, e depois em outra coisa
além. O objeto a é frequentemente associado ao desejo inconsciente.
O objeto a é o que motiva o comportamento inconsciente, como aquilo
que o sujeito deseja, mas que não consegue alcançar.

Em suma, o objeto a é um conceito central na teoria lacaniana.


Simplificando, e associando à teoria pulsional de Freud, podemos dizer
que existe uma pretensão humana de realizar-se em um “troféu”.
Assim:

• Enquanto o troféu não é alcançado, existe uma pulsão de vida,


uma pulsão pelo acontecimento, pela “resistência” (no sentido
físico), pelo “um”, ou seja, a motivação pela realização desta
façanha.
• Mas, tão logo se alcança um troféu, haveria lugar a uma pulsão
de morte, ou pelo “zero”, que precisa ser substituída por outro
objeto de pulsão de vida, outro objetivo.

Claro que, já na pulsão de vida (ou no desejo por um troféu), existe a


presença ambígua da pulsão de morte: nossa ilusão de que, ao
alcançar o troféu, vamos poder “descansar”. Assim, a pulsão de vida e
de morte (Eros e Tânatos) coexistem, na elaboração de maturidade de
Freud.

Por ser o desejo parte inerente da condição humana, haverá a busca


por um outro objeto. Se não pensarmos na especificidade de cada
objeto, mas sim no ato em si de o desejo não se esgotar em um objeto,
chegamos ao objeto a: ao mesmo tempo, a síntese de todos os objetos
do desejo, e de nenhum objeto em específico!

3. O Grande Outro

Se há uma linguagem, há um outro. A linguagem é uma construção


social, não inventamos uma língua. Se somos constituídos pela
linguagem, e a linguagem é um lugar também do outro, então nossa
constituição psíquica inevitavelmente terá a presença do outro.
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Por enquanto, usamos “outro” com inicial em minúscula, numa
designação genérica para tudo que não se esgota no sujeito. A
princípio, para fins deste texto, podemos imaginar três definições de
outro:

• o outro em sentido geral, incluindo o sentido de “outros” com


quem convivemos; neste sentido, tudo que é externo a mim é o
outro;
• o outro interno ou nosso id ou nosso inconsciente, algo que é
parte de mim mas que não sou eu (não é o ego, pelo menos não
a porção consciente do ego);
• o Grande Outro: dentre os outros “gerais”, qual é o maior outro
para mim, aquele que “imito” ou que “me dita” de forma
aparentemente voluntária?

Vamos falar de um aspecto em específico desta reflexão sobre a


alteridade: o Grande Outro pode indicar um lugar que traz a marca do
ideal de “eu” que o sujeito formula ou intui. É, assim, uma marca do
discurso, na definição da área da linguística chamada de análise do
discurso.

Por exemplo, uma pessoa filiada a uma ideologia política ou religiosa


(mesmo que informalmente filiada) pode incorporar este Grande Outro
como sendo este partido ou religião. Assim, é como se este Grande
Outro fosse o seu “ideal de eu”, uma personalização do superego a
reger sua conduta e a imagem que faz de si, ou que busca para si. Isso
é internalizado na vida psíquica pela palavra (no discurso, que é a
palavra aplicada à vida social).

Relacionado a isso, temos a ideia de discurso, também intimamente


relacionada à temática da alteridade. Em síntese, o discurso é o lugar
do sujeito, ao mesmo tempo:

• sujeito como “dono de si” (autônomo), ao menos ao se afirmar


assim,
• mas também assujeitado, pois não está à margem dos valores
socialmente introjetados.

Tanto a afirmação narcísica de autonomia do sujeito quanto o


reconhecimento de certo assujeitamento do sujeito pela vida social
ocorrem no discurso. O discurso é a palavra com valor social,
transformando a pessoa natural em um sujeito identificado a um lugar
no mundo.

Ou seja, nascemos “pessoas naturais”, uma mera constatação de ser.


E, na linguagem / no discurso, tornamo-nos sujeitos, ou seja,
negociamos esta existência com os outros.
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Uma pessoa sujeita à discursividade religiosa irá incorporar o discurso
religioso como sua visão de mundo, o que regerá em grande medida
sua conduta em relação ao mundo e à sua vida psíquica. Isso é uma
parte do que a análise do discurso chama de discursividade, bastante
próxima ao que Lacan designa como Grande Outro.

Outro exemplo: uma pessoa extremamente submetida ao pai (ou a um


padre, a um pastor, a um professor, a um herói etc.) irá sempre
indagar-se se suas palavras, pensamentos e atitudes estão condizentes
com este Outro ser. Este ser que representa a autoridade (e que define
o que é permitido / o que é proibido ser ou fazer) é o Grande Outro.

Muitas vezes, o tratamento psicanalítico terá por demanda (direta ou


indireta) desfazer o desejo do Grande Outro no paciente. Isso será
fundamental para que este paciente se encontre com sua própria
ordem desejante. Não significa necessariamente matar
(simbolicamente) o Grande Outro; pode ser (sim) isso, mas pode ser
também validar o lugar deste Grande Outro em nós. De toda forma,
haveria uma maior consciência de quem é este Grande Outro da
perspectiva do analisando.

Veja que o Grande Outro independe de regras ou leis escritas, nem


depende de controle formal ou punição. É o lugar do outro que é
internalizado em nós e que nos orienta em nossas decisões, nos nossos
medos e desejos, até na forma com que sentimos e nos relacionamos.

Interessante pensarmos que a vida psíquica parece não dar lugar a


mais de UM Grande Outro, em um dado momento da vida do sujeito.
Ou, se for mais de um, pelo menos haveria um Grande Outro que se
destacaria. Ou seja, seria uma a percepção de que uma pessoa e/ou
uma ideologia ocupa um lugar de destaque em nossa vida psíquica, no
que concerne a valores e condutas.

Este lugar que o Grande Outro ocupa na vida psíquica do sujeito pode
ser entendido como “um lugar de amor“. É “amor” por haver junto uma
marca de afetividade e de livre-adesão, mesmo que, a depender de
cada pessoa, não seja algo tão livre e saudável assim. É “amor”
independentemente se este Grande Outro seja:

• pensando como pessoa: um marido/esposa, amigo(a), um ídolo,


uma liderança (com quem talvez nunca nos encontramos
pessoalmente, mesmo que nem esteja mais viva), ou
• pensando como uma instituição: uma igreja ou um partido, uma
obra (como os discos da Legião Urbana, ou a Bíblia ou o Corão,
ou os livros de Dostoievski, ou a obra de Marx) etc.
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Assim, pergunte-se: “quando penso sobre meus gostos, sobre o que
considero correto (moral) ou belo (estética), ou sobre o que desejo ser
como pessoa ou profissionalmente, quem é a pessoa (e/ou ideologia)
a que me alinho para me ajudar a estabelecer tais parâmetros?“. A sua
resposta será o seu Grande Outro!

Talvez você tenha chegado a uma resposta (uma pessoa e/ou uma
ideologia) como a mais destacada no momento atual de sua vida. E
talvez, em outra época de sua vida, fosse outra pessoa ou ideologia.

Por fim, vale complementar que em alguns de seus seminários, Lacan


chegou a dizer que o inconsciente é o outro, esse outro simbólico,
esse outro interno que fala de onde eu recebo a minha própria
mensagem. Como, por exemplo:

• sonhos;
• chistes e atos falhos;
• repetições compõem minha vida;
• sintomas; ou seja
• em tudo aquilo que indica que o inconsciente ali está, é o outro.

Isso significa que:

• enquanto o ego e o consciente são o que chamo de “eu”,


• há uma parte nossa que é desconhecida, que seria o
nosso outro interno (nosso id e nosso inconsciente).

4. Desejo

Em suma, o desejo é um dos princípios fundamentais dos conceitos de


Lacan. Para Lacan, o desejo é mais que apenas um desejo de algo
material, mas também um desejo inconsciente que nos leva a buscar
satisfação a partir da realização de nossos desejos e da busca por
sentido na vida. Já havíamos iniciado essa reflexão no “objeto a”, que
tem tudo a ver com o desejo.

Para a clínica psicanalítica lacaniana, alguns dos aspectos que mais


importam nas sessões de análise são:

• entender o desejo do outro (ou do Grande Outro) que está em


mim, para saber se isso não é fonte de tensões psíquicas; e
• descobrir o meu próprio desejo, no sentido de constituir uma
identidade a partir do que eu quero, e não a partir do que me é
imposto.
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Portanto, o desejo é visto como o motor da existência humana. É a
partir do desejo que as pessoas buscam satisfação, significado e
propósito. Assim, Lacan acreditava que o desejo é o que nos motiva a
buscar o que queremos e o que nos impede de permanecer satisfeitos
com o que temos.

Em outras palavras, para Lacan, o desejo é um fenômeno subjetivo


que é afetado pelas condições culturais, econômicas e psicológicas.
Assim, a busca do desejo é a busca da satisfação e, portanto, é
fundamental que se compreenda a própria ordem desejante para que
possamos encontrar o nosso propósito na vida e a felicidade.

5. O nome-do-pai

Pode ser descrito como um símbolo que se relaciona com a noção de


paternidade, autoridade e limites. É visto como um mecanismo que nos
ajuda a nos identificar como sujeitos.

Para Lacan, o nome-do-pai é uma das formas mais evidentes e efetivas


com que o Complexo de Édipo se concretiza nas relações humanas.

Ou seja, é a primeira imposição do desejo do outro (do pai) sobre


o desejo do “eu” (o filho):

• O sobrenome (em francês, nom de famille): se o filho se chama


“José Silva”, o “Silva” seria um significante que inscreve este
filho na herança (no discurso) de seu pai. Esse sobrenome
representa um “direito”, como uma “propriedade”, que o pai teria
sobre o filho.
• O nome (em francês, prénom): ao mesmo tempo, “José” é
também uma escolha do pai (claro, eventualmente pode ser
também da mãe). Em qual discurso este nome “José” está
inscrito? Da religiosidade bíblica? Em qual ideal de eu o pai se
embasou para batizar o filho assim?

Jacques Lacan descreve o Nome-do-Pai como uma representação de


autoridade e um signo da paternidade. É, também, um elemento básico
para o desenvolvimento da personalidade do sujeito. O conceito foi
originalmente desenvolvido para explicar as ligações entre a identidade
e as relações de poder dos pais sobre os filhos.

Nesse sentido, Lacan acredita que o Nome-do-Pai é fundamental para


o estabelecimento de limites sociais e pessoais, o que permite o
desenvolvimento de um senso de individualidade.
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Para Lacan, é a confirmação de que o complexo de Édipo tem suas
condições lançadas desde o nascimento da nova pessoa. É a primeira
inscrição da pessoa natural em sujeito, sua primeira inscrição na ordem
do discurso. O Nome-do-Pai é edípico porque é a imposição do desejo
do pai sobre o desejo do filho (este, por sinal, ainda nem pode desejar,
mas quando puder será lembrado que seu pai lhe determina seus
desejos).

É algo que inscreve esta nova pessoa em um contexto cultural


institucionalizado, uma marca inicial e essencial do sujeito (e do seu
assujeitamento), que se dá na materialidade da linguagem (pela
palavra).

Ou seja, para Lacan, o Nome-do-Pai é uma comprovação material


(“material” no sentido de que uma palavra pode ser escrita e ouvida)
do complexo de Édipo.

A ideia do nome-do-pai é também a interdição ao desejo da mãe,


falando da sua função materna de possibilitar a existência da criança,
diante do seu desejo que que possibilita existir e continuar existindo.
Metonimicamente, é a interdição do filho à mãe, é a expressão do
horror ao incesto, o incesto agora tabu.

Dentre os conceitos de Lacan, este é usado como uma ferramenta para


ajudar a compreender a formação da identidade, a relação entre pais
e filhos e o surgimento dos conflitos edípicos.

6. Sujeito suposto saber

O conceito lacaniano de Sujeito Suposto Saber indica o status (ou


“aura”) que o analisando atribui ao seu analista. É o lugar em quem o
analisando ou paciente designa para o seu (psic)analista. O psicanalista
é inserido em uma posição em que o analisando acredita que, na
verdade, o analista sabe tudo e tem as ferramentas para sua “cura”.

Ou seja, como o próprio conceito já diz, o analisando acredita que o


analista é o “saber”, um “sujeito de saber“. Mas este saber não é pleno,
é uma suposição (por isso, suposto saber) atribuído pelo analisando.

Assim:

• No início do tratamento em psicanálise, essa atribuição do


analisando é importante, porque lhe permite buscar tratamento
e confiar no vínculo transferencial que vai estabelecer com o
analista;
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• No final de um tratamento bem-sucedido, o analisando (já com
seu ego mais fortalecido e com mais sintonia com sua ordem
desejante) irá realizar a chamada destituição subjetiva: com
uma perlaboração sobre si já internalizada, o analisando não
verá mais o analista neste “altar” do suposto saber.

Dessa forma, sujeito suposto saber é um movimento transferencial


importante, em que se estabelece uma confiança entre analisando e
psicanalista.

Ao final do tratamento, o sujeito suposto saber é uma ilusão que tem


que ser desmantelada para que o analisando possa ter o acesso
necessário à sua ordem desejante e, assim, encontrar o caminho mais
autônomo em direção a um estado psíquico de menor tensão e maior
realização.

7. Real x Imaginário x Simbólico

Em suma, são três categorias fundamentais para a Psicanálise


Lacaniana.

Sabemos que Freud propôs duas tópicas ou constructos teóricos:

• Primeira tópica ou teoria topográfica: as instâncias psíquicas são


inconsciente, pré-consciente e consciente.
• Segunda tópica ou teoria estrutural: as instâncias psíquicas são
id, ego e superego.

Ambas as tópicas freudianas são tripartites, ou seja, são formadas por


três partes.

A contribuição teórica de Lacan é tão grandiosa que se costuma dizer


que seja de Lacan a Terceira Tópica da Psicanálise, igualmente
tripartite, a saber, real, imaginário e simbólico.

Mario Antonio Coutinho Jorge (em “Fundamentos da Psicanálise: De


Freud a Lacan”; RJ: Zahar, 2000), estabelece a seguinte compreensão:

• Real = não sentido, lugar do ser. Se apenas fôssemos e não


pensássemos em nossa existência, estaríamos inscritos apenas
na dimensão do real. O real é aquilo que atravessa nossa psique,
mas que não é formulado em palavras específicas. Seria algo da
ordem do mundo físico ou, no máximo, como percebemos tal
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mundo. Não por acaso alguns autores relacionam
o real lacaniano ao id freudiano.
• Imaginário = sentido, lugar do eu. O imaginário é o lugar do “eu”.
Por isso, o imaginário lacaniano é muitas vezes associado
ao ego freudiano. É o lugar do sentido (de “um” sentido): afinal,
o “eu” se firma a partir do significado que atribui a si e ao mundo
exterior, o lugar de suas ideias, crenças, resistências.
• Simbólico = duplo sentido, lugar do sujeito (ou: múltiplos
sentidos). O simbólico é o lugar do discurso (ou até do
interdiscurso, isto é, das alianças e confrontos entre formações
discursivas distintas) e da constituição dos sujeitos. O discurso é
quando a linguagem é atravessada pela dimensão das produções
sociais dos sentidos. O discurso é um conjunto de conceitos de
uma formação discursiva, a forma como um agrupamento
humano organiza suas conceitualizações,
seu universo simbólico. Por isso, fala-se em “discurso de
direita”, “discurso de esquerda”, “discurso religioso” etc. A
discursividade demanda a interação entre psiques diferentes,
dentro de um contexto social. Isso se dá pela linguagem e na
linguagem. Dentro dos discursos, há também divergências,
disputas de sentidos (portanto, o “duplo sentido”). E, claro, o
lugar de maior produção de duplo sentidos é
na interdiscursividade, ou seja, a fronteira em que dois discursos
se tocam. Exemplo: quando diferentes visões de mundo definem
o significante “terra”. Vê-se que a linguagem não é apenas um
meio de comunicação. É algo muito mais sério e profundo: é o
discurso em que os sujeitos se constituem, é o discurso sem o
qual o sujeito (e assujeitado) não poderia existir. Por haver a
dimensão do social, há quem compare o simbólico lacaniano com
o superego freudiano.

8. Foraclusão

A foraclusão é um dos principais mecanismos de defesa utilizados pelo


psiquismo para lidar com o sofrimento psíquico originado
pelo desenvolvimento de uma psicose. É um mecanismo de defesa
inconsciente que leva o sujeito a recusar ou negar a realidade da
psicose.

Desse modo, o sujeito acaba se recusando a aceitar a existência de


sintomas, comportamentos, pensamentos e sentimentos dolorosos que
são característicos de um quadro psicótico. É importante destacar que
a foraclusão psicótica torna mais difícil que a pessoa acometida aceite
a realidade dos sintomas e busque tratar adequadamente sua condição
patológica.
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Isso é muito difícil, pois:

• Se o sujeito soubesse que tem sintomas, estaria se olhando “de


fora” e permitindo uma autocrítica, um “autoconhecimento”. Seu
“eu” se colocaria na condição de paciente (ou analisando) e
conseguiria, no tratamento psicanalítico, compreender
gradualmente sua condição da sua parte psíquica doente. Esta
seria a condição das neuroses (como fobias, histerias,
obsessões), que são as psicopatologias consideradas mais típicas
em relação às quais a psicanálise melhor poderia atuar.
• Porém, quando ocorre a foraclusão, o sujeito se identifica nos
próprios sintomas, ou melhor, o sujeito considera que não tem
sintoma nenhum. Assim, o lugar do “eu” deste sujeito é o próprio
lugar do seu “outro”, não havendo uma âncora a partir da qual
ele possa fazer uma autoavaliação ou autocrítica pelo discurso
(linguagem). Esta condição é típica na psicose (com as
manifestações de paranoia e esquizofrenia), cujo tratamento
com psicanálise é considerado mais difícil.

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