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Retorno à Freud de Lacan

Laura Moreno Lima Capellanes

“A linguagem não é a verdade.


Ela é a nossa forma de existir no universo.” Paul Auster, A invenção da solidão.

“O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-


lo a palavras gastas. Nele, cada noção possui vida própria. É o que se chama
precisamente a dialética” (LACAN, 2009, p. 9).

De acordo com Roudinesco (2011, p. 18), Lacan se distinguia dos outros herdeiros de
Freud, como Melanie Klein e Winnicott dentre outros, por se distanciar desde muito cedo de
uma ideia da psicanálise reduzida a um corpus clínico.
Lacan chegara a um momento crucial de sua existência, entre 1950 e 1970, ao criticar
o que chamava de um recalcamento da essência da revolução psicanalítica, que seria a noção
do sujeito cindido devido à existência do inconsciente. Com isso, Lacan retorna a Freud para
resgatar o único método suscetível de explicar as estruturas inconscientes, que estão inscritas
nos mitos e na linguagem, de acordo com ele (ROUDINESCO, 2011, p. 21).
A partir de Freud, então, e influenciado pelos trabalhos de Claude Lévi-Strauss,
dentre outros pensadores contemporâneos a ele, Lacan inscreveu-se numa tradição que lhe
permitiu arrancar o ser humano do universo oculto e da falácia do ego enquanto instância
consciente e adaptativa às leis sociais (ROUDINESCO, 2011, p. 22).
A obra de Lacan se desdobra como um sistema de pensamento, de acordo com
Roudinesco, pois tem uma coerência interna instituída na criação de conceitos originais e
também através do empréstimo de outras disciplinas, como a linguística, a matemática, a
filosofia, a antropologia etc (ROUDINESCO, 2011, p. 23).
Com esse movimento, Lacan dá à sua psicanálise um arcabouço filosófico, tirando-a
de seu enraizamento biológico e reintroduzindo o pensamento filosófico alemão na
psicanálise (ROUDINESCO, 2011, p. 24). Lacan, com Freud, retoma então os conceitos
fundamentais, para ele, da obra freudiana, como o inconsciente, a pulsão, a repetição, a
transferência e a identificação, e com isso nos convoca a pensar o humano como Freud
pensava, a partir de uma conceituação própria sua, de sujeito do inconsciente.
Ao perpassar por diversas áreas do saber que o influenciaram em seu tempo, como os
saberes da linguística, através de Sausurre, Jakobson e Benveniste; da antropologia estrutural
com Claude Lévi-Strauss; da dialética de Hegel; além da referência à Espinosa, dentre outros
pensadores contemporâneos a ele, e a partir da cartografia do inconsciente realizada por
Freud, principalmente na “Interpretação dos Sonhos”, Lacan cria um pensamento muito
único, formulando proposições inéditas a respeito da teoria psicanalítica e sua prática clínica
(NOVAES, 2021).
Com esses pensadores e se servindo das bases da psicanálise freudiana, portanto,
Lacan formula, por exemplo, a proposição do inconsciente estruturado como linguagem, em
que o sujeito do inconsciente é formado pela linguagem. Ou seja, o inconsciente é formado
devido ao ser humano ser atravessado pela linguagem, campo esse exclusivamente humano.
Para ele, seria através dos significantes da linguagem que se articula no humano o
inconsciente. Inconsciente esse que não tem significação fixa (NOVAES, 2021).
Portanto, a questão da linguagem para Lacan é muito importante no desenvolvimento
de seu pensamento sobre a estruturação do inconsciente humano, chegando à sua construção
teórica de sujeito do inconsciente e do inconsciente estruturado como linguagem, a partir
desses referenciais (NOVAES, 2021).
Com isso Lacan queria dizer que o que existe é uma lógica de significantes, uma
cadeia de significantes, e o significante em si não representa nada, não tem significação. As
significações se formam da relação entre significantes. Dessa forma, é a partir do encontro
das articulações dinâmicas entre significantes que significações são produzidas.
Assim, é nesse frutífero retorno às bases epistemológicas da psicanálise freudiana que
Lacan estrutura seu pensamento, isto é, a partir da noção do inconsciente freudiano. Mas,
também, aprofundando-se em pontos que Freud não desenvolveu, como por exemplo a
questão do objeto a como constituinte do inconsciente.
Deste modo, Lacan faz uma leitura de Freud numa linguagem e conceituação própria,
buscando extrair da obra freudiana uma radicalidade. Radicalidade essa de uma mensagem
freudiana que é, em última instância, a do sujeito dividido, cindido, e de que não há
psicanálise operando sobre o eu (NOVAES, 2021).

Além disso, por sujeito do inconsciente Lacan conceitualiza a noção lógica e


filosófica do sujeito no contexto de sua teoria do significante, subvertendo a lógica do sujeito
da consciência, difundida pela psicologia do ego, num sujeito do inconsciente.
Com isso e apoiando-se na teoria saussuriana do signo linguístico, ele enuncia sua
concepção da relação do sujeito com o significante, em que um significante seria aquilo que
representa o sujeito para outro significante. Para Lacan, esse sujeito estaria submetido ao
processo freudiano da clivagem do eu, de acordo com Roudinesco & Plon (1998).
Lacan se utiliza de uma analogia em sua Abertura do Seminário 1 para falar sobre o
movimento de voltar às fontes, que assim como para a psicanálise e para a arte do bom
cozinheiro era necessário saber cortar bem o animal a fim de destacar a articulação, com a
menor resistência possível (LACAN, 2009, p. 10).
Esse movimento de retorno parte, então, de uma crítica à psicologia do ego, que vinha
sendo fortemente difundida a partir de Anna Freud e muito expandida nos Estados Unidos,
devido à sua cultura do american way of life. Porém, para Lacan, a psicanálise freudiana não
era da ordem da adaptação, de normatizar e padronizar pessoas ao sistema, à sociedade, como
parecia se buscar a psicologia do ego. Pelo contrário, para Lacan, a psicanálise seria da
ordem de desadaptar o sujeito de um sintoma familiar, podendo fazer advir o desejo único do
sujeito e não da ordem da sociedade sobre o que deveria ser esse desejo.
E, além do mais, Lacan dizia que o ego seria a “sede das ilusões, lugar de uma paixão
que lhe é própria e se orienta essencialmente para o desconhecimento” (LACAN, 2009, p.
88), diferentemente da função autônoma do eu, como definia a psicologia do ego.
Ainda, em seu seminário 1, em “Análise do discurso e análise do eu” de 1954, Lacan
fala sobre o ponto de vista de Anna Freud, que a leva a considerar que, na análise, tudo deve
ser conduzido a partir da posição moderada, que para ela seria a do eu. Então, a partir dessa
construção, tudo partiria da educação ou da persuasão do eu (LACAN, 2009).
Lacan é radicalmente crítico a essa construção, acreditando que a psicanálise
freudiana partia do pressuposto do sujeito cindido, do domínio do inconsciente sobre o
humano e não na supremacia do eu, que poderia levar a uma lógica reducionista do sujeito e
da complexidade do aparelho psíquico humano. Além disso, essa forma de pensamento
poderia também levar à alienação do sujeito em relação ao seu próprio desejo, algo muito
íntimo e único de cada um, com a finalidade de se adaptar ao desejo da sociedade, ou melhor,
do que esperam dele.
Com sua releitura freudiana, que está longe de ser purista, ele busca resgatar,
portanto, a ética intrínseca à prática analítica, resultando em um profundo aprimoramento das
construções teóricas psicanalíticas, bem como da prática clínica.
Além do mais, a psicanálise lacaniana pode servir de instrumento de crítica à
sociedade de consumo e do espetáculo que vivemos também no Brasil, e que é herdeira do
american way of life norte americano. Essa lógica de vida leva a imperativos da sociedade de
consumo como: compre, consuma, produza para consumir e assim você será alguém aceito
socialmente! Esse alguém seria um sujeito do consumo, levando a um apagamento do seu
próprio eu, em detrimento de uma lógica do consumismo. Ou seja, levando a uma completa
alienação do sujeito em relação ao seu próprio desejo, o que para Lacan seria a base de
muitas sintomatologias e sofrimento psíquico.
Também, por se tratar de uma língua latina, que pode ser compreendida como uma
língua mais afetuosa, “quente”, bem como a língua francesa de onde surge o pensamento de
Lacan, talvez por isso seja tão bem aceita entre os psicanalistas brasileiros para se pensar o
ser humano em nosso contexto e em nosso tempo, além de poder ser um instrumento de
trabalho mais contiguo ao fazer clínico no Brasil, devido às características próprias da
população brasileira.

Referências

LACAN, J. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954. 2 ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 2009.
ROUDINESCO, E. Lacan, a despeito de tudo e de todos. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1998.
NOVAES, L. H. M. Lacan e o retorno a Freud. 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7P9rJFTXYmQ. Acesso em: 4 fev. 2023.

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