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Revolução e subversão em psicanálise: do “isso gira” ao “isso cai”

Niraldo de Oliveira Santos – (EBP/AMP)

A pesquisa em torno do tema “subversão” no ensino de Lacan me levou, de início,


a uma passagem do Seminário 20, mais, ainda, onde Lacan retoma o tema da revolução
coperniciana para questionar a condição subversiva da psicanálise desde Freud: “A
subversão, se ela existiu em algum lugar e em algum momento, não é ter-se trocado o
ponto de rotação do que gira, é ter-se substituído o isso gira por um isso cai”[1].
A palavra “revolução” tem a sua origem no latim revolutio, que significa o “ato de
dar voltas[2]”. Já “subversão” vem de subversio, também do latim, que aponta para uma
ação que provoca queda, inversão da ordem[3].
O tema “revolução” – coperniciana, aristotélica, francesa, marxista, comunista e
freudiana, foi abordado por Lacan em 29 lições em 14 seminários[4], além de também
estar presente em outros momentos do seu ensino como em “Subversão do Sujeito e
dialética do desejo” e “Radiofonia”, por exemplo.
A psicanálise é revolucionária? Onde reside sua via subversiva?

Freud e a revolução coperniciana


Golpes[5], insultos[6], feridas narcísicas. São estes os termos utilizados em
português para fazer referência ao que Freud apontou como o impacto que as teorias de
Copérnico, Darwin e a sua descoberta psicanalítica causaram na humanidade. Para Lacan,
trata-se de discernir mais de perto o que o próprio Freud articula como constituindo um
“passo coperniciano[7]”. De partida, Lacan aponta que a noção freudiana do eu,
descentrado, foi tão “transtornadora[8]” que mereceu a expressão “revolução
coperniciana”. Trata-se de um despertar da fascinação pela propriedade da consciência,
para considerar o humano em uma estrutura “que lhe é própria, que é a estrutura do
desejo[9]”. Antes de Freud, diz Lacan, o estudo da economia humana partia de uma
preocupação com a moral, e que “se tratava menos de estudar o desejo do que, desde logo,
reduzi-lo e discipliná-lo[10]”.

A revolução no campo da ciência


No campo da ciência, Lacan recorre a Koyré[11] para dizer que não foi Copérnico
e sim Kepler e Newton que engendraram uma revolução, uma mudança de cosmologia.
Isso se deu por meio da construção de hipóteses e da noção de um saber “que se transmite
integralmente, que se produziu no saber essa peneiragem graças à qual um discurso que
se chama científico se constituiu[12]”. Nesta perspectiva, Lacan aponta que a hipótese
proposta por Kepler e em seguida por Newton é a de ter descrito que o isso gira astral,
não mais circular, mas em elipse, é a mesma coisa que cair. “Mas para constatar isto, o
que permite eliminar a hipótese, foi mesmo preciso que primeiro ele a fizesse, essa
hipótese[13]”. Esta mudança paradigmática opera um corte entre o pensamento antigo e
o pensamento moderno – uma revolução no campo da ciência, construindo um campo
propício, inclusive, à existência da psicanálise. “O inconsciente, eu não entro nele, não
mais do que Newton, sem hipótese[14]”, diz Lacan.
Com a mudança de perspectiva proposta por Freud com a criação da psicanálise, ou
seja, o golpe de natureza psicológica, o que cai é a noção de um eu autônomo. Neste caso,
o termo “revolução” implica uma ruptura que permite recomeçar a partir de um ponto
novo. Como decorrência desse ponto de inflexão, a diferença está, exatamente, no que
fazer diante daquilo que caiu. Trata-se de restituir seu centro? Substituí-lo?

As Revoluções e o Mestre
No campo das Revoluções, com R maiúsculo, Lacan desconstrói os ideais do
homem moderno com uma certa dose de ironia. O ideal da liberdade, da felicidade, da
realização do desejo, da igualdade para todos são postos como impossíveis. No que diz
respeito ao ideal de liberdade, em virtude da duplicidade senhor-escravo estar
generalizada no interior de cada participante da nossa sociedade, Lacan chega a compará-
lo “a um discurso delirante[15]”. Quanto ao lema A liberdade ou a morte!, por exemplo,
a posição de Lacan é a de que isso só seria possível obtendo os dois[16].
No seminário “O avesso da psicanálise” Lacan é enfático ao mostrar que “no que
chamam romanticamente de Revolução com R maiúsculo, o discurso do mestre realiza
sua revolução (…) no giro que se completa[17]”. O isso gira evoca sempre o retorno.
Para Miller[18], aos olhos de Lacan, a política procede por identificação, manipula
os significantes mestres e busca, por meio disto, capturar os sujeitos. A psicanálise vai
contra as identificações, as desfaz uma por uma, as faz cair como cascas de cebola.
Diante dessa constatação, ou seja, a de que uma revolução institui, necessariamente,
um mestre para ocupar o lugar daquele deposto, o discurso analítico é um contraponto.

A subversão faz furo na revolução


Se, como vimos antes, a psicanálise não se presta a uma revolução no âmbito do
coletivo, como o tratamento do gozo, no um a um, pode contribuir com o convívio em
sociedade e reduzir o mal-estar na cultura?
O discurso psicanalítico é o avesso do discurso do mestre. Por meio de seus
quadrípodes giratórios, Lacan demonstra que é por meio das voltas discursivas que reside
justamente o tratamento do gozo: “não se trata aqui de transgressão, mas antes de
irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo[19]”. É exatamente neste ponto
que o ensino de Lacan mostra sua via subversiva pois, diante do que cai, não há a
perspectiva de restituir, por exemplo, o eu autônomo como propõe a ego psychology.
O processo civilizatório, incluindo aí os discursos religiosos, racistas e higienistas
movem-se visando restituir para o centro aquilo que supostamente haveria de natural no
humano. Esta operação move para a periferia toda a diferença, tudo o que é próprio ao
gozo, secretando e segregando os sujeitos.
É com a noção de falasser, junção de fala, gozo e sujeito, que Lacan expõe a via
radical de dizer que o que a psicanálise localiza como centro é um vazio, um real como
impossível. É por essa via que podemos retomar a importância de considerar as voltas
que o discurso analítico promove no decurso de uma análise.
No seminário de um discurso que não fosse semblante, Lacan nos mostra que, “se
houve um momento em que Freud foi revolucionário, foi na medida em que ele pôs em
primeiro plano uma função que é também a sugerida em Marx (…), considerar um certo
número de fatos como sintomas[20]”. Ao escutarmos as voltas de um discurso, guiados
pelo sintoma, é possível fazer cair sua marca de gozo, ao mesmo tempo em que se revela
um furo em torno do qual o sintoma gira. Ou, nas palavras de Marcel Ritter[21], “um pivô
em torno do qual gira o carrossel do gozo, sendo este pivô o objeto a como mais-de-
gozar”. Quando o sujeito é subvertido, destituído de seu domínio imaginário, diz
Miller[22], ele abandona sua caixa narcísica e tem condições de enfrentar todas as
eventualidades.
As revoluções do sintoma são, então, subvertidas pela psicanálise exatamente ali
onde ela não propõe outra coisa para ocupar o centro, a não ser este objeto topológico,
semblante do real. Chega-se a ele, precisamente, não pelos ideais, mas pelos dejetos.
Para Miller, “o dejeto é (…) o que cai, é o que tomba quando, por outro lado, algo
se eleva. É o que se evacua, ou que se faz desaparecer, enquanto o ideal resplandece[23]”.
Trata-se de desprender do gozo uma parcela que possa constituir objeto e “elevá-lo à
dignidade de Coisa”. Isso nos permite visar, subversivamente, a “salvação pelos
dejetos[24]”.
Nos tempos atuais, onde a pregnância de discursos totalitários, o desprezo pela
ciência e o triunfo da religião acontecem sob nossos olhos, a Escola de Lacan permanece
um refúgio ao mal-estar?
Convidar a comunidade para o debate, elevando o tema “subversões” à dignidade
da Coisa, é dar voz ao falasser político?
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[1] Lacan, J. (1972-1973) “O Seminário, livro 20: mais, ainda”. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008, p. 48.
[2] Michaelis online. Acessado em: michaelis.uol.com.br
[3]Idem
[4]Krutzen, H. “Jacques Lacan – Séminaire 1952-1980. Index référentiel”. (3e éd). Paris:
Economica Ed., 2009.
[5] Freud, S. (1917). “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”. In: ______. Uma
neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[6] Freud, S. (1916-1917). “Conferências introdutórias XVIII: Fixação em traumas – O
inconsciente”. Obras Completas, volume 13. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[7] Lacan, J. (1960) “Subversão do sujeito e dialética do desejo”. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 810.
[8] Lacan, J. (1954-1955) “O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 10.
[9] Lacan, J. (1954-1955) “O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 283.
[10] Lacan, J. (1957-1958) “O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente”. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 261.
[11] Lacan, J. “Radiofonia”. (1970). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
2003, p. 420.
[12] Lacan, J. (1972-1973) “O Seminário, livro 20: mais, ainda”. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008, p. 152.
[13]Ibidem
[14]Ibidem
[15] Lacan, J. (1955-1956) “O Seminário, livro 3: As psicoses”. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2002, p. 154.
[16] Lacan, J. (1964) “O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 202.
[17] Lacan, J. (1969-1970). “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 81.
[18] Miller, J-A. “Lacan e a política”. Revista Opção Lacaniana, n. 40. Agosto de 2004.
[19] Lacan, J. (1969-1970). “O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise”. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. p. 17.
[20] Lacan, J. (1971) “O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante”.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009, p. 23.
[21]Ritter, M. “Le carrousel des jouissances ou les variantes de la jouissance”. In: La
jouissance au fil de l’enseignement de Lacan. Ritter, M; Jadin, J-M (Org.). Paris: Eres Ed,
2009.
[22] Miller, J-A. “Lacan e a política”. Revista Opção Lacaniana, n. 40. Agosto de 2004.
[23] Miller, J-A. “A salvação pelos dejetos”. In: Perspectivas dos Escritos e Outros
Escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001, p. 228.
[24] Idem, p. 233.

Fonte: postado em 27 de julho de 2020, no boletim das Jornadas Subversões


https://ebp.org.br/sp/revolucao-e-subversao-em-psicanalise-do-isso-gira-ao-isso-cai/

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