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‘Sapere Aude!, ou, ‘Ouse saber!’ Nas palavras de Kant: “Tenha a coragem de te servir
de teu próprio entendimento”1 - eis o lema do Esclarecimento no século XVIII, que se
repetirá de algum modo nos séculos seguintes, seja confirmando-o seja criticando-o.
Nos deteremos com atenção especial em Nietzsche e sua insistência no lema do
amadurecimento do homem em seus processos.
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Die Aufklärung, o emprego mais específico que Nietzsche faz do termo, com o qual se
referia ao movimento de ideias na França do século XVII, é aquele associado a
pensadores como Voltaire e Rousseau. Nietzsche foi o mais radical crítico do
Esclarecimento durante o século XIX, e inspirou gerações de opositores da
modernidade. Os escritos da fase intermediária (1878-1882) enaltecem a razão
iluminista, expressão do positivismo de Nietzsche ou ainda mero momento de transição
entre os escritos de juventude e maturidade. A verdade é que no geral as posições de
Nietzsche sobre o Esclarecimento são ambíguas.
Nietzsche, bem como Foucault depois dele, manteve o mote lançado por Kant para o
Esclarecimento, no entanto mudando a exegese, significando antes de tudo ter a
coragem de reinventar a si mesmo. De fato, abordando melhor Foucault e seu texto O
Que São as Luzes? Podemos vê-lo tocar neste ponto da proximidade do esclarecimento
com o humanismo, para optar pela tensão entre eles mais do que apostar em uma
identidade: “ Ora, creio que justamente se pode se opor a essa temática, tão
frequentemente recorrente e sempre dependente do humanismo, o princípio de uma
crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia: ou seja, um
princípio que está no cerne da consciência histórica que a Aufklärung tinha tido dela
mesma.”2
2
FOUCAULT. M. “O Que São as Luzes?”, In: Ditos e Escritos II, p.346.
2
adorada França do século XVII, para depois repudiá-lo, articulando-o com a Revolução
Francesa, que segundo ele, restaurou a abominável moral dos escravos, obra do
cristianismo. No entanto, nesse período intermediário, o Esclarecimento foi sem dúvida
uma arma usada por Nietzsche contra o romantismo cristianizado de Wagner. ]
Para Nietzsche o Esclarecimento foi, então eminentemente francês. Kant era visto como
um inimigo do movimento. Nietzsche ignorava a Aufklärung alemã. Em suas obras de
amadurecimento, 1883-1889, Nietzsche promoveu uma mudança séria em suas
considerações sobre o Esclarecimento. Nessa nova fase, o filósofo escreve contra o
século XVIII em geral, abrangendo tanto o Esclarecimento quanto a Revolução. Temas
básicos do Esclarecimento tornam-se centrais do vocabulário revolucionário: progresso,
igualdade e liberdade. De um lado Lutero, Rousseau, Kant, Revolução Francesa,
Romantismo, igualitarismo democrático, nacionalismo, moralismo, esclarecimento, do
outro, contra, o século XVII, ceticismo religioso, nobreza, Voltaire e todos os outros
“espíritos livres”.
É bem verdade que o humanismo é um tema que reaparece de tempos em tempos nas
sociedades europeias, com alguma variação em seu conteúdo, assim como nos valores
que mantiveram, por exemplo, houve o humanismo cristão, o ascético, o marxismo foi
entendido como um humanismo, o existencialismo e até os próprios stalinistas se diziam
humanistas. Por isso, quando vemos Nietzsche e sua filosofia como sendo capazes de
cultivar novos valores para si na afirmação da vida e não na negação desta,
compreendemos o seu posicionamento crítico face à moral tradicional e ao humanismo
clássico. Aqui o homem não é mais o centro, é capaz de se libertar de uma moral
apoiada numa perspectiva metafísica, tendo portanto liberdade para se projetar, fixando
para si um objetivo e um caminho, e, antes de tudo, colocando-se desde uma perspectiva
da vida em primeiro lugar.
ciência ganha também prioridade em suas análises, tornando-se um aliado dos assim
chamados “espíritos livres”.
3
NIETZSCHE, F. Schopenhauer Educador, p.22.
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A arte, por exemplo, nesta fase, liberta de toda glorificação dos Gregos, se torna mais
crítica, uma tarefa de futuro simplesmente humana, como tarefa de uma humanidade
liberta de ilusões.
Em Humano Demasiado Humano permanece a pergunta: o que é preciso para que alguém
se torne aquilo que se é? Essa questão parece substituir aquela outra colocada pelo
Esclarecimento e sua recorrente pergunta pela formação (Bildung) do homem.
pensar já tem duração; depois que eles não querem importunar; e, por
fim, que em geral trazem vantagens para os espíritos cativos.”4
Esse novo homem, superior, nesse momento de ruptura com Wagner, aponta para um
ultrapassamento ainda maior: é o homem superando a si mesmo para além da figura do
salvador. O romantismo de Wagner, mais o pessimismo típico de Schopenhauer, atrelados
à tradição platônico-cristã, vincula-os irremediavelmente ao pensamento metafísico que
Nietzsche quer ver superado na figura maior da moral.
O “espírito livre” seria aquele cujos novos valores afirmam a vida, não mais negando-a,
como faz a moral tradicional. Procurar experimentar e mudar a vida sem referência a
nenhum tipo ideal metafísico é o que se propõe o “homem livre”. Assim, poder-se-ia dizer,
a vida deve ser entendida como uma figura de transição a partir do ideal metafísico.
4
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. São Paulo,
Companhia das Letras, 2000, p.160.