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“Do mal radical à banalidade do mal: Uma questão ética?”

1) Introdução:

Para pensarmos o mal, confrontaremos três pensadores de diferentes fases do


pensamento, os  filósofos, Kant e Hannah Arendt, com as suas respectivas formulações
em primeiro lugar, e, no sentido de fazer um contraponto na modernidade
apresentaremos um ponto de vista sui generis de Freud e a sua psicanálise. 
Está dito que entre Kant e Hannah Arendt há uma relação que vai além da influência.
Arendt bebe na filosofia de Kant como um discípulo no seu mestre. Mas embora
compreenda a significação do “mal radical” em Kant, Arendt não concordará com sua
limitação, uma “perversidade”, um mau no coração. Kant chega a elaborar um aspecto
do mal absoluto, mas o negará de todo modo pois seria o diabólico no homem e isso não
é possível.
Não fica claro em lugar algum se Arendt toma para si essa descrição diabólica no
homem, mas tem a curiosidade de acompanhar o nazista alemão Eichmann, quando de
seu julgamento em Jerusalém. Esperava algo de monstruoso, mas só encontrou um
homem comum, um medíocre, um “vazio de pensamento”.

Tudo isso deslindado vai dar na sua compreensão de “banalidade do mal”, que fará um
contraponto com o “mal radical”. Foi muito criticada pelo público, ninguém aceitou
essa sua interpretação de um homem “banal” instaurador do holocausto.

O problema do mal em Kant aparece como do âmbito de uma concepção da natureza do


homem, entendendo-se “natureza” não o indivíduo isolado, mas o gênero humano, por
isso, o mal deverá ser entendido como uma realidade universal; e também como uma
propensão inata, porque não pode ser extirpada da natureza humana. Mas, nem por isso
deverá ser entendido como algo absoluto. Aqui, o mal é inato, é quase como um pecado
original do homem. Ao mesmo tempo que não aceita a “malignidade”, aceita a
“perversão”, uma falha no livre arbítrio, o suficiente para se entender o mal radical.

É bastante controverso tudo isso que foi dito a respeito do mal e de Kant e será nosso
esforço no trabalho compreender essa significação. A verdade é que, para Hannah
Arendt, os horrores que acabara de sofrer não era abarcado pelo “mal radical” de Kant
que não se propõe o absoluto, somente o perverso. O mal absoluto não pode existir,
simplesmente porque seria impossível que uma vontade má pudesse recusar
deliberadamente a lei moral, seria uma contradição em si, a vontade não pode se voltar
contra sua lei interna, contra si própria. Somente isso poderia dar vazão a um juízo de
todos os males da guerra. Mas o absoluto é o fim da criatura humana, e nisso Hannah
Arendt concorda com Kant que não haja uma porção diabólica no homem.

O mal radical é, na verdade, uma privação, uma positividade, é uma perversidade do


coração. Será, pois, na liberdade do homem que se manifestará o mal radical. Podendo
escolher pela lei moral, optará pelas máximas contrárias, aceitará justamente aquelas
que o desviam daquela, aí está a maldade radical do homem, quando podemos afirmar
ser ele mau por natureza. Hannah Arendt entenderá que não há conceito que dê conta
2

dos últimos fatos da grande guerra, há uma “ruptura entre o passado e o futuro” que
nada nem ninguém virá cobrir. Apenas mais tarde Hannah Arendt apresentou-se a um
jornal de Nova Iorque para cobrir o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém
(1963).

Hannah Arendt no processo, lança um conceito novo, o da “banalidade do mal”, em


confronto ao “mal radical”, mas muito menos desenvolvido e sustentável. O fato é que
um mal banal retira o peso da monstruosidade nos homens para lançá-la nos fatos. Um
homem banal, sem profundidade, sem ideologia nem qualquer outra designação foi
capaz do maior dos maiores fatores de extermínio da humanidade. Entendemos que a
“banalidade do mal” não elimina o “mal radical”. São elaborações díspares.

Em síntese, a nova concepção de mal inserida no pensamento de Hannah Arendt através


do conceito de” banalidade do mal”, elaborado  justo na obra Eichmann em Jerusalém
(1963),  servirá não apenas no sentido de negar a noção de mal radical, como será
também um ponto de partida para se pensar o fenômeno do mal em outras bases na
realidade.

2) Antecedentes da questão do mal:

Em primeiro lugar vemos Platão tratar da questão do mal, esse problema metafísico é
bastante claro em sua filosofia no sentido de negá-lo em favor da ideia do Bem:

“ E não é certo que há quem, por deliberação, se empenhe em praticar o mal ou o


que ele considera como tal, por não ser de natureza do homem decidir-se pelo que
ele considera mal, em detrimento do bem, nem, na contingência de escolher entre
dois males, decidir-se pelo maior, quando podia optar pelo menor.” 1

Como se depreende desta passagem, Platão considerará o mal da perspectiva da


“natureza” do homem, em suma, da ordem da alma. Para ele, então não haverá o mal em
si, enquanto essência, como haverá o bem em si elaborado como ideia. O mal não
passará, assim, de uma privação de ser, de um acidente. Na verdade, o mal no homem
seria, antes, uma espécie de erro, uma falha no ato de sua escolha entre o bem e o mal.
Esse erro implicaria, sobretudo, numa falta de conhecimento muito particular, definido
por Platão, mais de uma vez em seus diálogos, como uma ignorância, uma falta de
saber.

Entenda-se bem que, a ignorância de que se trata aqui não se refere simplesmente a um
desconhecimento genérico, mas de uma carência em relação à sabedoria. Esta auto-
realização da sabedoria é propriamente a maneira mais exata de se fugir à ignorância. A
maior das ignorâncias, segundo Platão, está em se ser vencido pelos prazeres;
precisamente no âmbito da má escolha que haja entre os prazeres e as dores.

Esse conhecimento, ou esta sabedoria, que livraria o homem de sua própria ignorância,
se assemelharia a uma “sensibilidade” visual, uma possibilidade de antecipar o futuro
1
PLATÃO, Protágoras, 358-a.
3

através do treino da visão. Uma experiência realizada desde a alma, e não meramente
um conhecimento formal, um exercício intelectual, que concerne ao mathematikos –
aquele que estuda, que se exercita na matemática. A sabedoria estaria, nesse sentido,
próxima da ideia sugerida no senso comum da qualidade do “sabor”, ideia esta implícita
na formulação do significado primário de saber.

Ao contrário de uma experiência fria e meramente conceitual, a sabedoria platônica


estaria a nos remeter à perspectiva da ponderação, sentido este desenvolvido
posteriormente por Aristóteles em sua noção de prhonésis ou “sabedoria prática”. Essa
inteligência mais prática, mas ainda assim do âmbito noético, resultaria necessariamente
numa deliberação; numa capacidade de escolha por parte do homem em relação ao
caráter mal de algo ou de alguém – aspecto fundante de sua filosofia ética.

“ A maior ignorância é quando um homem detesta aquilo que todavia ele pensa ser bom e
nobre, e ama e segue aquilo que conhece ser tortuoso e mal”. 2

A partir destas pistas em Platão, partiremos para um embate acerca dessa questão do
mal, assumindo uma miríade de significados. Entendemos que a noção platônica de mal
enquanto privação e sem raiz ou fundamento acompanha todos os pontos de vista do
pensadores que por ora estaremos a pesquisar, à exceção de Freud que trabalha com
outro paradigma. Buscando compreender diversos momentos da história do
pensamento, traremos mais um ponto de vista para nossos estudos, Espinoza e a sua
colocação do problema do mal.

Tal qual Platão, Espinosa não chega a afirmar a existência do mal em si, como algo real
ou mesmo substancial. De outro modo, a filosofia de Espinosa entenderá o mal como
algo relacional, comparativo, portanto não essencial. Para Espinosa, a única realidade
em si será Deus, ou seja, de acordo com a noção própria de Natureza como aquilo que
estabelece as relações na realidade de forma necessária. Somente Deus e sua encarnação
na dimensão da Natureza merece ser considerado “em si”, sem relação com o que quer
que seja. Esta “coisa” que seja Deus inclui uma perfeição, e dessa forma, se torna a
essência mesma dessa coisa.

Contudo, partindo da reflexão proposta por Espinosa em suas Cartas sobre o Mal a
Blyenberg3, percebe-se que sua tematização primeira em torno do mal supõe a vontade
ela mesma, em tanto que ela se concebe de uma maneira precisa, ou seja, enquanto ela
se oponha ao comando de Deus. Espinosa se oporá precisamente a esse entendimento,
na medida em que, segundo ele, nada poderá ocorrer contra a vontade de Deus. Nesse
sentido, seria impossível ao homem “pecar” contra Deus.

Seguindo-se esse entendimento de Espinosa, a vontade de Adão não poderia jamais ser
contrária a Deus, ao contrário do argumento desenvolvido por Blyenberg. Se o
argumento deste fosse válido, isso significaria acusar-se uma grande imperfeição a
Deus. Se a afirmação de uma vontade no homem contrária a Deus se realizasse, seria
algo assim como um poder agir-se contra sua vontade, isto é, uma impossibilidade em
2
PLATÃO, Leis, 689.

3
ESPINOSA, Cartas sobre o Mal a Blyenberg,
4

si. Na definição de Blyenberg, no mal está implícita a ideia de transgressão, ou seja,


uma vontade que se opõe ao mandamento divino. Já por outro lado, no entendimento de
Espinosa, a vontade de Adão nunca poderá ser considerada má, simplesmente porque
sempre designada por Deus.

Tomado em si, o decreto de Adão, ou sua vontade, não é um mal, nem tampouco com
trário à vontade de Deus. Nada ocorreria na realidade sem o concurso necessário de
Deus – essa é a ideia de Natureza na Ética. A ingerência e condução de toda a realidade
a partir da vontade divina implica que, a ideia de Deus está compreendida em si e em
tudo que é produzido, portanto necessário. Assim, nada poderia ser ou acontecer
diferente daquilo conforme acontece de fato.

Assim, do mesmo modo que a vontade divina coincide com seu intelecto, seria
irrazoável que alguma coisa acontecesse contrariamente a ambos – vontade e intelecto.
Também cabe ressaltar que a essência de Deus é, ainda na Ética:

“uma essência do ente eterno e infinito. (...) que dela devem se seguir infinitas
coisas, de infinitas maneiras”.4
Desse modo, na formulação própria a Espinosa, uma “natureza naturante”
propriamente uma causa imanente, ou seja, não existe fora de si; tem seu efeito
produzido na própria coisa. O resultado desta compreensão será a formulação básica de
que tudo o que seja produzido será também necessário, inclusive corpos e mentes. Nada
escapa ao determinismo da vontade de Deus.

No entanto, a resolução, ou vontade de Adão em comer o fruto proibido, inclui tanta


perfeição que ela exprime a realidade mesma. Não há uma contradição entre essa ideia
da perfeição do ato de Adão e a necessidade e determinação inerentes a Deus e sua
vontade. Deus não escolhe essa sua vontade, apenas aponta para os resultados maléficos
de seu ato, no caso o envenenamento, onde estaria implicada a ideia de decomposição, a
sua imperfeição. A vontade de Adão, então, não poderia ser explicada em termos de
perfeição ou imperfeição – nem mesmo algo da ordem do que usualmente se considera
um “pecado”.

Só se pode dimensionar este decreto do Adão como sendo um mal se se tomar por
critério uma realidade mais perfeita que a dele, no caso Deus. O mal deveria ser
considerado como uma espécie de “privação” em relação a um estado mais perfeito que
o de Adão, em suma, a Deus. Por outro lado, existiriam outras coisas que lhe seriam
inferiores, como as pedras, por exemplo. Assim, conforme podemos depreender da
noção implícita na ideia de “privação”, o mal não poderia nunca ser atribuído a Deus
ou à sua ideia, mas, unicamente a nosso intelecto.

Voltando a Platão e sua compreensão do mal onde “não se faz o mal


involuntariamente”. Desde essa perspectiva, está implicada uma espécie de deliberação
do homem na base do seu intelecto, um conteúdo do pensamento. Todo ato de escolha,
em Platão ou Espinosa, significa antes de tudo escolher bem. A conjugação dessas duas
dimensões do homem, a vontade e a inteligência, é um dado marcante para esses dois

4
ESPINOSA, B., Ética, Segunda parte, Belo Horizonte, Autêntica Editora.
5

filósofos, onde as questões da liberdade e do livre arbítrio se tornam atuantes na esfera


do ser livre do homem.

3) Kant e o Mal Radical:

O problema do mal em Kant aparece como do âmbito de uma concepção da natureza do


homem, entendendo-se “natureza” não o indivíduo isolado, mas o gênero humano, por
isso, o mal deverá ser entendido como uma realidade universal; e também como uma
propensão inata, porque não pode ser extirpada da natureza humana. Mas, nem por isso
deverá ser entendido como algo absoluto. Aqui, o mal é inato, é quase como um pecado
original do homem. Ao mesmo tempo que não aceita a “malignidade”, aceita a
“perversão”, uma falha no livre arbítrio, o suficiente para se entender o mal radical.
 A partir desses autores, Kant, Freud e Hannah Arendt, o mal radical inscrever-se-á em
uma discussão de cunho político e ético. O problema do mal aparece em Kant pela
primeira vez na obra A Religião nos limites da simples razão5, como do âmbito de uma
concepção da natureza do homem, quer dizer, do gênero humano. Desse modo, o mal
deverá ser entendido como uma realidade universal, portanto, radical. Sendo uma
propensão inata, não pode ser extirpada da natureza humana. O mal radical é uma
privação, uma positividade, é uma perversidade do coração. Será, pois, na liberdade do
homem, que se manifestará o mal radical. Podendo escolher pela lei moral, optará pelas
máximas contrárias, há como que uma inversão entre móveis. O livre arbítrio, a sua
vontade, é o responsável pelo mal radical.
A malignidade da natureza humana não é, pois, maldade, se tomarmos esta palavra no
sentido estrito; a saber, como uma intenção de admitir o mal, enquanto mal, para motivo
em sua máxima, pois esta é diabólica, mas muito antes é perversão do coração, o qual,
portanto, denomina-se também um coração mal.
O problema do mal em Kant aparece como do âmbito de uma concepção da natureza do
homem, entenda-se, o gênero humano. Sendo uma propensão inata, não pode o mal ser
extirpado da natureza humana, mas isso tem seus limites, portanto não o admite na
forma absoluta. O mal absoluto não pode existir, simplesmente porque seria impossível
que uma vontade má pudesse recusar deliberadamente a lei moral, seria uma
contradição em si, a vontade não pode se voltar contra sua lei interna, contra si própria.
O mal radical é, na verdade, uma privação, uma positividade, é uma perversidade do
coração. Será, pois, na liberdade do homem que se manifestará o mal radical. Podendo
escolher pela lei moral, optará pelas máximas contrárias, aceitará justamente aquelas
que o desviam daquela, aí está a maldade radical do homem, quando podemos afirmar
ser ele mau por natureza. O livre arbítrio, a sua vontade, é o responsável pelo mal
radical. 
O termo radical, 'limitatio', é a mesma coisa de segundo termo. O mal radical no sentido
de se compreender radical seria uma 'limitatio', em seu sentido mais primitivo, aquele
que estabelece os limites da simples razão.
5
KANT, I. A Religião nos limites da simples razão, Lisboa, Edições 70.
6

Mas ainda que se possa afirmar que haja uma propensão universal para o mal na
natureza humana, pensa Kant que não se pode negar que há a disposição originária para
o bem na natureza humana. O tema do mal radical está em que o mal só poderá existir
como uma possibilidade de conversão ao bem, ou seja, no fundo, é sobretudo visando o
caráter da desumanização que Kant fala do mal radical.
Na verdade, a disposição para o bem é outra coisa que não pode ser destruída. No
fundo, ainda segundo uma concepção platônica, Kant entende que não há a
possibilidade de um mal absoluto.  Freud, ao revés, afirmará  a existência de uma
destrutividade autônoma no homem, o que corresponderia à aceitação do mal radical na
sua pior forma, para além mesmo da sexualidade. O chamado “instinto de morte”, em
contraposição ao Eros, seria responsável por essa pulsão no homem que se volta para
fora na forma da agressão.  

Se se concebe a realidade do mal radical, entende-se uma tripartição: a fragilidade, a


corrupção e a impureza.

Na fragilidade, há a vontade boa, mas falta a realização. A corrupção mistura motivos


morais com  motivos não morais. Como se a lei por si só não fosse motivo suficiente. A
impureza expõe a lei moral subordinada a motivos não morais, provenientes das
inclinações ou desejos.

Tem-se um coração mau, de verdade, na medida em que nesse último estágio se opera
uma inversão por meio do qual a lei é substituída pelo amor-próprio como móbil da
ação. Em outras palavras, verdadeiramente mau, é aquele que submete a lei moral a uma
lei do amor. Tem-se um coração mau, de verdade, na medida em que nesse último
estágio se opera uma inversão por meio do qual a lei é substituída pelo amor-próprio
como móbil da ação. Em outras palavras, verdadeiramente mau, é aquele que submete a
lei moral a uma lei do amor próprio ou da felicidade. Esse mal é radical, nos dirá Kant,
porque corrompe o fundamento de todas as máximas; ao mesmo tempo, como também
uma propensão natural, não pode ser estirpado por forças humanas.

A restauração da disposição original para o bem em nós consiste, portanto, na


restauração do respeito perdido pela moral. Pois se o caráter não é obra da natureza,
devemos supor que o homem seja capaz de defini-lo, e mesmo de redefini-lo, por uma
escolha entre o bem e o mal. Pois se não temos de buscar a felicidade, mas de ser
virtuosos, devemos nos tornarmo-nos dignos dela.

A perversão da obediência, convertida em único móbil da ação, a atentar contra a


autonomia, acabou por provar que corações maus dos grandes vilões são menos
assustadores que a conduta desinteressada e não utilitária dos subordinados de baixa
estatura, como no totalitarismo, por exemplo. Aqui ocorre a destrutividade ilimitada,
indivíduos que cometeram o mal pelo mal, e não como meio para aquisição de algum
benefício próprio.

Kant não concebia a possibilidade de uma propensão universal para o bem, por outro
lado também não admitia em suas reflexões a concepção de uma vontade diabólica, a
querer o mal pelo mal, pois não é possível escolher a recusa da lei. O imperativo
7

categórico enuncia a fórmula definitiva para o homem distinguir o certo e o errado:


“ Age de tal modo que a máxima da tua ação possa valer como lei universal”.
O mal radical não se refere a alguma forma particular do mal ou a alguma de suas
manifestações nas ações dos homens, mas mais propriamente ao fundamento da
possibilidade de todo mal moral.

 Já em Hannah Arendt, o conceito de mal radical será rejeitado por incapacidade de dar
conta da “monstruosidade” que foi o totalitarismo. Impossibilitado de afirmar o mal
absoluto, o homem pode, no máximo ser perverso, e isso é pouco no entender de
Hannah Arendt para fins de compreender os horrores de seu tempo. Simplesmente não
há categorias para pensá-lo. Então Hannah Arendt lançará mão de um outro conceito
todo seu, o da “banalidade do mal”, para dar sentido a esta monstruosidade sem
tamanho.

4) Freud e o Mal na Civilização:

Confirmando a tese kantiana do mal radical, Freud vai além, afirmará  a existência de
uma destrutividade autônoma no homem, o que corresponderia à aceitação do mal
radical conforme tenha sido primariamente formulado por Kant.  A ideia de “natureza”
em Kant, como se disse, é a de gênero, universal, Freud a conceberá como sendo o
aspecto natural/ não-natural, do mal, na concepção por ele estabelecida no binômio
“pulsão de morte" e “pulsões sexuais”, a libido. A questão freudiana fundamental do
mal radical estaria, assim, antes de tudo, no próprio homem.

O caráter conservador da vida instintiva e a compulsão para repetir atraíram a atenção


de Freud. Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para reuní-las em
unidades cada vez maiores deveria haver outro instinto buscando destruir estas
unidades. Ao lado de Eros existiria um instinto de morte. Este último operaria
silenciosamente dentro do organismo no sentido da destruição.

[[[[[[[[[É de muito espanto para Freud ter desprezado o caráter onipresente da


agressividade e da destruição não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em
nossa interpretação da vida. É que há uma inata inclinação humana para a “ruindade”, a
agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. Não há de modo algum
como negar a existência do mal.]]]]]]]

Freud nos apresenta sua tese bipolar da maldade, uma em que duas espécies de instintos
sobrevivem um ao lado do outro. De um lado a libido ou Eros, de outro, o instinto de
morte. Mas é possível, ainda, que esse instinto de morte apareça sem qualquer instinto
sexual, na mais pura destrutividade. Assim, a inclinação para a agressão instintiva
constitui uma disposição original e auto-subistente, o maior impedimento à civilização,
então que aí encontramos o caminho a que se chegue ao mal radical.
8

O papel de Eros é pró civilização, o porquê de ser assim não sabemos. O domínio do
mundo está neste movimento entre o instinto de morte, o instinto de agressividade e o
Eros em sua evolução. Mas que lugar é este que ocupam estes instintos?
A pulsão ocupa um lugar além da ordem e da lei, além do inconsciente e da rede de
significantes, além do princípio de prazer, além da linguagem, é o lugar do acaso. A
pulsão é extra psíquica e o mais importante aqui está em afirmar-se a autonomia da
destrutividade em relação à libido.

O que estas afirmações estão a nos dizer é que há de fato uma tese de uma
destrutividade fundamental, de uma vontade maligna e inerente ao ser humano e não
tributária da sexualidade. Freud coloca-se, assim, ao lado daqueles que afirmaram uma
maldade original do ser humano.

É o conceito de pulsão de morte tributário da existência do mal radical no homem?


Pulsão de morte como destrutividade autônoma, “vontade de destruição” correspondem
à aceitar a existência de uma maldade originária no homem. Maldade que se exerce para
além do princípio do prazer ou da sexualidade. Se existe, então, um mal absoluto é por
essa via que se há de encontrá-lo.

5) A Banalidade do Mal em Hannah Arendt:

 Já em relação a Hannah Arendt, o conceito de mal radical é sugerido pela primeira vez
em sua obra Origens do Totalitarismo6, no sentido de negá-lo. O mal radical segundo
Kant, de certa forma, conforme o concebamos como uma “vontade pervertida” ainda é
possível de ser explicado, o que já não acontece com o evento do totalitarismo na
modernidade segundo o ponto de vista de Hannah Arendt.

A questão do mal na filosofia foi retomada por Hannah Arendt desde a perspectiva do
surgimento de uma nova modalidade do mal. A concorrência das sociedades totalitárias
no nosso século leva Hannah Arendt a retomar a questão do mal na filosofia.
A verdade é que todos se recusam a aceitar a concepção de um mal radical – inclusive
Kant. Este racionalizou o mal radical no conceito de ”'perversidade do coração”,
realidade esta que poderia ser explicada por motivos compreensíveis.

Hannah Arendt ousou e traçou uma outra rota para a questão do mal. Para ela essa
modalidade do mal não está subjugada a qualquer tipo de domínio despótico sobre os
homens, mas sim num sistema em que todos os homens sejam supérfluos. A banalidade

6
ARENDT, H. Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
9

do mal revela sua importância ao demonstrar uma preocupação para o conceito, não
mais ontológica, mas ética.

Em síntese, a nova concepção de mal inserida no pensamento de Hannah Arendt através


do conceito de “banalidade do mal”, elaborado justo na obra Eichmann em Jerusalém7,
servirá não apenas no sentido de negar a noção de mal radical, como será também um
ponto de partida para se pensar o fenômeno do mal em outras bases na realidade. O
subtítulo banalidade do mal não se pretendeu a nenhuma teoria filosófica. O conceito se
refere a Eichmann e a sua inabilidade em pensar. Ao invés do monstro, do perverso ou
de um fanático, revelou-se um homem desprovido de qualquer característica peculiar
que o diferenciasse aos outros, o que ela denominou de “vazio de pensamento”.

“Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de
pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa”8.

O que é banal o é não em consequência de ser algo sem importância, mas por sua
ausência de profundidade. Em realidade, no entendimento de Arendt, o pensamento
representaria uma condição necessária, embora não suficiente, para que a faculdade do
juízo pudesse resistir ao mal. Enfim, o grande perigo da banalidade estaria na ocorrência
do “vazio do pensamento” nos agentes pensantes, antes do que no aspecto da sua
“monstruosidade” propriamente dita.

O fato é que esse termo banalidade do mal surge pela primeira vez no relato ocorrido
dentro do tribunal de Jerusalém. Aí, Hannah Arendt menciona o termo e elabora pela
primeira vez o fato da “falta de profundidade evidente” que caracterizava o culpado.
Faltam-lhe convicção ideológica sólida ou motivações específicas, esses fatos
assustaram Hannah Arendt. O acusado não admite ter efetuado um disparo qualquer, por
isso inocente. Sua ação referia-se apenas a cumprimento de ordens sem qualquer
envolvimento ideológico. Em suas palavras:

“ Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem
um não-judeu – nunca matei nenhum ser humano. Nunca dei uma ordem para
matar fosse um judeu fosse um não judeu; simplesmente não fiz isso”, ou,
conforme confirmaria depois: “Acontece [...] que nenhuma vez eu fiz isso” – pois
não deixou nenhuma dúvida que teria matado o próprio pai se houvesse recebido
ordem nesse sentido.”9

Toda suspeição contra o mal radical vem de que todo mal inegável e extremo não pode
ser atribuído nem às convicções ideológicas, nem às motivações especificamente
malignas de seus agentes. Hannah Arendt atribui “a falta de profundidade evidente” ao
agente que veio a materializar a banalidade do mal. Banalidade do mal não chega a se
constituir um conceito, mas se dá a toda sorte de explanação filosófica. Hannah Arendt
7
ARENDT H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal, São Paulo, Companhia das
Letras, 1999.

8
Ibdem, p.62.

9
Ibdem, p.33.
10

apenas concluiu sobre a falta de “profundidade” e a ausência de enraizamento das


razões e das intenções do indivíduo Eichmann.

Dirá Hannah Arendt que sabe o que seja o mal radical, mas sabe também que ele tem a
ver com o fenômeno da superfluidade dos homens enquanto homens”, e assim chega a
demonstrar que há identidade com o pensamento kantiano, pois o mal radical surge
quando o homem deixa de ser considerado como um fim em si mesmo.

Quando convidada a participar como jornalista no caso Eichmann em Jesuralém,


Hannah Arendt procurava encontrar um monstro, mas não foi o que se deu, o que
encontrou foi um homem normal, sem consciência da responsabilidade de seus atos em
guerra, em suma, deu corpo à expressão da banalidade do mal.  Não quis referir-se a
teoria ou doutrina alguma mas a algo factual como o fenômeno dos atos maus
cometidos em proporções gigantescas. Ato que não se encontrará na raiz do agente, uma
especial maldade, patologia ou convicção ideológica. Arendt colocará o seu acento na
extrema superficialidade do criminoso.

Essa perplexidade é o sustento do pensamento arendtiano, da formulação da ideia de


banalidade do mal à de vazio do pensamento. Hannah Arendt irá marcar que uns tais
agentes do holocausto se limitaram a obedecer às ordens, fiados em sua fria eficácia,
apareciam de maneira inquietante, como meros instrumentos “inocentes” dos
acontecimentos impessoais e desumanos. Esse dado da realidade, ali diante de Arendt,
assustou-a, levando-a a pensar que estava diante dela uma forma de mal inegável e
extremo.

“A acusação deixava implícito que ele não só agira conscientemente, coisa que ele
não negava, como também agira por motivos baixos e plenamente consciente da
natureza criminosa de seus feitos. [...] quanto a sua consciência, ele se lembrava
perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo
que lhe ordenavam – embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a
morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado” 10.

A verdade é que a questão filosófica subjacente a essa fórmula da banalidade do mal


não existia, e nem ninguém havia utilizado antes de Hannah Arendt. A mesma chegou a
reelaborar o conceito de banalidade do mal, ressaltando, isto sim, o acento sobre a falta
de profundidade e da ausência de enraizamento das razões e das intenções do indivíduo
Eichmann. Recusando, assim, o caráter “radical” do mal, Hannah Arendt também
recusa a malignidade, coincidindo assim com o mal radical kantiano: um mau do
coração. Embora não sendo radical, o mal pode ser extremo, nos afirma Hannah Arendt.

Apesar de achar presunçoso recorrer à expressão da banalidade do mal, Arendt


sustentará o seu uso e o justificará. Arendt se perguntará se a ausência de um motivo
qualquer pode ser a causa do mal. E a partir daí a filósofa se colocará as questões: “O
que é o pensar?”; e, “O que é o mal?” Ambas questões metafísicas que nem por isso
podem ser anuladas ou acusadas de não ter sentido. Hannah Arendt segue a tese
10
Ibdem, p.36.
11

platônica que em primeiro lugar vem o bem e o mal é apenas ausência desse, uma
negativa. Junto com Platão, Hannah Arendt confirma que somente o bem tem
profundidade e pode ser radical. Falar em banalidade do mal, não é falar em sua
essência, pois do ponto de vista ontológico não é jamais banal. A questão do mal não é
uma questão ontológica, mas uma questão da ética e da política. É fato que não se
apreende uma essência do mal. Prova disto está na própria palavra “cons-ciência”, ou
seja, “saber comigo e por mim  mesmo”11, ou seja, um tipo de conhecimento que é
realizado em todo processo de pensamento.

A fim de ilustrar essa ausência do ato de pensar Arendt recorre às frases*** que
Eichmann se utilizava ao longo do julgamento. E com muita perspicácia este insistiu
não ser culpado mas ter sido “ajudado e instigado”. Argumento não aceito num crime e
criminosos nada raros e incomuns. Nessa complexidade de crime, em vários níveis e
várias espécies, com seus planejadores, os organizadores e os que executam, não há que
se usar os conceitos normais da perpetração de um crime. Esses são os assim chamados
crimes cometidos em massa, em relação ao número de vítimas, mas também ao que diz
respeito aos muitos criminosos. O grau de responsabilidade aumenta quanto mais longe
nos colocamos do homem que maneja o instrumento fatal por si própria.  
    
A verdade é que pós Eichmann, Arendt não retornou a essa problemática da banalidade,
porém sustentou a questão da ausência de pensamento. Em diversas circunstâncias** o
pensamento é elaborado no sentido de estabelecer um antídoto contra o mal. Ou seja,
uma característica básica, a capacidade de julgar, é aquela que mais se vê atada à função
do pensamento. A questão que resta a Hannah Arendt desde o julgamento do nazista foi:
a ausência da capacidade de julgar está ligada à capacidade de pensar?  A capacidade de
discernir o certo do errado, o belo do feio, enfim, a nossa capacidade de julgar***,
estaria na base do mal no homem? Será que a faculdade de examinar, refletir sobre tudo,
independente de qualquer conteúdo, poderia ser de tal ordem que sua ausência
condicionaria o homem a fazer o mal?

Se por um lado, não há recorrência à banalidade em seus trabalhos, o mal radical****


aparece apenas no sentido de negá-lo. Para Hannah Arendt essa rejeição fez só
aumentar. Em dada passagem, Hannah Arendt assume não saber ao certo o que seja mal
radical, mas que este deveria ter a ver com o fenômeno da superfluidade dos homens
enquanto homens. 

Recusando o mal radical, Hannah Arendt pensa estar recusando uma interpretação em
profundidade, pois o mal radical não é nem profundo nem demoníaco. O mal não é um
absoluto, um escondido, nem possui uma essência. A natalidade, a espontaneidade,
marcam o registro do novo na vida pública. E é com essa ideia, de que não a morte, mas
o nascimento, é aguardada pela tradição traz no bojo do pensamento de Hannah Arendt
a esperança. O homem pode começar. Ser homem e ser livre é a mesma coisa. E
podemos acrescentar que criar conceitos novos para entender a novidade totalitária é o
que está a fazer Hannah Arendt com o entretecer o conceito de banalidade do mal. Esses
atos totalitários pulverizaram nossas categorias políticas e nossos critérios de
julgamento moral.

11
In: ARENDT, H. A Dignidade da Política, Rio de Janeiro, Relume Dumará, p.163.
12

Assim, o que espanta não é tanto a novidade do evento totalitário, mas o fato de pôr em
ruína nossas categorias de pensamento e de nossos critérios de julgamento. É necessária
uma forma de pensar que rompa com a tradição. Aliás, Hannah Arendt tem um estudo
chamado Sobre a Violência12, onde aborda essa circunstância do mal em nossa
atualidade, pretendemos abordá-lo neste estudo.

5) Do “vazio de pensamento”, da alienação e outras formas do mal:

Sendo o mal sinônimo de violência, combatê-lo, por meio da ação ética e


política, é diminuí-lo no mundo.

O mal, embora agregado à natureza humana, não pode ser tomado em sentido
absoluto, uma vez que coexiste ao lado do bom. É a tese principal no presente
trabalho. Do ponto em que nos encontramos, faz mais sentido à Hannah Arendt a
versão que define o mal pelo “vazio de pensamento”. O juízo, ou a falta de juízo,
aponta para um déficit no ato de escolhas humanas, uma verdadeira falha na
constituição humana que vai dar no mal. Assim, é no arbítrio, na liberdade, que o
homem pode ser mal, nunca por natureza.

Se perguntando pela essência do fenômeno do “vazio do pensamento”, expressão


que Arendt se utiliza ao referir-se à banalidade do mal, estaremos em dificuldades.
É que, enquanto vazio, estamos diante de um nada, que não pode se definir por si.
O pensar é o oposto ao vazio que o definirá. Esse conceito de vazio aparece ligado
ao contexto da banalidade do mal. Mas o que é, de fato, seu significado?

Hannah Arendt e sua vinculação a Sócrates nos vai dizer que o mal não tem uma
raiz, é falta de bem. O mal consiste em uma ausência, em algo que não é. Não há
essência que o pensamento possa apreender. Há o feio em referência ao belo, há o
nada que é a ausência de bem, e assim vai. Arendt segue essa linha em relação ao
mal, ao nada, ao vazio, à falta de raiz.

Consultando um pequeno trabalho de Nádia Souki13 encontramos um


questionamento bastante pertinente acerca dessa questão do vazio de pensamento.
Perguntando sobre as implicações éticas e políticas dessa expressão, podemos
refletir sobre um aspecto bastante importante que é a da perda do senso comum.

12
ARENDT H. Sobre a violência, Rio de Janeiro, 2001.

13
SOUKI, Nádia, Hannah Arendt e a banalidade do mal, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1998.
13

Essa reflexão é bastante interessante pois ultrapassa a questão do mal em si e traça


um outro paralelo para nossas reflexões.

Pensando no senso comum, um domínio que é de todos, a dominação totalitária


passa pela destruição desse sentido da realidade, dessa faculdade que se apoia na
presença do outro. O totalitarismo escora-se em uma massa atomizada e amorfa,
contra o senso comum. Este se caracteriza como o sentido do real, condicionando o
indivíduo a se relacionar com a realidade do mundo em que vive.

Ao contrário de tudo isso vamos dar no homem isolado na massa, privado do


sentido real e por causa desse isolamento não tem mais a medida para julgar um
discurso. O objetivo do movimento totalitário é eliminar a capacidade de distinguir a
verdade da falsidade, abolir a capacidade de sentir em comum, de pensar por si
mesmo. Somente o senso comum pode resistir à eliminação do mundo real.

Voltando um pouquinho atrás, antes de Eichmann em Jerusalém, por volta de 1958,


Hannah Arendt publicava uma nova obra, A Condição Humana14 . E se aí não repete
a problemática do mal, por outro lado, não foge às circunstâncias dos fatos. O
prólogo da Condição Humana abre com uma situação limite vivida por todos nós
aqui da terra. Após tantas conquistas humanas e suas técnicas, o homem chega ao
ponto de lançar ao espaço um objeto confeccionado com suas próprias mãos, um
satélite, um fato que assusta.

Que desejo é este de apartar-se da terra, geratriz e casa original? Arriscamos dizer
que, o vazio de pensamento desenrolado uma vez por Arendt, aqui, tem a ver com
esse verdadeiro fenômeno da alienação desenhada nesse prólogo da Condição
Humana, na figura do homem desterrado e lunático.

É curioso lembrar de uma fábula, uma obra de Dostoiévsky, Notas do subterrâneo15


, nesse momento em que trataremos da alienação e do vazio de pensamento. Destaco
uma passagem*** em que, doente do fígado, espicaça o homem medíocre da ação,
autorreferindo-se como o verdadeiro homem de pensamento. Ele o inteligente; o
homem médio um idiota. Num canto tal qual bicho, abarrotado de livros, se diz um
homem sem caráter:

“ Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do
fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que
me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina.
Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a
medicina. ( Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou)” 16.

14
ARENDT, H. A condição humana, Rio de Janeiro, Forense Universitária 1995.

15
DOSTOIÉVSKI, F. Notas do subterrâneo, Porto Alegre, L&PM, 2010.

16
Ibdem, p.11.
14

Pois bem, um tal homem se enterra no subsolo com seus livros e pequenas
convicções apenas porque se crê um genuíno homem de pensamento, enquanto
massacra com seu rancor o homem menor da ação. Ele abandona o seu vínculo com
a terra mas não o substitui por nenhum elo de ligação com a vida – artificial que
seja. Um tal homem é motivo de atenção por nós, do mesmo modo que o foi
Eichmann para Hannah Arendt. É o homem alienado por excelência*****.

Esse homem de Dostoiévsky é um homem alienado, sem dúvida, mas não é de todo
despropositada sua crítica que faz ao mundo de ação, com suas futilidades e
superfluidades. O fato é que nele, o homem do subterrâneo, a alienação assume o
aspecto de “isolamento do homem”; onde o mundo em que sempre viveu perde o
sentido, novos valores não são propostos e esta mente “cheia” de ideias irrelevantes
para o mundo, equivale à mente vazia do homem de ação, homem este que ao
menos cria mundo. E é este homem último, o da ação, que será valorizado pela
Modernidade, a partir do evento do telescópio, que teve o feito de transmitir todos
os méritos da verdade para as mãos dos homens. Não mais teoria, não mais
contemplação.

Para além de ser uma questão simplesmente subjetiva, o caso que aqui propomos do
“homem do subterrâneo”, a alienação cria um mundo todo próprio, onde a ausência
real de valores (valores que remetam ao engrandecimento do mundo e da própria
função da vida humana) resultará numa bizarra realidade de homens de mentes
esvaziadas. Nesta realidade vazia, o homem passará sua vida na espera entre o
nascer e o morrer, sem criar mundo para si e sua posteridade; sem desenvolver uma
individualidade que o distinga ou mesmo de estar a afirmar a sua condição humana
face ao universo.

Então, estaremos a tratar do tema da alienação, tal qual apresentada por Hannah
Arendt em A Condição Humana (1958). Através de sua crítica sob o fundo político
do mundo, considerou aí, nesta obra, aspectos de uma ontologia que ligava
irremediavelmente o homem à sua determinação de um ser da ação, da assim
chamada Vita Activa ou “Vida Ativa”. Desde a Antiguidade grega, passando pela
Idade Média, até meados do Mundo Moderno, a vida contemplativa, do ócio e da
meditação, sempre tiveram prevalência sobre o mundo das ações pragmáticas, da
chamada práxis . E se Marx tentou tematizar esta contradição viva entre teoria e
práxis, o fez desde uma perspectiva ideológica; bem diversa da análise proposta por
Arendt. A filósofa chega a ressaltar este empenho de Marx em tentar inverter a
ordem do mundo que prevalece desde o começo da Metafísica. Mas é ela mesma
descrente desses processos de inversão; o que cabe é fazer uma nova análise dos
dois aspectos e estar a redimensionar o papel de cada um na nova realidade em que
vivemos. Então, cabe analisar os aspectos desse novo ser do homem, abordando
suas faculdades, distinções e compreensões***.
15

Hannah Arendt faz a marca de três eventos da modernidade: a descoberta da


América, e com isto o processo de encolhimento do planeta com a diminuição das
distâncias realizada pelas navegações; a Reforma e o histórico de expropriação das
propriedades, a princípio eclesiásticas e mais tarde também privadas; e, a invenção
do telescópio, que lançou a dúvida quanto à capacidade dos sentidos de perceberem
a realidade. De algum modo, cada um destes eventos tem alguma implicação na
insinuação da alienação no mundo; mas, é sobretudo na realidade do telescópio e a
mudança de paradigmas que ele nos trouxe que nos debruçaremos mais detidamente.

Em referência aos tais três eventos apontados por Arendt, com especial atenção, o
que temos a dizer em relação ao primeiro deles é que, com a diminuição das
distâncias realizadas pelas navegações, tudo isto, resulta no destacamento do homem
do seu mundo. Na medida em que as distâncias se encurtam, as terras são
demarcadas, mapeadas, tanto a distância deixa de existir, de se desconstituir como
um empecilho, quanto o mapeamento acaba o horror do desconhecido, enfim , o
homem apropriando-se do mundo, torna-o algo de manipulável, assim se dá o
destacamento. Mal o homem consegue este enorme feito de se apropriar de seu
mundo, de conhecer seus limites e percorrer sem medo suas distâncias, mais
inconformado com esta “comodidade”, já se lança da Modernidade rumo ao
universo.

As navegações serão substituídas pelas incursões pelo espaço, e logo haverá quem
declare que estamos, segundo a citação do obelisco fúnebre do cientista russo: “A
Humanidade não permanecerá para sempre presa à Terra”****. Diante disto,
verdadeiramente, Arendt se espanta, afinal, este protesto está voltado contra a
própria condição do homem enquanto ser no mundo com todos os seus. E também,
para o desenvolvimento em seu seio de ideologias do tipo totalitárias, que
encontram sempre solo fértil em mentes vazias, alienadas de quaisquer valores mais
sólidos para si e para uma realidade maior da qual não participa.

O segundo evento, a Reforma, e com ela o processo de expropriação de terras, da


Igreja e também depois, indiscriminadamente dos camponeses, vai criando para
estes homens espoliados a circunstância de se constituírem em população flutuante,
subsiste agravado até hoje. Se àquela época, grande parte desta população foi
absorvida como mão de obra às vezes de reserva para as fábricas, hoje, essa dita
população sem lugar no mundo forma a grande massa de desempregados, aqueles
que não foram assimilados e então rejeitados pelo processo capitalista. São os
sobrantes na vida. Esse é um problema que se torna a cada dia mais grave e crônico:
o pior resíduo do capitalismo; a desumanização do homem. Hannah Arendt temia
por este tipo de população flutuante no mundo, sobretudo no que isto representasse
de ameaça ao senso comum, ou, à alienação ao mundo.
16

E, por fim, o terceiro evento enunciado com especial atenção foi a invenção do
telescópio, o qual será examinado no sentido de apurar o porquê de ter significado
tanto em termos de mudança de paradigmas no mundo. Ao seu tempo, o alcance da
invenção do telescópio foi bastante limitado, restrito a uma classe de estudiosos,
cientistas, uma elite enfim. Por tudo isso, naquele momento de sua apresentação a
repercussão foi tímida, e só depois, com seus desdobramentos, compreendendo-os,
chegamos a entender o real alcance deste instrumento. Hannah Arendt nos faz uma
apresentação específica deste evento, revelando-nos sua relação direta no âmbito da
filosofia e sua dúvida cartesiana. Por outro lado, de que maneira atravessar as
aparências e permitir, de algum modo, que o Ser seja, permitindo que se tenha
resguardado algo na realidade com algum sentido de verdade?

Além de tudo isso, de colocar toda a realidade e os próprios sentidos e suas


capacidades de juízo do homem em suspensão com sua dúvida, Descartes parte para
uma nova abertura em sua investigação filosófica. E seu diferencial foi precisamente
ter feito a opção privilegiada pela introspecção. Em última instância, o “Cogito, ergo
sum”, ou, o “Penso, logo existo”, traz embutido em si, nessa certeza que deposita no
Ego pensante, a confiança de que somente os produtos situados aí neste lugar da
consciência, da mente, é que terão chances de gestarem verdades certas, claras e
distintas. É o caso da matemática, o paradigma cartesiano por excelência. A este
interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo é o que
denominamos de introspecção.

As novas descobertas representaram um golpe contra a confiança humana no


mundo; a leitura de um instrumento significou a derrota da mente e seus sentidos.
Ser e aparência separados levam ao seguinte questionamento: como chegar ao Ser se
se duvida dos sentidos? Em acordo dos mecanismos da razão utilizados até então?

Segundo Hannah Arendt, a consequência disto tudo é a derrota do chamado “senso


comum”, mediante o qual os homens, seus sentidos e suas diferenças se ajustam a
um mundo comum a todos os homens, em prol de certezas produzidas apenas pela
estrutura da mente. Assim, nessa realidade, todas as relações são reduzidas a outras,
lógicas, entre símbolos criados pelo homem através de um sistema de equações
matemáticas sofisticadas a tal ponto que sequer se presta à sua conversão ao
discurso comum da linguagem humana. Ou seja, acredita-se desde então
precisamente em verdades expressas numa linguagem hermética que sequer se pode
falar a respeito, que dirá discuti-la.

Este tipo de relação substitui as relações comuns dos homens e seus sentidos. O
homem vai perdendo mais e mais o contato com seu próprio mundo; isola-se na
introspecção; e, permite que um mundo dito público, eminentemente político vá
entrando em colapso na realidade. Com este fato notório chegamos ao ponto de
compreender essa dificuldade da perda da dimensão pública no mundo pelos
17

homens. Com esta decadência da esfera pública, o homem foi perdendo sua
capacidade de sair da obscuridade de sua vida na privacidade para as luzes de uma
outra visível. Assim, perde em primeiro lugar a possibilidade de introduzir atos e
ideias na esfera dita pública e compartilhada através da cidadania.

Certamente, a alienação está presente em diversos setores da realidade e da vida; e


apresentará quantas especificidades em sua conceitualização quantas forem as suas
formas de manifestações na realidade. Seja do ponto de vista da mente ou da massa
alienada no mundo; seja na concepção de uma sociedade de consumidores; seja no
“vazio de pensamento”; ou mesmo o ensimesmado doentio do homem acusado por
Marx, o “homem isolado” - são todos doentes, passíveis de tornar-se receptáculo de
qualquer ideologia ruim. É mesmo como o “homem do subterrâneo” mencionado
acima, uma ficção, mas bem pode se tornar realidade este homem que se recolhe ao
seu subterrâneo para escarnecer do resto da realidade, ou mesmo por não ter nada o
que fazer.

Este tipo de relação substitui as relações comuns dos homens e seus sentidos. Com
este fato notório da alienação pretendemos pôr luzes nesses tipos de homens tais
quais o Eichmann, o homem da massa, o do “vazio de pensamento” e o alienado***.
Seguiremos esclarecendo este ponto desta perda do homem em sua humanidade,
pois acreditamos que essa é uma das faces mais perigosas do mal.

Para Arendt, a questão do estabelecimento necessário da esfera pública pelos


homens não significava o retorno a uma nostalgia em relação à Antiguidade, a dizer,
à polis grega, como alguns maldosamente vêm afirmando. Ao contrário, essa era
uma preocupação dela no seu presente mais emergencial. Esse dado ligava-se ao
pesadelo da realidade que foi o Nazi-fascismo, e do que isto ainda pudesse
representar de possibilidade de insurgência do terror instituído no mundo. Sendo
assim, retornando ao evento da alienação, o que se pode dizer neste caso é que, se
existiu e ganhou corporeidade o Nazismo, por exemplo, foi porque uma massa
flutuante de pessoas de mentes esvaziadas se tornaram próprias à recepção do
ideário absurdo desta forma extrema de totalitarismo, que estabelece a exterminação
de seres humanos como política essencial de conduta no mundo. O inferno aqui na
Terra.

O que almejará, ao final, este homem que já tudo conquistou e agora deseja deixar
tudo para trás, inclusive o planeta terra? Não há resposta para uma tal questão.
18

6) Da violência e outras formas do mal

Sobre a Violência (1969) é a obra de Hannah Arendt que trata do fenômeno da violência
e do poder (power), traçando distinções importantes entre esses dois termos, além de
outros como a força (force), o vigor (strengh) e a autoridade. O texto não trata do mal
por si, mas está claro que um ato violento não ocorre sem a incursão do mal, por isso
achamos por bem explorar um pouco mais a realidade da violência naquilo que nos
couber aqui.

A existência de cada um dos termos, poder, vigor, força, autoridade e violência, aponta
para uma distinção específica para cada um deles. Por outro lado, na medida em que os
encontramos misturados e próximos um do outro, deduzimos que algo em comum os
une, como por exemplo a questão da obediência – quem domina quem. A violência tem
sido ao longo dos tempos reduzida à relação de mando-obediência, a tal ponto que não
mereceu a atenção dos teóricos que a entendiam como “a mais flagrante manifestação
do poder” (Sobre a Violência, p.31).

Mas se se quiser melhor compreender essa relação de mando-obediência que perpassa


os fatos do poder e da violência, cabe a nós examinar o que esses termos manifestavam
em sua realidade ainda num passado remoto. O estudo fenomenológico dos termos nos
permite retirar tal qual uma cebola, as cascas do óbvio e ir ter com sentidos nucleares
que estes assumiam num momento anterior. Veremos, então, a situação de
subordinação nos meios políticos na antiga Grécia, bem como na “civitas” romana:

“Quando a cidade-Estado ateniense denominou sua Constituição uma isonomia, ou


quando os romanos falaram de uma “civitas” como a sua forma de governo, tinham
em mente um conceito de poder e de lei cuja essência não se assentava na relação
de mando-obediência, e que não identificava poder e domínio ou lei e mando” 17.

Com isso, entende-se que na Antiguidade grega, a relação de mando-obediência se dava


exclusivamente na esfera do particular. Os domínios de seu lar, porém, não eram
apropriados para a sua realização que urgia por um espaço público, ou seja, se a relação
de subordinação a que se via compelido fosse suficiente, não teria sido urgente a criação
do espaço da polis. Ou seja, se uma vez o poder foi exercido sem a incursão do mando é
porque, de algum modo, é possível tentar refazer este caminho. Um exemplo de
insurgência neste sentido nós encontramos nas revoluções do século XVIII, quando os
revoltosos se voltaram para a antiguidade. Se falavam em obediência, esta se realizava
na obediência da lei, para a qual os cidadãos haveriam dado o seu consentimento.

17
ARENDT, H. Sobre a violência, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994, p.34.
19

Outra questão relevada por Hannah Arendt é a da tese organicista, a que identifica vida
e violência. Uma interpretação daquilo que ocorreu no horrendo totalitarismo. Levando-
se em consideração que o poder tem um instinto de crescer que é próprio dele, é muito
recorrente sustentar-se teorias que suportem a violência como pulsão de vida, o que
redundará em alguma forma de violência. A esse respeito, Arendt nos dirá que
“acreditar na força estimulante da vida é pelo menos tão velho quanto Nietzsche”
( Sobre a violência).

A verdade é que há, de fato, certa semelhança entre vigor e poder, no sentido da
presença em ambos de uma certa potência. Mas, por tratar-se de “poder”, e de justificar-
se por meio da criatividade da vida, cabe voltar a Nietzsche sem observações
preconceituosas.*****

A construção dos cadafalsos nos séculos da monarquia e dos campos de extermínio, as


câmaras de gás do Nazismo, foram erguidos não como punição moral, nos dirá Arendt,
mas como forma de punição biológica para a fraqueza. A exaltação da vida na forma
organicista é um conceito repleto de violência, e é esta ideia que sustenta o poder e pode
perpetuar estas duas formas de racismo: o anti-semitismo e o da cor da pele.

Num outro sentido, partindo-se das distinções propostas por Arendt, a situação entre
violência e poder tem um interesse especial uma vez que historicamente têm sido
confundidos de diversas formas, inclusive no âmbito teórico. Por exemplo, na proposta
da dialética de Engels e Marx, a superação proposta, dos contrários, no caso da
violência pelo poder, não se realiza. Segundo Arendt, não há forma de superação entre
os termos, mas a anulação do poder pela violência.

De outro modo, Arendt vê com bastante preocupação a necessidade de uns em reduzir o


bem ao mal, numa relação dialética: que o mal não é mais do que um modus privativo
do bem, de que o bem pode advir do mal; de que, em síntese, o mal é apenas a
manifestação temporária de um bem ainda oculto. Hannah Arendt não compactua de
uma tal dialética entre bem e mal, e conclui que não pretende equacionar a violência ao
mal, apenas deseja enfatizar que violência não pode ser derivada de seu oposto, o poder.

Tendo sido tomada pelas consequências espantosas do grande mal de seu século, o
totalitarismo, Arendt se esforça também para compreender fenômenos como a
insurgência estudantil, o racismo da cor da pele e do semitismo, as guerras de guerrilha
dentre as quais a do Vietnã, os movimentos de desobediência civil, e assim vai. Todos
momentos para refletirmos sobre o fenômeno da violência. Aqui, vimos tratando apenas
da questão conceitual dos opostos do poder e da violência.

Do ponto de vista político, com a perda do poder será uma tentação substituí-lo pela
violência. Acontece que, não mais ancorada e delimitada pelo poder, a violência deixa
de ser um meio para tornar-se um fim em si mesma, sabendo-se que o fim será a
destruição de todo poder.
20

Devemos ressaltar que a violência não é essência de nenhum poder. A autoridade que
reveste um dado poder, torna-o legítimo. Arendt bem nos dirá:

“ O poder não precisa de justificação, sendo inerente à própria existência das


comunidades políticas; o que ele realmente precisa é de legitimidade” 18.

Se uma distinção importante há entre violência e poder, é aquela em que a violência é


apresentada como a força instrumentalizada. Por trás destes instrumentos pode estar o
cano de uma pistola, ou, as sofisticadíssimas câmeras de gás.

Para fins de esclarecimento, temos a presença da técnica como subsídio para o


implemento da força na forma do poder. Assim, compreenderemos que entre poder e
violência há uma distinção básica:

“Uma das mais óbvias distinções entre violência e poder, é a de que o poder
sempre depende de números (do povo!), enquanto a violência, até certo ponto,
pode operar sem eles, porque assenta em implementos” 19.

7) Conclusão:

A questão do mal para Arendt nos remeterá, antes de tudo, para a gênese dos horrores
perpetrados pelo barbarismo do Nazismo na forma dos genocídios. Como já vimos,
Arendt enfrentará tais horrores com uma dupla elaboração teórica: o “mal radical”, e, a
“banalidade do mal”.

Contrasta com Kant que Arendt tenha focalizado um só indivíduo e não o fenômeno em
si do totalitarismo e consequentemente seu sucedâneo, o genocídio; no entanto, mesmo
com essa fissura na razão prática de Kant, muito há que se dialogar nessa dimensão.
Parece que Arendt passa a acreditar que um indivíduo possa escapar a essa sentença de
se ser mal por natureza, e de que, simplesmente se desvirtuou “banalmente” do
caminho. Assim resta a questão: Como pode o mal ter sido desencadeado de maneira
tão banal?

Neste mundo, salta aos olhos o risco do homem face à realidade e da técnica.
Linguagens simbólicas cada vez mais graves e incompreensíveis, tal qual a matemática
quântica, impedem que o discurso verdadeiro, da política, por exemplo, acompanhe o
fazer das máquinas. Verdadeiros cérebros autônomos, onde o homo faber toma o lugar

18
Ibdem, p.

19
ARENDT, H. Sobre a violência, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.
21

do homo ratio, do homem da razão. Afinal a máquina pratica aquilo que a linguagem já
não pode mais dizer.

Assim, se de um lado o homem encolhe as distâncias e deseja apartar-se da Terra; de


outro, pretende se exilar do mundo na própria consciência através da introspecção –
duas faces do mesmo fenômeno da alienação.

Mas Hannah Arendt é aquela que faz a apologia do mundo plural, pois só no discurso a
face pública da humanidade se apresenta no mundo e instaura a solidariedade através do
exercício efetivo da cidadania na política plural. Somente homens plurais, com algum
grau de auto compreensão e consciência podem ser lançados na ação, para além de toda
alienação. Assim, para esse mundo o homem foi feito sem sobreaviso, mas
recepcionado por toda uma tradição que o acolhe e lhe concede um mundo. É a partir
dessa crença que Arendt se prepara para aparecer e fazer parte do mundo.

A NATALIDADE x O NOVO

6) Bibliografia básica:

ARENDT, Hannah. A Dignidade da política, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1993.

________________ A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária 1995.

________________ The Human Condition, Chicago, University of Chicago Press,1998.

_________________ A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, Rio de Janeiro,


Relume Dumará, 2000.

__________________ Eichman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal,


São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

__________________ Origens do Totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras,


1989.
22

___________________ Sobre a violência, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer, Rio de Janeiro, Imago editora, 1996.

________________ O Mal-Estar na Civilização.Rio de Janeiro Imago ED, 1997.

DUARTE, André.(org.) A banalização da violência: a atualidade do pensamento de


Hannah Arendt. Rio de Janeiro, Relume Dumerá,2004.

JARDIM, Eduardo. Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início, Rio de


Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.

SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a Banalidade do Mal, Belo Horizonte, Editora


UFMG, 1998.

YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Por Amor ao Mundo, Rio de Janeiro, Relume Dumará,


1997.

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