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CAPÍTULO 4: “ Os pobres de Deus: Uma releitura nietzschiana”.

É tradição bíblica designar pobres ou desamparados, preferencialmente, as


“viúvas”, os “órfãos” e os “estrangeiros”. No Deuteronômio, um livro de leis da Torá,
aparecem prescrições exatas das distribuições dos produtos agrícolas. Assim, a análise
da tríade social formada pela viúva, o órfão e o estrangeiro procura realçar os aspectos
econômico-sociais, atrelados ao modo de produção agro-pastoril, predominante nas
sociedades antigas. Esses são um grupo de leis ou normas bíblicas que dão conta de um
arcabouço jurídico que procura soluções e garantias aos grupos sociais em processo de
pauperismo ou morte iminente. São compreendidos como um grupo sociológico com
papéis bem definidos nas diferentes épocas e sociedades bíblicas. Em todo o conjunto
do livro Deuteronômio, o primado á dado a Moisés; o suporte legal adquire o desejo de
garantir o projeto do Criador. Encontra-se em qualquer período da existência de Israel
uma clara defesa dos pobres em diferentes conjuntos jurídicos. A proteção, por parte da
administração da justiça, consiste em que a comunidade religiosa de Israel defenda e
garanta a prática dos direitos desses grupos. Os destaques dados às viúvas, aos órfãos e
aos estrangeiros datam do período exílico.

“Maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva.


E todo o povo dirá: Amém!” (Dt, 27:19). Qualquer pessoa que se recusasse a ajudar a
um órfão, viúva ou estrangeiro, cometia pecado contra o Senhor. Viúvas, órfãos e
estrangeiros eram as classes mais vulneráveis em Israel e como tais deveriam receber
atenção especial. Cuidar deles era sinônimo de cuidado ao próprio Deus. Os dois
pecados mais graves de Israel e das nações ao redor dela era a opressão ao indefeso e
pobre, e a idolatria. “Pai de meninos órfãos de pai e juiz de viúvas. É Deus na sua santa
habitação” ( Sl, 68:5). Formavam essas três figuras um grupo citado não mais que seis
vezes ao longo do livro do Deuteronômio, conjunto de leis bem especificadas no corpo
jurídico do Antigo Testamento, na defesa dos grupos violados em seus direitos e justiça.

Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é sinônimo de agradar


YHVH. As viúvas eram muitas em Israel, dado o fato de que seus maridos deveriam
necessariamente de ser enterrados em sua pátria, restando abandonadas e muitas vezes
em estado precário. Os órfãos, por óbvio, são os abandonados por excelência, e por isso
devem ser cuidados. Os estrangeiros trazem à memória dos israelitas o tempo em que
estes se mantiveram cativos no Egito, e eles não deveriam dar ao estrangeiro o mesmo
tratamento que recebera nessas terras. “E não deves oprimir o residente forasteiro, visto
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que vós mesmos conhecestes a alma do residente forasteiro, porque vos tornastes
forasteiros na terra do Egito” ( Ex, 23:9).

No Novo Testamento, especificamente no capítulo de “As bem


Aventuranças”, em Mateus, 5,3; aos “pobres”, ptchói, em grego, ocorrência em todo o
Antigo Testamento, correspondem ainda os humildes, tapenói: “ Digo-vos que este
desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será
humilhado; mas o que se humilha será exaltado” ( Lc 18, 14); e ainda, Lc 1, 48-52;
14,11; Mt 23, 12; 18,4; os “últimos” opostos aos “primeiros” (Mc 9,35); os “pequenos”
opostos aos “grandes’ (Lc 9,48; Mt, 19,30; 20,26; Lc 17,10). Na exegese da Bíblia de
Jeruralém, em sua nota “g” às “Bem Aventuranças”, Cristo retoma a palavra “pobre”
com o matiz moral. Assim, “A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância
espiritual necessária para entrar no Reino, o mistério revelado aos “pequeninos”, népoi
(Lc 12,32)”. O que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva, especialmente para os
seus discípulos: “Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós outras bolsas que
não desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega ladrão, nem a traça
consome, porque, onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (Lc, 12,
33-34)”. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão disponíveis para
o Reino dos Céus, este o tema das bem aventuranças.

“Aquele Jesus de Nazaré, como evangelho incarnado do amor, este


“Salvador”, que trazia aos pobres, aos enfermos, e aos pecadores a bem-
aventurança e a vitória, não era ele precisamente a sedução na sua forma mais
irresistível e sinistra, a sedução que, por um rodeio, havia de conduzir os homens
a adotar o ideal de renovação dos valores judaicos?” (NIETZSCHE, GM, § VIII,
p.40), (grifo nosso).

“Pobres”, para Nietzsche, tem um caráter essencialmente moral e não


sociológico; assim, pobres são: os aleijados, diminuídos, maltratados, envenenados
(GM, 1ª dissertação, XI, p.46); os oprimidos, os rebaixados, os servos (GM, 1ª diss.,
XIII, p.49). Pobres, aqui, não têm qualquer sentido elevado, apenas é o primeiro
designativo de uma linha de seres que devem ser desprezados e humilhados, porque
ressentidos e vingativos face aos verdadeiramente ricos em qualidade e nobres de
espírito. Em A Genealogia da Moral, em sua 1ª dissertação, Nietzsche faz referência aos
pobres e humilhados como aqueles flagelados, paralíticos e miseráveis que seguem
Jesus pelas ruas de Jerusalém; na verdade, refere-se a uma corja que faz número neste
rebanho que dá a sentença final aos chamados nobres de espírito, que seriam preteridos
nesta hierarquia dos preferidos de Deus.
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Na linhagem de estudiosos de Nietzsche, a designação de “pobres” em sua


filosofia, dá a ideia de um integrante do rebanho deletério, pesado demais para ser
carregado por seus pastores, estes aqueles nobres, uma metáfora dos homens
aristocráticos. O rebanho em Nietzsche traz em si uma carga enorme de significados
para o homem inferior, aquele que assim o seja, simplesmente porque a humanidade é
“naturalmente” dividida em duas partes: aquela superior, a dos senhores; e, a outra
subordinada, a dos escravos. Não que Nietzsche deseje por uma vontade perversa que
alguns homens sejam subjugados por outros de melhor sorte, mas, por uma questão
clara de vontade de potência, onde as forças em uns prevalecem sobre as dos outros, e,
no combate infinito entre elas, tanto entre seres inorgânicos quanto orgânicos, nos seres
morais como nas instituições, estabelece-se um verdadeiro combate pelo domínio do
mais forte. E essa é uma luta instável e constante, não havendo qualquer possibilidade
de repouso, o mais forte assimila o mais fraco, e no prosseguimento do combate, neste
embate entre as forças, é que se dá o estímulo para se continuar nesse processo ad
infinitum.

Importa notar que a categoria de “pobres”, enquanto classe social, enquanto


despossuídos e desvalidos, só ocorrerá a Nietzsche como uma categoria daqueles que se
rebaixaram na luta pela potência mais elevada; a ideia de compassividade pelos
“menores” é cristã e fraca, decadente, faz mal ao homem. Na verdade, no entendimento
de Nietzsche, a compaixão é um afeto que enfraquece, quando se se compadece da dor
alheia, retira-se de si uma quantidade de força, e, de todo modo, essa piedade não chega
a ser legítima, uma vez que, deprimindo-se pela dor do outro, na verdade está-se sendo
afetado pelo sentimento próprio de empatia pelo sofrimento alheio, em suma, o que
importa é o que a si mesmo toca e não propriamente o outro. Diga-se que há uma
possibilidade única de uma compaixão autêntica por parte do homem, apenas quando,
na sua posição de nobre, de senhor, superabundante de forças, o homem prodigaliza
esse poder, sem por isso ter de tirar nada de si, e sem nem mesmo apiedar-se do outro.

Ademais, na concepção de Nietzsche, o sofrimento é o lugar genuíno da


superação, e através da compaixão, o compassivo estaria retirando do sofredor o direito
de autossuperar-se, de tornar-se mais forte através de sua própria dor e autotransformar-
se. No entanto, uma acusação que se há de levar em consideração em relação a esse
pathos da distância que separa os homens, que não tem sua origem na “natureza”
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tomada como fato biológico, é o sentido de aristocratismo que o acompanha, e que


Nietzsche exacerbará em suas considerações:

“ O meu sentimento distingue as naturezas humanas superiores e inferiores;


aquilo que ele distingue e a maneira como distingue, é isto que experimentarei
um dia tão duramente e tão diferentemente quanto possível” ( Fragmentos
Póstumos, 12 [41] 451].

Assim, do ponto de vista da filosofia nietzschiana, esse fosso que se cavou


entre os homens na História da Humanidade, é menos um sucedâneo das diversidades
econômicas, sociais e políticas do que uma consequência do pathos da distância instado
pela distância observável ao longo da história da formação das morais. Nietzsche
apresenta uma hipótese de que, a partir de sua observação genealógica de diversos tipos
de morais, tenha chegado à conclusão de que a humanidade teria se dividido em duas
classes: a da moral dos senhores e a da moral dos escravos. Os primeiros distinguir-se-
iam por sua natureza nobre, viril, guerreira, seriam os belos, os adorados de Deus. Os
segundos seriam aqueles que conformam uma moral de rebanho, de ressentidos, seriam
os frecos e feios, enfim, todos aqueles que se contrapõem à nobreza dos senhores,
negando os bons valores destes e se se autodeterminando reativamente. A princípio essa
distinção teria um caráter de classe, para depois assumir um sentido de ser.

Os escravos seriam aqueles que, em primeiro lugar colocam-se negando-se


em relação aos valores afirmativos da moral dos senhores, e não positivamente como o
fazem os senhores, que antes de tudo se autodeterminam admirando-se, para somente
após lançar um olhar de menosprezo a seu opositor. Nem mesmo na condição de um
rival seu pode o escravo ser considerado, pois, para com ele duelar deve o inimigo ser
necessariamente um igual. E não destruí-lo de uma vez, mas abandoná-lo para a ocasião
de um duelo posterior.

Nietzsche derivou essa teria das duas morais a partir da concepção que
formou de sua genealogia da moral, com a pesquisa etimológica da palavra “bom” em
diversas culturas. Em princípio é bom quem se autodesigna dessa maneira, colocando-se
no lugar de “nomear” as coisas, ou seja, dotando-as e um valor. O bom é o nobre, é
aquele que determina os valores, e que tem capacidade da criação. Ele é o criador. O seu
oposto é apenas o homem vulgar, no sentido de simples, que não tem importância
alguma, por isso será o “ruim” em oposição ao “bom”. Há, portanto, uma distinção entre
o bom dos senhores e o bom dos escravos. O bom dos senhores é ativo, e vem em
primeiro lugar, este se autodetermina o bom por suas próprias qualidades intrínsecas; já
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o bom dos escravos se coloca por oposição aos valores do bom dos senhores,
delimitando-os por isso como os malvados, os perversos, em suma, os “maus”, e só por
derivação, se autocolocará como o sofredor, o coitado, o desgraçado, o humilde, e por
isso dotado de um caráter “bom”. O bom dos senhores é ativo, e vem em primeiro lugar;
o bom dos escravos põem-se por oposição, é reativo, mesmo quando pensa agir está
apenas reagindo. E é essa distinção entre pares de opostos: “bom”/”ruim”; e,
“bom”/”mau” que determinará a diferença que redundará na formação no seio da
humanidade de duas morais também opostas.

Mas, os escravos também desejam ser senhores, há aí uma vontade de


potência fraca atuando, o que Nietzsche denominou de transvaloração dos escravos na
moral. Este é um ponto nevrálgico para Nietzsche, que não se conforma com essa
transmudação em os escravos tomarem o lugar do senhor na moral. De início, esse foi
um fenômeno da esfera das aristocracias, precisamente no âmbito dos nobres guerreiros
e dos sacerdotes. Fortes, guerreiros, viris e lançados na ação, sobretudo, denotavam uma
vontade forte na determinação de suas vidas, proporcionando um aumento das forças
vitais, perfazendo uma vontade de potência superior, afirmativa da vida. Enquanto que
entre os sacerdotes, o que primava eram os ideais ascéticos, de penitências, de inércia
contemplativa, de falta de exercícios, entre o pecado e a culpa, em suma, de uma
vontade de potência redutora da vida.

Nietzsche realiza a eleição desses pares de opostos de morais a partir de um


paradigma histórico, a princípio ancorando-se no modelo grego antigo de nobreza, e a
seguir no exemplo da nobreza italiana renascentista. Por sua vez, os escravos também
não são tomados apenas num sentido simbólico, os tchandala da casta indiana vem
reafirmar o ponto de vista nietzschiano de que há um lugar próprio para os enjeitados,
os rebaixados. A escravidão, além de desejável, seria necessária ao desenvolvimento da
economia, tendo o escravo como o motor para a civilização superior, onde os mais
fracos suportariam os trabalhos mais pesados para que os mais sensíveis pudessem
desfrutar de seu ócio criativo. Ajudando, assim, a criar homens superiores, bem no
sentido do Übermanch descrito em Assim falava Zaratustra, onde o homem é apenas
uma ponte para o advento do além-do-homem. Em relação ao Übermanch, o homem
seria tão somente um macaco, no sentido macaco se refira ao próprio homem.

“Toda elevação do tipo “homem” foi, até agora, obra de uma


sociedade aristocrática, e assim sempre será; em outras palavras, esta
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elevação foi obra de uma sociedade hierárquica que acredita numa


longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um homem e
outro e que precisa de algum tipo de escravidão” ( NIETZSCHE,
Além de Bem e de Mal, 257).

Desse modo, podemos compreender que a escravidão em Nietzsche bem se


coaduna com a mesma no sentido aristotélico de uma posição necessária para a harmonia
na polis. Há também um sentido de necessidade da escravidão na reconstrução de uma
civilização Alemanha mais alta. Os estudiosos de Nietzsche nos incentivaram a ler os
comentários pró escravidão num sentido metafórico. Mas o fato é que não há nenhuma
ingenuidade histórica da parte de Nietzsche no que toca aos problemas dos conflitos
abolicionistas ocorrendo em sua época do outro lado do Atlântico. Em suas anotações em
seus cadernos há uma passagem em que marca a posição de Harriet Beecker Stowe
((1852), autora do livro de cunho abolicionista A Cabana do pai Tomás, em que critica
negativamente suas posições, acusando-a de mais uma seduzida pelo cristianismo de
Rousseau, na posição de sofredora, interessada na causa dos pobres e dos trabalhadores.
E, ainda, há uma revoltante passagem na publicação The Dawn of day em que Nietzsche
estabelece que negros são mais resistentes à dor e portanto melhores escravos.

Nietzsche acreditava que novas formas de sofrimento e exploração eram


necessárias para tornar a civilização europeia novamente grande. Quando Nietzsche
glorifica a guerra, dizem alguns comentadores que ele está falando de uma luta
“espiritual”, e da supressão de tudo o que é fraco ou “ressentido” dentro de nós. Mas o
fato é que, em relação ao seu posicionamento ideológico face ao Nacional Socialismo,
Nietzsche estava em total desacordo com as ideologias políticas prevalentes e as
preocupações de sua época.

Contextualizando as reflexões de Nietzsche sobre a escravidão na segunda


metade do século XIX, eram mais do que uma metáfora para a falta de soberania
individual ou autodeterminação. Era um tema atual e urgente, repleto de controvérsias
políticas e ideológicas, notadamente sobre a ascensão do capitalismo e a chamada questão
social, mas também sobre raça, império e autoproclamada “missão civilizadora” do
Ocidente. Nietzsche enumera em alguns de seus fragmentos, os seus objetos de análise,
com nítido desdém: mulheres, escravos, trabalhadores, “os enfermos e os corruptos”,
deixando poucas dúvidas de que considera a emancipação desses grupos um erro
desastroso que vai agravar o “nivelamento” do homem europeu e a decadência da cultura
europeia contemporânea.
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Não há nada em Nietzsche da compaixão cristã pelos pobres, ao revés, esse


sentimento igualitário é por ele criticado como caudatário da transmudação dos valores
empreendidos pelos povos judaico-cristãos. Esse sentimento de igualdade é signo de
decadência e criou ao longo das civilizações o que há de pior na formação de uma
sociedade fraca, sem valor. Este é o exemplo dado pela Revolução Francesa, pelos
anarquismos, socialismos e, principalmente, pela democracia. Este ponto controverso é
um nó na posição política de Nietzsche para nós, homens de uma atualidade social-
democratica, um assunto que merecerá uma maior atenção quando tratarmos adiante do
tema da “grande política”.

E, retornando ao tema do princípio do capítulo: os “pobres” de Deus – não


deve ser por sua condição de vulnerabilidade social, pastoral e teologicamente falando,
que esse caráter desse amor deva ser encarado como preferencial, mas sim unicamente
pela discricionaridade do amor de Deus haja elegido os pobres como seus amados e
queridos. Nietzsche, por sua vez, repisou em diversas passagens, que os nobres em
geral, tal qual os gregos, são os kalói kagathós, ou seja, os belos e bons, os adorados de
Deus. E que seja uma pena abominável aquela, relegada pela subversão da moral pelos
escravos, em que os nobres devam ser lançados são fogo do inferno, e jamais ter acesso
a qualquer forma de remissão. Pois esta é a leitura proposta por Nietzsche para a
pobreza, que nós, por analogia, aproximaremos as “viúvas” às mulheres da obra
nietzschianas, objeto de escárnio e menosprezo; os “estrangeiros” aos judeus, que
receberam os mais diversos ataques das posições ideológicas do filósofo, chegando-se a
gerar a polêmica se seriam posturas meramente antijudaicas, ou se estaria por trás já um
gérmen de antissemitismo; e, por fim, aproximamos os “órfãos” aos desgraçados da
terra, os filhos da morte de Deus, vítimas do Niilismo ingente na Europa moderna, e que
chega até nós como os miseráveis de todo o tipo, sobretudo aqueles que não têm mais
direito à existência.

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