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-PROJETO DE TESE/ PPGFIL-UERJ:


“O PROBLEMA DA MORTE DE DEUS: NIETZSCHE NA ATUALIDADE”
Orientador: Fabiano Lemos.
Orientanda: Alessandra Peixoto dos Santos.

1. INTRODUÇÃO:

2. CAPÍTULO 1: ANTECEDENTES DA MORTE DE DEUS


2.1.Antecedentes na obra:
. Idealismo
. Sujeito
. Linguagem
2.2 Socratismo e Platonismo
2.3 Moral Cristã

3. CAPÍTULO 2: A MORTE DE DEUS:


3.1. A Morte de Deus nas obras da última fase
3.2. Morte de Deus e Metafísica
3.3. A Morte de Deus na cruz

4. CAPÍTULO 3: A ATUALIDADE DE NIETZSCHE.

4.1. A “pobreza” na Bíblia e os pobres de Nietzsche


4.2. Tranvaloração dos valores e Vontade de Potência.
4.3. A Grande Política: Novos rumos após a morte de Deus.
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1. INTRODUÇÃO:

2. CAPÍTULO 1: ANTECEDENTES NA OBRA.


2.1.Antecedentes na obra:
. Idealismo
. Sujeito
. Linguagem

2.2 Socratismo e Platonismo:


A crítica de Nietzsche à tradição ocidental se dá em três níveis, a partir do
socratismo, do platonismo e do Cristianismo. Sócrates e socratismo não são o
mesmo, bem como Platão e platonismo não o são. Aqui marcaremos a diferença
entre Sócrates, personagem dos diálogos platônicos - segundo Nietzsche figura
decadente da cultura grega, e opositora aos instintos trágicos; e o socratismo, que
impregna toda a cultura ocidental, que, em última análise, irá dar na ciência
socrática e nos valores morais incutidos nesta, promotores do mais puro pensamento
metafísico. Desse modo, Nietzsche traçará uma linha que vai do racionalismo que
surge na Grécia com Sócrates e Platão e o cientificismo moderno.
O racionalismo socrático, no qual Nietzsche critica o gesto de fundação de
pensamento metafísico-moral, daria continuidade ao que chamaríamos de
socratismo na filosofia. O racionalismo de origem socrático-platônico marcaria a
fundação do pensamento metafísico ocidental de diversas maneiras: com o
rebaixamento dos discursos da mera aparência ao nível do falso, com as
representações de caráter negativo, com as imagens inferiores dadas as suas não-
relações com o verdadeiro Ser. Essas aparências seriam más, perigosas ao
conhecimento de uma suposta verdade de cunho racional. Em suma, o socratismo se
sustentaria no suposto de que a razão teria de penetrar no âmago da própria
existência e curá-la.
Nietzsche contrapõe o socratismo ao pensamento trágico em relação à
realidade, este enquanto uma atitude de adoração do mundo em todos os seus
aspectos, evitando uma atitude de retificação da vida em seus aspectos terríveis.
Inimigo de um “povo são”, com sua visão trágica do mundo, Nietzsche entende a
influência de Sócrates como decisiva para a instauração do mundo teórico de
encarar a realidade.
Passo a passo, o modo depreciativo de se referir ao racionalismo socrático,
que se infere do interior dos diálogos platônicos, instaura-se como um tipo de
pensamento a partir do qual a tradição metafísica teria sido inaugurada.
Distinguiremos também, Platão de platonismo, e, a partir daqui, na medida em que
temos os diálogos de Platão, a relação entre este e Sócrates. Em primeiro lugar, a
ideia de Bem de Platão torna-se a divindade, e o espaço cósmico fechado dos
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Antigos abre-se para a absolutização de um mundo infinito e aberto. Na verdade, o


antiplatonismo de Nietzsche se disporá contra a predominância do saber científico e
da razão universal, já acusados em Sócrates, a dizer, a verdade ou Deus. Nietzsche
ratifica seu alvo de ataque no Sócrates platônico ao mesmo tempo que traz à cena
Platão e seus questionamentos.
Reza a lenda que Platão, um aristocrata ateniense, também teria sido um
poeta trágico, e que, após seu encontro com Sócrates, teria queimado seus poemas e
tornado seu discípulo. Segundo Nietzsche, Platão teria encarnado o páthos da
decadência socrática e trazido para seus próprios textos a dissolução dos instintos
encarnada naquela tendência. Sob influência socrática, o discípulo teria abandonado
suas inclinações artísticas nos moldes gregos e fundado as bases do discurso
filosófico de caráter racional. A presença da metafísica, e consequentemente do
platonismo no pensamento ocidental se daria, sobretudo, pela adoção da noção de
verdade, através do combate ao mundo sensível e também por meio do moralismo
manifesto nessa filosofia. Os textos desta tradição incipiente fomentariam o
fortalecimento de uma visão de mundo que, a partir de então, se chamaria atividade
filosófica tão simplesmente.
Assim, o antiplatonismo de Nietzsche é feito muito mais do que de Platão,
uma história de mais de dois milênios, marcada pela pressão cristã eclesiástica, a
absolutização do saber científico e da razão universal, a dizer, a verdade ou Deus.
Daí ser esse evento da “morte de Deus” tão central para o pensamento libertador
proposto por Nietzsche na base dos valores.
Conforme pudemos observar, Nietzsche vê uma linha de continuidade entre
o platonismo e o Cristianismo. A filosofia de Nietzsche leva a cabo a crítica das
formas superiores da cultura no Ocidente, descendentes dos valores suprassensíveis
da filosofia platônica, na sua teoria das ideias, os valores supremos como Bem,
Belo e Verdade, e das virtudes em geral. Para Nietzsche, o esteio moral do homem
moderno se dá na base do Cristianismo, formação hegemônica do ocidente, com
suas ideias de punição, pecado, má consciência, ressentimento, ideal ascético e
Reino do Além.
Partindo dessas premissas, a genealogia da cultura ocidental que Nietzsche
vai empreender atinge, antes de tudo, a moral cristã e seus dispositivos de valor.
Uma vez delineado qual Deus é visado nesse deicídio proposto por Nietzsche, nos
atearemos às consequências dessa morte para o homem moderno, e, enfim, nos
preocuparemos com o modo segundo o qual essa morte se realiza. O Cristianismo é,
para Nietzsche, a religião da décadence ‘par excellence’, e portanto, fonte do
Niilismo. Para Nietzsche, as principais religiões da humanidade são niilistas em sua
forma: o platonismo, o cristianismo e o budismo. O platonismo prevê uma
degeneração da vida em prol de um além suprassensível; o cristianismo também irá
marcar essa vontade de nada na anulação da vida na terra no sentido de um Além-
mundo; e, o budismo sublinha o sofrimento como marca do real que apenas pode ser
suprimido ao negar o querer-viver. O Cristianismo seria a mais alta constituição da
vontade de nada, um vazio a ser explicado.
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2.3 Moral Cristã


O que importa aqui notarmos é como a moral cristã com seus piores
representantes, começou a produzir valores, a dizer, com o ressentimento, a má
consciência e os ideais ascéticos. A rebelião dos escravos na moral significou a
transvaloração dos valores dos senhores, e portanto, de todos aqueles poderosos e
aristocráticos. A partir de então, nenhum mais rico passará pelo buraco da agulha da
salvação. O Cristianismo é o responsável pelo rebaixamento do nobre e da ascensão
da escória, do pobre de espírito, do aleijado. “Tudo se judaíza, se cristianiza, e se
aplebeia a olhos vistos”. (NIETZSCHE, 2011, P.41).
“Só um povo de sacerdotes, um povo de vingança retraída, podia obrar
assim. Os judeus, com uma lógica formidável, enfrentaram e inverteram
temivelmente a aristocrática escala dos valores (“bom” é igual a “nobre”, igual a
“poderoso”, igual a “formoso”, igual a “feliz”, igual a “amado de Deus”). E, com o
encarniçamento do ódio da impotência, afirmaram: “Só os desgraçados são bons; os
pobres, os impotentes, os pequenos são os bons; os que sofrem, os necessitados, os
enfermos são piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a bem-
aventurança, pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos, sereis por toda a
eternidade os maus, os cruéis os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os réprobos,
os malditos, os condenados””(NIETZSCHE, A Genealogia da Moral, 2011, I,§7) .
Ainda em A Genealogia da Moral, teremos três conceitos de cardeal
importância para a compreensão do fenômeno do Niilismo, presença determinante
desde a filosofia grega até os estertores da “morte de Deus”. São eles: o
ressentimento, a má-consciência e o ideal ascético. Nos deteremos neste ponto por
um instante antes de passarmos ao problema da “morte de Deus” em si, a sua
mortificação.
Em primeiro lugar temos o ressentimento que é definidor do tipo escravo –
é-lhe inerente. No senhor o ressentimento esgota-se imediatamente, por isso não o
define. Seus inimigos, seus acidentes, aparecem-lhe como algo sem importância. No
tipo escravo, além do desenvolvimento de uma extraordinária memória, nele
determina-se a percepção do inimigo como mau. E, por razões para além da moral,
próprias do ressentimento, os sacerdotes em geral, são seres vingativos, odiosos e
ruins.
A transmudação da moral aristocrática em escrava se dá através do
ressentimento do fraco e esse momento de transmutação da moral é aquele em que o
ressentimento se torna criador e passa a criar valores. Nietzsche tem uma reveladora
criação ao cunhar este conceito de ressentimento no bojo do campo da moral. O
filósofo criará um esquema em que, relacionando o tipo do ressentido, também
revelará seu tipo psicológico.
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A ambição de Nietzsche é identificar um ponto histórico em que a saúde


toma lugar da doença. O ressentimento é definidor de um tipo, no caso, o tipo do
escravo. O senhor, por seu lado, é o criador de valores.
Em resumo, a má consciência é a interiorização dos impulsos em
determinados casos, como nos animais em seus processos de formação, e dos
homens na realização de suas normas em sociedades. Nesse último caso, devido aos
obstáculos colocados pelas imposições sociais, esses impulsos foram interiorizados.
O mesmo homem selvagem, cuja força tentam domesticar, passa a se perseguir e a
se devorar. Não tendo inimigos exteriores se viu forçado a maltratar-se, inventando,
então, a má consciência, ou seja, o homem doente dele mesmo. A violência e a
crueldade são dirigidas para dentro. O homem passa a ser responsável pela própria
dor porque é culpado, passando a má consciência em consciência de culpa, um dos
maiores maus na moral cristã.
E, enfim, complementando a temática judaico-cristã de A Genealogia da
Moral, apresentamos então o ideal ascético e todo o seu poder deletério para a saúde
do homem em geral; ideal este gestado no seio dessa mesma moral. O sacerdote,
seja judeu ou cristão, incarna esse ideal. O sacerdote valora a vida a partir da
negação da efetividade, vinculando-se a uma síntese de crenças: Deus universal,
vida após a morte, além mundo, etc.
A significação do ideal ascético está ligado à busca de sentido e salvaguarda
da vontade de potência. O instinto não satisfeito do homem entra em contradição à
vontade de vida. Aqui o ressentimento entra em cena com uma mudança de direção,
e a culpabilidade e o pecado tomam conta do homem são. A vida sã possui vontade
de viver – é tomada pela vontade de potência em seu aspecto positivo – implica
querer viver. Mas há um contraste da vida em que ela aparece em seu aspecto de
impotência da vontade, como ausência de plenitude e afirmação da vida. Daí que
essa vida mórbida vê nesse ideal ascético a única maneira de se conservar:
Nietzsche afirmará que no ideal ascético “a vida luta nele e por ele com a
morte e contra a morte, o ideal ascético é um artifício da conservação da vida”
(2011, p.116).
Nesse sentido, a negação constitui-se como meio de manutenção e
conservação. Nega a vida, e coloca de um lado o mundo, a ficção, o suprassensível,
Deus; e, de outro, a transitoriedade, a particularidade e a diferença, ou seja, o mundo
do vir a ser. O sacerdote do ideal ascético trata a vida como um erro e coloca a
verdade para além dela, em Deus. Esse tipo de vida representa um tipo de
ressentimento que se volta contra tudo o que é forte e próspero, signo da alegria e da
beleza, institui o sofrimento como algo afirmativo, convertendo a força ativa em
reativa.
O sacerdote é aquele que tem na doença a vitória sobre a vida e sobre os
fortes. Agrega os doentes, os sofredores, os humildes, os malogrados, enfim, os
rebanhos, os escravos de toda a espécie. Querendo estar em outra parte, recebe em
seu seio aqueles que querem organizar-se e deixar-se comandar.
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No entanto, a queixa mais grave de Nietzsche contra os sacerdotes é a sua


vingança imaginária, que transformou o senhor em escravo. E, ainda segundo
Azeredo: “O sacerdote ascético, formador de rebanhos, defende-os dos sãos e da
inveja que aqueles inspiram, sendo um inimigo natural de toda saúde” (2003,
p.181).
Por fim, na perspectiva nietzschiana, todo homem que sofre deseja saber a
causa de seu sofrimento. Daí a busca por um responsável por sua dor, visando um
alívio. É que a descarga do afeto produz a suspensão do mal estar. A projeção do
outro como culpado atua como o possibilitador dessa descarga. No entanto, dessa
compreensão poderia vir o descontrole, por isso a culpa será imputada a si próprio e
não a outrem. A consequência desse retrocesso do ressentimento é a introdução
clara do conceito de pecado. Pecado, falta e condenação tornam os doentes
inofensivos.
“... impedir que os doentes ofereçam perigo, fazer com que os incuráveis se
destruam a si mesmos e com que os menos doentes os controlem, com que seu
ressentimento se volte contra eles mesmos (...) e, assim tirar partido dos maus
instintos de todos aqueles que sofrem com vistas à autodisciplina, ao autocontrole”
(NIETZSCHE, 2011, p.123).
A noção de pecado, um mal estar fisiológico do ponto de vista moral e
religioso, serve ao sacerdote para incutir no homem a culpa, convertendo-o em
pecador. Essa vida degenerada será por aquele cuidada, dando-lhe um sentido, um
ideal. Esse é o papel da religião para Nietzsche: um narcótico. A vontade de
potência na religião tem o papel de tornar a vida suportável. Cumpre ressaltar que o
homem prefere a dor à falta de sentido. Por isso Nietzsche acresce a sua máxima: “o
homem deve preferir a vontade do nada a nenhuma vontade” (2011, p.150).

3. CAPÍTULO 2: A MORTE DE DEUS.

3.1. A problematização da morte de Deus.

Retomemos a questão da “morte de Deus” numa passagem emblemática -


a do aforismo 125 da Gaia Ciência; um homem louco com uma lanterna na mão em
pleno dia, sai a proclamar: “Procuro Deus! Procuro Deus!” E que Deus é esse?
Passamos aqui, da imagem estratificada da metafísica da tradição, o Deus de Platão,
para a passagem cristã-eclesiástica de um Deus que é o Sumo bom.
“”Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês
e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos
beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que
fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde
nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para
trás, para os lados, para a frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e
‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na
pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não
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temos de acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a


enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses
apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto? E nós o matamos. Como nos
consolar a nós, assassinos entre os assassinos? (...)” (NIETZSCHE,2012, P.137-138).
Aqui nesta passagem, além da determinação de qual Deus nos referimos
nós nessa morte anunciada, fica também a pergunta de quem foram aqueles que o
mataram. “Quem matou Deus fomos nós”, mas nós quem? No início da passagem o
texto refere-se aos que não criam em Deus, em suma, os niilistas de toda ordem, os
que ficaram sem o Deus cristão e os que ficaram órfãos dos valores supremos. Pois o
“Deus cristão” é o Deus Bom, o Sumo Bom, que, em última análise remete-nos à
ideia primeira de Platão, a do Bem, dos valores supremos, enfim, as virtudes.
Assim, voltando às imagens compostas neste aforismo de A Gaia Ciência
, observamos: “Como conseguimos beber inteiramente o mar?” “Quem nos deu a
esponja para apagar o horizonte?” “Que fizemos nós, ao desatar a terra de seu sol”. E
inferimos: o mar inteiramente bebido traz as ideias de inesgotabilidade, infinitude e
universalidade. O horizonte encerra em si as ideias de transcendência e
incompreensibilidade. E, por fim, o sol traz características como superioridade,
centralidade e a condição de possibilidade de sustentação do mundo. De fato, a
referência ao sol no conto é a mais extensa. O homem louco preocupa-se com o
desatar da terra do seu sol, predizendo-nos uma queda contínua para todos os lados, e
um vagar “como que através de um nada infinito”. Num sentido geral, as qualidades
gerais do sol em sua centralidade, evocam também o caráter universal e o perene.
Seguindo a tradição, são essas as mesmas qualidades do Deus Sol de Platão . Em
suma, no tocante à “morte de Deus”, Nietzsche está claramente a dialogar com a
filosofia platônica. As figuras do mar, do horizonte e do sol indicam a perenidade e a
presença universal de uma estrutura cósmica que as aproxima do Deus de Platão.
Nietzsche confere ao sol, na relação da terra a este, o status de ponto fixo
e seguro, central e superior. Tanto em Nietzsche quanto em Platão Deus diz respeito
ao substrato último da realidade, seja na forma de essência, substância, princípio,
fundamento, etc. Quanto à imagem do sol, ambos os filósofos a compreendem de um
mesmo modo: o ente metafísico, supremo, absoluto e divino, princípio de
subsistência dos demais entes e fonte de significação da existência humana. Por outro
lado, apesar de suas descrições do Deus metafísico coincidirem, o objetivo de cada
um dos filósofos diverge imensamente. Enquanto Platão visa implantar o fundamento
último da realidade, Nietzsche pretende exatamente denunciar esse mesmo
fundamento, como a anunciar o fim de sua vigência e eficácia na história do
pensamento ocidental. Em suma, estamos diante do fenômeno contemporâneo do
“fim da metafísica”.
Mas, em paralelo a esse Deus platônico das categorias cósmicas, temos
também no texto, a referência a um Deus que entra em estado de “putrefação” .
“Também os deuses apodrecem”. E ainda anuncia:” Esse acontecimento enorme está
a caminho, ainda não chegou aos ouvidos dos homens”. A pergunta que se faz é a
seguinte: se os homens que ali estavam “não criam em Deus”, porque o anúncio
dessa morte lhes seria extemporânea? Em verdade, ao que o louco se refere é, não à
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morte de Deus, mas às consequências desse ato. Nietzsche se refere ao esvaziamento,


à dessencialização que esta morte ocasionaria aos homens. Uma esterilidade marcada
pelo Niilismo de um mundo sem Deus. Segundo esse mesmo louco, “os atos, mesmo
depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos”.
Assim, a queda dos valores suprassensíveis não significou ainda,
verazmente, a perda total do horizonte do homem moderno. Resta-nos ainda o
Cristianismo e o homem cristão com sua moral. Resta a substituição de Deus pela
razão e pela ciência. Compreendamos, a queda dos valores superiores, como Deus,
por exemplo, não significa o desaparecimento de sua moral como um todo do
horizonte moderno. O Cristianismo ainda pode funcionar como esse valor
suprassensível que cumpre o papel de preencher o vazio deixado por Deus. Nietzsche
fará a crítica, sobretudo, do sacerdote, do padre cristão, que, tomando o lugar de
Deus cumprirá as suas funções. Mas, antes de tudo, pergunte-mo-nos por quem seja
esse Deus Sumo Bom da tradição da humanidade. De onde viria a sua bondade?

3.2. Morte de Deus e Metafísica.


Assim, voltando à questão do Niilismo, desejamos compreender o lugar de
Nietzsche nessa linha da metafísica em que foi posto por Heidegger, como seu
epígono e finalizador: o último dos metafísicos. Aqui, se nos deparamos com a
vontade de potência, uma categoria que não é propriamente um princípio metafísico,
mas que Heidegger insiste, por ela, a caracterizar Nietzsche como o último
metafísico.
Na interpretação de Heidegger encontrada em “Caminhos da Floresta”,
no capítulo “O dito de Nietzsche “Deus está morto””, o âmbito do suprassensível
vale como o mundo verdadeiro e autenticamente real desde Platão. O mundo
suprassensível é o mundo metafísico. E o que significa para Nietzsche o Niilismo? –
“Que os valores supremos se desvalorizaram”. Segundo Heidegger, os nomes Deus e
Deus-cristão no pensar de Nietzsche são usados para a designação do mundo
suprassensível em geral. Deus é o nome para o âmbito das ideias e dos ideais. Assim,
o pensar de Nietzsche vê-se sob o signo do Niilismo. Ainda no dizer de Heidegger,
Nietzsche resume a sua interpretação na breve frase: “Deus morreu”. O dito de
Nietzsche estaria a mencionar dois milênios de história ocidental.
A tentativa de comentar o dito de Nietzsche “Deus morreu” é equivalente à
tarefa de interpretar aquilo que Nietzsche compreende por Niilismo, e assim mostrar
como o próprio Nietzsche está em relação a esse mesmo Niilismo. O não diante dos
valores vigentes até agora procede do sim à nova instauração de valores. O próprio
Nietzsche interpreta metafisicamente o curso da história ocidental, e isso como o
despontar e o desenrolar-se do niilismo. Com Nietzsche cumpre-se uma inversão, o
suprassensível torna-se num produto inconsistente do sensível. Decorre daí que
Nietzsche seja considerado o “último metafísico do ocidente”, encerrando
definitivamente o circuito de reflexão que há milênios domina nosso horizonte.
No entanto, Heidegger não reconhece em Nietzsche aquele que pôs fim à
metafísica, mas apenas como uma intersecção entre o fim de uma época e o início de
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um novo começo. Heidegger reconhece Nietzsche como o continuador de uma


tradição que este pretendia superar. Ainda segundo Heidegger, Nietzsche com sua
vontade de potência e através da ideia de além do homem ( Übermensch) não fez
mais que consumar o esquecimento do ser e o domínio incondicional da totalidade do
ente por uma subjetividade ávida em domínio e controlar todas as dimensões do real.
No entender heideggeriano, a metafísica da vontade de potência não
representaria uma ruptura como pretendia Nietzsche, com as filosofias do sujeito,
mas representa sua consumação. Nesse sentido, o pensamento nietzschiano possuiria
a mesma natureza metafísica do pensamento ocidental que se desenvolveu desde
Platão. Na compreensão de outros, por exemplo, Nietzsche seria aquele pensador no
qual essa tradição teria realizado suas últimas possibilidades na vontade de potência.
Na verdade, a crítica nietzschiana dirige-se a todo sistema da moral ocidental
que pretende fundar-se sobre um consenso tradicional e na justificação das ações
pelo apelo à consciência do Sujeito pensante. O desprezo pelo corpo empreendido
pelos metafísicos tem como contrapartida a exaltação da alma, do espírito. A noção
de alma bem como um certo sentimento de sujeito já se encontram nessa superstição
do eu que se manifestou no espírito puro de Platão, se consolidou no cogito
cartesiano, permaneceu no eu penso kantiano, e se mantém na retaguarda das
filosofias posteriores.
Mas, na esteira da compreensão do dito “Deus morreu”, só o abarcaremos a
partir daquilo que Nietzsche pensa com o termo valor, que é a chave do
entendimento de sua metafísica, embutida na noção de vontade de potência. O devir
é para Nietzsche, a vontade de potência, e esta é o traço fundamental da vida.
Vontade de potência, devir e ser são, na linguagem nietzschiana, o mesmo. A
vontade de potência mesma é o fundamento da mais superabundante vida.
Nos dizeres de Heidegger:
“A vontade de potência avalia na medida em que constitui a condição do
aumento e fixa a condição da manutenção. A vontade de potência é, segundo a sua
essência, vontade instauradora de valores” (p.273).
Desse modo, concebemos que o conceito nietzschiano do niilismo e o dito
“Deus morreu” só se deixam pensar suficientemente a partir da essência da vontade
de potência. A clarificação daquilo que Nietzsche pensa com o termo valor é a chave
para a compreensão de sua metafísica. Com a consciência de que “Deus morreu”
começa a consciência de uma transmutação radical dos valores até agora. A vontade
de potência é experimentada e assumida propriamente como a realidade efetiva do
que efetivamente é real. Do ponto de vista heideggeriano, a degenerescência dos
valores paradigmáticos está no fim e a sensação de que o niilismo dos valores
supremos se desvalorizaram está ultrapassada.
No entanto, temos que, no comentador Müller-Lauter, a própria interpretação
heideggeriana da vontade de potência como princípio metafísico em Nietzsche seria
equivocada, já que Heidegger concebe uma unidade na vontade de potência a qual se
manteria através da constante superação de si. De acordo com Heidegger, Nietzsche
acaba se pronunciando sobre a totalidade do ente, ao conceber sua essência como
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vontade de potência e sua existência como eterno retorno do mesmo. Contudo,


Müller-Lauter entende que o todo em Nietzsche só se dá como um caos. O ente
enquanto tal não é mais fixável. Não teria, portanto, sentido falar de qualquer
fundamento do ente em Nietzsche.
Talvez, possa-se, assim entender que possa emergir um Nietzsche que seja
não apenas o herdeiro e continuador da tradição metafísica iniciada com Platão, mas
quem sabe, o ponto de partida de um pensamento originário.

3.3. A morte na cruz.


Por fim, chegamos ao ponto em que a própria morte de Deus será tematizada,
de que morte matamos nosso Deus. De que morte morreu o Deus cristão, por
exemplo? Segundo Nietzsche da morte mais ignominiosa de todas: a morte de cruz.
E quem foram os responsáveis?
Os cristãos serão aqueles continuadores do espírito judaico, não há uma
ruptura entre essas duas raças, mas um alongamento. Assim, Nitzsche dirá que, o
“amor novo” que brotou do solo judeu não nasceu de sua oposição mas “saiu deste
ódio como uma coroa triunfante da pureza, da luz e do sublime” (2011, p.). O Cristo
aparece, assim, como a sedução dos judeus para a sua causa.
Da Grausamkeit dos judeus, de sua crueldade, (de Grausam, cruel), só por
isso houve significado a morte da cruz. Para Nietzsche, então, essa cruz é vazia,
representa o nada que o desaparecimento desse Deus deixou após a sua morte, com a
perda dos valores suprassensíveis consequentemente.
Para Nietzsche, a cultura sacerdotal responsável por este novo domínio no
campo axiológico foi a judaica, que consolidou seus valores no Cristianismo. O que
moveu, de fato, essa transmudação do espírito judaico foi o espírito de vingança.
Seres debilitados, propuseram com a continuidade no espírito cristão uma vingança
espiritual contra seus inimigos; um forte acento de ressentimento contra os nobres, os
romanos. Incapazes de agir, os sacerdotes judeus propuseram um acerto de contas na
imaginação, na vingança.
Através do Cristianismo operou-se uma “rebelião escrava da moral”: os
valores nobres foram apropriados pelos escravos e invertidos, o que se traduziu na
“transvaloração-judaico-cristã”. Um desprezo pelo que é
nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses; e, uma estima do que é pobre, fraco,
sem energia, com baixa vitalidade, decorrentes de um deslocamento da avaliação, do
“ser” para a ação.
Os sacerdotes judeus inverteram a equação dos valores aristocráticos e o
Cristianismo completou essa revolta escrava na moralidade postulando um céu onde
os mansos não apenas entrariam, mas onde estariam salvos. Nietzsche, então, nos
proporá a fórmula “Roma-Judeia, Judeia-Roma”, e esta última será vencedora por
mais de dois milênios. Onde quer que se encontre os vencedores, encontrar-se-á três
judeus e uma judia: Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo, e Maria, mãe de Jesus. Não é de
se estranhar que o Cristianismo tenha sucedido o judaísmo. Os judeus, em confronto
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com os romanos, tentarão seduzir a escória, aquele povo submisso ao Nazareno;


submetido este a uma morte das mais cruéis que houve, a morte da cruz, uma morte
não pelo pecado dos outros, mas pelos seus próprios, os políticos.
A sedução proposta pelos judeus no Cristianismo segue a necessidade de
transformar o forte em fraco, tornando todos inimigos. Segue-se na construção de
“um ideal capaz de seduzir e de persuadir os fortes mediante a compreensão da
supremacia da fraqueza frente ao ideal transcendente.”(Azeredo, 2000, p.71).
Nietzsche chega a elaborar a hipótese de que essa sedução visaria a buscar de todo
jeito a adaptação dos homens aos valores judaicos.
Assim, segundo Nietzsche, o grande triunfo dos impotentes sobre a
aristocracia guerreira deu-se através do amor de Cristo. O amor que renuncia à força,
que perdoa os inimigos, que dá a outra face. O sacrifício de Jesus, ao menos segundo
certas concepções, trouxe a “salvação” dos fracos, e, ao mesmo tempo, trouxe uma
vingança eterna aos fortes: tornarem-se-lhes afastados do reino de Deus para sempre;
que não o merece.
Acompanhando o pensamento de Schopenhauer, Nietzsche nos dirá que a
compaixão e a caridade são formas de enfraquecimento do homem, que, ao dar algo
de si, e, ao não permitir que o outro o tome para si, cresça por si, a compaixão é a
impossibilidade de subversão do fortalecimento do homem, através da diminuição da
sua vontade de potência.
E o que significa essa vontade de potência? É que existem as religiões que
afirmam a vida e as que negam. Nietzsche dirá que com os sacerdotes, houve uma
desnaturalização da religião. Se antes Deus abençoava as plantações e colheitas, um
Deus das “benções”; depois, com a desnaturalização empreendida pelos sacerdotes, o
“pecado” tornou-se o responsável pelo castigo de Deus às ações humanas. Um
pecado que não tem fim, até o fim dos tempos.
O símbolo da “santa cruz” leva Israel à face do mundo, como se até seus
inimigos pudessem morder esse anzol de grandiosa vingança. Nenhum ideal mais
nobre subsiste a essa transformação de valores. Na verdade, Nietzsche vê na morte
na cruz um imenso vazio deixado por Deus, subsistindo um nada de valores que nada
pode substituir. Nietzsche não percebe a gama de simbolismos implícita nesse ato
dessa morte na morte, de um Deus vivo que se entrega à morte para a salvação de
todos.
Assim, do ponto de vista do João do Quarto Evangelho, a morte de Deus não
nos aparece mórbida como em Nietzsche, ao contrário, ela é gloriosa porque vivencia
a liberdade. Esse desejo pela morte faz parte do destino do Salvador.
O que Nietzsche não percebe, e nem a linhagem de comentadores de certa
tradição que o sucede, é que a morte de Deus é paradoxal: ela é humilhação ao
mesmo tempo em que é gloriosa. Os signos apontam para um martírio que é na
verdade a confirmação régia de Jesus. Nasceu como rei, viveu como rei e morreu
como rei.
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Jesus anunciou sua Paixão como os vindouros de seu enaltecimento e


glorificação. Só na cruz é que ele irá pronunciar o: “Está consumado!” Pois a hora de
seu ser glorificado, seu passar desse mundo, inclui a história da Paixão como um
todo. “Depois de ele [Judas] ter saído, Jesus diz: “Agora foi glorificado o Filho da
Humanidade e Deus foi glorificado nele” (Jo, 13,31).
Na cena toda do processo, do flagelo e da crucificação, Jesus mostra sua
superioridade, que se pôde observar desde o início da história da Paixão. Não se
relata inquérito algum, e é Agamben quem apontará para essa ausência de
julgamento em Pilatos, em seu “Pilatos e Jesus” (2014). A base para um tal
entendimento era a de que esse processo seria destituído de juízo, sem o
acompanhamento das formalidades procedimentais.
Na verdade, estamos diante de um fato insólito: o entrecruzamento dos
tempos histórico e eterno, de uma verdade temporal e outra celestial. A proposta de
Agamben está em compreender porque este cruzamento entre o histórico e o eterno,
o profano e o divino tenham assumido a forma de uma krisis, de um juízo processual.
Diante de Pilatos dois julgamentos e dois reinos parecem enfrentar-se: o
humano e o divino, o temporal e o eterno. E no caso, é o mundo dos fatos que deve
julgar o da verdade. Jesus responderá: ”O meu reino não é deste mundo” (Jo, 18,36).
No entender de alguns comentadores, o julgamento, em João, já teria sido
realizado no Sinédrio, e o que há em seguida é uma série de “entregas” (“entrega”=
‘paradosis’), “tradições”. Do Sinédrio aos hebreus, dos hebreus a Pilatos, e, de novo,
de Pilatos aos hebreus e aos romanos; e, por fim, a “entrega de Jesus na cruz: “Está
consumado!”
Na verdade, aqui temos dois reinos face um ao outro sem que seja possível o
enunciamento de um julgamento. Julgamento e salvação excluem-se mutuamente.
No entanto, no entender de Agamben, para que haja um resgate do pecado a punição
deve ser legítima, senão será mero castigo. Jesus sabia desde o início de que morte
deveria morrer, e, para que se cumprisse as escrituras, cumpriria a pena capital,
resultante do delito de lesa majestade, no caso o ato de auto instituir-se Deus, o
Messias, o Reino de Deus contra César.
O que cabe ressaltar aqui, no que tange ao Evangelho de João, é o tipo de
acusação contra Jesus: o auto proclamar-se o Messias, o representante do Pai. Os
tributos honoríficos atribuídos a Jesus no flagelo parecem escárnio à primeira vista,
mas contêm um sentido profundo, Jesus é, de fato, rei. Assim, no relato joanino da
Paixão a questão não é a função judicial de Jesus, mas sua dignidade régia.

4. CAPÍTULO 3: A ATUALIDADE DE NIETZSCHE.

4.1. Os “pobres” de Deus e os “pobres” de Nietzsche:


É tradição bíblica designar pobres ou desamparados, preferencialmente, as “viúvas”,
os “órfãos” e os “estrangeiros”. No Deuteronômio, um livro de leis da Torá,
aparecem prescrições exatas das distribuições dos produtos agrícolas. Assim, a
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análise da tríade social formada pela viúva, o órfão e o estrangeiro procura realçar os
aspectos econômico-sociais, atrelados ao modo de produção agro-pastoril,
predominante nas sociedades antigas. Esses são um grupo de leis ou normas bíblicas
que dão conta de um arcabouço jurídico que procura soluções e garantias aos grupos
sociais em processo de pauperismo ou morte iminente. São compreendidos como um
grupo sociológico com papéis bem definidos nas diferentes épocas e sociedades
bíblicas. Em todo o conjunto do livro Deuteronômio, o primado á dado a Moisés; o
suporte legal adquire o desejo de garantir o projeto do Criador. Encontra-se em
qualquer período da existência de Israel uma clara defesa dos pobres em diferentes
conjuntos jurídicos. A proteção, por parte da administração da justiça, consiste em
que a comunidade religiosa de Israel defenda e garanta a prática dos direitos desses
grupos. Os destaques dados às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros datam do período
exílico.
“Maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E todo o
povo dirá: Amém!” (Dt, 27:19). Qualquer pessoa que se recusasse a ajudar a um
órfão, viúva ou estrangeiro, cometia pecado contra o Senhor. Viúvas, órfãos e
estrangeiros eram as classes mais vulneráveis em Israel e como tais deveriam receber
atenção especial. Cuidar deles era sinônimo de cuidado ao próprio Deus. Os dois
pecados mais graves de Israel e das nações ao redor dela era a opressão ao indefeso e
pobre, e a idolatria. “Pai de meninos órfãos de pai e juiz de viúvas. É Deus na sua
santa habitação” ( Sl, 68:5). Formavam essas três figuras um grupo citado não mais
que seis vezes ao longo do livro do Deuteronômio, conjunto de leis bem
especificadas no corpo jurídico do Antigo Testamento, na defesa dos grupos violados
em seus direitos e justiça.
Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é sinônimo de agradar YHVH. As
viúvas eram muitas em Israel, dado o fato de que seus maridos deveriam
necessariamente de ser enterrados em sua pátria, restando abandonadas e muitas
vezes em estado precário. Os órfãos, por óbvio, são os abandonados por excelência, e
por isso devem ser cuidados. Os estrangeiros trazem à memória dos israelitas o
tempo em que estes se mantiveram cativos no Egito, e eles não deveriam dar ao
estrangeiro o mesmo tratamento que recebera nessas terras. “E não deves oprimir o
residente forasteiro, visto que vós mesmos conhecestes a alma do residente
forasteiro, porque vos tornastes forasteiros na terra do Egito” ( Ex, 23:9).
No Novo Testamento, especificamente no capítulo de “As bem Aventuranças”, em
Mateus, 5,3; aos “pobres”, ptchói, em grego, ocorrência em todo o Antigo
Testamento, correspondem ainda os humildes, tapenói: “ Digo-vos que este desceu
justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado;
mas o que se humilha será exaltado” ( Lc 18, 14); e ainda, Lc 1, 48-52; 14,11; Mt 23,
12; 18,4; os “últimos” opostos aos “primeiros” (Mc 9,35); os “pequenos” opostos aos
“grandes’ (Lc 9,48; Mt, 19,30; 20,26; Lc 17,10). Na exegese da Bíblia de Jeruralém,
em sua nota “g” às “Bem Aventuranças”, Cristo retoma a palavra “pobre” com o
matiz moral. Assim, “A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância espiritual
necessária para entrar no Reino, o mistério revelado aos “pequeninos”, népoi (Lc
12,32)”. O que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva, especialmente para os
seus discípulos: “Vendei os vossos bens e dai esmola; fazei para vós outras bolsas
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que não desgastem, tesouro inextinguível nos céus, onde não chega ladrão, nem a
traça consome, porque, onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração
(Lc, 12, 33-34)”. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão
disponíveis para o Reino dos Céus, este o tema das bem aventuranças.
“Aquele Jesus de Nazaré, como evangelho incarnado do amor, este “Salvador”, que
trazia aos pobres, aos enfermos, e aos pecadores a bem-aventurança e a vitória, não
era ele precisamente a sedução na sua forma mais irresistível e sinistra, a sedução
que, por um rodeio, havia de conduzir os homens a adotar o ideal de renovação dos
valores judaicos?” (NIETZSCHE, GM, § VIII, p.40), (grifo nosso).
“Pobres”, para Nietzsche, tem um caráter essencialmente moral e não sociológico;
assim, pobres são: os aleijados, diminuídos, maltratados, envenenados (GM, 1ª
dissertação, XI, p.46); os oprimidos, os rebaixados, os servos (GM, 1ª diss., XIII,
p.49). Pobres, aqui, não têm qualquer sentido elevado, apenas é o primeiro
designativo de uma linha de seres que devem ser desprezados e humilhados, porque
ressentidos e vingativos face aos verdadeiramente ricos em qualidade e nobres de
espírito. Em A Genealogia da Moral, em sua 1ª dissertação, Nietzsche faz referência
aos pobres e humilhados como aqueles flagelados, paralíticos e miseráveis que
seguem Jesus pelas ruas de Jerusalém; na verdade, refere-se a uma corja que faz
número neste rebanho que dá a sentença final aos chamados nobres de espírito, que
seriam preteridos nesta hierarquia dos preferidos de Deus.
Na linhagem de estudiosos de Nietzsche, a designação de “pobres” em sua filosofia,
dá a ideia de um integrante do rebanho deletério, pesado demais para ser carregado
por seus pastores, estes aqueles nobres, uma metáfora dos homens aristocráticos. O
rebanho em Nietzsche traz em si uma carga enorme de significados para o homem
inferior, aquele que assim o seja, simplesmente porque a humanidade é
“naturalmente” dividida em duas partes: aquela superior, a dos senhores; e, a outra
subordinada, a dos escravos. Não que Nietzsche deseje por uma vontade perversa
que alguns homens sejam subjugados por outros de melhor sorte, mas, por uma
questão clara de vontade de potência, onde as forças em uns prevalecem sobre as dos
outros, e, no combate infinito entre elas, tanto entre seres inorgânicos quanto
orgânicos, nos seres morais como nas instituições, estabelece-se um verdadeiro
combate pelo domínio do mais forte. E essa é uma luta instável e constante, não
havendo qualquer possibilidade de repouso, o mais forte assimila o mais fraco, e no
prosseguimento do combate, neste embate entre as forças, é que se dá o estímulo
para se continuar nesse processo ad infinitum.
Importa notar que a categoria de “pobres”, enquanto classe social, enquanto
despossuídos e desvalidos, só ocorrerá a Nietzsche como uma categoria daqueles que
se rebaixaram na luta pela potência mais elevada; a ideia de compassividade pelos
“menores” é cristã e fraca, decadente, faz mal ao homem. Na verdade, no
entendimento de Nietzsche, a compaixão é um afeto que enfraquece, quando se se
compadece da dor alheia, retira-se de si uma quantidade de força, e, de todo modo,
essa piedade não chega a ser legítima, uma vez que, deprimindo-se pela dor do outro,
na verdade está-se sendo afetado pelo sentimento próprio de empatia pelo sofrimento
alheio, em suma, o que importa é o que a si mesmo toca e não propriamente o outro.
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Diga-se que há uma possibilidade única de uma compaixão autêntica por parte do
homem, apenas quando, na sua posição de nobre, de senhor, superabundante de
forças, o homem prodigaliza esse poder, sem por isso ter de tirar nada de si, e sem
nem mesmo apiedar-se do outro.
Ademais, na concepção de Nietzsche, o sofrimento é o lugar genuíno da superação, e
através da compaixão, o compassivo estaria retirando do sofredor o direito de
autossuperar-se, de tornar-se mais forte através de sua própria dor e autotransformar-
se. No entanto, uma acusação que se há de levar em consideração em relação a esse
pathos da distância que separa os homens, que não tem sua origem na “natureza”
tomada como fato biológico, é o sentido de aristocratismo que o acompanha, e que
Nietzsche exacerbará em suas considerações:
“ O meu sentimento distingue as naturezas humanas superiores e inferiores; aquilo
que ele distingue e a maneira como distingue, é isto que experimentarei um dia tão
duramente e tão diferentemente quanto possível” ( Fragmentos Póstumos, 12 [41]
451].
Assim, do ponto de vista da filosofia nietzschiana, esse fosso que se cavou entre os
homens na História da Humanidade, é menos um sucedâneo das diversidades
econômicas, sociais e políticas do que uma consequência do pathos da distância
instado pela distância observável ao longo da história da formação das morais.
Nietzsche apresenta uma hipótese de que, a partir de sua observação genealógica de
diversos tipos de morais, tenha chegado à conclusão de que a humanidade teria se
dividido em duas classes: a da moral dos senhores e a da moral dos escravos. Os
primeiros distinguir-se-iam por sua natureza nobre, viril, guerreira, seriam os belos,
os adorados de Deus. Os segundos seriam aqueles que conformam uma moral de
rebanho, de ressentidos, seriam os frecos e feios, enfim, todos aqueles que se
contrapõem à nobreza dos senhores, negando os bons valores destes e se se
autodeterminando reativamente. A princípio essa distinção teria um caráter de classe,
para depois assumir um sentido de ser.
Os escravos seriam aqueles que, em primeiro lugar colocam-se negando-se em
relação aos valores afirmativos da moral dos senhores, e não positivamente como o
fazem os senhores, que antes de tudo se autodeterminam admirando-se, para somente
após lançar um olhar de menosprezo a seu opositor. Nem mesmo na condição de um
rival seu pode o escravo ser considerado, pois, para com ele duelar deve o inimigo
ser necessariamente um igual. E não destruí-lo de uma vez, mas abandoná-lo para a
ocasião de um duelo posterior.
Nietzsche derivou essa teria das duas morais a partir da concepção que formou de
sua genealogia da moral, com a pesquisa etimológica da palavra “bom” em diversas
culturas. Em princípio é bom quem se autodesigna dessa maneira, colocando-se no
lugar de “nomear” as coisas, ou seja, dotando-as e um valor. O bom é o nobre, é
aquele que determina os valores, e que tem capacidade da criação. Ele é o criador. O
seu oposto é apenas o homem vulgar, no sentido de simples, que não tem
importância alguma, por isso será o “ruim” em oposição ao “bom”. Há, portanto,
uma distinção entre o bom dos senhores e o bom dos escravos. O bom dos senhores é
ativo, e vem em primeiro lugar, este se autodetermina o bom por suas próprias
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qualidades intrínsecas; já o bom dos escravos se coloca por oposição aos valores do
bom dos senhores, delimitando-os por isso como os malvados, os perversos, em
suma, os “maus”, e só por derivação, se autocolocará como o sofredor, o coitado, o
desgraçado, o humilde, e por isso dotado de um caráter “bom”. O bom dos senhores
é ativo, e vem em primeiro lugar; o bom dos escravos põem-se por oposição, é
reativo, mesmo quando pensa agir está apenas reagindo. E é essa distinção entre
pares de opostos: “bom”/”ruim”; e, “bom”/”mau” que determinará a diferença que
redundará na formação no seio da humanidade de duas morais também opostas.
Mas, os escravos também desejam ser senhores, há aí uma vontade de potência fraca
atuando, o que Nietzsche denominou de transvaloração dos escravos na moral. Este é
um ponto nevrálgico para Nietzsche, que não se conforma com essa transmudação
em os escravos tomarem o lugar do senhor na moral. De início, esse foi um
fenômeno da esfera das aristocracias, precisamente no âmbito dos nobres guerreiros
e dos sacerdotes. Fortes, guerreiros, viris e lançados na ação, sobretudo, denotavam
uma vontade forte na determinação de suas vidas, proporcionando um aumento das
forças vitais, perfazendo uma vontade de potência superior, afirmativa da vida.
Enquanto que entre os sacerdotes, o que primava eram os ideais ascéticos, de
penitências, de inércia contemplativa, de falta de exercícios, entre o pecado e a culpa,
em suma, de uma vontade de potência redutora da vida.
Nietzsche realiza a eleição desses pares de opostos de morais a partir de um
paradigma histórico, a princípio ancorando-se no modelo grego antigo de nobreza, e
a seguir no exemplo da nobreza italiana renascentista. Por sua vez, os escravos
também não são tomados apenas num sentido simbólico, os tchandala da casta
indiana vem reafirmar o ponto de vista nietzschiano de que há um lugar próprio para
os enjeitados, os rebaixados. A escravidão, além de desejável, seria necessária ao
desenvolvimento da economia, tendo o escravo como o motor para a civilização
superior, onde os mais fracos suportariam os trabalhos mais pesados para que os
mais sensíveis pudessem desfrutar de seu ócio criativo. Ajudando, assim, a criar
homens superiores, bem no sentido do Übermanch descrito em Assim falava
Zaratustra, onde o homem é apenas uma ponte para o advento do além-do-homem.
Em relação ao Übermanch, o homem seria tão somente um macaco, no sentido
macaco se refira ao próprio homem.
“Toda elevação do tipo “homem” foi, até agora, obra de uma sociedade aristocrática,
e assim sempre será; em outras palavras, esta elevação foi obra de uma sociedade
hierárquica que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre
um homem e outro e que precisa de algum tipo de escravidão” ( NIETZSCHE, Além
de Bem e de Mal, 257).
Desse modo, podemos compreender que a escravidão em Nietzsche bem se coaduna
com a mesma no sentido aristotélico de uma posição necessária para a harmonia na
polis. Há também um sentido de necessidade da escravidão na reconstrução de uma
civilização Alemanha mais alta. Os estudiosos de Nietzsche nos incentivaram a ler os
comentários pró escravidão num sentido metafórico. Mas o fato é que não há
nenhuma ingenuidade histórica da parte de Nietzsche no que toca aos problemas dos
conflitos abolicionistas ocorrendo em sua época do outro lado do Atlântico. Em suas
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anotações em seus cadernos há uma passagem em que marca a posição de Harriet


Beecker Stowe ((1852), autora do livro de cunho abolicionista A Cabana do pai
Tomás, em que critica negativamente suas posições, acusando-a de mais uma
seduzida pelo cristianismo de Rousseau, na posição de sofredora, interessada na
causa dos pobres e dos trabalhadores. E, ainda, há uma revoltante passagem na
publicação The Dawn of day em que Nietzsche estabelece que negros são mais
resistentes à dor e portanto melhores escravos.
Nietzsche acreditava que novas formas de sofrimento e exploração eram necessárias
para tornar a civilização europeia novamente grande. Quando Nietzsche glorifica a
guerra, dizem alguns comentadores que ele está falando de uma luta “espiritual”, e da
supressão de tudo o que é fraco ou “ressentido” dentro de nós. Mas o fato é que, em
relação ao seu posicionamento ideológico face ao Nacional Socialismo, Nietzsche
estava em total desacordo com as ideologias políticas prevalentes e as preocupações
de sua época.
Contextualizando as reflexões de Nietzsche sobre a escravidão na segunda metade do
século XIX, eram mais do que uma metáfora para a falta de soberania individual ou
autodeterminação. Era um tema atual e urgente, repleto de controvérsias políticas e
ideológicas, notadamente sobre a ascensão do capitalismo e a chamada questão
social, mas também sobre raça, império e autoproclamada “missão civilizadora” do
Ocidente. Nietzsche enumera em alguns de seus fragmentos, os seus objetos de
análise, com nítido desdém: mulheres, escravos, trabalhadores, “os enfermos e os
corruptos”, deixando poucas dúvidas de que considera a emancipação desses grupos
um erro desastroso que vai agravar o “nivelamento” do homem europeu e a
decadência da cultura europeia contemporânea.

Não há nada em Nietzsche da compaixão cristã pelos pobres, ao revés, esse


sentimento igualitário é por ele criticado como caudatário da transmudação dos
valores empreendidos pelos povos judaico-cristãos. Esse sentimento de igualdade é
signo de decadência e criou ao longo das civilizações o que há de pior na formação
de uma sociedade fraca, sem valor. Este é o exemplo dado pela Revolução Francesa,
pelos anarquismos, socialismos e, principalmente, pela democracia. Este ponto
controverso é um nó na posição política de Nietzsche para nós, homens de uma
atualidade social-democratica, um assunto que merecerá uma maior atenção quando
tratarmos adiante do tema da “grande política”.
E, retornando ao tema do princípio do capítulo: os “pobres” de Deus – não deve ser
por sua condição de vulnerabilidade social, pastoral e teologicamente falando, que
esse caráter desse amor deva ser encarado como preferencial, mas sim unicamente
pela discricionaridade do amor de Deus haja elegido os pobres como seus amados e
queridos. Nietzsche, por sua vez, repisou em diversas passagens, que os nobres em
geral, tal qual os gregos, são os kalói kagathós, ou seja, os belos e bons, os adorados
de Deus. E que seja uma pena abominável aquela, relegada pela subversão da moral
pelos escravos, em que os nobres devam ser lançados são fogo do inferno, e jamais
ter acesso a qualquer forma de remissão. Pois esta é a leitura proposta por Nietzsche
para a pobreza, que nós, por analogia, aproximaremos as “viúvas” às mulheres da
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obra nietzschianas, objeto de escárnio e menosprezo; os “estrangeiros” aos judeus,


que receberam os mais diversos ataques das posições ideológicas do filósofo,
chegando-se a gerar a polêmica se seriam posturas meramente antijudaicas, ou se
estaria por trás já um gérmen de antissemitismo; e, por fim, aproximamos os “órfãos”
aos desgraçados da terra, os filhos da morte de Deus, vítimas do Niilismo ingente na
Europa moderna, e que chega até nós como os miseráveis de todo o tipo, sobretudo
aqueles que não têm mais direito à existência.

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