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“0 que acontece quando um dos teólogos mais proeminentes do mundo expõe

alguns dos textos mais proeminentes da Bíblia? Este livro.”


Marx DRISCOLL, pastor;
Mars Hill Church, Seattle; Presidente do Ministério de
Plantação de Igrejas Atos 29
“A clareza de Don Carson em comunicar a Escritura é um grande dom, e neste
livro ele o transmite a nós. Este professor pode pregar! Estas são mensagens-
modelos sobre passagens cruciais. São meditações deliciosas que instruem nossa
mente e alimentam nossa alma. Conteúdo bíblico - franco, vigoroso, solene e
consistente - isso é o que Carson nos dá sobre a cruz e a ressurreição de
Cristo. Leia, marque, aprenda e alimente seu espírito.”
MARK DEVER, pastor, Capitol Hill Baptist church,
Washington DC
“Isto é o Carson vintage - exegese primorosa e exposição envolvente,
teologicamente rica e, no aspecto devocional, calorosa, lúcida, perspicaz,
perscrutadora. A verdade de Deus resplandece! Don Carson nos mostra qual é a
finalidade da Bíblia; e suas palavras fazem-me querer pregar com grande paixão
a escandalosa cruz de Cristo.”
BILL KYNES, pastor, Cornerstone Evangelical Free Church,
Annandale, Virginia
PARA

Sumário
Prefácio
As Ironias da Cruz
O Centro de Toda a Bíblia
Sumário
Prefácio

Nada é mais central à Bíblia do que a morte e a


ressurreição de Jesus. A Bíblia toda gira em
torno de um fim de semana ocorrido em
Jerusalém há dois mil anos. As tentativas
de tornar a Bíblia um livro inteligível que não
dedicam ampla consideração para integrar a
crucificação e a ressurreição de Jesus
estão condenadas ao fracasso e, no melhor, são
exercícios na irrelevância. Os próprios
discípulos de Jesus não esperavam que ele fosse
crucificado e, certamente, não esperavam que
ressuscitasse. Entretanto, depois desses
acontecimentos, o pensamento e as atitudes
deles foram tão transformados, que puderam
reconhecer a evidente inevitabilidade do fato de
que Jesus morreria numa cruz e deixaria
para trás um sepulcro vazio. E tudo foi mudado
completamente na vida daqueles discípulos.
Embora a Bíblia insista muito na historicidade desses acontecimentos, ela não os
trata como meros fragmentos de informação original - e, admitamos, é
informação original bastante surpreendente - cujo significado somos livres para
determinar por nós mesmos. E tão importante saber o que esses acontecimentos
significam como é importante saber que aconteceram.
Este livro é uma tentativa modesta de recapitular não somente o que aconteceu,
mas também o seu significado - ou, em poucas palavras, uma tentativa de prover
uma explanação introdutória da cruz e da ressurreição. Faço isso expondo o que
as primeiras teste-
munhas da morte e da ressurreição de Jesus escreveram. As palavras dessas
testemunhas estão preservadas na Bíblia; e os capítulos deste livro são
exposições de cinco passagens da Bíblia que tratam dessas questões.
Através dos anos, tenho desfrutado de oportunidades de expor muitas partes da
Bíblia que proclamam a morte e a ressurreição de Jesus. Em dezembro de 2008,
ministrei estas cinco palestras numa conferência chamada “Resurgence”, em
Mars Hill Church, na cidade de Seattle. Sou grato a Mark Driscoll e ao pessoal
do Henry Center por reunir as palestras da conferência. Sou especialmente grato
a Andy Naselli pela revisão deste manuscrito que torna a forma impressa das
palestras um pouco mais útil do que o seriam em outra forma.
D. A. Carson Trinity Evangelical Divinity School
Logo a seguir, os soldados do governador, levando Jesus para o pretório, reuniram em torno dele toda a
coorte. Despojando-o das vestes, cobriram-no com um manto escarlate; tecendo uma coroa de espinhos,
puseram-lha na cabeça e, na mão direita, um caniço; e, ajoelhando-se diante dele, o escarneciam, dizendo:
Salve, rei dos judeus! E, cuspindo nele, tomaram o caniço e davam-lhe com ele na cabeça. Depois de o
terem escarnecido, despiram-lhe o manto e o vestiram com as suas próprias vestes. Em seguicLi, o
levaram para ser crucijicado.

Mateus 27.27_31

Capítulo 1
As Ironias da Cruz

Mateus 27.27-5la

e modo geral, ele foi um rei muito bom. Uniu as tribos divergentes, edificou uma
nação e estabeleceu uma dinastia. Sendo pessoalmente corajoso, ele também
construiu um
formidável sistema de defesa e deu segurança às fronteiras de seu
país. Demonstrou ser um administrador hábil e, em geral, governou com justiça.
Como se isso não fosse bastante, ele foi um exímio poeta e músico.
Entretanto, na meia-idade, ele seduziu uma mulher jovem que morava ao lado de
seu palácio. Para entendermos melhor quão grave foi esse mal, temos de
recordar que, na ocasião, o marido daquela mulher estava longe de casa, no
fronte militar, travando as batalhas do rei. Por conseqüência da estadia de
uma noite, a mulher ficou grávida e mandou uma mensagem ao rei. Ele era um
“consertador” e pensou que poderia consertar aquilo. Mandou uma mensageiro
ao fronte de combate, pedindo ao comandante das tropas que mandasse o
homem jovem de volta à capital, com uma mensagem importante para o rei. E
claro que o homem veio, mas, no desenrolar dos acontecimentos, ele não foi para
casa, a fim de dormir com a esposa. De alguma maneira, ele sentiu que estaria
sendo injusto com seus colegas que tinham ficado no fronte. O homem dormiu
no pátio real, pronto para retornar à batalha. E o rei Davi sabia que seria
descoberto. Por isso, mandou uma mensagem secreta aos oficiais comandantes
no fronte, uma mensagem levada pelas mãos do próprio homem, uma mensagem
que era a garantia de sua morte. Os oficiais deveriam arranjar um conflito no
qual todos da unidade receberiam um sinal secreto para recuar, exceto aquele
homem. O inevitável aconteceu: a unidade recuou, o homem foi deixado sozinho
no conflito e foi morto. Logo depois, o rei Davi se casou com a viúva. Ele
pensava que tinha resolvido o problema de seu pecado.
Deus enviou o profeta Natã para confrontar Davi. Embora fosse um profeta fiel,
Natã decidiu que seria melhor abordar o rei com cautela apropriada e, assim,
começou sua história. Em essência, ele disse: “Vossa majestade, deparei-me com
um caso difícil no país. Há dois agricultores que são vizinhos. Um deles é podre
de rico; o número de animais em seus rebanhos é incontável. O outro é
um agricultor de subsistência. Tem apenas uma cordeirinha; isso é todo o seu
rebanho. De fato, ele não tem mais a cordeirinha. Alguns visitantes chegaram à
casa do agricultor rico, que, em vez de mostrar a devida hospitalidade, matando
um dos animais de seus próprios rebanhos e preparando uma boa refeição, foi e
roubou a cordeirinha possuída pelo agricultor pobre. 0 que o senhor acha que
deve ser feito neste caso?”
Davi ficou furioso. Ele disse: “Tão certo como vive o SENHOR, o homem que fez
isso deve ser morto. E pela cordeirinha restituirá quatro vezes, porque fez tal
coisa e porque não se compadeceu” (2 Sm 12.5-6). Davi não tinha a menor idéia
de quão dolorosamente irônica era a sua sentença. É claro que Natã sabia, e o
escritor sabia, e Deus sabia, e os leitores sabem - mas Davi não pôde detectar
a profunda ironia de suas próprias palavras, até que Natã lhe disse: “Tu és o
homem” (v. 7).
Todos sabemos o que é ironia. A ironia expressa significado por utilizar palavras
que normalmente significam o oposto do que está sendo dito. Às vezes, a ironia
é intencional; o falante sabe que está usando uma ironia. Outras vezes, como
neste caso, Davi não
tinha indício de que suas palavras eram irônicas, até que seu juízo hipócrita foi
exposto. Ele pensou que suas palavras o estabeleciam como um juiz
intransigente que tomava decisões judiciais corretas e justas. Contudo, à luz de
sua vida secreta, ele apenas expôs a si mesmo como um hipócrita deplorável. O
verdadeiro significado de suas palavras, neste contexto mais amplo, é uma
condenação severa do homem que, por usar essas palavras, achava estar
mostrando que era um homem justo e um bom rei.
Há uma ironia que é perniciosa; há uma ironia que é bastante divertida. Mas
todos sabemos que a ironia tem o poder, especialmente na narrativa, de trazer
uma situação a um foco nítido. Muito freqüentemente, é a ironia na narrativa que
capacita os ouvintes e os leitores a perceberem o que está, de fato, acontecendo.
A ironia provê uma dimensão de profundidade e nitidez que, de outro
modo, estariam ausentes.
Dos escritores do Novo Testamento, os mais dados à ironia são Mateus e João.
Na passagem que agora consideramos, Mateus revela o que aconteceu quando
Jesus foi crucificado - mas ele o faz apresentando quatro grandes ironias que
mostram aos leitores atentos o que realmente estava se passando.
Permita-me recordar-lhe o contexto. A essa altura, Jesus havia estado perante os
olhos públicos por dois ou três anos - os anos de seu ministério público. No
entanto, agora ele se tornara inimigo das autoridades políticas e religiosas. Eles
tinham inveja da popularidade de Jesus, temiam seu poder político potencial
e suspeitavam de seus motivos. Eles se perguntavam se o número crescente dos
seguidores de Jesus poderia tornar-se em rebelião contra o superpoder dominante
da época, o poderoso Império Romano - pois só poderia haver um resultado num
conflito com Roma. Por isso, Jesus tinha de ser destruído. Eles conseguiram um
julgamento irregular, declararam Jesus culpado de traição e obtiveram a sanção
do governador romano para que Jesus fosse
executado por crucificação. Tudo isso, eles pensavam, era política e
religiosamente apropriado - visava ao melhor.
Neste texto (Mt 27.27), pegamos o relato imediatamente após o pronunciamento
da sentença. Naqueles dias, não havia para os prisioneiros uma longa demora no
corredor da morte. Uma vez que a pena capital era determinada, o prisioneiro era
levado e executado em poucas horas ou, no máximo, em poucos dias. No texto
que consideramos, vemos os soldados preparando Jesus para a
crucificação imediata. À medida que Mateus nos conta a história, podemos
refletir sobre quatro ironias profundas da cruz.
O HOMEM QUE É ZOMBADO

COMO rei É o Rei


(Mt 27.27-31)
Aparentemente, Jesus fora açoitado antes, como parte de seu interrogatório.
Logo depois de proferida a sentença de crucificação, ele foi açoitado novamente
(v. 26). Isso foi um procedimento bem padrão; era costumeiro açoitar
prisioneiros antes de levá-los à crucificação. Mas o que aconteceu de acordo
com o relato dos versículos 27 a 31 não foi um procedimento padrão. Parece
mais diversão de aquartelamento. Os soldados do governador se reúnem em
volta de Jesus, despojam-lhe as vestes e cobrem-no com algum tipo de manto
escarlate, fingindo que ele é um rei. Em seguida, tecem alguns cordões de
espinhos de videira, cujas pontas chegam a 15 ou 20 centímetros. Colocam isso
na cabeça de Jesus para constituir uma cruel coroa de espinhos. Põem um caniço
em suas mãos, fingindo ser um cetro. Prostrando-se alternadamen-te diante de
Jesus, em revência zombeteira, e espancando-o com crueldade brutal, eles
clamam: “Salve, rei dos judeus!” E completam a aclamação por cuspir na face de
Jesus e bater-lhe repetidas vezes com o cetro de motejo. Risadas escarnecedoras
e estriden-
tes mantêm o recinto animado até que os soldados se cansam de seu esporte.
Agora, eles vestem a Jesus com suas próprias vestes e o levam para ser
crucificado.
No entanto, Mateus sabe, e os leitores sabem, e Deus sabe que Jesus é o rei dos
judeus. Caso tenhamos esquecido o tema, Mateus o recorda duas vezes nos
versículos seguintes: o titulus, a acusação contra Jesus, estava pregado na cruz
acima da cabeça de Jesus: “ESTE é JESUS, O REI DOS JUDEUS” (Mt 27.37). Conforme o
versículo 42, os escarnecedores continuam zombando de Jesus como rei de
Israel. Ainda mais importante é destacar que Mateus havia ressaltado o tema em
todo o seu evangelho. O primeiro versículo do evangelho diz: “Livro da
genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (1.1). A genealogia
apresentada em seguida é interrompida, um tanto artificialmente, em três seções
de quatorze gerações, sendo que a seção central de quatorze gerações envolve os
anos em que a dinastia de Davi reinou em Jerusalém. Até o número quatorze é
um código que representa o nome “Davi”. Todas as promessas do
Antigo Testamento que contemplavam a vinda do rei davídico procedem de 2
Samuel 7, firmadas na vida de Davi, por volta do ano 1.000 a.C. Quase 300 anos
depois, o profeta Isaías prenunciou alguém que se assentaria no trono de seu pai
Davi, mas que também seria chamado “Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte,
Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6).
O capítulo inicial do evangelho de Mateus continua a falar sobre essa
antecipação do Antigo Testamento. No segundo capítulo, os magos perguntam:
“Onde está o recém-nascido Rei dos judeus?” (2.2). Quando Jesus começa seu
ministério público, fala constantemente a respeito do reino - sua natureza, seu
início, sua promessa e sua consumação. Em algumas das chamadas “parábolas
do reino”, as histórias contadas por Jesus o apresentam, às vezes, como o
próprio Rei. O mesmo tema é suscitado no julgamento diante de
Pilatos. Conforme lemos em Mateus 27.11, Pilatos, o governador, pergun-
tou: “És tu o rei dos judeus?” E Jesus respondeu-lhe: “Tu o dizes”. A resposta de
Jesus, ou seja, a forma de sua resposta, embora afirmativa, expressava uma
hesitação cordial, porque Jesus sabia muito bem que não era rei na maneira
como Pilatos temia. Seu reino não implicava ameaça militar para César. O
próprio Pilatos logo discerniu que, mesmo que Jesus afirmasse ser o rei dos
judeus, ele não constituía qualquer ameaça política imediata; e procurou soltá-lo.
A confissão está lá; apesar disso, Jesus foi condenado à pena capital por traição.
E, embora os soldados zombem de Jesus como o rei dos judeus, Mateus sabe,
evidentemente, e seus leitores sabem, e Deus sabe, que Jesus é o rei dos judeus.
Na verdade, considere atentamente e você perceberá dois níveis de ironia. A
zombaria dos soldados tencionava ser irônica. Quando eles exclamaram: “Salve,
rei dos judeus!”, o que pretendiam dizer era que Jesus não era o rei, e sim um
criminoso patético. Sem dúvida, os soldados acharam seu humor agradavelmente
irônico. Todavia, Mateus viu uma ironia mais profunda: de fato, embora os
soldados aviltassem a Jesus como um criminoso patético, as palavras que
eles usaram eram realmente a verdade, o oposto do que pretendiam dizer: Jesus é
o rei. Este é o principal ensino deste parágrafo: o homem que é zombado como
rei - é o rei (vv. 27-31).
Aqueles que conhecem bem sua Bíblia, sabem que Jesus é mais do que o rei dos
judeus: ele é o rei de tudo, é o senhor de tudo. Mateus deixou isso claro nos
versículos finais de seu evangelho. Jesus declarou que possui toda a autoridade
no céu e na terra (28.18); a sua autoridade não é menor do que a autoridade de
Deus. Ele é o rei do universo. É rei sobre os soldados que zombaram dele. É rei
sobre você e eu. Um dia, Paulo nos assegura, todo joelho se dobrará, e toda
língua confessará que Jesus é Senhor. O homem que é zombado como rei - é o
Rei.
No entanto, temos de examinar um pouco mais. Com que conceito de reinado
Jesus está agindo? No século I, ninguém entretinha
o conceito de monarquia constitucional, como a da atual Grã-Bretanha, na qual o
rei não tem quase nenhuma autoridade real, exceto a de persuasão moral. No
mundo antigo, os reis reinavam. Isso era o que eles faziam; era como eles agiam.
De fato, essa era a noção de reinado que prevalecia até épocas bem recentes.
Luís XIV não foi um monarca constitucional no sentido britânico atual. Então,
que tipo de rei Jesus era, segundo o pensamento de Mateus, se morreria numa
cruz? Era um rei fracassado?
Outra vez, Mateus já nos dera algum discernimento quanto à realidade do
reinado de Jesus. Devemos averiguar a interessante mudança descrita em Mateus
20.20-28. A mãe dos apóstolos Tiago e João se aproximou de Jesus, juntamente
com seus dois filhos, e pediu-lhe um favor. Perguntou-lhe Jesus: “Que queres?”
Ela respondeu: "Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um
à tua direita, e o outro à tua esquerda” (v. 21). Evidentemente, eles previram que
Jesus se assentaria como um rei no sentido normal, histórico e físico e faria de
seus apóstolos membros de seu gabinete; e esperavam que Tiago e João tivessem
os dois cargos principais - secretário de estado e secretário de defesa, talvez.
Jesus lhes replicou que eles não tinham, na realidade, a menor idéia do que es-
tavam pedindo. “Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber?”, ele
indagou, referindo-se, sem dúvida, ao sofrimento que estava por acontecer. Com
elevada superconfiança e grande ignorância, eles responderam: “Podemos” (v.
22). Você pode quase imaginar Jesus sorrindo em seu íntimo. Sim, em um
sentido, eles participariam de seu cálice de sofrimento: um dos dois irmãos,
Tiago, se tornaria o primeiro mártir apostólico, e outro morreria como um
exilado em Patmos. Além disso, não era papel de Jesus outorgar o direito
de assentar à sua direita ou à sua esquerda; o Pai tinha reservado para si mesmo
esse papel.
Quando os outros dez apóstolos ouviram o pedido de Tiago, João e sua mãe,
ficaram indignados - não por causa, é claro,
da arrogância e impertinência do pedido deles, e sim porque não fizeram os seus
pedidos antes deles. Por isso, Jesus chamou os doze e lhes deu um dos mais
importantes discernimentos sobre a natureza do reino. Ele disse: “Sabeis que os
governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade
sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande
entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será
vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (vv. 25-28). Essa declaração
profunda não deve ser entendida de modo errado. Jesus não estava dizendo
que não havia nenhum aspecto em que ele exercia autoridade. Não era isso que
Jesus estava dizendo. Nos versículos finais de seu evangelho, Mateus nos
lembra, com já vimos, que Jesus reivindica toda a autoridade no céu e na terra.
Pelo contrário, o que Jesus pretendia dizer era algo assim: os reis, presidentes e
governantes deste mundo caído exercem sua autoridade motivados por
um profundo senso de autopromoção, por um senso de quererem ser o número
um, por um profundo senso de autopreservação, até por um profundo senso de
direito. Por contraste, Jesus exerce sua autoridade de um modo que procura o
bem de seus súditos, e isso o leva, por fim, à cruz. Ele não veio para ser servido,
como se isso fosse um fim em si mesmo. Em sua missão soberana, ele veio
para servir - dar a sua vida em resgate por muitos. Aqueles que exercem alguma
autoridade, em qualquer nível, no reino de Cristo devem servir da mesma
maneira - não com exigências implícitas de autopromoção, confiança em seu
direito de exercer autoridade ou desejo de assentar-se à direita ou à esquerda de
Jesus, e sim com uma paixão por servir.
Não admiramos, portanto, que Pilatos tenha sido incapaz de reconhecer Jesus
como rei. Jesus afirmava ser rei, mas não tinha nenhuma das pretensões dos
monarcas deste mundo. Não é
surpreendente que nos três séculos seguintes os cristãos falariam, com profunda
ironia, de Jesus reinando da cruz.
Esta é a primeira ironia na apresentação de Mateus quanto à crucificação de
Jesus: o homem zombado como rei - é o rei.
O HOMEM QUE ESTÁ TOTALMENTE SEM PODER É PODEROSO
(Mt 27.32-40)
Não posso gastar tempo abordando todos os pequenos detalhes no texto de
Mateus. O que fica evidente é o fato de que Mateus oferece ampla evidência
para demonstrar quão fraco e sem poder Jesus estava. No mundo romano, a haste
principal da cruz, a haste vertical, era geralmente deixada no chão no lugar da
crucificação - perto de uma estrada ou encruzilhada pública, de modo que o
maior número possível de pessoas testemunhasse o tormento e aprendessem a
temer o poder romano. A haste horizontal da cruz era carregada pela vítima até
ao lugar da crucificação. Lá, a vítima era amarrada ou pregada a essa haste, que
era, então, levantada e suspendida a partir da haste vertical. Entretanto, a essa
altura Jesus estava tão fraco que não conseguiu nem carregar a travessa de
madeira em seu ombro até à crucificação. Por isso, os soldados exerceram seu
direito legal de recrutar um circunstante para cumprir essa tarefa. E Simão, de
Cirene, foi obrigado a fazer isso (v. 32). As vítimas eram crucificadas
completamente nuas. A cruz tinha o propósito de ser um instrumento
de vergonha e sofrimento. Então, os soldados lançaram sortes para ver quem
teria a posse das vestes de Jesus (v. 35). É difícil imaginarmos outra cena mais
bem idealizada a retratar a total incapacidade física de Jesus.
“E, assentados ali, [os soldados] o guardavam” (v. 36). Pouco tempo antes na
história do Império Romano, algumas vezes soldados crucificaram pessoas e, em
seguida, foram embora, deixando-as
a morrer. Em algumas instâncias conhecidas, os amigos da vítima tiraram-na da
cruz, e a vítima sobreviveu. Mas, nessa época da história romana, a política
imperial determinava que os soldados permanecessem no lugar de crucificação
até que a morte acontecesse. Isso é retratado no versículo 36: os soldados
ficaram guardando Jesus. Não havia esperança de livramento para Jesus,
nenhuma. Sofrendo sem medida, envergonhado intoleravelmente, traspassa-do
no corpo e no espírito, sem qualquer perspectiva de livramento, exceto a morte,
Jesus ficou pendurado, em vergonha, naquele cruz maldita, totalmente sem
poder.
Em seguida, ocorre a zombaria que mostra a relevância desta lista de evidências
que atestam a falta de poder e a fraqueza de Jesus. O texto do evangelho nos diz
que alguns transeuntes insultavam-no e diziam: “O tu que destróis o santuário e
em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Filho de Deus, e desce da
cruz!” (w. 39-40).
Se temos de entender por que Mateus relata essas palavras, devemos lembrar que
o tema da destruição do templo já havia sido introduzido. Antes, durante o
julgamento de Jesus, quando ele esteve diante do sumo sacerdote, as autoridades
ainda procuravam testemunhos convenientes que poderiam destruir Jesus.
Em Mateus 26.61, lemos que, por fim, duas pessoas se apresentaram e acusaram:
“Este disse: Posso destruir o santuário de Deus e ree-dificá-lo em três dias”. Essa
acusação era potencialmente bastante perigosa. Os romanos se preocupavam
com conflitos entre povos de religiões diferentes e, por conseqüência, tornaram
em ofensa capital a profanação de um templo, qualquer templo. Se as palavras
de Jesus quanto a destruir o templo de Deus fossem tomadas como uma intenção
séria de danificar um templo, as autoridades judaicas pegariam a Jesus. Contudo,
essa linha de pensamento se enfraquece em Mateus 26. De relatos
correspondentes, aprendemos que essas pessoas não podiam garantir a
veracidade de seu testemunho. No final,
Jesus foi condenado sob a acusação de traição e não sob a acusação de
profanação de um templo.
Mas, que divertimento as palavras de Jesus propiciaram aos zombadores! Ele
tinha falado sobre destruir o templo e reedifica--lo em três dias. Que tipo de
poder isso exigiria? Empregando tecnologia moderna, podemos construir uma
casa pré-fabricada em um dia ou dois; podemos construir um prédio em um ano
ou dois. Entretanto, historicamente, essa rapidez de construção é
um desenvolvimento recente. Nenhuma das grandes catedrais da Europa foi vista
completamente terminada por seu arquiteto original. Construir uma catedral
exigia mais tempo do que a duração da vida de uma pessoa. Os construtores do
tempo de Jesus enfrentavam limitações adicionais: não deviam usar martelos em
qualquer lugar próximo aos recintos do templo. Cada uma das grandes pedras
tinha de ser medida e cortada em outros lugares e, depois, trazidas por força de
animal ou homens, sem a ajuda de macacos hidráulicos. No entanto, lá estava
Jesus falando sobre destruir e reedificar o templo em três dias. Que tipo de poder
isso exigiria? Que tipo de poder sobrenatural isso demandaria? Agora, porém,
Jesus está pendurado, totalmente sem poder, numa cruz romana. A pungência da
zombaria gira em torno desse amargo contraste entre a afirmação de poder de
Jesus e a sua presente e evidente falta de poder. Uma vez mais, os zombadores
acham que estão se deleitando com uma excelente ironia. Jesus afirmou possuir
tanto poder, muitíssimo poder; mas agora testemunha a sua falta de poder.
Portanto, à luz da afirmação de Jesus, os zombadores disseram: “Salva-te a ti
mesmo” - o que, de fato, eles falaram ironicamente, pois estavam convencidos
de que Jesus estava desamparado e não podia fazer nada para ajudar a si mesmo.
As afirmações de Jesus foram, de algum modo, ridículas e escandalosas - e
mereciam ser zombadas.
No entanto, o apóstolo sabe, e os leitores do evangelho sabem, e Deus sabe que a
demonstração de poder de Jesus é revelada
precisamente na fraqueza da cruz. Por lermos o evangelho de João, em especial
o capítulo 2, sabemos o que Jesus realmente disse sobre este assunto: “Destruí
este santuário, e em três dias o reconstruirei” (Jo 2.19). De acordo com João, os
oponentes de Jesus não tinham indício do que ele quis dizer, nem os discípulos
tinham, naquele momento, idéia do que essa afirmação significava. Contudo,
depois que Jesus ressuscitou dos mortos, João nos diz, os discípulos
lembraram essas palavras de Jesus; creram nas Escrituras e nas palavras
que Jesus falara. Sabiam que Jesus estava falando sobre o seu corpo (vv. 20-22).
O ensino é que nos termos da antiga aliança o templo era o grande lugar de
encontro entre o Deus santo e o seu povo pecaminoso. Era o lugar de sacrifícios,
o lugar de expiação do pecado. Mas na cruz, onde Jesus por meio de seu
sacrifício pagou o preço de nosso pecado, ele mesmo se torna o grande lugar de
encontro entre um Deus santo e um povo pecador. Portanto, Jesus se torna o
templo, o lugar de encontro entre Deus e seu povo. E o fato não é que Jesus
em sua encarnação serve adequadamente como o templo de Deus. Esse é um
grande engano. Jesus disse: “Destruí este santuário, e em três dias o
reconstruirei”. E na morte de Jesus, em sua destruição, e em sua ressurreição,
três dias depois, que ele satisfaz nossa necessidade e nos reconcilia com Deus,
tornando-se o templo, o supremo lugar de encontro entre Deus e pecadores.
Usando a linguagem de Paulo, não pregamos simplesmente a Cristo; antes,
pregamos a Cristo crucificado.
Eis a glória, o paradoxo, a ironia. Aqui, há novamente dois níveis de ironia. Os
zombadores pensam que são espertos e divertidos enquanto zombam das
pretensões de Jesus e riem de sua fraqueza total, depois dele haver dito que
poderia destruir o templo e erguê-lo em três dias. Mas o apóstolo sabe, os
leitores sabem, e Deus sabe que há uma ironia mais profunda: é precisamente
por ficar na cruz em incapacidade desprezível que Jesus se estabelece como o
templo e vem à ressurreição com pleno poder. A única maneira pela qual
Jesus poderia salvar-se a si mesmo e salva o seu povo era por ficar pendurado
naquela cruz maldita, em total incapacidade. As palavras que os zombadores
empregaram para proferir insultos e escárnios condescendentes descrevem
realmente aquilo que produziria a salvação do Senhor.
O homem que estava totalmente sem poder - era e é poderoso!
Esse princípio já havia sido ventilado por Mateus. De acordo com Mateus 16,
em Cesaréia de Filipe, Jesus perguntou aos seus discípulos quem eles achavam
que ele era. Simão Pedro respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt
16.16). Não devemos interpretar essa confissão de Pedro muito generosamente.
Quando nós dizemos: Jesus é o Cristo, incluímos na confissão, inevitavelmente,
a essência da pessoa de Jesus, sua crucificação, sua ressurreição, pois vivemos
do outro lado desses grandes acontecimentos. Não podemos pensar em Jesus
sem pensarmos na sua cruz e na sua ressurreição. Todavia, quando Pedro
confessou a Jesus: “Tu és o Cristo”, ele não incluiu nada sobre a crucificação e a
ressurreição. Ao usar o termo “Cristo", Pedro tinha em mente um rei
davídico, vencedor, vitorioso, messiânico. A prova está nos versículos seguintes.
Quando, por conseqüência da confissão de Pedro, Jesus falou sobre seu
sofrimento, morte e ressurreição vindouros (v. 21), Pedro não tinha nenhuma
base pela qual podia entender o que Jesus dizia. Messias não morrem, eles
vencem! Não são crucificados, eles conquistam! Por isso, Pedro começou a
reprovar Jesus severamente: “Senhor; isso de modo algum te acontecerá” (v. 22).
O entendimento de Pedro quanto aos propósitos da vinda de Jesus como o
Messias era tão deficiente, que Pedro mereceu a famosa repreensão:
“Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas
das coisas de Deus, e sim das dos homens” (v. 23).
É nessa conjuntura que Jesus universaliza o princípio que está em jogo: “Se
alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.
Porquanto, quem quiser salvar a sua vida
perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa achá-la-á”. A expressão “tome
a sua cruz” não é uma figura pela qual nos referimos a algum incômodo trivial -
uma unha encravada, talvez, uma dor de dente ou um parente desagradável:
“Todos temos as nossas cruzes para levarmos”. Não, no século I esse tipo de
interpretação teria sido impossível. Naquele século, era culturalmente
impensável fazer brincadeiras com a crucificação, como o seria hoje fazê-lo
com Auschwitz. Tomar a sua cruz não significa prosseguir com coragem, apesar
do fato de que você perdeu o emprego ou a esposa. Significa que você está sob a
sentença de morte; está carregando a haste horizontal da cruz em sua ida para o
lugar de crucificação. Abandou toda esperança de vida neste mundo. Assim,
disse Jesus, somente assim, estamos prontos para segui-lo.
Esse não é o ensino cristão universal? É no morrer que vivemos. É no negar a
nós mesmos que nos encontramos. É no dar que recebemos. Paulo entendeu esse
princípio ao dizer, em 2 Coríntios 12, que tinha aprendido a regozijar-se quando
era fraco, pois, quando era fraco, ele experimentava o poder de Deus.
É claro que tudo isso foi exemplificado, suprema e primeiramente, no próprio
Senhor Jesus. Em vergonha, ignomínia e fraqueza, ele morreu em sofrimento e
agonia, mas ressuscitou em poder, para tornar-se o templo ressurreto de Deus, o
lugar de encontro vivo entre Deus e seu povo. Os zombadores riram em face de
sua percepção da ironia da situação: Jesus fez afirmações de poder
tão exorbitantes, declarando que poderia destruir o templo e reedificá-lo em três
dias, quando, de fato, estava morrendo nas agonias da mais intensa fraqueza.
Mas vemos uma ironia mais profunda: a própria fraqueza que os escarnecedores
acharam divertida era o caminho de Jesus ao poder, o caminho da ressurreição, o
caminho para servir como o poderoso templo do Deus vivo. Embora nossa morte
para o interesse próprio nunca funcione com o mesmo significado expiatório da
morte de Jesus, o mesmo princípio se aplica a nós: em morrer,
vivemos; em negar-nos, achamos a nós mesmos, quando tomamos a cruz e
seguimos a Jesus.
Esta é a segunda ironia da cruz conforme o relato de Mateus: o homem que está
totalmente sem poder - é poderoso.
O HOMEM QUE NÁO PODE SALVAR A SI MESMO SALVA OS
OUTROS
(Mt 27.41-42)
A zombaria continua nos versículos 41-42: “De igual modo [ou seja, com
escárnio semelhante], os principais sacerdotes, com os es-cribas e anciãos,
escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de
Israel! Desça da cruz, e creremos nele”.
O que pretendemos dizer hoje quando usamos o verbo salvar? Pergunte isso
aleatoriamente a alguém que passa por sua rua; e qual será a resposta? Se a
pessoa for preocupada com seu patrimônio financeiro, talvez responda: “Salvar é
poupar - o que você tem de fazer se deseja ter dinheiro guardado para uma
aposentadoria tranqüila”. Pergunte a um fã de futebol o que esse verbo significa,
e ele talvez dirá: “Salvar é evitar - é o que faz um goleiro: ele impede que a bola
vá para as redes e, assim, salva o gol”. Pergunte a técnicos de informática o que
esse verbo significa, e eles responderão com certeza que você deve salvar seus
dados por fazer backup deles freqüentemente, pois, do contrário, se o seu
computador tiver pane, você perderá todos os dados.
É claro que os escarnecedores, mencionados nos versículos 41 e 42, não queriam
dizer nenhuma dessas coisas. Aparentemente, eles estavam dizendo que Jesus
salvara muitas outras pessoas - ele curou enfermos, exorcizou demônios,
alimentou famintos e, em algumas ocasiões, ressuscitou mortos -, mas agora não
podia “salvar” a si mesmo da execução. Afinal de contas, ele não podia ser um
salvador. Assim, até a afirmação deles de que Jesus salvara outros é
proferida com ironia em um contexto que mina a sua capacidade. Esse pretenso
salvador é um desapontamento e um fracasso; e os zombadores se deleitam em
seu escárnio perspicaz.
No entanto, outra vez os zombadores falam melhor do que sabem. Mateus sabe,
e os leitores sabem, e Deus sabe que, em um sentido profundo, se Jesus tinha de
salvar realmente os outros, ele não podia salvar a si mesmo.
Devemos começar com a maneira como o próprio Mateus apresenta o verbo
salvar. Esse verbo aparece inicialmente em Mateus 1. Deus falou a José que o
bebê no ventre de sua noiva fora gerado pelo Espírito Santo. Em seguida, Deus
lhe instruiu: “Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele
salvará o seu povo dos pecados deles” (1.21). “Jesus” é a forma grega do nome
“Josué”, que, rusticamente, significa “YHWH salva”. Com esse sentido
mostrado com clareza no início de seu evangelho, Mateus dá aos seus
leitores discernimento a respeito da missão de Jesus, o Messias, ao narrar por
que Deus mesmo atribuiu esse nome: Jesus veio para salvar seu povo de seus
pecados.
Todo o evangelho tem de ser lido com esse anúncio inicial em mente. Se em
Mateus 2 o infante Jesus relembra a descida de Israel ao Egito, isso é parte de
sua auto-identificação com eles, pois ele veio para salvar seu povo dos pecados
deles. Se ele experimentou tentações às mãos do próprio Satanás e triunfou sobre
elas, isso aconteceu porque ele tinha de mostrar-se a si mesmo isento de pecado,
embora tentado, para que salvasse seu povo dos pecados deles. Se em Mateus 5 a
7, o que chamamos de Sermão do Monte, Jesus nos dá instruções inigualáveis e
excelentemente entretecidas sobre como é a vida no reino de Deus e como essas
instruções cumprem o que o Antigo Testamento antecipava, isso acontece, em
parte, porque a transformação de vidas de seres humanos pecadores é uma parte
e parcela da missão de Jesus: ele veio para salvar seu povo dos pecados
deles, tanto da prática como da culpa do pecado. Se nos capítulos 8 e 9,
Mateus relata uma série de milagres de cura e poder, carregados de símbolos,
isso acontece porque a reversão da enfermidade e a destruição dos poderes
demoníacos são componentes inevitáveis da obra de Jesus em salvar o seu povo
dos pecados deles. Essa é a razão por que Mateus 8.17 cita Isaías 53.4: “Ele
mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou com as nossas doenças” - pois
seu nome é Jesus, YHWH salva, e veio para salvar o seu povo dos pecados deles. Se
Mateus 10 relata uma missão de treinamento, isso é uma parte da preparação
para a expansão do ministério terreno de Jesus no futuro, quando as boas-novas
do evangelho, o evangelho do reino, será pregado em todo o mundo, porque
Jesus veio para salvar seu povo dos pecados deles. Seguindo esse padrão,
poderíamos ler cada capítulo do evangelho de Mateus e aprender novamente a
mesma lição: Jesus veio para salvar seu povo dos pecados deles.
Mateus sabe isso, os leitores sabem isso, e Deus sabe isso. Sabem que Jesus
ficou pendurado naquela cruz detestável porque viera para salvar seu povo dos
pecados deles. Até as palavras de instituição na última ceia nos preparam para
entender o significado do sangue de Jesus derramado na cruz: “Isto é o meu
sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para
remissão de pecados” (Mt 26.28). Na linguagem do apóstolo Pedro, Jesus
morreu, o justo pelos injustos, para trazer-nos a Deus. Na linguagem do próprio
Jesus, ele veio para dar sua vida em resgate por muitos.
Quando eu era menino, tinha uma imaginação bastante perversa, muito mais
perversa, suponho eu, do que tenho agora. Eu gostava de ler uma história, parar
em algum ponto crucial da narrativa e imaginar como o enredo se desenvolveria
se alguns pontos determinantes fossem mudados. Minha história favorita para
esse tipo de exercício duvidoso era o relato da história bíblica da crucificação de
Jesus. Os zombadores gritam com ironia e sarcasmo: “Salvou os outros, a si
mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele”. Com
os olhos de minha mente, eu
podia ver Jesus reunindo suas forças, descendo repentinamente da cruz, curado,
e exigindo roupas.
O que aconteceria? Como a narrativa se desenvolveria?
Eles creriam em Jesus?
É claro que, em um nível, eles creriam. Isso seria, com certeza, uma
manifestação notável e convincente de poder; e os zombadores mudariam de
atitude imediatamente. No entanto, no pleno sentido cristão, eles creriam em
Jesus? É claro que não. Crer em Jesus no sentido cristão implica não menos do
que crer nele totalmente como aquele que levou nossos pecados em seu corpo,
na cruz, como aquele cuja vida, morte e ressurreição, oferecidas em nosso lugar,
nos reconciliaram com Deus. Se Jesus tivesse descido da cruz, os zombadores e
os outros espectadores não poderiam ter crido em Jesus nesse sentido, porque ele
não teria se oferecido em sacrifício por nós. Logo, não haveria nada em que crer,
exceto nossa justiça própria, fútil e vazia.
Repentinamente, as palavras dos zombadores assumem um novo peso de
significado. “Salvou os outros”, disseram eles, “a si mesmo não pode salvar-se”.
A profunda ironia é que, de uma maneira que eles não entendiam, estavam
falando a verdade. Se Jesus tivesse salvado a si mesmo, não poderia salvar os
outros. A única maneira pela qual ele poderia salvar os outros era precisamente
por não salvar a si mesmo. Na ironia que está por trás da ironia que
os zombadores tencionaram, eles falaram a verdade que eles mesmos não
podiam ver. O homem que não pode salvar a si mesmo - salva os outros.
Uma das razões por que eles eram tão cegos é que pensavam em termos de
restrições meramente físicas. Quando disseram: “Não pode salvar-se”, queriam
dizer que os pregos seguravam Jesus na cruz, os soldados impediam qualquer
possibilidade de fuga, a fraqueza e debilidade de Jesus garantiam a sua morte.
Para eles, as palavras “não pode salvar-se” expressavam uma impossibilidade
física. Mas aqueles que sabem quem é Jesus estão plenamente côns-cios de que
os pregos e os soldados não podiam obstruir o caminho de Emanuel. A verdade
do assunto é que Jesus não podia salvar-se, não por causa de qualquer restrição
física, e sim por causa de um imperativo moral. Ele viera para fazer a vontade de
seu Pai e não seria impedido de fazê-la. Aquele que clamou em agonia no jardim
de Getsêmani, “Não seja como eu quero... faça-se a tua vontade” estava sob tão
grande imperativo moral, da parte de seu Pai celestial, que a desobediência era
impensável. Não foram os pregos que mantiveram Jesus pendurado naquela cruz
detestável; foi a sua resolução incondicional, motivada por amor ao seu Pai, de
fazer a vontade do Pai - e, nesse mesmo espírito, foi o amor de Jesus por
pecadores como eu. Ele realmente não podia salvar a si mesmo.
Talvez parte de nossa lentidão em aceitar esta verdade está na maneira como a
noção de imperativo moral tem se dissipado em grande parte do pensamento
ocidental. Você assistiu ao filme Titanic que foi exibido alguns anos atrás? O
grande navio estava cheio das pessoas mais ricas do mundo. E, de acordo com o
filme, enquanto o navio afundava, os homens ricos começaram a brigar pelos
poucos e inadequados botes salva-vidas, empurrando para o lado as mulheres e
as crianças, em seu desejo desesperado de viver. Todavia, os marinheiros
pegaram revólveres e começaram a atirar para o alto, gritando: “Para trás! Para
trás! Mulheres e crianças primeiro!” Na história real, nada disso aconteceu. O
testemunho universal dos que sobreviveram ao desastre é que os homens ficaram
para trás e insistiram em que as mulheres e as crianças tomassem os botes.
John Jacob Astor, à época o homem mais rico do mundo, o Bill Gates de 1912,
estava lá. Ele pegou à força sua esposa, empurrou-a para o bote e ficou para trás.
Alguém insistiu com ele a que também viesse para o bote. Ele se recusou: os
botes eram poucos e tinham de ser ocupados primeiramente por mulheres e
crianças. Ele rejeitou a insistência e morreu afogado. O filantropo Benjamin
Guggenheim
estava lá, viajando com sua amante. Contudo, quando percebeu que
provavelmente não sobreviveria, disse a um de seus criados: “Diga à minha
esposa que Benjamim Guggenheim conhece o seu dever” -permaneceu no navio
e morreu no naufrágio. Não há ao menos um relato de um homem rico tomando
o lugar de uma mulher ou uma criança na luta por sobrevivência.
Quando o filme foi resenhado pelo New York Times, o autor da resenha
perguntou por que o produtor e o diretor do filme haviam distorcido a história de
modo tão flagrante nesse aspecto. A cena que eles retrataram teria sido
improvável desde o início. Marinheiros britânicos usando revólveres? A maioria
dos policiais britânicos não portavam revólveres; e os marinheiros britânicos
certamente não os portavam. Então, por que essa distorção intencional da
história? Em seguida, o escritor da resenha ofereceu uma resposta à sua
própria pergunta: se o produtor e o diretor tivessem mostrado a verdade,
ele disse, ninguém teria acreditado neles.
Raramente tenho ouvido uma acusação mais condenatória da cultura ocidental,
em especial da cultura anglo-saxônica, no último século. Um século atrás, ainda
permanecia em nossa cultura tanto resquício da virtude cristã da auto-renúncia
por amor aos outros e do imperativo moral que busca ao custo de si mesmo o
bem dos outros, que cristãos e não-cristãos igualmente consideravam
uma atitude nobre o escolher a morte por causa de outros. Um século depois,
essa atitude é julgada tão inacreditável que a história tem de ser distorcida.
Chegamos a uma época em que um imperativo moral íntimo e poderoso é difícil
de ser entendido. Por isso, não ficamos surpresos com o fato de que o imperativo
moral sob o qual Jesus agiu tem de ser explicado e justificado.
Além disso, hoje os cristãos entendem que o autêntico cristianismo bíblico nunca
é meramente um questão de regras e regulamentos, de liturgia pública e de
moralidade privada.
O cristianismo bíblico resulta em homens e mulheres transformados - homens e
mulheres que, por causa do poder do Espírito de Deus, desfrutam de naturezas
regeneradas. Queremos agradar a Deus, queremos ser santos, queremos confessar
que Jesus é Senhor. Em resumo, por causa da graça garantida por Cristo na cruz,
nós mesmos experimentamos um imperativo moral transformador: aprendemos a
temer e a odiar os pecados que amávamos antes e anelamos pela obediência e
santidade que desprezávamos antes. Deus nos ajuda, pois somos
deploravelmente incoerentes em tudo isso. Mas já provamos o suficiente dos
poderes do mundo vindouro para saber o que significa em nossa vida um
imperativo moral transformador e ansiamos por sua perfeição no triunfo final de
Cristo.
Isso é a razão por que nós, cristãos, nos regozijamos nesta ironia dupla: o
homem que não pode salvar a si mesmo - salva os outros.
O HOMEM QUE CLAMA EM DESESPERO
CONFIA EM DEUS
(Mt27.43-51a)
Ainda escarnecendo, os principais sacerdotes, mestres da lei e anciãos clamaram:
“Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque
disse: Sou Filho de Deus” (v. 43). Outra vez, as palavras deles tinham o
propósito de transmitir humor irônico e sarcástico. Quando disseram: “Confiou
em Deus”, o que realmente queriam dizer era que a confiança de Jesus não era
genuína nem válida, porque ele fora abandonado por Deus. Se tal
confiança fosse verdadeira, por que ele estava pendurado naquele instrumento de
tortura ignominioso?
Os que haviam sido crucificados juntamente com Jesus se uniram no abuso (v.
44). De fato, numa primeira leitura, o clamor de desolação de Jesus quase parece
confirmar o ceticismo severo
quanto à sua confiança em Deus: “Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer:
Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (v. 46). Alguns comentadores
contemporâneos insistem que essas palavras demonstram que, nessa altura, Jesus
abandou realmente sua confiança em Deus. A aplicação pastoral apropriada, eles
concluem, é que, se Jesus fraquejou quando submetido à pressão intensa, não é
surpreendente que nós também fraquejemos algumas vezes. Não devemos ser
severos demais com nós mesmos, eles dizem, se perdermos nossa confiança em
Deus, se abandonarmos a confiança em Deus, pois até Jesus perdeu a confiança
em seu Pai celestial.
No entanto, essa maneira de entender a passagem - nós a chamaremos de ponto
de vista da "autopiedade de Jesus” - não é coerente com o contexto.
Primeiramente, não é coerente com o fato de que em todo esse cenário, como
vimos, enquanto os zombadores acham que estão rindo de Jesus com zombaria
inteligente e divertida, há sempre uma ironia mais profunda. Portanto, nesta
passagem, Mateus sabe, o leitor sabe, e Deus sabe que Jesus confia realmente em
Deus. A profunda ironia do versículo 43 é que os zombadores, como sempre,
estão falando melhor do que sabem: Jesus confia realmente em seu Pai celestial.
Isso significa que seu clamor de desolação não deve ser entendido como
evidência de que ele não confia em seu Pai celestial.
Em segundo, o clamor de desolação é, com certeza, uma citação de um salmo
davídico - Salmos 22.1. Contudo, esse salmo é rico de expressões de confiança
em Deus. Se Davi pôde proferir esse clamor de angústia enquanto demonstrava
sua firme confiança em Deus, por que deve ser considerado impensável que o
grande Filho de Davi não deveria proferir o mesmo clamor, enquanto exercia a
mesma confiança?
Em terceiro, Jesus acabara de vir da agonia do Getsêmani. Apesar de sua
imensurável repugnância da perspectiva da cruz, ele orou: “Meu Pai, se não é
possível passar de mim este cálice sem que eu o
beba, faça-se a tua vontade” (Mt 26.42). Em outras palavras, não há a menor
evidência de que Jesus foi repentinamente surpreendido pela cruz. Ele sabia, em
todo o tempo, que essa era a vontade de seu Pai e expressou sua determinação de
fazer a vontade do Pai.
Em quarto, Jesus já dera evidência de entender que sua morte aconteceria em
favor de outros, um resgate por pecadores, um pagamento que produziria a
remissão dos pecados, o derramamento de seu sangue - ou seja, um sacrifício de
sangue - que selaria a nova aliança, um sacrifício pascal em que o cordeiro
morreria; e por causa dessa substituição o povo de Deus não mais morreria.
Essas categorias já estavam estabelecidas em Mateus. O clamor de desolação
de Jesus tem de ser interpretado nesse contexto, e não no contexto da psicologia
popular moderna que está mais afinada com o ponto de vista da “autopiedade de
Jesus”.
Em quinto, a narrativa descreve cuidadosamente como as trevas encheram a
terra, e foram essas trevas que precipitaram o clamor angustiado de Jesus. À luz
de tudo que havia sido descrito até então, essas trevas só podem sinalizar a
ausência de Deus, a carranca judicial do Pai - ainda que todo esse sacrifício fosse
parte do indescritivelmente maravilhoso plano de Deus -, quando o fardo e
a culpa do pecado esmagam a Jesus, que sofre sozinho a penalidade. Ficamos
extasiados, em quietude, ante o mistério da trindade, quando o amor inigualável
do Deus trino é demonstrado no sacrifício da cruz, na morte vicária e penal do
eterno e encarnado Filho de Deus - Emanuel, Deus conosco.
Em sexto, no momento em que Jesus rende o seu espírito (v. 50), Mateus relatou,
“Eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de alto a baixo” (v. 51a).
Isso não é mero relato de uma destruição interessante. A destruição do véu é uma
afirmação teológica. Até essa altura, o véu sinalizava que somente o sumo
sacerdote podia entrar na presença do Deus santo, somente uma vez por ano, no
Dia da Expiação - e, mesmo nessa ocasião, o sumo sacerdote,
quando adentrava o véu, tinha de levar consigo sangue de novilho e de bode, os
animais que haviam sido imolados como mortes vicárias que afastavam a ira de
Deus e expiavam os pecados do sacerdote e do povo, conforme as estipulações
da antiga aliança. Entretanto, com o rasgar-se do véu do templo, o caminho à
presença de Deus é aberto a todos, pois o sangue derramado de Jesus Cristo fez
pagamento final e perfeito pelo pecado. Não precisamos mais da mediação de
animais e de sacerdotes; não precisamos mais de rituais repetidos. A ira de Deus
foi finalmente e para sempre afastada do povo da nova aliança. O rasgar-se do
véu clama em exultante testemunho do sucesso da obra da cruz de Cristo. Isso
significa que a ira de Deus foi removida, e o clamor de desolação de Cristo tem
de ser interpretado como a medida da agonia de Jesus, quando suportou todo o
fardo da condenação divina da qual agora estamos livres.
Em sétimo, exatamente da mesma maneira, a miraculosa ressurreição
mencionada nos versículos 51 a 53 tem de ser entendida como o início da morte
da morte, o livramento do pecado e de todas as suas conseqüências.
Portanto, esta é a quarta ironia: o homem que clama em desespero - confia em
Deus.
Um dos grandes hinógrafos ingleses foi William Cowper. Ele era um brilhante
erudito que escreveu excelentes ensaios críticos para os alunos de Oxford e
Cambridge; mas, em sua obra distintamente cristã, ele se uniu ao seu amigo e
pastor John Newton para compor e publicar hinos de grande poder e
profundidade. Todavia, as pessoas esquecem muitas vezes que Cowper lutou,
durante sua vida, com profunda depressão clínica. Ele foi internado quatro vezes,
por longos períodos, em um asilo de loucos. Toda vez que recebia alta, ele era
ajudado por uma amável senhora cristã da igreja em que Newton servia como
pastor. Cerca de cem anos depois da morte de Cowper, a grande poetisa
Elizabeth Barrett Browning escreveu um poema de três páginas intitulado
“Cowper s Grave”. Nesse poema,
ela descreveu a extraordinária influência da erudição, hinódia e devoção pessoal
de Cowper. Depois, ela começou a aludir às horríveis noites sombrias da alma de
Cowper. E, referindo-se poderosamente ao clamor de desolação de Jesus, ela
escreveu:
Sim, uma vez o clamor órfão de Emanuel este mundo abalou, Um clamor
singular, sem eco: “Deus meu, abandonado estou!” Procedeu dos lábios do Santo
em meio à sua perdida criação, Para que nenhum dos perdidos use tais palavras
de desolação.
Você percebe o que a poetisa estava dizendo? Jesus proferiu este clamor
agonizante: “Deus meus, abandonado estou!”, para que, por toda a eternidade,
William Cowper não tivesse de proferi-lo. Em suas depressões, Cowper se sentia
completamente abandonado, mas o clamor de Cristo assegura que, por toda a
eternidade, William Cowper nunca proferiria esse mesmo clamor. Jesus clamou:
“Deus meus, abandonado estou!” para que, por toda a eternidade, Don Carson
não tenha de fazê-lo. Ouça as ironias da cruz:
1) O homem que é zombado como rei - é rei.
2) O homem que está totalmente sem poder - é poderoso.
3) O homem que não pode salvar a si mesmo - salva os outros.
4) O homem que clama em desespero - confia em Deus.
Naquele dia maldito, os soldados zombavam dele,
Risadas estridentes em uma diversão de soldados,
“Salve o rei!”, zombavam, enquanto cuspiam nele,
Pancadas brutais nesse dia de grande pesar.
Embora a coroa fosse de espinhos, ele nascera rei -Esplendor santo banhado em
perda de sangue -Todos os soldados cegos para este tema espantoso:
Jesus reinando de uma cruz amaldiçoada.
Fraqueza terrível macula o Deus-homem espancado, Muito debilitado agora para
levantar a trave.
Os soldados despem-no e fixam os pregos,
Vêem-no pendurado no madeiro cruel.
O templo de Deus em ruínas! Ele Foi destruído! Restos fúnebres são postos no
sepulcro e na rocha. Mas o templo ressurge no plano sábio de Deus: Nosso
grande templo é o Filho de Deus.
"Eis aquele que disse se preocupa com os outros, Aquele que disse ter vindo para
salvar o perdido. Como podemos crer que ele salva os outros,
Quando não pode descer da cruz sangrenta?
Salve-se a si mesmo! Desça da cruz agora!” -Zombaria selvagem na desgraça do
rei.
Mas ficar pendurado é precisamente como Cristo salva os outros, como Rei da
graça.
Envolto em trevas, totalmente rejeitado,
Clamando: “Por que me abandonaste?”
Jesus suporta a ira de Deus sozinho e abatido -Derrama as lágrimas mais
amargas em meu lugar.
Os zombadores dizem: “Ele perdeu sua confiança! Foi vencido pela hipocrisia!”
Mas, com resolução de fé, Jesus sabe que deve Fazer a vontade de Deus e beber
a morte por mim.
Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus
mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem; porque não há distinção, pois
todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a
redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé,
para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o
justificador daquele que tem fé em Jesus.

Romanos 3-21-26

Capítulo 2
O Centro de Toda a Bíblia

Romanos 3.21-26

Iá algumas partes da Bíblia que são “livres” no


sentido de que não são muito amarradas, nem
muito condensadas. Fluem facilmente, e você
pode seguir com rapidez a linha de pensamento.
São freqüentemente narrativas. Há outras
partes que são rigidamente argumentadas; são
difíceis de entendermos e podem ofuscar nossos
olhos quando as lemos. Encontramos ali tantas
palavras teológicas que, se não conhecemos
extremamente bem a passagem, lemos as
palavras, mas não a seguimos. É tanta coisa dita
em tão pouco espaço. Temos de desembaraçar
essas passagens frase por frase, se desejamos
obter mais do que impressões vagas. Romanos
3.21-26 é uma dessas passagens.
Depois de ler textos como esse, o que você tem a fazer é aquietar-se e
desembaraçá-lo. Depois de haver feito isso cuidadosamente, leia-o outra vez - e
perceberá imediatamente como todas as suas partes se harmonizam. Então, se
você já leu Romanos 3.21-26 novamente e ainda sente que não assimilou o seu
fluxo de pensamento, espere um pouco. No final deste capítulo, talvez você
possa ver como as coisas que Deus afirmou nesta passagem por meio do
apóstolo Paulo se mantêm juntas. Talvez você também perceba por que Mar-
tinho Lutero a chamou de “o principal ensino e o próprio centro da Epístola aos
Romanos e de toda a Bíblia”.1

ONDE A PASSAGEM ESTÁ EM ROMANOS


A passagem precisa se vista em harmonia com a estrutura geral de Romanos.
Este parágrafo está localizado logo depois do grande bloco de ensino que vai
desde Romanos 1.18 a 3.20. O objetivo central deste bloco de ensino é provar,
com bastante franqueza, que todos estão condenados. A seção começa em
Romanos 1.18: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça”. Em seguida, Paulo
delineia a evidência a respeito de como suprimimos a verdade. Ele argumenta
que negamos os sinais do eterno poder de Deus que se acham na própria criação.
Recusamos reconhecê-lo como Deus, abandonamos completamente
qualquer senso de dependência e gratidão, não nos interessamos pelo
que glorifica a Deus e terminamos corrompendo nossos processos
de pensamento. Como Paulo diz: “Antes, se tornaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21). Por fim,
distorcemos até a nossa sexualidade, nossa masculinidade e nossa feminilidade,
andando tranquilamente em direção à infidelidade e à perversão. Tanto judeus
como gentios, insiste Paulo, estão sob a bem merecida maldição de Deus. Os
judeus não têm vivido de acordo com o padrão da grande revelação que agora
chamamos de Antigo Testamento (o cânon hebraico). E os gentios não têm
vivido de acordo com o que realmente sabem, quer esse conhecimento provenha
de sua própria constituição como seres humanos (afinal de contas, todos nós
fomos criados à imagem de Deus), quer provenha de estruturas morais
impostas pela sociedade. Em resumo: nossa consciência é tão forte que
nos condena, não importando a revelação que tenhamos recebido -ou da Bíblia,
ou da natureza, ou de nossa própria constituição como seres humanos; não
vivemos em harmonia com o que realmente sabemos. Estamos sob a ira justa de
Deus.
O argumento de Paulo em Romanos 1.18-3.20 se choca poderosamente com a
nossa cultura. Termina em 3.9-18, com uma lista de citações do Antigo
Testamento designada a provar um argumento: todos os seres humanos são
pecadores. É uma passagem terrível e se refere a uma das verdades mais severas
a comunicarmos hoje:
Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se
extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. (SI 14.1-3; cf.
53.1-3; Ec 7.20)

A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano. (SI 5.9)

Veneno de víbora está nos seus lábios. (SI 140.3)

A boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura.

(SI 10.7)

São os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria;
desconheceram o caminho da paz. (Is 59.7-8)

Não há temor de Deus diante de seus olhos. (SI 36.1)

Quando faço missões entre os universitários, estou em geral falando com


iletrados bíblicos. A verdade mais difícil de comunicar-lhes não é a existência de
Deus, a Trindade, a deidade de Cristo, a expiação vicária ou a ressurreição de
Jesus. E, ainda que eles achem que essas noções sejam um tanto absurdas,
eles provavelmente reagem dizendo: “Oh! é isso em que os cristãos crêem!”
Podem ver certa coerência nessas noções. Não, a verdade mais severa a
comunicarmos para esta geração é o que a Bíblia diz sobre o pecado.
Pecado é geralmente uma palavra que causa risadinhas sarcásticas: você a
pronuncia, e todos riem. Não há vergonha
vinculada a ela. É tão difícil comunicar quão ofensivo o pecado é para Deus.
Quando falo sobre o pecado, estou me intrometendo. Não estou falando sobre
um grupo de idéias externas em que as pessoas podem crer ou não crer. Estou
falando sobre algo que pessoas sentem que devem repudiar. Há tanto em nossa
cultura que nos ensina que nós definimos nossos próprios pecados, individual ou
socialmente (por exemplo, pertencemos a determinada comunidade que
estabeleceu sua própria herança de coisas certas e erradas). Alguém vir e dizer-
nos: “Isto é certo” ou: “Isto é errado” parece manipulação procedente de fora da
comunidade, e as pessoas acham que essa atitude deixa de reconhecer as
origens sociais de todas as construções do bem e do mal. Às vezes, tais pessoas
se mostram tão indignadas com essa noção de pecado, que tenho de gastar muito
tempo falando sobre ela!
Vivemos numa época em que a única coisa errada é dizermos que o outro está
errado. Um dos impactos da epistemologia pós-moderna é que todos nós temos
nossos pontos de vista independentes e vemos as coisas com base na perspectiva
de nossas próprias pequenas comunidades interpretativas. O que é pecado para
um grupo não o é para outro grupo. No entanto, a Bíblia não somente insiste em
que existe tal coisa como o pecado, ela também insiste em que o âmago da
natureza ofensiva do pecado é o seu terrível ódio para com Deus - como o
pecado ofende a Deus. Portanto, Romanos 1.18 começa não por analisar o
pecado com base numa perspectiva social, e sim por considerar a resposta
de Deus ao pecado: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça”. Depois, o capítulo 2
nos mostra que a religião, por si mesma, não nos ajuda. E o capítulo 3 conclui
que judeus e gentios estão, igualmente, sob a ira de Deus. Tudo isso atinge o
clímax na lista de citações que acabei de mencionar - Romanos 3.9-18.
Embora essa verdade não seja facilmente admitida em nossa cultura, não
posso enfatizar demais que, se essa posição não for entendida, o texto que agora
consideramos, Romanos 3.21-26, fará pouco sentido, porque não assimilaremos
a natureza do problema que está sendo abordado.
Alguns de nós tem um conceito do evangelho que faz de Jesus alguém
semelhante a um mecânico: ele é um homem excelente, é muito, muito, muito
excelente; e, quando você quebra, ele vem e conserta você. Contudo, o que
Paulo retrata nesta passagem é que a natureza de nossa corrupção gira em
torno, primeira e principalmente, de como somos ofensivos a Deus. É a ira de
Deus que se revelada do céu. Paulo não está negando que existem muitos tipos
de parâmetros sociais para o pecado; não está ignorando o rude fato de que os
pecadores podem ser vítimas do pecado. Os perpetradores têm sido
freqüentemente os abusados. O pecado é algo social. Cometemos pecado e
afetamos os outros. Por outro lado, se pensamos em nós mesmos somente como
vítimas, então, precisamos apenas de um médico ou de um restaurador. Se todo o
dano que causamos é exclusivamente horizontal, a nossa maior necessidade é
uma transformação social. É claro que a Bíblia pode apresentar a Deus e a sua
salvação em conformidade com essas categorias. Todavia, na Bíblia a categoria
mais fundamental à qual todos os escritores bíblicos recorrem a fim de mostrar a
natureza do problema é a nossa natureza ofensiva diante de Deus. Por
conseguinte, o que necessitamos, primeira e principalmente, é sermos salvos -
para que esta situação mude -, e que nos seja provido o meio de
sermos reconciliados com Deus.
Como regra, a menos que as pessoas concordem quanto à natureza do problema,
não podem concordar sobre o que é a salvação. A menos que concordemos sobre
do que estamos sendo salvos, não podemos concordar sobre o que é a salvação.
Por exemplo, se decidimos que o problema fundamental do ser humano
é apenas o lugar em que vivemos, nosso senso de solidão no universo, nosso
senso de inadequação ou nossos patéticos níveis de auto-estima, moldaremos o
evangelho para satisfazer essas necessidades percebidas. “Você não compreende
que o evangelho lhe dará o senso de auto-importância de que você precisa? Isso
resolverá o problema da auto-estima. Você não reconhece que o
problema fundamental do homem é injustiça econômica? As boas-novas são que
Deus é a favor da justiça. Pregue este evangelho, e nossa cultura será
transformada”. Aventuro-me a dizer que a Bíblia não ousa abordar questões a
respeito de como devemos pensar sobre nós mesmos - questões que afetam nossa
auto-estima - e que ela se preocupa com a justiça. Contudo, em face disso, Paulo
estava convencido de que o problema fundamental é a nossa rebelião contra
Deus, nossa fascinação por idolatria e nossa grotesca rejeição de Deus.
Alguns talvez repliquem: “ Você nunca ouviu falar de organizações maravilhosas
como ‘Médicos sem Fronteiras’? Não crê na noção da graça comum? Fazemos
tanto bem no mundo”. Paulo não nega qualquer dessas coisas. Cornélio, antes de
sua conversão, era considerado um homem bom em termos relativos.
No entanto, Paulo está falando no sentido absoluto de satisfazer aos padrões de
Deus. E o fato interessante nessa longa lista de citações é que todas procedem do
Antigo Testamento. Paulo cita a Bíblia para ressaltar que isso é o que Deus diz a
respeito da situação do homem.
Mesmo quando estamos fazendo o bem - o que quer que façamos -, esse bem é
feito, costumeiramente, de modo independente de Deus, porque seremos nosso
próprio deus. Estamos no centro do universo. Por isso, acabamos negando a
Deus, para que possamos cantar como Frank Sinatra: “I did it my way” [Eu fiz
do meu jeito]. Isso é o âmago de toda a idolatria. Todas as coisas ruins que fluem
pelo corredores da História emergem
finalmente por meio dessa envaidecida e terrível auto-indepen-dência. O
problema crucial é a idolatria universal do próprio homem: nós menosprezamos
a Deus.
Mesmo quando entendemos que esse é o argumento de Paulo em Romanos 1.18-
3.20, para muitos de nós, ainda é difícil sentir empatia para com a posição de
Paulo, quando ele apresenta em Romanos 3.9-20 sua lista de citações do Antigo
Testamento. Elas parecem muito acima da realidade, quase um negativismo
grosseiro. Afinal de contas, você não sai por todo lado dizendo: “Sou o centro do
universo”.
Por outro lado, se alguém lhe mostrasse repentinamente uma fotografia de sua
formatura no ensino médio ou na faculdade e dissesse: “Esta é a sua turma de
graduação”, que rosto você procuraria ver primeiro - apenas para ter certeza de
que estava lá?
Ou, se você tem uma argumentação - uma argumentação bombástica, uma
daquelas que acontecem a cada dez anos, uma argumentação de primeiro nível,
poderosa - você fica entusiasmado, pensa em tudo que poderia ter dito, todas as
coisas que deveria ter dito, todas as coisas que teria dito se tivesse
pensado rápido nelas, você responde a toda a argumentação em sua mente -
quem vence?
Já perdi muitas argumentações, mas nunca perdi discussão imaginária.
O problema é que, se penso que sou o centro do universo, é muito provável que
você também pense assim. E, sinceramente, seu tolo, como você ousa colocar-se
contra mim? Agora, em vez de Deus ser o centro, cada ser humano, cada
portador da imagem de Deus, acha que é o centro do universo. Achamos nossa
identidade pessoal não em sermos criaturas de Deus, mas em qualquer outra
pessoa, instituição, sistema de valores, ritual - qualquer coisa, de modo que Deus
não possa ser ouvido e não possa fazer suas reivindicações cruciais como nosso
Criador e Juiz. “Deus [nós dizemos], se ele existe
- fará melhor em me servir; do contrário, procurarei outro deus.” Isso é o
princípio da idolatria.
“Estou procurando um tipo de Deus em quem eu possa crer”, você diz. Mas essa
postura tanto é trágica como insensata, não é? Porque pressupõe que o “eu” é o
critério final, o deus final. Com certeza, a questão real é: que tipo de Deus
existe? Do contrário, você está manufaturando seu próprio deus, e isso é
idolatria.
E não menos horrível é o fato de que essa postura significa que eu também estou
agora em conflito com todas essas outras pessoas que querem ser o centro do
universo, e isso é o princípio de guerras, ódio, pilhagem e cercos - tudo porque
eu digo: serei deus.
Deus acha isso profundamente, intensamente e pessoalmente ofensivo. Não é
apenas trágico para nós, visto que estamos destruindo a nós mesmos. E também
abominavelmente desagradável para Deus. E degradante para ele. E a razão
por que o Antigo Testamento conecta a ira de Deus com a idolatria. É também a
razão por que no Novo Testamento a avareza pode ser designada idolatria. Se
você quer muito uma coisa, essa coisa se torna um deus para você. É idolatria, o
que significa que, em vez de querer a Deus, você quer a coisa que toma o lugar
de Deus. Isso é a razão por que Jesus disse que o primeiro mandamento é amar a
Deus com todo o seu coração, alma, mente e força. Esse é o mandamento que
você transgride quando transgride qualquer outro mandamento. Sempre que
pecamos, isso é a razão por que, independentemente do pecado, a pessoa mais
ofendida é Deus.
Há pouco tempo, li um ensaio intitulado “Escape do Niilismo”, escrito por J.
Budziszewski. Antes de tornar-se cristão, Budziszewski obteve seu Ph.D em
Ética, argumentando que fazemos nossas próprias regras de certo e errado
estabelecendo nossas próprias estruturas morais. Na época, ele era um filósofo
de religião ateísta que ensinava na Universidade do Texas. Depois de abandonar
seu ateísmo, ele refletiu sobre a sua mudança:
Já comentei, incidentalmente, que todas as coisas dão errado sem Deus. Isso é verdade até quanto às
coisas boas que ele nos deu, como a nossa mente. Uma das coisas boas que recebi foi uma mente mais
vigorosa do que uma mente normal. Não faço essa observação para vangloriar-me; aos seres humanos
são dados dons diferentes para que sirvam a Deus de maneiras diferentes. O problema é que
uma mente vigorosa que recusa a chamada para servir a Deus tem sua própria maneira de dar
errado. Quando algumas pessoas fogem de Deus, elas roubam e matam. Quando outras fogem dele,
usam muitas drogas e fazem muito sexo. Quando eu fugi de Deus, não fiz nenhuma dessas coisas.
Minha maneira de fugir foi tornar-me estúpido. Embora isso sempre pareça surpreendente aos
intelectuais, há algumas formas de estupidez que, para atingi-las, a pessoa tem de ser altamente
inteligente e culta. Deus as mantém em seu arsenal para destruir o orgulho obstinado; e eu descobri
todas elas. Essa foi a maneira como eu acabei fazendo uma dissertação de doutorado para provar que
nós criamos a diferença entre o bem e o mal e que não somos responsáveis pelo que fazemos. Recordo
que eu até ensinava essas coisas aos alunos. Ora, isso é pecado.

Era também agonia. Você não pode imaginar o que uma pessoa tem de fazer para si mesma - bem, se
você é como eu era, talvez você entenda o que estou dizendo - o que uma pessoa tem de fazer para si
mesma a fim de continuar crendo nessa insensatez. O apóstolo Paulo disse que o conhecimento da lei
de Deus está “gravado” em nosso “coração, testemunhando... também” a nossa consciência.
A maneira como os filósofos da lei natural expressam isso é dizendo que as leis de Deus constituem a
estrutura profunda de nossa mente. Esse ensino do apóstolo implica que,

enquanto temos mente, não podemos deixar de conhecer as coisas ali gravadas. Bem, eu estava
singularmente decidido a não conhecê-las. Portanto, eu tinha de destruir minha mente. Resisti à
tentação de crer no bem, com tanto vigor quanto alguns santos empregam para resistir à tentação de
negligenciar o bem. Por exemplo, eu amava minha esposa e filhos, mas estava decidido a considerar
esse amor como mera preferência subjetiva sem qualquer valor real e objetivo. Pense no que isso fez à
minha capacidade de amá-los. Afinal de contas, o amor é um compromisso da vontade para com o
verdadeiro bem de outra pessoa. E, como alguém pode ser comprometido com o bem de outra pessoa,
se nega a realidade do bem, nega a realidade das pessoas e nega que seus compromissos estão em
seu controle?

2 In: regeneration Quarterly, v. 4, n. 1., p. 12-15, Winter/Spring 1998.

Imagine um homem abrindo os painéis de acesso à sua mente e jogando fora todos os componentes
que tinham a imagem de Deus estampada neles. O problema é que todos eles estampam a imagem de
Deus; portanto, o homem nunca parará. Não importa quantos ele joga fora, há sempre mais a jogar.
Eu era esse homem. Porque joguei fora cada vez mais componentes, havia cada vez menos sobre os
quais eu podia pensar. Mas, como havia cada vez menos componentes em que eu podia pensar, estava
me tornando mais e mais focalizado. Porque eu acreditava em coisas que me enchiam de pavor,
pensava que era mais esperto e mais corajoso do que as pessoas que não acreditavam em tais coisas.
Pensava que via um vazio no âmago do universo que estava oculto dos olhos tolos das outras
pessoas. Mas o tolo era eu mesmo.2

Em seguida, ele conta como a graça começou a chamá-lo e relata os seus passos
para crer em Deus. Ele é um homem que começou a entender Romanos 1.18-
3.20.
Tenho um amigo na Austrália que sempre faz missões entre universitários e
ocasionalmente prega uma mensagem intitulada “Os Ateístas São Tolos e os
Agnósticos São Covardes”. Ora, não estou sugerindo que esse é um título que
todos nós devemos escolher. Ele é um australiano, e os australianos tendem a ser
um pouco mais diretos do que muitos de nós. Mas, em certo nível, é fácil
simpatizarmos com o que ele diz. Do ponto de vista de Deus, é o tolo que diz
em seu coração: “Não há Deus” (SI 14.1).
O fato é que, se você não vê realmente o estado de perdição em que nós, seres
humanos, estamos em nossa rebelião contra Deus, é muito difícil achar sentido
no que vem em seguida.
O que Paulo estabelece em Romanos 3.21-26
Nesta passagem, Paulo fala sobre a solução - como podemos ser justos diante de
Deus. A expressão controladora deste parágrafo é “a justiça de Deus”. Essa
expressão, que pode ser traduzida por “a justificação de Deus”, ocorre quatro
vezes nestes seis versículos. O verbo justificar ocorre duas vezes adicionais, e o
adjetivo jus to ocorre uma vez. Toda esta passagem diz respeito a como uma
pessoa pode ser considerada justa diante deste Deus santo, visto que nossa
condição é tão miserável como demonstrada nos primeiros dois capítulos e meio.
Para chegarmos ao âmago da solução de Paulo, refletiremos sobre os quatro
passos que ele estabelece em seu argumento.
1) Paulo estabelece a relação da justiça de Deus em Cristo com a aliança da lei
do Antigo Testamento (3.21).
“Mas agora” introduz algo novo no argumento de Paulo. Isso não é apenas uma
transição lógica: “Mas agora, neste passo do argumento...” Paulo podia usar
“mas agora” em diversas maneiras, mas, neste contexto, a expressão significa:
“Mas agora, neste ponto do fluxo da história de redenção”. Algo novo é
introduzido.
Qual é a natureza da mudança que Paulo tinha em mente? No passado, havia
outra coisa, “mas agora" o que há?
Um ponto de vista popular, mas errôneo, é o de que no Antigo Testamento Deus
era especialmente furioso, “mas agora” no Novo Testamento Deus é amoroso e
gracioso. O argumento é mais ou menos assim: na antiga aliança, Deus
mostrava-se a si mesmo em ira justa, pelo menos em fomes, pragas e guerras.
Agora, porém, sob os termos da nova aliança estabelecida pela cruz, Deus revela
no evangelho um lado mais gentil de seu caráter. Muitos cristãos acham que no
Antigo Testamento Deus é sempre de temperamento vingativo, enquanto
no Novo Testamento Jesus diz aos seus seguidores a oferecerem a outra face - e
ele mesmo vai à cruz em nosso favor. Portanto, quando Paulo introduz este
parágrafo com as palavras "mas agora", ele está nos preparando para mostrar um
quadro de Deus que é um pouco mais brando do que o que encontramos no
Antigo Testamento.
Por pelo menos três razões, esse ponto de vista é um grande engano. Primeira,
embora haja abundantes julgamentos no Antigo Testamento, os mesmos
documentos do Antigo Testamento afirmam, com igual fervor, a bondade, a
generosidade, o amor e a graça de Deus. Por exemplo:
O Senhor é misericordioso e compassivo; longânimo e assaz benigno.2

Não repreende perpetuamente, nem conserva para sempre a sua ira.

Como um pai se compadece de seus filhos, assim o SENHOR se compadece dos que o temem.

Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó.

(SI 103.8-9,13-14)

Há muitas, muitas passagens desse tipo. Os salmistas louvavam a Deus


constantemente por sua misericórdia, paciência, tolerância e assim por diante. O
Antigo Testamento não retrata a Deus como uma pessoa rude, de mau
temperamento, de pavio curto que estava ansioso por dizer: “Peguei vocês!”
Segunda, esse ponto de vista errôneo não leva em conta adequadamente a
descrição da ira de Deus feita pelo Novo Testamento. Você não chega ao Novo
Testamento e, de repente, todas as nuvens são removidas. Sim, ali há descrições
maravilhosas de Deus e de seu amor, e Jesus realmente nos ensina a dar a outra
face. Mas quase todas as mais vividas descrições metafóricas do inferno
procedem dos lábios de Jesus - e não exatamente um “Jesus amoroso, cordial
e humilde”. Antes de alguém concluir que o Deus do Novo Testamento é
revelado exclusivamente em termos de amabilidade, bondade e luz, é importante
recordar passagens como Apocalipse 14.17-20:
Então, saiu do santuário, que se encontra no céu, outro anjo, tendo ele mesmo também uma foice
afiada. Saiu ainda do altar outro anjo, aquele que tem autoridade sobre o fogo, e falou em grande voz
ao que tinha a foice afiada, dizendo: Toma a tua foice afiada e ajunta os cachos da videira da terra,
porquanto as suas uvas estão amadurecidas! Então, o anjo passou a sua foice na terra, e vindimou a
videira da terra, e lançou-a no grande lagar da cólera de Deus. E o lagar foi pisado fora da cidade, e
correu sangue do lagar até aos freios dos cavalos, numa extensão de mil e seiscentos estádios.

Essa figura - é realmente figura! - é extraída dos antigos tanques de vinho,


tanques de pedra, em que alguém prensava uvas maduras. As moças servas
tiravam as sandálias, erguiam suas vestes e pisavam as uvas. No fundo do
tanque, havia pequenos buracos e canais embaixo deles; o suco sairia das uvas e
escorreria para ser coletado em vasilhas. Nessa adaptação da imagem, pessoas
são trazidas a esse lagar da ira de Deus e são pisadas até que seu sangue flui a
uma distância de 320 quilômetros, até à altura dos freios de um cavalo. Ora,
diga-me que o retrato de Deus no Novo Testamento é o de um Deus mais
brando, mais gentil e mais amoroso.
Suspeito que a razão por que pensamos assim - até por breve momento - é que
no Antigo Testamento os quadros da ira de Deus são temporais, expressos
primariamente em termos históricos. No Novo Testamento, esses quadros são,
antes de tudo (mas não exclusivamente), em termos finais e apocalípticos - e a
maioria de nós não crê realmente nesses quadros e, por isso, não os
tememos. Nossa cultura é tão norteada pelo tempo presente, que
rejeitamos descrições de julgamento final. Não temos medo do inferno.
Temos mais medo de guerras, velhice, enfermidades, pragas e falência. Temos
mais pavor de juízos temporais do que do julgamento final. Contornamos os
quadros de juízo no Novo Testamento, resultando em que eles não nos
incomodam tanto. Mas, quando ouvimos de praga, pestilência e guerra, ficamos
apavorados. Isso diz muito sobre o nosso foco na vida presente.
A mudança do Antigo para o Novo Testamento não é uma mudança de um Deus
irado para um Deus amoroso. Pelo contrário, o Novo Testamento se move em
ambos os temas. As descrições tanto da ira como do amor de Deus são
desenvolvidas com intensidade no Novo Testamento. A cruz manifesta de modo
admirável o amor de Deus, mas também manifesta a ira de Deus contra o
pecado; ressalta imensamente a condenação de Deus sobre o pecado.
A terceira razão é que esse ponto de vista não é coerente com o
resto de Romanos 3.21. Em poucas palavras, o argumento de Paulo nesse
versículo é este: na história da redenção, o povo de Deus antes da cruz estava
sob a aliança da lei mosaica, “mas agora” a justiça de Deus se tornou conhecida
sem aquela aliança da lei.
A expressão preposicional “sem lei” pode ser traduzida em, pelo menos, duas
maneiras. Ela modifica ou “a justiça de Deus” ou “se manifestou”.
A) “Mas agora, se manifestou a justiça de Deus sem a lei.” De acordo com
essa leitura, a justiça de Deus é, ela mesma, independente da lei (ou seja, ela
independe de guardar a lei). Essa opinião não expressa o ensino da passagem.
B) “Mas agora, sem a lei, se manifestou a justiça de Deus.” Não é uma justiça
diferente; antes, a justiça de Deus “se manifestou” de maneira diferente, ou seja,
sem a aliança da lei. De Moisés para frente, toda a demonstração da justiça de
Deus no Antigo Testamento estava conectada com a estrutura da aliança
mosaica. Essa era a aliança em que o povo de Deus se encontrava. “Mas agora”
chegamos ao fim da aliança da lei. Paulo apresenta uma nova aliança,
que Jeremias profetizou seiscentos anos antes de Cristo (Jr 31.31ss). O Antigo
Testamento prenunciava um sacerdote-rei da ordem de Mel-quisedeque, não um
sacerdote da ordem de Levi vinculado à aliança mosaica (SI 110). Portanto,
agora essa justiça de Deus está aqui, e precisamos dela para resolver o problema
revelado nos dois primeiros capítulos e meio, a fim de sermos justos diante de
Deus. Essa manifestação da justiça de Deus foi dada à parte da aliança da lei.
Antes de dizer-nos exatamente como isso opera, Paulo se apressa em afirmar
que, se essa justiça de Deus foi revelada sem a lei, ele não quer que seu povo
pense que a justiça de Deus não tem qualquer relação com a aliança da lei ou que
a nova aliança é tão completamente separada do Antigo Testamento que,
francamente, podemos agora descartar o Antigo Testamento. Paulo
acrescenta imediatamente outra afirmação: a justiça de Deus sobre a qual ele
fala é aquela “testemunhada pela lei e pelos profetas”. Paulo diz que, se você ler
corretamente o Antigo Testamento, descobrirá que seus escritos, entendidos com
exatidão, apontam para, testificam de, antecipam e profetizam o que culminou
em Cristo. Estamos sob uma nova aliança, mas a antiga aliança prenunciava a
que existe agora. A nova aliança é o cumprimento da antiga aliança.
Ler o Antigo Testamento dessa maneira não deveria ser surpreendente para os
cristãos. Afinal de contas, fazemos algo semelhante quando lemos o relato
original da Páscoa, no Antigo Testamento. O anjo da morte passou por sobre a
terra do Egito. E todos os que estavam nas casas protegidas pelo sangue de um
cordeiro aspergido nas ombreiras e nas vergas das portas foram salvos da ira: o
anjo da morte “passou sobre” eles. Paulo escreveu: "Cristo, nosso
Cordeiro pascal, foi imolado” (1 Co 5.7). Por meio da morte de Cristo,
fomos salvos da morte que bem merecíamos: Cristo foi imolado por nós, e a ira
“passou sobre” nós. Em resumo, há boas razões para pensarmos que as estruturas
do Antigo Testamento contemplam algo que está adiante. Anunciam algo que
está além delas mesmas.
Outro exemplo do Antigo Testamento é o Yom Kippur (o Dia da Expiação). A
Epístola aos Hebreus desenvolve este assunto de modo bem detalhado. No
Antigo Testamento, o sacerdote levava o sangue de um novilho e de um bode ao
Santo dos Santos, o lugar mais santo, o recinto em forma de cubo que havia no
Tabernáculo. Ali, ele asper-gia o sangue dos animais sobre o topo da arca da
aliança, tanto em favor de seus próprios pecados como em favor dos pecados do
povo. Mas o sacrifício final, o pagamento crucial pelos pecados, não
era, certamente, o sangue de um novilho ou de um bode. Como podia tal sangue
expiar qualquer coisa de modo definitivo? O escritor da Epístola aos Hebreus
apresenta seus argumentos para demonstrar que esse sangue apontava para o
sangue de Cristo (ver especialmente Hebreus 9-10).
O mesmo acontece na passagem que agora consideramos.
Sob os termos da antiga aliança, era impossível pensar na justiça de Deus sem as
muitas estruturas da aliança do Antigo Testamento. “Mas agora” se manifestou
uma justiça sem aquela aliança - ainda que, Paulo reafirma, a lei e os profetas
deram testemunho antecipa-tório a respeito do que Jesus está instituindo nos
termos da nova aliança. Paulo estabelece a revelação da justiça de Deus em sua
relação com o Antigo Testamento; apresenta as raízes das boas-novas nas
páginas do Antigo Testamento.
2) Paulo estabelece a disponibilidade da justiça de Deus para todos os seres
humanos, sem distinção étnica, mas na condição de fé (3.22-23).
O versículo 22 diz: “Justiça [isto é, a justiça descrita em 3.21] de Deus mediante
a fé em Jesus Cristo, para todos os que crêem”. Em nosso idioma, o substantivo
fé parece diferente do verbo crer. As duas palavras vêm de raízes separadas. Mas
no grego essas palavras compartilham da mesma raiz: pist- (fé é pistis, crer é
pisteuõ). Eis uma tradução que mostra como elas parecem as mesmas no
grego: “A justiça de Deus mediante a confiança em Jesus Cristo para todos os
que confiam'. Nesse caso, a base confia é usada tanto no substantivo como no
verbo. Mas essa tradução, assim como no grego, parece um tanto repetitiva.
Em parte devido à repetição, pessoas têm, às vezes, entendido a primeira
palavra, “fé”, no sentido que ela possui em outras passagens: não “fé” (ou
confiança), mas “fidelidade”. E lêem assim a passagem: “A justiça de Deus vem
mediante a fidelidade [ou confiabilidade] de Jesus Cristo para todos os que
crêem”. Isso elimina a repetição: a primeira ocorrência refere-se à fidelidade de
Jesus; e a segunda, à nossa fé. Além disso, essa tradução faz sentido
teológico. Ela mantém a ênfase sobre a fé (“para todos que crêem”), mas a
justiça vem “mediante a fidelidade de Jesus Cristo”. O Novo Testamento (em
especial, o evangelho de João e Hebreus) enfatiza a fidelidade de
Jesus: ele obedece a seu Pai, é fiel até ao fim, é fiel sobre toda a casa da qual
Deus o constituiu Filho. Em resumo, essa tradução alternativa tem certa
coerência teológica. No entanto, não é realmente isso que o texto significa. Em
Romanos 3 e 4, Paulo retorna repetidas vezes à noção de “fé” e, em cada caso
específico, está se referindo à nossa fé e não à fidelidade de Jesus.3
Isso suscita a pergunta: por que, então, Paulo repete a si mesmo? Se ele está
falando sobre nossa fé em Jesus, por que ele a repete (“para todos os que
crêem”)? A razão está conectada à pequena palavra "todos” - “Justiça de Deus
mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que crêem; porque não há distinção,
pois todos pecaram e carecem da glória de Deus”. A razão para a repetição é
enfatizar a palavra “todos”, que vincula este parágrafo a Romanos 1.18-
3.20: todos estão debaixo do pecado, todos estão condenados, e todos necessitam
da justiça de Deus. Parafraseando-o novamente: “A justiça de Deus que vem
mediante a fé em Jesus Cristo para todos que têm fé; porque não há distinção
entre judeus e gentios, pois todos pecaram e estão aquém da glória de Deus”.
Estar aquém da glória de Deus, estar aquém de lhe dar a glória que ele merece é
o âmago da idolatria, que toda a Bíblia condena e da qual todos nós somos
culpados; e o apóstolo tomou quase três capítulos para demonstrar isso.
Em outras palavras, Paulo gasta dois capítulos e meio mostrando que todos os
seres humanos pecam. E a única maneira como essa “justiça de Deus” que se
manifestou agora pode lidar com a amplitude dessa necessidade universal é
estando disponível, em princípio, a todos sem distinção étnica: judeus e gentios
igualmente. Ambos estão condenados e ambos podem ser salvos. A justiça de
Deus está disponível não somente aos judeus, sob os termos da antiga aliança,
ou àqueles que se tornam judeus por sujeitarem-se às restrições da antiga aliança
(ou seja, por serem circuncidados). Essa justiça vem para todos que têm fé. Em
princípio, ela está aberta a todos os seres humanos, sem distinção étnica, mas sob
a condição de fé. Isso é parte do que torna nova a nova aliança.
A antiga aliança mosaica estava associada a certo grupo étnico, os israelitas. Se
você quisesse participar dessa aliança, não bastava ir e viver em Israel. Para se
tornar um israelita legal, mais cedo ou mais tarde você teria de sujeitar-se aos
termos da aliança. As bênçãos da aliança eram mediadas pelos termos da aliança.
Poderíamos parafrasear: "Mas agora uma justiça de Deus apareceu sem a aliança
da lei, embora a aliança da lei testemunhe disso. E essa justiça de Deus vem por
meio da confiança em Jesus Cristo - para todos que confiam em Jesus Cristo;
pois não há distinção entre judeus e gentios, porque todos pecaram e estão
aquém da glória de Deus”. Isso é exatamente o que une este parágrafo aos dois
capítulos e meio anteriores. A solução atende plenamente à necessidade. Nisso,
não há qualquer sombra de racismo. Somos todos culpados diante de Deus, e a
cruz é nossa única esperança.
Se somos cristãos, estamos acostumados com essa abrangência, essa visão da
graça de Deus que atravessa todas as etnicidades. No entanto, a maravilha dessa
verdade precisa impressionar-nos outra vez. Ao redor do trono, no último dia,
haverá muitos homens e mulheres de toda língua, tribo, povo e nação - não
somente pessoas brancas, da classe média (ver Ap 4-5). Essa diversidade
espetacular é algo que enfatiza admiravelmente a unidade. Por exemplo,
examine Efésios 2, que apresenta os judeus e os gentios unidos em uma
nova humanidade em Cristo Jesus, porque fomos salvos pela graça, por meio da
fé, a fim de produzirmos as boas obras que Deus preparou antes da fundação do
mundo.
Acho o mesmo ensino no fim de Gálatas 3. No que diz respeito à nossa posição
diante de Deus, se o evangelho é verdadeiro, em
Cristo não há judeu nem gentio, nem escravo nem livre, nem macho nem fêmea.
Isso é uma abrangência inacreditável, pois esta justiça de Deus está aberta
àqueles que têm fé em Cristo - a todos que têm fé em Cristo, pois todos estão
perdidos, sob a condenação do pecado e desesperadamente necessitados do
perdão que somente Deus mesmo provê.
Todas as pessoas, sem distinção, estão condenadas e podem ser salvas: judeus e
gentios, judeus e árabes, brancos e negros, ocidentais e orientais, sulistas e
nortistas, igualmente. Isso precisa ser desenvolvido no aspecto prático. É claro
que existem igrejas localizadas entre vizinhanças que procedem de um único
grupo étnico. Nesse caso, demonstramos a verdade dessa passagem por
nos juntarmos com igrejas que estão baseadas em outras etnicidades. Misturem,
compartilhem e troquem ministros por uma semana ou duas - algo que
demonstre que vocês não são apenas cristãos de uma etnia, e sim cristãos
bíblicos. Mas, se a sua igreja está em uma vizinhança cuja população já é
diversificada, uma das coisas que você deve querer fazer, que você deve estar
tentando fazer, é demonstrar essa diversidade de comunidade em sua igreja: uma
comunidade de crentes que são diferentes, mas, apesar disso, têm uma incrível
unidade e comunhão em Cristo Jesus.
Suspeito que, se eu não fosse um cristão, não gastaria muito tempo procurando
pessoas que são bem diferentes de mim. Gosto de pessoas semelhantes a mim.
Mas, se este evangelho é importante para mim e para você, descobriremos que
temos vínculos com as pessoas mais estranhas em todo o mundo. Parte de meu
trabalho me leva a países diferentes. Já conheci irmãos e irmãs de muitas
etnicidades diferentes. Este evangelho, esta justiça de Deus, é para aqueles que
crêem em Cristo - para todos os que crêem em Cristo, para todos os que pecaram
e carecem da glória de Deus. Essas profundas características comuns devem
transcender nossos gostos pessoais quanto à música, comida, estilo de vestir,
status econômico, senso de
humor, interesse intelectual, histórias nacionais diferentes e coisas assim. De
modo semelhante, isso deve motivar nossa evangelização. Não nos ensina o
próprio Senhor Jesus, no Sermão do Monte, que um pagão pode achar amigos
entre pessoas que lhe são semelhantes, mas que precisamos da graça de Deus
para transcender essas limitações?
3) Paulo estabelece a fonte da justiça de Deus na graciosa provisão de Cristo
como a propiciação de nossos pecados (3.24-25a).
Dois termos neste versículo precisam de um pouco de esclarecimento.
REDENÇÃO
Em nosso mundo, uma palavra como redenção pertence à linguagem religiosa.
Em outras palavras, você não fala normalmente sobre redenção na vida
cotidiana. Redenção é um tema da conversa de pessoas religiosas. Todavia, até
épocas bem recentes, redenção era usada freqüentemente em sentido econômico.
Por exemplo, você podia redimir uma hipoteca. As pessoas não falam mais em
“dinheiro de redenção”, mas o faziam há cinqüenta ou sessenta anos, quando
havia muito mais lojas de penhores. Na época da Grande Depressão, nos Estados
Unidos, se você precisava de algum dinheiro podia penhorar um relógio. Você o
entregaria para a loja de penhores. Eles o guardariam durante três semanas, ou
seis meses, ou pelo tempo acordado, antes de venderem-no; e, nesse tempo, você
poderia voltar à loja e redimi-lo - ou seja, você pagaria o dinheiro para liberar o
relógio (a quantia pela qual você o entregara acrescentada de uma porcentagem)
- para resgatá-lo de modo que pudesse tê-lo novamente. Você podia redimir seu
relógio.
No mundo antigo, a linguagem de redenção era comum. É claro que ela se acha
nas Escrituras (ou seja, Deus redime a Israel da
escravidão), mas era comum na linguagem econômica do mundo greco-romano.
Era uma palavra usada nas ruas em qualquer cidade do império. Era usada, por
exemplo, para referir-se à redenção de escravos. No mundo antigo, você poderia
tomar-se um escravo como resultado de perder uma guerra ou devido ao fato de
que exércitos saqueadores atacaram seu território e capturaram você e
sua família. Mas, às vezes, no mundo antigo você se tornava escravo por causa
de circunstâncias econômicas. Não havia leis de falência para protegê-lo. Então,
suponha que você tomava emprestado algum dinheiro para começar um negócio
e perdia tudo durante um declínio econômico. O que você fazia? Vendia-se a si
mesmo e, talvez, toda a sua família à escravidão. Não havia mais nada que podia
ser feito. Muitas pessoas tornavam-se escravos no mundo antigo por
conseqüência de falência.
No entanto, suponha que você tinha um primo abastado que residia a quarenta
quilômetros de sua cidade (um dia de viagem). Ele fica sabendo que você se
vendeu à escravidão. Esse primo é não somente abastado, mas também muito
decente. Por isso, ele decide comprar você de volta. Ele o redime. Viaja por um
dia até ao lugar em que você se tornou escravo e faz o negócio com o seu dono.
Havia normas adequadas quanto a isso na época da lei. A maneira como isso
funcionava era normalmente assim: o redentor pagava o preço em dinheiro pelo
escravo para um templo pagão, acrescido de uma pequena quantia para os
sacerdotes do templo (e como era variável essa pequena quantia!). Então,
o templo pagava o preço em dinheiro ao dono do escravo, e o escravo era
transferido à propriedade do deus daquele templo. Assim, o escravo era redimido
da escravidão ao seu senhor, para tornar-se um escravo do deus do templo. É
claro que, se você era um escravo de um deus pagão, isso significava
basicamente que você estava livre e podia fazer o que quisesse. Isso era parte da
ficção legal para dizer que a pessoa não perdia seu status de escravo,
mas, apesar disso, estava liberto da escravidão na esfera humana, porque o preço
fora pago. O homem fora redimido.
Paulo toma essa linguagem e diz que os cristãos foram redimidos da escravidão
ao pecado, mas, como resultado disso, tornaram-se escravos de Jesus Cristo (ver
Rm 6). Muitas traduções dizem “servo de Jesus”; contudo, a palavra mais usada
no grego é doulos, que sempre se refere a um escravo. Somos escravos de Jesus
Cristo. Fomos redimidos da escravidão ao pecado. Alguém pagou o preço. Nós
cantamos essa verdade: fomos “redimidos pelo sangue do Cordeiro”.
Somos justificados gratuitamente por graça, escreveu Paulo, "mediante a
redenção que há em Cristo Jesus” (3.24). O escravo não pode comprar sua
própria redenção. Do contrário, ele não seria um escravo. Não pode salvar a si
mesmo!
Ora, como isso se realiza? Paulo ainda não o explicou. Não é redenção literal
comprada com dinheiro; e o que quer que seja pago, não é pago literalmente ao
pecado. Em que sentido, então, somos redimidos? O que nos libertou? Como se
dá? A resposta é: Deus ofereceu Cristo como uma propiciação.
PROPICIAÇÃO
As traduções bíblicas dizem variadamente “propiciação”, “ex-piação”,
“sacrifício de expiação” e, até, “remédio para corrupção”. A melhor tradução é
“propiciação”. “Propiciação” tem de ser explicada. Por um lado, todos os termos
têm de ser explicados. “Sacrifício de expiação” não é bastante óbvio. Se você
tem de explicar todos os termos disponíveis, é melhor explicar aquele que é mais
próximo do original! Nesse caso, o melhor é “propiciação”. Mas, o que
ele significa?
Essa pergunta é particularmente importante porque muito do que Paulo
argumenta neste parágrafo gira em torno dela. Propiciação é o ato pelo qual
alguém (neste caso, Deus) se torna propício,
ou seja, favorável. Propiciação é o ato sacrificial pelo qual alguém se torna
favorável.
No paganismo antigo, a propiciação operava assim. Havia muitos deuses em
vários domínios (deus do mar, deus/deusa da fertilidade, deus da fala, deus da
guerra, etc.) que eram um tanto caprichosos e irascíveis. O seu dever consistia
em torná-los propícios (favoráveis) a você. Por exemplo, se você queria fazer
uma viagem marítima, devia assegurar-se de que o deus do mar, Netuno, era
favorável, por ofertar-lhe um sacrifício propiciatório na esperança de que ele lhe
daria uma travessia segura. Portanto, o objeto do sacrifício propiciatório era o
próprio deus, e o propósito era tornar esse deus propício.
A expiação, por contraste, tem o alvo de cancelar o pecado. A expiação é o ato
sacrificial pelo qual o pecado é cancelado, removido, “expiado". O objeto da
expiação é o pecado. Por contraste, o objeto da propiciação, como já vimos, é
Deus. A expiação se refere a cancelar o pecado, e a propiciação se refere a
satisfazer ou afastar a ira de Deus. A palavra específica usada em Romanos 3.25
é empregada comumente no Antigo Testamento para fazer referência a um
sacrifício propiciatório que remove a ira de Deus.
Nos anos 1930, C. H. Dodd, um professor galés, escreveu um ensaio que teve
impacto (tumultuoso) mundial. Ele fez uma profissão de fé durante o avivamento
Galês em 1904-1905. Por volta dos anos 1930, ele se tornou um teólogo liberal
(mas piedoso) na Universidade de Manchester, na Inglaterra, e depois ensinou
Novo Testamento na Universidade de Cambridge. Em seu ensaio influente, ele
argumentou que esta palavra em Romanos 3.25 talvez não possa significar
“propiciação”, porque no mundo pagão os homens ofereciam sacrifícios
propiciatórios a deuses caprichosos e irascíveis, mas, de acordo com a Bíblia,
Deus é tão propício e amável que enviou seu Filho (cf. Jo 3.16). Se Deus já é tão
favorável a nós, a ponto de dar-nos seu Filho, como podemos falar sobre o
sacrifício
do Filho na cruz como que tornando Deus favorável? Deus já é favorável, pois,
do contrário, ele não teria enviado seu Filho em primeiro lugar. Como pode,
então, a morte de Jesus ser uma propiciação? Quão mais propício Deus pode
tornar-se além de dar-nos seu Filho em primeiro lugar?
Dodd insistiu em que a palavra tem realmente de significar “expiação”
(cancelamento do pecado), e não “propiciação”, visto que Deus não precisa
tornar-se mais favorável do que já é. A opinião de Dodd se tornou popular no
mundo ocidental. Quando posteriormente editou sua tradução da New English
Bible, ele odiava tanto o termo propiciação (e também não apreciava o termo
expiação), que usou a expressão “remédio para corrupção”. Enquanto estava
na comissão principal que discutia a tradução de Romanos 3, ele foi ouvido a
sussurrar: “Que lixo!” Ora, essa réplica não responde a nada, mas é uma maneira
inglesa peculiar de lidar com controvérsia teológica! Não chega nem perto do
âmago da questão, mas é esperta.
Por fim, alguém mostrou a Dodd que o dois capítulos e meio anteriores de
Romanos são norteados por 1.18, o qual afirma que existe certo sentido em que a
ira de Deus está contra nós. Dodd negou que isso se refere a ira real, mas, antes,
é uma maneira metafórica de falar sobre a inevitabilidade das conseqüências
morais: se você faz algo mau, coisas más lhe acontecem. Dodd negou que a
ira de Deus é realmente pessoal.4
Certamente, ele e eu não lemos a mesma Bíblia! Quando lemos a Bíblia, vemos
que, não importando o que mais a ira de Deus seja, ela é intensamente pessoal.
“Eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos
filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem” (Êx 20.5). O
perigo real da
análise de Dodd é que Deus não está muito envolvido em tudo isso. Há algum
tipo de lei moral impessoal no universo, e Deus está meramente presidindo as
coisas à distância. Se você fizer algo mau, coisas más lhe sobrevêm
inevitavelmente. Fique atento ao seu carma ruim! O trabalho de Deus consiste
em vir e salvar você desse carma. Contudo, esse não é o Deus da Bíblia. Cada
pecado que cometemos não é uma transgressão de algum código moral abstrato,
de modo que o carma cobra os seus direitos. Na Bíblia, o pecado é, antes de tudo
e principalmente, uma ofensa contra Deus. É claro que o pecado tem de ser
cancelado; isso é expiação. Mas o Deus que foi ofendido tem de ser satisfeito;
isso é propiciação. Também é verdade que na Bíblia expiação e propiciação se
mantêm juntas: é difícil admitir como você pode ter uma sem ter a outra (o que é
a razão por que algumas traduções bíblicas preferem uma expressão ampla como
“sacrifício de expiação")- No entanto, não podemos perder de vista o fato de
que Deus é pessoalmente ofendido por nossa rebelião anárquica e
fica judicialmente irado conosco.
Por exemplo, Davi cometeu adultério e assassinato. Quando o profeta Natã o
confrontou, Davi se arrependeu e, subseqüentemente, se dirigiu a Deus em um
salmo no qual escreveu: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau
perante os teus olhos" (SI 51.4). Em um sentido, essas palavras parecem ilógicas,
um discurso errado. Davi pecou contra Bate-Seba (ele a seduziu e cometeu
adultério com ela); pecou contra Urias, o heteu, esposo de Bate-Seba (Davi o
matou intencionalmente); pecou contra o bebê que estava no ventre de Bate-
Seba (o bebê morreu; mas, ainda que tivesse vivido, teria sido um bastardo que
jamais conheceria o esposo de sua mãe); pecou contra o alto comando militar
(Davi os corrompeu para matar Urias); pecou contra sua própria família (ele os
traiu); pecou contra todo o povo da aliança (traiu a nação como seu principal
líder). Não há pessoas contra as quais Davi não pecou, e agora ele tem a
imprudência de dizer: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau
perante
os teus olhos” (SI 51.4). Isso leva você a perguntar: “Davi foi realista aqui?”
Contudo, há outro sentido em que Davi está profundamente correto. É o que
vemos neste salmo, pois o que torna o pecado tão pecaminoso, horrível,
condenatório e terrivelmente abominável não são todas as suas ramificações
sociais. E o fato de que o pecado é cometido, primeira e principalmente, contra
um Deus todo-poderoso e santo.
Isso é a razão por que Jesus disse que o primeiro mandamento é amar a Deus
com coração, alma, mente e força. É o primeiro mandamento porque é aquele
que sempre transgredimos quando quebramos qualquer outro mandamento.
Sempre. É terrível. Se você trapaceia em sua declaração de renda, a parte mais
ofendida é Deus. Se você engana a sua esposa, a parte mais ofendida é Deus. Se
você dá livre expressão ao racismo, a parte mais ofendida é Deus. Se você nutre
amargura, a parte mais ofendida é Deus. Ofender a Deus é o que constitui o
pecado. E temos de reconciliar-nos com Deus. Certamente precisamos restaurar
nossos relacionamentos horizontais; mas, se você os restaura e não obtém o
perdão de Deus, não ganhou nada! Em termos de eternidade, o que você precisa
ter é Deus olhando favoravelmente para você.
A Bíblia retrata a Deus como que estando sobre nós tanto em ira como em amor.
Isso foi o que Dodd não viu. Uma analogia imperfeita é que pais podem, às
vezes, ficar irados com seus filhos enquanto, ao mesmo tempo, os amam. Deus
se mantém contra nós em ira por causa de nosso pecado e de sua santidade. Se
ele não manifesta contra nós em ira quando a sua santidade vê o nosso
pecado, isso avilta a sua santidade. “Oh! você pode ser um Hitler e
matar milhares e milhares de pessoas. Não me importo. Não estou nem aí!” Isso
seria amável da parte de Deus? Isso não seria contrário à sua santidade? Seria
mais amável da parte de Deus se ele dissesse aos portadores de sua imagem que
o menosprezam como Deus e o re-lativizam: “Oh! Não fiquei ofendido!
Realmente, não me importo”?
Não, ele está contra nós em ira. A ira de Deus é a confrontação inevitável da sua
santidade ao nosso pecado. O fato notável é que Deus cuida de nós em amor não
porque somos muito amáveis, e sim porque essa á a natureza de Deus. “Vindo,
porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho" (G1 4.4), para ser a
propiciação por nossos pecados.
Isso faz diferença fundamental entre a noção pagã de propiciação e a propiciação
cristã. Na propiciação pagã, um ser humano oferece um sacrifício propiciatório
para tornar um deus propício. Na propiciação cristã, Deus, o Pai, apresenta Jesus
como a propiciação para tornar-se ele mesmo propício. Deus é tanto o sujeito
como o objeto da propiciação. Deus é aquele que provê o sacrifício precisamente
como um meio de afastar sua própria ira. Deus, o Pai, é assim o propiciador e o
propiciado; e Deus, o Filho, é a propiciação.
Você já usou a seguinte ilustração para explicar o evangelho? As vezes, dizemos:
no evangelho, Deus é como um juiz que tem um culpado diante de si no tribunal
e pronuncia a sentença - quer seja cinco anos de prisão, quer seja uma fiança de
10.000 dólares ou outra sentença. Em seguida, o juiz desce do tribunal, despe
sua toga e assume o lugar do condenado na prisão ou escreve o cheque de
pagamento da fiança. E dizemos: isso é a essência do evangelho cristão; é uma
substituição.
Eu mesmo já usei essa ilustração ou outras semelhantes. Contudo, não faço mais
isso, por cheguei à percepção de que, em si mesma, a ilustração é enganadora.
Não é totalmente errada. Explica um pouco da substituição penal: outro toma o
meu lugar e cumpre a minha pena. Mas a ilustração é enganadora porque há uma
parte dela que é fundamentalmente distorcida. Em nosso mundo, a ilustração não
pode ser facilmente harmonizada com a justiça. Nos sistemas jurídicos do
Ocidente, o juiz é um árbitro ou administrador neutro de um sistema de lei que é
maior do que ele. A ofensa não é contra o juiz. Se o juiz é a pessoa contra quem
se praticou o crime,
quando o criminoso estiver diante dele, o juiz tem de recusar-se a julgar o caso,
porque ele não deve ser a parte ofendida. É por isso que falamos de criminosos
que ofendem o Estado, ou a Lei, ou a República, ou a Coroa. Não falamos de
uma ofensa contra o juiz, porque, se a ofensa é contra o juiz, este tem de recusar-
se a julgar o caso, a fim de preservar certo tipo de neutralidade. Se em nosso
sistema judicial, um juiz pronunciasse uma sentença e, em seguida, descesse de
sua posição e tomasse o lugar do criminoso, isso seria um erro judicial. A pessoa
culpada tem de pagar pelo erro. O juiz não tem o direito de suspender a lei dessa
maneira. Os juizes devem ser árbitros do sistema. A ofensa não é contra eles.
Deixe-me apresentar isso de outra maneira. Suponha, Deus não permita, que
você fosse atacado, espancado horrivelmente por uma gangue de criminosos,
violentado e deixado no hospital quase morto, debilitado e com ossos quebrados.
Então, poucos dias depois vou fazer-lhe uma visita no hospital e lhe digo: tenha
bom ânimo; encontrei aqueles que o atacaram e os perdoei. O que você me
diria? Talvez você teria uma recaída naquele exato momento. “Que direito você
tem de perdoá-los? Foi a você que eles violaram? Você não está em uma cama
num hospital!” Não é isso que você diria? E teria todo direito de dizê-lo.
Somente a parte ofendida pode dar perdão ao perpetrador. Então, que direito tem
o juiz de mostrar misericórdia a essas pessoas terrivelmente culpadas? Seria uma
perversão da justiça.
No entanto, no que diz respeito a Deus, o caso é diferente. Ele é o juiz, mas é
sempre a parte mais ofendida. Ele nunca recusa-se a julgar. Isso está correto
porque ele também nunca é corrupto. Sua justiça permanece absolutamente
perfeita. Ele jamais comete erros. Deus não está administrando um sistema de
moralidade que é maior do que ele mesmo. Quando pecamos contra Deus, não
estamos apenas pecando contra a lei que tem a Deus como um
observador neutro. Foi nesse ponto que C. H. Dodd errou. Deus é a pessoa mais
ofendida, e ele é nosso juiz! Ele permanece sobre nós em ira porque é santo e
permanece sobre em amor porque essa é a sua natureza. E envia seu Filho para
ser a propiciação - aquele que remove a ira de Deus - para os nossos pecados.
Mas isso ainda não explica como a propiciação opera.
4) Paulo estabelece que a justiça de Deus é demonstrada por meio da cruz de
Cristo (3.25b-26).
Deus não apresenta Cristo como propiciação, primeira e principalmente, para
salvar-nos e demonstrar seu amor. Pelo contrário, Deus faz isso “para manifestar
a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados
anteriormente cometidos” (v. 25). A expressão “os pecados anteriormente
cometidos” refere-se não aos pecados que cometemos antes de nossa conversão,
mas aos pecados cometidos pelos seres humanos antes da morte de Cristo
na cruz (por isso, o “mas agora” de 3.21). Não houve uma punição final para
expiar aqueles pecados. A justiça foi satisfeita de modo final somente quando
houve a cruz, como explica o versículo 26: Deus manifestou “a sua justiça no
tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em
Jesus”. A cruz é não somente a demonstração do amor de Deus; é, também, a
demonstração da justiça de Deus.
A maneira pela qual Jesus propicia o Pai está no plano sábio de Deus. Toda a
justiça de Deus é realizada em Cristo, que recebe a maldição e penalidade em
seu próprio corpo, na cruz. E por isso que os cristãos falam em satisfazer a ira de
Deus. Essa expressão não significa que Deus está no Céu sorrindo alegremente e
dizendo: “Isto me satisfaz”. Significa que as exigências de sua santidade são
satisfeitas no sacrifício de seu próprio Filho. A justiça de Deus é satisfeita no
sacrifício propiciatório de Jesus, para que todos vejam que o pecado merece a
punição que Deus mesmo havia imposto e que a
punição foi aplicada. Isso vindica a Deus de um modo que ele mesmo é visto
como justo e como aquele que justifica o ímpio (cf. 4.5). A justificação é,
primeira e principalmente, a vindicação de Deus. Deus preserva,
simultaneamente, sua justiça enquanto justifica o ímpio. Isso é o âmago do
evangelho.
Com todo o devido respeito àqueles que afirmam insistentemente que a punição
penal é apenas uma das muitas metáforas do evangelho, a propiciação é, de fato,
o que mantém juntas todas as outras maneiras bíblicas de pensarmos sobre a
cruz. Há duas razões para isso:
a) Todas as outras maneiras pelas quais a Bíblia fala da cruz estão vinculadas à
propiciação. Por exemplo, a cruz nos reconcilia com Deus. Por que, então, temos
de ser reconciliados com Deus? Porque, como resultado do pecado, estamos
alienados de Deus. Mas, essa alienação não procede da justiça de Deus, que olha
com ira para com o nosso pecado? O que nos aliena de Deus? O nosso pecado.
Lidar com o nosso pecado nos reconcilia com Deus. E a propiciação torna Deus
propício para conosco, apesar de nosso pecado. Outra vez, o novo nascimento é
crucial; precisamos de uma nova natureza produzida pela obra transformadora
do Espírito Santo. Na salvação, há mais do que apenas ser perdoado. Por outro
lado, Deus nos dá uma nova natureza sem qualquer referencia a todo o pecado,
malig-nidade e rebelião que cometemos no passado? Ou todo o poder da nova
natureza está ligado a sermos reconciliados com Deus pelo sacrifício de Cristo?
É por isso que, no evangelho de João, o Espírito é visto como que fluindo da
cruz. É o dom que resulta do triunfo de Cristo na cruz. É condicionado pela
cruz. Contudo, é mais do que isso.
b) Essa maneira de olhar para cruz está no âmago do evangelho porque ela
incrustada na narrativa da Bíblia. Quando os homens pecaram contra Deus, Deus
respondeu pronunciando
a morte (cf. a repetição de “viveu tantos anos e morreu” em Gênesis 5). Em toda
a narrativa da Bíblia, Deus responde ao pecado com julgamento porque ele é
profundamente ofendido (por exemplo, o Dilúvio). O pecado que, acima de
todos, desperta a ira de Deus é a idolatria, a minimização de Deus. “O SENHOR, teu
Deus, é Deus zeloso”, porque somente ele é Deus. A idolatria é vertical; pecados
sociais são horizontais. Todos os males sociais existem, antes e acima de tudo,
porque os seres humanos menosprezaram a glória de Deus. Às vezes, em nosso
esforço para comunicar o que constitui o cristianismo nos focalizamos na
estrutura social do pecado para mostrar que o cristianismo é socialmente
relevante, mas essa atitude perde a essência do que o pecado realmente é.
Embora todas as manifestações sociais de pecado sejam terrivelmente feias e
têm de ser tratadas no seu tempo e lugar, elas têm de ser colocadas no âmbito da
estrutura mais ampla de idolatria. Foi por isso que Paulo, ao pregar a uma cultura
pagã, conforme vemos em Atos 17, definiu o problema em termos de idolatria -
qualquer coisa que destrona a Deus, que torna os seres humanos o centro
e remove a Deus do centro. Em resumo, o drama que é descortinado pela
narrativa que se desenvolve na Bíblia, coloca no centro do enredo a necessidade
de sermos reconciliados com Deus. E isso nos remete necessariamente à
expiação do pecado e à propiciação de Deus.
A ação de Deus em oferecer a Cristo como um sacrifício propi-ciatório não é um
exemplo de “abuso infantil cósmico”, em que Deus surra o seu próprio filho.5
Em romanos 5.6-8, apenas dois capítulos
à frente, lemos: “Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo
pelos ímpios. Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que
pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores”.
Deus prova o seu amor em que Cristo morreu por nós. Você não deve pensar que
Deus está contra nós enquanto Cristo é por nós, como se o Pai e o
Filho estivessem, de algum modo, em conflito, de modo que o Pai abusa do seu
Filho. Deus mostra seu amor por enviar Cristo. Isso está envolvido na própria
natureza e mistério da encarnação e da Trindade. É o plano do Deus trino. Perder
o Filho magoa o Pai, mas ele faz isso porque nos ama. E o Filho demonstra seu
amor por nós por ouvir e conformar-se ao maravilhoso plano de seu Pai. Assim,
o plano do Deus trino é realizado para que a justiça de Deus seja garantida
e preservada na virtude do fato de que Cristo toma o nosso pecado e os justos
padrões de Deus são preservados, enquanto permanecemos livres e recebemos
perdão. Deus mostra sua justiça na cruz.
Você quer ver a maior evidência do amor de Deus? Olhe para a cruz. Você quer
ver a maior evidência da justiça de Deus? Vá à cruz. Na cruz, a misericórdia e a
ira se encontram. A santidade e a paz se beijam. A cruz é o clímax da história de
redenção.
Visto que é este Deus quem é ofendido por nosso pecado, e se mantém em juízo
contra nós, e é este Deus quem nos ama apesar disso, passagens bíblicas como
esta tratam poderosa e vigorosamente do problema e oferecem o remédio. Na
plenitude do tempo, Deus enviou seu próprio Filho. Nesse sacrifício final, Deus
age tanto para
punir o pecado como para perdoar pecadores. Em um sentido final, os pecados
haviam permanecido impunes; agora são punidos na pessoa do Filho. E, agora,
Deus é tanto justo como aquele que justifica os ímpios. Isso é recebido pela fé.
Você crê? Ou está entre os milhões que começam a vislumbrar o que a cruz
significa e rejeitam todo o seu relato como escandaloso? Um Deus vivo que
morre e vive novamente? Um Deus que está contra nós em ira e, ao mesmo
tempo, nos ama? Uma cruz em que a punição é aplicada por Deus e recebida
por Deus? Escandaloso!
E o que você fará quando prestar contas a Deus no último dia e lhe disser que leu
este capítulo ou ouviu esta mensagem e rejeitou-a?
CONCLUSÃO
Tudo que sabemos de Deus, tudo que apreciamos nele, tudo pelo que o
louvamos, em toda a experiência cristã, tanto nesta vida como na vida por vir,
flui desta cruz sangrenta.
Temos o dom do Espírito? Isso foi obtido por Cristo na cruz.
Desfrutamos da comunhão dos santos? Isso foi obtido por Cristo na cruz.
Ele vela por nós graciosa, providencial e fielmente, com base na aliança? Isso foi
obtido por Cristo na cruz.
Temos esperança do céu por vir? Isso foi obtido por Cristo na cruz.
Aguardamos a ressurreição dos corpos no último dia? Isso foi obtido por Cristo
na cruz.
Há um novo céu e uma nova terra, a habitação da justiça? Isso foi obtido por
Cristo na cruz.
Desfrutamos de nova identidade, para que não mais vejamos a nós mesmos
como fracassos, párias morais, desapontamento para os nossos pais - e sim como
seres humanos profundamente
amados, comprados por sangue, redimidos por Cristo, declarados justos pelo
próprio Deus, devido ao fato de que Deus mesmo ofereceu seu Filho, Jesus,
como a propiciaçào por nossos pecados? Tudo isso foi obtido por Cristo na cruz
e outorgado a todos aqueles que crêem nele.
Esses assuntos têm sido freqüentemente afirmados, com poder, tanto nos hinos
antigos como nos novos. William Ress (18021883) escreveu “Eis o Amor Vasto
Como o Oceano”:
No monte da crucificação, abriram-se fontes profundas e amplas.

Pelas comportas de tua misericórdia jorrou um fluxo gracioso e vasto.

Eis o amor como rios poderosos derramado continuamente do alto.

Em amor, a paz do céu e a justiça perfeita beijaram um mundo culpado.

Os temas da ira, da tolerância e do amor de Deus atravessam as Escrituras e têm


seu clímax na cruz. Outro hino, escrito em 1995, é uma contribuição de Stuart
Townend - “Quão Profundo o Amor do Pai por Nós”:
Vejam o Homem na cruz,

Meu pecado, em seus ombros.

Envergonhado, ouço meu escárnio Ressoando entre os zombadores.

O meu pecado o levou à cruz Até que a obra foi consumada.

A sua morte trouxe-me a vida Sei que tudo está consumado.

Em todo o nosso discurso sobre teologia, em todos os nossos debates sobre como
o Novo Testamento usa o Antigo Testamento, sobre o significado exato da
inerrância e sobre todos os outros assuntos que têm de ser tratados, nunca
percamos de vista o âmago da questão: “Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo” (2 Co 5.19).
Dilema infame: como pode a santidade De vida resplendente e límpida tolerar Fétida lama de
rebelião e não a abater Em sua glória, comprometida ao máximo?

Dilema infame: como pode a verdade atestar Que Deus é amor e não ser envergonhada por
ódio, vontades escravizadas e morte amarga - a carga Da maldição merecida, o caos de rebeldes
humanos?

A cruz! A cruz! O lugar de encontro sagrado Onde, desconhecendo perda e comprometimento,

O amor e a pureza de Deus, em graça assoladora, Solucionam o grande dilema! A cruz! A cruz!

Este santo, amável Deus cujo Filho querido morre Por meio disso é o justo - e aquele que justifica.6

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Nada é mais central à Bíblia do que a morte e a ressurreição de Jesus. A Bíblia toda gira em tomo de
um fim de semana ocorrido em Jerusalém há dois mil anos. As tentativas de tornar a Bíblia um livro
inteligível que nào dedicam ampla consideração para integrar a crucificação e a ressurreição de Jesus
estào condenadas ao fracasso e, no melhor, são exercícios na irrelevância.

Você crê? Um Deus vivo que morre e vive novamente? Um Deus que está contra nós em ira e, ao
mesmo tempo, nos ama? Uma cruz em que a punição é aplicada por Deus e recebida por Deus?
Escandaloso!

“O que acontece quando um dos teólogos mais proeminentes do mundo expõe alguns dos textos mais
proeminentes da Bíblia? Este livro.”

"A clareza de Don Carson em comunicar a Escritura é um grande dom, e neste livro ele o transmite a
nós. Este professor pode pregar! Estas sào mensagens-modelos sobre passagens cruciais. Sào
meditações deliciosas que instruem nossa mente e alimentam nossa alma. Conteúdo bíblico - franco,
vigoroso, solene e consistente -isso é o que Carson nos dá sobre a cruz e a ressurreição de Cristo. Leia,
marque, aprenda e alimente seu espírito.”

“Isto é o excelente Carson - exegese primorosa e exposição envolvente, teologicamente rica e, no


aspecto devocional, calorosa, lúcida, perspicaz, perscrutadora. A verdade de Deus resplandece! Don
Carson nos mostra qual é a finalidade da Bíblia; e suas palavras fazem-me querer pregar com grande
paixão a escandalosa cruz de Cristo.”
Category D&utrtitt/Iedccla

Nota marginal da Bíblia de Lutero, sobre Romanos 3.23ss.

Cf. Ex 34.6; Nm 14.18; Ne 9.17; SI 86.15; 103.8; 145.8; J12.13; Jn 4.2; Na 1.3.

Uma excelente abordagem lingüística do debate sobre a “fé de Cristo” ("fé em Cristo” versus
"fidelidade de Cristo") foi escrita por Moisés Silva - “Faith Versus Works of Law in Galatians”. In:
CARSON, D. A.; O’BRIEN, Peter T.; SEIFRID, Mark A. (Ed.). Justification and variegated no-mism:
the paradoxes of PauL Grand Rapids: Baker, 2004. p. 217-248.

Quanto a refutações da posição de C. H. Dodd sobre a propiciação, ver: NICOLE, Roger. C. H. Dodd
and the doctrine of propitiation. Westminster Theological Journal, Philadelphia, v. 17, p, 117-
157,1954-1955. MORRIS, Leon. The apostolic preaching of the cross. 3rd ed. Grand Rapids:
Eerdmans, 1965.

Faça um contraste entre Steve Chalke e Alan Mann, que rejeitando a noção de substituição penal e
um sacrifício propiciatório, escrevem: “O fato é que a cruz não é uma forma de abuso infantil
cósmico - um pai vingativo punindo seu filho por uma ofensa que ele nem
cometeu. Compreensivelmente, as pessoas de dentro e as de fora da igreja têm achado essa versão
pervertida dos eventos moralmente dúbia e uma grande barreira à fé. Todavia, mais profundo do

que isso é o fato de que essa construção permanece em total contradição com a afirmação ‘Deus é
amor’. Se a cruz é um ato pessoal de violênda perpetrado por Deus para com a humanidade, mas
suportado por seu Filho, então ela escarnece do ensino de Jesus quanto a amar os inimigos e recusar-
se a pagar o mal com o mal. A verdade é que a cruz é um símbolo de amor. E uma demonstração de
até aonde Deus, o Pai, e Jesus, seu Filho, estão dispostos a ir para provar esse amor. A cruz é uma
afirmação vivida do desamparo de amor” (7he Lost Messagem of Jesus, Grand Rapids: Zondervan,
2003, p. 182-183).

CARSON, D. A. Holy sonnets of the twentieth century. Grand Rapids: Baker, 1994. p. 101.

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