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NIETZSCHE – CONCEITOS DE EDUCAÇÃO, CULTURA E SUBJETIVIDADE

Prof. Paulo Rogério da Silva

INTRODUÇÃO

Nietzsche é um pensador singular. Seu pensamento alcançou notável influência


ao longo do século XX e atualmente ainda muito se fala de suas obras. De fato, a
história da filosofia pós pensamento nietzschiano não é mais a mesma; ele conseguiu
tocar naquelas ‘feridas’ que muitos se queixavam, mas que, porém, não tinham
coragem de assumir publicamente. Nesse sentido ele profeta da ‘desordem; não de
uma desordem irracional, mas de uma crítica desestabilizadora do status quo da
cultura, da religião, da moral, do poder camuflado... Mas não seria tarefa da filosofia
justamente o questionamento desse status quo? Ou melhor, não teria ela o papel de
desestabilizar essa situação pretensamente pré-dada e dogmática, veículo de poder e
alienação? Se isso é verdade, então, dentro destes parâmetros, Nietzsche não pode
ser mais considerado um filósofo marginal e inconveniente, mas atual e comprometido
com o questionamento da cultura.
Nesse sentido, o texto tem quatro partes: uma primeira parte sobre aquilo que
se considerou como pressuposto genealógico, isto é, a explicação da configuração do
jogo de forças do ‘escravo’ e do ‘nobre’ que movem as dissertações seguintes da
Genealogia nietzschiana. Num segundo momento, algumas observações sobre a
cultura e lógica do esquecimento do signo provocado pela metafísica ocidental. Em
seguida alguns aspectos do que seria a construção de uma subjetividade em Nietzsche.
Por fim, breves reflexões educacionais sob o enfoque do pensamento nietzschiano.

1. PRESSUPOSTO GENEALÓGICO: CIRCUITO DE FORÇAS DO ‘NOBRE’ E DO ‘ESCRAVO’

Segundo Nietzsche, caminha-se para uma cultura do ressentimento. E onde


2

está o DNA dessa cultura ressentida? Na cultura judaico-cristã que, ao decorrer da


história, foi a cultura que venceu. No prefácio da Genealogia da Moral já é exposto uma
provocação de Nietzsche contra a gênese desse ressentimento Ocidental, que se
encontra no “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates. Segundo o autor, há aqui uma
espécie de inversão do paradigma pré-socrático, isto é, da ideia de physis como algo
externo ao homem – porém, vista pelos filósofos antigos como uma natureza
totalizante, capaz de englobar não só os elementos naturais primordiais (água, ar, fogo
e terra), mas todos os seres vivos dos quais fazem parte, inclusive o homem.
Para Nietzsche, o que aconteceu a partir do ‘conhece-te a ti mesmo’ de
Sócrates é que homem sentiu-se obrigado a dobrar o pensamento em si mesmo,
voltando-se contra o sujeito (e não para mundo) as próprias misérias culturais e fazendo
do pensamento uma extensão negativa do ressentimento (culpa) e não da auto-
afirmação. Confira:

Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos


somos desconhecidos — e não sem motivo. Nunca nos procuramos:
como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos? [...] Pois
continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não nos
compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para
sempre a frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” — para nós
mesmos somos “homens do desconhecimento”... (NIETZSCHE, 2010, p.
7).

No entanto, é na obra Crepúsculo dos Ídolos que Nietzsche chega a sua crítica
mais formal e direta com relação ao pensamento socrático: reconhece que Sócrates, o
principal representante da filosofia grega antiga, é também o modelo mais acabado da
decadência do Ocidente. Mas por que Nietzsche afirma isso? O motivo é que todos os
‘sábios’ antigos, em especial Sócrates, colocaram-se negativamente perante a vida,
perante os instintos, e nome de uma falsa virtude e felicidade (NIETZSCHE, 1999).
Aliás, continua Nietzsche, Sócrates não construiu um projeto de vida virtuosa,
mas um projeto de vida desfigurada, vazia, fria e calculista. Desta maneira, é um auto-
engano dos filósofos e moralistas acreditarem que é possível superar a decadência ao
fazerem guerra com ela mesma, pois a superação da decadência está muito além de
3

suas próprias forças. E é justamente nisso que consiste o fracasso da pseudo-solução


oferecida por Sócrates: sua ética intelectualista, que visa à autarquia e ao controle da
virtude por intermédio da ciência, está longe de ser uma solução adequada ao homem;
ao contrário, não passa de outra forma de expressão da decadência; o que o
pensamento ‘socrático’ pode fazer é apenas alterar os vícios ou as virtudes, mas nunca
eliminá-los plenamente. Por essa razão que, segundo Nietzsche, Sócrates não passa
de um mal-entendido, causa decadente, e sua solução filosófica uma medíocre ‘moral-
de-melhoria’ (como também, por extensão, o cristianismo). Veja:

Dei a entender com o que Sócrates fascinava: ele parecia ser um


médico, uma salvador. É necessário indicar ainda o erro que havia em
sua crença na “racionalidade a todo preço”? – É um auto-engano dos
filósofos e moralistas pensar que já saem da décadence ao fazerem
guerra contra ela. O sair está fora de sua força: mesmo aquilo que
escolhem como remédio, como salvação, é apenas, outra vez, uma
expressão de décadence – eles alteram sua expressão, não a eliminam
propriamente. Sócrates foi um mal-entendido; a inteira moral moral-da-
melhoria, também a cristã, foi um mal-entendido... A luz do dia mais
crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa,
consciente, sem instinto era, ela mesma, apenas uma doença, uma
outra doença – e de modo nenhum caminho de retorno à “virtude”, à
“saúde”, à “felicidade”... Ter de combater os instintos – eis a fórmula
para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a
instinto (NIETZSCHE, 1999, p. 374-375).

Esse pensamento que se dobra em si mesmo, ou melhor, a ideologia socrática,


negadora da potência de vida, é um pensamento baixo, uma cultura de ressentimento,
que não faz outra coisa senão ser a mola propulsora da culpa. É por esse motivo que
Nietzsche tem como proposta fazer uma Genealogia da Moral, que não é simplesmente
a busca do ponto inicial da questão do ressentimento, mas sim o mapeamento de uma
configuração ou jogo de forças que, ao longo da história, modificaram o significado de
um conceito e assumiram, consequentemente, uma proto-identidade, no caso, ilegítima
e inversa daquilo que eram constituídas em sua origem (Cf. NIETZSCHE, 2010, p. 12).
Para tanto, Nietzsche inicia sua Genealogia analisando os conceitos de ‘bom’ e ‘mau’.
Para Nietzsche, os conceitos de ‘bom’ e ‘mau’ tem no mínimo duas origens,
4

simbolizadas pelas figuras do ‘nobre’ e do ‘escravo’1. Na obra Além do Bem e do Mal,


Nietzsche também fala da existência de dois circuitos de forças que baseiam dois tipos
distintos de moral2. Mas é na Genealogia da Moral que Nietzsche consegue esclarecer
em que sentido esses conceitos ganharam cargas positivas e negativas na história da
racionalidade metafísica e ideológica.
Segundo Nietzsche, o circuito de forças do ‘nobre’ define-se como bom (gut) em
si mesmo, ou melhor, parte de uma relação de afirmação perante os valores da vida e,
somente posteriormente, considera o outro (o escravo) como um mero e pálido
contraste ruim (schlecht). A partir desse conceito de ‘nobre’ estabelece-se o que
Nietzsche considerou positivamente como ‘moral dos senhores’3. Por outro lado, há
também o circuito de forças do ‘escravo’, que não se afirma positivamente a partir de si
mesmo, mas começa pelo movimento de negação do outro (do nobre). Em outras
palavras, o circuito de forças do ‘escravo’ primeiro nega o outro como mau (bose) para
somente depois afirmar-se como bom (gut). Desta maneira, Nietzsche percebe aqui
uma ‘moral dos escravos’4, do ressentimento, que não realça a positividade da vida,
mas que reage negativamente contra os valores do nobre. Veja como essa tensão de
forças é relatada na Genealogia da Moral:

1
No entanto, segundo a crítica nietzscheana, quando se fala nas figuras do ‘nobre’ e do ‘escravo’ não se
deve personificar os elementos como se fossem os indivíduos em seus papéis sociais. As figuras são
metafóricas e precisam ser interpretadas como ‘circuito de forças’, isto é, como forças impessoais que
estão em constante tensão e conflito.
2
“Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora
dominaram e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e
ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental
sobressaiu” (NIETZSCHE, 1992, p. 172).
3
Em Além do Bem e do Mal, escreve Nietzsche: “Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos
[...] No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de “bom”, são os estados de alma
elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre
afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os
despreza” (NIETZSCHE, 1992, p. 172).
4
Ainda em Além do Bem e do Mal: “É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. [...]
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa
oposição “bom” e “mau” – no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza
e força que não permite o desprezo. Logo segundo a moral dos escravos o “mau” inspira medo; segundo
a moral dos senhores e precisamente o “bom” que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem
“ruim” é sentido como desprezível” (NIETZSCHE, 1992, p. 174-175).
5

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se


torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é
negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma
vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce
de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a
um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta
inversão do olhar que estabelece valores este necessário dirigir-se para
fora, em vez de voltar-se para si é algo próprio do ressentimento: a
moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior,
para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. O contrário
sucede no modo de valoração nobre: ele age e cresce
espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer Sim a si mesmo
com ainda maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”,
“comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior,
em relação ao conceito básico, positivo, inteiramente perpassado de
vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes!”
(NIETZSCHE, 2010, p. 26).

O problema disso tudo é que, segundo o autor, na história da civilização o


circuito de forças do ‘escravo’ (mau) predominou sobre o circuito de forças do ‘nobre’
(bom). É por esse motivo que Nietzsche conclui de modo veemente que a civilização
moderna é uma cultura ressentida, pois aquilo que era um ‘mau’ circunstancial foi
justamente substituído pela moral dos escravos como se fosse um ‘bem em si’; e o que
era o bom do ‘nobre’, por sua vez, foi traduzido como ‘mal em si’. Com isso, decreta-se
definitivamente a vitória da moral ressentida:

Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu - ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’,


ou ‘o rebanho’, ou como quiser chamá-lo se isto aconteceu graças aos
judeus, muito bem! jamais um povo teve missão maior na história
universal. ‘Os senhores’ foram abolidos; a moral do homem comum
venceu. Ao mesmo tempo, essa vitória pode ser tomada como um
envenenamento do sangue (ela misturou entre si as raças) – não
contesto; mas indubitavelmente essa intoxicação foi bem-sucedida. A
‘redenção’ do gênero humano (do jugo dos ‘senhores’) está bem
encaminhada; tudo se judaíza, cristianiza, plebeíza visivelmente (que
importam as palavras!) (NIETZSCHE, 2010, p. 25).

Como é possível observar, essa foi a grande derrota da humanidade, a derrota


do homem perante si mesmo, deixando-o gradativamente numa situação de alienação
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moral e cultural. Trata-se de uma cultura do ressentimento, da fragmentação, que olha


para a Razão metafísica como critério padronizador da cultura, da subjetividade e da
educação. É justamente a partir do ataque contra essa moral ressentida que, portanto,
consistirá o ponto de partida da crítica nietzschiana com relação aos temas seguintes.

2. CULTURA: O DOGMATISMO METAFÍSICO COMO INSTRUMENTO DE SUBVERSÃO E

ESQUECIMENTO DO SIGNO

O primeiro aspecto da crítica de Nietzsche contra a cultura ocidental é o seu


discurso antidogmático. Segundo o autor, nosso ser real é corpóreo. Não existe outro
mundo. No entanto, a religião e a metafísica ocidental acabaram sendo opostas à
ciência do corpo, pois pregaram e ainda pregam outros mundos, outras realidades
distintas do corpóreo:

Fabular sobre um “outro” mundo, que não este, não tem nenhum
sentido, pressupondo que um instinto de calúnia, apequenamento,
suspeição contra a vida, não tenha potência em nós: neste último caso
vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma “outra” vida, de uma
vida “melhor”. [...] Dividir o mundo em um “verdadeiro” e um “aparente”,
seja ao modo do cristianismo, seja ao modo de Kant (de um cristão
capcioso, em última instância) é somente uma sugestão da décadence
um sintoma de vida declinante... (NIETZSCHE, 1999, p. 376).

Neste sentido, a metafísica Ocidental é uma ficção dogmática Por quê? Porque
é uma vontade de poder, um discurso manipulador que tenta através do esquecimento
do signo transformar o aspecto positivo do homem numa mísera visão negativa,
subvertendo o sentido daquilo que anula a humanidade num valor benéfico em si e
inquestionável. Em Além do Bem e do Mal, forçando o dogmático a explicitar seu
peculiar modo de pensar, responde-nos Nietzsche de que tipo de verdade se trata:

“Como poderia algo nascer do seu oposto?” [pergunta-se o dogmático]


por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade
de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo? [...] Semelhante
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gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo ou algo pior; as


coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra,
própria – não podem desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho
mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser,
do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ – nisso, em nada mais,
deve estar a sua causa!” (NIETZSCHE, 1992, p. 10).

Como se pode notar, Nietzsche é contra toda e qualquer visão dogmática: a


visão unitária da metafísica (ou da religião) colocava-se como a correta, banindo assim
todo o restante como errado e herético; ou seja, a idéia ou o dogma da ‘essência’ foi
usado para abafar e sufocar outras idéias contrastantes. No entanto, ao circunscrever a
história, Nietzsche percebeu que havia outros sentidos que tinham razão de ser, como
também outros interesses em questão. Segundo Rey (1981), a metafísica produz uma
ocultação dobrada: afirma-se uma verdade; e ao afirmar essa verdade, anula a busca
de outras. Está posto então o chamado ‘logro da transparência dos signos’ realizado
pela metafísica, ambígua em si mesma, pois o seu o efeito contrário é justamente o
totalitarismo de ideias e significados.
A problematização dessa questão leva Nietzsche a identificar a existência de
outro obstáculo a ser superado: o idealismo filosófico. Segundo o autor, o idealismo tem
todo um inconsciente que determina o contexto; e foi justamente esta tese idealista que
influenciou a concepção de homem cristão ocidental. Em que sentido? Simples: no
sentido da subversão ideológica dos significados provocados na história. Explicando
melhor, segundo Nietzsche, o idealismo metafísico é instrumento de subversão dos
significados do ‘bom’ e do ‘mau’: amparado por uma moral escrava e ideológica, o
idealismo retira o ‘mau’ contextual, próprio da ‘moral dos escravos’, e universaliza-o
como se fosse ‘bem em si’, eterno e atemporal, que deve ser seguido por todos de
modo não questionável. O inverso também acontece: aquilo que era o ‘bom’ contextual,
específica da ‘moral dos senhores’ (nobres), é subvertido como se fosse um mal em si,
uma lei herética, sinal daqueles que são maléficos por natureza. Daí decorre todos os
preconceitos morais: aquele que não segue a idéia daquele bem imposto (e
genealogicamente subvertido) acaba sendo visto como imoral:
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O caráter tosco da sua genealogia da moral se evidencia já no início,


quando se trata de investigar a origem do conceito e do juízo “bom”.
“Originalmente” — assim eles decretam — “as ações não egoístas foram
louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas,
aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do
louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido
costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas
— como se em si fossem algo bom.” Logo se percebe: esta primeira
dedução já contém todos os traços típicos da idiossincrasia dos
psicólogos ingleses — temos aí “a utilidade”, “o esquecimento”, “o
hábito” e por fim “o erro”, tudo servindo de base a uma valoração da qual
o homem superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio
do próprio homem. Este orgulho deve ser humilhado, e esta valoração
desvalorizada: isso foi feito?... Para mim é claro, antes de tudo, que
essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito “bom” no lugar
errado: o juízo “bom” não provém daqueles aos quais se fez o “bem”!
Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em
posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos
como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era
baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu (NIETZSCHE, 2010, p. 16-
17).

Além do que, será no embate moral pela escolha do legítimo ‘bem em si’, que
cada um escolherá a melhor maneira de impor sua concepção de bem para o outro. Por
trás dessa idéia está a concepção de vontade de poder: trata-se de um desejo que
encontraria suporte na hipótese de um sujeito pleno e superior, numa casta inefável e
dogmática, que, enquanto sempre se acha repleta de verdades intocáveis, compadece-
se da inferioridade de outros que não estão à sua altura, daqueles infelizes derrotados,
fadados a estar numa eterna posição de errante.
Por fim, através de sua Genealogia, Nietzsche direciona uma crítica mais
pontual à Metafísica ocidental, como uma espécie de ‘gramática’, pois implica em uma
construção linguística, como é possível perceber no princípio da identidade, da não-
contradição, definição de essência, de ser etc., que, ao passar do tempo, não são mais
transmitidos como criações linguísticas e histórico-culturais, mas como essências
metafísicas atemporais. Desta forma, segundo o comentador Rey, a metafísica não é
uma realidade, mas apenas uma forma de conceber a realidade que foi construída
historicamente e num contexto determinado:
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Tudo se dá no plano da língua, considerando-se a língua como um


conjunto de signos que se viu submetido a um imperativo de “verdade”
colocada abstratamente e sem referência histórica; isto é, um sistema
gramatical e lógico no qual o sujeito estava sempre implicado
“necessariamente”, no qual a própria forma dos enunciados estava
prescrita de antemão, isto é, também, um código cuja proveniência não
estava jamais posta em questão, posto que o discurso idealista não vivia
senão dessa denegação repetida sob formas análogas” (REY, 1981, p.
142).

A partir desse ponto entra a Genealogia nietzschiana como instrumento


purificador e crítico da metafísica. Por quê? Porque tal genealogia vincula a história da
mudança de sentidos dos conceitos com os interesses com os quais estavam ligados
na origem. Assim, na medida em que o curso da história vai seguindo, os sentidos
metafóricos vão se amontoando e mudando conforme os interesses de alguns. A
Genealogia da Moral vai justamente estudar de maneira rigorosa esse processo
simbólico e camufladamente ideológico:

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos


valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em
questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram (moral como conseqüência, como sintoma, máscara,
tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como causa,
medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como
até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses
“valores” como dado, como efetivo, como além de qualquer
questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
“bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais elevado no sentido da
promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo
o futuro do homem). E se o contrário fosse a verdade? E se no “bom”
houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um
veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às
expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa,
mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que
precisamente a moral seria culpada de que jamais se alcançasse o
supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente a
moral seria o perigo entre os perigos?... (NIETZSCHE, 2010, p. 12)

Através da Genealogia, Nietzsche faz um diagnóstico perturbador da


metafísica: ela é instrumento de subversão e esquecimento da cultura, pois com seu
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discurso dogmático ela camuflou os interesses de quem a formulou, fazendo com que
tais críticas ficassem obsoletas e esquecidas ao longo do tempo. Veja como essa ideia
aparece de cheio no trecho abaixo de Nietzsche:

Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”, ou


seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina
“homem”, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então
deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e
ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas
as estirpes nobres e os seus ideais, como os autênticos instrumentos da
cultura; com o que, no entanto, não se estaria dizendo que os seus
portadores representem eles mesmos a cultura (NIETZSCHE, 2010, p.
30).

Desta maneira, Nietzsche conclui que a Metafísica foi um grande desvio do


Ocidente que, ao longo do tempo, foi impondo como ‘real’ aquilo que na sua origem era
apenas uma ‘versão’ da realidade. Com isso, o tempo foi passando e fazendo que com
que tal versão não fosse mais lembrada como ‘interpretação’ de algo, mas como
dogma. O resultado não poderia ser outro: o questionamento foi cessando e a repetição
da falsa idéia originária foi ganhando o status de verdade, validando-a culturalmente
para as gerações futuras:

Foi só em nome de uma origem sempre tida por idêntica consigo mesma
que o conceito de ser pôde instituir-se como verdade sem condição,
como significado eterno, ou ainda como valor último: presença
indefinidamente renovada sob nomes diferentes (“princípio”, “causa”,
“verdade”, “fundamento” etc.), presença que encontrava sua garantia
última no discurso, pelo menos numa forma de crença que se supõe
validada pelo discurso metafísico (REY, 1974, p. 145).

Mas há os sintomas deste esquecimento; e é justamente neste ponto que


Nietzsche usará sua genealogia: através dela, o autor procurará os sintomas que estão
esquecidos no inconsciente da sociedade, provando que o discurso metafísico não é
‘metafísica’, mas uma manipulação de interesses e um processo de ‘evitamento’, pois
ao afirmar dogmaticamente um único sentido, evitam-se automaticamente os outros.
Desta forma, segundo Rey, o que Nietzsche tenta fazer em sua Genealogia é
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justamente

operar um remontar genealógico cujo objetivo é desimplicar os estratos


do investimento imaginário do qual a filosofia viveu, o lance significante
arriscado e mantido pelos conceitos metafísicos: tudo o que encontra
assistência numa lógica da identidade, numa gramática em que a
hipótese do “ser” já estava sempre colocada como autoridade
incondicionada. Essa colocação em perspectiva histórica tem por efeito
frustrar o privilégio do nome próprio e, ao mesmo tempo, toda lingüística
simples da palavra e do enunciado. Se o idealismo só foi a repetição,
programada desde o seu começo platônico, de um jogo limitado de
conceitos, o deslocamento “mudo” mas insistente de uma série de
instâncias que formava a sua trama, ele se dá a ler como um texto
superdeterminado cujas diversas variantes se condensaram, se
instituíram mesmo em sistema. O que Nietzsche quer desatar é essa
aliança tácita, essa “confusão” conservada, indefinidamente renovada
sem ser jamais nomeada, do significado e do valor: a posição intangível
de um sentido (ou de uma “verdade”) já sempre colocada, conotada
ética ou mesmo religiosamente (REY, 1981, p. 140).

E o que é então a verdade? O idealismo produz uma meia-verdade que se volta


negativamente contra a realidade. A verdade é uma soma de relações humanas que a
poesia e a retórica realçaram, transpuseram, embelezaram e que após um longo uso,
parecem a um povo estáveis, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões que o
homem esquece que são ‘ilusões’, metáforas gastas e sem poder sensível.

Quem, realmente, nos coloca questões? O que, em nós, aspira


realmente à ‘verdade’? – De fato, por longo tempo nos detivemos ante a
questão da origem dessa vontade – até afinal parar completamente ante
uma questão mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa
vontade (NIETZSCHE, 1992, p. 9).

Qual é então a solução para Nietzsche? A solução está justamente na


‘transvaloração’ dos valores, ou seja, no retorno ao culto de Dionísio, opondo
esterilidade da modernidade à fecundidade de passado arcaico, “em que as forças
dionisíacas, as forças de embriaguez e do êxtase, da energia e da vontade de poder,
reinavam sem partilha” (ROUANET, 1987, p. 240).
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3. SUBJETIVIDADE EM NIETZSCHE: RADICALIZAÇÃO DAS IDEIAS DE HERÁCLITO

Para compreender o ponto de partida de Nietzsche a respeito da idéia de


subjetividade é preciso retomar os conceitos centrais do filósofo pré-socrático Heráclito
em contraste com o pensamento de outro filósofo pré-socrático, Parmênides. A partir de
então, será situado o pressuposto nietzschiano no que diz respeito ao tema da
subjetividade humana.
Segundo Parmênides, o ‘ser é’ e é impossível que ele deixe de ser algo. A ideia
do movimento não é real, pois os sentidos enganam por darem justamente essa
sensação de mudança. Por esse motivo que Parmênides concebe dois caminhos ou
vias distintas para o cosmo: uma que leva ao conhecimento verdadeiro (através da
razão), ao qual foi chamada de Via da Verdade (Alétheia), e a outra que leva à ilusão e
a falácia (promovida pelos sentidos), chamada de Via da Opinião (Doxa).
A via da Verdade (Alétheia) é o caminho da razão e do logos, a via do ser que
‘é’, o único que pode ser pensado e falado, possuindo, desta maneira, características e
atributos totalmente desligados da esfera sensível. Desta maneira, na especulação de
Parmênides não há espaço para o ‘não-ser’, justamente porque ele ‘não é’, servindo
somente para ser negado pelo ‘ser’; e mais ainda, se só há espaço para o ‘ser’, então
significa que o ‘não-ser’ não pode sequer ser pensado, pois pensar o não-ser
equivaleria a pensar o nada, permanecendo, nesse caso, apenas o ‘ser’ pleno, único
elemento para o pensamento. É neste sentido que se posiciona a famosa afirmação do
fragmento 3 de Parmênides: “a mesma coisa tanto pode ser pensada como pode
existir”5 (Parmênides apud KIRK; RAVEN, 1982, p. 275). Ou seja, a mesma coisa é ser e
pensar. Este é o ponto central do pensamento filosófico de Parmênides, aquilo
realmente consiste a Via da Verdade, como assim está descrito no seu fragmento 2:

Vamos e dir-te-ei – e tu levas as minhas palavras. Os únicos caminhos


da investigação em que se pode pensar: um, o caminho que é e não
pode não ser, é a via da Persuasão, pois acompanha a Verdade; o
5
Sobre o fragmento 3 de Parmênides: fragmento reportado por Proclo (410-485 d.C.), filósofo
neoplatônico, em sua obra Comentário ao Timeu de Platão (In Platonis Timaeum).
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outro, o que não é e é forçoso que não exista, esse, digo-te, é um


caminho totalmente impensável. Pois não poderás conhecer o que não é
(isso é impossível), nem declará-lo6 (Parmênides apud KIRK; RAVEN,
1982, p. 275).

Ao contrário de tudo o que foi afirmado acima, Parmênides situa a via da


Opinião (doxa) como o caminho dos sentidos e das aparências, que, através do devir,
afirma falaciosamente o movimento, o nascer e o perecer: se tudo está em perene
movimento do nascer e do perecer, então quer dizer que segundo esta via o ser tem
uma estrita relação e ligação com não-ser (o que, segundo Parmênides, justamente não
pode sequer ser pensado!). Desta maneira, admitir o ‘ser’ juntamente com o ‘não-ser’
seria o mesmo que admitir que algo possa ser e não-ser ao mesmo tempo. Por isso que
a doxa deve ser eliminada pela razão, pois aquele que quer conceber a verdade do ser
que ‘é’, não pode ficar preso aos enganos dos sentidos que proclamam a falsidade
daquilo que ‘não-é’:

O que se pode dizer e pensar é forçoso que seja; pois lhe é possível ser,
e não ao que nada é; isto te ordeno que medites. Este é o primeiro
caminho de investigação do qual te afasto e logo daquele também, no
qual vagueiam os mortais que nada sabem, bicéfalos; pois a
incapacidade lhes guia no peito a mente errante; eles são levados,
surdos e cegos a um tempo, totalmente confundidos – multidões sem
discernimento, persuadidos de que ser e não ser são a mesma coisa,
apesar de não o serem, e para quem o caminho de todas as coisas é
reversível7 (Parmênides apud KIRK; RAVEN, 1982, p. 277).

De modo oposto às teses de Parmênides estão as conclusões de Heráclito.


Observando que todas as coisas estão em movimento, devidas suas transformações
físicas e suas contínuas mudanças de estado (devir), Heráclito adotou tais fenômenos
como a lei geral do Cosmo (physis), concluindo que todas as coisas estão em perene
movimento, isto é, tudo muda, tudo flui, não ficando nada no mesmo estado. Ele deixa

6
Sobre o fragmento 2 de Parmênides (versos 1-8): transmitido por Proclo, em sua obra Comentário ao
Timeu de Platão (In Platonis Timaeum).
7
Sobre o fragmento 6 de Parmênides (versos 1-9): fragmento reportado por Simplício (séc. VI d.C.),
filósofo Neoplatônico, em sua obra Comentário à Física de Aristóteles (In Aristotelis Physicorum Libros).
14

muito claro essa tese em seu fragmento 91: “não se pode entrar duas vezes no mesmo
rio”8 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 83); ou então como está descrito no
fragmento 12: “para os que entram nos mesmos rios afluem sempre outras águas”9
(Heráclito apud LEÃO; WRUBLEWSKI, 1999, p. 61).
Porém, como Heráclito consegue explicar a doutrina do devir a partir do cosmo
e no próprio cosmo? Segundo Heráclito, o devir se processa na realidade através dos
contrários, que é, na verdade, o motor deste fluir, pois o novo tem a necessidade de se
tornar velho, “o frio se esquenta, o quente se esfria, o úmido seca, o seco se
umidifica”10 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 93), e assim por diante. Sem a
presença destes contrários que se alternam e que lutam um com o outro, como numa
perpétua guerra, torna-se impossível qualquer mudança na realidade, como assim faz
alusão o fragmento 53: “de todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor”11 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 73).
Com isso, entende-se com mais clareza o significado aporético do que está
escrito no fragmento 49a: “no mesmo rio entramos e não entramos; somos e não
somos”12 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 71). A explicação é simples: para
algo ser aquilo que ‘é’ no presente momento, ele deve ‘não ser mais’ aquilo que era no
momento anterior; do mesmo modo que, para ‘continuar a ser’, algo deve
continuamente ‘não ser mais’ aquilo que ‘é’ a cada momento presente. Aqui se faz
presente a dialética e a tensão entre ser e não-ser.
E qual é o posicionamento de Nietzsche? Do ponto de vista da constituição da
8
Sobre o fragmento 91 de Heráclito: fragmento transmitido por Plutarco (50 d.C.-120 d.C.), filósofo
médio platônico e biógrafo, em sua obra Sobre o ‘E’ de Delfos (De ‘E’ apud Delphos).
9
Sobre o fragmento 12 de Heráclito: fragmento reportado por Eusébio de Cesaréia (sécs. III-IV d.C.),
escritor cristão antigo, em sua obra Praeparatio Evangelica.
10
Sobre o fragmento 126 de Heráclito: fragmento reportado por João Tzetze (séc. XII d.C.), poeta
bizantino, em sua obra Escólios para a Exegese da Ilíada.
11
Sobre o fragmento 53 de Heráclito: fragmento reportado por Hipólito (sécs. II-III d.C.), autor cristão
antigo, em sua obra Refutação de todas as heresias (Refutatio omnium haeresium).
12
Sobre o fragmento 49a de Heráclito: a legitimidade da atribuição deste fragmento à Heráclito é
questionável. Segundo Kirk e Raven, o fragmento 49a foi erroneamente atribuído por Diels-Kranz a
Heráclito. Segundo eles, trata-se apenas de desenvolvimento ou uma extensão do fragmento 12 relatado
por Eusébio de Cesaréia. Talvez seja por isso que haja dois fragmentos com o mesmo número (49 e
49a). Mais informações cf. KIRK; RAVEN, 1982, p. 200.
15

subjetividade, segundo Nietzsche, não há nada fixo no homem, nada estável capaz de
estruturar a identidade de alguém. Desta maneira, Nietzsche radicaliza as teses de
Heráclito afirmando a não existência de nenhuma essência estável no homem, capaz
de dar a ele uma essência pronta e acabada, um ser, sobre o qual é possível deduzir a
presença de qualquer pressuposição ‘identitário’. Veja como ele descreve bem essa
tese em Crepúsculo dos Ídolos:

Outrora se tomava a alteração, a mudança, o vir-a-ser em geral como


prova de aparência, como signo de que tem de haver algo que nos induz
em erro. Hoje, inversamente, na exata medida em que o preconceito da
razão nos coage a pôr unidade, identidade, duração, substância, causa,
coisidade, ser, vemo-nos, de certo modo, enredados no erro,
necessitados ao erro; tão seguros estamos, com fundamento em um
cômputo rigoroso dentro de nós, de que aqui está o erro. [...] De fato,
nada até agora teve uma mais ingênua força persuasiva do que o erro
do ser, tal como foi, por exemplo, formulado pelos eleatas: pois esse
erro tem a seu favor cada palavra, cada proposição que nós falamos!
(NIETZSCHE, 1999, p. 375).

Desta maneira, a subjetividade nietzschiana não está presa aos moldes da


cultura tradicionais, embotadas em padrões morais enrijecidos e atrofiados; pelo
contrário, exercer de modo positivo a subjetividade é abrir espaço para uma
reconstrução quase que artística da vida, uma forma reinvenção das múltiplas formas
de vida que não sejam a da identidade do ‘Eu’. Para Giacóia (2004, p. 100-101), o
percurso de formação nietzschiana “é pontuado pela presença constante do outro,
desenhando, portanto, uma linha de fuga em relação a um pseudo-centro identitário,
um movimento de afastamento que possibilita a reapropriação, por um retorno reflexivo
a si (2004, p. 100-101). Noutra parte do Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche condena
essa ideia de ‘Eu’ como forma substanciada do ‘ser’:

[...] entramos em um grosseiro fetichismo, quando trazemos à


consciência as pressuposições fundamentais da metafísica da
linguagem, ou, dito em alemão, da razão. Esse vê por toda parte agente
e ato: esse acredita em vontade como causa em geral; esse acredita no
“eu”, no eu como ser, no eu como substância, e projeta a crença da
substância-eu sobre todas as coisas - somente com isso cria o conceito
“coisa”... O ser é por toda parte pensado-junto, introduzido sub-
16

repticiamente; somente da concepção “eu” se segue, como derivado, o


conceito “ser”... (NIETZSCHE, 1999, p. 375).

Na obra O Anticristo, Nietzsche deixa bem claro que a ideia de consciência


enquanto controle do eu é depreciativo para a condição humana, “o tornar-se
consciente, ‘o espírito’, é para nós o sintoma de uma relativa imperfeição do organismo,
é experimentar, tatear, errar, um esforço em que muita energia nervosa é gasta
desnecessariamente” (NIETZSCHE, 2007, p. 14). Isso porque, segundo Nietzsche, a vida
em potência plena é centrada não nos padrões da racionalidade, mas na vitalidade dos
instintos, reafirmando os valores corporais como elementos centrais para a
subjetividade humana.
No prefácio de Gaia Ciência, já acenava criticamente a esse respeito: “o
inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da
ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta – e frequentemente me
perguntei se até hoje a filosofia de modo geral não terá sido apenas uma interpretação
do corpo e uma má compreensão do corpo” (NIETZSCHE, 2001, p. 2). E no Assim falou
Zaratustra afirma fervorosamente: “eu sou todo corpo e nada além disso; e a alma é
somente uma palavra para alguma coisa do corpo” (NIETZSCHE, 1998, p. 5).
Diametralmente oposto à subjetividade cartesiana13, Nietzsche aposta num
conceito de subjetividade livre de uma racionalidade estéril e voltada para si. A
sociedade moderna, em seu discurso racional que demoniza a esfera dos instintos, faz
com que a pessoa volte-se para si mesmo, encapsulando-a interiormente e criando uma
subjetividade rígida e fechada. É nesse sentido que se interpõe a crítica de Nietzsche:

Em tempos tais como hoje, estar abandonado a seus instintos é uma


fatalidade a mais. Esses instintos se contradizem, se estorvam, se
destroem uns aos outros; já defini o moderno como a autocontradição
fisiológica. A razão da educação quereria que, sob uma férrea pressão,
pelo menos um desses sistemas de instintos fosse paralisado, para
13
No Discurso do Método, Descartes descreve a sua subjetividade nos seguintes termos: “por isso
reconheci que eu era uma substância, cuja única essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não
necessita de nenhum lugar material nem depende de coisa alguma material. De sorte que este eu, isto é,
a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele, e,
mesmo se o corpo não existisse, ele não deixaria de ser tudo o que é” (DESCARTES, 2001, p. 38-39).
17

permitir a um outro criar forças, tornar-se forte, tornar-se senhor. Hoje


seria preciso, primeiro, tornar possível o indivíduo, amputando-o; [...]
Mas é um sintoma da décadence: nosso moderno conceito “liberdade” é
uma prova a mais de degeneração dos instintos (NIETZSCHE, 1999, p.
386-387).

4. EDUCAÇÃO EM NIETZSCHE: EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA E CRÍTICA À ADULTIZAÇÃO DA


INFÂNCIA

Nietzsche propõe uma educação livre de qualquer herança dogmática da


tradição. Por muito tempo a educação foi confundida como uma mera transmissão de
conhecimento. Este é o ponto central da crítica de Nietzsche: o saber dogmático usa a
educação para transmitir seus valores morais, promovendo assim a massificação, a
letargia e o enquadramento dos indivíduos na sociedade.
Desta maneira, Nietzsche põe em dúvida a validade de uma educação moral
ideal e pré-estabelecida, que pretende presuntivamente ser o exemplo mais acabado
de processo pedagógico. Pelo contrário, para Nietzsche a verdadeira educação não é
aquela que confere próteses artificiais, narizes de cera, olhos oculizados, ou seja, o
saber dogmático e engessado da tradição, mas sim aquele saber que liberta, que revela
o verdadeiro sentido do que é essência, como também a sua legítima matéria
fundamental. É justamente no conhecido trecho de Nietzsche, retirado de suas
Considerações Extemporâneas e reportado por Giacóia, que há uma proposta clara de
uma educação voltada para a autonomia crítica:

Teus verdadeiros educadores e formadores te revelam o que é o


verdadeiro sentido originário e a matéria fundamental de tua essência,
algo inteiramente não ensinável, não modelável, em todo caso
dificilmente acessível, atado, entravado: teus educadores conseguem
não ser mais que teus libertadores. E esse é o segredo de toda
educação: ela não confere próteses artificiais, narizes de cera, olhos
oculizados, – pelo contrário: o que consegue proporcionar tais dons é
antes imitação de educação. Esta, porém, é libertação, remoção de toda
erva daninha, entulho, vermes, que querem atingir a delicada semente
da planta, jorro de luz e calor, amoroso murmúrio de chuva noturna; ela
é imitação e adoração da natureza, onde esta é maternal e
18

misericordiosamente disposta; é aperfeiçoamento da natureza, quando


previne e volta para o bem os cruéis e impiedosos acessos, quando
estende um véu sobre as exteriorizações de sua disposição madrasta e
de sua triste incompreensão (Nietzsche apud GIACÓIA, 2004, p. 101).

Hermann, em sua obra Pluralidade Ética em Educação, afirma claramente o


itinerário de Nietzsche com relação à educação: “Nietzsche desmascara conceitos
pedagógicos originários do contexto do idealismo alemão, tais como os de humanidade,
autonomia, julgamento, razão, autenticidade como autotransparência e unidade de
entendimento e de ação” (HERMANN, 2001, p. 80). Logo, com a destruição do primado
moral e a introdução da idéia de transvaloração dos valores (isto é, a criação de
valores), Nietzsche deixa a tradição da educação desfalecida.
Cabe, portanto, a cada um ser dono de sua autonomia: como a essência do
homem não é dada por nada nem ninguém, somente a ele cabe fazer seu destino.
Segundo Larrosa, no pensamento de Nietzsche existe uma arte singular, ou seja, a arte
de fazer com que cada um desenvolva seus próprios valores, sua potencialidades,
torne-se a si próprio:

Chega a ser o que és! Talvez a arte da educação não seja outrora senão
a arte de fazer com que cada um torne-se em si mesmo, até sua própria
altura, até o melhor de suas possibilidades. Algo, naturalmente, que não
se pode fazer de modo técnico nem de modo massificado (LARROSA,
2002, p. 45).

A vontade de ser demasiadamente humano e dono de si mesmo, de


transcender a legalidade dogmática e voltar-se sobre si e para além de si é a
verdadeira essência do homem; só o sujeito pode constituir-se e constituir o mundo.
Isso acaba com o controle absoluto do processo educativo do professor com base na
transmissão de informações e no controle moral. Aliás, essa pode ser inclusive uma
forte crítica direcionada à educação atual: a pedagogia tenta incessantemente
‘adultizar’ a infância, fazendo que ela seja cada vez mais ressentida e reacionária, isto
é, moldada exclusivamente pelo circuito de forças do ‘escravo’. Como afirma Corazza
(2002, p. 70-71), esse projeto de infância ‘adultizada’ deseja, acima de qualquer coisa,
19

‘demonizar’ o infantil para estabelecer a superioridade do adulto:

O Adulto da Pedagogia reage ao Infantil desse modo pesado. Começa


por perguntar o que ele pretende, intenciona, objetiva, visa com suas
brincadeiras, risos, jogos, danças, leveza. Infantilidades que trazem ao
Adulto tantos transtornos, desequilíbrios, desordens, anormalidade,
aniquilamentos, desidentificações, perdas de referência: na sala de aula,
na escola, na cultura. Para o Adulto, está completo o seguinte
paralogismo: - O Infantil da Pedagogia é mau (quer dizer, os infantis são
todos eles maus, os maus são os infantis). – Ora, Eu, que educo e
adultizo o Infantil, Eu, Adulto da Pedagogia, sou o contrário de um
infantil; portanto, eu sou bom (CORAZZA, 2002, p. 70-71).

A educação deve provocar um processo de criativo de libertação de realidades


pré-estabelecidas e causadoras da inércia das massas e do anonimato tranqüilizador,
capazes também de anular a inventividade crítica do educando. Portanto, é preciso
quebrar com essa ideia enrustida na pedagogia de que “o infantil é aquele que não se
adultizou, ainda” (CORAZZA, 2002, p. 72). Educar para autonomia começa com esse
fortalecimento da ‘positividade de vida’ no educando, não ressentida e contraída em si,
mas potencializada para o mundo, para o outro, para fora, numa combinação de forças
que enobrecem a infância, dotando-a de liberdade para ‘enxergar’ o mundo a partir de
suas próprias lentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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20

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KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. (Orgs.) Os Filósofos Pré-Socráticos. Tradução de Carlos
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