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INTRODUÇÃO
No entanto, é na obra Crepúsculo dos Ídolos que Nietzsche chega a sua crítica
mais formal e direta com relação ao pensamento socrático: reconhece que Sócrates, o
principal representante da filosofia grega antiga, é também o modelo mais acabado da
decadência do Ocidente. Mas por que Nietzsche afirma isso? O motivo é que todos os
‘sábios’ antigos, em especial Sócrates, colocaram-se negativamente perante a vida,
perante os instintos, e nome de uma falsa virtude e felicidade (NIETZSCHE, 1999).
Aliás, continua Nietzsche, Sócrates não construiu um projeto de vida virtuosa,
mas um projeto de vida desfigurada, vazia, fria e calculista. Desta maneira, é um auto-
engano dos filósofos e moralistas acreditarem que é possível superar a decadência ao
fazerem guerra com ela mesma, pois a superação da decadência está muito além de
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No entanto, segundo a crítica nietzscheana, quando se fala nas figuras do ‘nobre’ e do ‘escravo’ não se
deve personificar os elementos como se fossem os indivíduos em seus papéis sociais. As figuras são
metafóricas e precisam ser interpretadas como ‘circuito de forças’, isto é, como forças impessoais que
estão em constante tensão e conflito.
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“Numa perambulação pelas muitas morais, as mais finas e as mais grosseiras, que até agora
dominaram e continuam dominando na terra, encontrei certos traços que regularmente retornam juntos e
ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos, e uma diferença fundamental
sobressaiu” (NIETZSCHE, 1992, p. 172).
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Em Além do Bem e do Mal, escreve Nietzsche: “Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos
[...] No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de “bom”, são os estados de alma
elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre
afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os
despreza” (NIETZSCHE, 1992, p. 172).
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Ainda em Além do Bem e do Mal: “É diferente com o segundo tipo de moral, a moral dos escravos. [...]
A moral dos escravos é essencialmente uma moral de utilidade. Aqui está o foco de origem da famosa
oposição “bom” e “mau” – no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza
e força que não permite o desprezo. Logo segundo a moral dos escravos o “mau” inspira medo; segundo
a moral dos senhores e precisamente o “bom” que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem
“ruim” é sentido como desprezível” (NIETZSCHE, 1992, p. 174-175).
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ESQUECIMENTO DO SIGNO
Fabular sobre um “outro” mundo, que não este, não tem nenhum
sentido, pressupondo que um instinto de calúnia, apequenamento,
suspeição contra a vida, não tenha potência em nós: neste último caso
vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma “outra” vida, de uma
vida “melhor”. [...] Dividir o mundo em um “verdadeiro” e um “aparente”,
seja ao modo do cristianismo, seja ao modo de Kant (de um cristão
capcioso, em última instância) é somente uma sugestão da décadence
um sintoma de vida declinante... (NIETZSCHE, 1999, p. 376).
Neste sentido, a metafísica Ocidental é uma ficção dogmática Por quê? Porque
é uma vontade de poder, um discurso manipulador que tenta através do esquecimento
do signo transformar o aspecto positivo do homem numa mísera visão negativa,
subvertendo o sentido daquilo que anula a humanidade num valor benéfico em si e
inquestionável. Em Além do Bem e do Mal, forçando o dogmático a explicitar seu
peculiar modo de pensar, responde-nos Nietzsche de que tipo de verdade se trata:
Além do que, será no embate moral pela escolha do legítimo ‘bem em si’, que
cada um escolherá a melhor maneira de impor sua concepção de bem para o outro. Por
trás dessa idéia está a concepção de vontade de poder: trata-se de um desejo que
encontraria suporte na hipótese de um sujeito pleno e superior, numa casta inefável e
dogmática, que, enquanto sempre se acha repleta de verdades intocáveis, compadece-
se da inferioridade de outros que não estão à sua altura, daqueles infelizes derrotados,
fadados a estar numa eterna posição de errante.
Por fim, através de sua Genealogia, Nietzsche direciona uma crítica mais
pontual à Metafísica ocidental, como uma espécie de ‘gramática’, pois implica em uma
construção linguística, como é possível perceber no princípio da identidade, da não-
contradição, definição de essência, de ser etc., que, ao passar do tempo, não são mais
transmitidos como criações linguísticas e histórico-culturais, mas como essências
metafísicas atemporais. Desta forma, segundo o comentador Rey, a metafísica não é
uma realidade, mas apenas uma forma de conceber a realidade que foi construída
historicamente e num contexto determinado:
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discurso dogmático ela camuflou os interesses de quem a formulou, fazendo com que
tais críticas ficassem obsoletas e esquecidas ao longo do tempo. Veja como essa ideia
aparece de cheio no trecho abaixo de Nietzsche:
Foi só em nome de uma origem sempre tida por idêntica consigo mesma
que o conceito de ser pôde instituir-se como verdade sem condição,
como significado eterno, ou ainda como valor último: presença
indefinidamente renovada sob nomes diferentes (“princípio”, “causa”,
“verdade”, “fundamento” etc.), presença que encontrava sua garantia
última no discurso, pelo menos numa forma de crença que se supõe
validada pelo discurso metafísico (REY, 1974, p. 145).
justamente
O que se pode dizer e pensar é forçoso que seja; pois lhe é possível ser,
e não ao que nada é; isto te ordeno que medites. Este é o primeiro
caminho de investigação do qual te afasto e logo daquele também, no
qual vagueiam os mortais que nada sabem, bicéfalos; pois a
incapacidade lhes guia no peito a mente errante; eles são levados,
surdos e cegos a um tempo, totalmente confundidos – multidões sem
discernimento, persuadidos de que ser e não ser são a mesma coisa,
apesar de não o serem, e para quem o caminho de todas as coisas é
reversível7 (Parmênides apud KIRK; RAVEN, 1982, p. 277).
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Sobre o fragmento 2 de Parmênides (versos 1-8): transmitido por Proclo, em sua obra Comentário ao
Timeu de Platão (In Platonis Timaeum).
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Sobre o fragmento 6 de Parmênides (versos 1-9): fragmento reportado por Simplício (séc. VI d.C.),
filósofo Neoplatônico, em sua obra Comentário à Física de Aristóteles (In Aristotelis Physicorum Libros).
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muito claro essa tese em seu fragmento 91: “não se pode entrar duas vezes no mesmo
rio”8 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 83); ou então como está descrito no
fragmento 12: “para os que entram nos mesmos rios afluem sempre outras águas”9
(Heráclito apud LEÃO; WRUBLEWSKI, 1999, p. 61).
Porém, como Heráclito consegue explicar a doutrina do devir a partir do cosmo
e no próprio cosmo? Segundo Heráclito, o devir se processa na realidade através dos
contrários, que é, na verdade, o motor deste fluir, pois o novo tem a necessidade de se
tornar velho, “o frio se esquenta, o quente se esfria, o úmido seca, o seco se
umidifica”10 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 93), e assim por diante. Sem a
presença destes contrários que se alternam e que lutam um com o outro, como numa
perpétua guerra, torna-se impossível qualquer mudança na realidade, como assim faz
alusão o fragmento 53: “de todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor”11 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 73).
Com isso, entende-se com mais clareza o significado aporético do que está
escrito no fragmento 49a: “no mesmo rio entramos e não entramos; somos e não
somos”12 (Heráclito apud LEÃO; W RUBLEWSKI, 1999, p. 71). A explicação é simples: para
algo ser aquilo que ‘é’ no presente momento, ele deve ‘não ser mais’ aquilo que era no
momento anterior; do mesmo modo que, para ‘continuar a ser’, algo deve
continuamente ‘não ser mais’ aquilo que ‘é’ a cada momento presente. Aqui se faz
presente a dialética e a tensão entre ser e não-ser.
E qual é o posicionamento de Nietzsche? Do ponto de vista da constituição da
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Sobre o fragmento 91 de Heráclito: fragmento transmitido por Plutarco (50 d.C.-120 d.C.), filósofo
médio platônico e biógrafo, em sua obra Sobre o ‘E’ de Delfos (De ‘E’ apud Delphos).
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Sobre o fragmento 12 de Heráclito: fragmento reportado por Eusébio de Cesaréia (sécs. III-IV d.C.),
escritor cristão antigo, em sua obra Praeparatio Evangelica.
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Sobre o fragmento 126 de Heráclito: fragmento reportado por João Tzetze (séc. XII d.C.), poeta
bizantino, em sua obra Escólios para a Exegese da Ilíada.
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Sobre o fragmento 53 de Heráclito: fragmento reportado por Hipólito (sécs. II-III d.C.), autor cristão
antigo, em sua obra Refutação de todas as heresias (Refutatio omnium haeresium).
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Sobre o fragmento 49a de Heráclito: a legitimidade da atribuição deste fragmento à Heráclito é
questionável. Segundo Kirk e Raven, o fragmento 49a foi erroneamente atribuído por Diels-Kranz a
Heráclito. Segundo eles, trata-se apenas de desenvolvimento ou uma extensão do fragmento 12 relatado
por Eusébio de Cesaréia. Talvez seja por isso que haja dois fragmentos com o mesmo número (49 e
49a). Mais informações cf. KIRK; RAVEN, 1982, p. 200.
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subjetividade, segundo Nietzsche, não há nada fixo no homem, nada estável capaz de
estruturar a identidade de alguém. Desta maneira, Nietzsche radicaliza as teses de
Heráclito afirmando a não existência de nenhuma essência estável no homem, capaz
de dar a ele uma essência pronta e acabada, um ser, sobre o qual é possível deduzir a
presença de qualquer pressuposição ‘identitário’. Veja como ele descreve bem essa
tese em Crepúsculo dos Ídolos:
Chega a ser o que és! Talvez a arte da educação não seja outrora senão
a arte de fazer com que cada um torne-se em si mesmo, até sua própria
altura, até o melhor de suas possibilidades. Algo, naturalmente, que não
se pode fazer de modo técnico nem de modo massificado (LARROSA,
2002, p. 45).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS