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O PITAGORISMO E SUA NOVA COMPREENSÃO DE PRINCÍPIO

Prof. Dr. Paulo Rogério da Silva

O pitagorismo foi um movimento filosófico fundado por Pitágoras de Samos entre os


séculos VI-V a.C., caracterizando uma das mais importantes escolas do pensamento antigo e
exercendo, durante séculos, sua marcante especulação filosófica. Porém, é muito difícil
distinguir o pensamento específico de Pitágoras do “pitagorismo em geral”, pois não se sabe ao
certo o limite que distingue e separa a filosofia de Pitágoras das diversas contribuições e
mudanças posteriores introduzidas por seus seguidores.
Torna-se arriscado falar somente de Pitágoras como sinônimo do pitagorismo; sabe-
se, atualmente, que muitos fragmentos1 descobertos atribuídos a Pitágoras, na verdade, foram
conquistas posteriores de seus discípulos, os chamados pitagóricos. Além do mais,
pouquíssimas fontes são dignas de confiança para serem consideradas históricas, uma vez que,
sua maioria, são obras de cunho fantasioso e mítico sobre a pessoa de Pitágoras, enfatizando
mais o seu aspecto divino do que humano e histórico (REALE, 1993).
Mas há outros motivos que ratificam mais ainda essa ideia, como por exemplo: a escola
fundada por Pitágoras tinha características de comunidade religiosa e mística, e visava,
enquanto objetivo primeiro, não a especulação filosofia dos números, mas a vivência de uma
vida religiosa e ascética. Sendo assim, os pitagóricos consideravam a filosofia dos números
como um meio – isto é, um instrumento – para a purificação de um novo estilo de vida. Com
isso, como de costume na antiguidade, a maior parte dos ensinamentos da escola pitagórica
foram mantidos em segredo; somente os integrantes iniciados na seita poderiam ter acesso a
tais conhecimentos, impedindo assim a divulgação da doutrina pitagórica para além dos muros
da escola.

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Alguns esclarecimentos acerca dos fragmentos e doxografias: 1) Fragmentos: Como não chegou integralmente
até nós nenhuma obra dos filósofos pré-socráticos, então, o pouco que se sabe sobre o que eles pensaram está
relatado em alguns trechos chamados de fragmentos dos pensadores originários, que ao longo da história foram
sendo reportados por outros filósofos e historiadores em suas respectivas obras (dentre eles, o mais antigo é Hípias;
no entanto, pode-se também citar outros nomes, como Platão, Aristóteles, Simplício, Plutarco, Sexto Empírico,
Clemente de Alexandria, Hipólito, Diógenes Laércio, João Estobeu e, esporadicamente, outros). 2) Doxografias:
já as doxografias, são os testemunhos, comentários, resumos de um historiador ou filósofo sobre a vida e filosofia
de um pré-socrático (dentre eles, encontram-se: Platão, Aristóteles, Teofrasto, Simplício, Alexandre de Afrodísia,
Apolodoro de Alexandria, Diógenes Laércio, Écio, Sócion de Alexandria, Hipólito, Santo Agostinho, Eusébio,
Arnóbio e outros). Em geral, os fragmentos são os ensinamentos dos próprios filósofos pré-socráticos, realizado
de maneira oral ou escrita, e que, muito provavelmente por motivo de extinção ou desaparecimento de sua obra,
foram reportados e transcritos pelas obras clássicas de outros historiadores e filósofos renomados; já as doxografias
são comentários e testemunhos de historiadores e filósofos clássicos acerca da vida e doutrina dos filósofos pré-
socráticos originários.
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De acordo com Diógenes Laêrtios2, essa divulgação só foi realizada plenamente com
Filolau de Crotona3 (séc. V a.C.), primeiro dentre os pitagóricos antigos a publicar a doutrina
do pitagorismo: “Nos Homônimos, Demétrios menciona que Filôlaos foi o primeiro a publicar
os livros dos pitagóricos e a dar-lhes o título Sobre a Natureza” (DIÓGENES LAÊRTIOS,
2008, p. 249). Esse jeito de lidar com o pensamento influenciou fortemente a Escola platônica,
principalmente em relação às doutrinas escritas e as doutrinas orais, ou seja, aquelas doutrinas
que, segundo Platão, valiam a pena serem publicadas nos livros (escritos exotéricos) e aquelas
doutrinas que deveriam permanecer internas à Academia através dos ensinamentos orais
(escritos esotéricos).
Mas o que interessa neste momento seria a contribuição do pitagorismo para a filosofia,
especialmente no que se refere à doutrina ou pensamento dos números como um novo princípio
primeiro da realidade: aquela causa primária (arché) que os jônicos inicialmente atribuíram
respectivamente à água, ápeiron e ar, para os pitagóricos foram substituídos pelos números e
por seus elementos constituintes, como assim relata textualmente Aristóteles em sua Metafísica:

[...] os chamados Pitagóricos foram os primeiros que se aplicaram à


Matemática, e não só fizeram progredir o seu estudo, mas também, adestrados
como estavam nele, julgaram que os seus princípios eram os princípios de
todas as coisas. Como, de tais princípios, os números são por natureza os
primeiros, e lhes parecia ver nos números muitas semelhanças com as coisas
que são e vêm a ser – mais do que no fogo, na terra e na água (sendo tal ou
qual modificação dos números a justiça, outra a alma e a razão, e outra ainda
a oportunidade – e, analogamente, comportando quase todas as demais coisas
uma expressão numérica); como, por outro lado, viam que as modificações e
as razões da escala musical podiam ser expressas em números; e como, em
suma, todas as coisas pareciam ser modeladas em sua natureza integral pelos
números, e os números se afiguravam ser as primeiras coisas na Natureza
como um todo, supuseram eles que os elementos dos números fossem os

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Diógenes Laércio (ou Diógenes Laêrtios) viveu por volta da primeira metade do século III d.C. Trata-se de um
doxógrafo importantíssimo pela vasta quantidade de informações e e detalhes que transmitiu acerca da história da
filosofia antiga. Sua obra chamada Vida dos Filósofos, dividida em 10 livros, chegou integralmente à
contemporaneidade.
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Sobre Filolau de Crotona, afirma Diógenes Laércio (Diógenes Laêrtios) na obra Vida e Doutrinas dos Filósofos
Ilustres: Filôlaos [Filolau], pitagótico, nasceu em Crôton. Platão escreveu a Díon pedindo-lhe para comprar seus
livros pitagóricos. [...] Esse filósofo escreveu um único livro, que, de acordo com o testemunho de Hêrmipos, certo
autor diz que Platão, quando esteve na Sicília para encontrar-se com Dionísios, havia comprado [este livro] dos
parentes de Filôlaos por quarenta minas alexandrinas de prata, e transcreveu essa obra no Tímaios [Timeu].
Segundo outros autores, Platão havia recebido esse volume por haver conseguido que Dionísios libertasse um
jovem prisioneiro, discípulo de Filôlaos (DIÓGENES LAÊRTIOS, 2008, p. 248-249). Sobre o fato curioso
relatado acima (isto é, do plágio de Platão à obra de Filolau), nos diz os comentadores Kirk e Raven (1982, p.
318): “esta história curiosa, de que este passo mostra ter havido várias versões diferentes, parece ter provavelmente
surgido com Aristóxeno. Foi certamente Aristóxeno quem, no seu desejo de diminuir a originalidade de Platão,
afirmou que a República se baseava em grande parte numa obra de Protágoras; e esta é evidentemente uma história
de igual modo mal-intencionada. A sua importância histórica é certamente irrelevante, mas serve para levantar a
importante questão da autenticidade dos fragmentos ainda conservados em nome de Filolau”.
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elementos de todas as coisas, e que o céu inteiro fosse uma escala musical e
um número (ARISTÓTELES, 1969, p. 46-47).

Porém, deve-se interpretar adequadamente o verdadeiro sentido do número para os


pitagóricos, pois entendê-lo “como concepção puramente aritmética, é incompreensível”
(JAEGER, 1995, p. 204). Pelo contrário, sua concepção é muito ampla e vasta: “a doutrina
pitagórica nada tem que ver com a ciência matemática natural, no sentido hodierno. Os números
têm nela um significado muito mais vasto. Não significam a redução dos fenômenos naturais a
relações quantitativas e calculáveis” (JAEGER, 1995, p. 205). Com isso, Pitágoras levou ao
interior da filosofia o mundo do número e os seus elementos como um novo princípio,
totalmente diferente de tudo aquilo que fora pensado até aquele momento (água, ápeiron ou ar).
Assim, como afirmou Aristóteles na doxografia acima, através da observação
harmoniosa do cosmo, percebido em perfeita ordem, que os pitagóricos chegaram à conclusão
e abstração dos números como causa originária de todo a realidade4: tudo parecia ser
influenciado por números, pois observavam que a harmonia musical era literalmente traduzida
pelo comprimento e espessura das cordas da lira; que eram as representações numéricas que
organizavam os dias, meses, estações e fenômenos do cosmo; que a diferença dos sons de uma
marreta na bigorna era reativa à diversidade de seu peso; que a própria gestação natural de uma
criança no ventre materno era determinada por uma sequência numérica calculável do tempo.
Essa noção contribuiu amplamente para o amadurecimento da filosofia antiga, uma
vez que o número passou a ser visto de outra forma, como algo fundamental e primário não só
para a realidade como tal, mas também para a vida e para o conhecimento humano, como assim
diz o fragmento 4 do pitagórico Filolau de Crotona: “todas as coisas que se podem conhecer
contêm número; sem este nada podia ser pensado ou conhecido”5 (FILOLAU apud KIRK;
RAVEN, 1982, p. 321).
No entanto, se prestarmos um pouco mais de atenção na doxografia reportada por
Aristóteles, se perceberá claramente que não são somente os números em si que são a causa ou
o princípio primeiro (arché) da realidade, mas também os seus elementos constituintes, que,

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Segundo o raciocínio dos pitagóricos, se o número é ordem, isto é, um acordo entre elementos ilimitados e
limitados, e se tudo é determinado por ele, então tudo é ordem. Desta forma, como o termo cosmos significa ordem,
os pitagóricos chamaram o universo de cosmos, devida tão grande harmonia e ordem expressada por ele, através
do número.
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Sobre o fragmento 4 de Filolau de Crotona: reportado por Estobeu, em sua obra Antologia (Anthologium).
Estobeu João foi um erudito do século V d. C., nativo da cidade de Estobe, Macedônia. Escreveu uma riquíssima
obra em quatro livros, originalmente chamada Quatro Extratos, Sentenças e Preceitos. No entanto, na Idade Média
a obra foi desmembrada em duas partes: a primeira passou a ser conhecida como Extratos Físicos e Éticos (Eclogae
Physicae et Ethicae) e a segunda foi chamada de Antologia ou Florilégio (Anthologium ou Florilegium).
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para os pitagóricos, seriam os mesmos elementos da realidade – contrastando assim da


afirmação que atribui prioritariamente aos números o papel de causa primeira ou arché. Confira
mais uma vez o trecho, agora sob este ponto de vista:

[...] como, em suma, todas as coisas pareciam ser modeladas em sua natureza
integral pelos números, e os números se afiguravam ser as primeiras coisas na
Natureza como um todo, supuseram eles que os elementos dos números fossem
os elementos de todas as coisas, e que o céu inteiro fosse uma escala musical
e um número (ARISTÓTELES, 1969, p. 47).

Em vista disto, os pitagóricos denominaram como explicação destes elementos


primeiros, a existência de números pares e ímpares, a partir dos quais cada coisa da realidade
seria correspondente a um número. Noutras palavras, cada coisa seria uma expressão relativa
de números pares ou de números ímpares – com exceção do número 1, que logo mais será
explicado –, como assim afirma o fragmento 5 de Filolau: “o número tem duas formas especiais,
ímpar e par, e uma terceira forma derivada da mistura destas duas, par-ímpar. Cada forma tem
muitas manifestações, que todas as coisas individuais revelam na sua própria natureza”6
(FILOLAU apud KIRK; RAVEN, 1982, p. 319).
Mas estes números pares e ímpares ainda não são os específicos elementos originários
e constituintes da natureza. De acordo com os pitagóricos, tais elementos originários foram
atribuídos ao ilimitado e ao limitante: enquanto o primeiro (ilimitado) possui as características
de indeterminação e infinitude, identificando-se assim com os números pares, o segundo
(limitante) possui as características de determinação e limitação, identificando-se, por sua vez,
com os números impares. Tais elementos foram considerados pelos pitagóricos como os
princípios elementares não somente dos números, mas também de todo o cosmo em geral, como
assim atesta o fragmento 2 de Filolau:

Necessariamente todas as coisas devem ser ou limitadas ou ilimitadas, ou tanto


limitadas como ilimitadas. Tão-só ilimitadas ou limitadas não podem ser.
Como, evidentemente, não constam só de (elementos) limitados ou ilimitados,
torna-se evidente ter sido ordenado o cosmos e as coisas nele existentes de
(elementos) limitados e ilimitados. O que confirma as observações dos fatos.
Pois aquelas das coisas reais compostas de (elementos) limitados são
limitadas; as compostas de (elementos) limitados e ilimitados são limitadas e
ilimitadas; e aquelas compostas de (elementos) ilimitados aparecem como
ilimitadas7 (FILOLAU apud BORNHEIM, 2002, p. 85).

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Sobre o fragmento 5 de Filolau de Crotona: reportado por Estobeu, em sua Antologia (Anthologium).
7
Sobre o fragmento 2 de Filolau de Crotona: reportado por Estobeu, em sua obra Extratos Físicos e Éticos
(Eclogae Physicae et Ethicae).
5

Com isso, além de inovarem o princípio primeiro, denominando-os como os números


e os seus elementos, os pitagóricos também contribuíram com a ideia da mútua harmonia entre
os elementos opostos (limitado-ilimitado, determinação-indeterminação etc.) por meio da
matemática e da filosofia. Veja como Filolau justifica objetivamente esta ideia em seu
fragmento 3, ao afirmar tanto a necessidade da existência do limitado como do ilimitado: “se
tudo fosse ilimitado, em princípio não haveria nem mesmo objeto de conhecimento”8
(FILOLAU apud BORNHEIM, 2002, p. 85). Essa doutrina pitagórica específica influenciou
tanto a filosofia grega antiga, que até mesmo Aristóteles, que muito criticou o pitagorismo,
chegou a usá-la em seu pensamento ético: “[...] pois o mal pertence à classe do ilimitado e o
bem à do limitado, conforme os pitagóricos imaginaram” (ARISTÓTELES, 2002, p. 49).
Com Platão também não foi diferente, uma vez que, para a sua filosofia, o pitagorismo
foi um ponto de referência. Ele mesmo chegou a concordar com os pitagóricos: “é provável
que, assim, como os olhos foram moldados para a astronomia, os ouvidos foram formados para
o movimento harmônico e as próprias ciências são irmãs uma da outra, tal como afirmam os
Pitagóricos e nós, ó Glaucon, concordamos” (PLATÃO, 1996, p. 345). Em passagem do
Górgias, professa abertamente a crença pitagórica da ordem e retidão do cosmo: “segundo os
sábios, Cálicles, o céu, a Terra, os deuses e os homens estão unidos pela comunhão, amizade,
ordem, cordura e justiça; por isso, meu amigo, chamam ao universo o ‘cosmo’, isto é, boa ordem
e não desordem, nem desenfreio” (PLATÃO, 1970, p. 160).
Todavia, foi a concepção pitagórica de determinante e indeterminado que influenciou
amplamente a metafísica platônica; seria impossível compreender a teoria dos Princípios
Supremos do Uno e da Díade Ilimitada, se não voltar o olhar para o pensamento pitagórico.
Nesta teoria platônica os dois Princípios se completam, pois assim como a Díade Ilimitada é o

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Sobre o fragmento 3 de Filolau de Crotona: reportado por Jâmblico, em sua obra Sobre a Introdução
Aritmética de Nicômaco (In Nicomachi arithmeticam introductionem). Jâmblico de Cálcides nasceu em torno à
metade do século III d.C. e morreu no terceiro decênio do século IV; foi um filósofo neoplatônico e fundador da
escola siríaca. Da sua enorme produção literária, pode-se citar as seguintes obras: [1] Conjunto das Doutrinas
Pitagóricas (Synagoge Pythagorica), originariamente constituído de 10 tratados (mas que infelizmente só chegou
à contemporaneidade os 4 primeiros): I) Vida Pitagórica; II) Protrético ou Exortação à filosofia; III) Sobre a
Ciência Matemática Comum; IV) Sobre a Introdução Aritmética de Nicômaco; V) [?] (o quinto tratado
provavelmente era sobre o desenvolvimento dos números em chave física); VI) [?] (o sexto tratado provavelmente
estava relacionado ao desenvolvimento das valências éticas dos números); VII) Teologia Aritmética; VIII) [?] (o
oitavo tratado era sobre a música); IX) [?] (o nono tratado era sobre a geometria); X) [?] (o décimo tratado
provavelmente devia se tratar da astronomia). [2] Os Mistérios Egípcios (De Mysteris Aegyptiorum). [3] Teologia
Caldaica (em 28 livros). [4] Sobre a Alma (De Anima) (fragmentos conservados na Antologia de Estobeu). [5]
Epístolas. [6] Fragmentos e Comentários – isto é, uma coletânea de comentários sobre os textos de Aristóteles
(Categorias e Primeiros Analíticos) e de Platão (Alcibíades Maior, Fédon, Crátilo, Sofista, Fedro, Filebo, Timeu
e Parmênides), conservados por diversos autores.
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princípio da indeterminação, o princípio do “grande-e-pequeno”, a matéria inteligível e


indeterminada das ideias, o Uno é princípio determinador, que dá forma e limitação às ideias,
gerando, com isso, a multiplicidade do mundo inteligível (é importante lembrar, no entanto,
que esta limitação determinada pelo Uno não se trata de um sentido de impotência ou
contingência, mas compreendida no sentido pitagórico de acabamento e perfeição).
Além disso, também é possível perceber que a própria doutrina do Uno de Platão
recebeu uma influência fortíssima da doutrina do número “um” dos pitagóricos: para eles, o
número 1 era a fonte de todos os outros números e, por isso, não era identificado nem como
par, nem como ímpar, mas como algo pertencente a um terceiro gênero numérico – o
“parímpar” –, capaz de gerar tanto o par (não-limitação, indeterminação) como também o ímpar
(limitação, determinação). A justificativa é bem simples: ao acrescentar o número 1 a qualquer
número par, o resultado sempre será um número ímpar; e ao acrescentar este número a qualquer
número ímpar, teremos então um número par. Sobre este parecer, é importantíssimo o relato de
Téon de Esmirna9, em sua obra Exposição dos Conhecimentos Matemáticos úteis para ler
Platão:

A primeira divisão dos números que eles fazem é de duas classes, chamando
a alguns de pares, a outros de ímpares. Os números pares são os que se podem
dividir em partes iguais, ímpares aqueles que só podem ser divididos em partes
desiguais. Alguns sustentaram que o primeiro dos números é 1. Pois, par é o
contrário de ímpar; 1 é ímpar ou par; não pode ser par; pois longe de ser
divisível em partes iguais, não pode ser mesmo dividido; donde se segue que
1 é ímpar. Além disso, se se adicionar par a par; o total é par; mas adicione-se
1 a um número par ele torna o total ímpar: donde se segue que 1 não é par,
mas ímpar. Aristóteles, contudo, na sua obra sobre os Pitagóricos, diz que o 1
participa da natureza de ambos; pois, quando adicionado a um número par
torna-o ímpar, quando adicionado a um número ímpar, torna-o par – o que
seria impossível, se não participasse da natureza de ambos; e assim, diz ele, é
chamado par-ímpar. Árquitas também concorda com Aristóteles neste ponto
(TÉON DE ESMIRNA apud KIRK; RAVEN, 1982, p. 328).

É notável que a doutrina pitagórica do número “um” (parímpar) se assemelha muito


com a doutrina do Uno de Platão10, pois é a partir deste princípio determinador (Uno) que todas

9
Téon de Esmirna foi um filósofo médio-platônico do século II d.C., com grande simpatia pelo pitagorismo.
Chegou inteiramente uma obra chamada Exposição dos Conhecimentos Matemáticos úteis para ler Platão
(Expositio Rerum Mathematicarum ad legendum Platonem utilium). Em 1878, o estudioso E. Hiller sistematizou
todos os fragmentos da obra na edição crítica Theonis Smyrne Philosophe Platonici Expositio Rerum
Mathematicarum ad legendum Platonem utilium.
10
Segundo Kirk e Raven (1982, p. 328), “a própria unidade, embora não caiba em nenhuma classe, é considerada
ímpar, porque não pode ser par, e a sua equação com o Limite é, assim, justificada. Mas mais cedo ou mais tarde,
tem de se reconhecer o facto de que, segundo estas definições, a unidade já não pode ser ímpar nem par. Assim,
enquanto as definições tradicionais são mantidas essencialmente inalteradas, a terceira categoria é introduzida para
7

as coisas inteligíveis e sensíveis serão constituídas11. Mais uma vez, na Metafísica, Aristóteles
já contemplava essa clara relação e influência da filosofia pitagórica na metafísica platônica:

Como as Formas [Ideias] eram as causas de tudo mais, ele [Platão] supôs que
os seus elementos fossem os elementos de todas as coisas. Como matéria
[causa material], o grande e o pequeno [Díade Ilimitada] eram os princípios;
como realidade essencial [causa formal], o Um [Uno]; pois é do grande e do
pequeno, pela participação no Um, que nasce os números. Concordava
[Platão], porém, com os Pitagóricos em afirmar que o Um [Uno] é substância,
e não predicado de outra coisa, e também que os números são as causas da
realidade de tudo mais (ARISTÓTELES, 1969, p. 50-51).

Como se pode observar, o pitagorismo influenciou muito a especulação metafísica de


Platão – sem falar da forte influência do aspecto ascético e religioso do pitagorismo em Platão,
que também se fez presente em seu pensamento moral. Alguém poderia até questionar se o
pensamento moral de Platão realmente foi influenciado pelo pensamento religioso do
pitagorismo, uma vez que todos os elementos presentes na moral ascética pitagorista também
estavam presentes no Orfismo, por exemplo. Embora coerente, tal suspeita também se revela
frágil no seguinte ponto: na condição de filósofo e fundador de uma escola de filosofia, seria
mais conveniente que Platão fizesse uso dos escritos matemáticos dos pitagóricos, do que os
registros religiosos das religiões populares. Sem dúvida que o Orfismo está presente no
pensamento de Platão, mas não ao ponto de anular a influência pitagórica. Isso também explica
por que alguns legados místicos adotados por Platão são mais comuns ao pitagorismo do que
ao Orfismo, como por exemplo, a questão da vida contemplativa – cuja prática foi iniciada
pelos pitagóricos –, abordada com objetividade em obras como Górgias e Fédon. Sobre isso a
influência da mística pitagórica na filosofia platônica, observe o que nos diz Hare:

Platão, tornou-se muito pitagórico na sua abordagem mística (ou religiosa, em


sentido lato) da alma e do seu lugar no mundo material – embora essa não
fosse a única fonte dessas teses, e de tanto Platão como Pitágoras poderem ter
sido influenciados por ideias vindas do Leste e pelas “religiões dos mistérios”,
como o Orfismo, que se propagou pela Grécia neste período. Os primeiros
Pitagóricos parecem (embora isto tenha sido discutido) ter sido dualistas no

conter a unidade e só a unidade. Aritmeticamente, sem dúvida, a consequência da mudança não tem grande
importância. O primeiro número ímpar já não é 1 mas 3; mas a unidade pode, presumivelmente, ficar como
princípio dos números e o seu processo de geração não tem necessariamente de ser alterado. Metafisicamente,
porém, visto que ímpar é Limite e par Ilimitado, as consequências parecem ser da maior importância. A primeira
unidade, o ponto de partida da cosmogonia pitagórica, já não é considerada como a concretização do Limite no
Ilimitado; é, em vez disso, o primeiro produto da mistura dos dois princípios”.
11
Deve-se lembrar que no pensamento platônico ainda não se tinha a concepção do criacionismo (coisas criadas a
partir do nada por um Ser único e Superior, ex-nihilo), mas já continha os germes para a conquista de tal concepção,
que se desenvolveu sistematicamente com o nascimento do cristianismo, através da ideia de Deus Criador.
8

que respeita à relação alma/corpo; isto é, pensavam como Platão viria a pensar,
que a alma ou a mente (psyché) era uma entidade distinta e separável do corpo.
Isto estava em consonância com o pensamento grego primitivo sobre a alma,
tal como se encontra, por exemplo, no mais antigo poeta grego, Homero
(HARE, 1998, p. 21-22).

Sendo assim, é plenamente possível afirmar que o pitagorismo (e sua nova concepção
de princípio) influenciou aspectos importantíssimos no pensamento platônico, até chegar àquela
descoberta que, unanimemente, trata-se do maior mérito da filosofia de Platão – e cujo ponto
de vista pitagórico ainda estava muito aquém: a descoberta da realidade metafísica, daquilo que
chamamos de “segunda navegação”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret,
2002.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969.
BORNHEIM, Gerd. A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Cultrix, 2002.
DIÓGENES LAÊRTIOS. Vidas e Doutrinas dos Filósofos mais Ilustres. Tradução de Mário
da Gama Kury. 2.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
HARE, R. M. O Pensamento de Platão. Tradução de Carlos Diniz. Lisboa: Editorial Presença,
1998.
JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E. (Orgs.) Os Filósofos Pré-Socráticos. Tradução de Carlos Alberto
Louro Fonseca; Beatriz Rodrigues Barbosa; Maria Adelaide Pegado. 2. ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1982.
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1996.
PLATÃO. Górgias. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Difusão Europeia, 1970.

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