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e insatisfeito com a proposta e solução maniqueísta,

Agostinho busca outra fonte inspiradora para tentar


dissolver as contradições relacionadas ao mal: através
dos sermões de Santo Ambrósio, conhece o pensamento
neoplatônico e dele retira a melhor seiva para a
fundamentação dos dogmas e teorias do cristianismo.
A SOLUÇÃO DO PROBLEMA DO MAL EM SANTO Desta maneira, o texto está organizado em duas
AGOSTINHO partes: no primeiro momento apresentaremos o
pressuposto da argumentação agostiniana: os elementos
doutrinários do maniqueísmo, como também suas
Prof. Dr. Paulo Rogério da Silva contradições internas que resultarão no rompimento de
Claretiano – Centro Universitário
Curso de Filosofia Agostinho com a doutrina maniqueísta e a procura por
outras bases teóricas. Em seguida, apresentaremos a
teoria agostiniana sobre o mal, a partir da distinção
INTRODUÇÃO
identificada em seus níveis ontológico-metafísico, físico
Dentre tantas questões difíceis em dar uma e moral.
resposta racional e esclarecedora, sem dúvida alguma, o
problema do mal é uma das mais citadas. Pelo fato de
se fazer presente e, em alguns momentos, até mesmo 1. PRESSUPOSTO DA ARGUMENTAÇÃO DE AGOSTINHO:
se confundir com a condição humana, o mal se torna A DOUTRINA DO MAL MANIQUEÍSTA
uma temática de ampla abrangência nos campos ético, Na busca incessante de Deus, Agostinho se depara
físico, metafísico, teológico, sociopolítico, cultural etc. com o problema do mal do qual se questiona: se tudo
Refletido e examinado desde a antiguidade até os dias provém de Deus, que é bom, de onde provém o mal?
atuais, o mal ainda continua sendo um desafio teórico- Sendo Deus amor, como pode haver o mal, sofrimento,
prático para a reflexão filosófica. morte, pecado? Qual é a sua origem? No decorrer de sua
No entanto, perpassando pela tradição grega e vida, ele amadurece seu pensamento, tornando tais
latina, foi com Santo Agostinho que o problema ganhou questionamentos um verdadeiro problema teológico-
seus primeiros delineamentos em direção daquilo que é filosófico. A pergunta inicial de Evódio, na obra O Livre-
considerada como a sua teoria sobre o mal. Angustiado Arbítrio, demonstra muito bem esta preocupação de

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Agostinho: “Peço-te que me digas, será Deus o autor do O maniqueísmo2 foi uma doutrina antiga, criada
mal?” (AGOSTINHO, 1995, p. 25). Mais a frente, ainda por Mani (ou Maniqueu), por volta do ano de 242 d.C.,
irrequieto, o mesmo outra vez insiste, porém agora na Pérsia, e espalhou-se amplamente por todo o
numa outra direção: “Dize-me, entretanto, qual a causa território vizinho, especialmente Egito, Síria, África do
de praticarmos o mal?” (AGOSTINHO, 1995, p. 28). Ao Norte e Itália (COSTA, 2002). Do ponto de vista
que parecem, estas duas perguntas de Evódio teológico-doutrinário, o maniqueísmo tem um caráter
manifestam declaradamente as duas questões principais panteísta que, “reunindo elementos do zoroastrismo e
do problema do mal em Agostinho: a) Qual é a origem do cristianismo, oferecia uma via racional de acesso a
do mal? b) Como e por que o mal acomete os homens? verdade e uma metafísica de cunho fortemente
Veja isto em outra passagem, agora descrito nas materialista” (COUTINHO, 2010, p. 125). O elemento
Confissões: doutrinal central do maniqueísmo diz respeito à figura
Mas de novo refletia: ‘Quem me criou? Não foi o meu Deus, de dois Princípios eternos. Desta maneira, o
que é bom, e é também a mesma bondade? Donde me veio, maniqueísmo acreditava que, desde sempre, há dois
então, o querer eu o mal e não querer o bem? Seria para que princípios ontológicos ou reinos que, pelo fato de serem
houvesse motivo de eu justamente ser castigado? Quem
colocou em mim e quem semeou em mim este viveiro de radicalmente antagônicos, estão fadados a lutarem
amarguras, sendo eu inteira criação do meu Deus tão entre si: o Bem e o Mal, ou a Luz e as Trevas.
amoroso? Se foi o demônio quem me criou, donde é que veio
ele?’ (AGOSTINHO, 1980, p. 142). Segundo Costa (2003, p, 40), o mito doutrinário do
No processo de desenvolvimento e busca de maniqueísmo sobre a existência dos princípios do Bem e
respostas às suas dúvidas, Agostinho encontra, num do Mal, criação do mundo e retorno às origens é
primeiro momento, uma primitiva explicação na chamado de “teologia solar”, cuja seiva está
doutrina do maniqueísmo, ao qual, segundo o que ele fundamentalmente nutrida no mandeísmo3, professando
mesmo revela nas Confissões, permaneceu fiel por nove assim a crença de que a totalidade do cosmo é dividida
anos1. em três tempos:

2
Segundo Santos e Pina (1980, p. 73) “O maniqueísmo espalhou-se
1.1 ELEMENTOS DOUTRINÁRIOS DO MANIQUEÍSMO principalmente pela Pérsia. Egito, Síria, África do Norte e Itália. Esta seita
foi fundada por Maniqueu (ou Manés), o qual, perseguido pelo rei e magos
1
“Durante esse período de nove anos, desde os dezenove até aos vinte e do seu país, a Pérsia, teve de refugiar-se na Mesopotâmia. Voltou à pátria,
oito, cercado de muitas paixões, era seduzido e seduzia, era enganado e onde foi esfolado e atirado às feras”.
3
enganava: às claras, com as ciências a que chamam liberais, e às ocultas, Trata-se da antiga doutrina gnóstica da qual se derivou em diversas
sob o falso nome de religião” (AGOSTINHO, 1980, p. 81, grifo do tradutor). ramificações.

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1) Tempo inicial ou anterior: trata-se do enviado); c) o momento da revelação e anúncio da
momento que “engloba as origens cósmicas dois doutrina do Maniqueísmo por Mani (COSTA, 2002).
princípios, o Bem e Mal, quando eles [ainda] viviam
Na primeira etapa do tempo médio, a do “Homem
independentes um do outro” (COSTA, 2003, p. 41), ou
Primordial”, é notável o surgimento da primitiva
seja, quando eles ainda desconheciam a existência um
matéria informe e caótica. Segundo Costa (2002, p. 71),
do outro4. Mais a frente, afirma Costa:
ainda em seu início, os maniqueístas acreditavam que o
No princípio do mito cosmológico, no ‘Momento Inicial’ ou Reino da Luz e o Reino das Trevas não sabiam da
‘Anterior’, há uma dualidade radical e inteira das duas
‘Naturezas’, de duas ‘Substâncias’ ou ‘Raízes’: a Luz e as
existência um do outro e, por isso, viviam de modo
Trevas, o Bem e o Mal, Deus e a Matéria. Cada um desses é independente. Mas, conta-se que numa dada ocasião, o
em si um ‘Princípio’, sendo incriados, autônomos, eternos, “Príncipe das Trevas”, ao ver a beleza da Luz, foi até o
cada um de potência igual. Enfim, eles não têm nada em
comum, mas se opõem em tudo (COSTA, 2003, p. 49). limite do Reino da Luz e, por inveja, transformou os
cincos elementos da matéria em emanações do mal5,
2) Tempo médio ou intermediário: trata-se do
lançando-os em seguida contra o “Pai da Grandeza”. Ao
momento “da mistura entre os dois reinos, que se
perceber ser atacado por criaturas das trevas (feitas de
caracterizará pela queda de uma parte da Luz na
sua própria substância), o “Pai da Grandeza” faz surgir
matéria e o início da luta entre os dois reinos” (COSTA,
o chamado “Homem Primordial” e o envia com seus
2003, p. 41). Este tempo é subdividido em três outras
cinco filhos (água, ar, fogo, terra e éter), com o intuito
etapas: a) o momento da prisão do “Homem
de reaver parte de sua natureza roubada e transformada
Primordial”, o primeiro enviado do “Pai da Grandeza”,
em trevas. No entanto, em meio à luta com o Reino das
e o surgimento da matéria informe e caótica; b) o
Trevas, o “Homem Primordial” e seus filhos são
momento da organização e criação do cosmo e dos seres
derrotados e aprisionados na matéria, surgindo
vivos, respectivamente com o “Espírito Vivificador” (o
definitivamente uma matéria informe, cuja mescla é
segundo enviado) e com o “Grande Espírito” (o terceiro
constituída de partículas da Luz e das Trevas.
4
Segundo Costa (2003), “Bem” e “Reino da Luz” são vistos dentro de uma Já o segundo momento do tempo médio, o
concepção panteísta, ou seja, dentro de uma visão de deus uno e múltiplo, momento da criação, é marcado pela ação de dois
identificado como uma mesma natureza e composto por cinco formas: luz,
beleza, paz, vida da alma do mundo e força da cruz de luz. Já o segundo
5
reino, o Reino das Trevas, consubstanciado em seu chefe satanás, é mal Para os maniqueístas, as formas dos cinco demônios antigos imanados das
em sua natureza própria, considerada como ilimitada e infinita, porém Trevas podem ser identificadas pela forma de quatro animais (leão, águia,
também física, vista como a noite do erro, da matéria, da carne e do peixe e serpente), cinco metais (ouro, cobre, ferro, prata e estanho) ou
desejo e composto por cinco formas maléficas: trevas, água turva, vento, ainda pelos cinco sabores (salgado, azedo, picante, insípido e amargo). Cf.
fumo e fogo. COSTA (2002).

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outros seres etéreos: o “Espírito Vivificador” que Manes, o profeta que anuncia o caminho para a
modela o cosmo, e o “Grande Espírito” (Mãe da Vida) libertação das almas boas através tanto da tomada de
que faz surgir os seres vivos e o homem. consciência daquele inferior estado de mescla com a
matéria (corpo) das trevas6, como também da
Como já mencionado, primeiramente, o “Pai da
rememoração daquele superior e original estado de
Grandeza” envia o “Espírito Vivificador”, identificado
lucidez e luminosidade da qual a alma pertence7. Por
na forma de um Demiurgo, para libertar a luz presa na
este motivo que Costa (2002, p. 71) mais uma vez
matéria: ele consegue libertar a alma do “Homem
afirma: “tal é a origem ontológica da mistura entre o
Primordial” aprisionada nas trevas da matéria, porém,
Bem e o Mal que justificará para sempre a necessidade
não os seus cinco filhos. Com isso, vendo a
de um salvador (dentre eles, Cristo e Mani), que liberte
impossibilidade de uma libertação total da luz, o
as partículas da Luz, ou a alma boa das armadilhas da
“Espírito Vivificador”, a partir destes cinco elementos
matéria”.
da luz mesclados nas trevas da matéria informe, modela
todo o cosmo, fazendo então surgir os astros, o sol, a 3) Tempo final: por fim, trata-se do tempo futuro
lua, as estrelas, as montanhas, dotando-os de espaço, que “será o retorno definitivo da Luz às origens, ou
movimento e tempo (dias, meses, anos etc.) (COSTA, seja, a libertação ou a separação de todas as luzes
2002, p. 73). imbricadas na matéria, com a entrada de todas as almas
no reino de Pai e a queda da matéria e dos demônios no
No entanto, a criação ainda não estava completa:
inferno” (COSTA, 2003, p. 41).
faltavam os seres viventes. Então, ainda com o intuito
de salvar a sua Luz abnegada na matéria, o “Pai da Agostinho, por nove anos viveu fortemente
Grandeza” envia o “Grande Espírito”, que “adota a bela influenciado pelo maniqueísmo8, chegando
e majestosa forma feminina de Virgem da Luz, ou Mãe
da vida, que, na sua desnudez radiante, excita os 6
Segundo Costa (2002, p. 81), “a partir de então, o homem recebe a
faculdade de reconhecer a mescla de sua condição humana, a dualidade
desejos carnais dos arcanjos do Mal, que expelem seu essencial que sua condição humana implica, na qual alma se sente
esperma” (COSTA, 2002, p. 75). E foi desta fecundação aterrorizado pela matéria, origem infernal de seu corpo, que é maldição”.
7
ou mescla entre Luz e Trevas que surgiram todos os Este convite é “uma espécie de “rememoração”, uma volta da alma que,
ao devolver-lhe a memória de seu passado, restabelece o seu estado de
seres vivos: os vegetais, os animais e o primeiro casal de lucidez e luminosidade. E assim, ao adquirir consciência e conhecimento
de si mesma, ao reencontrar-se a si mesma e em si mesmo, a alma se
humanos, Adão e Eva (COSTA, 2002). aparta automaticamente do que não é ela, do que lhe é estranho, quer
dizer, da matéria, ou da carne, ou há uma separação entre ela e o mal”
A terceira etapa do tempo médio é marcada pela (COSTA, 2003, p. 95).
revelação e anúncio da doutrina do maniqueísmo por 8
É importante ressaltar que o maniqueísmo não reduziu a sua existência

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posteriormente até a relatar que estava tão obcecado ontológicos, então, o que se pode concluir é que ele
por tal doutrina, que já não conseguia entender que a tem uma natureza boa e outra má, ou melhor, o homem
única verdade é a seguinte: que toda natureza é boa e é um ser dividido, naturalmente bom e mau.
que o mal é apenas a privação do bem (AGOSTINHO,
 Se há na natureza humana tanto o Bem como o
1990; 1995).
Mal, que constantemente lutam entre si, então o
homem é destituído de sua liberdade, pois todas as suas
1.2 O ROMPIMENTO DE AGOSTINHO: CONTRADIÇÕES DA ações nada mais são do que o resultado de uma
DOUTRINA MANIQUEÍSTA inclinação natural, que ora tende para o bem, ora para
o mal.
O próprio aprofundamento da doutrina
maniqueísta e a percepção de suas contradições  Se o homem é destituído de sua liberdade,
internas, juntamente com o encontro com a filosofia então quer dizer que nele não há a responsabilidade
neoplatônica e os impactos dos sermões de Santo moral – pois, como poderia ser responsável por
Ambrósio, fizeram Agostinho repensar sua fidelidade ao contrariar a sua própria natureza dada por Deus?
maniqueísmo. Agostinho tinha consciência de que levar Com isso, tomando consciência de como eram
em consideração estes princípios maniqueístas seria problemáticas e inconsistentes as teses e interpretações
afirmar a veracidade de quatro teses problemáticas e filosófico-teológicas decorrentes da doutrina
insustentáveis para a resolução do problema do mal: maniqueísta, Agostinho “hesitou prosseguir tal seita,
 Que tanto o Bem como o Mal existem chegando, inclusive, a julgar que o ceticismo dos
ontologicamente, como dois Princípios ou deuses filósofos da Nova Academia, a respeito da possibilidade
antagônicos, ingênitos e eternos. do conhecimento verdadeiro, parecia-lhe mais sensato
que as vãs divagações dos maniqueus” (COUTINHO,
 Se o homem é a junção destes dois Princípios 2010, p. 125). O ponto mais alto de sua refutação às
teses maniqueístas decorre a partir de sua obra A
apenas ao período de Agostinho, ou seja, por volta do séc. IV. Pelo Natureza do Bem, pela qual Agostinho rompe de uma
contrário, segundo Costa, o maniqueísmo perdurou por muito tempo, a vez todas com qualquer resquício com o maniqueísmo.
ponto de ser considerada como uma grande religião da história: “Ao longo
de quase mil e duzentos anos, desde o século III ao XV, a religião de Mani Assim escreve o filósofo:
desenvolveu suas conquistas, mantendo-se com maior ou menor sucesso,
mas suscitando ecos por toda a superfície do globo, tornando-se, ao lado Defendem, na verdade, que algumas almas, que dizem ser da
do Cristianismo, do Budismo e outras, uma das grandes religiões da substância e da natureza de Deus – e que pecaram não
humanidade (COSTA, 2003, p. 93). deliberadamente, mas por causa da gente das Trevas, que

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consideram uma natureza má, e contra a qual desceram a seja ele criado e dotado de existência por Deus, como
fim de a debelar, não voluntariamente, mas em virtude de
uma ordem do Pai –, foram vencidas subjugadas e
ele mesmo escreve em suas Confissões em tom de
aprisionadas para toda a eternidade na horrível esfera das lamento por outrora ter dado crédito à primeira
Trevas (AGOSTINHO, 1992, p. 79). hipótese:
Agostinho sabia que o problema do mal não E porque a minha piedade, como quer que ela fosse, me
poderia ser resolvido colocando o foco da questão na obrigava a crer que a bondade de Deus não criou nenhuma
possibilidade dele (o mal) existir de maneira ontológica natureza má, estabelecia eu duas substâncias opostas a si
mesmas, ambas infinitas: a do mal, mais diminuta, e a do
e determinada ao homem, como assim pregava o bem, mais extensa. Deste princípio pestilencial provinham as
maniqueísmo. O equívoco de Agostinho, em seu período restantes blasfêmias (AGOSTINHO, 1980, p. 113).
maniqueísta, foi ter procurado a origem do mal em Noutra passagem, é mais claro ainda quando
causas invertidas: “devia ter procurado primeiro a Deus afirma que Deus não pode ser subsumido na matéria
para olhar e depois ao redor e ver onde estava o mal” dentro de uma concepção panteísta:
(EVANS, 1995, p. 20). Ou seja, como diz Oliveira (1995, Ignorava que Deus é espírito e não tem membros dotados de
p. 16), “depois de ter sido vítima da explicação dualista comprimento e de largura, nem é matéria, porque a matéria
maniquéia, [...] ele encontra em Plotino a chave para é menor na sua parte do que no seu todo. Ainda que a
matéria fosse infinita, seria menor em alguma das suas
resolver a questão: o mal não é um ser, mas deficiência partes, limitada por um certo espaço, do que na sua
e privação de ser”. Isto ele mesmo afirma na obra O infinitude! Nem se concentra toda inteira em qualquer parte,
Livre-Arbítrio: como o espírito, como Deus (AGOSTINHO, 1980, p. 74).

Toda natureza (natura) que pode tornar-se menos boa,


Portanto, diante destas passagens das Confissões,
todavia, é boa. [...] Por isso se diz, com absoluta verdade, fica claro a mudança de concepção maniqueísta de
que toda natureza enquanto tal é boa. Mas se ela for Agostinho ao tomar conhecimento do neoplatonismo por
incorruptível será melhor do que a corruptível. E se ela for
corruptível – já que a corrupção não pode atingi-la senão intermédio dos sermões de Santo Ambrósio, mostrando
tornando-a menos boa, ela é indubitavelmente boa. Ora, assim “como os maniqueus eram incapazes de pensar
toda natureza ou é corruptível ou incorruptível. Portanto,
alguma substância que não fosse corpórea, inclusive a
toda natureza é boa (AGOSTINHO, 1995, p. 191-192).
substância de Deus” (COSTA, 2002, p. 45). Em outras
Após seu período maniqueísta, ficava cada vez
palavras, seus próprios desabafos relatados nas
mais evidente a sua divergência com o maniqueísmo.
Confissões provam que “até ouvir os sermões de
Rejeitava radicalmente, como já apresentado, que o
Ambrósio, Agostinho não imaginava a possibilidade de
mal tenha uma natureza ontológica em si, seja ela
uma substância espiritual. Deus era para ele, no
oposta ao próprio Deus, como um princípio coeterno,
maniqueísmo, uma substância corpórea” (COSTA, 2002,

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p. 45). Se pode haver um contrário pra substância, ou essência,
talvez seja que neste caso possamos encontrar o ‘nada’, a
não substância, o não ser. Se tudo o que existe é bom, segue
que o que está destituído de bondade está desprovido de
2. DIMENSÕES OU NÍVEIS DE MAL SEGUNDO existência. Inclusive coisas corrompidas são boas, pois se não
AGOSTINHO houvesse nada de bom nelas, não haveria aí que pudesse
corromper-se. Se fosse possível tirar das coisas toda
No início, em sua fase maniqueísta, Agostinho bondade, elas não mais existiriam (EVANS, 1995, p. 61).
esteve mais propenso a crer que Deus pudesse ser o O mal se desvelaria como uma derivação do não-
ponto de convergência para a origem e causa do mal do bem, pois se o bem é ser, o mal se revela na ausência
que aceitar que o próprio homem pudesse ter a escolha do ser. Mas será especialmente na obra A Natureza do
dele mesmo fazer o mal. No entanto, ao perceber as Bem que Agostinho apresentará objetivamente a
contradições maniqueístas, Agostinho se viu obrigado a premissa para a solução do problema do mal: partindo
mudar de hipótese, vendo que estava no homem a raiz de uma perspectiva ontológica, ou seja, do ser próprio
de todo o embaraço: das coisas criadas, Agostinho afirma que toda a natureza
Devia ter procurado primeiro a Deus para olhar e depois ao é boa pelo simples fato de ter recebido de Deus o ser de
redor e ver onde estava o mal. O que Agostinho tem a dizer sua existência: “Por isso se diz, com absoluta verdade,
sobre o mal deve-se ler em sua globalidade à luz de um
que toda natureza enquanto tal é boa” (AGOSTINHO,
princípio básico: o efeito do mal na mente impossibilita ao
pecador pensar claramente e em particular, entender 1995, p. 192). Com isso, é possível concluir que,
verdades espirituais mais elevadas e ideias abstratas (EVANS, segundo Agostinho, para que algo seja bom é necessário
1995, p. 20).
primeiro “ser”, pois do nada – isto é, do “não-ser” –,
Esse ponto se revela pela própria vida de não é possível afirmar nada a respeito do bom (porque
Agostinho, que teve imensa dificuldade em ele “não é”).
compreender a natureza do Bem: “Agostinho considerou
Isso quer dizer que, para Agostinho, a solução
[...] o bem e o mal como duas massas (moles) colocadas
da problemática do mal se resolve na simples e natural
em mútua oposição, ambas infinitas, mas a massa do
aptidão de ser9 que cada criatura tem: as coisas são
mal era mais confinada e limitada que a do bem. Essa
massa do mal não foi criada por Deus” (EVANS, 1995, p. 9
Esta ideia foi amplamente difundida na Idade Média e recebeu muita
59). Esta era visão errônea de Agostinho, que mais tarde atenção de Tomás de Aquino em sua doutrina do actus essendi (ato de
ser): Deus é o único ente no qual essência e existência se coincidem,
foi substituída pela noção de que o mal não pode ser configurando-se, essencialmente como ato de ser puro e absoluto; já os
considerado ontologicamente como possuidor de uma outros entes, isto é, as coisas criadas, por não serem originalmente ato de
ser, apenas possuem aptidão para ser (potência de ser). Em síntese, a
natureza, mas sim como uma ausência de ser: essência de Deus é diferente da essência das criaturas: em Deus há

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boas porque são dotadas do ser de quem as criou; e o Tem-se aqui um pequeno quadro do otimismo ontológico
que, bebendo na fonte do cristianismo, com a sua afirmação
mal nada mais seria do que a privação ou corrupção da bondade de toda a Criação, opôs Agostinho ao pessimismo
desta bondade natural (sendo, portanto, algo não- maniqueu, que demonizava a matéria e fazia do homem um
natural): “tudo aquilo que ‘é’ é necessariamente bom, ser dual em permanente crise, odiando o próprio corpo,
cárcere do espírito.
pois a idéia de bem está implicada na idéia de ser. Deus
não é, portanto, a causa do mal, da mesma forma que a Uma primeira parte do problema do mal já está
matéria também não poderia produzi-lo, pois ela é resolvida – isto é, sobre a origem e a causa do mal. No
criatura de Deus” (SANTOS; PINA, 1980, p. 25). Veja o entanto, esta conclusão deixa aberta outra pergunta: se
que o próprio Agostinho diz: o mal é carência de “ser” e, por isso, não tem sua
origem em Deus (pois tudo o que foi criado possui
Sendo o supremo e sumo Bem, criou bens menores do que
Ele; mas, enfim, o Criador e as criaturas, todos são bons. bondade de ser), como então explicar a maldade
Donde, pois, vem o mal? Ou seria pelo fato de Deus fazer existente entre os homens? Se Deus não é a sua origem,
tudo isso com matéria em que existia algo de mau, e ao dar- qual é então a fonte do mal entre os homens? Para
lhe a forma e ao ordená-la, ter deixado nela alguma coisa
que não transformasse em bem? E isto por quê? Não podia Ele responder esta pergunta, Agostinho distingue o mal em
convertê-la inteiramente de modo a não permanecer nela três dimensões ou níveis: a) Mal metafísico-ontológico;
nada de mau, já que era Onipotente? Enfim, por que quis
fazer dela alguma coisa, e por que não preferiu antes reduzi-
b) Mal Físico; c) Mal Moral (REALE; ANTISERE, 2003;
la totalmente ao nada, com a sua mesma Onipotência? OLIVERA, 1995).
(AGOSTINHO, 1980, p. 144-145).
Vejamos então como Agostinho concebe cada uma
Além do mais, se tivesse Deus alguma coisa a ver
destas dimensões ou níveis do mal.
com o mal, a presença do mal no mundo seria
simplesmente incompatível com a natureza onipotente
de Deus: “Não seria, pois, todo-poderoso, se nada de 2.1 MAL METAFÍSICO-ONTOLÓGICO OU BEM MENOR
bom pudesse criar sem a ajuda daquela matéria a que
Percebendo que Deus não pode ser concebido a
Ele mesmo não tinha dado a existência” (AGOSTINHO,
partir de uma referência espaço-temporal, como assim
1980, p. 145). Desta forma, com justiça, Silveira (2006,
faziam os maniqueístas ao conceberem Deus (em seus
p. 264) afirmará que em Agostinho há um verdadeiro
dois princípios – Bem e Mal) como algo essencialmente
otimismo ontológico:
presente na matéria e dotado de natureza corpórea
(concepção panteísta), Agostinho parte para uma
identificação com ser, ou seja, é ato de ser e existe porque é; nas
criaturas há apenas aptidão para ser, ou seja, potência de ser e existem notável teoria em vista da resolução da problemática do
porque participam do ser subsistente de Deus (REALE; ANTISERE, 2003).

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mal. por procederem de Deus por criação, nenhuma natureza
poderia ser má, mas apenas um maior ou menor bem na
Para Agostinho, Deus é o Sumo Bem, eterno, medida em que mais se assemelhe ou mais se diferencie
daquele que é a fonte de todas as perfeições (SILVEIRA,
onipotente, imutável e plenamente necessário do qual
2006, p. 265).
nada carece, que está acima de tudo e que é a fonte de
É justamente por isso que se afirma que Agostinho
toda a felicidade humana: “é feliz aquele que desfruta
foi um dos precursores sobre a questão central daquilo
do sumo Bem!” (AGOSTINHO, 1995, p. 120). A pergunta
que mais tarde será a grande teoria do actus essendi
de Agostinho para Evódio, ainda em O Livre Arbítrio,
(atos de ser) de Tomás de Aquino: toda a natureza
elucida bem essa sua tese: “se não encontrasses nada
criada torna-se boa porque recebe emprestada de Deus
acima de nossa razão a não ser o que é eterno e
o ato de ser; e é justamente por apenas participarem do
imutável, hesitarias chamá-lo de Deus?” (AGOSTINHO,
ser de Deus, que se justifica a contingência, a
1995, p. 93).
mutabilidade e a corrupção das criaturas: “Na
No entanto, é na obra A Natureza do Bem que realidade, ele é, verdadeiramente, porque é imutável.
Agostinho claramente apresenta Deus como o Bem E toda a mudança faz com que o que era deixe de ser.
imutável, eterno e imortal, do qual as coisas procedem Portanto ele é, verdadeiramente, o Ser imutável. As
como causa eficiente, criadas a partir do nada e não por restantes coisas que por ele foram feitas, dele
simples emanação sem intervenção de uma inteligência, receberam o seu ser, segundo o seu modo próprio
como acreditavam os maniqueístas (SILVEIRA, 2006, p. (AGOSTINHO, 1992, p. 55)
265). Isso indica que, se tudo provém de Deus, o Sumo
A genialidade de Agostinho, diante da resolução do
Bem, então duas conclusões podem ser tiradas: que o
problema em questão, apóia-se no conceito platônico
mal não pode derivar ou provir de Deus e que todas as
de “ente por participação”, integrando, por sua vez, a
criaturas são boas pelo fato de “ser” – pois, ao serem
seguinte perspectiva apresentada em A Natureza do
criadas, participam da bondade do ser do Criador.
Bem: a bondade das criaturas consiste no modus10
Mas exorta Agostinho: não é pelo fato de
procederem de Deus e terem sido criadas a partir do 10
Conceito de Modus: Segundo Silveira (2006, p. 264), o modo é o limite
nada, que poderemos então afirmar que as criaturas são ontológico inscrito em todos os seres contingentes, ou seja, os que podem
feitas da mesma natureza que a de Deus. Veja o que ser ou não ser. Existir, para Agostinho, é existir de algum modo, com
alguma medida, pois para ele, se não tivessem algum modo, as coisas não
Silveira nos diz sobre isso: existiriam de modo algum: “Se as coisas pequenas e exíguas se chamam,
em linguagem vulgar, módicas, é porque nelas subsiste um certo modo,
O Doutor da Graça indica que, embora as coisas procedam de sem o qual já não seriam módicas, mas pura e simplesmente não seriam.
Deus a partir do nada, não estão feitas do mesmo modo. E, Ao invés, aquelas que, por causa de um desenvolvimento excessivo, se

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(modo), na species11 (espécie) e na ordo12 (ordem), que pequenos bens; onde não existem, nenhum bem existe.
Finalmente, onde estas três coisas são grandes, são grandes
estão presentes em todas as criaturas materiais e as naturezas; onde são pequenas, são pequenas as naturezas;
espirituais, porém em graus diferenciados. Em outras onde não existem, nenhuma natureza existe. Logo, toda a
palavras, se a bondade, a beleza e a perfeição das natureza é boa (AGOSTINHO, 1992, p. 41)
criaturas são provenientes do modo, da espécie e da Portanto, Deus é o sumo Bem, o doador original do
ordem infundidas por Deus, então, isso quer dizer que modo, da espécie e da ordem de tudo o que existe no
quanto mais estiverem presentes estas três perfeições universo, cedendo às criaturas a participação em seu
na natureza de um ente, mais ele será considerado “ser” em graus diferenciados. Esta visão foi tão
bom, belo e perfeito13. difundida na Idade Média que Tomás de Aquino fará
dela o pressuposto básico para o seu pensamento
Desta maneira, pelo que foi exposto acima, isso
metafísico sobre o Bem: a bondade das criaturas se
significa que o conceito de natureza para Agostinho está
deve ao fato de, apesar de serem potencialmente
intrinsecamente ligado à proporção destas três
limitadas e contingentes em seu modo, em todas elas
perfeições na natureza de um ente, indicando que,
existe uma perfeição essencial que é a sua plenitude de
quanto maior for o grau de sua presença, mais se torna
ser em sua espécie, correspondente à ordem e
convertida em bens superiores:
finalidade de sua natureza. Sobre isso, diz Meñica
Por isso, Deus está acima de todo o modo, de toda a espécie
e de toda a ordem da criatura. Não está acima no sentido de
(2001, p. 391-392): “toda criatura tem uma essência
distância local, mas sim pelo seu inefável e singular poder, limitada e recebida (modus), mas é também uma
do qual provém todo o modo, toda a espécie e toda a ordem. perfeição formal (species) e aponta para um fim
As coisas em que o modo, a espécie e a ordem são grandes,
são grandes bens; as coisas em que são pequenas, são (ordo)”14.
Recorrendo à autoridade de Tomás de Aquino, em
dizem imódicas, essas são acusadas de excesso. Mas é forçoso que também sua Suma Teológica, o doutor angélico afirmará que
estas estejam compreendidas num certo modo ‘Sob Deus, que tudo dispôs
com medida, número e peso’” (AGOSTINHO, 1992, p. 57).
11
Conceito de Species: já a espécie está relacionada à forma (essência) 14
específica de cada criatura, ou seja, para se fazerem inteligíveis e Esta mesma ideia também comentará Silveira (2006, p. 265): “Santo
reconhecidas, cada criatura deve possuir a forma de alguma espécie Tomás, na Suma Teológica, afirma que em todo ente existe uma perfeição
(SILVEIRA, 2006, p. 264). que é a sua integridade ou plenitude de ser, que corresponde à sua
12
natureza. Essa perfeição é a sua bondade, na qual se podem distinguir três
Conceito de Ordo: por fim, a ordem, diz respeito à ordenação das realidades: a) potencial, que delimita cada existir determinado, que é o
criaturas para um determinado fim (teleologia) (SILVEIRA, 2006, p. 264). modo ou medida da perfeição natural; b) essencial, que constitui o ser,
13
“Onde essas três realidades são grandes, excelsa é a sua natureza; onde como por exemplo a alma do homem, identificada com a forma substancial
minguam, pobre é a sua natureza; onde não existem, tampouco existe dos indivíduos da espécie; c) inclinação natural ao fim, que cada ente
natureza” (SILVEIRA, 2006, p. 264). possui, identificada com a ordem”.

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“algo é bom enquanto é perfeito” (AQUINO, 2001, p. ou carência das criaturas em relação à perfeição
132, tradução nossa). Ora, se isso é verdade, então, as absoluta de Deus, que é o ser em ato por excelência.
criaturas carregam em si a perfeição de “serem” boas. Silveira (2005) observará que, para Agostinho, o mal
Continua Aquino: “e se diz perfeito àquilo a que, no que metafísico-ontológico estará sempre impresso nos seres
corresponde a sua perfeição, não lhe falta nada” contingentes (em vista da diferença e hierarquia
(AQUINO, 2001, p. 132, tradução nossa). Logo, se assim ontológica existente entre as coisas) como
procede, deve-se então afirmar que as criaturas “impossibilidade” ou “negação” deles possuírem algum
carregam em existência uma perfeição de ser: as tipo de bem maior ou excedente ao limite de suas
criaturas não são perfeitas porque são dotadas de um próprias naturezas, como por exemplo, o fato de uma
ser necessário e absoluto, como o de Deus, mas sim pedra não ter o sentido da visão15. Podemos visualizar
porque, ao participarem do ser de Deus, receberam em melhor a maneira como o mal ontológico é entendido
plenitude ao seu modo (ou seja, à sua limitação por Agostinho a partir do seguinte quadro:
ontológica), a espécie e a ordem de ser. Portanto, é por
isso que Aquino conclui seu artigo 5º com a seguinte
afirmação: “daí então que o conceito de bem, Existe Vive Age Pensa
atendendo à [idéia de] perfeição, consista também no Homem X X X X
modo, na espécie e na ordem” (AQUINO, 2001, p. 132, Animal X X X
tradução nossa). Vegetal X X
Mas o que isso tem a ver a distinção e definição de Mineral X
mal ontológico em Agostinho? Ora, se as criaturas se Fonte: SALLES, R. O Problema do Mal em Santo Agostinho.
tornam naturalmente mais ou menos perfeitas, belas e
boas em decorrência da proporção do modo, da espécie
e da ordem doadas por Deus, então é evidente que as Tomás de Aquino confirmará esta noção
coisas criadas estão dispostas hierarquicamente agostiniana de mal quando, em sua Suma Teológica,
conforme o grau de bondade e perfeição do qual
15
participam. Desta maneira, o mal ontológico consistirá “No homem, a cegueira pode considerar-se um mal que afeta os
princípios de operação do sentido da visão, o qual integra o conjunto de
justamente nesta diferença ontológica entre os seres: o bens da natureza humana. De uma pedra, por sua vez, não pode ser dito
que sofra de um mal por não ter olhos, pois naturalmente a pedra não os
mal ontológico não é uma substância, mas apenas uma tem. Neste caso, trata-se da negação de uma realidade específica nesse
diferença hierárquica, um bem menor, uma imperfeição ente-pedra, e não da privação de um bem natural” (SILVEIRA, 2006, p.
263).

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afirma que “o mal é a privação de modo, espécie e mal ontológico:
ordem” (AQUINO, 2001, p. 132, tradução nossa). Logo, o Vi, pois, e pareceu-me evidente que criastes boas todas as
mal por si só, não é nada mais que a privação de um coisas, e que certissimamente não existe nenhuma
bem, de onde se segue que o mal como tal não existe substância que Vós não criásseis. E, porque as não criastes
todas iguais, por esta razão, todas elas, ainda que boas em
ontologicamente. Sobre isto nos explica Reale e particular, tomadas conjuntamente são muito boas, pois o
Antisere: nosso Deus criou ‘todas as coisas muito boas’. Em absoluto, o
mal não existe nem para Vós, nem para as vossas criaturas,
Do ponto de vista metafísico-ontológico, não existe mal no pois nenhuma coisa há fora de Vós que se revolte ou que
cosmo, mas apenas graus inferiores de ser em relação a desmanche a ordem que lhe estabelecestes. Mas porque, em
Deus, que dependem da finitude da coisa criada e dos algumas das suas partes, certos elementos não se
diferentes níveis dessa finitude. Mas, mesmo aquilo que, harmonizam com outros, são considerados maus. Mas estes
numa consideração superficial, parece ‘defeito’ (e, portanto, coadunam-se com outros, e por isso são bons (no conjunto) e
poderia parecer mal), na realidade, na ótica do universo, bons em si mesmos (AGOSTINHO, 1980, p. 154, grifo nosso).
visto em seu conjunto, desaparece. De fato, os graus
inferiores do ser e as coisas finitas, mesmo as mais ínfimas,
revelam-se momentos articulados de um grande conjunto
harmônico. Quando, por exemplo, julgamos que a existência 2.2 O MAL FÍSICO OU CORRUPÇÃO DA NATUREZA
de certos animais nocivos seja um ‘mal’, na realidade nós
estamos medindo com o metro da nossa utilidade e da nossa Aristóteles, em sua Metafísica, já havia formulado
vantagem contingente e, portanto, numa ótica errada. o conceito de corrupção como a passagem do ser para o
Medida com o metro do todo, cada coisa, mesmo aquela não-ser16. Agostinho, de certo modo, utiliza esta
aparentemente mais insignificante, tem seu sentido e sua
razão de ser e, portanto, constitui algo positivo (REALE; concepção aristotélica ao afirmar que o mal também é a
ANTISERE, 2003, p. 97-98). corrupção da natureza. Em O Livre-Arbítrio, o autor
Portanto, reafirmando a ideia já exposta também adere ao conceito de mal físico como um bem
anteriormente, pelo fato de participar do ser de Deus, menor: “toda natureza (natura) que pode tornar-se
tudo que existe é bom. Por todas estas razões que se menos boa, todavia, é boa” (AGOSTINHO, 1995, p. 191).
conclui: a) o mal não pode originar-se de Deus, pois se 16
“Aquilo que muda o faz ou do sujeito para o sujeito, ou do não-sujeito
ele é privação de bem, então ele é um não-ser, o que é para o não-sujeito, ou do sujeito para o não-sujeito, ou do não-sujeito
impossível que Deus o tenha originado, pois Deus cria para o sujeito. Por sujeito entendo o que é expresso por um termo
afirmativo. Assim, há necessariamente três mudanças, pois aquela do não-
justamente dando “ser” às criaturas; b) o mal sujeito para o não-sujeito não é mudança, visto que os termos não são nem
ontológico não é uma substância, mas apenas uma contrários nem contraditórios, já que não acarretam oposição alguma. A
mudança do não-sujeito para o sujeito contraditório é geração: mudança
diferença ou carência de modo, espécie e ordem das absoluta, geração absoluta e mudança parcial, geração parcial, ao passo
criaturas, um bem menor. Veja como Agostinho que a mudança do sujeito para o não-sujeito é destruição (corrupção):
mudança absoluta, destruição absoluta e mudança parcial, destruição
identifica bem nas Confissões qual é a sua concepção de parcial” (ARISTÓTELES, 2006, p. 288).

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Esta afirmação alude à tese de que uma natureza má privação, é uma privação que reside num bem como em seu
seria uma natureza corrompida, mas isso não quer dizer sujeito.

que natureza corrompida seja má enquanto natureza; a Em suma, o mal é uma privação, uma a corrupção
natureza só se torna má (ou menos boa) naquilo que se da natureza, ou seja, do “ser”, como o imperfeito que
degenerou. Veja como Agostinho afirma essa ideia em A nada mais é do que a negação do perfeito. Para Silveira
Natureza do Bem: (2006, p. 264), o mal físico não tem um ser próprio, mas
Quando se trata de procurar onde está o mal, deve primeiro apenas está para o ser de alguma coisa ou sujeito:
investigar·se o que seja o mal. Ele não é mais do que a
[...] o mal é sempre inerente a um sujeito. Assim, o
corrupção do modo, da espécie ou da ordem natural. Assim,
malefício de um câncer no estômago é inerente ao estômago,
diz-se má a natureza que está corrompida, pois que a
mas não é substância, não possui essência – embora tenha
natureza incorrupta é boa. Mas, mesmo a natureza
efetividade, pois prejudica o estômago, que é um bem para o
corrompida, enquanto natureza, é boa, só enquanto
aparelho digestivo. Portanto, trata-se da privação (ou
corrompida é que é má (AGOSTINHO, 1992, p. 43).
corrupção) de um bem natural.
Com isso, Agostinho elimina totalmente a hipótese Desta maneira, Agostinho refuta duas ideias que,
maniqueísta da existência de dois princípios supremos por sinal, estão amplamente relacionadas: primeiro, a
equiparáveis, o Bem e o Mal: como visto na concepção ideia de que a corrupção, por si mesma, possui uma
do mal ontológico, Agostinho destitui o mal de sua substância própria; pelo contrário, existe na coisa
pretensa estrutura ontológica, considerando-o apenas corrompida apenas a privação de algum bem natural:
como negação do único e verdadeiro Princípio “Ele é o próprio Deus, porque tudo o que deseja é bom
existente: Deus. Sobre isso, comenta Gilson (2006, p. e Ele próprio é o mesmo Bem. Ora, estar sujeito à
273-274): corrupção não é um bem” (AGOSTINHO, 1980, p. 143).
Em consequência dessa doutrina, não basta admitir que os Segundo, pelo fato de se corromper, não se pode dizer
maniqueus erraram ao considerar o mal como um ser, visto que a natureza é privada de todo bem, pois, se assim
que é uma pura ausência de ser; é preciso ir mais longe e
fosse, ela não teria o ser e, por consequência, não
dizer que, sendo nada por definição, o mal sequer pode ser
concebido fora de um bem. Para que haja um mal, é existiria17. Veja como Agostinho defende estas ideias
necessário que haja privação; portanto, e necessário que
haja uma coisa privada. Ora, enquanto tal, essa coisa é boa e 17
Afirmar que a natureza, por ser corruptível, torna-se privada de todo
somente enquanto privada é má. O que não é não tem bem é uma tese impossível para Agostinho, justamente porque, como já
defeitos. Assim, cada vez que falamos do mal, supomos apresentado, toda a natureza recebe o ser de Deus. Se a corrupção fosse a
privação total do bem, as criaturas não poderiam receber o ser de Deus.
implicitamente a presença de um bem que, não sendo tudo
Mas, se as criaturas totalmente privadas do bem não recebem de Deus o
que deveria ser, é, por isso, mau. O mal não é somente uma ser, de quem elas então recebem? Não poderia ser da própria natureza,
pois ela é contingente. Portanto, a corrupção, como mal ontológico e

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nas Confissões: perfeição e torna-se menos boa. Caso a corrupção a privar
totalmente de todo bem, o que dela restará não poderá mais
De fato, a corrupção é nociva, e, se não diminuísse o bem, se corromper, não tendo mais bem algum cuja corrupção a
não seria nociva. Portanto, ou a corrupção nada prejudica – o possa atingir e, assim, prejudicá-la. Por outro lado, aquilo
que não é aceitável – ou todas as coisas que se corrompem que a corrupção não pode prejudicar também não pode se
são privadas de algum bem. Isto não admite dúvida. Se, corromper, e assim esse ser será incorruptível. Pois eis algo
totalmente absurdo: uma natureza tornar-se incorruptível
porém, fossem privadas de todo o bem, deixariam
por sua própria corrupção. Por isso se diz, com absoluta
inteiramente de existir. Se existissem e já não pudessem ser verdade, que toda natureza enquanto tal é boa. Mas se ela
alteradas, seriam melhores porque permaneciam for incorruptível será melhor do que a corruptível. E se ela
incorruptíveis. Que maior monstruosidade do que afirmar que for corruptível – já que a corrupção não pode atingi-la senão
as coisas se tornariam melhores com, perder todo o bem? tornando-a menos boa, ela é indubitavelmente boa. Ora,
[...] Por isso, se são privadas de todo o bem, deixarão toda natureza ou é corruptível ou incorruptível. Portanto,
totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. toda natureza é boa (AGOSTINHO, 1995, p. 191-192).
Portanto, todas as coisas que existem são boas, e aquele mal Portanto, todas as criaturas, apesar de serem
que eu procurava não é uma substância, pois, se fosse corruptíveis, permanecem boas desde que nelas sejam
substância, seria um bem. Na verdade, ou seria substância
conservadas o modo, a espécie e a ordem. Assim,
incorruptível, e então era certamente um grande bem, ou
seria substância corruptível, e, nesse caso, se não fosse boa, geração e a corrupção que as criaturas estão sujeitas
não se poderia corromper (AGOSTINHO, 1980, p. 153-154). não é um mal, porque “assim como é da essência de
Deus ser necessário, eterno, imutável, é da natureza da
Assim, de toda e qualquer forma a natureza
criação ser contingente, temporal, mutável”
sempre será boa. Diz Agostinho em O Livre-Arbítrio:
(COUTINHO, 2010, p. 127). As doenças, os sofrimentos,
Toda natureza (natura) que pode tornar-se menos boa,
todavia, é boa. De fato, ou bem a corrupção não lhe é
a corrupção e a limitação física dos seres, identificado
nociva, e nesse caso ela é incorruptível; ou bem, a corrupção em Agostinho como mal físico18, não pode ser
atinge-a e então ela é corruptível. Vem a perder a sua considerado como algo existente por si mesmo, mas
apenas como um acidente apenas ligado à limitação
totalmente oposto ao bem, não pode existir. Nas Confissões: “Vi contingente das criaturas, não condicionando de modo
claramente que todas as coisas que se corrompem são boas: não se
poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem se poderiam
algum a bondade do ser das coisas.
corromper se não fossem boas [ausente de bondade]. Com efeito, se
fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem
nenhum bem, nada haveria nelas que se corrompesse” (AGOSTINHO, 1980, 18
Para Reale e Antisere (2003, p. 98), o mal físico em Agostinho é
p. 153). Noutra passagem: “Portanto, logo que vi que o incorruptível se decorrente do pecado e revisto à luz da fé: “o mal físico, como as
deve preferir ao corruptível, imediatamente Vos deveria ter buscado, e, doenças, os sofrimentos, os tormentos do espírito e a morte, tem
em seguida, deveria indagar donde vem o mal, isto é, a corrupção, a qual significado bem preciso para quem filosofa na fé: é a conseqüência do
de modo algum pode afetar a vossa substância” (AGOSTINHO, 1980, p. pecado original, ou seja, é conseqüência do mal moral”. Oliveira (1995, p.
143). 16-17) também confirma essa tese: “a corrupção do corpo que pesa sobre a

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fruto do pecado e do mau uso da vontade humana:
2.3 O MAL MORAL O mal moral é o pecado. E o pecado depende da má vontade.
E a má vontade depende de quê? A resposta de Agostinho é
As teses a respeito do mal ontológico e do mal bastante engenhosa. A má vontade não tem uma ‘causa
eficiente’, mas, muito mais, uma ‘causa deficiente’. Por sua
físico, respectivamente, como diferença hierárquica dos
natureza, a vontade deveria tender ao Bem supremo. Mas,
seres e corrupção da natureza resolvem o problema do como existem muitos bens criados e finitos, a vontade pode
mal apenas nível metafísico e natural, mas não no nível tender a eles e, subvertendo a ordem hierárquica, pode
preferir a criatura a Deus, preferindo os bens inferiores aos
moral. Com base nesta suspeita, Agostinho parte para a bens superiores. Sendo assim, o mal deriva do fato de que
fundamentação do mal agora dirigido não às coisas não há um único Bem, mas muitos bens, consistindo,
criadas de modo geral, mas ao homem, dotado de corpo precisamente, em uma escolha incorreta entre esses bens. O
mal moral, portando, é aversio a Deo e conversio ad
e alma, de extensão e racionalidade. creaturam, é a escolha de um ser inferior ao invés do ser
supremo. O fato de se ter recebido de Deus uma vontade
Onde então reside o mal moral? No que ele livre é um grande bem. O mal é o mau uso desse grande
consiste? Para Agostinho, o mal moral nada mais é do bem, que se dá do modo que vimos. Por isso, Agostinho pode
que a inversão voluntária da ordem hierárquica da qual dizer: ‘O bem que está em mim é obra tua, é teu dom; o mal
em mim é meu pecado’ (REALE; ANTISERE, 2003, p. 98).
as coisas estão dispostas no universo. Em outras
palavras, o mal moral acontece quando o homem usa e Desta maneira, para Agostinho, o mal moral ocorre
ama desordenadamente os bens materiais, contingentes porque o homem não busca em si – isto é, na sua
e inferiores como se fossem subsistentes e superiores, interioridade, onde reside Deus – os verdadeiros bens,
como os celestiais: “procurei o que era maldade e não mas apenas na exterioridade, onde homem é seduzido
encontrei uma substância, mas sim uma perversão da pelo ato de maldade: “é assim que a alma peca, quando
vontade desviada da substância suprema – de Vós, ó se aparta e busca fora de Vós o que não pode encontrar
Deus – e tendendo pra as coisas baixas: vontade que puro e transparente, a não ser regressando a Vós de
derrama as suas entranhas e se levanta com novo” (AGOSTINHO, 1980, p. 62). Logo, o problema do
intumescência” (AGOSTINHO, 1995, p. 142). mal moral se funda na medida do amor com que a alma
humana se dirige às outras criaturas e a si mesmo. É
Esta é a grande inversão de valores que, ao invés neste aspecto que Agostinho fala do mal não apenas
de preferir a Deus, o homem voluntariamente opta como escolha das criaturas em detrimento da escolha
pelas coisas terrenas. Segundo o comentário de Reale e para Deus, mas também como amor-próprio e
Antisere, tal inversão de escolhas nada mais é do que enaltecimento de si mesmo:
alma não é a causa, mas a pena do primeiro pecado”. Existe dentro, bem dentro de nós, outro mal, oriundo do

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mesmo gênero de tentação, que faz vãos todos os que se ser humano a liberdade (Deus):
comprazem em si, ainda quando não agradam aos outros - e
até lhes desagradam –, ou mesmo quando nem sequer Mas quanto a esse mesmo livre-arbítrio, o qual estamos
procuram agradar-lhes. Ora, os que assim se comprazem em convencidos de ter o poder de nos levar ao pecado,
si mesmos desagradam-Vos muito, ó meu Deus, não só pergunto-me se Aquele que nos criou fez bem de no-lo ter
quando se gloriam dos males como se fossem bens, mas dado. Na verdade, parece-me que não pecaríamos se
sobretudo quando se gloriam dos vossos bens como se fossem estivéssemos privados dele, e é para se temer que, nesse
seus; ou quando, reconhecendo-os como provenientes de caso, Deus mesmo venha a ser considerado o autor de nossas
Vós, os atribuem aos próprios méritos; ou enfim quando, más ações (AGOSTINHO, 1995, p. 69).
atribuindo-os à vossa graça, não se alegram amigavelmente
de que outros também os possuam, tendo-lhes ainda por isso Agostinho, por sua vez, responde que o Livre-
mesmo inveja (AGOSTINHO, 1980, p. 249). Arbítrio é um bem em si mesmo; e que o mal moral
A partir desta concepção agostiniana de mal moral decorrente dele não se deve ao fato do seu uso, mais do
– isto é, como uma voluntária conversão às criaturas e seu abuso:
aversão a Deus (aversio a Deo e conversio ad creaturam) Pois parecia a ti, como dizias, que o livre-arbítrio da vontade
– chega-se a outro conceito muito importante na teoria não devia nos ter sido dado, visto que as pessoas servem-se
dele para pecar. Eu opunha à tua opinião que não podemos
agostiniana: o livre-arbítrio. O mal consiste no ato da agir com retidão a não ser pelo livre-arbítrio da vontade. E
vontade livre de uma criatura racional que se afastou do afirmava que Deus no-lo deu, sobretudo em vista desse bem.
Tu me respondeste que a vontade livre devia nos ter sido
bem. Comenta Mondin (1982, p. 145): dada do mesmo modo como nos foi dada a justiça, da qual
Quando um homem se afasta do bem imutável e se volta para ninguém pode se servir a não ser com retidão. [...] Ora, essas
um bem particular, inferior, peca, e nisto consiste o mal. duas verdades: que Deus existe e que todos os bens vêm
Não que as coisas para quais a vontade se volta, quando dele, nós já admitimos com fé inabalável. Entretanto, nós as
peca, sejam más por si mesmas (nenhuma realidade é expusemos de tal forma que a terceira verdade também se
ontologicamente má); o mal consiste em cair, em voltar as torna plenamente evidente, a saber: que a vontade livre
costas (aversio, aversão) ao bem superior imutável. deve ser contada entre os bens recebidos de Deus
(AGOSTINHO, 1995, p. 135).
Desta maneira, é por conta do livre-arbítrio –
Além do que, se o homem não tivesse o livre-
recebido de Deus – que se torna possível ao homem o
arbítrio, ele não poderia ser merecedor das virtudes e
mau uso dos bens temporais. Ou seja, pela liberdade o
dos castigos, pois, neste caso, não haveria
ser humano tem a possibilidade tanto do bem como do
responsabilidade moral alguma; sem o livre-arbítrio, as
mal. Mas porque Deus deu a liberdade então ao ser
coisas seriam apenas impostas:
humano? Não seria então melhor que o homem não
tivesse o livre-arbítrio? Esta é a dúvida de Evódio, em O Por conseguinte, do mesmo modo como aprovas a presença
desses bens no corpo e que, sem considerar os que deles
Livre-Arbítrio, quando questiona Agostinho se a abusam, louvas o doador, de igual modo deve ser quanto à
possibilidade do mal não pode estar naquele que deu ao vontade livre, sem a qual ninguém pode viver com retidão.

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Deves reconhecer: que ela é um bem e um dom de Deus, e consequentemente, o homem não pode ser
que é preciso condenar aqueles que abusam desse bem, em
vez de dizer que o doador não deveria tê-lo dado a nós
autossuficiente para o exercício do bem. É preciso da
(AGOSTINHO, 1995, p. 136). graça de Deus. Para exercer o bem, temos então duas
O mal moral é uma possibilidade pelas quais a condições que nos são exigidas: a graça e o livre-
vontade pode enveredar, mas isso não quer dizer que arbítrio. E isso é justificado em vista do pecado original:
existam coisas más ou que seja da natureza do livre- O pecado original foi um pecado de soberba, sendo o
arbítrio pecar. Neste sentido, Agostinho dá uma solução primeiro desvio da vontade. O arbítrio da vontade é
verdadeiramente livre, em sentido pleno, quando não faz o
brilhante e precursora: ele relaciona a questão da mal. Esta é, precisamente, a sua condição natural: assim ele
possibilidade do bem e do mal com a liberdade humana, foi dado ao homem originalmente. Mas, depois do pecado
original, a verdade se corrompeu e se enfraqueceu,
reconhecendo a vontade e a razão como dois aspectos tornando-se necessitada da graça divina. Conseqüentemente,
distintos da natureza humana: a liberdade diz respeito à o homem não pode ser ‘autárquico’ em sua vida moral: ele
vontade que, pelo fato de ser livre, pode ser boa ou má, necessita de tal ajuda divina. Portanto, quando o homem
procura viver retamente valendo-se unicamente de suas
independentemente da razão que reconhece o bem. próprias forças, sem ajuda da graça divina libertadora, então
Esta tese praticamente quebra com a antropologia grega ele é vencido pelo pecado; liberta-se do mal com o poder de
crer na graça que o salva, e com a livre escolha dessa graça
socrática, que dizia ser impossível alguém conhecer a
(REALE; ANTISERE, 2003, p. 98, grifo do autor).
verdade e, ao mesmo tempo, fazer o mal. Veja como
Sem a graça, não seria possível ter acesso ao bem,
Reale e Antisere se posicionam a este respeito:
mesmo se o quiséssemos; sem o livre-arbítrio, não seria
A liberdade é própria da vontade e não da razão, no sentido
em que a entendiam os gregos. E assim se resolve o antigo
possível escolher o bem, mesmo se estivesse disponível.
paradoxo socrático de que é impossível conhecer o bem e A graça, portanto, não tem a função de suprimir a
fazer o mal. A razão pode conhecer o bem e a vontade pode vontade, mas sim de torná-la boa. De fato, a
rejeitá-lo, porque, embora pertencendo ao espírito humano,
a vontade é uma faculdade diferente da razão, tendo uma possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre-
autonomia própria em relação à razão, embora seja a ela arbítrio, mas o poder de não o fazer é a marca e o grau
ligada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo supremo da liberdade. Quanto mais o ser humano
escolher até o irracional, ou seja, aquilo que não está em
conformidade com a reta razão. E desse modo se explica a estiver repleto da graça de Deus, mais será livre
possibilidade da aversio a Deo e da conversio ad creaturam (OLIVEIRA, 1995, p. 18).
(REALE; ANTISERE, 2003, p. 98, grifo do autor).
Portanto, se o homem não fosse livre, não poderia
Já que o livre-arbítrio é inerente à vontade – e a
pecar e nem agir retamente, fato este que o
vontade, por sua vez, pode se corromper devido à
impossibilitaria de buscar com autonomia a verdadeira
condição imposta pelo pecado original –, então,

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felicidade em Deus, como também conhecer sua justiça. AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4 ed. Tradução de
Como conclusão, confira este trecho de Agostinho: Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 1990b. Parte II.
Não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade AGOSTINHO. A Natureza do Bem. Tradução, introdução
também para pecar, que é preciso supor que Deus no-la e notas de Mário A. Santiago de Carvalho. Porto:
tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão
Fundação Eng. António de Almeida / Universidade
suficiente para ter sido dada, já que sem ela o homem não
poderia viver retamente. Ora, que ela tenha sido concedida Católica Portuguesa, 1992.
para esse fim pode-se compreender logo, pela única
consideração que se alguém se servir dela para pecar, AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos
recairão sobre ele os castigos da parte de Deus. Ora, seria e A. Ambrosio de Pina. In: AGOSTINHO. Os Pensadores:
isso uma injustiça, se a vontade livre fosse dada não somente Confissões; De Magistro. São Paulo: Abril Cultural,
para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na 1980.
verdade, como poderia ser castigado, com justiça, aquele
que se servisse de sua vontade para o fim mesmo para o qual AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. Tradução de Nair de Assis
ela lhe fora dada? (AGOSTINHO, 1995, p. 74-75) Oliveira. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1995.
A noção de livre-arbítrio – isto é, da liberdade de
AQUINO, Tomás de. Suma de Teología. Edição dirigida
escolha e a possibilidade do mal moral – reconfigurou a
pelos Regentes de Estudos das Províncias Dominicanas
noção de consciência moral: se, por um lado, o homem da Espanha, com colaboração de José Martorell,
passa então a ser o responsável pela existência do mal Gregorio Celada, Alberto Escallada, Sebastián Fuster,
moral no mundo, por outro, essa mesma liberdade de José Maria Artola, Armando Bandera, Elíseo Rodríguez e
escolha é a condição para a existência de uma Fernando Soria. 4. ed. Madrid: Biblioteca de Autores
consciência deliberativa, que avalia as consequências Cristianos (BAC), 2001, Tomo I.
das escolhas a partir do critério da proximidade do ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução e notas de Edson
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