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HEIDEGGER: A QUESTÃO DA TÉCNICA E A CRÍTICA À METAFÍSICA

TRADICIONAL

Prof. Paulo R.
Centro Universitário Claretiano
História da Filosofia Contemporânea II

Uma ferrenha crítica à metafísica moderna também se encontra em


Heidegger, na sua famosa Carta sobre o Humanismo. Segundo ele, para refletir de
maneira correta sobre a existência humana também é preciso libertar-se da pré-
determinação provocada pela técnica do pensamento lógico pré-determinado,
interno ao próprio raciocínio humano (HEIDEGGER, 1991, p. 2-3). Entra aqui a crítica
hedeggeriana com relação à técnica moderna como elemento encobridor da real
essencialidade dos entes (consciência existenciária). Noutras palavras, trata-se do
esquecimento do ser:

Conceber a sua essência enquanto o que dá à técnica moderna das


máquinas a verdade e a necessidade internas; portanto não segundo
um conceito (uma representação universal) do fato agora justamente
dado que denominamos “técnica”; também não o que pensa na
mesma direção, esta “técnica” enquanto fenômeno da “cultura”; pois
a “cultura” mesma pertence a essência técnica concebida
metafisicamente. Esta é a verdade da subjetividade, subjetividade
concebida enquanto entidade do ente. Consequência desta “técnica”
essencial é o matemático das ciências, o “sistema”, a “dialética”.
Portanto também não buscar algo como o “elemento técnico” (de
maneira meramente adequada aos aparelhos e ao funcionamento)
em meio às ciências, à arte, à política, como se estas ainda fossem
além disto propriamente algo diverso. O outro e o próprio é
exatamente o “elemento técnico” compreendido metafisicamente [...].
A “técnica” assim compreendida encontra-se em conexão com a
techné que emerge da physis e pressupõe e propaga o encobrimento
desta última (HEIDEGGER, 2000, p. 156).

Todavia, para Heidegger, o homem é dotado de uma capacidade de ‘ser’


infinitamente maior que o poder definidor da técnica lógica, conceitual e gramatical.
Logo, toda e qualquer ideia, por exemplo de ‘humanismo’, ‘essência’, ‘ser’ já é por si
mesma um conceito comprometedor e técnico, pois parte do pressuposto da
definição limitada de homem e de ontologia, embasada numa metafísica tradicional
e reducionista:

Todo humanismo se funda, ou numa Metafísica ou ele mesmo se


postula como fundamento de uma tal metafísica. Toda a
determinação da essência do homem que já pressupõe a
interpretação do ente, sem a questão da verdade do ser, e o faz
sabendo ou não sabendo, é Metafísica. Por isso, mostra-se, e isto no
tocante ao modo como é determinada a essência do homem, o
elemento mais próprio de toda a Metafísica, no fato de ser
‘humanística’ (HEIDEGGER, 1991, p. 8)

Desta forma, para que o humanismo não seja um reducionismo, a ideia de


‘ser’ do homem não deve estar limitada a nenhuma forma de definição técnica ou
conceitual. O ser é muito mais do que aquele apregoado pela metafísica clássica.
Com isso, é destruindo a metafísica clássica que se chegará às verdadeiras e
originárias formas de ser do homem, como assim afirma Heidegger em Ser e Tempo:

Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga


ontologia, legado pela tradição. Deve-se efetuar essa destruição
seguindo-se o fio condutor da questão do ser até chegar às
experiências originárias em que foram obtidas as primeiras
determinações do ser que, desde então, tornaram-se decisivas (p.
HEIDEGGER, 1988, p. 51).

Desta maneira, a tradição lógica ocidental acabou encobrindo a verdadeira


essência do ser, fazendo-a distante das raízes da ontologia original. O que fazer
então para que a questão do ser retorne às suas origens legítimas? Segundo
Heidegger essa é a tarefa da destruição da metafísica: “caso a questão do ser deva
adquirir a transparência de sua história, é necessário, então, que se abale a rigidez e
o endurecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos
acumulados” (HEIDEGGER, 1988, p. 51). No entanto, a destruição da história da
ontologia da qual se fala não tem um sentido negativo de total exclusão da tradição
ontológica como algo sem valor algum; pelo contrário, “ela deve definir e
circunscrever a tradição em suas possibilidades positivas” (HEIDEGGER, 1988, p. 51).
Em outras palavras, “negativamente, a destruição não se refere ao passado; a sua
crítica volta-se para o ‘hoje’ e os modos vigentes de se tratar a história da ontologia”
(HEIDEGGER, 1988, p. 51).
Levando a cabo essa tarefa de ‘destruição da metafísica’, Heidegger acaba
promovendo uma reviravolta linguística, de vertente hermenêutica, no interior da
metafísica existencialista. É graças à introdução desse elemento que Heidegger
consegue escapar do paradoxo nietzscheano de uma crítica suicida: “a meta que
Nietzsche persegue com uma crítica totalizada da ideologia que se consome a si
mesma, Heidegger quer atingir com uma destruição da metafísica ocidental,
preparada de modo imanente” (HABERMAS, 2002a, p. 141). Ou seja, para fugir desta
aporia, “a razão que destrói a razão não está destruindo a si mesma, como a razão
genealógica de Nietzsche, porque ela é um atributo e uma atividade do Ser”
(ROUANET, 1987, p. 242). Não é o homem pensando o Ser, mas o Ser se pensando
linguisticamente através do homem:

O homem não é senhor do ente. O homem é o pastor do ser. Neste


‘menos’ o homem nada perde, mas ganha, por quanto atinge a
verdade do ser. Ele ganha a essencial pobreza do pastor, cuja
dignidade reside no fato de ter sido chamado pelo próprio ser, para
guardar a sua verdade (HEIDEGGER, 1991, p. 26).

Essa é a novidade promovida por Heidegger: o privilégio linguístico e


hermenêutico própria da condição humana: “comparado a qualquer outro ente, a
pre-sença (homem) é um ente privilegiado” (HEIDEGGER, 1988, p. 38), porque tem
capacidade de ‘desvelar’ o verdadeiro sentido ser das coisas. E isso é possível pelo
fato dele ser capaz de questionar: “esse ente que cada um nós somos e que, entre
outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o
termo pre-sença [Dasein ou ‘ser-aí’]” (HEIDEGGER, 1988, p. 33).
Assim, dentre todos os seres, somente o homem é capaz de ter consciência
de sua existência. As outras coisas ocupam apenas um simples espaço no mundo;
já o homem, mais que ocupar um espaço no mundo, tem noção de existência:

A pre-sença (homem) não é apenas um ente que ocorre entre outros


entes. Ao contrário, do ponto de vista ôntico, ela distingue pelo
privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser.
Mas também pertence a essa constituição de ser da pre-sença a
característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação
de ser com seu próprio ser. Isto significa, explicitamente e de alguma
maneira, que a pre-sença se compreende em seu ser, isto é, sendo
(HEIDEGGER, 1988, p. 38).
Desta maneira, o fato do homem compreender-se a si mesmo a partir de sua
‘existência de ser’ o torna capaz de significar e interpretar o mundo a partir de algo
que lhe é muito característico: através da linguagem: “para Heidegger, só se pode
falar de linguagem, no sentido estrito da palavra, aí onde o ser se desvela, se abre,
ou seja, no homem” (OLIVEIRA, 2006, p. 201). Sem a linguagem os fatos estariam
desconectados e isolados no mundo, ou seja, não haveria mediação hermenêutica
entre eles, muito menos significado. Sobre isso também fala Oliveira:

Quando falamos da linguagem, diz Heidegger, nunca abandonamos


a linguagem, mas sempre falamos a partir dela. Nosso ser-no-mundo
é, portanto, sempre lingüisticamente mediado, de tal maneira que é
por meio da linguagem que ocorre a manifestação dos entes a nós
(OLIVEIRA, 2006, p. 206)

Esta capacidade de interpretar o mundo linguisticamente é uma oferta


hermenêutica que só o homem é capaz de saber e tomar posse. Sobre isso,
Heidegger fala em sua Carta sobre o Humanismo: “esta oferta consiste no fato de,
no pensar, o ser ter acesso à linguagem. A linguagem é a casa da verdade do ser.
Nesta habitação do ser mora o homem” (HEIDEGGER, 1991, p. 01).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche: Metafísica e Niilismo. Tradução Marcos Antonio


Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Trad. Rubens Eduardo Frias.


São Paulo: Moraes, 1991.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti.


Petrópolis: Vozes, 1988. Parte I.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Linguístico-Pragmática na Filosofia


Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996.

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