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Heidegger: El Ser y El Tempo

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Em Ser e Tempo, Heidegger descreve o que faz como uma “ontologia


fundamental”, um estudo sobre o ser que pretende, grosso modo, corrigir 2.500 anos de
nosso má interpretação da realidade, uma interpretação que converteu o Ser em mera
natureza, como um conjunto de coisas que se pode manipular tecnologicamente.
Ainda que a tradição fenomenológica nasça com Husserl e tenha pensadores que
a trabalhem em termos husserlianos, Heidegger lhe deu uma interpretação mais
pragmática e anticartesiana, que inspirou muitos fenomenólogos, principalmente
Merleau-Ponty. [Interpretação de Heidegger da fenomenologia: pragmática e
anticartesiana]
As lições históricas que tomou de Dilthey lhe levou a dar um giro interpretativo
na fenomenologia, o qual dá início ao campo que conhecemos hoje em dia como
hermenêutica, representado por Gadamer, Ricoeur e outros. E ainda que, em sua Carta
sobre o Humanismo, Heidegger negue ou minimize a interpretação existencialista de
sua obra prima, chegou a consolidar uma tradição que começa com Kierkegaard e
Nietzsche, e influenciou bastante o existencialismo de Sartre. Foi Ser e Tempo que
levou Lévinas a conceber sua ética da alteridade. E como se não fosse o bastante,
Heidegger teve influência decisiva no desenvolvimento do pós-estruturalismo,
especialmente na desconstrução de Derrida e nas análises discursivas de Foucault, que
disse: “Para mim, Heidegger sempre foi o filósofo essencial... Todo o meu
desenvolvimento filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger.”
Habermas disse que Ser e Tempo é “provavelmente a virada mais profunda na filosofia
alemã desde Hegel”. [Influência de Heidegger no pensamento contemporâneo].
Lado obscuro: em 1933, foi eleito reitor da Universidade de Friburgo e se
converteu ao Partido Nacional Socialista, expressando um antissemitismo que hoje em
dia nos repugna. A pergunta não é se, como Homem, Heidegger tinha defeitos. Isso é
óbvio. A pergunta é se em Ser e Tempo há elementos que conduzem a uma ideologia
Nazista. Há quem pensa que sim e outros que dizem que não. Mas temos que ler os
textos antes de esboçar uma resposta. [Heidegger convertido ao nazismo].
Heidegger é muito criticado pela tradição analítica. B. Russel considera sua
filosofia “excêntrica e obscura... uma psicologia existencialista disfarçada de lógica”. A.
J. Ayer considerava Heidegger um charlatão. [Críticas da filosofia analítica].

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Ser e Tempo não foi elaborado no vazio, mas como resposta a um problema. Se
quisermos entender o argumento deste livro, devemos entender o problema ao qual ele
responde. Seguramente, já visitou um museu de antropologia ou de história natural.
Deixa-se o mundo prático das ocupações, do trabalho, e entra-se em um outro mundo,
bastante distinto; passeia-se lentamente, passando de galeria em galeria, observando
lentamente artefatos isolados e fora de contexto, como se flutuassem em um éter
asséptico diante dos teus olhos. Essa experiência de andar em um museu é apta a
expressar o problema de fundo ao qual responde o Ser e Tempo. Heidegger caracteriza
esse problema como a “postura teórica”, o fato de conhecermos o mundo ao nos
relacionarmos com ele de forma desligada e objetiva, observando objetos de forma
desinteressada, como os objetos descontextualizados que vemos nos museus. Os
antropólogos e cientistas podem dizer-nos muitas coisas sobre a cultura Maia. Porém,
trata-se de uma abstração de sua cultura e vida concretas. Nesse sentido, o que
Heidegger afirma é que desde os antigos gregos conhecemos os objetos do mundo como
se estivéssemos atrás de uma vitrine. De um lado da vitrine está o objeto; do outro, o
sujeito. A postura teórica parte desta distinção entre sujeito e objeto, entre uma
dimensão interior e outra exterior, que se vinculam pela representação. Isto se encontra
em Platão, em sua distinção entre o sensível e o inteligível. Porém, se torna muito mais
agudo no dualismo cartesiano. Com Descartes começa a tradição moderna que se centra
na epistemologia, na representação correta ou mediação entre o interno e o externo. [Ser
e Tempo responde a um problema. Heidegger chama esse problema de “postura teórica”
que adotamos diante das coisas, como se estivéssemos em um museu, contemplando
objetos de modo desinteressado. Esse problema foi montado na separação sujeito-
objeto, que se juntam mediante representações, que pode ser encontrada em Platão, mas
que atinge o auge com o dualismo cartesiano].
O problema que Heidegger tem com essa postura teórica e sua linguagem de
sujeito e objeto, interior e exterior, é que ela conduz a uma descrição distorcida da nossa
experiência, o que se reflete nos distintos esquemas ontológicos da tradição. Para
Heidegger, começando com Platão e Aristóteles, e possibilitada pela postura teórica, a
pergunta pelo ser no Ocidente tem sido respondida com algum tipo de objeto ou “ente”,
seja material seja espiritual, mundano ou divino. [A separação sujeito/objeto,
interior/exterior, distorce a nossa experiência. Já nos encontramos no mundo. A
pergunta pelo Ser foi distorcida, ou esquecida, segundo Heidegger. Geralmente, quando

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perguntamos pelo ser, essa pergunta é respondida por um objeto, seja material, seja
espiritual].
Vemos isso no significado da própria palavra ontologia: Vem do grego “on”, que
significa “é”. “To on” significa “aquilo que é”. Sua construção genitiva nos dá “ontos”,
que junto com “logia” resulta em “estudo daquilo que é”. Em Platão, aquilo que é no
sentido mais básico são as ideias; em Aristóteles é a substância primária; no
cristianismo é Deus; em Descartes é a res extensa e a res cogitans (quer dizer,
substância material e mental); em Kant, é o númeno; na ciência moderna, são as coisas
físicas, como os átomos. Apesar da variedade que encontramos nesses argumentos, o
que eles têm em comum é a concepção do ser como algum ente como alguma
substância: sejam os átomos, as ideias, ou Deus. [Ontologia: “estudo daquilo que é” é
tomado como o estudo da substância, pois a substância é que é considerada como tendo
realidade efetiva: aquilo que é são as ideias, Deus, res, númeno, átomos, e assim por
diante. Há uma entificação do ser, como se o ser fosse uma coisa]
Para Heidegger, estas ontologias da substância, por assim dizer, estão na base de
todas as dicotomias que desde Descartes definem a discussão filosófica: o debate
realismo/idealismo (tudo é material ou tudo é mental), o debate empirismo/racionalismo
(a base do conhecimento está no empírico ou no racional), a questão sobre se há valores
objetivos ou se tudo é permitido, etc. Em resumo, a opinião a respeito de que tipo de
ente constitui o real determina, em larga medida, a posição que se toma nestes debates.
Para Heidegger, a filosofia tem oscilado entre essas dicotomias de modo infrutífero. Ser
e Tempo pretende acabar com o modo como esse problema é colocado, acabar com a
ideia de que a realidade deve ser pensada em termos de entes ou substâncias. [Toda a
história da filosofia deriva da noção de que a realidade deve ser pensada a partir de
entes ou substâncias].
O que Heidegger oferece no lugar disso? Ele nos diz que desde Platão
esquecemos a pergunta primordial pelo Ser. A pergunta é “em que consiste o ser dos
entes?”. Seja o que for, não pode ser um ente a mais, porque poderíamos fazer o mesmo
questionamento a esse ente. A pergunta somente se deslocaria. Encontramos nessa
reflexão uma distinção muito básica de onde parte a sua investigação, que Heidegger
chamou de “a diferença ontológica”, isto é, a diferença entre o Ser e o Ente. Os dois não
devem ser confundidos. O que é o ser, então? Isso é o assunto do resto do livro.
[Heidegger chama atenção para uma distinção que precisa ser estabelecida entre ser e

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ente. Essa distinção está na base do que ele chamou de distinção ontológica. A pergunta
pelo sentido do ser será o objeto de seu livro].
Um esclarecimento: o título do livro é Ser e Tempo. Em alemão, “o ser” é “das
Sein”. Esse substantivo se deriva do verbo sein. Em alemão, o infinitivo de um verbo é
frequentemente convertido em substantivo. Por exemplo: Das Rauchen ist verboten, ou
“o fumar é proibido”. Isso é importante, pois quando vemos a palavra Ser convertida em
substantivo, se poderia pensar que Heidegger está tratando de uma substância. Mas não.
Precisamente, essa ideia é a que ele está criticando. As únicas pessoas que falam do ser
como substantivos são filósofos que escrevem tratados sobre ontologia. Os demais usam
de modo comum: João é alto; quero ser professor. Não se trata de algo místico. Como
diz Heidegger, o ser é sempre o ser de um ente. Se voltarmos à pergunta pelo ser terá
que ser pela interrogação de um ente. Esse ente são você e eu, que Heidegger chama de
Dasein. [Nota sobre o termo Sein, substantivado em alemão].

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Heidegger: El Ser y El Tempo
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O Ser e Tempo é apenas uma fração do que Heidegger planejou. O livro foi
planejado em duas partes, cada uma com três divisões. No entanto, foram publicadas
apenas primeiras duas divisões a primeira parte. A primeira divisão trata do Dasein e
sua existência; a segunda, do Dasein e a temporalidade. A terceira ia tratar o tempo e o
ser. Ainda que não se tenha publicado em Ser e Tempo, Heidegger deu uma conferência
com esse título em 1962, que foi logo publicada. A segunda parte do livro seria
dedicada à destruição da história da ontologia. Suas três divisões iam tratar a doutrina
do esquematismo do tempo em Kant, a doutrina do cogito sum de Descartes e a noção
de tempo em Aristóteles, respectivamente. [Ser e Tempo: obra incompleta].
Antes da introdução da obra, temos um prefácio em que Heidegger cita o
Sofista, de Platão: “os interlocutores manifestam sua perplexidade diante da expressão
‘ente’. Não é tão seguro o que significa.” É importante entender o que Heidegger
escreve nas linhas que seguem a citação. Ele diz: “Temos hoje uma resposta à pergunta
acerca do que propriamente queremos dizer com a palavra ‘ente’? De modo algum.
Então, é necessário de novo a pergunta pelo sentido do ser.” Embora o tema do livro
seja o ser, o que se investiga é o “sentido do ser”. A distinção entre ser e sentido do ser
também é importante. [Além da distinção ontológica entre ser e ente, também tem que
se fazer uma distinção entre ser e sentido do ser. A pergunta que Heidegger faz é pelo
sentido do ser].
O que Heidegger quer dizer com “sentido do ser”? Podemos esboçar uma
resposta, considerando primeiro como seria perguntar simplesmente pelo ser. Temos um
bom exemplo em Aristóteles. Com o que chamava de filosofia primeira (o que
chamamos de metafísica), Aristóteles pretendia estudar simplesmente todo o real, tudo o
que tem ser: árvores, cachorros, cadeiras, planetas... Essas coisas, ou entes, são o que se
chamava “to on”, como vimos no último vídeo. Porém, não estuda essas coisas como
um botânico ou antropólogo, mas como filósofo. Aristóteles pergunta pela realidade
desses entes. Qual é a condição para sejam reais? Sua resposta é “ousia”. Formalmente,
o que todas as árvores, cachorros, cadeiras, planetas, têm em comum é o seu ser, ou
ousia, o que em latim se traduziu como “substância”. Muitos filósofos da tradição
estiveram de acordo em relação a isso: todos os entes compartilham em comum o seu
ser, o que os antigos gregos chamavam de ousia. No entanto, entenderam a natureza

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desta ousia de formas distintas. Platão dizia que a natureza da ousia era eidos (as
ideias); São Tomás de Aquino dizia que era esse e Aristóteles dizia que era energeia. A
pergunta “O que faz que algo seja real?” é respondida geralmente com o ser, quer dizer,
ousia; e especificamente com as ideias, o esse, ou a energeia, dependendo do filósofo.
[A tradição não pergunta pelo sentido do ser, mas simplesmente pelo ser. Aristóteles
dizia que a realidade efetiva dos entes era fornecida pela ousia, ou substância em Latim.
Essa ousia foi entendida de modos distintos, como eidos, esse, energeia, etc. O que faz
com que algo seja real, que ela seja, tenha ser? Ela tem ousia ou substância.]
Seguimos com Aristóteles. A palavra “energeia” está relacionada com sua ideia
de que todo é um composto de matéria e forma. Por exemplo, a matéria da árvore está
organizada de certa forma. A forma de algo é a maneira ideal de ser desse algo. Seja
essa forma algo que se desenvolva naturalmente como na árvore, ou algo que se dá
artificialmente como um escultor que impõe a forma sobre a matéria do mármore, o que
temos é um processo dinâmico e teleológico. A forma da árvore ou a estátua estão
potencialmente na semente ou na mente do escultor. O processo de atualizar essa
potencialidade é o que Aristóteles chama de Energeia. Vem da palavra ergon, que
significa trabalho [Para Aristóteles, a forma de algo é a maneira ideal de ser desse algo.
Há em todas as formas um processo dinâmico e teleológico: a forma da árvore já está
potencialmente na semente. O processo de atualizar essa potencialidade é a energeia.].
A forma ideal da árvore ou da escultura é o fim, ou a perfeição, que se dá apenas
mediante da atividade de atualização. Você conhece algo que esteja em sua forma ideal?
Algum ser humano ou árvore perfeita? Não. O único que está em perfeitas condições e
em puro ato é o divino. Todo o resto está em constante processo de alcançar esse ideal.
Nesse sentido, o ser da ousia de algo consiste em uma de duas coisas: ou está em
processo de alcançar sua forma ideal ou já a possui; ou está em movimento ou em puro
descanso. Essa ontologia de Aristóteles pode ser relacionada muito bem com a sua
teologia. Se a ontologia responde pelo ser do real, a teologia responde a pergunta pela
fonte desse ser. Essa fonte só pode ser o divino, dado que Deus, o motor imóvel, é ato
puro, energea perfeitamente bem sucedida ou realizada. [A ontologia em Aristóteles
está relacionada com sua teologia. O divino é o ato puro, que realizou perfeitamente sua
forma ideal. Assim, a fonte do ser é o divino, energea perfeitamente realizada.].
Voltando a Heidegger, a palavra ontoteologia expressa o problema relacionado
com o que Aristóteles e outros dizem sobre o ser. A ontologia tradicional simplesmente
identifica algum ente, como Deus, as Ideias, como a instância mais excelsa do real. De
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diferentes formas, a tradição deu uma resposta ôntica à questão do ser. Explica o “to on”
recorrendo à noção de ousia, mas logo explicam a ousia, ou seja, a realidade do real,
recorrendo a outro “on” ou ente, o mais excelso. [Problema da ontoteologia: a ontologia
tradicional deu uma resposta ôntica à questão do ser. Explica o “to on” recorrendo à
ousia. Mas explicam a ousia recorrendo a outro “on” mais fundamental. Em Aristóteles,
todos os seres possuem ousia, mas aquilo que constitui a ousia é a energea. Em última
instância, é o divino que constitui o ser de todas as coisas].
Isso é, então, um exemplo da pergunta pelo ser na metafísica clássica, mas
Heidegger não faz isso, mas pergunta pelo sentido do ser. Por quê? Porque ele aborda a
questão do ponto de vista da fenomenologia. Por mais abstrata que seja a ontologia de
Aristóteles, ela aborda a questão do ser do ponto de vista do que Husserl chamava de
“atitude natural”, uma postura ou disposição de nossa experiência no mundo, que vê o
mundo como uma simples apresentação de objetos tais quais eles são em si mesmos
[subsistentes]. Em seu método fenomenológico, Husserl põe essa atitude entre
parênteses (isso é a sua célebre époché) e assim suspende qualquer juízo sobre o mundo
natural, centrando-se mais em uma análise da experiência mesma. Nessa nova atitude
fenomenologicamente reduzida, a experiência deixa de ser uma simples apresentação de
objetos e passa a ser um processo dinâmico do qual nossa consciência participa. Na
experiência entendida assim, a consciência deixa de ser um cogito cartesiano diante do
qual se desdobram objetos e passa a encontrar-se em uma relação essencial com objetos,
uma relação que Husserl chama intencional. O cogito cartesiano é sempre consciência, o
husserliano é “consciência de”, intencionalmente relacionada com aquilo de que está
consciente. O objeto de análise para o fenomenólogo não é o objeto nem o sujeito, mas
a correlação dos dois na experiência vivida. Dada essa correlação, o que se estuda não
são objetos como coisas fora do mundo, mas precisamente fenômenos, isto é, a aparição
ou apresentação dos objetos à experiência consciente. [Ao abordar a questão do ser,
Heidegger perguntará pelo “sentido do ser”. Isso se dá porque sua investigação é
fenomenológica. Aristóteles fornece a visão de que o mundo é uma simples
apresentação de objetos subsistentes em si. Isso está em nossa atitude natural. Husserl
propõe uma redução fenomenológica, que nos permita observar o caráter intencional da
consciência, que atua na feição da experiência. A fenomenologia se interessa pela
relação intencional entre consciência e mundo; isso implica que os objetos não são entes
fora da nossa experiência, mas constituem fenômenos, aparições, relacionados com
nossa experiência consciente]
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Em Latim, se diria que o fenômeno é um intentum, ou seja, aquilo que é
intencionado ou significado, o que Husserl chamava de noema. De forma correlativa,
esse algo intencionado é produto de um intentio, ou ato da consciência, o que Husserl
chamava de noesis. [Noema e noesis em Husserl].
A questão é saber se a sua teoria sobre o ser se centra em objetos ou entes; então,
tua pergunta vai orientar-se em termos de propriedades. Por exemplo, o objeto
“homem” tem as propriedades de ser animal e racional. Mas se sua forma de abordar o
ser se centra na correlação entre os fenômenos e os atos intencionais que os produzem,
então o relevante não são propriedades, mas o sentido, isto é, a forma em que o objeto
ou o fenômeno se torna inteligível ou significativo. Os objetos de nossa experiência
sempre se dão ou apresentam certo aspecto, perspectiva ou, o que dá no mesmo, um
sentido. Um claro exemplo é que o que Frege usou em sua celebre distinção entre
sentido e referência. O planeta Vênus é o objeto lá fora, a referência da nossa conversa,
mas falamos dele com diversos sentidos, como “a estrela matutina” e a “estrela
vespertina”. Esse sentido não é algo que os objetos abriguem em si mesmos, mas algo
que se constitui. Husserl afirmava que esta constituição do sentido era feita pela
consciência humana. Heidegger dirá que é outra coisa, como veremos, distinguindo-se
de Husserl. [Partir do sentido de algo é partir da intencionalidade. Para Husserl o
sentido de um ente não era dado nesse mesmo ente, mas constituído pela consciência
intencional de sua apreensão].
Vamos a um exemplo mais concreto. Imagine que uma pessoa com amnésia diga
a um outro sujeito: “ouvi falar que existe algo que se chama uma escola. O que é isso?
O que significa?” Aqui, temos uma pergunta pelo ser de algo, um ente, a saber, uma
escola. Alguém poderia responder com uma definição, mencionando suas propriedades,
ou ainda leva-lo a uma escola e dizer: “é este edifício, com salas, mesas, cadeiras,
professores e alunos”. Com isto, temos uma compreensão do objeto, mas não do
sentido. O que se faz com uma escola, de que serve, para que há escolas? Se poderia
responder ao amnésico que uma escola é para aprender; é parte do processo de
socialização dos jovens, para que se tornem aptos a formar parte da sociedade e
trabalhar nela. Este “para que” responde muito melhor à pergunta do amnésico, mas não
capta o que Heidegger quis dizer ao falar de sentido. Como comenta Magda King, o
sentido ou significado, para Heidegger, é aquilo pelo qual algo é inteligível como a
coisa que é. De que ou de onde uma escola é entendível como a coisa que ela é? Apenas
a partir do mundo da existência humana. Como se pode apreciar, passando da infância à
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velhice, a vida humana é de um crescimento e transformação, em que nos adaptamos a
novas circunstâncias no desenvolver de novas habilidades para reproduzir o mundo em
que vivemos. É devido a isso que temos coisas como escolas. O que possibilita nossa
compreensão da noção de escola é precisamente o sentido. O sentido de escola é o
mundo ao qual ela pertence. [Exemplo da escola: aquilo que define a escola não são
suas propriedades intrínsecas, mas o mundo humano em que a escola se situa e que lhe
serve de contexto. O sentido de escola está no mundo a que ela pertence].
Aqui, é onde Heidegger se desprende de Husserl. O que constitui o sentido de
algo não é a consciência humana, mas o entorno em que esse algo se encontra.
Falaremos muito mais da sua noção de mundo, mas agora deve ficar claro que não se
trata de uma mera coleção de objetos físicos, mas de relações sociais significativas.
Quando falamos do mundo acadêmico, ou mundo político, esse é o sentido utilizado por
Heidegger. [Diferente de Husserl, o que constitui o sentido de algo é o entorno – e não a
consciência. É o mundo, que não é um lugar vazio em que se situam objetos, mas um
conjunto de relações significativas, como em “o mundo da academia” ou “o mundo da
política”].
Quando demos o exemplo dos museus, deixa-se os afazeres cotidianos e se entra
em um ambiente bem diferente. Existimos em um mundo social, no qual é o contexto ou
horizonte que dá sentido, ou inteligibilidade, às coisas de nossa experiência. Esse
mundo, ou horizonte, é como a água para os peixes, algo tão cotidiano ou implícito que
não notamos. Heidegger fala em torna explícito o sentido. Uma forma de tornar
explícito o sentido é mudar o horizonte, como quando entramos no museu. Se
perguntarmos pela escola dentro do horizonte da física, ela se torna sem sentido. Por
que? Porque no mundo da física, as categorias relevantes são a matéria, a massa, o
movimento, a energia. Se o amnésico faz sua pergunta a um físico (o que é uma
escola?), a sua resposta vai consistir em mais entes: ladrilhos, cimento, átomos, tudo
organizado no espaço. Mas isso não faz o amnésico entender o sentido da escola. A
resposta do físico não é inválida, mas superficial, ou seja, não é fundamental. É uma
resposta que Heidegger caracterizará como ôntica, ou seja, ela responde a uma pergunta
sobre o ente com mais entes. A resposta que Heidegger pretende dar neste livro é
ontológica, uma que tem a ver com o sentido [o horizonte que dá sentido às coisas
geralmente fica implícito. Heidegger fala em tornar explícito. Uma forma disso é mudar
o horizonte, como quando vamos a um museu. Quando um físico tenta dar uma resposta
para o sentido de escola, ele vai dar uma resposta ôntica. O mesmo vale para a história
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da filosofia e o problema do ser. Heidegger pretende dar uma resposta ontológica. Para
isso, sua pergunta é pelo sentido do ser, e não apenas pelo ser].
Para Heidegger, a resposta ontológica tem prioridade. O sentido de algo é o
mundo ao qual esse algo pertence, o horizonte em que ele se apresenta como inteligível
e significativo. Mas a pergunta de Heidegger é pelo sentido do ser mesmo, que não é
nenhum ente. De acordo com tudo o que falamos aqui, teria que ser o horizonte que
torna possível que compreendamos o ser enquanto ser. “Que horizonte é esse?” É o
tempo. Por isso, o título do livro. O Ser e Tempo não é um tratado ontológico
tradicional. Quando Heidegger fala de ser não está falando de nenhum ente, ou de um
éter místico flutuando por aí. Como análise fenomenológica, qualquer conceito,
inclusive o “ser” se submete a uma epoché ou redução fenomenológica. O ser,
fenomenologicamente reduzido, é o sentido ou a significatividade. Ontologicamente, o
objeto de análise é o ser, e Heidegger utiliza esta linguagem do ser porque está
respondendo a toda uma larga tradição que o utiliza. Porém, por abordar esta questão de
forma fenomenológica, o objeto de análise é o sentido. Para Heidegger, o ser de algo
não é mais do que o seu sentido. Em outras palavras, quando dizemos que algo é, isso
equivale a dizer que tem sentido. Se perguntas: que é que necessito entender para
compreender o argumento deste livro?, diria esta pequena frase: “o sentido do ser”. [O
sentido de algo é o mundo ao qual esse algo pertence, o horizonte em que ele se
apresenta como inteligível. Mas a pergunta de Heidegger é pelo sentido do ser mesmo, e
não pelo sentido de um ente. Aplicando a redução fenomenológica à sua pergunta,
chegamos à ideia de que o horizonte que torna possível a compreensão do ser enquanto
ser é o tempo. O ser fenomenologicamente reduzido é sentido ou significatividade].

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Heidegger: El Ser y El Tempo
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É importante indicar a melhor tradução que temos em português. Nesta parte, o


autor procede um exame das 4 primeiras seções de Ser e Tempo.

Na primeira seção, Heidegger diz que desde os antigos gregos a pergunta pelo
ser foi esquecida. Esquecida no sentido de descuidada, como se não fosse digna de ser
levada a sério. Heidegger diz que ela não foi levada à sério devido a três ideias
equivocadas sobre a natureza do ser. A primeira é que o “ser” é simplesmente o
conceito mais universal. Nós topamos com cachorros, gatos e cavalos, e abstraímos
deles o conceito “animal”. Agregando a esses conceitos as plantas, bactérias, etc.
abstraímos o conceito de “coisas vivas” e agregando a isso os demais conceitos que
agrupam os diferentes entes, chegamos à classe mais universal de entes, os quais
compartilham em comum simplesmente o ser. Vimos tudo isto com mais detalhe no
meu vídeo sobre a ontologia aristotélica e medieval, que pode ser visto aqui. Neste
sentido, a pergunta pelo ser é fácil: é a pergunta pelo conceito mais universal. [A
pergunta pelo ser foi esquecida, ou deixou de ser levada a sério, desde a antiguidade
grega. Isso por três equívocos. O primeiro deles é o de que a pergunta pelo ser é a
pergunta por aquilo que há de mais geral, aquilo que todos os entes compartilham].
O que mais se pode dizer a respeito disto? A segunda ideia errônea que conduziu
ao descuido dessa pergunta é a de que o ser seja indefinido. Tomemos um conceito
como o de “homem”. Pode-se defini-lo? Claro, porque tem um conteúdo que pode ser
distinguido de outras coisas. Como vimos no vídeo sobre Aristóteles, o homem se
define ao indicar o seu gênero (animal) e sua diferença específica (a racionalidade) que
o distingue dos demais animais. O problema com o conceito de “ser” é que não tem um
gênero ou classe a que pertença, precisamente porque é o conceito mais universal. E
tampouco nenhuma diferença específica. Podemos distinguir os homens das mariposas
pela racionalidade, mas o ser não se distingue de nada porque todo o real é. Outra forma
de expressar esse problema é dizer que o conceito de ser não pode funcionar como
predicado, como faz o conceito de “homem”, como quando digo que “João é homem”.
Posso explicar o conceito de “homem” ao apontar um membro da classe, ou seja, João.
Porém, seria bastante estranho apontar para Juan para explicar o conceito de “ser”.

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“Olha, aqui há um exemplo de algo que é”. O problema é que o conceito de ser não
distingue nenhuma propriedade como “racionalidade” ou “animalidade”, já que tudo o
que se poderia apontar é. Afinal de contas, a própria universalidade do conceito é que o
que o torna indefinível. [Segundo equívoco que levou ao esquecimento do ser: pensar
que o ser, por ser o mais geral, é indefinível].
Contudo, usamos o verbo “ser” em quase tudo o que dizemos; assim, o seu
significado deveria ser autoevidente. Heidegger diz que vivemos em uma compreensão
do ser. Não obstante, ao mesmo tempo, está envolto em obscuridade pelas razões que
acabamos de ver. Isto, para Heidegger, demonstra a “necessidade de repetir a pergunta
pelo sentido do ser”, de formulá-la ou coloca-la bem. Na segunda seção, Heidegger
analisa a natureza das perguntas ou indagações em geral. Diz que constam três
elementos: 1) o que chama de das Gefragte, ou seja, aquilo pelo que se pergunta; 2) das
Befragte, aquilo que é interrogado; 3) das Efragte, o resultado da pergunta.
Basicamente, temos o tema, o questionamento e a conclusão. Imagine que o tema fosse
a natureza dos elefantes. Para indagar a esse respeito, teríamos que examinar ou
interrogar um elefante em particular. Ao fim da investigação, teríamos conhecimento
sobre os elefantes. No caso de perguntar pelo ser, o tema é obviamente o ser ou, como
diz Heidegger, “aquilo que determina o ente enquanto ente”, aquilo em termos do qual
“o ente é compreendido”. Agora, do mesmo modo que não se pode estudar a natureza
dos elefantes sem estudar algum elefante em particular, o ser, que para Heidegger é
sempre o ser de algum ente, deve ser investigado ao examinar ou interrogar um ente. O
que ganharemos com esta indagação será precisamente o sentido do ser. [Heidegger
sente necessidade de reformular o sentido do ser. Ele foi envolto em confusões. Assim
como o estudo de uma classe de entes demanda o estudo de entes em particular, o
estudo do ser também demandará. Como o ser é sempre ser de um ente, o estudo do ser
demandará a investigação de um ente.].
Porém, dentre todos os tipos de ente, qual devemos interrogar? Uma vez
escolhido esse ente, como abordar a interrogação? Como aceder ao ente e como captar
conceitualmente o seu sentido? Essas perguntas constitutivas da investigação nos dão
uma pista, porque são ao mesmo tempo modos de ser do ente que somos nós mesmos os
que perguntam e investigam. Poderíamos interrogar os entes que são os elefantes e
girassóis, mas para que procedamos em nossa indagação de maneira mais segura e
transparente, conviria interrogar o ente que somos nós, porque é no mesmo ato podemos
colocar a pergunta sobre o ser e colocarmos em nossa fala cotidiana certa compreensão
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de ser, ainda que vaga. Isso indica o caminho mais viável para responder a nossas
inquietudes sobre como dirigimos esta investigação: investigar nosso próprio modo de
ser. [Para recolocar a pergunta sobre o ser, Heidegger parte do ente que somos nós. Esse
caminho é o mais seguro, pois temos alguma compreensão, por mais que seja obscura,
do nosso modo de ser].
A este ente que somos nós, Heidegger chama de Dasein, e afirma que a
ontologia fundamental que pretende articular neste livro está “na base de todas as outras
ontologias, e deve ser buscada na analítica existencial do Dasein”. Mas por que? Por
que não confiarmos mais nos físicos do que nos filósofos para nos contarem sobre a
realidade? Um acelerador de partículas não é capaz de investigar o Dasein, mas apenas
partículas subatômicas. [A partir da analítica existencial, da investigação do Dasein,
Heidegger pretende lançar a base para outras ontologias].
Em primeira instância, a pergunta sobre o ser é primariamente ontológica. Isso
distingue-se de uma investigação científica. O que isto quer dizer? A biologia investiga
certa classe de entes – os entes vivos – e usa conceitos básicos, como organismo e
função, entre outros... As ciências não investigam o nível ontológico, mas o nível
ôntico; ocupam-se de entes do mundo, mas não de sua condição de possibilidade ou de
inteligibilidade. [A pergunta sobre o ser é ontológica: pergunta sobre a condição de
possibilidade ou inteligibilidade de um ente. A ciência interroga o ente desde o nível
ôntico].
O ser, objeto da ontologia fundamental de Heidegger, se alcança através de uma
análise do modo de ser do Dasein. Por que? Falemos um pouco deste célebre termo para
ver porque Heidegger o elege como ente primordial. [Por que a ontologia fundamental
se alcança através de uma análise do modo de ser do Dasein?].
Por Dasein Heidegger não se refere a qualquer ente, mas ao ente que somos você
e eu, o ser humano. O Dasein, como existência humana, é o que se tem que analisar para
responder a pergunta pelo ser. Mas por que não analisarmos de modo científico, como a
biologia, por exemplo? Para um biólogo, sou um homo sapiens com uma série de
características morfológicas e funcionais que me distinguem de cachorros e demais
coisas vivas. Por que Heidegger se interessa pelos humanos, e não pelos cachorros?
Heidegger diz: “O Dasein não é apenas um ente que se apresenta entre outros. O que o
caracteriza onticamente é que este ente possui em seu ser esse mesmo ser”. O que isso
quer dizer? Simplesmente que nosso ser se apresenta como um problema, como uma
questão aberta que continuamente tem que ser resolvida. O Dasein se preocupa pelo seu
13
ser de um modo que uma rocha ou um cão não fazem. Das rochas e cachorros, podemos
perguntar: o que é? Eles manifestam certas propriedades que os identificam e forma a
sua essência. Não tem que tomar nenhuma decisão para ser o que são. O que distingue
um ser humano de um cão ou uma rocha é que que podemos perguntar: como é? Um
cachorro que vive no Japão ou na Alemanha do mesmo modo. Porém, um homem
mexicano e um japonês vivem de modos diferentes. [Para o Dasein, o seu ser se
apresenta como um problema. A rocha ou os cachorros não se interessam pelo próprio
ser. Isso faz do Dasein um ente especial, a partir do qual se deve começar a
investigação. O Dasein toma decisões a cada instante para ser o que é. Isso o torna
variável].
O Dasein não é o homo sapiens. Sua essência não se encontra em nenhuma
propriedade que se possa responder com a pergunta “O que é?”. Porém, para Heidegger,
a essência do Dasein reside em sua existência. Você dizer que o cachorro também existe
e é um objeto físico do mundo, mas a diferença é que o cachorro não se relaciona com
sua existência como um problema... Heidegger diz: “a peculiaridade ôntica do Dasein
consiste no fato de que o Dasein é ontológico”. Por que? Porque o Dasein é o único ente
que se relaciona com sua própria existência como algo por resolver-se, e esse existir é o
seu ser [A diferença do Dasein para os cachorros é que o Dasein se relaciona com a sua
existência como um problema. Isso faz com que sua existência preceda a sua essência;
com que sua essência resida em sua existência].
Se alguém pergunta, “O que é o Dasein?”, não pode apontar uma definição, mas
apenas a atividade concreta de viver sua própria existência: “O Dasein se compreende
sempre a si mesmo a partir da própria existência.”. Essa compreensão de si mesmo,
Heidegger chama de “existentiva”. Essa é uma compreensão ôntica que tem a ver com a
atividade cotidiana de existir, com como nos relacionamos e usamos os fenômenos de
nossa experiência: o uso do carro, quando nos orientamos nas ruas para chegar a um
destino, temos cuidado com cães bravos, mil detalhes que dependem da experiência, da
memória, do reconhecimento. Esta compreensão é intuitiva, não teórica, e consiste
simplesmente na compreensão de que um Dasein particular tem sua própria forma de
ser, ou seja, daquilo que é como indivíduo. Em sua análise, Heidegger vai partir deste
nível ôntico da compreensão que o Dasein tem de si, mas vai ver e interpretar a partir de
um ponto de vista ontológico, ou seja, com a finalidade de captar a estrutura geral da
existência para qualquer Dasein. Trata-se de uma análise propriamente existencial, e
não meramente existentiva [Quando nos perguntamos “o que é o Dasein?” a pergunta
14
não pode ser respondida como uma definição estática, pois o que está em jogo é o modo
de ser de cada Dasein, em sua atividade concreta. Porém, Heidegger parte deste nível
ôntico de compreensão, interpretando-o do ponto de vista ontológico, de modo a captar
a estrutura geral do Dasein].
Os elementos que compõem a estrutura do Dasein são os celebres “existenciais”.
A ontologia fundamental deve ser buscada na analítica existencial do Dasein. Para
deixar isso claro, façamos uma tabela, distinguindo filosofia e ciência. A ciência
procede de forma ôntica, ao fixar-se nos entes, descrevendo a sua conduta e
categorizando-os de acordo com propriedades. A filosofia, do modo como entende
Heidegger, procede de modo ontológico, ao fixar-se no ser, ou seja, na condição de
possibilidade de todo ente. Mas, concretamente, em que consiste esse proceder
ontológico? O cientista maneja propriedades e categorias. Que faz o filósofo? Heidegger
rechaça o ôntico em favor de uma clássica ontologia abstrata. Sua ontologia depende de
uma análise ôntica de um ente muito particular – o Dasein, especificamente o seu modo
de existência. Em vez de propriedades, o que se analisa é a compreensão existentiva que
mencionamos, o modo do Dasein em sua vida particular e cotidiana. O que se consegue
com essa análise não são categorias e leis, mas os existenciais, que conformam a
estrutura geral da existência do Dasein como tal. E isso é a última coisa que
supostamente dará a pista para chegarmos à compreensão explícita do sentido do ser,
não apenas para o Dasein, mas para o ser em geral, mas o que temos em Ser e Tempo é
apenas a preparação da célebre analítica existencial de Heidegger.

Abordagem Filosofia Ciência

Procedimento Ontológico Ôntico


Tema Ser Ente
Resultado Sentido do ser Propriedades, categorias

Entre o mundo dos entes com suas propriedades e o ser que interessa a
Heidegger, o Dasein é a ponte. Trata-se do ente indicado para aceder precisamente ao
ser, porque sua essência é a existência, o que faz com que sua relação com o ser seja
muito íntima. Todo estado ôntico de um cachorro ou de uma rocha é puramente ôntico
ou fático. O estado ôntico do Dasein, em contrapartida, é ontológico, porque o seu ser
consiste em responder ao problema que o próprio ser se coloca. A compreensão
existentiva que tem o Dasein de sua vida cotidiana é uma compreensão, mesmo que

15
vaga e não teórica, do ser. Em outras palavras, o Dasein possui uma compreensão
implícita do ser que Heidegger pretende tornar explícita em sua assim chamada analítica
existencial [Dasein é a ponte entre o mundo dos entes e o ser. Os homens possuem
cotidianamente uma compreensão existentiva da sua vida cotidiana. Isso é uma
compreensão vaga do ser, ôntica, marcada pelos automatismos, mas já é uma
compreensão do ser. É a porta de entrada para uma reflexão existencial, propriamente
ontológica. Por isso o Dasein é a ponte].

16
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 4/15

Aqui será tratado da seção 9, com que Heidegger inicia a análise existencial do
Dasein. Não se vai tratar das seções 5, 6, 7 e 8 porque já se tocou indiretamente nos
temas ali trabalhados, como o método fenomenológico, a necessidade de destruir a
história da ontologia e a estrutura do livro.
Primeiro, recordemos que a pergunta que dirige toda a investigação de
Heidegger é a pergunta pelo sentido do ser. Dado que o ser não é algo em si mesmo,
mas o ser de algum ente, há que se estudar ou interrogar os entes para responder à
pergunta. O ente que Heidegger elege para analisar é o Dasein. Por que? Já o
discutimos, mas a seção 9 deixa isso muito claro. O Dasein é o ente mais indicado para
a sua análise devido a seu modo de ser, o qual se distingue do modo de ser dos demais
entes em dois aspectos. Primeiro, diz Heidegger: “A essência do Dasein consiste em sua
existência”. Isso soa agora um pouco estranho porque a essência de algo é o que faz que
esse algo seja um certo tipo de coisa e não outro. Ao conhecer a essência ou definição
de cachorro, por exemplo, se pode distingui-la de outras coisas, como os computadores.
Ninguém vai confundir a propriedade de ser mamífero com os computadores. Porém, ao
dizer que a essência do Dasein consiste em sua existência, Heidegger não está falando
de uma característica que todo ente possui, a saber, o existir? Se é assim, como pode o
Dasein distinguir-se dos outros entes? Heidegger traça uma distinção aqui: o uso
cotidiano do termo existência provém do termo escolástico “existentia” que significa o
que Heidegger caracteriza como Vorhanden (literalmente, diante da mão), algo que
ocorre fisicamente no mundo e com o qual poderíamos topar. Vorhanden, que Rivera
traduz como estar-aí, é o modo de ser de todo ente que não seja o Dasein. A essência ou
modo de ser do Dasein, em contrapartida, também é a existência, mas em outro sentido:
o que Heidegger distingue com o termo alemão Existenz. Qual é a diferença? O Dasein
não é um ente que simplesmente ocorre por aí, como um computador ou até mesmo um
cachorro. Ele é um ser que em seu ser se conduz ou se dirige ao próprio ser. [Heidegger
escolhe o ente Dasein para uma investigação do ser porque a essência do Dasein
consiste na sua existência. Mas o cachorro também existe. Porém, há que se atentar para
os sentidos filosóficos da palavra existência. Haidegger sugere que há pelo menos dois
sentidos: um de Vorhanden, que é o modo de ser dos entes intramundanos. Já o Dasein é
dotado de Existenz. Seu ser se conduz ao próprio ser].

17
Se nos fixamos na etimologia da palavra existir, podemos ilustrar o que
queremos dizer. Ela vem do Latim “existere”, que significa destacar-se, ressaltar-se, tal
como colocar em primeiro plano em relação a um fundo. Neste sentido, dizer que o
Dasein existe quer dizer que se pode afastá-lo de sua própria ocorrência no mundo e
observar-se a si mesmo. É nesse sentido que o ser do Dasein, como vimos em um vídeo
anterior, se apresenta ou se manifesta como uma questão aberta, algo que tem que se
resolver, algo sobre o qual uma decisão tem que ser tomada. Os computadores e os
cachorros não fazem isso. Ao reunir as propriedades que os definem, já são o que são.
[Existere: destacar-se de um fundo. O Dasein pode afastar-se de sua ocorrência no
mundo e observar-se a si mesmo. Por isso, o seu ser se apresenta como uma questão
aberta, que pede resolução. Quando falamos coloquialmente em crise existencial, o que
quer dizer é que o próprio ser está em questão e não se sabe o que fazer com ele.
Cachorros não ficam em crise existencial, não se colocam a questão do seu ser].
O que Heidegger está dizendo é que o que constitui a essência do Dasein não são
propriedades, mas possibilidades. O ser de um cachorro está fechado. Como dizia
Rousseau, ao cabo de alguns meses depois de nascer um animal é o que será para o resto
da vida”. O Dasein não; está em mudança, está aberto. Em todo momento de sua
existência, tem a sua vida para viver, para realizar. Resumindo: o modo de ser de todos
os entes que não sejam o Dasein é o estar-aí ou Vorhandensein, coisas que
simplesmente ocorrem no mundo físico. Se perguntarmos por eles, perguntamos “O que
é?” e a resposta é uma série de propriedades que constituem a sua essência. O modo de
ser do Dasein é a existência propriamente dita. O Dasein não possui propriedades, no
sentido tradicional, mas as têm que determinar ou, em outras palavras, tem que
interpretar o que é. Devido a isso, se perguntamos pelo Dasein, não perguntamos “o que
é?”, mas “quem é?. [O modo de ser dos entes intramundanos é o Vorhandensein. Eles
são definidos por categorias ou propriedades. Porém, o Dasein não se define por
propriedades, mas por possibilidades. Ele está aberto. Seu modo de ser é a existência.
Existir é escolher como viver. A pergunta não é O que é, mas Quem é].
Isto nos leva à segunda coisa que distingue o modo de ser do Dasein dos demais
entes. Diz Heidegger: “O ser deste ente (ou seja, o Dasein) é cada vez meu”. Os
hambúrgueres comprados em qualquer lugar são iguais. Podem-se substituir uns aos
outros. O Dasein não. Seu modo de ser consiste em existir, em escolher como viver. As
decisões que toma fazem com que essa possibilidade existencial seja sua. No último
vídeo vimos o modo como cada Dasein em particular vive sua vida (por exemplo, ser
18
um professor de filosofia em vez de advogado) é chamado por Heidegger de existentivo.
Contudo, o ser do Dasein possui uma estrutura que constitui uma espécie de a priori
para todo o Dasein, uma estrutura que todo Dasein compartilha; e dado que o ser do
Dasein consiste na existência, Heidegger chama os componentes desta estrutura de
existenciais. Um dos mais básicos é o ser-no-mundo. [O ser do Dasein possui uma
estrutura que constitui um a priori para todo Dasein, que permite que ele tenha uma
compreensão existentiva ou um modo de ser existentivo. Um desses componentes ou
estruturas a priori é o ser-no-mundo].
Porém, o ponto aqui é que um Dasein não pode ser substituído por outro. Seu ser
é em cada caso seu. Ainda que Heidegger negue que o seu pensamento seja
existencialista, muitos o leram desta forma e, nesta altura da análise, você já pode
imaginar porque. Um termo muito encontrado na literatura existencialista é o da
autenticidade, especialmente em Sartre. Muitos escreveram sobre Heidegger e a
autenticidade, mas em Ser e Tempo essa palavra aparece apenas cinco vezes, que é
Echtheit. O termo que aparece centenas de vezes é Eigentlichkeit, que muitos traduzem
também por autenticidade (ou por caráter de próprio).
A essência de qualquer ente consiste em uma lista de propriedades. A essência
do Dasein é a existência, no sentido de possibilidades, possibilidades que têm que ser
escolhidas. Porém, para escolher e realizar suas possibilidades, o Dasein tem que
enfrentar a sua existência de forma autêntica, ou seja, como própria ou sua. Alguém
poderia dizer que outros entes, como uma semente, encerram possibilidades também.
Dentro desta semente está a possibilidade do girassol, a qual pode se atualizar, como
vimos em Aristóteles. Contudo, diferente do Dasein, essa possibilidade da semente não
é sua. Para começar, há apenas duas possibilidades: desenvolver-se como girassol ou
permanecer semente, e essas possibilidades são as mesmas para qualquer semente de
girassol. Em outras palavras, o modo de ser do girassol é simplesmente o de estar aí,
subsistir. Sua essência não é a existência, como no caso do Dasein, porque o seu ser não
é algo que tenha que ser decidido ao escolher uma possibilidade. Cada Dasein, em
contrapartida, é um caso individual; as possíveis maneiras de responder à questão da
existência não se repetem de forma automática para os demais Dasein, como no caso da
semente. Isso é muito parecido com o que Sartre diferenciou entre o ser para si e o ser
em si. [A essência do Dasein é a sua existência. A existência é um campo aberto de
possibilidades, que se precisa escolher. Isso difere dos entes subsistentes, que não estão

19
abertos à existência. A semente não tem escolha entre se tornar ou não girassol. Sartre
chamou essa distinção de em si x para si].
Dado que a existência do Dasein é sua e de ninguém mais, a decisão primordial
do Dasein consiste em reconhecer isto, fazer com que sua existência seja própria,
apropriar-se dela. Sartre diria que se trata de responsabilizar-se por sua existência. Em
todo caso, a existência do Dasein se torna autenticamente sua. Ou, por outro lado, o
Dasein pode não reconhece-la, não fazer dela algo próprio, não reconhecendo o seu ser
como o de um “quem”, mas como o de um “que”, como na semente. Heidegger não está
dizendo que alguns são rebanho enquanto outros vivem autenticamente. Ele não quer
avaliar eticamente as pessoas, mas estruturar a inteligibilidade de sua investigação sobre
o ser.
No tema da seção 10, Heidegger distingue sua analítica do Dasein da
antropologia, psicologia e biologia. Essas são ciências que estudam o homem, mas o
estudam do mesmo modo que a botânica estuda a semente, como uma coisa que
manifesta propriedades. Ao estudar os entes desta forma, o cientista maneja uma
ontologia, essa ontologia é substancialista, como vimos. O psicólogo ou o biólogo
podem fornecer muitas informações sobre os seres humanos, mas nada em relação ao
ser dos seres humanos. Claro, se não tenho como nutrir-me, vou morrer, assim como a
semente. Porém, diferente da semente, posso escolher ser arquiteto, aprender guitarra,
ou ser escritor. O Dasein tem inclusive a opção de se nutrir ou não. Por que continuar
vivo? Camus diz que a pergunta pelo suicídio era a mais importante. O Dasein pode se
decidir em relação a isso, a semente não. As categorias que o antropólogo, o psicólogo e
o biólogo usam não podem dar respostas para esse tipo de pergunta. O que os cientistas
analisam são propriedades, que são as mesmas para qualquer membro de uma classe.
Porém, a decisão de se tornar um arquiteto ou aprender violão só tem sentido em relação
a uma existência que se pode chamar de minha. [Diferença da analítica do Dasein para
uma antropologia ou uma biologia: o que está em jogo não são propriedades, que
agrupam os entes em classes, mas a existência do ente. A existência comporta a
responsabilidade pela condução da própria vida. Autenticidade significa o caráter de
próprio da vida]

20
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 5/15

Na seção 12, começamos propriamente a analítica do Dasein. Por que uma


analítica existencial? Porque essa é a essência do Dasein. Seu modo de ser consiste em
existir, no sentido em que vimos no último vídeo, coisa que o distingue dos demais
entes. Se analisarmos qualquer outro ente, seria uma análise categorial. Por que? Porque
o ser de entes como cachorros e computadores consiste em propriedades com base nas
quais muitos indivíduos podem se agrupar em classes ou categorias. O problema que
Heidegger tem com a tradição é que entendeu o ser em geral nos termos deste último.
Bom, dado que a essência do Dasein é a existência, não o analisa com categorias, mas
com existenciários. [Cap. 12: início da análise existencial do Dasein. Porque seu modo
de ser consiste em existir. Isso o distingue dos demais entes, cujo ser consiste em
categorias ou propriedades. O problema é que a tradição entendeu o ser em geral como
consistindo em um amontoado de categorias. Uma analítica do Dasein não lidará com
categorias, mas com existenciários].
Os existenciarios formam a estrutura a priori do ser do Dasein. Comparemos
com o que faz Kant em sua primeira crítica. A Kant não interessa o ser do Dasein, mas o
pensamento do sujeito. O pensamento tem uma estrutura formada, não por
existenciarios, mas por conceitos puros ou a prioris, que são empregados em todo ato de
conhecer. Encontramos a mesma ideia na análise de Heidegger: a de identificar os
elementos a priori que configuram a existência de qualquer Dasein. [Existenciarios são
elementos a priori que configuram a existência do Dasein].
Bem, o mais básico desses existenciários é o que Heidegger chama de ser-no-
mundo. Que é esse aí onde está o ser-aí? Um mundo. Todo Dasein está no mundo.
Pode-se dizer que um livro não é Dasein, mas está no mundo. Mas não no sentido de
Heidegger. Entes do tipo dos livros ocorrem no mundo físico e mantém relações
espaciais com outros entes. Por exemplo, quando dizemos que a água está no copo,
usamos “no” no sentido de contido. Trata-se de um uso ôntico, apropriado para um ente
que é um “que”, cujo modo de ser é o Vorhandensein. Mas o Dasein não é um que, mas
um quem. Quando Heidegger diz que o estado básico do Dasein é o ser-no-mundo, não
quer dizer que ele ocupa uma posição espacial em meio a um conjunto de outros entes,
mas que habita um entorno que lhe é familiar. [Ser-no-mundo como existenciário: o aí

21
do ser-aí. Não se trata de estar situado espacialmente em relação a outros entes, mas de
estar situado em um entorno familiar].
O Dasein experimenta o seu mundo, não como uma coleção de objetos, mas
como uma totalidade organizada e familiar de relações significativas entre diversas
metas, atividades e entes. O Dasein não é, em absoluto, um robô. Se um robô entra em
uma casa, percebe-a como um espectador isolado. Sua atitude ou postura seria teórica,
medindo e calculado a partir da posição que ocupa para produzir conhecimento sobre
seu entorno. Para o Dasein, a estrutura não é uma casa, mas um lar. O lar não lhe
contém como um objeto, mas o Dasein mora nele. Diferente do robô espectador, o
Dasein é um ator cujas preocupações não são teóricas, mas práticas. [O Dasein não
experimenta o seu mundo como uma coleção de elementos isolados, mas como
totalidade organizada. Um lar, ao invés de uma casa com móveis. Essa discussão é
muito útil para a inteligência artificial].
Qualquer ente que não seja o Dasein está “no” mundo, contido nele. Porém, o
Dasein está no meio do mundo, absorto em um ambiente em que ele se ocupa das coisas
que o rodeiam, de um modo fluido e familiar. No retrato de um carpinteiro, vê-se um
homem em sua oficina em meio a um mundo prático e familiar, lidando com
ferramentas. O mesmo vale para a mesa de um professor. [O Dasein se ocupa das coisas
que o rodeiam].
O ser-no-mundo contrasta com o modo como a tradição entendeu a relação do
homem com o mundo. A filosofia moderna supõe um sujeito isolado do mundo que, de
algum modo, tem que fazer contato com esse mundo e conhecê-lo. Este isolamento é o
que faz com que o conhecimento e, sendo assim, a epistemologia, sejam o tema
principal da filosofia moderna, e que nossa postura frente a esse problema seja teórica.
[O ser-no-mundo contrasta com a imagem homem-mundo da modernidade, de um
sujeito separado de um objeto que precisa construir uma ponte para conhecê-lo].
Para Heidegger, o Dasein já está no mundo; portanto, o problema
epistemológico é falso, ilusório. A ilusão acontece porque confundimos o ser do Dasein
com o das coisas. Se é estudante de filosofia, certamente já esteve em uma festa onde te
olharam torto quando souberam o que fazia. Isso acontece porque filósofos fazem
perguntas estranhas, como “que é a realidade de uma mesa?”, “Como posso estar seguro
de que a mesa realmente está aí?”, etc. Trata-se de uma postura teórica apropriada
quando tratamos dos Bosons de Higgs, mas não para as coisas cotidianas que cercam o
Dasein. O Dasein não conhece objetos, mas os utiliza, os emprega; sua relação com as
22
coisas não é epistemológica, ou teórica, mas prática. Na seção 13, Heidegger diz que
esta relação epistemológica com o mundo do qual se ocupa a questão do conhecimento
é apenas uma forma derivada de ocupar-se, derivada da relação mais fundamental do
ser-no-mundo, de estar em meio a, ou habitando um ambiente de modo prático. [O
problema epistemológico é falso, ilusório, porque o Dasein não habita o mundo de
modo teórico, mas de modo prático. Sua relação com as coisas não é fundamentalmente
epistemológica, apenas de modo derivado].
Nos próximos três capítulos, que vão da seção 14 à 38, Heidegger trata em
separado dos elementos do ser-no-mundo: o capítulo três fala do mundo; o quatro de
“quem” habita esse mundo, o Dasein; o quinto, da relação de “estar-no”. Esses três
capítulos não tratam de três coisas distintas, mas de três aspectos de um fenômeno
unitário que é o ser-no-mundo... Ao longo dessa discussão, vemos vários existenciários,
todos eles se conformando à estrutura do Dasein, mas indo do mais geral ao mais
particular, chegando no capítulo sete ao existenciário que da forma mais adequada
revela ao Dasein a sua própria existência, a saber, o cuidado. Mas vamos por partes.
O Dasein está no mundo. Como é esse mundo? Para nós, hoje em dia, o mundo é
o que vemos no Google Earth: um conjunto de casas, ruas, montanhas, etc. É um
conjunto de entes. Mas se lembra que o ser dos entes não pode ser ele mesmo um ente?
Pois aqui é a mesma coisa. O mundo como um conjunto de entes, ou como o espaço que
os contêm, é um conceito científico ôntico. Este é um sentido em que podemos falar do
mundo; e quando Heidegger se refere ao mundo neste sentido, coloca a palavra mundo
entre aspas. Outro sentido é o de que tratamos em nosso exemplo do robô. O mundo em
que existe o Dasein não é o dos entes isolados, como o que percebe o robô em um plano
teórico, mas um entorno de relações significativas, que se prestam à realização de suas
metas práticas. [O mundo não é um espaço em que entes intramundanos se distribuem,
como sustenta a imagem da tradição filosófica, ou o robô. O mundo não existe
teoricamente, mas é um entorno de relações significativas].
O mundo tem um sentido “existentitvo pré-ontológico”. Lembra-se que
existentivo se refere ao entorno ôntico concreto em que um Dasein particular se move.
Assim, o mundo em que se move o meu amigo carpinteiro é distinto do mundo do
acadêmico. Estes sentidos de “mundo” são ônticos, tem a ver com entes. Porém,
Heidegger está interessado no nível ontológico, no ser destes diferentes mundos. Em
outras palavras, busca aquilo que, de forma a priori, faz com que o mundo seja um
mundo. Chama isto de mundaneidade do mundo, como vemos no título desta seção.
23
Sabemos que não vamos encontrar traçando um catálogo de entes, mas analisando a
existência cotidiana do Dasein. Recorde que nosso acesso ao ser (ou neste caso à
mundaneidade do mundo) não pode se dar através dos entes. Isto Heidegger começa a
fazer na seção 15; sua análise consiste em uma descrição fenomenológica da forma em
que o Dasein se relaciona com os entes do seu entorno. Heidegger diz que nossa forma
de tratar os entes não é conhecendo-os puramente, mas ocupando-se deles,
manipulando-os, utilizando-os. A pergunta fenomenológica se dirige, em primeiro
lugar, ao ser do ente que comparece na dita ocupação. [No nível ontológico, a
mudaneidade do mundo, seu a priori, é definido pelo modo como o Dasein se relaciona
com o seu entorno. Ele se dirige aos entes, não para conhece-los, mas para usá-los].
O ente que se vê por detrás de uma vitrine tem o modo de ser que Heidegger
chama de Vorhandensein. Fenomenologicamente, os entes não se apresentam desse
modo, mas como coisas úteis, que se prestam às necessidades do Dasein. Este modo de
ser Heidegger chama de Zuhandensein, ou à mão. Para o Robô, os entes são objetos de
conhecimento; para o Dasein, são ferramentas ou utensílios. Assim, o Dasein não está
consciente de suas propriedades; ele simplesmente os emprega, como se o ente estivesse
invisível, já que o Dasein permanece absorto no que faz. [Os objetos são para o Dasein
coisas úteis ou Zuhandensein; o Dasein não está consciente de suas propriedades, ele
simplesmente os usa; há um desaparecimento fenomenológico dos objetos no seu uso].
Há uma anedota que ilustra bem a diferença entre Vorhandensein e
Zuhandensein: conta-se que havia uma centopeia caminhando muito rápido. Um sapo a
observava e ficou maravilhado em como a centopeia coordenava todos os passos para
caminhar. Ao passar pelo sapo, ele lhe disse: “que maravilha o que faz; explique-me
como coordena todas as suas patas”. A centopeia se poe a pensar e diz: “bem, primeiro
ponho esse pé, em seguida aquele...” Ao mesmo tempo que falava, movia os pés para
mostrar, mas de repente tropeçou e caiu. Mora da estória: no princípio, seus pés estavam
à mão; não prestava atenção, mas simplesmente os empregava para caminhar. Isto é
Zuhandensein. Ao responder a pergunta do sapo, se colocou no plano teórico, vendo-os
como objetos estranhos que teria que manipular. Isto é o ente como Vorhandensein.
Haidegger não usa o exemplo da centopeia, mas do martelo. Quando menos se
contempla o martelo, melhor se o manipula para usá-lo.[Anedota da centopeia e do
sapo; exemplo do martelo].
Há outra diferença entre esses tipos de ente. Diferente do ente como objeto
isolado (o Vorhandensein), o ente à mão ou útil nunca se encontra isolado, mas remete a
24
outros objetos uteis. Diz Heidegger: “um útil só é assim a partir do seu pertencimento a
outros úteis: tinteiro, pluma, tinta, papel, carpete, mesa, lâmpada, móveis, janelas,
portas, quarto”. Aí vemos uma relação de “para que” entre meios e fins. O tinteiro é
para encher a pluma, que é para escrever sobre o papel, o qual está sobre a mesa, a qual
é iluminada pela lâmpada, etc. O que temos aqui não é um espaço cheio de coisas, mas
um sistema ou totalidade de referências. Como as ferramentas na oficina do carpinteiro,
um sistema de referencias permite que algo prático aconteça. É esse sistema de
referencias que constitui o mundo: o mundo do carpinteiro, do cirurgião ou do
professor. O mundo não é um ente a mais, como podemos ver, mas o que torna possível
que os entes se manifestem como úteis à mão. [No mundo, os entes nunca estão
isolados; sempre estão em referências significativas uns com os outros, posto que todos
estão subordinados a um “para que”. Como Zuhandensein, cada ente se relaciona com
outros, de modo a formar um sistema de referencias. Esse sistema de referências é o
mundo em que esses entes aparecem. O mundo é condição de possibilidade dos
Zuhandensein].
Nesta análise e a que vem nos próximos capítulos, Heidegger trata de discernir a
estrutura essencial do ser do Dasein. O que vimos até agora é que a forma de existir do
Dasein, sua forma de se relacionar com os entes, implica um mundo. Mas pode haver
diversos mundos, como o do carpinteiro e do cirurgião; nenhum desses mundo pode ser
essencial para todo o Dasein. O que é essencial é que o Dasein encontre-se em algum
mundo. De modo que o que forma parte de sua estrutura essencial não é “o mundo”,
mas a mundaneidade, as relações básicas que constituem qualquer mundo como tal.
[Não existe “o mundo”, para Heidegger; afinal de contas, cada Dasein está em seu
mundo. Mas o mundo individual de cada Dasein ainda situa-se no nível ôntico,
existentivo. O que interessa Heidegger é o nível ontológico. Nesse sentido, o que forma
parte essencial do Dasein não é o seu mundo, mas a mundaneidade, que é o a priori
constitutivo de qualquer mundo].
Como sempre, nosso acesso ao ser ou, nesta caso, à mundaneidade, se dá através
dos entes, especificamente dos entes à mão. O problema é quando o Dasein emprega
esses entes, o próprio ente e o mundo de relações que ele possibilita passam para um
segundo plano, desvanecem. Como pode então Heidegger tornar explícito o que o
Dasein compreende implicitamente de sua atividade cotidiana? Na seção 16, Heidegger
diz: nos momentos em que o fluxo de nossa atividade é interrompida. Isto acontece
quando algum útil quebra ou para de funcionar. Gira a chave e o carro não liga; uma
25
árvore bloqueia a estrada... Nestes exemplos, o sistema de referências que configuram
os entes à mão de um mundo dado é sacudido, interrompido. Nesses momentos, o
mundo que normalmente está invisível se revela. É como a musculatura do corpo.
Normalmente não a sentimos que ela nos permite mover. Mas se nos exercitamos
pesado, no dia seguinte estamos doloridos e sente músculos que nem sabia que tinha. É
nesses momentos de interrupção que a relação entre as coisas, sua conexão entre si, sua
significatividade é revelada com clareza. Onde antes essas referências eram implícitas,
agora são explícitas, como a dor nos músculos. [Só nos damos conta do mundo, como
sistema de significatividade entre as coisas, quando algo falha nesse mundo, quando
temos um breakdown, que nos obriga a refletir sobre o que geralmente está em segundo
plano].
Qual é a finalidade de todas essas referencias e conexões dos entes entre si? Para
que usamos o tinteiro para encher a pluma para escrever uma carta, para comunicar algo
a um amigo? Tudo se remete no fim das contas ao Dasein, a algum bem seu, a alguma
possibilidade do seu ser. Quando introduzimos a questão do Dasein, dissemos que o seu
ser é uma questão aberta, algo que tem que resolver. Se é assim, a resolução de seu ser,
as decisões que tem que tomar acerca de como viver sua vida, tem que ver com alguma
atividade prática e isso só pode ser feito em um mundo. Deste modo, vemos que o
conceito de mundo como existenciário constitui parte da estrutura essencial do Dasein.
[Por que o mundo é um existenciário ou parte da estrutura essencial do Dasein? Porque
todas as relações significativas existentes entre os entes do mundo, toda a
mundaneidade, só existe porque o Dasein é um ser aberto, uma questão aberta que tem
que ser resolvida. Tudo o que faz em relação com as possibilidades que lhe são abertas e
as ações que ele empreende para levar a cabo o seu projeto].

26
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 6/15

Estamos analisando o modo de ser do Dasein. Dado que sua essência é a


existência, isso significa analisar a estrutura que determina as formas em que o Dasein
existe na vida normal. Os componentes desta estrutura são os existenciários, o mais
básico ou geral sendo o ser-no-mundo. No último vídeo, vimos o capítulo três a noção
de “mundo” que compõe parte desse existenciário. Nas últimas seções desse capítulo,
Heidegger distinguiu sua noção de mundo da Descartes. Quero falar rapidamente do que
ele disse e também da espacialidade do Dasein. [A essência do Dasein é a existência.
Assim, uma analítica do Dasein tem que analisar as formas pelas quais o Dasein existe.
Os componentes dessa estrutura são os existenciais, dentre os quais se destaca no ser-
no-mundo. Vimos o que significa mundo].
Na ontologia de Descartes, há apenas duas coisas: mente e matéria, ou como se
diz em Latim, res cogitans e res extensa. O mundo cartesiano é res extensa, um
conjunto de coisas que se desdobram em um espaço geométrico. Para Heidegger, o
mundo que o Dasein habita, o espaço em que se move, é existencial. Descartes, como a
tradição filosófica, falou em termos ônticos para responder a uma pergunta ontológica.
[Em relação ao espaço, há uma diferença fundamental entre Descartes e Heidegger. O
espaço para Descartes é geométrico, onde as coisas se distanciam de modo objetivo,
pela distância medida em quilômetros, metros, etc.].
Recorde que a diferença ontológica significa distinguir ser e entes. Cachorros e
computadores são entes que simplesmente estão aí, fisicamente presentes, pelo que
ocupam um espaço geométrico. Como vimos no último vídeo, o Dasein quase não
encontra esse tipo de ente em sua existência cotidiana, mas os úteis, os entes à mão. A
relação que guarda com estes não é geométrica, medida por distâncias, mas existencial,
medida pela preocupação do Dasein por suas metas e projetos. Neste sentido, se algo
está perto ou longe, isso é uma função, não de distância, mas de preocupação. Por
exemplo, vais a um teatro com um amigo, chegam tarde e os últimos dois acentos estão
longe um do outro. Você se senta perto de uma pessoa que não conhece. Geométrico e
onticamente, essa pessoa está mais próxima de ti, mas existencialmente o teu amigo, do
outro lado da sala, está mais perto. O tema da Descartes, o mundo e a espacialidade é
tratado nas seções 19-24. A exposição de Heidegger é mais detalhada, mas realmente

27
não é difícil de entender; por isso ficamos por aqui. [O Dasein não encontra entes
intramundanos subsistentes, mas entes à mão, úteis. A relação que guarda com estes não
é geométrica, mas existencial, prática. Perto ou longe não é uma questão de medida,
mas de preocupação.]
Na continuação, Heidegger deixa a questão do mundo e passa a considerar mais
de perto o ente que o habita: o Dasein. Pelo que Heidegger nos havia dito até agora,
parecia que o Dasein era um Robinson Crusoé, vivendo só e se ocupando de
ferramentas em sua atividade cotidiana. No capítulo quatro, vemos que o Dasein não
está só; ele mora em um mundo com outros Dasein. Mas primeiro, começando o
capítulo na seção 25, Heidegger pergunta: “quem é o Dasein?” Para entender a
importância desta pergunta, temos que recordar que a pergunta fundamental de
Heidegger, aquela com a que começa o livro, é a pergunta pelo ser. Recordando que o
ser é o ser sempre de algum ente, decide interrogar o ente que é o Dasein, porque,
diferente dos demais entes, o Dasein possui certa compreensão do seu ser, a qual, se
pode fazer explícita, servindo de guia para a compreensão do ser em geral. A pergunta
“quem é o Dasein?” é um passo muito importante para essa meta. Há pouco, na seção 9,
Heidegger disse que o Dasein é o ente cujo ser é cada vez o seu, ou seja, o ser de um
indivíduo não pode ser substituído por nenhum outro. Em outras palavras, ninguém
pode levar a minha existência por mim; tenho que leva-la eu mesmo. Onticamente, isso
quer dizer que um eu individual é esse ente, o Dasein. Mas não poderíamos responder a
pergunta “quem é o Dasein?” ou “quem sou eu?” com um sujeito isolado no estilo
cartesiano. Se analisarmos fenomenologicamente a existência de um Dasein, temos que
ele se encontra no mundo com outros Dasein. Isso não significa simplesmente que há
outros Dasein em seu mundo. Isso seria uma afirmação ôntica contingente. Do mesmo
modo como o Dasein é-no-mundo, ele é-com os outros. Essa é uma afirmação
ontológica e necessária e constitui outro existenciario que compõe a estrutura do ser do
Dasein. Note que o existenciário não é a existência concreta de outros Dasein, mas o
ser-com, ou o “co-estar” (Mitsein). [Além do ser-no-mundo, outro existenciário é o ser-
com – Mitsein. Isso distingue o Dasein de um sujeito cartesiano ou de um Crusoé]
O co-estar determina existencialmente o Dasein mesmo quando não há outro que
esteja faticamente aí e que seja percebido. É muito interessante essa afirmação. Mesmo
quando se é um ermitão, se está fática e onticamente só, ontologicamente não se está. O
seu ser é co-estar (Mitsein) porque a solidão apenas tem sentido diante da possibilidade
da coexistência. Inversamente, não se elimina a solidão com a chegada de vários Dasein
28
à sua cabana. Pode-se estar em uma festa e se sentir sozinho. A solidão é uma função
deste existenciário do co-estar, mas não uma função da presença ou ausência de outros
Dasein em seu redor. [Mesmo quando se é ermitão, isso não elimina o caráter de co-
estar. A solidão só existe como função dessa existenciário básico, mesmo que se esteja
na companhia de outros].
Interessante ainda o que Heidegger diz sobre “a gente” – das Man. Na seção 27,
ele responde à sua pergunta inicial “Quem é o Dasein?”: “O quem não é este ou aquele,
não é si mesmo nem alguns, nem a soma de todos. O ‘quem’ é o impessoal, o ‘se’ ou a
gente [das Man]”. A palavra “man” é um pronome equivalente ao “se” em português,
que Heidegger converteu em substantivo ao agregar o artigo “das”. Se perguntássemos
“O que é o Dasein?” estaríamos tratando-o como uma coisa e daríamos uma definição,
como animal racional, que vale para todos. Mas dado que sua existência é a cada vez
sua, tem-se que perguntar: “quem é o Dasein?” e somente o Dasein pode responde-lo.
Cada Dasein terá uma resposta existentiva ou ôntica distinta, dependendo das suas
circunstâncias particulares, mas no nível existencial ou ontológico, Heidegger diz que o
Dasein se define ou se avalia nos termos dos Outros: estão ganhando mais ou menos do
que eu? Ele tem um doutorado e eu apenas um mestrado. O Dasein sempre mede como
se difere dos demais, muitas vezes para se conformar à média ou de não fazer coisas que
não caberiam dentro do normal e do aceitável. Às vezes, com a finalidade de distinguir
a sua posição social, se lhe confere uma vantagem, por exemplo, em relação a coisas
como ingresso, corrida, educação e classe social. Heidegger caracteriza isso como
distancialidade. Quem sou? Isso é a minha distância em relação aos demais. Diz
Heidegger que “a gente” se desenrola na cotidianidade como uma autêntica ditadura:
“gozamos e nos divertimos como se goza; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e
arte como se vê e se julga; mas também nos apartamos do “montão”, como se deve
fazer; nos irritamos com o que irrita. A gente, que não é ninguém determinado e que são
todos (mas não como a soma deles) prescreve o modo de ser da cotidianidade”. Rio dos
hipsters que se creem superiores às massas porque são tão parte do jogo da
distancialidade como as massas de que desdenham. O efeito de tudo isto é que produz
uma hegemonia da mediania que “vela sobre todo contato de exceção. Toda
preeminência termina silenciosamente nivelada”. Em seu conjunto, a distancialidade, a
mediania e a nivelação de toda possibilidade do ser constituem a “publicidade”, ou seja,
o sentido do público. O Dasein vive de forma anônima nesse espaço público e, como
consequência, não tem que se preocupar em tomar decisões. O “a gente” alivia o Dasein
29
em relação à questão de determinar o seu próprio ser. No seio de “a gente” a vida é
muito cômoda. Cada qual é um outro e nenhum é si mesmo. Pois temos aqui um
existencialismo puro: o homem que perde a sua identidade e individualidade no
conformismo e no anonimato. Heidegger possui seus antecessores: Nietszsche e o
rebanho, Kierkegaard e o indivíduo, Sócrates e o “conhece-te a ti mesmo”. Essas seções
são as mais fáceis e chamativas e se poderia utilizá-las para fazer Uma crítica social,
mas essa não é a intenção de Heidegger. O Ser e Tempo é uma análise ontológica, não
um tratado sociológico. Ainda que se possa ter uma opinião pessoal contra o
conformismo, Heidegger não deseja fazer um juízo moral, mas entender o modo de ser
do Dasein. Ainda que te pareça negativa a ditadura de das Man, de “a gente”, ela será a
condição que permitirá que Heidegger deixe explícito o ser do Dasein. [O conceito de a
gente: o impessoal, o “se”. Frequentemente e no mais das vezes, nos medimos pelos
outros, é na distância em relação aos outros que respondemos a pergunta “quem sou
eu?”. O Dasein vive de forma anônima nesse espaço público, sem ter que tomar
realmente decisões. Mas a preocupação de Heidegger não é de traçar uma crítica social,
mas de fazer uma análise ontológica do Dasein. A condição de a gente permite deixar
explícito o ser do Dasein.]
Vejamos: até agora vimos dois existencários básicos: o ser-no-mundo e o estar-
com (outros Dasein). O Dasein geralmente está absorto com seus entes úteis, de forma
fluida, sem estar consciente disto. Está perdido em seu mundo como a centopeia se
perde em seu caminhar. Apenas quando deixa de funcionar um dos úteis é que se
ilumina o pano de fundo do seu mundo. A rede de elementos de um mundo particular é
o que permite que o Dasein atue com habilidade e fluidez em suas atividades concretas.
Passando o existeciário de estar-com ou co-estar, deixamos o mundo do cirurgião ou do
carpinteiro e tratamos do mundo social. Aqui está o tema da existência do Dasein: o que
é que determina a forma que essa existência vai tomar? O que vimos até agora é que o a
gente, o das Man, o determina, de modo que o Dasein se perde em uma espécie de
conformismo anônimo. As normas e expectativas do das Man são as da sociedade, as
quais funcionam de modo fluido e eficiente, como a rede de úteis na oficina do
carpinteiro. Do mesmo modo que o carpinteiro não presta atenção consciente em sua
atividade para desenvolvê-la de modo fluido, ao não colocar atenção consciente no
como existir (entregando essa determinação ao das Man), o Dasein vive de forma
cômoda e fluida, sem problemas. [Assim como o carpinteiro, para desenvolver sua obra,

30
não para para refletir sobre o que faz, o Dasei entrega-se à a gente para existir de forma
cômoda e cotidiana].
A essência do Dasein é a existência, e essa existência é a cada vez sua. Isto é o
que o distingue dos demais entes, como pedras ou computadores. O ser do computador é
entendido como um conjunto de propriedades; o ser do Dasein, em contrapartida, é
entendido em termos de possibilidade. Sua existência é algo que tem que ser realizada
ao escolher entre diferentes possibilidades. Isso não tem lugar no vazio, mas em um
mundo social cotidiano onde se encontra o Dasein, ou seja, em meio a a gente. Para
tornar sua existência sua, ele tem que arrebata-la do das Man. No final da seção 27, ele
trata disto, retomando a distinção entre o próprio e o impróprio. Se quero ser eu mesmo,
tenho que me responsabilizar pelas decisões sobre a minha existência. Isso é atuar de
forma própria ou autêntica. Se entrego essa tarefa ao das Man, é imprópria ou
inautêntica. Agora, se isso não possui carga moral para Heidegger, qual é o ponto? Para
que serve? Bem, voltemos à questão das possibilidades que caracterizam o ser do
Dasein. O das Man cobre e oculta essas possibilidades e, assim, alivia o Dasein, mas
como consequência, o Dasein não fica consciente do seu ser, de suas possibilidades.
Mas o eu autêntico as tem presentes, e isso é muito importante porque, como veremos
nos próximos capítulos, uma das possibilidades que o Dasein pode estar consciente é a
possibilidade de não ser, da morte de si mesmo. Como comenta Michael Gelven, “no
modo autêntico, o Dasein está consciente da possibilidade de não ser. Isto revela a sua
finitude. É essa finitude que proporciona a base ontológica para a temporalidade, e para
a consciência do tempo.” [Quando vivo no regime de a gente, me desresponsabilizo
pela minha existência, pelas minhas escolhas mais singulares, vou no fluxo do mundo
social, tenho filho porque a gente tem, tenho as opiniões que a maioria têm, falo do
modo como a gente fala, etc. O a gente deixa o Dasein inconsciente de seu ser, suas
possibilidades, de sua abertura. Seu modo é a inautenticidade, a impropriedade. Mas
isso não tem conotação moral para Heidegger. Para Heidegger, o que importa é que o
tema da autenticidade está ligado à consciência das possibilidades e, sobretudo, da
possibilidade de não ser. O modo de ser autêntico assume a finitude. É isso que revela a
dimensão da temporalidade, central para Heidegger].
Por mais negativo que pareça o das Man e a uniformidade social, é precisamente
com essa uniformidade de pano de fundo que o Dasein pode se apropriar da sua
existência; Heidegger assinala-la como o caminho do ser.

31
32
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 7/15

Agora, na seção 28, veremos umas ideias muito importantes, mas sua forma de
expressá-las deixa o leitor com uma cara assim “Que porra é essa?”. Não se preocupe,
pois a grande maioria das pessoas têm essa experiência ao ler Heidegger. Para torna-las
mais compreensíveis, vejamos o que vimos até aqui.
Estamos analisando a existência do Dasein. Onticamente, tua existência não é a
mesma que a minha. As levamos de modo distinto. Porém, ontologicamente, ambas
compartilham certa estrutura em comum. Os elementos dessa estrutura, os
existenciários, é o que Heidegger vai identificando. O mais básico é o ser-no-mundo.
No capítulo três, Heidegger se centrou no mundo, em como o Dasein está em seu
mundo. Não se relaciona com ele de forma cognitiva, como um sujeito cartesiano que o
mede e o representa, mas que o habita como algo que lhe é familiar. Esta familiaridade,
a vimos ilustrada em termos do seu uso dos entes à mão, os úteis. No capítulo quatro,
perguntando pelo quem do Dasein, centrou-se no lado social do mundo, e vimos o papel
de a gente, ou do público anônimo, na determinação de sua atividade cotidiana. Na
seção 28, Heidegger diz: “agora é necessário voltar a dirigir a interpretação em direção
ao fenômeno do ser-em, sem perder de vista o que foi alcançado na análise concreta do
mundo e do quem”. No capítulo cinco, Heidegger deixa sua visão fenomenológica dos
elementos em torno do Dasein – os úteis e os outros – e se fixa no ser-em como tal,
aprofundando a partir do próprio Dasein sua experiência de familiaridade no mundo. O
conceito-chave desta seção, aquele do qual se distingue o resto do capítulo será uma
elaboração, se encontra na seguinte afirmação: “O Dasein é sua abertura
[Erschlossenheit]”. Agora podemos fazer a tal cara de incompreensão: o que é isso?
Vamos por partes. [O Dasein é sua abertura. O que é isso? Vamos por partes].
O verbo erschlossen significa abrir-se, no sentido de revelar-se. O mundo não é
algo que discirno com os sentidos, nem tampouco é um objeto com o qual eu, como
sujeito, me relaciono cognitivamente ou, como dizia Husserl, através da
intencionalidade. Aqui, Heidegger rompe claramente com o seu mestre. Se entendemos
o Dasein como uma consciência alcançando o objeto através da intencionalidade, então
“se dissolve de antemão o fenômeno, e toda a tentativa para recompor-lo a partir dos
seus fragmentos resultantes é uma empreitada sem esperança”. Isto é o que quase toda a

33
filosofia moderna tentou desde que Descartes introduziu o seu dualismo. O Dasein está
no mundo, não de forma cognitiva, conhecendo-o, mas ele experimenta o mundo como
algo que se revela. O ser do Dasein é tal que o mundo é um fenômeno que se abre para
ele. Por isso a palavra “abertura”. [O mundo é aprendido pelo Dasein como algo que se
revela. Por isso, diz-se que o Dasein é abertura para esse mundo. Essa é a sua forma
fenomenológica de aparecer].
Ao dizer que “O Dasein é sua abertura”, Heidegger está se acostumando a uma
nova forma de conceber o nosso ser. Meu ser não é algo situado dentro da minha pele,
mas está estendido sobre um campo ou região que é o mundo do seu cuidado e
preocupação. Pode-se compará-lo a um campo magnético ou gravitacional: o ser do
Homem é semelhante a esse campo, mas sem um ego no centro do que esse campo
irradia. Essa região ou abertura é o meio em que o mundo se revela ao Dasein ou, em
outras palavras, é a forma em que o Dasein é no mundo. Esta abertura se caracteriza por
três aspectos: 1) a disposição afetiva [Befindlichkeit]; 2) o compreender; 3) o discurso.
No resto do capítulo (seções 29-38), Heidegger os elabora. Bem, o primeiro aspecto é a
disposição afetiva. Heidegger começa a seção 29 dizendo: “O que na ordem ontológica
designamos como o término de disposição afetiva é onticamente o mais conhecido e
cotidiano: o estado de animo”. O Dasein está no mundo, não de forma cognitiva, mas
afetiva. Sua conexão ou relação com o mundo se sente através do seu estado de ânimo.
Ainda que tradicionalmente a filosofia tenha depreciado o lado afetivo, como
meramente subjetivo e idiossincrático, para Heidegger isso revela dimensões muito
importantes da existência do Dasein. Primeiro, o estado de ânimo de alguém é como
uma condição de fundo que sempre está presente, da qual nunca se pode escapar... “O
primeiro caráter ontológico é a disposição afetiva: a disposição afetiva abre o Dasein em
sua condição de lançado”... Quando um adolescente se dirige a seus pais em fúria,
dizendo que não pediu para nascer, o que ele expressa é o fato de que se encontra
existencialmente lançado em um mundo, com regras e disposições que ele não escolheu.
[Na abertura do Dasein, um dos componentes fundamentais é a disposição afetiva.
Antes de estar em uma relação cognitiva com o mundo, o Dasein, em sua condição de
lançado, se encontra em um dada disposição afetiva. Essa ajuda o Dasein a orientar-se
ou encontrar-se em seu mundo, ao colocar em relevo aspectos relevantes e descartar
outros aspectos irrelevantes].
“O estado de animo põe o Dasein ante o que é do seu aí”. O “que é” é muito
parecido com o que os medievais chamavam de hecceidade, ou seja, o caráter singular
34
de algo, o que faz ser ele e nenhuma outra coisa. O que é singular aqui é a existência do
Dasein, que Heidegger também chama de sua facticidade, que é revelada ao Dasein pelo
seu estado de ânimo. Não se trata de algo contingente, mas parte da estrutura do ser.
[Faz parte da estrutura do ser do ente Dasein possuir uma estrutura de ânimo].
Quando Heidegger fala do “aí” do Dasein, não se trata de um lugar físico, mas
de um entorno de relações significativas, de um mundo em sua totalidade. Se estás
deprimido, esse estado de ânimo não assinala apenas um objeto no mundo que seja sua
causa, mas que penetra todo o campo em que se move o Dasein. O mundo não se revela
como um inventário homogêneo de coisas, mas como um entorno que nos importa.
[Exemplo da depressão, “aí” e mundo: o mundo é um entorno significativo e não um
inventário de coisas. A tonalidade afetiva pode fazer com que todo o mundo fique
sombrio, angustiante. Uma das características da estrutura do Dasein é estar-lançado em
um mundo. Esse mundo nos preexiste, já estava aí antes da nossa abertura; possui regras
próprias, que nos ultrapassam. A experiência do Dasein é de estar lançado aí nesse
mundo e o primeiro contato não é pela via cognitiva, mas afetiva. É primariamente pelo
afeto que selecionamos, colocamos em relevo o que nos importa e descartamos o resto].
O Dasein é abertura para um mundo que se revela e a primeira forma pela qual
esse mundo se revela é a disposição afetiva, manifestada em seu estado de ânimo. O
Befindlichkeit, ou “encontrar-se”: através do seu estado de ânimo, o Dasein se encontra
no mundo, sem decisão ou controle sobre a circunstância em que se encontra. Esse
aspecto do seu ser revela a atualidade do mundo que habita, seu caráter fático. Ainda
que Heidegger o diga, poderíamos chamar esse aspecto do ser do Dasein de “o modo do
atual”. Se este “modo do atual” fosse a única forma em que o Dasein é no mundo, então
o ser do Dasein não seria uma questão aberta, que tem que se resolver, já que o peso do
mundo em que está lançado o determinaria de antemão. Isso é a expressão do grito do
adolescente. Mas o adolescente não conta apenas com um lado afetivo, mas também
compreensivo. O segundo aspecto da abertura é o “compreender”. Já deve ter ouvido
que o destino te dá as cartas, mas que cabe a ti jogá-las. Pois a disposição afetiva, ou o
que chamamos de o modo da atualidade, revela esse aspecto do mundo que não nos
toca, de escolher as cartas. Agora, o compreender, o modo da possibilidade, tratará da
possibilidade de julgá-las. Verá que na seção seguinte, a 30, Heidegger fala do medo
[Angst] como um modo da disposição afetiva... Quando compreendemos, sempre
compreendemos algo. Eu, por exemplo, compreendo mais ou menos Ser e Tempo. Mas
o que é que o Dasein compreende? Heidegger utiliza esse termo, não no nível ôntico,
35
como no meu exemplo, mas no nível ontológico. A habilidade que semelhante
compreensão lhe dá não é a capacidade de fazer isto ou aquilo, mas de ser, existir. Isto
soa um pouco estranho, quase místico. Como Dasein compreende como existir. Pois não
é tão estranho assim se recordarmos que o Dasein não existe como um cachorro ou um
computador. Essas coisas não têm que forjar a sua existência através de decisões, mas
simplesmente são, manifestam as propriedades que as definem. Como vimos, o Dasein
não se manifesta por propriedades, mas por possibilidades. Ao dizermos que o Dasein
compreende o seu ser enquanto existir, não se trata de uma compreensão teórica ou
proposicional, como saber que 2+2=4. Isso é um “saber que”. A compreensão de que
fala Heidegger é um “saber como”. Vimos o exemplo disso no uso que Heidegger faz
dos úteis. Mas aqui, a compreensão não trata do “para que” dos úteis, mas do “para que”
de sua própria existência, do que a sua existência pode ser. O Dasein é o que pode ser
ou, em outras palavras, é as suas possibilidades. Voltando à noção principal deste
capítulo, a abertura, ou caráter revelador do Dasein, o compreender, revela ao Dasein o
seu próprio ser enquanto possibilidades e revela o que são as suas possibilidades. O que
a disposição afetiva lhe revela é a sua condição de lançado; o que o compreender lhe
revela é a sua capacidade, ou habilidade, de ser. Heidegger pergunta: “Por que o
compreender penetra sempre até as possibilidades? Porque o compreender tem em si
mesmo a estrutura que nós chamamos de projeto”. [Junto com a disposição afetiva, que
revela a sua condição de lançado ao Dasein, há também a estrutura do compreender.
Compreender é um outro existenciário, nesse sentido. O Dasein estruturalmente
compreende. Mas não no sentido ôntico, na compreensão de um teorema, um conceito,
um autor; no sentido ontológico, em que ao Dasein é revelada a sua condição de ser, isto
é, de que ele tem como tarefa a escolha das possibilidades que lhe são colocadas. Nesse
sentido, o compreender é próximo da noção de projeto - Entwurf].
Rivera traduz a palavra Entwurf como “projeto”, o que muitos não gostam.
Preferem Projeção. Wurf significa tiro, lançamento. O ponto é que o Dasein sempre se
encontra lançado em seu aí, mas em todo aí, em toda situação, há diferentes
possibilidades em que a situação pode se desenvolver. Segundo Heidegger, o
compreender se projeta para essas possibilidades. [Estamos lançados no nosso aí; mas
esse aí é aberto a possibilidades em que a situação pode se desenrolar. O compreender
projeta essas possibilidades].
Antes de prosseguir, é interessante ver um paralelismo nos termos utilizados por
Heidegger. A frase “condição de lançado” traduz a palavra “Geworfenheit”. Na
36
disposição afetiva, vimos que sou lançado (desde um passado que não controlo), e o
compreender resulta que lanço a mim mesmo em direção às possibilidades no futuro
(que em certa medida controlo). Obviamente, as possibilidades não são ilimitadas. Se
medes 1,60m não vai ser jogador de basquete profissional. O destino nos repartiu
algumas cartas e não outras. É por isso que Heidegger diz que o Dasein é uma
“possibilidade lançada”. “O projetar não tem nada a ver com um comportamento
planejador por meio do qual o Dasein organiza seu ser, mas enquanto Dasein, o Dasein
sempre se projetou, e é como projetante que existe”. Ou seja, esta projeção para as
possibilidades não é uma contingência, uma casualidade, mas algo fundamental.
Recorde que estamos falando do nível ontológico, em que a compreensão é constitutiva
do ser. Então, isso quer dizer que o Dasein existe sempre adiantado em relação a si
mesmo, por assim dizer, no sentido de que entende a si mesmo em termos de
possibilidades. [O projetar-se é estrutural, ontológico; não se trata de um projeto x, y ou
z, mas um estar sempre adiantado em relação a si mesmo. O compreender é justamente
o da abertura para as possibilidades, e está intimamente relacionado com esse lançar-se
para o futuro, do mesmo modo que a tonalidade afetiva relaciona-se com um mundo que
pre-existe, com um mundo passado].

37
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 8/15

Dasein é o ser aí. Por um lado, seu estado de ânimo revela ao Dasein a sua
própria facticidade, sua condição de lançado no mundo. Por outro lado, o compreender
revela propriamente a sua existência. Facticidade e existência soam meio que como
sinônimos, mas é importante distingui-las. Se o Dasein existisse ao simplesmente viver
a sua facticidade, seu ser seria determinado, como o de um cachorro. Seu ser não seria
uma questão aberta. Não haveria decisões a tomar. Ao projetar-se em diferentes
possibilidades, o Dasein existe propriamente, e é o compreender o que projeta essas
possibilidades. Agora, qualquer um poderia te dizer que compreender algo significa
entende-lo, poder explica-lo. Dizer que significa projetar possibilidades soa bastante
estranho. Heidegger não nega o lado cognitivo ou epistêmico, mas diz que não é a
forma básica com a qual o Dasein se relaciona com o mundo. Seu ponto de partida não é
o conhecimento do mundo, tal como um robô fazendo um inventário das coisas, mas
existir no mundo. O robô está no mundo de forma cognitiva e o mundo que o rodeia é
plano e homogêneo. O Dasein, em contrapartida, ocupa o seu mundo de forma afetiva.
O aí onde ele existe está em uma atmosfera de ânimo que revela o mundo como uma
topografia na qual se distinguem coisas relevantes de coisas irrelevantes. Quando
Heidegger fala do compreender do Dasein, a compreensão não é cognitiva, mas
existencial e consiste, como vimos, em projetar possibilidades [Compreender não é
fundamentalmente um ato cognitivo, mas afetivo, de estar lançado diante de
possibilidades, projetar possibildiades].
E qual a natureza dessas possibilidades? Não se tratam de algum acontecimento
específico, como comer um sanduiche ou viajar para Paris. Essas são possibilidades de
ordem ôntica. Contudo, Heidegger fala delas na ordem ontológica – recorde que
compreender é um existenciário. Então, as possibilidades a que se referem não são
coisas ou acontecimentos, mas modos gerais em que as coisas ou acontecimentos
podem adquirir sentido, ou seja, esquemas de organização ou relação entre as coisas que
as dotam de significado. Uma boa maneira de ilustrar isso é com as regras de um jogo
de xadrez, em que as regras são esquemas anteriores aos movimentos... O que fazem as
possibilidades que o Dasein projeta é reconfigurar o sentido do que ocorre no nível

38
ôntico. [Compreender é um existenciário, isto é, um esquema transcendental que
configura ou reconfigura o que se passa no nível ôntico].
Quando vimos a relação do Dasein com os entes à mão, vimos que ele os utiliza
de forma fluida, sem pensar no que faz. Seu mundo, nesse sentido, é uma totalidade de
relações entre os úteis, que é implícita e, portanto, familiar. Esta totalidade é uma
possibilidade de existência, como esse conjunto de regras que acabamos de tratar. Na
seção 32 Heidegger diz: “o projetar-se do compreender tem sua própria possibilidade de
desenvolvimento. A este desenvolvimento do compreender chamamos de interpretação
[...] é a elaboração das possibilidades projetadas no compreender.” Se o compreender
projeta possibilidades, a interpretação as faz explícitas. Quando interpretamos algo,
tornamos explícito o uso do “para que” desse algo dentro da totalidade de referências
em que se encontra. A interpretação, diz Heidegger, “não lança certo significado sobre o
ente que está aí, nem o reveste com um valor, mas a interpretação “tem a estrutura de
algo enquanto algo”. Por exemplo, ao interpretar uma câmera, não descrevemos um
objeto com certas propriedades, mas vemos uma câmera enquanto câmera, tornamos
explícito o seu para-que no entorno do mundo em que ela é empregada. [O compreender
projeta possibilidades; a interpretação as torna explícitas.]
O que Heidegger está fazendo ao longo de Ser e Tempo é uma interpretação:
uma interpretação do sentido do ser. Se o Dasein não tivesse certa compreensão do ser
de antemão (coisa que sabemos, porque se move com familiaridade em seu mundo), sua
reflexão não seria uma interpretação, ou seja, um tornar explícito o que já está implícito
no modo de existir do Dasein, mas simplesmente um “lançar certo significado sobre o
ente”. [Para haver interpretação, é preciso ter havido compreensão. A interpretação
torna explícita a compreensão, que é muito mais prática, implícita].
Na seção 33, Heidegger fala do enunciado. Na lógica, a proposição ou enunciado
é o que se chama o “portador da verdade”, ou seja, os enunciados afirmam que algo é ou
não é. Heidegger argumenta que o enunciado não é mais do que um modo derivado de
interpretação, o qual no fim das contas minava a suposta primazia da lógica. Isto
obviamente é um tema muito importante. Decidi não trata-lo aqui, mas mais adiante, na
seção 44, em que ele fala da questão da verdade, de forma mais detida. Agora chegamos
ao terceiro elemento que constitui o aí do Dasein. Além da disposição afetiva e do
compreender está o discurso. [O terceiro elemento que constitui o aí do Dasein, além da
disposição afetiva e da compreensão é o discurso].

39
Ao discutir os dois primeiros elementos, dissemos que o Dasein e os entes que o
rodeiam não são indivíduos atômicos, mas ocupam uma totalidade de relações holística
e inteligível. Essas relações não constituem uma massa indiferenciada, mas um conjunto
estruturado. O Dasein tem certa compreensão desse conjunto, mas é uma compreensão
não consciente, é pre-conceitual, manifestada pela familiaridade com que habita seu
mundo. O discurso, para Heidegger, é a estrutura dessa compreensão pré-conceitual. É
importante não confundir o discurso com a linguagem ou a fala. O discurso é a estrutura
pré-conceitual do mundo do Dasein. Do mesmo modo como a interpretação torna
explícita as possibilidades que o compreender projeta, a linguagem expressa ou
comunica a articulação de significações que constitui o discurso. [O Dasein habita um
mundo de elementos que compõem uma rede holística de relações estruturadas. Mas
isso se dá em um nível pré-conceitual, que se manifesta pela familiaridade com que o
Dasein circula em seu mundo. O discurso é a estrutura dessa compreensão pré-
conceitual. Mas o discurso não deve ser confundido com a linguagem. Assim como a
compreensão é pré-conceitual e anterior à interpretação, que a torna explícita, o discurso
é pré-conceitual e anterior à linguagem, que o articula em significação. Portanto, a
compreensão está para o discurso assim como a interpretação está para a linguagem].
Lembra-se do termo “abertura”, que significa abrir-se ou revelar-se? Vimos que
Heidegger diz que o Dasein é sua abertura. Assim, recusa a ideia de que o Dasein seja
um sujeito que se relaciona com o seu mundo como um objeto. Mas o Dasein, enquanto
abertura, é um ente, distinto de todos os outros, cujo ser permite que o mundo em que
habita se revele a ele, não como um objeto de conhecimento, mas como um espaço ou
região de familiaridade. Este abrir-se ou revelar-se comporta três componentes: 1) a
disposição afetiva em que o Dasein se encontra lançado em uma situação e na qual
certos entes e suas relações ressaltam como significativos; 2) o compreender, através do
qual o Dasein compreende e interpreta esses entes em termos do uso que podem fazer
em suas atividades e projetos; 3) o discurso, no qual consiste a estrutura inteligível do
seu mundo. Esses três componentes são existenciários, no que correspondem no nível
ontológico ao que para Kant seria a dimensão transcendental ou o a priori. Isto quer
dizer que o compreender ou o discurso não são coisas das quais, de forma contingente, o
Dasein, entendido como sujeito, poderia fazer uso ou não. São aspectos íntegros do ser
do Dasein e constituem a forma essencial em que qualquer Dasein está-em qualquer
mundo. Em outras palavras, a forma em que o mundo do Dasein lhe é revelado. [Bom
resumo dos três existenciais que compõem o estar-aí, o ser-em, do Dasein].
40
Agora, recorde que o Dasein não está sozinho no mundo, mas vive com outros
Dasein na sociedade. Ressaltamos o aspecto social do mundo quando falamos de “a
gente”, das Man. Nas últimas seções do capítulo 5, Heidegger volta ao mundo social
para tratar a abertura do Dasein, mas agora a sua manifestação cotidiana, ou seja, na
vida social do Dasein. Heidegger nos recorda que o Dasein “imediata e regularmente se
absorve no a gente e é dominado por ele”. Se é assim, surge a pergunta: “quais são os
caráteres existenciais da abertura do ser-no-mundo quando este ser-no-mundo se move
na cotidianidade no modo de a gente? Tem a gente uma disposição afetiva particular,
uma forma peculiar de compreender, discutir e interpretar?” A resposta é sim. Nas três
próximas seções, Heidegger analisa como o “a gente anônimo” afeta o modo como o
Dasein interpreta o seu mundo, e isso ao se fixar em três fenômenos: o falar (bla, bla,
bla), a curiosidade e a ambiguidade. Na seção 35, diz: “o discurso que se expressa é
comunicação”. Ou seja, discurso, que é a articulação da inteligibilidade do mundo, pode
se expressar em linguagem e, desse modo, temos a comunicação... Lembra-se do meu
amigo carpinteiro. Pela sua larga experiência, tem uma compreensão profunda e
originária do mundo da carpintaria e às vezes me explicou com paciência os detalhes de
alguma peça que estava fazendo. Dado que compreende a estrutura desse mundo, pode
me comunicar a seu respeito. O ponto de sua fala serve para que eu participe desse
mundo, para que ele se abra a mim. Rafael sabe muito do mundo da carpintaria, mas
não de todos os mundos que compõem o mundo social e sua estrutura. É por isso que a
comunicação é importante. O problema é que o mais comum não é a fala neste sentido,
mas o bla-bla-bla. Em seu texto “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral”,
Nietzsche fala da verdade como uma hospede em movimento de metáforas, metonímias,
etc. que depois de um certo tempo de uso, o povo passa a considerar firmas e
canônicas... Heidegger diz algo semelhante: o bla-bla-bla é uma fala que se desprendeu
de sua compreensão originária, findando como uma inteligibilidade meramente média
ou nivelada. Em certa medida, isto é inevitável, visto que nenhum Dasein pode ter uma
compreensão originaria de todo o aspecto do mundo. A maior parte do que compreende
está em um nível superficial ou médio. E dado que não pode chegar a um nível mais
profundo com tudo, tende a fixar-se não no objeto da linguagem, ou seja, naquilo sobre
o que se fala, mas na linguagem ela mesma, nas palavras. A linguagem é o meio que
une muitos indivíduos; possibilita a vida social. Mas ao mesmo tempo, nos faz perder
de vista seu objeto, a estrutura do mundo de nossa existência. Em vez de tratar de
conseguir um acesso autêntico e próprio ao objeto, o Dasein se perde no que, pelo uso
41
prolongado, se depositou na linguagem como firme e canônico. Ou seja, sua
compreensão se alinha com o que simplesmente “se diz”... Em vez de facilitar a
abertura do mundo, o bla-bla-bla fecha nosso acesso a ele, e a compreensão do Dasein
se perde na compreensão impessoal do das Man, uma compreensão imprópria ou não
autentica. [A compreensão é algo que esá diretamente ligada ao saber prático, ao objeto.
Ela permite a comunicação, de modo a fazer ver o mundo que se experiementa. Porém,
o mais comum é a fala do bla-bla-bla, descolada da compreensão, do mundo. É como se
fosse uma linguagem que repete apenas, de modo vazio, palavra vazia, o bla-bla-bla
impessoal do mundo. Essa fala é inautêntica ou imprópria. Lacan utilizou essa categoria
no início de sua trajetória intelectual].
O fenômeno do bla-bla-bla nos leva na seção seguinte ao fenômeno da
curiosidade. Lembre que o estado de animo do Dasein lhe ajuda a se orientar ou
encontrar em seu mundo, ao colocar em relevo seus aspectos significativos, os aspectos
que, de alguma maneira ou outra importam. Todavia, a forte tendência da linguagem
para desarraigar-se do mundo dos entes de nossa preocupação faz com que os
fenômenos que aparecem no entorno do Dasein não tenham outra forma de se distinguir
por sua qualidade espetacular. Quer dizer, são imagens que chamam a atenção, não por
sua relação com os contornos de meus projetos e preocupações, mas simplesmente por
sua novidade. Neste sentido, uma imagem é tão boa ou chamativa como qualquer outra
sempre que é passada em sequencia, uma atrás da outra. Em vez de comprometer-se
ativamente com um objeto, desenvolvendo sua compreensão do mesmo, o Dasein se
distrai e se torna consumidor passivo do que lhe é apresentado. O estímulo da novidade
e a distração faz com que o Dasein não permaneça muito tempo com nada nem
ninguém. Creio que todos já tivemos essa experiência na internet, navegando durante
horas, de clique em clique, que revelam imagens e palavras, que revelam um mundo,
mas um mundo nivelado da mídia. Esse fenômeno explica por que os filmes
hollywoodianos não sejam muito profundos: para que tenham público amplo, têm que
encenar o comum, a média, o que se diz e se entende em geral. No final do capítulo 5,
na seção 38, Heidegger diz: “Bla-bla-bla, curiosidade e ambiguidade caracterizam a
maneira como o Dasein é cotidianamente o seu aí, ou seja, a abertura do ser-no-mundo
[...] Neles e em sua conexão de ser se revela um modo fundamental de ser da
cotidianidade, que chamamos a queda do Dasein”. [A curiosidade do Dasein faz com
ele se atraia pela novidade. Isso, a despeito da compreensão. Isso pode servir de crítica à

42
indústria cultural da imagem, do videoclipe e do hipertexto, que nos devolvem mundos
superficiais, sem densidade].
Obviamente, o termo “queda” nos faz pensar na queda do homem dos jardins do
Eden, com toda conotação moral. Contudo, Heidegger não pretende fazer qualquer
comentário moralista, como se o estado de queda fosse uma contingência ôntica, que
pudesse ser corrigida. A queda é um existenciario; constitui parte do ser do Dasein. No
contexto do que discutimos até agora, o termo “queda” reflete a ideia de
desprendimento. Dada a sua absorção no anônimo público do das Man, o Dasein cai ou
se desprende de seu mundo próprio ou autêntico. Como diz Heidegger: “é próprio da
facticidade do Dasein que, embora seja o que é, se encontre em estado de animo lançado
que é absorvido no rodamoinho da impropriedade do das Man”. Novamente, há que ter
claro que o Dasein não nasce primitivo e autêntico, e logo cai da graça. A cotidianidade
da sua vida é sua posição padrão, de saída, por assim dizer. Ainda que seja regida pelo
das Man e, portanto, imprópria, sua compreensão não é, por isso, inútil para Heidegger.
Ao contrário, a compreensão e apropriação autentica só é possível ao arrebata-lo desta
condição de fundo em que se encontra lançado. O que provoca o Dasein a fazê-lo, a
enfrentar a verdadeira estrutura de sua existência e, ao mesmo tempo, permite a
Heidegger unificar todos os diversos elementos do ser do Dasein que vimos até agora é
um simples estado de animo: a angústia. [A queda é um existenciário: o Dasein é
estruturalmente caído da sua posição autentica e imerso na cotidianidade do das Man.
Isso é a sua posição par défaut. O que permite ao Dasein enfrentar a estrutura da sua
existência e unificar os elementos diversos do Dasein é um estado de ânimo: a
angústia].
A angústia e o seu existenciário correspondente, o cuidado, serão o tema do
capítulo 6 e do próximo vídeo.

43
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 9/15

Nossa leitura de Ser e Tempo até agora tem sido como um passeio por uma nova
cidade. Nosso guia, Heidegger, assinalou suas principais características: monumentos,
edifícios, ruas, história, etc. e nós fomos tirando fotografias. A cidade é esse
existenciário geral com que começamos a seção 12, o ser-no-mundo. A estrutura do ser
do Dasein, de sua forma de existir, é ser-no-mundo. Vimos muitos elementos, como
turistas que tiram fotografias. Porém, falta algo que unifique todos esses elementos em
uma totalidade simples e clara. Isso é tratado por Heidegger na seção 39: “Será possível
captar em sua totalidade este todo estrutural da cotidianidade do Dasein?” Obviamente,
ele responde que sim. Como em outras ocasiões, recorre a um estado de animo: neste
caso, a angústia. Partindo do contexto da queda, a descrição fenomenológica da angústia
revelará que o ser do Dasein em sua totalidade pode captar-se ou entender-se em termos
de “cuidado”. [O que unifica todos os elementos dispersos que compõem o existenciário
ser-no-mundo é um estado de ânimo, a angústia].
Mas o que é a angústia? Se alguém estivesse angustiado, poderias reconhece-lo
passando a vista? Parece-se com o medo. Na seção 40, Heidegger faz uma distinção.
Aqui vemos um exemplo de medo. O medo tem objeto. Já aquilo diante do qual nos
angustiamos é indeterminado; a angústia não tem objeto, começa com certa sensação de
estranheza... Andas em teu mundo normal, ocupado com coisas familiares; tudo sucede
de acordo com tuas expectativas habituais, como se o mundo fosse um velho par de
sapatos cômodos. Mas de repente tudo muda, como se o fluxo das coisas parasse e o
entorno se tornasse pouco familiar. É como se você se desconectasse desse fluxo e
saísse um pouco do corpo, vendo-se em um mundo estranho que, de repente, carece de
sentido. O quer é perturbador é que não há nada que explique ou seja a causa dessa
sensação. O que te perturba não é o conteúdo da tua experiência, ou seja, as coisas em
sua dimensão ôntica, mas a forma da tua experiência, aquilo dentro do qual tem lugar o
mundo enquanto tal... Se o mundo não é uma coisa, um ente, então não é nada. “Esse
nada não significa ausência de mundo, mas, pelo contrário, quer dizer que o ente
intramundano é em si mesmo inteiramente insignificante; que, em virtude desta falta de
significatividade do intramundano, somente segue impondo-se todavia o mundo em sua
mundaneidade”. Recorda-se do conceito de mundaneidade? Ela é a forma particular de

44
o mundo articular-se. Esta forma, bruta e abstrata, em que a coisa nenhuma se dá, em
que, portanto, o nada se manifesta, é o que a angústia revela ao Dasein... A experiência
de angústia revela ao Dasein o nada que está no miolo de sua existência, essa forma sem
conteúdo que é a mundaneidade do mundo [A angústia é sem objeto. Por isso, ela difere
do medo. Isso se dá porque a angústia não é relativa a um ente específico, mas à
estrutura do ser. É a forma da experiência que angustia. O que angustia é o fato de que
os entes não possuem sentido. Aquilo que organiza a experiência é a mundaneidade.
Mas a mundaneidade, o caráter do ser-no-mundo, não é um ente. É um nada, é coisa
nenhuma. A angústia revela ao Dasein justamente o nada em que as coisas estão
assentadas para fazerem algum sentido; o que é revelado é como o miolo da sua
existência é o nada].
Heidegger utiliza a palavra umheimlich para descrever o estado de inquietante
estranheza que toma o sujeito angustiado, um sentimento de não estar em casa, de
estranhamento. Diante do estranhamento, é comum que se queira sair desse estado. Pois
é precisamente isso que o Dasein faz ao submergir no mundo do das Man, do público
anônimo, onde se encontra em casa, comodamente interpretado e significativo. Se no
centro de nossa existência se encontra o nada, então o mundo do das Man serve como
uma distração, como um véu que oculta. O bla-bla-bla, o hábito da curiosidade, são
como sombras na parede da caverna de Platão. A angústia traz o Dasein de volta. A
familiaridade cotidiana é derrubada. Separado do reconfortante mundo do das Man, a
angústia coloca em evidência para o Dasein a pura contingência da sua existência, a
finitude de um ser que existe como indivíduo... A angústia mostra em relação às
possibilidades de vida, que posso escolher de forma autentica ou própria, ou posso
delegar essa responsabilidade ao das Man e perder-me na distração das sombras. Ainda
que a angústia não tenha um objeto concreto, como o medo, o Dasein foge dela. Foge,
assim, de si mesmo e de sua liberdade, a liberdade de ser autêntico ou não. [Como se
deparar com o nada que se encontra no centro de si, o Dasein foge da verdade, refugia-
se no das Man, no bla-bla-bla, na curiosidade. Delega-se ao das Man a responsabilidade
de escolher; é-se Maria vai com as outras. Foge-se, assim, de si mesmo e da própria
liberdade de ser autêntico].
Ao interromper o fluxo cotidiano da existência do Dasein, a angústia
desempenha um papel muito parecido com o ente-à-mão que se decompõe. Se
tomarmos o exemplo do meu amigo carpinteiro, o que se ilumina não é apenas o mundo
de sua oficina, mas todo o seu mundo, todo o aspecto da sua existência como Dasein. [A
45
angústia é a iluminação da existência como um todo; assim como um objeto à mão
quebrado revela o ser desse ente, a angústia revela o ser do Dasein, ilumina-o, tirando-
nos da cotidianidade de das Man].
Passemos à seção 41. “o fenômeno da angústia tomado em sua totalidade mostra
ao Dasein como um estar-no-mundo faticamente existente. Os caracteres ontológicos
fundamentais deste ente são a existencialidade, a facticidade e o estar-caído.” Vamos
primeiro à existencialidade. Heidegger inicia a análise dizendo que a essência do Dasein
é a existência. Os demais entes simplesmente ocorrem fisicamente; o Dasein existe, ou
seja, é indeterminado, tem que realizar-se. Isso é feito ao projetar as possibilidades,
como vimos na discussão sobre o compreender. Deste modo, o Dasein nunca é algo
simplesmente definido no presente, mas que sempre é o que será. Existe adiantado a si
ou antecipando a si mesmo. Vemos neste aspecto do Dasein um acento no futuro e na
potencialidade. [A angústia revela os caráteres ontológicos fundamentais do Dasein:
existencialidade, facticidade e o estar-caído. Na existencialidade, como vimos, trata-se
do caráter de estar sempre adiantado em reação a si mesmo, antecipado, diante de
possibilidades abertas].
Contudo, seu ser não é pura existencialidade, mas se caracteriza também pela
facticidade, por sua condição de lançado, porque as possibilidades que projeta possuem
limites. Este aspecto do ser do Dasein acentua o presente, o caráter bruto da atualidade,
e como vimos na discussão sobre abertura, a forma em que se encontra nesse mundo,
cujos limites o determinam pela sua disposição afetiva, os estados de ânimo. “o existir é
sempre fático. A existencialidade está determinada pela facticidade” [A facticidade tem
relação com os limites atuais em que o Dasein se vê lançado, o caráter bruto da
atualidade, os limites da sua disposição afetiva].
O último caráter ontológico fundamental do ser do Dasein é o estar-caído. O
Dasein existe no meio de outros Dasein. Em seu cotidiano, que Heidegger analisa, o
Dasein está em meio de outros Dasein de uma forma que não é predominantemente
autêntica, ou seja, cujas possibilidades de vida são determinadas por das Man. Em todo
caso, o estar-caído não é uma casualidade contingente; é parte da estrutura do Dasein.
[O estar-caído remete ao fato de que o Dasein se encontra entre outros Dasein existindo
de modo não autêntico, isto é, com suas escolhas determinadas por das Man].
Conclusão: “A totalidade existencial do todo estrutural ontológico do Dasein
deve ser concebida formalmente na seguinte estrutura: o ser do Dasein é um antecipar-
se a si estando-já (no mundo) em-meio-a (o ente que comparece no mundo)”. Em
46
poucas palavras, é isso em que consiste o ser do Dasein. “Este ser dá conteúdo à
siginificacao do termo cuidado”.
Para quem lê alemão, não é estranho que Heidegger unifique os diversos
elementos do ser do Dasein nesta noção de cuidado (Sorge). Na seção 12, ele fala em
Besrogen (ocupação). O Dasein não se porta de forma desinteressada, como um
cientista, mas de maneira atenta, ocupando-se dos entes. Ao discutir a relação com os
outros, Heidegger fala em Fürsorge, ou solicitude. Trato o outro, não com indiferença,
mas de modo atento. Portanto, o mundo do Dasein não é o da indiferença. Ele está no
mundo de forma cuidadosa ou atenta. Um computador não tem que fazer nada em
relação ao mundo para ser o que é, apenas tem que exibir suas propriedades. O Dasein,
em contrapartida, tem que lidar com o mundo, tornar efetivo o modo de ser que é, a
existência. Donde a importância do existenciário do cuidado. [O Dasein não pode existir
de forma indiferente. Ele está sempre voltado de forma ativa e atenta para o mundo.
Esse é o significado do existenciário do cuidado (Sorge), que unifica o ser do Dasein.].

47
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 10/15

Quase terminamos a primeira divisão de Ser e Tempo. Com a discussão sobre a


angústia, a luta do Dasein para ser autêntico diante da sua constante caída no anonimato
do das Man, e a estrutura do cuidado, Heidegger fecha a analítica do Dasein e prepara a
sua celebre análise da morte e da culpa nas primeiras seções da segunda divisão. Em
meio a esses emocionantes temas existencialistas, Heidegger volta ao tema do mundo e
da realidade do terceiro capítulo. [Volta ao tema do mundo e da realidade].
A ontologia com a qual Heidegger contrasta a sua é a de Descartes. Como
sabemos, Descartes argumenta que há duas substâncias distintas: a extensa (os objetos
espaço-temporais que constituem o mundo) e a pensante (o sujeito imaterial). Seu
famoso dualismo entre sujeito e objeto e como um se relaciona com o outro constitui
um tema básico da filosofia moderna: a epistemologia. A pergunta básica de Descartes
não é ontológica, mas epistemológica: como podemos saber se nossas crenças são
verdadeiras? Mesmo quando não aceitamos o dualismo cartesiano, concebemos a
verdade nesses termos. O que é a verdade? A vemos como um acordo entre uma
proposição emitida por um sujeito e um estado de coisas ou objetos do mundo. É o que
expressa a fórmula escolástica: “Veritas est adaequatio rei et intellectus”. Se digo: “tem
uma árvore no jardim” e você vai até o jardim e vê uma árvore, então é verdade o que
você diz. Para fins práticos, isso nos serve muito bem, mas filosoficamente não está de
todo claro. Em que consiste esse acordo? Exatamente, o que é que corresponde entre um
e outro? Um é uma entidade linguística e o outro material? [Heidegger vai desconstruir
sobretudo a ontologia de Descartes, para quem a verdade é correspondência entre um
pensamento e um estado material de coisas].
Heidegger não diz que a ideia de correspondência seja errônea, e sim
insuficiente. Ele se baseia em uma experiência de verdade mais primordial,
caracterizada pela abertura. O Dasein não se relaciona com os objetos de forma
cognitiva, mas prática. Os objetos não estão simplesmente aí, mas se prestam aos
projetos do Dasein. O Dasein os encontra à mão porque eles se revelam como
significativos ou úteis no entorno das preocupações do Dasein. Este é o sentido de
“abertura” e é como Heidegger caracteriza em geral a nossa relação com a verdade, o
qual ilustra com o seguinte exemplo: “suponhamos que alguém encostado na parede

48
formule o seguinte juízo verdadeiro: o quadro pendurado na parede está torto. Ora, o
que faz dessa proposição algo verdadeiro? O quadro mesmo? A estrutura da
proposição? Em seu Tractatus, Wittgenstein diz que as proposições verdadeiras e os
estados de coisas no mundo compartilham uma forma lógica, e que nisso reside a
concordância ou adequação. Heidegger não pretende descartar a lógica, mas subordiná-
la à evidencia fenomenológica. Nossa forma lógica de entender a verdade depende da
experiência fenomenológica mais primordial de des-cobrir. Assim, segundo Heidegger,
os antigos gregos entendiam a verdade. Aletheia significa des-cobrir, des-ocultar.
Voltando ao exemplo do quadro, Heidegger diz que a afirmação é verdadeira apenas
quando a pessoa se volta e vê a condição do quadro. Nesse momento, o quadro se revela
ao Dasein e se manifesta, e isso se deve ao fato da abertura, o modo de ser no mundo do
Dasein. A abertura é uma região de onde as coisas irradiam sua significatividade para o
Dasein. [Heidegger compreende a verdade em outros termos, não como
correspondência, mas como des-cobrimento, des-ocultamento. Isso se relaciona com a
sua ideia de abertura, em que os entes do mundo se revelam em sua significatividade ao
Dasein. Aletheia].
Por isso, o ceticismo sobre o mundo externo do dualismo cartesiano não faz
sentido. Heidegger não oferece um argumento como prova, mas simplesmente diz que a
metafísica que dá sentido a essa pergunta é equivocada. A pergunta surge se
entendemos a relação entre Dasein e mundo como uma relação cognitiva ou
representativa. Mas para Heidegger, trata-se de uma relação existencial. O mundo é o
modo de ser do Dasein; não é uma coisa ou uma substância com a qual se deve fazer
contato, mas o modo de estar aí do Dasein. Fenomenologicamente, o mundo e o Dasein
caminham juntos, não porque sejam a mesma coisa, mas porque ser-no-mundo é a
estrutura do existir do Dasein. Somente assim poderia algo como um quadro torno
aparecer e se manifestar como tal. [Para Heidegger, a pergunta de Descartes sobre a
realidade do mundo é equivocada, está mal colocada, pois supõe um mundo apartado,
potencialmente isolado da sua aparição. Isso repousa sobre uma metafísica clássica. O
Dasein existe como ser-no-mundo desde sempre. Um quadro torto só pode aparecer e se
manifestar no mundo de um Dasein, que não entra em contato com ele de modo
desinteressado, meramente cognitivo; sua abertura se caracteriza pelo cuidado, é
interessada; o quadro adquire significatividade diante dessa abertura. Somente nesse
contexto, algo pode se revelar como verdadeiro ou falso].

49
Ora, sabemos que a meta global de Heidegger é entender o ser em geral, que
pretende alcançar ao analisar o ser do Dasein. Também sabemos que, pelo menos em
Ser e Tempo, ele não alcança essa meta.
O cuidado é o existenciário-chave que unifica em uma totalidade os diversos
elementos da estrutura do Dasein. Se você se recorda, ele definiu o cuidado como
“antecipar-se-a-si-estando-já-no(mundo)-no-meio-do(ente que comparece dentro do
mundo). Por pior que seja, essa formulação reflete o caráter existencial, fático e caído
do Dasein. O que interessa na primeira parte é isso, o antecipar-se; o Dasein existe
antecipado de si mesmo, em um futuro de possibilidades abertas que nenhum substrato
fático determina. A forma de ser de um cachorro ou de um computador está
determinada, não é livre; podemos analisar o seu ser como uma totalidade. Porém, o
Dasein não. Na seção 46, Heidegger diz: “com efeito, este momento estrutural do
cuidado diz inequivocamente que no Dasein sempre há algo que todavia falta, que,
como poder-ser si mesmo, não se fez ‘real’. Na essência da constituição fundamental do
Dasein se dá, por conseguinte, uma permanente inconclusão. Esse inacabamento
significa um resto pendente de poder-ser. Porém, tão pronto o Dasein ‘exista’ de tal
maneira que não haja nada pendente, ele terá se convertido também em um não-mais-
existir”. [Aqui se revela o tema da falta: o Dasein como poder-ser, como abertura de
possibilidades, revela uma inconclusão no interior do seu ser. A ideia de “realização” é
uma falácia... O que há é projeto inconcluso, pendência; zerar as pendências é ilusão. O
contrário é a morte].
Aqui, topamos com o fenômeno na morte. O Dasein não pode ser uma totalidade
porque morre. Ou bem está vivo e incompleto por definição e, como um ser cuja
essência reside na existência, lhe colocam possibilidades adiante que não realizou, ou
bem está morto. Neste caso, de algum modo completo, no sentido de que não há mais
possibilidades a realizar, mas também não há nenhum Dasein para captar ou articular o
seu ser. Assim, o Dasein não pode experimentar sua vida como totalidade e, ao mesmo
tempo estar vivo. Se a morte leva a uma totalidade, o Dasein tampouco pode
experimentá-la. [Tema da morte: totalidade sem um Dasein para experimentar. Em
contrapartida, a vida é incompletude com experiência].
Heidegger falará mais à frente o quanto o Dasein se esconde no anonimato do
das Man para evitar o seu medo da morte. Mas por hora, sua preocupação não é
psicológica, mas ontológica: como o Dasein pode compreender o seu ser, sua existência,
sendo ela a todo instante incompleta? Heidegger nesse primeiro capítulo se coloca como
50
tarefa dissipar esse paradoxo. Se o Dasein não está aí para experimentar a sua morte, ele
pode experimentar a de um outro? Não. Ele pode atestar uma morte, estar ao lado, mas
não experimentar... Diz Heidegger: “o morrer deve ser assumido por cada Dasein. A
morte, não medida em que ela ‘é’, é por essência a cada vez a minha. Ou seja, ela
significa uma possibilidade peculiar de ser, na qual está em jogo simplesmente o ser que
é, em cada caso, próprio do Dasein. [...] O morrer não é um incidente, mas um
fenômeno apenas compreensivo existencialmente”. [A morte como algo que se deve ser
compreendido existencialmente]
Cada um tem que morrer sua própria morte: quando Heidegger fala da morte,
não fala do término da vida humana, que sucede em tal ou qual data e lugar. A morte
não é um incidente ou acontecimento que sucede de forma fática, mas um fenômeno
que só pode ser compreendido de forma existencial. O paradoxo surge quando tratamos
a morte como algo fático e quando tratamos o Dasein como um ente qualquer que
ocorre fisicamente no mundo. O Dasein não ocorre, mas existe; e sua forma de existir,
em parte, se dá em termos de possibilidades. Assim, o paradoxo se dissipa e passamos a
entender a morte como uma atualidade e a vemos como possibilidade, como forma de
existir: “A morte é uma maneira de ser da qual o Dasein se encarrega tão logo como ele
é. Apenas um homem vem à vida e já é bastante velho para morrer”. [A morte é um
modo de ser do Dasein, posto que é um de suas possibilidades. Cada um precisa se
encarregar da sua própria morte, desse possibilidade que é colocada para cada Dasein.
Não há um outro que possa encaminhar essa questão em nosso lugar. É essa morte,
existencial, ontológica, que interessa a Heidegger.].
Interessa a Heidegger, não o momento da morte, mas nossa relação na vida com
esse momento que virá no futuro. Se entendemos a morte faticamente, então nossa
relação com ela se realiza no mento em que morremos, e aí surge o dilema de o Dasein
não poder ser totalidade. Mas se nossa relação com a morte é algo que realizamos (ou
não) no transcurso da vida, a vemos existencialmente, e na análise fenomenológica
dessa relação Heidegger encontra a forma de captar a existência do Dasein em sua
totalidade. [A relação com a morte é algo que o Dasein realiza no transcurso da vida. É
essa experiência que o permite captar a totalidade da sua existência].
Tendemos a ver a nossa vida como uma linha, do nascimento à morte. Mas ao
vê-la assim, a vemos como qualquer outro objeto físico. A existência do Dasein não se
define desse modo. A morte aniquila o Dasein, o limite final de uma forma geométrica
não.
51
Sem dúvida, o organismo fisiológico não é eterno, morre, Esse acontecimento
ôntico, Heidegger chama de “deixar de viver”. A palavra “morte” é reservada para o
fenômeno ontológico de relacionar-se com a morte futura enquanto vive: “a morte é
uma maneira de ser da qual o Dasein se encarrega assim que é”. Visto assim, a morte
não é uma atualidade, com data e local, mas uma possibilidade. [A morte não é uma
atualidade com data e local, mas uma possibilidade. Para o resto, Heidegger prefere a
expressão “deixar de viver”]

52
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 11/15

Um homem de 90 anos está mais próximo da morte, no sentido do deixar de


viver, do que um jovem de 19 anos. Mas, para Heidegger, não é isso que importa, não é
a morte como atualidade. Tanto alguém de 90 como de 19 experimentam a vida como
possibilidade. Ambos estão “voltados para o fim”. A morte, no sentido fenomenológico,
não é o me acontece ao fim da vida, mas aquilo para o qual estou me dirigindo em todo
o momento da vida [O ser-para-a-morte: a morte como aquilo para o qual todos estamos
nos dirigindo].
Sabemos que a fenomenologia descreve as coisas. Aqui, o que se descreve não é
o estar morto ou o processo de morrer, mas a possibilidade sua de já não ser. Heidegger
não fala da morte como biólogo ou antropólogo, pois esse tipo de estudo é ôntico. Um
botânico pode te dizer como uma planta fenece e um médico como um ser humano
deseja viver, mas a morte do Dasein é um outro assunto. Essa questão ontológica da
“maneira de ser na qual o Dasein está vontado para a sua morte”. Quer dizer, não é um
questão empírica, mas existencial [Morte como questão ôntica, empírica Vs Morte
como questão ontológica, existencial].
Na seção 50, Heidegger começa a analisar a estrutura existencial da morte.
Seguindo a interpretação da morte como uma possibilidade e não como uma atualidade,
Heidegger agrega que a morte é algo iminente, ou seja, algo que está diante do Dasein.
Neste sentido, pareceria ser como outras possibilidades que estão diante: uma
tempestade, a reforma de uma casa, a chegada de um amigo. Contudo, não se trata da
mesma coisa. A tempestade ou o amigo podem chegar, atualizar-se e, desta forma, o
Dasein pode se relacionar-se com eles. Mas a única forma em que se pode relacionar
com sua morte é como uma possibilidade; sua atualização é impossível. Como diz
Heidegger: “a morte é a possibilidade da radical impossibilidade de existir.”. Ademais,
uma tempestade ou a chegada de um amigo não são uma possibilidade iminente em todo
instante da vida; a morte sim. Não há momento em que a morte não seja possível,
nenhum momento da existência que não pode ser o último. Então, a possibilidade da
morte se distingue de todas as demais possibilidades, por ser aquela que condiciona
outra possibilidade; é a possibilidade de toda possibilidade, por assim dizer. [Análise da
estrutura existencial da morte: diferente de outras possibilidades, quando a possibilidade

53
da morte se atualiza o Dasein não está lá para experiementá-la. Outra diferença é que a
morte é uma possibilidade iminente constante, diferente de outras possibilidades, cuja
iminência é contingente. A morte é a possibilidade de todas as outras possibilidades].
A morte se revela como a possibilidade mais própria, insuperável. Mais própria
porque ninguém pode enfrenta-la em nosso lugar; temos que fazê-lo nós. Não é um
fenômeno relacional, não é um trabalho de equipe, mas cai nos ombros de um só
indivíduo. É insuperável: o Dasein pode superar a não chegada de um amigo, mas não
pode superar a própria morte. [Morte como a possibilidade mais própria e insuperável].
Recordemos que a maior parte da primeira divisão tinha que ver com como o
Dasein está-no-mundo. Vimos que ele está no mundo como abertura, o qual consta três
elementos: (1) a projeção de possibilidades, que corresponde ao existenciario da
Compreensão e que constitui o aspecto existencial do ser do Dasein; (2) sua condição de
lançado, que corresponde ao existenciário da Disposição afetiva e que constitui o
aspecto fático do ser do Dasein; (3) o viver de forma imprópria no anonimato público,
que corresponde ao existenciário do das Man e que constitui o aspecto caído do ser do
Dasein. Esses três elementos constituem a estrutura geral do cuidado, que Heidegger
define como antecipar-se (ou projetar possibilidades) estando-já-no-mundo (ou lançado
faticamente) em meio aos entes que comparecem dentro do mundo (ou caído no das
Man). No começo da seção 50, Heidegger diz que temos que compreender a morte nos
termos desses três elementos, e já o fizemos em relação ao primeiro, o projetar
possibilidades. A possibilidade da morte é uma das possibilidades pelas quais o Dasein
existe, antecipado a si. Porém, a morte é a única possibilidade que o Dasein não elege.
[Há que se interpretar morte em relação aos três existenciários da abertura: 1)
compreender; 2) disposição afetiva; 3) das Man. Já fizemos isso em relação ao primeiro,
já que a morte é um tipo de possibilidade].
Isto nos leva ao segundo elemento: a condição de lançado e a disposição afetiva.
Diz Heidegger: “a condição de lançado na morte se torna patente na forma mais
originária e penetrante na disposição afetiva da angústia”. Recorda que o Dasein não se
relaciona com o mundo de forma primordialmente cognitiva, mas afetiva, através de
estados de ânimo. Esses estados, como o medo, por exemplo, sempre são relacionados
com um objeto, mas a angústia não. Seu objeto não é nenhum dentro do mundo, mas o
ser-no-mundo como tal, um mundo cujas possibilidades de existência são condicionadas
pela possibilidade indefinida e onipresente da morte. Diferente das demais
possibilidades que o Dasein pode projetar, como cursar uma pós, fazer um amigo, a
54
morte nunca se realiza ou atualiza na vida, mas emana como uma sombra de fundo
diante da qual outras possibilidades ressaltam e se configuram [Dentro da Disposição
afetiva do Dasein, o estado de animo que melhor corresponde a morte é a angústia: a
angústia não tem objeto definido. Seu alvo é o ser-no-mundo, que não é um objeto, mas
um mundo cujas possibilidades são condicionadas pela presença indefinida e
onipresente da morte. A morte nunca se realiza, mas permanece onipresente como
possibilidade iminente].
Os diversos estados de animo são como um leme com o qual nos guiamos entre
as possibilidades da vida, mas a angústia é aquele que revela a possibilidade da morte e,
portanto, da minha vida em sua totalidade. Ao se enfrentar a possibilidade da morte, ao
se voltar para o fim, se está voltado ao mesmo tempo para a vida: a esse respeito, na
seção 48, é dito que “a morte é uma maneira de ser”. A experiência da angústia ressalta
o caráter próprio e insuperável, não apenas da morte, mas da vida também; ressalta que
o único responsável pela própria vida é o Dasein e não um outro anônimo. A
mortalidade do Dasein coloca em evidência a contingência e a finitude do ser, o fato de
que tudo poderia ter sido de outra forma e que, portanto, os contornos da vida de alguém
não vem feitos, mas tem que ser escolhidos de modo próprio [A angústia revela a
possibilidade da morte, mas faz com que nos voltemos para a vida também. Ela revela a
possibilidade da totalidade da vida, em que a vida finita findou, a finitude do ser. Nesse
momento, o Dasein pode se dar conta de que tudo poderia ter sido de outro modo,
porque a existência foi escolhida; nenhum outro pode escolher por nós, tomar as
decisões por nós. As decisões são absolutamente pessoais; cada um leva a sua
existência. A angústia revela essa dimensão de finitude, que é inseparável do nosso ser
para a morte].
Temos aqui descrita uma maneira autentica de ser para a morte. Contudo, a
existência cotidiana do Dasein não é assim devido ao último elemento constitutivo do
ser, a queda. Em sua vida cotidiana, o Dasein interpreta o mundo, inclusive a morte, em
termos de falatório do das Man. Na seção 51, Heidegger analisa como a morte é
interpretada nesse contexto e o afeto que a acompanha. [Mas o Dasein no mais das
vezes não vive para a morte de modo autêntico, mas no falatório do das Man].
Todos os dias vemos pessoas que morrem nos noticiários. Desconhecidos
morrem diariamente, diz Heidegger, fazendo da morte um evento habitual do mundo.
Dada a sua onipresença e ubiquidade, o das Man a interpreta do seguinte modo:
“também se morre em algum momento, mas por enquanto está-se a salvo”. Você não
55
morre, mas morre-se. Esse “se” anônimo permite que todos se refugiem na ilusão de que
a morte chega a uns, mas não a mim e a ti [A morte é sempre de um outro, nunca a
minha ou a tua].
A angústia revela a existência como frágil e efêmera devido a constante
possibilidade de que o Dasein morra a qualquer momento. O das Man oculta isso ao
converter a possibilidade em uma atualidade deslocada no futuro, e assim o Dasein vê a
morte como um acontecimento que ocorre ao final da vida, em vez de algo iminente.
Essa evitação é patente no caso do que dizemos a pacientes terminais. Os
tranquilizamos, dizendo que logo voltarão à vida normal. Assim pretendemos consolá-
los, mas na verdade estamos consolando a nós mesmos. Se a morte deixa de ser uma
possibilidade e se torna um acontecimento do futuro, a inquietante sensação de angústia
se transforma em um afeto mais manejável, o do medo. Esse medo da morte leva a fazer
dietas, exercícios, tomar vitaminas, etc... [A todo momento nos tranquilizamos, com a
imagem de que a morte é algo no futuro, e não uma possibilidade iminente].
Rejeitar o das Man não significa viver de forma mórbida. Mas, ao manter a
morte como iminente possibilidade, os contornos da vida se iluminam como
possibilidades a escolher. O das Man dos afasta da carga, da responsabilidade de tomar
essas decisões. A angustia diante da morte nos restaura a responsabilidade. Ela
possibilita a liberdade. [Assumir a morte como possibilidade, não se trata de uma
atitude mórbida. Trata-se, ao contrário, de um chamado à responsabilidade frente às
próprias escolhas e possibilidades da própria vida. A angústia, portanto, é uma
experiência positiva].

56
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 12/15

Já estamos na segunda divisão de Ser e Tempo. O primeiro capítulo, que vimos


no último vídeo, trata da angústia ante a possibilidade da morte. É importante essa
experiência da angústia, pois ajuda o Dasein a encontrar-se, porque, de algum modo, ele
está perdido. As possibilidade que projeta, ou seja, a forma de existir que elege, ele não
faz de forma própria, mas deixando-se cair nas atividades e interpretações do das Man,
ou seja, de acordo com as preferências e gostos que o mundo público e compartilhado
em que vive determina como válidos e normais. Suas possibilidades de existência foram
escolhidas pelo das Man, que livra o Dasein da carga de escolhê-las. A experiência da
angústia é precisamente o que nos restaura essa responsabilidade, ou ao menos nos
mostra que a liberdade de não escolher é ilusória. O que a angústia diante da morte
revela é a possibilidade de viver de forma própria [Bom resumo sobre angústia, escolha,
autenticidade, possibilidade e das Man. A experiência da angústia restaura a
responsabilidade e mostra que a liberdade de não escolher é ilusória].
Uma coisa é a possibilidade de viver de forma própria; outra é realizar
concretamente essa possibilidade. Se o Dasein está perdido no das Man, como poderia
sair dessa condição e eleger a sua vida de forma autentica? No segunda capítulo,
Haidegger nos dá a resposta. [Mas como sair do das Man?].
Na seção 54, Heidegger diz: “como está perdido em a gente, primeiro deve se
encontrar. E para poder de algum modo se encontrar, deve ser ‘mostrado’ a si mesmo
em sua possível propriedade”. O que mostra esta propriedade ao Dasein é o que
Heidegger chama de voz (ou chamado) da consciência. Como o Dasein ouve esse
chamado? Ele está imerso no das Man. O que ele ouve não é o chamado da consciência,
mas de telefones, notificações de WhatsApp e Facebook, e todo falatório que isso
implica. Na seção 55, Heidegger diz que o chamado da consciência se diferencia do
zumbido do falatório cotidiano, é uma “chamada silenciosa e inequívoca, sem dar lugar
à curiosidade”. O modo de discurso dessa chamada não é vocal ou empírico, ou seja,
não se diz nada, mas revela algo. O que se revela é a possibilidade de que o Dasein seja
si mesmo. No entorno do das Man, o discurso é em sua maior parte transmissão de
informação. Outros dizem ao Dasein suas opiniões, seus quereres, etc. Esta chamada,
em contrapartida, não diz nada, não informa, mas é uma espécie de convocatória; coloca

57
às claras todo o aspecto da existência do Dasein, as possibilidades que conformam a sua
vida e que foram articuladas pelo das Man, e o convoca a escutar a possibilidade de ser
si mesmo, de ser um agente próprio. Trata-se de despertar o Dasein do transe que o
mundo exerce sobre ele para que experimente a inquietude da existência, seu
Umheimlichkeit. O Dasein é Umheimlich porque seja como se encontre em sua
existência em um dado momento, esse estado não é tudo o que o Dasein poderia ser.
Não pode identificar-se ou reduzir-se à forma de vida que leva ou ao mundo que habita.
Por conseguinte, nunca se sente totalmente em casa – isso é o que significa umheilich.
Em sua cotidianidade, o Dasein foge desse umheimlichkeit em direção aos braços do
das Man. Porém, a chamada à consciência põe em relevo seu umheimlichkeit, sua
responsabilidade existencial, provocando assim um confronto com sua própria
potencialidade para a individualidade genuína. [O chamado da consciência não é algo
barulhento, mas um chamado silencioso, uma convocatória. É um despertar para o
mundo, para que se experimente o mundo em sua inquietante estranheza, em seu
Umheimlichkeit, descolando-se do das Man. Essa convocatória leva à assumir
responsabilidade pela existência, pela sua individualidade genuína].
Essa chamada da consciência sonha até agora um pouco misteriosa, como se
alguns poucos filósofos experimentassem. Mas não é tão complicado. Todos
experimentamos algum chamado da consciência. Quando se diz uma mentira, roubas
algo de uma loja, não ajuda alguém que necessita de apoio, chega em casa com uma
sensação incômoda, sente-se mal. O nome que damos a isso é “culpa”. Esse chamado é
incômodo, pois vai contra nossa vontade... Na seção 58, Heidegger diz que “a chamada
acusa o Dasein de ser culpado”. Contudo, o que se entende por culpa é diferente do seu
entendimento ontológico. Na vida ôntica ou cotidiana, é possível imaginar cumprir
todas as regras morais e nunca sentir culpa. Todavia, visto ontologicamente, Heidegger
diz que no miolo do nosso ser somos todos culpados. Ser culpado significa: “ser-o-
fundamento de um ser que está determinado por um não, ou seja, ser fundamento de
uma nulidade”. O que quer dizer isso? [A culpa é uma expressão do chamado da
consciência; mas não uma culpa ôntica, de algo específico, mas uma culpa ontológica.
No cerne do ser somos todos culpados].
Ora, ao dizer que o Dasein é o fundamento de uma nulidade, está dizendo que
ele é a razão pela qual algo não é. Repare na palavra traduzida por culpa, Schuld, que
também significa dívida. Nietzsche tira bastante proveito desse dado linguístico no
segundo ensaio da Genealogia da Moral. Quando tens uma dívida, isto quer dizer que
58
algo que você fez gerou uma falta ou um buraco. Por exemplo, pediste dinheiro
emprestado: ao amigo que emprestou falta essa quantidade de dinheiro, ou seja, você
criou uma nulidade em sua vida, e você tem uma dívida com essa pessoa, que precisa
ser reparada. [Culpa, falta e nulidade].
Esses exemplos da relação entre culta, dívida e nulidade se tomam no nível
ôntico da vida cotidiana, mas nos ajudam a entender o sentido da culpa no nível
ontológico que interessa ao Dasein. Nesse texto, relaciona a culpa com dois aspectos da
existência do Dasein: seu caráter de lançado, e o fato de que projeta possibilidades. Por
um lado, quem sou é uma função de aspectos da existência que não escolhi. Estou
lançado em meu ser e me falta um solo a partir do qual poderia justificar as razões de
porque sou como sou. Essa é outra forma de dizer que há uma nulidade na base do meu
ser. Por outro lado, em relação à projeção de possibilidades, ao projetar uma
possibilidade em particular, o Dasein nega outras possibilidades. Ao optar por uma
possibilidade, o Dasein necessariamente nulifica todas as demais. Então, a culpa, no
sentido heideggeriano, penetra a existência do Dasein de forma medular. [No cerne da
nossa existência está uma nulidade, pois sou lançado; me falta razões para justificar o
que sou. O outro ponto é que tenho que optar por possibilidades. A única coisa certa
quando escolho algo é que deixei de escolher uma infinidade de outras possibilidades.
Todas as outras escolhas foram nulificadas. É aí que a culpa e a dívida, no sentido
Heideggeriano, penetra a existência de modo central. Está-se sempre em dívida, na
medida em que há uma nulidade no cerne do ser].1
A culpa ôntica pode ser reparada. Porém, a culpa ontológica não pode ser
eliminada. Esta culpa, caracterizada pela nulidade na base do nosso ser, é o que
possibilita que sejamos seres responsáveis. É o que faz com que eu seja o fundamento
de tudo o que faço. Pois, de outra forma, alguma condição externa determinaria o que

1
Em termos lacanianos, poderíamos falar em uma falta-a-ser, ou seja, a radical constatação de que falta
um significante que complete a cadeia e faça com que minha existência, minhas ações, quem eu sou,
sejam justificados. Há uma falta fundamental: essa falta é de significado. Por outro lado, assumir isso de
frente é algo difícil. Preferimos nos abrigar os significantes fornecidos pelo Outro, que passa a definir o
que eu sou. Quando criança, é comum que nos digam o que somos: quietinho, inteligente, educadinho...
Ou então, que nos digam a que estamos destinados: ser médico, piloto... Geralmente, isso é produto da
fantasia dos pais. Utilizamos essa dimensão em larga medida para nos livrarmos da falta de sentido, da
falta-a-ser, da castração. Apegamo-nos ao sentido fornecido pelo Outro. Ao mesmo tempo em que há
uma dimensão simbólica evidente, já que esse Outro é inconsistente, barrado ele mesmo, há uma
dimensão imaginária, como se esse outro pudesse ter consistência e nos salvar da falta-a-ser.
Preferimos, portanto, a escravidão do assujeitamento a uma ordem que nos garanta um lugar (mesmo
que esse lugar seja desfavorável) do que a ausência total de fundamentos, cujo vazio só nos deixa
aberta a via da invenção. A angústia dessa falta-a-ser nos leva a refugiarmo-nos no falatório do Outro,
das Man.

59
faço (como o instinto, no caso do animal) e me eximiria de toda responsabilidade. [A
culpa e a nulidade na base do ser é o que possibilita a responsabilidade. É o que me
torna o fundamento de tudo o que faço].
A chamada da consciência é o que põe em relevo a culpa do Dasein; a nulidade
no miolo do ser. Ao fazê-lo, chama o Dasein, perdido entre das Man, convoca-o para “o
mais próprio-poder-ser-si-mesmo, chama o Dasein para adiante, para as suas
possibilidades mais próprias.” [A consciência põe em relevo a culpa e chama o Dasein
para a responsabilidade].
Digamos que o Dasein em questão seja o sujeito típico da sociedade de
consumo, atarefado para ganhar dinheiro, consumir, ganhar likes nas redes sociais. O
que significa o chamado? Que deixe de ser consumista e seja um filósofo ou um asceta?
Não. O eu mais próprio de cada Dasein não possui qualquer característica substantiva,
fixa ou necessária. O que o chamado mostra é que nenhuma possibilidade de vida, nem
a do santo nem a do consumista, é definitiva de quem és. O fato de que o Dasein tenha
sido lançado de modo aleatório em um mundo que molda suas possibilidades – o que
Heidegger chama de sua facticidade – não é algo negativo; não é um erro. O erro
consiste em confundir a contingência de sua situação por algo essencial. É isto que faz o
das Man do qual o chamado pretende despertar. Se o Dasein escuta o chamado, o que
percebe é precisamente o seu unheimlichkeit, essa estranheza que consiste em ser
determinado por nossa facticidade, mas ao mesmo tempo, em ser irredutível a ela. É o
Dasein como unheimlich que chama o Dasein enquanto caído. [O chamado não é para
uma espécie de ascetismo. É para o unheimlichkeit no cerne do Dasein, para essa
estranheza, para essa indeterminação].
Se o Dasein compreende o chamado e a ele responde, significa que “quer-ter-
consciência”, ou seja, quer ser responsável por si mesmo frente à nulidade que informa
o seu ser e que torna impossível qualquer justificação de quem és. Esse desejo por uma
consciência e responsabilidade que implica é outra forma de dizer que o Dasein aceita
sua capacidade de ser um indivíduo, de eleger um caminho de sua vida, de decidir quem
será, de assumir seu papel como agente dos seus atos. Atuar como uma consciência
nesse sentido significa atuar de forma autentica, sem recorrer a regras ou normas
extrínsecas para justificar-se... O modo de ser dos animais é natural; a natureza os
determina como são. O modo de ser do Dasein não é natural, mas umheimlich. [Aceitar
o chamado é aceitar ser um indivíduo, responsável por eleger um caminho próprio,
assumir o papel de agente dos próprios atos, sem recorrer a normas externas: à opinião
60
do senso comum, ao que o pastor diz, ao que o professor diz, etc. É assumir a
indeterminação fundamental que reside no centro do nosso ser. É assumir a
responsabilidade frente a nulidade do seu ser e a impossibilidade de fornecer uma
justificativa acerca do que se é].
Ora, nos primeiros capítulos da segunda divisão vimos a angústia do Dasein
diante da possibilidade da morte e sua determinação resoluta para atuar de forma
consciente e própria diante da nulidade da sua existência. Para Heidegger, isto oferece
uma base fenomenológica suficiente para tratar da questão do sentido do ser do Dasein.
Nas próximas páginas, veremos que precisamente a temporalidade é o que constitui esse
sentido.

61
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 13/15

Antes de passarmos ao tema do tempo, uma rápida recapitulação. A pergunta


desse livro é a pergunta pelo ser. Heidegger distingue-se da tradição ao não reduzir o ser
a uma mera soma de entes. Isso é o que expressa a sua celebre diferença ontológica.
Contudo, o ser tampouco é uma coisa mística, flutuando por aí. O ser sempre é o ser de
um ente. Para aproximar-se de uma compreensão do ser, decide-se interrogar um desses
entes em particular: o Dasein. O estado básico do ser do Dasein, ou a forma mais geral
de lhe caracterizar, é o ser-no-mundo (§12-13). Como sabemos, Dasein significa
literalmente ser-aí. O aí onde está é o mundo. Heidegger passa toda a primeira divisão
analisando os três aspectos deste existenciário básico. Primeiro, analisa o mundo em que
o Dasein habita (§§14-24). Aí vimos que o mundo não é simplesmente o mundo físico,
mas o entorno dos entes que o rodeia; entes que se distinguem entre os que estão à mão
(ou seja, úteis para os projetos do Dasein) e os que simplesmente estão aí (ou
fisicamente presentes). Mas o ente que é o Dasein não é um que (como esses entes), mas
um quem. Então, em segundo lugar, passar a analisar o eu desse quem (§§25-27). Aqui
é introduzida a distinção entre ser próprio ou autêntico e ser improprio ou inautêntico.
No contexto deste último, fala do mundo anônimo do das Man. Tendo visto o quem do
Dasein e o tipo de mundo que habita, passa a analisar, em terceiro lugar, o “ser-no”
(§§28-38), ou seja, a forma que o Dasein habita o mundo. Ele o habita de três formas:
de maneira fática, existencial e como caído. Fática em sua condição de lançado no
mundo; existencial enquanto forja sua existência ao projetar possibilidades; e caído, na
medida em que está absorto em um mundo público, cujas convenções ditam os termos
em que interpreta sua condição e projeta as possibilidades de sua existência. Heidegger
chama o conjunto dessas formas do ser-no de a estrutura do cuidado. Este termo,
cuidado, significa que o ser do Dasein, sua existência, é uma questão aberta em relação
à qual ele não é indiferente; cuida do seu ser no sentido de estar atento às decisões que
deve tomar continuamente. [Revisão].
A decisão mais importante é aquela que o Dasein tem que tomar ante a
experiência da angústia que revela a constante possibilidade da morte. O Dasein aceita a
sua finitude, ou deixa se tranquilizar pelas racionalizações do das Man? E ao ouvir o
chamado da consciência e da nulidade revelada no cerne do seu ser, ele se
responsabiliza pelas decisões que toma, decisões que nenhum feito do mundo pode

62
justificar, ou deixa que se guie por cômodas opções que lhe oferece o das Man?
[Revisão].
Ora, ainda que muitos tenham tirado proveito de tudo isto para seus projetos
existencialistas, como Sartre, por exemplo, Heidegger insiste que a importância de atuar
de forma autentica não tem a ver com questões morais, mas com questões teóricas.
Heidegger quer compreender a natureza do ser, mas isso é somente possível se o ente
cujo ser é interrogado, o Dasein, compreende ser próprio ser, e isso só é possível se ele
toma decisões próprias. Nessa altura do livro, Heidegger crê ter demonstrado a
possibilidade desta compreensão no fenômeno da estrutura do cuidado. Resumidamente,
podemos dizer que Heidegger resolveu a primeira parte do título da sua obra. O ser,
pelo menos o do Dasein, é o cuidado. [Resumão: o ser, pelo menos o do Dasein, é
cuidado]
Contudo, Heidegger pergunta não apenas pelo ser, mas pelo sentido do ser. Ele
afirma que o tempo constitui esse sentido. O tempo é o sentido do ser ou, o que é
equivalente, é o sentido do cuidado. No segundo vídeo desta série, vimos o que
Heidegger entende por “sentido”. Basicamente, é aquilo pelo qual algo é inteligível
como a coisa que é. Para qualquer ente que não seja o Dasein, o sentido do seu ser é o
mundo em que se encontra. O sentido de um filtro de óleo se dá em função do mundo
dos carros e dos mecânicos. O sentido do ser do Dasein, em contrapartida, é função, não
de algum mundo, mas do próprio tempo. [Falta a pergunta sobre o tempo: o tempo é o
sentido do ser do Dasein, ou o sentido do cuidado].
Sua análise fenomenológica do tempo se dá pela recapitulação da sua análise
existencial do Dasein da primeira divisão, mas desta vez a partir do ponto de vista do
tempo. Francamente, não tenho vontade de voltar a ver todos esses detalhes novamente,
e o que é mais importante é a distinção autêntico/inautêntico. Heidegger começa com a
temporalidade autêntica, ou seja, o tempo visto existencialmente, e logo passa para a
temporalidade inautêntica, ou seja, nossa forma cotidiana e científica de ver o tempo.
Vou inverter essa ordem para que a temporalidade própria do Dasein ressalte mais
claramente. [Heidegger trata o tema da temporalidade, ressaltando o par temporalidade
autentica, que é o tempo visto existencialmente, versus a temporalidade inautêntica,
tempo da nossa vida cotidiana e da ciência].
Se pensa no espaço, talvez pense em um imenso continente que se estende
infinitamente. Se pensa o tempo, a metáfora mais comum é a de um rio. O espaço é
estático, o tempo flui, corre, como a água. Os cientistas convertem o rio em uma linha.
63
Se alguém se encontra nessa linha, o ponto onde está é o presente; sempre se existe no
presente. Porém, como a água do rio, este presente, este agora, flui desde o passado e já
não é um futuro que, em si mesmo, ainda não existe. Assim, ponto por ponto, banhamo-
nos no presente. [Tempo: metáfora do rio que corre].
Contudo, essa compreensão intuitiva do tempo possui problemas. Se apenas
existimos no presente, que duração ele tem? Ele é instantâneo, desaparecendo assim que
passa a existir? Se fosse assim, pareceria que o tempo não é nada. Contudo,
experimentamos a passagem do tempo. Então, há algo de errado com essa formulação.
Heidegger afirma que o ser do Dasein é temporal, mas não em termos de momentos que
passam como o fluxo de água de um rio. Não diz que essa concepção de tempo seja
falsa ou inútil, já que os relógios que medem os passos dos momentos possibilitaram
boa parte dos avanços científicos e relações sociais. Porém, o que fazemos com os
relógios e metáforas descansam em uma temporalidade mais básica, que não é
categórica, mas existencial. Vimos isto ao longo de Ser e Tempo. O mundo que a
ciência mede ou que se experimenta onticamente no mundo cotidiano não é falso, mas
deriva e é possibilitado por algo mais básico: a estrutura ontológica do ser do Dasein.
Mas antes de passar a ver a temporalidade neste sentido, vejamos o que diz Aristóteles.
[há contradições importantes na forma cotidiana de se enxergar o tempo. Esse mundo da
ciência é possibilitado por uma estrutura ontológica do Dasein mais fundamental].
Em seu livro sobre os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, Heidegger
analisa Aristóteles e o tempo. Ele concebe o tempo em termos de movimento e
mudança. Imagine estar em um mundo em que nada jamais se moveu nem mudou, nem
sequer seus estados mentais. Nesse mundo, o tempo não teria sentido. Só tem sentido
quando percebemos que algo mudou seu estado. A mudança de uma condição à outra é
o que mede o tempo. Aristóteles diz que o tempo não é a mudança; contudo, sem
mudança não pode haver tempo. De modo que o tempo vem sendo aquilo com que
contamos a mudança: primeiro isso, logo aquilo, agora 1, agora, 2, agora 3... A
experiência de contar, de contar as fases da mudança, é nossa experiência do tempo.
[Aristóteles: concebe o tempo a partir do movimento e da mudança].
Aristóteles diz algo que chama a atenção de Heidegger: o contar tem lugar
dentro de um horizonte de antes e depois. Ou seja, se visualizamos a mudança que algo
sofre como pontos em uma linha, então cada ponto ocorre antes que outros pontos e
também depois de outros. O interessante é que estas dimensões de antes e depois são
claramente termos temporais, mas não provém do contar, mas possibilitam o mesmo. A
64
concepção científica do tempo, essa de linhas e pontos, é boa para medir, mas não para
dar conta da passagem do tempo, que depende dessa condição de antes e depois. Um
robô é bom para registrar essa sucessão de pontos, mas o que o Dasein experimenta são
mais do que pontos ou números; ele experimenta a transição e movimento, ou seja, não
pontos estáticos, mas um processo. Esta experiência requer recordar ou reter um
momento prévio do processo de mudança e de esperar o que vem. Contar um ponto e
dizer “agora” tem sentido apenas se retemos o agora prévio e esperamos o que segue.
Esta retenção e expectativa é algo que Husserl analisou com muito cuidado. Em todo
caso, o presente do tempo, tal como experimenta o Dasein, não é um ponto nítido e
estático, mas um lapso mais borrado que implica um “já não” e um “ainda não”.
[Aristóteles concebe o tempo em termos espaciais, como uma linha com pontos, com
antes e depois. Essa concepção foi adotada pela ciência moderna, marcada pelas noções
de mudança e movimento. Porém, o Dasein não experimenta o tempo presente como um
ponto claro, estático. Há algo que é retido, do mesmo modo como uma expectativa do
que vem: a experiência é de um “já não” e de um “ainda não”, junto com o presente.
Husserl analisou isso muito bem].
Einstein certa vez disse: “Coloque a tua mão em uma placa quente por um
minuto e te parecerá uma hora. Sente-se com uma bela moça por uma hora e te parecerá
um minuto. Isso é a relatividade”. No contexto de Heidegger, isto quer dizer que no
cosmos não existem pontos temporais fixos, como no relógio. A abstração do tempo
científico depende da experiência mais primordial do Dasein. Essa ideia pode ser
expressa com a pergunta: por que temos relógios? O tempo nos é importante porque
temos relógios, ou temos relógios porque o tempo nos importa? Para Heidegger, a boa
resposta é a última. O tempo é algo real para o Dasein porque ele é útil. Na primeira
divisão, vimos como o Dasein se relaciona com os entes que o rodeiam. Não o faz
cognitivamente, analisando-os, medindo-os, mas usando-os. Os entes estão à mão do
Dasein. Apenas com base nesta relação existencial que uma análise cognitiva dos entes
como objetos faz sentido. Se o Dasein trata um ente cientificamente, o faz porque a
informação que obtem terá relevância para os seus projetos. Acontece o mesmo com a
temporalidade. Utilizamos relógios, não porque o tempo seja algo objetivo, composto de
uma infinita quantidade de instantes, mas porque são úteis no contexto da atividade
cotidiana do Dasein. Nessa atividade, o Dasein não experimenta instantes isolados, mas
lapsos borrados, um antes e um depois, não pontos nítidos, mas momentos estirados
entre um já não e um ainda não. Há tempo porque o Dasein existe, porque a existência
65
do Dasein é temporal [A leitura de Heidegger é de que o tempo objetivo, do relógio, não
faz parte da estrutura do mundo, tal como em uma leitura realista do tipo aristotélico,
que influenciou nossa visão científica de mundo. Heidegger é um pragmatista. Essa
concepção científica existe porque é útil para certos propósitos, e não porque o mundo
seja feito à sua imagem e semelhança. Aliás, a experiência mais fundamental, sobre a
qual repousa inclusive essa visão científica e especializada do tempo, é a de um
processo sem contornos nítidos entre um antes e um depois. Heidegger inverte assim a
equação: só existe relógio porque a existência do Dasein é temporal, é vivida como tal].
Ora, esta existência do tempo é ôntica e cotidiana e, como sabemos, o Dasein
vive a sua experiência cotidiana de forma caída, no seio do anonimato, regendo sua
conduta pela média, pelo socialmente normado. Isso faz com que o tempo pareça
naturalmente homogêneo e medido em termos de relógios. Quando dizemos “não tenho
tempo” ou “Dá-me mais tempo”, falamos de forma imprópria, tratando o tempo como
se fosse uma substância, em vez de um modo de ser, o modo de se do Dasein. O Dasein
não está no tempo, mas é seu tempo, seu passado, presente e futuro. Esta concepção
autentica da temporalidade é propriamente existencial. Ela, junto com a controvertida
reflexão de Heidegger sobre a história, será tema do próximo e último vídeo desta série.
[O Dasein pode viver o tempo de forma inautêntica ou autentica. De forma autentica,
ele não está no tempo; ele é o seu tempo, seu passado, seu futuro].

66
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 14/15

No último vídeo, vimos a metáfora do tempo como um rio que corre para o
futuro desde o passado. Desta compreensão cotidiana, a ciência deriva a sua concepção
mais abstrata de linhas e pontos. Não estranha que adotemos essa concepção, como algo
que pode ser medido; repare na própria palavra “tempo”: é um substantivo. Os
substantivos são assim chamados porque se referem a substâncias. Mas o tempo não é
uma substância, mas é o modo em que o Dasein é, ou, em outras palavras, o sentido do
ser do Dasein. A temporalidade do Dasein pode ser vista ou experimentada de duas
formas: uma própria e outra imprópria. Vimos essa última forma no último vídeo. O que
nos interessa hoje é ver como se expressa a temporalidade para o Dasein no existir deste
de forma própria. [Resumo: tempo especializado, substancializado, e o tempo como
modo de ser do Dasein, como o sentido do ser do Dasein. O tempo pode ser
experimentado de forma própria ou imprópria].
Heidegger utiliza muitos termos (culpa, consciência, autenticidade), que para
nós conotam fenômenos éticos, e é difícil não interpretá-los assim. Mas há que recordar
que Heidegger os utiliza não para julgar, mas para discernir os elementos do Dasein.
Todo o Dasein, de algum modo, existe de forma imprópria, porque é impossível se
extrair por completo do mundo social e dos imperativos e costumes do das Man.
Contudo, nem por isso a existência imprópria carece da estrutura do cuidado (ou seja, o
Dasein segue sendo lançado à sua existência, e também projeta possibilidades – apenas
deixa que o das Man determine-as). Então, por que interessa a Heidegger o mundo
autêntico? Simplesmente porque manifesta esses elementos de forma mais clara. Por
exemplo, o modo autêntico ressalta a distinção ontológica entre o Dasein e os outros
entes, enquanto que o modo improprio tende a confundi-la, de modo que a vida é
apreciada como algo que pode ser manejado cientificamente, como um ente qualquer.
[O interesse de Heidegger ao distinguir o autêntico do inautêntico não é moral.
Ademais, todo Dasein vive na impropriedade, de algum modo. Sua insistência sobre o
autêntico é que ele permite ressaltar de modo mais claro a diferença ontológica que está
na base da interrogação de Heidegger. O modo impróprio tende a confundir essa
diferença].

67
A seção que encerra o argumento do livro é a 65. Toda a análise do Dasein
permite agora que Heidegger responda à pergunta fundamental do livro: a do sentido do
ser, ao menos do ser do Dasein. Ele vai fazê-lo, em primeira instância, ao lançar um
olhar para a “modalidade própria do cuidado”. Vimos isso com detalhe no segundo
capítulo, ao ver a chamada da consciência e a culpa. Agora, na seção 62, ele resume
essa análise, caracterizando a modalidade própria do cuidado como “resolução
precursora”. Isto, em poucas palavras, é o ser próprio do Dasein; e seu sentido, aquele
que possibilita que se desenvolva existencialmente, é a temporalidade. Isso é tema da
seção 65. [Tema: a modalidade própria do cuidado como “resolução precursora”.]
A resolução se refere à culpa do Dasein, ao dar-se conta da contingência e da
finitude de sua existência e, portanto, da nulidade do miolo do seu ser. O Dasein que
existe de forma própria escuta o chamado da consciência e aceita a total
responsabilidade por sua existência. Está resolvido a afastar-se da cômoda dimensão de
inteligibilidade que oferece o das Man para estar desnudado, por assim dizer, na própria
contingência de seu ser. Mas Heidegger diz, além disso, que essa resolução é
precursora. Em alemão, a palavra Vorlaufen significa “correr para adiante”. Traduziu-se
em inglês como “antecipador” e em espanhol como “precursor”. Refere-se à disposição
do Dasein diante da possibilidade de sua morte. Em vez de considera-la, de forma
imprópria, como algo no futuro que não lhe toca, algo que prefere ocultar da vista, o
Dasein a enfrenta e se orienta para essa possibilidade. Isto é o que Heidegger chama de
ser-para-a-morte. Tanto a morte quanto a culpa tocam a total contingência e nulidade
que caracterizam a existência do Dasein e isto é o que Heidegger expressa nesta frase da
resolução precursora. O cuidado é o ser do Dasein. Ao existir de forma própria ou
autentica, o cuidado se caracteriza pela resolução precursora. [Ao existir de forma
própria, o cuidado se caracteriza pela resolução precursora].
Ora, com isso já analisamos completamente o ser do Dasein. Mas a pergunta
inicial de Heidegger é pelo sentido do ser. Por quê? Recorde da discussão sobre os entes
à mão, como no caso do carpinteiro. Quando usa um martelo, não se trata de um objeto
com simples propriedades, mas um martelo que emprega com desenvoltura e fluidez.
Esse “objeto” lhe aparece como um martelo, ou seja, com inteligibilidade, devido a um
contexto, um “pano de fundo de possibilidades”, que chamamos a carpintaria. Na §65,
Heidegger diz que “sentido significa o fundo de uma projeção primária, fundo a partir
do qual se pode conceber a possibilidade de que algo seja o que é”. Em termos mais
coloquiais, diríamos que o martelo tem sentido nos termos deste pano de fundo. O que o
68
Dasein capta e entende é o ser dos entes à mão que emprega em seus projetos, mas não
o seu pano de fundo ou o sentido, já que este último é o que confere a inteligibilidade
que o Dasein entende. Ora, o pano de fundo que interessa ao Dasein no §65 não é o
sentido de um tipo de ente em particular, mas o sentido do ser em geral. [Aquilo que
permite a determinação do sentido do ser de um ente é o pano de fundo, ou contexto, no
qual esse ser aparece para o Dasein. O que o Dasein capta é o sentido do ser dos entes à
mão que ele emprega em seus projetos. É o contexto ou pano de fundo que interessa a
Heidegger. Porém, na §65, Heidegger indaga o sentido do ser em geral].
O Dasein sabe usar um martelo devido à estrutura prática que chamamos de
carpintaria. O Dasein sabe também como existir. Como vimos, sua existência consiste
em projetar possibilidades e em entender-se nos termos dessas possibilidades. Que
estrutura explica a capacidade do Dasein de fazer isso? De acordo com Heidegger, é a
estrutura da temporalidade. [Do mesmo modo como o Dasein sabe usar um martelo, ele
sabe como existir, isto é, ele sabe como projetar possibilidades. Que estrutura permite
que ele saiba como existir? É a temporalidade].
Antes de qualquer coisa, a §65 constitui uma mudança no argumento. Todo o
texto até aqui tem sido uma análise fenomenológica. O que diz agora sobre o tempo não
é fenomenológica, mas transcendental, muito ao estilo de Kant. Na primeira crítica,
Kant aceita a universalidade e necessidade do conhecimento científico. Diz que
podemos explica-lo se supomos que a cognição humana conta com certa estrutura a
priori que a constitui. Isto é um argumento transcendental, que Heidegger emprega na
§65 ao argumentar que a temporalidade é a condição transcendental a priori para que o
fenômeno do cuidado seja possível. De fato, Heidegger foi muito influenciado por Kant
na análise do tempo. Para Kant, o tempo não é algo objetivo, aí fora, mas a forma a
priori da intuição sensível. Em sua análise, explica como o sujeito, através de três
sínteses, constitui os objetos de nosso conhecimento, e, ademais, como toda
representação está unida no “eu penso”. Como veremos, a temporalidade conta com três
momentos que possibilitam o caráter unitário do Dasein; mas em Kant o sujeito ou o
“eu penso” está isolado e independente, embora em Heidegger não haja um “eu penso”,
mas um “eu cuido”, por assim dizer, um eu que não é isolado, mas já imerso no mundo.
Por fim, seria interessante desmembrar os detalhes desta relação, mas vamos deixar isso
de lado para nos centrarmos no que ele diz sobre o tempo. [Heidegger é bem
influenciado por Kant na análise da temporalidade. Esta é um a priori, uma dimensão
transcendental. Porém, Heidegger subordina isso a um sujeito isolado, a um “eu penso”,
69
enquanto para Heidegger, o Dasein já está imerso no mundo, já aí. O mais importante
não é o “eu penso”, mas o “eu cuido”].
A pergunta para a qual o tempo é a resposta é: “O que possibilita o ser do Dasein
como uma totalidade unida?” Dado que o seu ser é cuidado, “qual é a condição de que
os comportamentos e disposições característicos do cuidado sejam possíveis?” Vimos
que o ser dos demais entes são entendidos em termos de propriedades. São o que são
porque sempre ocorrem. O Dasein não é como uma pedra, não ocorre simplesmente aí,
mas existe, e sua forma de existir consiste primordialmente em projetar possibilidades.
A pedra é o que é; o Dasein é o que não é. Existe em um constante estado de realização;
seu ser é um ser-para suas possibilidades. Agora, há muitas possibilidades que o Dasein
pode projetar: enamorar-se, ser padre, fazer um doutorado... Ainda que sejam
possibilidades que o Dasein pode projetar, o que elas têm em comum é que são todas
realizáveis. Elas podem se atualizar. Mas há uma possibilidade que não pode se realizar:
a morte. Ora, todos morremos, mas não podemos desfrutar da sua atualização. É pura
impossibilidade de estar-aí. Então, para que a morte tenha realidade existencial, tem que
permanecer como uma possibilidade. Este ser-para-a-morte, a possibilidade mais
fundamental, se distingue das demais possibilidade e ilumina, como elas não podem, a
estrutura do cuidado. É por isso que Heidegger caracteriza o cuidado autêntico como
resolução precursora [Resumo: Dasein, cuidado, temporalidade, ser-para-a-morte].
Ora, como é possível então esse ser-para-a-morte? Apenas em termos de tempo,
especificamente de futuro. “Futuro” não quer dizer um aqui e agora que não se fez
“efetivo” ou “atual” e que virá. Essa seria a concepção de tempo como um rio. Mas o
Dasein não está no tempo desta maneira, mas o tempo está no Dasein. O tempo futuro
de um alarme que despertará pela manhã é distinto do tempo para o Dasein. Para o
alarme, o futuro é um ponto espacialmente situado à frente. Para o Dasein, o futuro é
significativo. Ele existe para o futuro, esperando-o, antecipando-o. Para todo o tipo de
possibilidade que projetamos, experimentamos o futuro como algo que vem e para o
qual nos orientamos. Mas isso é possível, diz Heidegger, “apenas enquanto o Dasein
pode, em geral, vir em direção a si mesmo em sua possibilidade mais própria [...] O
deixar-se-vir para si mesmo suportando a possibilidade iminente, é o fenômeno
originário do porvir”. O que vem não é um momento no futuro, mas o próprio Dasein
para si mesmo em sua mais extrema possibilidade de existência, a saber, sua própria
morte. Quando disse que o não Dasein está no tempo, mas o tempo no Dasein, isto
queria dizer que o tempo, no caso o futuro, não é um momento objeto que vem, mas
70
uma forma de existir do Dasein [O tempo é uma forma de existir do Dasein porque ele
vive antecipando o futuro em suas possibilidades. O futuro não é um ponto afastado
objetivo, mas uma dimensão significativa para a qual o Dasein se orienta
constantemente. Ele não está no tempo, o tempo é que está nele].
Em alemão, a palavra “futuro” é “Zukunft”, mas aqui Heidegger o escreve com
um hífen Zu-kunft, com o qual quer ressaltar sua relação com o verbo “zukommen”, que
significa “vir para”. O si mesmo para o qual o Dasein vai não é nenhum conjunto de
possibilidades já realizadas (ser padre, professor, esposo, etc.) mas o seu ser-para-a-
morte, sua consciência de que existe constantemente na borda da sua existência. Este é o
futuro ou o porvir originário, condição transcendental de toda a projeção de
possibilidades [Futuro em alemão é “vir para”. Se o Dasein vai para si mesmo, esse
movimento não é em direção a nenhum conjunto de possibilidades realizadas, mas o seu
ser-para-a-morte. O futuro é o a priori transcendental para toda projeção de
possibilidades]
Nosso senso comum diz que se existe no presente, já que o futuro ainda não é e
o passado já foi. Para Heidegger, em contrapartida, a existência tem sentido, é
significativa, principalmente em termos de futuro. Mas isto não é tudo. O passado
também incide de forma significativa na existência do Dasein. O passado tem a ver com
nossa condição de lançado, e vimos que o Dasein existe de forma própria quando toma
responsabilidade por sua situação no mundo, a qual não tem razão nem justificativa. A
isto se refere a palavra “resolução” na frase “resolução precursora” que, como vimos, é
o que caracteriza o cuidado autêntico. O Dasein comporta sua posição de “haver-sido”:
ainda que tenha esquecido elementos do seu passado, o que está sempre com o Dasein é
a sua condição de lançado. A autêntica resolução de aceitar responsabilidade por sua
condição faz com que o Dasein exista em qualquer momento dado em função de já ter
sido. Não está esquecido, mas presente. [Ontologicamente, o passado e o futuro fazem
parte da estrutura do Dasein: como lançado, tem a posição de já “haver-sido”; como
projeto, tem a posição de “ainda-não”. Futuro e passado não são pontos em uma linha
geométrica].
Falando do presente, passemos a este ultimo aspecto temporal. O presente
originário corresponde à queda do Dasein, da sua vida entre outros e o marco público do
das Man. Quando existe autenticamente, o Dasein deixa de ser dirigido por seus atos e
pelas normas convencionais e atua de forma própria. Esse atuar não pode ser
significativo se se entende o presente como uma sucessão de agoras, mas apenas se o
71
Dasein “torna presente” o presente. Nesta dimensão ontológica, o Dasein não está em
um momento abstrato, mas em uma situação, e um aqui e agora, rodeado de entes à mão
que usa em seus projetos. Na atividade temporal de tornar presente, este presente
originário, o Dasein se desprende de si mesmo e os entes dos caixotes do das Man,
tornando-os presente, atuando de forma própria. [O presente autêntico, originário,
significa tornar o mundo presente, tornar presente o presente. Isso significa desprender-
se das amarras do das Man].
Quando lemos Ser e Tempo, vemos substantivos, Mas realmente se trata de
verbos. Ser não é uma coisa por aí, mas a atividade de existir em termos de cuidado.
Tempo não é algo, mas uma atividade, algo que o Dasein faz. Mais adiante, Heidegger
diz que o Dasein temporaliza o seu ser. Os modos de temporalização (futuro, passado e
presente originários) são chamados de êxtases do tempo. Êxtase é estar fora de si
mesmo. Não é à toa que existência e êxtase tem a mesma raiz. Heidegger põe o acento
da existência do Dasein no futuro, nas possibilidades que está constantemente
realizando. A possibilidade última, a nossa própria morte, é o miolo de toda essa
análise. Sem a consciência da morte, o tempo seria apenas uma sucessão de momentos,
e o Dasein não poderia ser distinguido dos demais entes. A maioria tende a ocultar essa
realidade, perdendo-se nas distrações do mundo. Contudo, ao enfrenta-la, o Dasein se
dispõe a uma temporalidade autentica, com a qual pode distinguir um futuro próprio de
outro que pertence a todos de modo indiferente.[Ser e tempo não são substantivos, mas
verbos: não são substâncias, mas modos de existir do Dasein. O Dasein temporaliza sua
existência].
Falta-nos apenas tratar da historicidade do Dasein, do capítulo 5.

72
Heidegger: El Ser y El Tempo
pt. 15/15

O protagonista do livro é o Dasein. Dasein não é uma coisa, mas uma atividade.
As coisas simplesmente ocorrem; o Dasein existe. Heidegger analisou a forma deste
existir em termos da estrutura do cuidado: sua condição de lançado, de projetar
possibilidades e da queda. O sentido do ser, ou seja, o horizonte que o possibilita, é o
tempo. A temporalidade é o solo ontológico da existência do Dasein. Isso em poucas
palavras é o argumento de Ser e Tempo. [Para entender a centralidade do tempo em
relação ao ser, há que se lembrar que o objetivo de Heidegger é traçar uma diferença
ontológica. Esta diferença fundamental se dá entre ser e ente. Desde Platão e o início da
metafísica ocidental, o ser foi confundido com o ente. Se pensou o ser como substância
e como uma série de propriedades que poderiam ser elencadas a fim de defini-lo e
captar a sua essência. Isso significa que, desde o início, o ser era concebido como tendo
uma identidade e a tarefa do pensamento sendo, de algum modo, representar – na
linguagem ou mentalmente – essa identidade prévia. Para Heidegger, isso é uma falácia,
na medida em que o ser não é caracterizado por uma lista de propriedades, mas é uma
questão aberta. No caso do Dasein, sua essência se expressa em sua existência. Isso
significa que sua essência é uma questão aberta, justamente porque sua existência
também o é. Sua existência pode ser resolvida de vários modos. E isso só pode se dar
dentro de um destino temporal. O Dasein tem a sua essência temporalizada.].
A historicidade será a resposta a um problema, que podemos ilustrar ao
recordarmos a intenção de Hume de encontrar em sua experiência o eu. Em uma celebre
passagem, vai buscando entre o fluxo de suas sensações, recordações, pensamentos e
sentimentos algo que pudesse chamar de “eu”, esse sujeito de quem os filósofos falam,
mas que ninguém assinalou com o dedo. Hume não o encontra e conclui que não há eu
permanente que subjaza à experiência. Para muitos, essa ideia é inquietante. Descartes
postulou o eu como substância, res cogitans. Kant o criticou e postulou em seu lugar um
sujeito forma, a famosa unidade transcendental de apercepção.
No §72, Heidegger diz que o Dasein não existe como uma soma de atualidades
momentâneas de vivências que vão se sucedendo e desaparecendo. Isso parece opor-se
claramente às análises de Hume, ainda que também não postule no outro extremo
alguma substância ou sujeito metafísico. De acordo com suas análises até agora,

73
Heidegger encontra a unidade da existência do Dasein na temporalidade. Diz: “A essa
especifica mobilidade do estender-se (ao largo da vida), chamamos de acontecer do
Dasein. A pergunta pela “trama” do Dasein é o problema ontológico do seu acontecer.”
O que está dizendo é que a conexão ou unidade entre as diversas vivencias do Dasein
em sua vida, aquilo que da constância ou consistência ao eu, é um acontecer. A palavra
“acontecer” traduz o “geschechen” e ainda que isso significa “suceder” ou “ter lugar”,
Heidegger enfatiza a sua relação etimológica com “Geschichte” ou História. O que
acontece não é uma série de eventos ou vivencias que em seu conjunto constituem a
unidade da vida do Dasein, mas uma história, história não no sentido de eventos do
passado, mas história como conto, como narrativa. Esta é a cola, por assim dizer, que
une as diversas vivencias do Dasein em uma unidade. [O que confere unidade ao
Dasein? Assim como em Hume, não é um eu substancial. Porém, Heidegger postula que
há algo que unifica todas as experiências, acontecimentos, eventos, em uma unidade.
Esse algo é a História, não no sentido de um aglomerado de fatos passados juntados,
mas no sentido de uma narrativa. A narrativa, com significatividade, é o que faz com
que as experiências do Dasein possuam unidade].
Em que consiste? Na seção 73, Heidegger analisa nossa compreensão cotidiana
da história para ressaltar o que deseja dizer. Se um turista chaga ao Brasil e deseja
conhecer sua história, o mais seguro é ir a um museu. Ele vê um quadro de Tarsila. Um
quadro de Tarsila não é o efeito físico de tintas sobre tela, mas algo que revela o ser-no-
mundo de quem o pintou, seu entorno, sua história, tendências artísticas, relações
pessoais, profissionais, etc. Ou seja, revela a Semana da Arte Moderna de 22, as
conversas com Osvald Andrade e Mario de Andrade, a antropofagia, as vanguardas
europeias, etc. Ora, o que unifica o Dasein não é uma série de objetos ou sucessos, mas
um acontecer que emana da própria estrutura do Dasein, do seu ser-no-mundo. [Um
objeto, como uma obra de arte, é algo significativo que expressa o mundo de um
sujeito].
Na §74, Heidegger nos recorda que o Dasein pode existir de duas formas:
autentica e inautêntica. Se o Dasein existe de forma autentica, então a sua história não é
propriamente sua, porque não serve de base para a unificação da sua vida, mas para a
sua dispersão. O que lhe interessa obviamente é a existência autentica. De que modo
proporciona um autêntico ser-no-mundo a base para uma história que unifique sua vida?
[A história pode ser autentica ou inautêntica: quando é inautêntica, a história não é
totalmente sua, mas contada pelo Outro].
74
Heidegger responde ao introduzir os termos “legado” e “destino”. Recorda que o
Dasein está lançado no mundo, em um mundo que não escolheu. Esse mundo não é uma
miscelânea aleatória, mas estruturado por costumes e tradições que lhe antecedem. Isto
constitui o seu legado. O Dasein compreende sua existência em termos desse legado,
das interpretações e histórias sócio-culturais que se acumularam e sedimentaram sobre o
tempo. Um brasileiro do século XXI projetará possibilidades diferentes de um
ameríndio do século 5 a.C. Assim, as possibilidades de vida para um Dasein são
limitadas. Ao reconhecer isso, o Dasein reconhece a finitude de sua existência e o fato
de que as decisões que toma não podem basear-se em outra coisa, salvo sua própria
vontade e decisão. O Dasein age de forma resoluta ao aceitar a responsabilidade sobre a
própria existência [Tema do legado: o Dasein herda um legado necessariamente].
Por “destino”, Heidegger não se refere a que a vida do Dasein seja determinada
de antemão, mas que ela será ligeiramente conformada pelos contornos do seu legado.
Obviamente, pode eleger viver de forma própria, caso no qual não estaria vivendo um
destino e sua vida careceria da historicidade que a une. Mas à medida em que vive de
forma autentica, aceitando seu legado e interpretando-se de forma determinada em
termos do mesmo, o Dasein vive o seu destino [Tema do destino: aceitação do legado,
interpretando-o em termos do mesmo].
Para Heidegger, não apenas o Dasein individual tem destino, mas povos inteiros
possuem um destino comum. Isso tem sentido, visto que as tradições são fenômenos
principalmente sociais, que têm a ver com nossa vida em comum com os demais.
Podemos, portanto, falar de uma autentica existência histórica de um povo, e é
precisamente neste ponto em que muitos encontram vínculo conceitual entre o
argumento de Ser e Tempo e a ideologia Nazi... Heidegger via Hitler como condutor
para a expressão do destino do povo alemão. E seu discurso reitoral fala de como o
povo alemão deveria cumprir o seu destino e salvaguardar a civilização
ocidental[Destino coletivo e a ideologia nazi].
Mas se aceitas as ideias de Ser e Tempo, isso vai te conduzir ao nazismo? Para
mim, não. Bla, bla, bla...

75

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