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18/09/19

Tóp. Esp. em Psicologia C


Normal, Patoló gico e Deficiência

Aula 2

Estudos da Deficiência:
Modelo Social da Deficiência x Modelo Feminista

Recapitulação:
Na ú ltima aula, começamos a ver como o conceito de deficiência nã o é
auto-evidente, mas suscita uma série de controvérsias e problemas conceituais
importantes, com repercussõ es tanto epistemoló gicas quanto políticas.
A estratégia de aula que eu adotei na ú ltima vez foi traçar alguns paralelos
entre a obra O Normal e o Patológico, de Georges Canguilhem, que é um
clá ssico, e a primeira geraçã o dos Estudos da Deficiência. Do mesmo modo
como normal e patológico nã o sã o conceitos autoevidentes, passíveis do
estabelecimento de medidas objetivas, a deficiência também é um conceito
problemático. Isso significa que nã o é com protolocolos experimentais de
pesquisa que se dará fim à s controvérsias que esses conceitos suscitam. Por
isso, instrumentais da filosofia, da psicologia teó rica e da sociologia entram
nesse debate.
Desta forma, vimos como, nos anos 1970, sociólogos reagiram à
hegemonia do chamado modelo médico em relaçã o à definição do conceito de
deficiência. Para esses teó ricos, o modelo médico, além de reducionista era
ideologicamente reacionário. Concebia o conceito de deficiência por alguns
aspectos: 1) o primeiro deles é a noçã o de “desvio da norma”: deficiência é tudo
aquilo que está em desconformidade a um padrã o normal médio de
funcionamento. Isso conduz a um paradigma exclusivo do déficit, já que nã o se
vê ali qualquer positividade na experiência de alguém com deficiência. Pessoas
com deficiência visual, auditiva, intelectual, física, etc. seriam, segundo o modelo
médico, primordialmente pessoas a quem falta algo que deveria estar lá . 2) o
segundo aspecto é o da compreensã o da deficiência como uma espécie de
“tragédia pessoal”. Em que sentido? No sentido de que haveria uma linha
causal natural, que começaria na lesão e terminaria na deficiência e no

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Handicap. Sendo assim, a deficiência e suas eventuais dificuldades seriam uma


consequência natural da lesã o dos corpos. Trata-se de uma visão
individualista, na medida em que as eventuais barreiras sociais enfrentadas
pelas pessoas com deficiência seriam atribuídas primordialmente à s lesões.
Portanto, seria um problema do indivíduo que teve azar na “loteria da
natureza”.
Contra esse modelo médico, considerado conceitualmente limitado e
politicamente conservador, um grupo de soció logos ingleses, com deficiência
física, propô s um modelo alternativo: o modelo social da deficiência. O ponto
de partida desse modelo era a inclusão do ambiente na discussã o. Nã o há como
pensar no conceito de deficiência de forma adequada sem inserir a variá vel
ambiente (e o modelo médico tendia a se concentrar no indivíduo e sua lesã o
apenas para pensar a deficiência). No caso dos seres humanos, esse ambiente
teria um cará ter absolutamente artificial. Nó s produzimos a todo instante a
base material do nosso mundo, já diziam os pensadores adeptos do
materialismo-histó rico. Isso quer dizer que a nossa adaptação ao mundo nã o é
natural, mas uma adaptação produzida. E ela é produzida pensando em um tipo
humano específico, que é aquele com as características médias: uma
determinada altura, que se locomove de um determinado jeito, que se comunica
de uma determinada forma, e assim por diante. Portanto, do mesmo modo como
a nossa adaptação é produzida, a deficiência também o seria. Portanto, a
deficiência seria fruto, não da loteria da natureza ou de uma tragédia pessoal,
como pensava o modelo médico, e sim de uma estrutura social que tende a
segregar todos aqueles que nã o compartilham das características do
indivíduo médio, típico. Sendo assim, a lesão é um fato natural, biológico,
privado; a deficiência é um fenômeno estrutural, social, público, político. É
uma consequência da segregação da diferença em nossas sociedades. Por isso,
a deficiência não pode se resumir à abordagem médica, já que nã o diz
respeito apenas ao corpo e ao indivíduo, mas ao encontro do indivíduo com um
mundo social, que é atravessado pelo campo das políticas pú blicas, dos direitos
humanos, da justiça social, etc.
O argumento implícito no “modelo social da deficiência” é de que uma
lesão é primordialmente uma atipia, uma anomalia, no sentido dado a esses

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termos por Canguilhem: raro, insó lito, fora da curva de distribuiçã o normal. Isso
quer dizer que uma lesão nã o precisa implicar, de forma alguma, em uma
experiência de deficiência. Basta que se produza um mundo adaptado às
especificidades corporais de todos os indivíduos. Por exemplo, para levar em
conta pessoas com baixa estatura, nã o vou construir escadas com degraus altos
em locais de grande circulaçã o; a escada também passa a ser um problema para
um cadeirante; por isso, é necessá rio que nó s produzamos um mundo com
rampas e elevadores; no caso das pessoas cegas, é importante construir um
mundo que inclua dispositivos como piso tá til e sinais de trâ nsito sonoros; no
caso de pessoas surdas, tenho que pensar em soluçõ es para o uso de simples
interfones, e assim por diante. A deficiência é assim redefinida:
desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização
social contemporânea, que pouco ou nada considera as pessoas que
possuem lesões e as exclui das principais atividades da vida social.

Em suma, o conceito de deficiência deixa de ser um conceito médico e se


tornou um conceito político: expressã o de desvantagem social sofrida pelas
pessoas com diferentes lesõ es, em virtude de uma sociedade segregadora.

***

A recolocação do problema sobre essas novas bases teve um impacto


profundo na compreensão das políticas públicas, invertendo as prioridades:
uma política pública deveria ter como meta principal adaptar o mundo às
necessidades das pessoas com deficiência, e não o contrário. Esse
movimento, que teve início nos anos 1970, ganhou corpo e teve efeitos muito
prá ticos: em primeiro lugar, a OMS incorporou uma série de ideias do modelo
social da deficiência à CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde). Em seguida, o modelo social passou a orientar as
políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência no mundo.
Quando falamos de acessibilidade e inclusão, trabalhamos implicitamente
com o “modelo social da deficiência”. Esse esforço de redefinição intelectual,
somado à militâ ncia dos sujeitos diretamente implicados, mudou o mundo.

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Deficiência, feminismo e cuidado

Essa leitura crítica do modelo social da deficiência permaneceu


imperturbada, sem críticas, dentro dos chamados Estudos da Deficiência por
cerca de vinte anos. Até que, nos anos 1990 e 2000, teve início o que ficou
conhecido como a segunda geração dos Estudos da Deficiência, com as
abordagens ditas pó s-modernas e as críticas oriundas das teorias feministas.
Em realidade, na base mesma do modelo social, já havia de modo implícito um
tipo de teoria feminista, na medida em que se poderia traçar uma analogia
entre o corpo deficiente e o sexismo: assim como as mulheres eram
oprimidas por causa do seu sexo em uma sociedade patriarcal, os deficientes
eram oprimidos por causa do corpo com lesões em uma sociedade nã o-
inclusiva. Esse apoio de uma teoria sobre a outra dava uma aparência de
harmonia entre os Estudos sobre a Deficiência e as Teorias de Gênero. Porém, os
estudos feministas da segunda geração passaram a desestabilizar algumas
premissas do modelo social, baseando-se na noção de “papel de gênero” e,
sobretudo, na noçã o de “experiência do cuidado”, que veremos dentro em
breve.
E por que motivo houve críticas ao modelo social? Para entender essas
críticas, é importante ter em mente que os teó ricos do modelo social da
deficiência partiam de duas afirmações: 1) as desvantagens experimentadas
pelas pessoas com deficiência resultavam primordialmente das barreiras
sociais impostas, e nã o das lesõ es; 2) uma vez retiradas as barreiras, as
pessoas com deficiência poderiam atingir sua independência e autonomia
plenas. Portanto, há implicitamente no modelo social a noçã o independência
como um valor ético ideal para a vida humana, e o principal impeditivo para
atingir esse ideal seriam as barreiras sociais construídas, como as barreiras
arquitetônicas, a nã o-adaptaçã o dos meios de transporte públicos, etc.
Para desestabilizar essas premissas básicas do modelo social, um
grupo de teóricas mulheres, passou a fazer a seguinte pergunta: será que
tudo aquilo que nó s chamamos de deficiência cabe dentro do modelo social?
Será que esse modelo nã o foi pensado como a expressã o de um tipo apenas de
pessoa com deficiência? Pois, afinal de contas, quem foram as pessoas que

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desenvolveram o modelo social da deficiência? A resposta para essa pergunta


era: basicamente um grupo de homens, com alto nível educacional (soció logos
e pesquisadores do campo das humanidades), com relativo poder aquisitivo,
com deficiência física: basicamente lesã o medular e polio, como era o caso de
Paul Hunt, Michael Oliver e Paul Abberley, alguns dos seus principais expoentes.
Portanto, o seu “lugar de fala” era o daquele sujeito cujo ideal de vida é a
produtividade, a aptidão para o trabalho de alto nível, o aproveitamento das
oportunidades, a vida independente, a autonomia financeira, etc. Uma vez
que as barreiras sociais impostas fossem retiradas, esse ideal se encontraria
livre para ser realizado. Esse ideal, aliá s, é aquele presente nas sociedades
liberais avançadas, e que atravessa a nossa vida quotidiana. É o ideal da
autonomia que caracteriza a modernidade: ser um indivíduo autônomo faz
parte da nossa imagem de dignidade mais profunda. A dependência, ao
contrá rio, provoca um certo asco em nó s; tendemos a ver a dependência do
outro como um sinal de fraqueza, de submissão, de não realização da imagem
de uma vida potente, plena, etc. Exemplo: quando se é jovem em nossas
sociedades, um dos sonhos é conseguir sair da casa dos pais para ter a pró pria
vida, de modo autô nomo. Isso é um signo de vida bem-sucedida. Ou mesmo,
quando a gente está inteiramente apaixonado, na “mã o do outro”, essa sensaçã o
de perda de autonomia, de dependência, é frequentemente angustiante,
incô moda.
Pois é justamente esse ideal que será questionado por um grupo de
mulheres que entraram no debate dos estudos da deficiência munidas de teorias
feministas e de gênero, a partir dos anos 1990. Inicialmente, apontou-se um
paradoxo no modelo social da deficiência: por um lado, a orientação
inicialmente marxista dos seus proponentes levava a uma crítica do
Capitalismo, que tipificava o sujeito produtivo como não-deficiente. Tratava-
se de uma crítica à ideologia dominante, que via as pessoas com deficiência
sob o â ngulo da produção de riquezas, servindo como justificativa racional
para a uma ética meritocrática, que serve para naturalizar as desigualdades
com base na competência para a produção: quem produz mais merece ganhar
mais, no que se refere à distribuição das riquezas em uma determinada
sociedade. Por outro lado, a luta política resumia-se a retirar as barreiras

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sociais impostas de modo a permitir a inclusão das pessoas com deficiência na


vida pú blica e, sobretudo, no mercado de trabalho, na produçã o de riquezas,
para que essas pessoas pudessem viver de modo autô nomo, sem depender dos
outros. Como se a injustiça estivesse nas barreiras que negavam à s pessoas
com deficiência a igualdade de oportunidades para competir no mercado. Ou
seja, nessa aposta da inclusã o pela independência e pela autonomia nã o se fazia
uma crítica profunda de alguns dos pressupostos morais da organização
social em torno dos valores da produção e da independência, mas apenas
das barreiras que impedem o alcance desse ideal.

A crítica feminista

As teorias feministas trouxeram à tona temas esquecidos na agenda de


discussõ es do modelo social. Passaram a falar do cuidado, da dor, da
dependência e da interdependência como temas centrais à vida humana.
Assim como os homens da primeira geraçã o, muitas teóricas feministas
eram deficientes. Mas, diferente deles, havia algumas teóricas não-
deficientes que reclamavam uma nova autoridade: a de cuidadoras de
pessoas com deficiência. É o caso de uma filó sofa e teó rica dessa segunda
geraçã o, chamada Eva Kittay, que é mã e e cuidadora de uma mulher com
paralisia cerebral. Volto a falar dela daqui a pouco.
Esse movimento intelectual passou a introduzir novas variáveis no
debate, como raça, cor, gênero, orientação sexual, idade: porque ser uma
mulher deficiente ou uma cuidadora de uma pessoa com deficiência é uma
experiência bastante distinta daquela vivenciada pelos homens com lesã o
medular, que propuseram o modelo social da deficiência. Neste sentido, o lugar
de onde se fala foi fundamental para a reformulaçã o dos termos do debate. Para
estas autoras feministas, aqueles teóricos da primeira geração eram
membros de uma espécie de “elite” entre as pessoas com deficiência. Sendo
assim, suas análises naturalmente reproduziam a sua inserção em termos
de gênero e classe na sociedade, mas também em termos da especificidade do
tipo de lesã o em jogo.

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Igualdade e interdependência

O modelo social da deficiência constituiu-se como um projeto de


igualdade e justiça para os deficientes pelo lema “os limites sã o sociais, nã o do
indivíduo”. Mas para as feministas, essa bandeira não representava a
totalidade das demandas por justiça de diferentes grupos de pessoas com
deficiência. A ambição por independência e autonomia era pró pria daquele
tipo de indivíduo com deficiência, que propunha o modelo social: homem, em
idade produtiva, de alto nível educacional e só cioeconô mico, com lesão
medular. Ou seja, um tipo de sujeito á vido por realizar as aspirações das
sociedades individualistas liberais do mundo ocidental. O lema de uma das
associaçõ es britâ nicas de pessoas com deficiência era: “o direito ao trabalho é
um direito humano fundamental”. Havia aí um projeto social de incluir o
deficiente no processo produtivo, o que pode parecer ó timo, por um lado. No
entanto, por mais justo que fosse esse projeto, ele ainda não desafiava as
estruturas morais mais profundas das sociedades, pois valores como
autonomia, independência e produtividade se mantiveram no centro da
pauta de negociaçõ es políticas, ainda continuavam inquestionados.
E em que essa postura é criticável, segundo as teó ricas feministas da
segunda geraçã o dos Estudos da Deficiência? Tal postura teó rica é incapaz de
abarcar toda a diversidade das experiências pelas quais passam as pessoas
com deficiência. Há sujeitos para os quais o horizonte da autonomia, da
produção de riquezas pelo trabalho, morar sozinho, adquirir
independência financeira, etc. nã o seria um ideal desejável, ou mesmo
atingível. Por isso mesmo, a manutençã o desses valores típicos das nossas
sociedades individualistas liberais estaria sendo vivenciado como a imposiçã o de
uma espécie de “ideal perverso” para um grupo nã o negligenciá vel de pessoas
com deficiência.
Uma das pessoas que passaram a levantar esse questionamento foi a
filó sofa Eva Kittay, mã e e cuidadora de Sesha, uma mulher com paralisia
cerebral. Em um dos seus artigos, Kittay escreve:

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É importante me situar na discussão. É como mãe que me


encontrei o tema da deficiência. Minha filha é incapaz de
emitir falas, ler ou escrever, andar sem assistência, fazer
qualquer coisa sem assistência. Ela possui paralisia
cerebral, severa deficiência intelectual, e convulsões.
Embora o seu funcionamento cognitivo pareça limitado, ela
adora música, tomar banho, boa comida, pessoas, atenção,
amor. (algumas das coisas mais finas que a vida tem a
oferecer). Ela é inteiramente dependente e, mesmo que aos
quarenta anos de idade, ela (como todos nós) ainda seja
capaz de crescer e se desenvolver, é quase certo que sua
dependência total não se altere muito. Tenho aprendido
muito sobre deficiência da perspectiva daqueles que são
incapazes de falar por si mesmos; e foi da sua perspectiva e
dos seus cuidadores que aprendi a apreciar profundamente
o cuidado como prática e como uma ética.

Kittay chama a nossa atençã o, de forma interessante, para alguns limites


do modelo social da deficiência. Em primeiro lugar, recoloca-se no centro do
debate novamente o tema da gravidade da lesão: dependendo do tipo de lesã o
que se tenha, não importa o quanto nó s consigamos retirar as barreiras
sociais; a realizaçã o da autonomia e da independência como valores centrais
não será atingida. Isso vale para pessoas com doenças crô nicas extremamente
incapacitantes, para pessoas com paralisia cerebral severa, e para muitos outros
grupos que sequer podem entrar nesse debate falando por si, em nome pró prio,
como no caso do grupo de soció logos proponentes do modelo social. Por
exemplo, é possível que, para alguns grupos, a questão principal da vida nã o
seja a independência, a autonomia, o trabalho, mas a transcendência da dor:
como conseguir conviver com dores quotidianas lancinantes. Ou entã o, como no
caso da filha de Kittay, a boa vida nã o é medida pela aquisição de
independência e autonomia, mas em termos de fazer aquilo de que se gosta:
ouvir boa mú sica, tomar banho, estar com pessoas, desenvolver laços afetivos,
etc.
Nesse sentido, o que essas teóricas estã o recolocando em cena no
debate é o corpo e a lesão em sua concretude, que pareceu ter ocupado o
segundo plano para os teóricos da primeira geração, que se concentraram
mais no tema das barreiras ambientais e em sua produção social. Segundo
elas, nã o havia espaço no modelo social para uma discussão da dor, do

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sofrimento ou dos limites corporais: o corpo teria sido de alguma forma


esquecido, ao se privilegiar do projeto de independência. Assim, as feministas
mostraram o quanto o modelo social era uma teoria desencarnada da lesão.
Seu argumento é que o corpo deficiente permanecia um tabu a ser desafiado, a
partir do instante em que se mantinha duas falsas suposições: 1) de que toda
deficiência derivaria exclusivamente de uma produção social de barreiras
(o que não é verdade, visto que algumas derivariam da gravidade da lesão,
independentemente das barreiras sociais impostas); 2) de que o valor
central para uma vida digna, justa, de todas as pessoas com deficiência
precisasse ser a autonomia, a capacidade para o trabalho, a produção de
riquezas, a independência financeira, e assim por diante.
Em outra passagem, Kittay resume sua posiçã o:
Assegurar igualdade de oportunidades às pessoas é
admirável quando as pessoas estão em uma posição de tirar
vantagem das oportunidades oferecidas, mas algumas
pessoas com deficiência não estão nessa posição. Para
pessoas com deficiência intelectual severa, como a minha
filha Sesha, nenhuma acomodação, lei antidiscriminação, ou
garantia de oportunidades iguais pode torná-la
independente e capaz de dar suporte a si mesma. [Não é
disso que se trata]

Ética da interdependência

Esse tipo de formulaçã o conduziu o debate para novas dimensões,


sobretudo no campo da ética e da filosofia moral. O questionamento principal
passou a ser: será que a ética da independência e da autonomia, que está no
centro da paisagem moral das sociedades liberais, que define aquilo que nó s
valorizamos como imagem de vida realizada, de justiça e de bem-estar, é de
fato a ú nica imaginá vel, ou até mesmo uma ética interessante? Essa ética da
autonomia nã o seria inclusive, em alguma medida, uma miragem, uma ilusão,
uma ideologia típica do individualismo contemporâneo? E toda ideologia é um
conjunto de valores que serve para ocultar fatos fundamentais de nó s mesmos.
Que fatos fundamentais seriam esses, neste caso? O fato de que em nossa espécie
as relações de dependência serem universais: a começar pela longa

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dependência que experimentamos em nossa juventude. Alguns antropólogos e


biólogos se referem a uma certa prematuridade da espécie humana, que nos
torna absolutamente dependentes do Outro durante um período grande de
nossas vidas, e que carrega o nome de neotenia. A psicanálise, por outro lado,
mostra que algo desta posição de dependência do Outro nunca nos
abandonará inteiramente; essa posiçã o está marcada em nosso psiquismo. Mas
nã o só na infâ ncia: de forma universal, nos tornamos dependentes também em
períodos de adoecimento, quando ficamos mais frágeis e vulneráveis, em que
precisamos termos alguém para nos alimentar, nos banhar, preparar nossa
comida, etc. Essa é uma experiência de dependência universal. Por fim, temos
um outro momento universal da vida humana de bastante dependência: a
velhice. Se dermos a sorte de envelhecer, muitos de nó s terã o que aprender a
depender do Outro. Digo aprender, pois essa relação de confiança para muitas
pessoas é uma dificuldade e depende de um aprendizado. Nesse sentido,
passou-se a falar de corpos temporalmente não-deficientes, na medida em
que todos nó s fomos crianças ou envelheceremos.
Nã o se espera, ou nã o se deveria esperar, de nenhuma dessas condiçõ es
universais que se realize um ideal de vida baseado na ética da produçã o de
riquezas, da vida independente, etc. Em outras palavras, em nossa espécie, a
experiência de independência, de autonomia e de produção, não é
universal; contrariamente, a experiência de dependência e de
vulnerabilidade é universal, diz respeito a todos nó s, sem exceçã o. É típico da
forma de vida do gênero humano. Como diz Eva Kittay, “todos nó s somos filhos
de uma mã e”.
A partir dessas ideias, as teó ricas da segunda geração dos Estudos da
Deficiência passaram a defender o cultivo de uma ética da interdependência,
como alternativa a uma ética da independência. Ou seja, uma ética que
valoriza o fato de que todos nós possamos depender uns dos outros, sem que
isso implique em um rebaixamento do reconhecimento do nosso valor, da
nossa imagem pessoal de vida bem-sucedida, plena, realizada, etc. Até
porque, a imagem de autonomia plena oculta o fato de que somos bastante
dependentes uns dos outros: alguém que é capaz de exibir signos de
independência e autonomia, só o faz contra um fundo de dependência, isto é, a

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partir de uma série de relaçõ es de dependência que estabeleceu ao longo da vida


para poder exibir esses signos. Como se trata de um fenô meno universal, não
significa a defesa de uma postura específica para lidarmos com certos grupos
de pessoas com deficiência. Nã o se trata de uma ética paternalista, mas de uma
ética transversal a toda relaçã o humana. Vou citar aqui, mais uma vez, Eva
Kittay, para exemplificar o ponto:
Quando reconhecemos que a dependência é um aspecto de
como certos tipos de seres sã o, nó s, como sociedade, podemos
começar a confrontar nosso medo e nosso asco da dependência
e, com ela, da deficiência. Quando reconhecermos o quanto a
dependência dos outros nos salva do isolamento e fornece as
conexõ es com outrem, tornando a nossa vida valorosa, podemos
começar o processo de assumir as dependências necessá rias.

Cuidado e deficiência

Um dos princípios fundamentais interconectados com uma ética da


interdependência é a dimensão do cuidado. O cuidado e os vínculos de
dependência sã o o que estrutura as relações humanas. Por isso, essa
discussã o partiu também de pessoas que ocupavam o lugar de cuidadoras de
pessoas com deficiência. Nesse debate, há uma admissã o de que nã o há nada de
errado em existir no mundo humano relações de cuidado não-recíprocas,
extremamente assimétricas, como é o caso das relaçõ es entre cuidadores e
pessoas com lesões graves, tipo a histó ria de Eva Kittay e sua filha. E
frequentemente, temos medo e até medo rejeiçã o a essa assimetria.
Em uma entrevista recente, o comediante americano Richard Pryor, que
tem Esclerose Múltipla, disse que perdeu antigas capacidades e teve que
aprender novas; de que a Esclerose Múltipla foi, na verdade, “a melhor coisa
que me aconteceu”. Quando ele diz isso, o entrevistador fica visivelmente
desconcertado. Como alguém pode dizer que uma doença neurodegenerativa,
como a Esclerose Mú ltipla, possa ter sido a melhor coisa que lhe aconteceu na
vida? Entã o, Pryor explicou que ele havia vivido uma vida inteira sem a
experiência de poder confiar em ninguém. Em outras palavras, ele viveu uma
vida inteira como a maioria de nós, que cultiva uma ética da independência e

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da autonomia: essa ética vem junto com a desconfiança do outro, com uma
sensaçã o de constante da possibilidade de ser abandonado pelo outro. A
autonomia vem junto com a sensação de isolamento nos laços sociais. A
imagem do sujeito moderno é a de um sujeito autô nomo, mas isolado e
relativamente desconfiado. Uma vez que Richard Pryor viu que, para
simplesmente se locomover de um cô modo para o outro em sua casa, ele passou
a necessitar do cuidado de outras pessoas, ele, pela primeira vez na vida,
aprendeu o que era um laço de confiança. Entã o, ele explica: “esse aprendizado
foi transformador nas minhas relaçõ es humanas, no meu olhar para a vida, e, por
isso, a Esclerose Mú ltipla foi a melhor coisa que já me aconteceu”.

***

Não se deve entender as críticas ao modelo social da deficiência como


uma rejeição em bloco desse modelo: trata-se apenas de apresentar nuances
importantes. Afinal de contas, por um lado, nem todo o espectro das pessoas
com deficiência pode ser abarcado pelos ideais da autonomia, do trabalho e da
independência; por outro lado, esse ideal da justiça pela autonomia talvez nã o
seja o modelo de ética a ser cultivado entre nó s.
Porém, essa crítica colocou uma tensã o no campo, que naturalmente teve
reaçõ es contrá rias: para os defensores do modelo social, haveria no modelo do
cuidado uma ameaça política implícita, que seria devolver as pessoas com
deficiência a um espaço de subalternidade e exclusã o social. Afinal de contas,
para uma sociedade que estruturalmente é pouco sensível aos interesses de
grupos de pessoas com deficiência, o cuidado e a interdependência seriam
valores com baixo potencial subversivo dessa situaçã o. Dificilmente, se
modificaria o ordenamento moral da sociedade com esse discurso que, na
prá tica, nã o seria benéfico para as pessoas com deficiência. A discussã o
permanece aberta.

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