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CAPÍTULO 1
Uma Bússola
Sociológica
Neste capítulo,
você aprenderá que:
Introdução
Por que Cynthia Hamlin Decidiu Não Estudar Sociologia — História Pessoal
“Vinda de uma família de classe média, entrar para a universidade nunca foi de fato uma questão
para mim — era um dado, praticamente um determinante de classe. O problema era, mais pro-
priamente, o que escolher como profissão, um meio de vida honesto que garantisse aquilo que eu
considerava como sendo minhas necessidades básicas e que, além disso, fosse interessante o bastan-
te para me manter estimulada durante toda a minha vida profissional.
Certamente vários fatores pesaram em minha decisão de entrar para o curso de ciências so-
ciais, mas, olhando retrospectivamente, creio que um dos mais fortes foi minha paixão adolescente
pelo arqueólogo interpretado pelo ator Harrison Ford na série de filmes Indiana Jones. Minhas afi-
nidades anteriores com a história e as ciências humanas em geral, aliadas ao poder de Hollywood
de criar estereótipos românticos que despertam paixões avassaladoras nos adolescentes, fizeram-me
optar pela arqueologia.
Mas como fazer arqueologia no Brasil, se não há cursos de graduação em arqueologia? Minha
primeira decisão importante foi, então, a de que precisaria de uma pós-graduação. Com meu cur-
so de pós-graduação definido, restava-me decidir o que cursar na graduação. Minhas opções eram
basicamente duas: história ou antropologia. Como também tinha afinidade com a biologia, deci-
di-me pela antropologia, em especial pela antropologia física, pois me proporcionaria alternativas,
além da arqueologia, caso mudasse de idéia sobre minha pós-graduação.
Foi assim que vim parar no curso de ciências sociais: com a cabeça cheia de idéias românticas
sobre minha profissão e a certeza fundamental de que não gostaria de cursar nada que fosse remota-
mente relacionado à vida política, que eu, de forma um tanto ingênua, concebia como uma esfera de
CAPÍTULO 1 – UMA BÚSSOLA SOCIOLÓGICA Ϙ 3
Mudando de Idéia
“Antes de entrar em contato com a sociologia, eu acreditava que as coisas aconteciam no mundo
— e comigo — porque fatores físicos e emocionais as causavam. Como grande parte das pessoas,
eu achava que a fome ocorria por causa das secas; a guerra, por causa da ganância territorial; o su-
cesso econômico, pelo trabalho árduo; o casamento, pelo amor; o suicídio, pela depressão pro-
funda; os estupros, pela luxúria desenfreada de determinados homens. Mas meus professores de
sociologia conseguiram me mostrar, ao longo do meu curso de graduação, evidências que contra-
diziam minhas respostas simplistas para essas questões. Se as secas são responsáveis pela fome, por
que tantos grupos passam fome em condições climáticas normais? Se o trabalho árduo gera a pros-
peridade, por que tantas pessoas que trabalham duro durante toda a vida são pobres? Se o amor é
a causa do casamento, por que tantas famílias são lócus de violência contra a mulher e a criança?
Assim, as questões foram se multiplicando e Indiana Jones foi se tornando uma referência cada vez
mais remota em minha vida.
Essas questões, no entanto, serviam apenas para me mostrar que as ciências humanas lida-
vam com problemas humanos que não poderiam ser compreendidos com base em fatores físicos
ou emocionais. Existia uma ordem de coisas, a ordem social, fundamental para o entendimento
das organizações e dos produtos humanos. Meus professores de sociologia também conseguiram
fazer que eu enxergasse que a sociologia oferece uma perspectiva única para se olhar para esses pro-
blemas. Ao apreender a concepção de sociologia como estudo sistemático do comportamento hu-
mano em seu contexto social, isto é, como o estudo dos fatores sociais que estão em jogo nas nossas
interações com outros indivíduos e com as organizações sociais, tornou-se claro que a sociologia
poderia ir além da compreensão com base em nossas experiências pessoais, fornecendo uma base
mais sistemática e precisa para o entendimento do mundo.
Foi assim que, aos poucos, fui desfazendo um mito bastante difundido segundo o qual as pes-
soas são livres para fazerem o que quiserem com as suas vidas. Tornou-se claro que a organização
do mundo social abre determinadas oportunidades e fecha outras, restringindo alguns aspectos da
nossa liberdade, ao mesmo tempo em que nos possibilita fazer determinadas escolhas. Por meio do
exame de forças sociais poderosas, a sociologia nos possibilita enxergar as causas que moldam e es-
truturam nossas vidas, revelando nossas capacidades e limitações. A essa altura, eu já havia encontra-
do uma motivação pessoal para me aprofundar no estudo da sociologia tão ou mais forte que minha
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paixão adolescente por Harrison Ford, ao mesmo tempo em que ocorreu minha reconciliação com
a ciência política. Nosso objetivo é fazer que você também encontre essa motivação.”
O Poder da Sociologia
Comecemos do início. Antes de mostrar como a sociologia pode ajudar a compreender e me-
lhorar seu mundo, examinaremos brevemente o problema do suicídio. Isso ajudará a ilustrar como
a perspectiva sociológica pode esclarecer e, por vezes, subverter nossas crenças do senso comum.
A Perspectiva Sociológica
Ao analisar o suicídio sociologicamente, você pode testar nossa afirmação de que a sociologia ado-
ta uma perspectiva única, surpreendente e esclarecedora em relação aos eventos sociais. Afinal de
contas, o suicídio parece ser o ato anti-social e não-social supremo: é quase sempre desempenhado
na esfera privada, longe do olhar intrusivo do público e é relativamente raro. No ano de 2001, por
exemplo, havia menos de cinco suicídios para cada grupo de 100 mil brasileiros (Datasus, 2004).
Quando se pensa no porquê de as pessoas cometerem suicídio, é provável que se focalizem os esta-
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dos mentais dos indivíduos, e não o estado da sociedade. Em outros termos, o que normalmente nos
interessa são os aspectos da vida de indivíduos particulares que os levaram a ficar deprimidos ou rai-
vosos o suficiente para cometerem suicídio. De modo geral, não pensamos nos padrões de relações
sociais que podem estimular tais ações. Se a sociologia pode revelar as causas sociais ocultas de tal fe-
nômeno aparentemente anti-social e não-social, então deve haver algo de importante nela!
No final do século XIX, o sociólogo francês Émile Durkheim, um dos pioneiros da disciplina, de-
monstrou que o suicídio é mais do que um simples ato individual de desespero, resultante de uma
desordem psíquica, como as pessoas acreditavam naquela época (Durkheim, 2000 [1897]). As ta-
xas de suicídio, conforme ele demonstrou, são fortemente influenciadas por forças sociais.
Durkheim construiu seu argumento baseado no exame da associação entre as taxas de suicídio
e as taxas de desordem psicológica de diferentes grupos. Conforme ele raciocinou, a idéia de que de-
sordens psicológicas causam o suicídio só poderia ser sustentada se as taxas de suicídio fossem altas
onde as de desordem psicológica fossem altas e baixas onde as de desordem psicológicas fossem baixas.
Contudo, suas análises das estatísticas governamentais de países europeus e dos prontuários hospitala-
res não mostraram nada nesse sentido. Ele descobriu que mais mulheres do que homens eram inter-
nadas em hospitais psiquiátricos; no entanto, quatro homens
cometiam suicídio para cada mulher que se matava. Os ju-
deus apresentavam as maiores taxas de desordem psicológica
entre os principais grupos religiosos da França; apesar disso,
eram eles que apresentavam as menores taxas de suicídio. As
desordens psicológicas ocorriam mais freqüentemente quan-
do as pessoas atingiam a maturidade, mas as taxas de suicídio
aumentavam à medida que a idade dos indivíduos avançava.
Bettmann/Corbis/StockPhotos
Suicídio
fatalista
Alta
Suicídio
Suicídio Alta
Suicídio altruísta
egoísta
Freqüência de suicídio
anômico
ão
u laç
R eg
Baixa
Para embasar seu argumento, Durkheim mostrou que adultos casados têm metade das chan-
ces de cometer suicídio em relação a adultos solteiros porque o casamento normalmente cria laços
sociais e um “cimento” moral que liga os indivíduos à sociedade. De maneira semelhante, as mu-
lheres são menos propensas a cometer suicídio do que os homens. Por quê? As mulheres geralmen-
te se envolvem mais nas relações sociais íntimas da vida familiar. Os judeus, Durkheim escreveu,
são menos propensos ao suicídio do que os cristãos. A razão? Séculos de perseguição transforma-
ram-nos em um grupo mais defensivo e socialmente coeso. Os idosos são mais predispostos do que
os jovens e os de meia-idade a dar cabo da própria vida quando se deparam com adversidades por-
que é mais provável que vivam sós, tenham perdido o cônjuge, parte de sua rede de amigos e que
não tenham emprego. De maneira geral, Durkheim afirmou: “O suicídio varia na razão inversa
do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte” (Durkheim, 2000 [1897]:
258). Observe que essa generalização não nos diz nada sobre o porquê de um indivíduo particular
dar fim à própria vida: essa é uma questão para a psicologia. No entanto, ela evidencia que a pro-
pensão de uma pessoa para o suicídio diminui conforme o grau em que está ancorada à sociedade.
Tal generalização também nos mostra algo surpreendente e unicamente sociológico sobre como e
por que as taxas de suicídio variam de grupo para grupo.