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CAPÍTULO 1 – UMA BÚSSOLA SOCIOLÓGICA Ϙ 1

CAPÍTULO 1

Uma Bússola
Sociológica

Neste capítulo,
você aprenderá que:

Ϙ As causas do comportamento Ϙ A sociologia originou-se à épo- Ϙ No nível pessoal, a sociolo-


humano baseiam-se princi- ca da Revolução Industrial. gia pode ajudar a esclarecer as
palmente nos padrões de rela- Os fundadores da sociolo- oportunidades e as restrições
ções sociais que nos rodeiam gia diagnosticaram as inten- a que se está sujeito, indican-
e permeiam. sas transformações do período do o que você pode se tornar
Ϙ A sociologia é o estudo siste- e sugeriram formas de superar no contexto histórico e so-
mático do comportamento problemas sociais gerados pela cial atual.
humano em seu contexto Revolução Industrial.
social. Ϙ A Revolução Pós-Industrial
Ϙ Os sociólogos examinam a dos dias de hoje, assim como
conexão existente entre as re- o processo de “globalização”,
lações sociais e os problemas apresenta desafios semelhan-
pessoais. tes para nós. A sociologia es-
Ϙ Os sociólogos são freqüente- clarece o escopo, a direção e o
mente motivados a realizar significado da mudança social,
pesquisas pelo desejo de me- além de sugerir formas de li-
lhorar a vida das pessoas; ao dar com os problemas sociais
mesmo tempo, adotam mé- gerados pela Revolução Pós-
todos científicos para testar Industrial e pela globalização.
suas idéias.
2 Ϙ SOCIOLOGIA: SUA BÚSSOLA PARA UM NOVO MUNDO

Introdução Teorias e Teóricos da Sociologia


Por que Cynthia Hamlin Decidiu Não Funcionalismo
Estudar Sociologia Teoria do Conflito
Mudando de Idéia Interacionismo
O Poder da Sociologia Teoria Feminista
A Sociologia no Brasil
A Perspectiva Sociológica
A Explicação Sociológica do Suicídio Aplicando as Quatro Perspectivas
De Problemas Pessoais a Estruturas Sociais Teóricas: O Problema da Moda
A Imaginação Sociológica
As Origens da Imaginação Sociológica Uma Bússola Sociológica
Igualdade versus Desigualdade de
Teoria, Pesquisa e Valores Oportunidades
Teoria Liberdade Individual versus Coerção
Pesquisa Individual
Valores Onde Você se Encaixa?

Introdução

Por que Cynthia Hamlin Decidiu Não Estudar Sociologia — História Pessoal

“Vinda de uma família de classe média, entrar para a universidade nunca foi de fato uma questão
para mim — era um dado, praticamente um determinante de classe. O problema era, mais pro-
priamente, o que escolher como profissão, um meio de vida honesto que garantisse aquilo que eu
considerava como sendo minhas necessidades básicas e que, além disso, fosse interessante o bastan-
te para me manter estimulada durante toda a minha vida profissional.
Certamente vários fatores pesaram em minha decisão de entrar para o curso de ciências so-
ciais, mas, olhando retrospectivamente, creio que um dos mais fortes foi minha paixão adolescente
pelo arqueólogo interpretado pelo ator Harrison Ford na série de filmes Indiana Jones. Minhas afi-
nidades anteriores com a história e as ciências humanas em geral, aliadas ao poder de Hollywood
de criar estereótipos românticos que despertam paixões avassaladoras nos adolescentes, fizeram-me
optar pela arqueologia.
Mas como fazer arqueologia no Brasil, se não há cursos de graduação em arqueologia? Minha
primeira decisão importante foi, então, a de que precisaria de uma pós-graduação. Com meu cur-
so de pós-graduação definido, restava-me decidir o que cursar na graduação. Minhas opções eram
basicamente duas: história ou antropologia. Como também tinha afinidade com a biologia, deci-
di-me pela antropologia, em especial pela antropologia física, pois me proporcionaria alternativas,
além da arqueologia, caso mudasse de idéia sobre minha pós-graduação.
Foi assim que vim parar no curso de ciências sociais: com a cabeça cheia de idéias românticas
sobre minha profissão e a certeza fundamental de que não gostaria de cursar nada que fosse remota-
mente relacionado à vida política, que eu, de forma um tanto ingênua, concebia como uma esfera de
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arbitrariedades e desonestidade, cujo estudo deveria consistir em um aprofundamento da discipli-


na organização social e política do Brasil, obrigatória nas escolas durante a ditadura militar. Na ver-
dade, ciência política e sociologia estavam, para mim, intimamente associadas ao horror que sentia
pelo curso de OSPB, uma associação sustentada pelas capas dos manuais de sociologia que, assim
como os livros de OSPB da minha época de estudante do ensino fundamental e médio, quase sem-
pre mostravam uma figura qualquer de uma massa amorfa de indivíduos.
Além disso, a sociologia me parecia uma disciplina um tanto difusa, sem método ou objeto
próprio, muito diferente daquilo que os arqueólogos faziam em seus sítios, munidos de suas pás,
de seus pincéis e de seus chapéus de abas largas. No entanto, como eu não poderia cursar ciências
sociais sem me matricular em alguns cursos de ciência política ou de sociologia, optei pelo máximo
de disciplinas da sociologia como forma de me esquivar definitivamente da política.”

Mudando de Idéia

“Antes de entrar em contato com a sociologia, eu acreditava que as coisas aconteciam no mundo
— e comigo — porque fatores físicos e emocionais as causavam. Como grande parte das pessoas,
eu achava que a fome ocorria por causa das secas; a guerra, por causa da ganância territorial; o su-
cesso econômico, pelo trabalho árduo; o casamento, pelo amor; o suicídio, pela depressão pro-
funda; os estupros, pela luxúria desenfreada de determinados homens. Mas meus professores de
sociologia conseguiram me mostrar, ao longo do meu curso de graduação, evidências que contra-
diziam minhas respostas simplistas para essas questões. Se as secas são responsáveis pela fome, por
que tantos grupos passam fome em condições climáticas normais? Se o trabalho árduo gera a pros-
peridade, por que tantas pessoas que trabalham duro durante toda a vida são pobres? Se o amor é
a causa do casamento, por que tantas famílias são lócus de violência contra a mulher e a criança?
Assim, as questões foram se multiplicando e Indiana Jones foi se tornando uma referência cada vez
mais remota em minha vida.
Essas questões, no entanto, serviam apenas para me mostrar que as ciências humanas lida-
vam com problemas humanos que não poderiam ser compreendidos com base em fatores físicos
ou emocionais. Existia uma ordem de coisas, a ordem social, fundamental para o entendimento
das organizações e dos produtos humanos. Meus professores de sociologia também conseguiram
fazer que eu enxergasse que a sociologia oferece uma perspectiva única para se olhar para esses pro-
blemas. Ao apreender a concepção de sociologia como estudo sistemático do comportamento hu-
mano em seu contexto social, isto é, como o estudo dos fatores sociais que estão em jogo nas nossas
interações com outros indivíduos e com as organizações sociais, tornou-se claro que a sociologia
poderia ir além da compreensão com base em nossas experiências pessoais, fornecendo uma base
mais sistemática e precisa para o entendimento do mundo.
Foi assim que, aos poucos, fui desfazendo um mito bastante difundido segundo o qual as pes-
soas são livres para fazerem o que quiserem com as suas vidas. Tornou-se claro que a organização
do mundo social abre determinadas oportunidades e fecha outras, restringindo alguns aspectos da
nossa liberdade, ao mesmo tempo em que nos possibilita fazer determinadas escolhas. Por meio do
exame de forças sociais poderosas, a sociologia nos possibilita enxergar as causas que moldam e es-
truturam nossas vidas, revelando nossas capacidades e limitações. A essa altura, eu já havia encontra-
do uma motivação pessoal para me aprofundar no estudo da sociologia tão ou mais forte que minha
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paixão adolescente por Harrison Ford, ao mesmo tempo em que ocorreu minha reconciliação com
a ciência política. Nosso objetivo é fazer que você também encontre essa motivação.”

O Poder da Sociologia

Ao final deste capítulo, deveremos atingir três objetivos:

1. Primeiro, ilustrar o poder da sociologia em dispersar pressuposições nebulosas e nos aju-


dar a perceber com mais clareza como o mundo social opera. Nesse sentido, examinare-
mos um fenômeno que, à primeira vista, parece resultar apenas de crises psicológicas: o
suicídio. Mostraremos que, de fato, as relações sociais influenciam muito as taxas de suicí-
dio. Esse exercício deve colocar em evidência o caráter único da perspectiva sociológica.
2. Mostraremos que, desde suas origens, a pesquisa sociológica tem sido motivada pelo dese-
jo de melhorar o mundo social. Nesse sentido, a sociologia não é um mero exercício aca-
dêmico, mas um meio de estabelecer caminhos alternativos para a sociedade. Ao mesmo
tempo, os sociólogos adotam métodos científicos para formular e testar suas idéias, au-
mentando, assim, sua validade. Esses pontos serão ilustrados por meio de uma breve aná-
lise da obra dos chamados “pais fundadores” da sociologia.
3. Sugeriremos que, da mesma forma que a sociologia ajudou seus fundadores a entender
melhor a realidade de sua época, ela também pode nos proporcionar uma melhor com-
preensão do nosso tempo. Hoje, testemunhamos mudanças intensas e desorientadoras.
Países inteiros estão se dissolvendo; as mulheres estão demandando igualdade em relação
aos homens em todas as esferas da vida; os desejos das pessoas são cada vez mais governa-
dos pelos meios de comunicação de massa; os computadores têm alterado radicalmente
a maneira como as pessoas trabalham e se divertem; existem, proporcionalmente, menos
bons empregos para se escolher; a violência nos rodeia; a ruína ambiental nos ameaça. As-
sim como ocorreu há um século, os sociólogos contemporâneos procuram entender os fe-
nômenos sociais e sugerir maneiras plausíveis de melhorar suas sociedades. Ao prometer
tornar a sociologia relevante para você, este capítulo deve ser percebido como um convite
para participar do desafio sociológico.

Comecemos do início. Antes de mostrar como a sociologia pode ajudar a compreender e me-
lhorar seu mundo, examinaremos brevemente o problema do suicídio. Isso ajudará a ilustrar como
a perspectiva sociológica pode esclarecer e, por vezes, subverter nossas crenças do senso comum.

A Perspectiva Sociológica

Ao analisar o suicídio sociologicamente, você pode testar nossa afirmação de que a sociologia ado-
ta uma perspectiva única, surpreendente e esclarecedora em relação aos eventos sociais. Afinal de
contas, o suicídio parece ser o ato anti-social e não-social supremo: é quase sempre desempenhado
na esfera privada, longe do olhar intrusivo do público e é relativamente raro. No ano de 2001, por
exemplo, havia menos de cinco suicídios para cada grupo de 100 mil brasileiros (Datasus, 2004).
Quando se pensa no porquê de as pessoas cometerem suicídio, é provável que se focalizem os esta-
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dos mentais dos indivíduos, e não o estado da sociedade. Em outros termos, o que normalmente nos
interessa são os aspectos da vida de indivíduos particulares que os levaram a ficar deprimidos ou rai-
vosos o suficiente para cometerem suicídio. De modo geral, não pensamos nos padrões de relações
sociais que podem estimular tais ações. Se a sociologia pode revelar as causas sociais ocultas de tal fe-
nômeno aparentemente anti-social e não-social, então deve haver algo de importante nela!

A Explicação Sociológica do Suicídio

No final do século XIX, o sociólogo francês Émile Durkheim, um dos pioneiros da disciplina, de-
monstrou que o suicídio é mais do que um simples ato individual de desespero, resultante de uma
desordem psíquica, como as pessoas acreditavam naquela época (Durkheim, 2000 [1897]). As ta-
xas de suicídio, conforme ele demonstrou, são fortemente influenciadas por forças sociais.
Durkheim construiu seu argumento baseado no exame da associação entre as taxas de suicídio
e as taxas de desordem psicológica de diferentes grupos. Conforme ele raciocinou, a idéia de que de-
sordens psicológicas causam o suicídio só poderia ser sustentada se as taxas de suicídio fossem altas
onde as de desordem psicológica fossem altas e baixas onde as de desordem psicológicas fossem baixas.
Contudo, suas análises das estatísticas governamentais de países europeus e dos prontuários hospitala-
res não mostraram nada nesse sentido. Ele descobriu que mais mulheres do que homens eram inter-
nadas em hospitais psiquiátricos; no entanto, quatro homens
cometiam suicídio para cada mulher que se matava. Os ju-
deus apresentavam as maiores taxas de desordem psicológica
entre os principais grupos religiosos da França; apesar disso,
eram eles que apresentavam as menores taxas de suicídio. As
desordens psicológicas ocorriam mais freqüentemente quan-
do as pessoas atingiam a maturidade, mas as taxas de suicídio
aumentavam à medida que a idade dos indivíduos avançava.
Bettmann/Corbis/StockPhotos

Assim, as taxas de suicídio e de desordem psicológi-


ca não aumentavam e diminuíam juntas. O que, então,
explicaria a variação nas taxas de suicídio? Durkheim argu-
mentou que as taxas de suicídio variam devido às diferen-
ças no grau de solidariedade social nos diferentes grupos.
Á De acordo com ele, quanto maior o grau de compartilha-
Émile Durkheim: (1858-1917) foi o primei- mento de crenças e valores entre os membros de um gru-
ro professor de sociologia, na França e é
freqüentemente considerado o primeiro po, e quanto mais freqüente e intensamente eles interagem,
sociólogo moderno. Em As Regras do Mé-
todo Sociológico (1895) e O Suicídio (1897), maior o grau de solidariedade social desse grupo. Além dis-
ele argumentou que o comportamento so, quanto maior o grau de solidariedade social, mais fir-
humano é moldado por “fatos sociais”, ou
pelo contexto social das pessoas. Na visão memente ancorados no mundo social estão os indivíduos
de Durkheim, os fatos sociais definem as
restrições e as oportunidades segundo e menos probabilidade haverá de cometerem suicídio se al-
as quais as pessoas devem agir. Durkheim guma adversidade se abater sobre eles. Em outros termos,
também esteve bastante interessado nas
condições que promovem a ordem social Durkheim esperava que grupos com graus mais altos de so-
nas sociedades “primitivas” e modernas e
explorou esse problema em profundidade lidariedade apresentassem menores taxas de suicídio do que
em obras como Da Divisão do Trabalho So- grupos com um baixo grau de solidariedade — pelo menos
cial (1893) e As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1912). até certo ponto (Figura 1.1).
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Suicídio
fatalista

Alta

Suicídio
Suicídio Alta
Suicídio altruísta
egoísta
Freqüência de suicídio

anômico

ão
u laç
R eg

Baixa

Baixa Integração Alta

Ϙ Figura 1.1 A teoria do suicídio de Durkheim


Durkheim argumentou que, à medida que o nível de solidariedade social (regulação e integração) aumenta, a taxa de
suicídio declina. Depois de um certo ponto, a taxa começa a subir. Daí as curvas em forma de U do gráfico. Durkheim
chamou o suicídio que ocorre em ambientes de baixa regulação social de “suicídio anômico”. O suicídio anômico ocor-
re quando as normas que governam o comportamento dos indivíduos são definidas de maneira vaga. Na situação
oposta, ou seja, em ambientes de alta regulação social, tendem a ocorrer suicídios que Durkheim denominou “suicí-
dio fatalista”. O fatalismo decorre de uma regulação ou normatização excessivas da vida social e que deixa pouco es-
paço para que os indivíduos manifestem suas paixões e necessidades. Já em contextos de baixa integração social, isto
é, em contextos nos quais a freqüência e intensidade das interações sociais são baixas, ocorre o “suicídio egoísta”. O
suicídio egoísta decorre de uma falta de integração do indivíduo à sociedade devido a laços sociais fracos com outros
indivíduos. Finalmente, o “suicídio altruísta” ocorre quando existe um grau muito alto de integração social, de forma
que as ações individuais dizem respeito aos interesses do grupo.

Para embasar seu argumento, Durkheim mostrou que adultos casados têm metade das chan-
ces de cometer suicídio em relação a adultos solteiros porque o casamento normalmente cria laços
sociais e um “cimento” moral que liga os indivíduos à sociedade. De maneira semelhante, as mu-
lheres são menos propensas a cometer suicídio do que os homens. Por quê? As mulheres geralmen-
te se envolvem mais nas relações sociais íntimas da vida familiar. Os judeus, Durkheim escreveu,
são menos propensos ao suicídio do que os cristãos. A razão? Séculos de perseguição transforma-
ram-nos em um grupo mais defensivo e socialmente coeso. Os idosos são mais predispostos do que
os jovens e os de meia-idade a dar cabo da própria vida quando se deparam com adversidades por-
que é mais provável que vivam sós, tenham perdido o cônjuge, parte de sua rede de amigos e que
não tenham emprego. De maneira geral, Durkheim afirmou: “O suicídio varia na razão inversa
do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte” (Durkheim, 2000 [1897]:
258). Observe que essa generalização não nos diz nada sobre o porquê de um indivíduo particular
dar fim à própria vida: essa é uma questão para a psicologia. No entanto, ela evidencia que a pro-
pensão de uma pessoa para o suicídio diminui conforme o grau em que está ancorada à sociedade.
Tal generalização também nos mostra algo surpreendente e unicamente sociológico sobre como e
por que as taxas de suicídio variam de grupo para grupo.

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