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Introdução à Filosofia de Heidegger

Alain Boutot

C) A unidade fundamental da obra: a questão do ser.

A obra heideggeriana assenta inteiramente numa única questão que lhe


confere uma unidade fundamental: a questão do ser. “Pensar é limitar-se a um único
pensamento que, um dia, permanecerá como uma estrela no céu do mundo”.
Quadro intelectual da época: neokantismo domina a filosofia alemã. Tentativa
de fazer a filosofia sair do impasse sem precedentes que se encontrava devido ao
desenvolvimento das ciências positivas. As ciências ocupavam a totalidade do domínio
do conhecível, de tal modo que a filosofia ficava, no sentido próprio do termo, sem
objeto. A totalidade do ente estava circunscrita pelas diversas disciplinas científicas. A
salvação vem de Kant, para quem a filosofia devia adotar o método transcendental da
Crítica da Razão Pura, e não se interessar pelo ente, mas unicamente pelo
conhecimento do ente. Tornava-se assim um conhecimento do conhecimento. Com a
diferença entre ser e ente, a filosofia reencontra um objeto. [Quando Heidegger
propõe a questão do ser, a filosofia era dominada pelo neokantismo, que abandona a
pretensão ao conhecimento, mas se coloca como tarefa apenas a crítica do
conhecimento, ou, em outras palavras, um conhecimento do conhecimento. Para
Heidegger, isso era diminuir a filosofia a uma serva das ciências.].
A meditação de Heidegger em direção ao ser como tal culmina numa tese
central: a da significação temporal do ser. O ser está compreendido dentro do
horizonte do tempo, o tempo é a verdade do ser. A tradição filosófica, sem o saber,
interpreta o ser dentro do horizonte do tempo: ser é ser constantemente presente.
Heidegger encontra indícios desta compreensão do ser como presença constante na
ontologia clássica e particularmente não determinação tradicional do ser como
substância. Substância designa aquilo que subsiste e permanece sob a multiplicidade
das determinações acidentais do ser. Heidegger, ao interpretar o ser no horizonte do
tempo, não impõe um novo sentido ao ser, antes recua até a significação antiga.
Capítulo II
A ontologia fundamental

1. O tratado O Ser e o Tempo

A) A estrutura da questão do ser.


Heidegger denuncia três preconceitos contra a questão do ser: O primeiro é o da
absoluta generalidade: o ser é o conceito mais geral e já está compreendido em toda
apreensão do ente. O segundo é o da sua não definibilidade que se deduz da sua
absoluta generalidade, se é verdade que toda definição se deve fazer pelo gênero
próximo e pela diferença específica. O ser, sendo o que há de mais geral, não pode
estar subsumido sob um gênero mais vasto do qual ele seria uma espécie. O terceiro é
o da sua evidencia que dispensa que se interrogue mais sobre este assunto... Para
Heidegger, longe de ser o mais evidente, é o que se deveria ser interrogado em
primeiro lugar. [A questão do ser foi esquecida: considerada muito geral, indefinível e
evidente].
Para Heidegger, se deve começar a investigação a partir do exame do ente. Mas
não de qualquer um. Deve-se começar pelo ente que põe a questão do ser: o Dasein...
A “Compreensão do ser” é ela mesma uma determinação do ser do ser-aí.”
Compreendendo o ser ele é a condição de possibilidade de todas as ontologias. O
esforço de Heidegger é então o seguinte: manifestar o sentido do ser, analisando antes
de tudo o ser que compreende o ser, isso é, o ente que nós somos (o ser-aí). [ Início da
investigação do ser pelo ente que somos nós, o Dasein: é quem compreende o ser,
mesmo que não articule essa compreensão de forma conceitual, ontológica].
Heidegger chama à análise preliminar do ser-aí a analítica existenciária. O ser-aí
possui, com efeito, um modo de ser original que o distingue de todos os outros entes.
Os outros entes estão sempre indiferentes ao seu ser; o ser-aí volta-se par ao seu ser.
Ele não subsiste simplesmente, mas existe. É o que Heidegger exprime em sua fórmula
célebre: “A essência do ser-aí reside na sua existência”. [O diferencial do Dasein é que
ele se volta para o seu ser; ele não simplesmente subsiste, mas ele existe].
A análise existenciaria não deve ser confundida com a descrição das escolhas
existenciais e onticas que guiam o ser-aí na sua vida concreta. Ela tem um alcance
ontológico e procura trazer à luz a estrutura essencial da existência, quer dizer, os
diferentes modos de ser do ser-aí, a que Heidegger chama os existenciarios (que se
opõem às categorias ontológicas tradicionais).

2. O ser-aí e a quotidianidade

A) O ser-no-mundo.

O ponto de partida da analítica existenciária é uma estrutura fundamental do ser


aí: o ser-no-mundo. Trata-se de um fenômeno unitário que comporta uma pluralidade
de momentos estruturais ligados: o mundo, o ente, e o ser em...
Dizer que o ser-aí está no mundo não significa que o homem subsista no meio da
totalidade dos entes e que o mundo o englobe a título de uma de suas partes. A
relação de inclusão de uma coisa na outra é uma relação categorial que não se aplica
ao ser-aí. O ser-no-mundo é um existenciário, uma determinação constitutiva do existir
humano, um modo de ser próprio do ser-aí. Isso quer dizer que só o ser-aí pode ter
algo como um mundo. O ente subsistente intramundano (pedra, animal) não tem um
mundo. Ele está no mundo sem mundo. [O ser-aí não subsiste entre os entes em um
mundo que o englobe. Ele tem um mundo. Os demais entes intramundanos estão em
um mundo, mas não têm um mundo; estão no mundo sem mundo].
O ser-no-mundo é uma relação originária. O ser-aí não existe primeiro isolado para,
em seguida, entrar em contato com o mundo. O fenômeno do ser-no-mundo não é
comparável ao conhecimento de um objeto por um sujeito. O ser-no-mundo precede e
torna possível todo conhecimento. [O ser-no-mundo é originário. Não há separação
sujeito-mundo para em seguida haver reconexão. O mundo faz parte da estrutura do
Dasein. A pergunta epistemológica só pode se colocar porque o Dasein já é no mundo
desde sempre].

B) O utensilio e o fenômeno do mundo


O ente ao qual o homem se liga no seu quotidiano não é de modo nenhum um
ente subsistente (Vorhanden), que seria percebido numa perspectiva teórica. Antes de
qualquer coisa, ele serve para. O ser-aí tem a ver antes com utensílios, enquanto
pragmata, objetos de uma práxis. O utensílio não é uma realidade subsistente, mas
está disponível para o uso (Zuhanden). Ele possui a estrutura do envio (remissão). Ele
envia (remete) sempre para alguma outra coisa, que remete a outra coisa, e assim
sucessivamente. A totalidade desses envios é precisamente o que Heidegger chama de
mundo. O mundo da preocupação quotidiana não é a soma de todos os entes
subsistentes, mas o horizonte significante sobre o fundo do qual o ser-aí preocupado
encontra o ente que tem de se haver. [Utensílios: remissão. O mundo é o horizonte
significante da totalidade desses envios e remissões].

C) O ser-com-outro e o A gente.

O ser-aí não encontra no mundo que o envolve apenas utensílios de que dispõe,
mas também outros ser-aí. O mundo do ser-aí é sempre um mundo comum... Mesmo
só, sem nenhum outro ser-aí nas suas proximidades, o ser-aí está sempre com-outro. A
solidão só tem sentido para um ser que está fundamentalmente com os outros. Os
outros só podem faltar para um ser-com. [Ser-aí é ser-com].
Na quotidianidade, o ser-aí mantém, entretanto, uma relação particular com os
outros. Ele está, podemos dizer, monopolizado pelos outros e determina-se sem cessar
na relação com eles; mantém-se sob influência do outro e é desapossado do seu ser si
mesmo. “Não é ele mesmo que é; os outros subtraem-lhe o ser”. O ser-aí cai sob o que
Heidegger chama de ditadura de “A gente”. [No cotidiano, o ser-aí é monopolizado
pelos outros. É desapossado do seu ser. Cai sob a ditadura de A gente].
O ser-aí não se determina mais por ele próprio, mas a partir daquilo que a gente
diz: diverte-se como a gente, julga como a gente, lê como a gente, etc. O “a gente”
alivia o ser-aí do seu ser. O ente que na existência quotidiana está no mundo não é o
ser-aí autêntico, mas uma modalidade inautêntica. [Ser-aí autêntico e inautêntico].
A dispersão do ser-aí na gente é aquilo que Heidegger chama “a queda” (Verfallen)
do ser-aí. Essa queda não é pejorativa, mas parte da constituição ontológica do ser-aí.
O ser-aí, enquanto caído, evita seu poder ser, refugia-se no falatório, na curiosidade,
ou no equívoco [queda: evitar o poder ser, refúgio no falatório e na curiosidade].

D) O ser-em

Depois do mundo e do ente que está no mundo, o ser-em é o terceiro momento


estrutural do ser-no-mundo. Corresponde ao momento da abertura do próprio
mundo. O ser-aí revela o mundo de um modo sempre diferente, segundo três
existenciários: disposição (Befindlichkeit), o compreender (Verstehen) e o discurso
(Rede).

a) Disposição: humor ou tonalidade afetiva que possuímos alternadamente, que


faz o mundo parecer desta ou daquela maneira. Revela o ser-lançado do
Dasein, sua facticidade, ou seja, o fato de ele estar lançado num mundo desde
sempre. [Disposição: tonalidade do humor. Ser lançado].
b) O compreender: compreendendo, o ser-aí descobre “onde” está consigo
mesmo. O compreender possui a estrutura fundamental do projeto.
Compreendendo, o ser-aí projeta não somente o mundo, enquanto horizonte
significante de preocupação quotidiana, mas também o seu próprio poder-ser,
quer dizer, aquilo para que ele está sempre já decidido [Compreender:
estrutura de projeto, do poder-ser].
c) O discurso: o ser-aí é discursivo, articula o que compreende. A articulação
daquilo que o ser-aí discerne no compreender em disposição não se exprime,
necessariamente, por palavras. Ela precede a linguagem articulada da qual é
condição de possibilidade. O discurso efetivo, a palavra, repousa sobre o
discurso como existenciário do ser-aí. [Discurso: articulação do compreender.
Não necessariamente em palavras. É condição ontológica da palavra].

E) O cuidado

No fim dessa análise, o ser-aí surge como um ser lançado em projeto, no qual
entra, no seu ser, em virtude do seu próprio poder ser. Heidegger reúne a
multiplicidade destes momentos constitutivos numa estrutura unitária: o cuidado (die
Sorge), que representa a estrutura fundamental do ser-aí enquanto ser-no-mundo. O
cuidado unifica, ao articulá-los, os três caracteres ontológicos fundamentais do ser-aí:
1) o ser-aí face a si mesmo (ser em projeto em direção ao próprio poder-ser); 2) o ser
já no mundo (facticidade); 3) o ser-junto do ente encontrado no mundo (a queda).
Estas três determinações do ser são cooriginárias e constituem juntas a totalidade da
estrutura ontológica do ser-aí. O ser para o ser-aí quer dizer: ser já face a si mesmo em
(mundo) como ser junto (do ente encontrado no mundo). O cuidado não tem nada a
ver com zelo; é uma determinação ontológico-existencial. Ele precede toda a conduta
afetiva do ser-aí.

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