Você está na página 1de 21

O FALSEAMENTO E A METODOLOGIA DOS

PROGRAMAS DE PESQUISA CIENTÍFICA 1

IMRE LAKATOS
London School of Economics

1. Ciência: razão ou religião?

2. Falibilismo versus falseacionismo.


(a) Falseacionismo dogmático (ou naturalista). A base empírica.
(b) Falseacionismo metodológico. A ‘base empírica’.
(c) Falseacionismo sofisticado versus falseacionismo ingênuo. Mudanças
progressivas e degenerativas de problemas.

3. Uma metodologia dos programas de pesquisa científica.


(a) Heurística negativa; o "núcleo” do programa.
(b) Heurística positiva; a construção do "cinto de proteção" e a relativa
autonomia da ciência teórica.
(c) Duas ilustrações: Prout e Bohr.
(cl) Prout: um programa de pesquisa que progride num oceano de
anomalias.

1. Este ensaio é uma versão consideravelmente melhorada de meu tralho “Criticism


and the Methodology of Scientific Research Programmes 1 ’, de 1968, e uma tosca versão de meu
trabalho de 1973. Algumas partes do primeiro foram aqui reproduzidas sem alteração com
licença do organizador das Proceedings oj the Aristoteiian Society. Na preparação da nova
versão recebi muita ajuda de Tad Beckman, Colin Howson, Clive Kilmister, Larry Laudan,
Eliot Leader, Alan Musgrave, Michael Sukale, John Watkins e fohn Worrall.

109
(c2) Bohr: um programa de pesquisa que progride sobre
fundamentos inconsistentes.
(d) Um novo olhar dirigido a experiências cruciais: o fim da
racionalidade instantânea.
(dl) A experiência Michelson-Morley.
(d2) As experiências Lummer-Pringsheim.
(d3) Desintegração-beta versus leis da conservação.
(d4) Conclusão. O requisito do desenvolvimento contínuo.
4. O Programa de pesquisa popperiano versus o programa de pesquisa kuhniano.
Apêndice: Popper, falseacionismo e a ‘‘tese Duhem-Quine”.

1. CIÊNCIA: RAZÃO OU RELIGIÃO?

Durante séculos o conhecimento significou conhecimento provado


— provado pela força do intelecto ou pela prova dos sentidos. A sa bedoria e a
integridade intelectual exigiam que o homem abrisse mão das afirmativas não -
provadas e minimizasse, até em pensamento, o hiato existente entr e a
especulação e o conhecimento estabelecido. A força demonstrativa do intelecto
ou dos sentidos foi posta em dúvida pelos céticos há mais de dois mil anos; mas
eles foram intimidados e confundidos pela glória da física newtoniana. Os
resultados de Einstein tornaram a virar a mesa e, agora, pouquíssimos filósofos
ou cientistas ainda pensam que o conhecimento científico é, ou pode ser, o co -
nhecimento demonstrado. Poucos compreendem, porém, que, com isso, toda a
estrutura clássica dos valores intelectuais desmorona e precisa ser substituída:
não se pode simplesmente jogar por terra o ideal da verdade demonstrada —
como fazem alguns empiristas lógicos — reduzindo-o ao ideal da “verdade
provável” 2 nem — como fazem alguns sociólogos do conhecimento — à
“verdade pelo consenso [mutável]”. 3

2. O principal protagonista contemporâneo do ideal da “verdade prová vel” é Rudolf


Carnap. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf. “Changes in the
Problem of the Inductive Logic”, de Lakatos, de 196 8.

3. Os principais protagonistas contemporâneos do ideal da “verdade por consenso”


são Polanyi e Kuhn. Sobre os antecedentes históricos e uma crítica dessa posição, cf.
Impersonal Knowledge, de Musgrave, 1969, e a crítica feita por Musgrave do trabalho de
Ziman: “Public Knowledge: An Essay Concer - ning the Social Dimensions of Science”, 1969.

110
O mérito de Popper baseia-se principalmente no fato de haver ele
compreendido todas as implicações do colapso da teoria científica mais bem
corroborada de todos os tempos: a mecânica newtoniana e a teoria newtoniana da
gravitação. Na sua opinião, a virtude não está na cautela em evitar erros, mas na
implacabilidade com que se eliminam esses erros. Audácia nas conjeturas de um
lado e austeridade nas refutações de outro: essa é a receita de Popper. A
honestidade intelectual não consiste em tentar alguém entrincheirar-se ou firmar
sua posição demonstrando-a (ou probabilizando-a) — a honestidade intelectual
consiste antes em especificar precisamente as condições em que uma pessoa está
disposta a renunciar à sua posição. Marxistas e freudianos comprometidos
recusam-se a especificar tais condições: essa é a marca distintiva da sua
desonestidade intelectual. A crença pode ser uma fraqueza biológica
lamentavelmente inevitável que deve ser mantida sob o controle da crítica: mas o
compromisso, para Popper, é um crime sem limites.
Kuhn já pensa de maneira diferente. Ele também rejeita a idéia de que a
ciência cresce pela acumulação de verdades eternas. 4 Também se inspira na
derrubada da física newtoniana levada a cabo por Einstein. O seu principal
problema também é a revolução científica. Mas ao passo que, de acordo com
Popper, a ciência é “revolução permanente” e a crítica é o cerne do
empreendimento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excepcional e, na
verdade, extracientífica, e a crítica, em épocas “normais”, é maldição. Ao parecer
de Kuhn, com efeito, a transição da crítica para o compromisso assinala o ponto
em que o progresso — e a ciência “normal” — principia. Para ele, a idéia de que
na “refutação” se pode exigir a rejeição (a eliminação de uma teoria) é
falseacionismo “ingênuo”. A crítica da teoria dominante e propostas de novas
teorias só são permitidas nos raros momentos de “crise”. Esta última tese kuhni ana
tem sido amplamente criticada 5

4. Ele apresenta, com efeito, seu livro The Structure of Scientific Revo- lutions, de 1962,
argumentando contra a idéia do “desenvolvimento por acumulação” do crescimento científico.
Intelectualmente, porém, ele deve mais a Koyré do que a Popper. Koyré mostrou que o positivismo
proporciona má orientação ao historiador da ciência, pois a história da física só pode ser com -
preendida no contexto de uma sucessão de programas “metafísicos” de pes quisa. Assim sendo, as
mudanças científicas estão ligadas a vastas revoluções metafísicas cataclísmicas. Kuhn desenvolve
essa mensagem de Burtt e Koyré

e o enorme êxito do seu livro deveu-se, em parte, à sua crítica objetiva e direta da historiografia
justificacionista — que criou sensação entre os cientistas e historiadores comuns da ciência, ainda
não alcançados pela mensagem de Burtt, Koyré (nem pela de Popper). Infelizmente, porém, sua
mensagem tinha implicações autoritárias e irracionalistas.

111
e não a discutirei. O que me interessa é que Kuhn, tendo reconhecido o fracasso do
justificacionismo e do falseacionismo no proporcionar explicações racionais do
desenvolvimento científico, parece agora recair no irracionalismo.
Para Popper a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser
racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn a
mudança científica — de um “paradigma” a outro — é uma conversão mística, que
não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da
psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança
religiosa. / • '
O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um mero ponto
técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem
implicações não só para a física teórica mas também para as ciências sociais
subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência
há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia
vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais:
a verdade está no poder. Assim a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não-
intencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos
(“estudantes-revolucionários”).
Neste ensaio mostrarei primeiro que na lógica da descoberta científica de
Popper se fundem duas posições diferentes. Kuhn só compreende uma delas, o
“falseacionismo ingênuo” (prefiro a expressão “falseacionismo metodológico
ingênuo”); entendo que a crítica que ele faz dele é correta, e até a reforçarei. Kuhn,
no entanto, não compreende uma posição mais sofisticada cuja racionalidade não se
baseie no falseacionismo “ingênuo”. Tentarei explicar — e reforçar ainda mais — a
posição mais forte de Popper que, creio eu, escapa às críticas de Kuhn e apresenta
as revoluções científicas não como se constituíssem conversões religiosas, mas
como progresso racional.

2. FALIBILISMO VERSUS FALSEACIONISMO.

Para ver com maior clareza as teses conflitantes, precisamos reconstruir a


situação do problema tal como se apresentava na filosofia da ciência após o colapso
do “justificacionismo”.

5. Cf., por exemplo, as contribuições de Watkins e Feyerabend para este volume.

112
pode ser refutada por quatro observações; por conseguinte, o falsea cionista
dogmático a considerará mais científica ainda. A culminância da cientificidade
será uma teoria como “Todos os cisnes são brancos”, que pode ser refutada por
uma única observação. Por outro lado, ele rejeitará todas as teorias probabilísticas
juntamente com as de Newton, Maxwell, Einstein, por não-científicas, uma vez
que nenhum número finito de observações poderá refutá-las.
Se aceitarmos o critério de demarcação do falseacionismo dog mático, e
também a idéia de que os fatos podem provar proposições “fatuais”, teremos de
declarar que as teorias mais importantes, se não todas elas, propostas na história
da ciência são metafísicas, que a maior parte do progresso aceito, se não todo ele,
é pseudoprogresso, que quase todo, se não todo, o trabalho feito é irracional. Se,
todavia, ainda aceitando o critério de demarcação do falseacionismo dog mático,
negarmos que os fatos podem provar proposições, acabaremos por certo no mais
completo ceticismo: nesse caso, toda ciência será, sem dúvida, metafísica
irracional e deverá ser rejeitada. As teorias científicas não são apenas igualmente
impossíveis de ser provadas, e igualmente improváveis, mas também são igualmente
irrefutáveis. Mas_o reconhecimento de que não só as proposições teóricas mas
todas as proposições em ciência são falíveis, significa o colapso total de todas as
formas de justificacionismo dogmático como teorias da racionalidade científica.

(b) Falseacionismo metodológico. A "base empírica”.


O colapso do falseacionismo dogmático sob o peso dos argu mentos
falibilísticos nos traz de volta ao início. Se todas as afirmações científicas são
teorias falíveis, só podemos criticá-las por serem inconsistentes. Mas nesse caso,
em que sentido, se houver algum, a ciência é empírica? Se as teorias científicas
não podem ser provadas, ''riem probabilizadas, nem refutadas, os céticos parecem
ter finalmente razão: a ciência não passa de uma vã especulação e não existe
progresso no conhecimento científico. Ainda podemos opor -nos ao ceticismo?
Podemos salvar a crítica científica do falibilismo? É possível ter uma teoria
falibilística do progresso científico? Em particular, se a crítica científica é falível,
baseados em que poderemos algum dia eliminar uma teoria?
Uma resposta sumamente intrigante nos é fornecida pelo falseacionismo
metodológico. O falseacionismo metodológico é uma classe de
convencionalismo;’portanto, a fim de compreendê -lo, precisamos primeiro
discutir o convencionalismo em geral.

125
Há uma demarcação importante entre as teorias "passivista” e "ativista” do
conhecimento. Sustentam os “passivistas” que o verda deiro conhecimento é a
marca impressa pela Natureza numa mente perfeitamente inerte: a atividade
mental só pode resultar em parcialidade e distorção. A escola passivista mais
influente é o empirismo clássico. Os “ativistas” sustentam que não podemos ler o
livro da Natureza sem atividade mental, sem interpretá -lo à luz das nossas
expectativas ou teorias. 35 Agora os' ativistas conservadores sustentam que nós
nascemos com nossas expectativas básicas; com elas transformamos o mundo no
“nosso mundo” mas, depois, temos de viver para sempre na prisão do nosso
mundo. A idéia de que vivemos e morremos na prisão de nossos “referenciais
conceituais” foi desenvolvida primeiramente por Kant; os kantianos pessimistas
pensavam que o mundo real é para sempre incognoscível por causa dessa pri são,
ao passo que os kantianos otimistas pensavam que Deus criou nosso referencial
conceituai para ajustá-lo ao mundo. 36 Mas os ativistas revolucionários acreditam
que os referenciais conceituais podem ser desenvolvidos e também substituídos
por novos e melhores referenciais; somos nós que criamos nossas “prisões” e
também podemos, com espírito crítico, demoli-las. 37
Novos passos do ativismo conservador para o ativismo revolucionário
foram dados por Whewell e depois por Poincaré, Milhaud e Le Roy. Whewell
afirmava que as teorias são desenvolvidas por ensaio-e-erro — nos “prelúdios das
épocas indutivas” — por uma longa consideração essencialmente a priori, que ele
denominava “intuição progressiva”. As “épocas indutivas” são seguidas por
“seqüelas das épocas indutivas”: desenvolvimentos cumulativos de teorias

35. Essa demarcação — e terminologia — deve-se a Popper; cf. especialmente sua


Logik der Forschung, 1934, seção 19, e seu The Open Society and its Enemies, 1945, capítulo
23 e a nota de pé de página n.° 3 do capítulo 25.
36. Nenhuma versão do ativismo conservador explicou por que a teoria gravitacional
de Newton deveria ser invulnerável; os kantianos restringiam -se à explicação da tenacidade da
geometria euclidiana e da mecânica newtoniana. A respeito da gravitação e da ótica
newtonianas (ou outros ramos da ciência), assumiam uma posição ambígua e, ocasionalmente,
indutivista.
37. Não incluo Hegel entre os "ativistas revolucionários”. Para Hegel e seus
seguidores, a mudança verificada nas referências conceptuaís é um pro cesso predeterminado,
inevitável, em que a criatividade individual ou a crí tica racional não desempenham um papel
essencial. Os que correm na frente estão tão errados quanto os que ficam atrás dessa
"dialética”. O homem inteligente não é o que cria uma “prisão" melhor, nem o que demole
com espírito crítico a prisão velha, mas o que está sempre em harmonia com a história. É
assim que a dialética explica a mudança sem crític a.

126
auxiliares. 38 Poincaré, Milhaud e Le Roy eram avessos à idéia de prova pela
intuição progressiva e preferiam explicar o continuado êxito histórico da
mecânica newtoniana por uma decisão metodológica tomada por cientistas: depois
de um período considerável de êxito empírico inicial, os cientistas podem decidir
não permitir que a teoria seja refutada. Uma vez tomada essa decisão, resolvem
(ou dissolvem) as aparentes anomalias por meio de hipóteses auxiliares ou outros
“estratagemas convencionalistas”. 39 Esse convencionalismo conservador, no
entanto, tem a desvantagem de rios incapacitar para sair das prisões que nós
mesmos nos impusemos, depois de se haver escoado o primeiro período de
ensaio-e-erro e de haver sido tomada a grande decisão. Ele não pode resolver o
problema da eliminação das teorias que triunfaram durante um longo período. De
acordo com o convencionalismo conservador, as experiêncais podem ter força
bastante para refutar teorias jovens, mas não têm força para refutar teorias velhas,
estabelecidas: à proporção que a ciência cresce, a força da evidência empírica
diminui.40

Os críticos de Poincaré recusaram-se a aceitar sua idéia de que, embora os


cientistas construam seus referenciais conceituais, chega uma ocasião em que
esses referenciais se transformam em prisões que não podem ser demolidas. Essa
crítica deu origem a duas escolas rivais

38. Cf. Whewell, History of the Inductive Sciences, from the Eearliest to the Present
Time, 1837; Philosophy of the Inductive Sciences, Founded upon th e History, 1840; e Novum
Organum Renovatum, 1858.
39. Cf. especialmente Poincaré, “Les géometries non euclidiennes”, 1891; e La Science
et l’Hypothèse, 1902; Milhaud. "La Science Rationelle”, 1896; e Le Roy, "Science et
Philosophie”, 1889, e “Un Positivisme Nouveau”, 1901. Foi um dos principais méritos
filosóficos dos convencionalistas dirigir os refletores para o fato de que qualquer teoria pode
ser salva das refutações por “estratagemas convencionalistas”. (A expressão "estratagema
convencionalista” é de Popper, que discute com espírito crítico o convencionalismo de Poincaré
em sua Logik der Forschung, especialmente nas seções 19 e 20.)

40. Poincaré elaborou primeiro o seu convencionalismo somente em re lação à


geometria (cf. o seu ensaio “Les géometries non euclidiennes”). Depois Milhaud e Le Roy
generalizaram a idéia de Poincaré para cobrir todos os ramos da teoria física aceita. La
Science et l’Hypothèse de Poincaré começa com uma vigorosa crítica do bergsoniano Le Roy,
contra o qual ele defende o caráter empírico (falseável ou “indutivo”) de toda a física, com
exceção da geometria e da mecânica. Duhem, por seu turno, criticou Poincaré, em cuja
concepção havia uma possibilidade de derrubar até a mecânica newtoniana.

127
de convencionalismo revolucionário: o simplicismo de Duhem e o falseacionismo
metodológico de Popper. 41
Duhem aceita a posição dos convencionalistas de que nenhuma teoria física
desmorona jamais sob o peso de “refutações”, mas afiança que ela ainda pode
desmoronar sob o peso de “reparos contínuos e de inúmeros esteios emaranhados”,
quando as “colunas comidas pelos vermes” não podem suportar por mais tempo “o
sdifício vacilante”; 42 a teoria perde sua simplicidade original e precisa ser subs-
tituída. Mas o falseamento é entregue então ao gosto subjetivo ou, na melhor das
hipóteses, à moda científica, e deixa-se muita margem à adesão dogmática a uma
teoria favorita. 13
Popper dispôs-se a encontrar um critério que fosse, ao mesmo tempo, mais
objetivo e mais agressivo. Ele não poderia aceitar a debilitação do empirismo,
inerente até ao enfoque de Duhem, e propôs uma metodologia que faculta às
experiências serem poderosas até na ciência “madura”. O falseacionismo
metodológico de Popper é convencionalista e falseacionista a um tempo, mas ele
“difere dos convencionalistas [conservadores] por sustentar que ps enunciados
decididos por consenso não são [espaço-temporalmente] universais mas [espaço-
temporalmente] singulares” 44 ; e difere do falseacionista dogmático por sustentar
que o valor-de-verdade de tais afirmações não pode ser provado por fatos mas, em
alguns casos, pode ser decidido por consenso. 45

41. Os loci classici são La Théorie Physique, Son Objel et Sa Structure, 1905, de
Duhem, e a Logik der Forschung de Popper. Duhem não era um convencionalista
revolucionário coerente. De maneira muito semelhante a Whe- well, achava que as mudanças
conceptuais são apenas preliminares da “classificação natural" final — ainda que talvez
distante: “Quanto mais se aperfeiçoa uma teoria, tanto mais apreendemos que a ordem lógica
em que ela arranja as leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontoiógica.” Em particular,
recusou-se a ver a mecânica de Newton realmente desmoronando e caracterizou a teoria da
relatividade de Einstein como a manifestação de uma “c orrida frenética e febril no encalço de
uma idéia nova”, que “converteu a física num verdadeiro caos, onde a lógica se desgarra e o
bom senso foge espavorido” (Prefácio — de 1914 — para a segunda edição de sua obra
supracitada).

42. Duhem, La Théorie Physique, Son Objet et Sa Structure, 1905, capítulo VI, seção
10.
43. Sobre uma discussão adicional do convencionalismo, veja mais adiante, pp. 228-
233.
44. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.
45. Nesta seção discuto a variante “ingênua’’ do falseacionismo metodológico de
Popper. Desse modo, em todo o correr da seção, “falseacionismo metodológico” quer dizer
“falseacionismo metodológico ingênuosobre essa "ingenuidade”, cf. mais adiante, pp. 140-141.

128
O convencionalista conservador (ou “justificacionista metodológico”, se se
quiser) torna não-falseáveis por decreto algumas teorias (espaço-temporalmente)
universais, que se distinguem por seu poder explanatório, sua simplicidade ou sua
beleza. O nosso convencionalista revolucionário popperiano (ou “falseacionista
metodológico”) torna não-falseáveis por decreto alguns enunciados (espaço- -
temporalmente) singulares que se podem distinguir pelo fato de existir ná ocasião
uma “técnica pertinente” tal que “quem quer que a tenha aprendido” será capaz de
decidir que o enunciado é “aceitável”. 46 Um enunciado dessa ordem pode ser
cognominado “observa- cional” ou “básico”, mas apenas entre aspas. 47 Com
efeito, a própria seleção de todos esses enunciados é uma questão de decisão, que
não se baseia em considerações exclusivamente psicológicas. Essa decisão é então
seguida de uma segunda espécie de decisão relativa à separação do conjunto de
enunciados básicos aceitos do resto.
Essas duas decisões correspondem às duas suposições do falsea- cionismo
dogmático. Mas há diferenças importantes. Acima de tudo, o falseacionista
metodológico não é um justificacionista, não tem ilusões a respeito de “provas
experimentais” e tem plena consciência da falibilidade das suas decisões e dos
riscos que está assumindo.
O falseacionista metodológico.compreende que nas “técnicas experimentais”
do cientista estão envolvidas teorias falíveis, 48 à “luz” das quais ele interpreta os
fatos. Apesar disso, “aplica” essas teorias, encara-as no contexto dado, não como
teorias que estão sendo testadas, mas como t conhecimento não-problemático de
fundo “que nós aceitamos (tentativamente) como não-problemático enquanto testa-
mos a teoria”. 49 Ele pode chamar a essas teorias — e as afirmações cujo valor-de-
verdade decide à sua luz — “observacionais”: mas isto é apenas um modo de falar
que herdou do falseacionismo naturalista. 50 O falseacionista metodológico usa
nossas teorias mais bem sucedidas como extensões dos nossos sentidos e amplia a
extensão das

46. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 27.


47. Op. cit. seção 28. Sobre a não-basicidade desses enunciados metodo- logicamente
"básicos”, cf. por exemplo Popper, Logik der Forschung, 1934, passim e Popper, The Logic of
Scientific Discovery, 1959, p. 35, nota de rodapé n.” 2.

48. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, fim da seção 26 e também seu ensaio
“Remarks on the Problems of Demarcation and Rationality”, pp. 291 -2.

49. Cf. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 390.


50. Efetivamente, Popper, cauteloso, colocou “observacionais” entre as pas; cf. sua
Logik der Forschung, seção 28.

129
teorias que podem ser aplicadas no procedimento de teste muito além da gama de
teorias estritamente observacionais do falseacionista dogmático. Imaginemos, por
exemplo, que se descubra uma grande ra- dioestrela com um sistema de
radioestrelas satélites descrevendo órbitas ao seu redor. Gostaríamos de testar
alguma teoria gravitacional nesse sistema planetário — assunto de considerável
interesse. Imaginemos agora que Jodrell Bank consiga proporcionar um conjunto
de coordenadas espaço-temporais dos planetas que contradiga a teoria.
Tomaremos esses enunciados como falseadores potenciais. Está claro que tais
enunciados básicos não são “observacionais” no sehtido usual mas apenas
‘“observacionais”’. Eles descrevem planetas que nem o olho humano nem os
instrumentos óticos podem alcançar. Chega-se ao seu valor-de-verdade por meio
de uma “técnica experimental”. Essa “técnica experimental” baseia-se na
“aplicação” de uma teoria bem corroborada de radiótica. Chamar
“observacionais” a essas afirmações outra coisa não é senão um modo de dizer
que, no contexto do seu problema, isto é, no procedimento de teste de nossa
teoria gravitacional, o falseacionista metodológico usa a radiótica sem espírito
crítico, como “conhecimento de fundo”. A necessidade de decisões para demarcar
a teoria que está sendo testada do conhecimento de fundo não-problemático é um
51
traço característico dessa classe de falseacionismo metodológico . (Esta situação, na
verdade, não difere da “observação” de Galileu dós satélites de Júpiter: além
disso, como assinalaram com razão alguns contemporâneos de Gali leu, ele se
apoiava numa teoria ótica virtualmente inexistente — então menos corroborada e
até menos bem expressa do que a radiótica atual. Por outro lado, chamar
“observacionais” aos relatos do nosso olho humano só indica que nos “apoiamos”
em alguma vaga teoria fisiológica da visão humana. 52 )
\ Essa consideração mostra o elemento convencional em conceder
— num dado contexto — um status (metodologicamente) “observa- cional” a
uma teoria. 53 De maneira semelhante, há um considerável elemento convencional
na decisão relativa ao valor-de-verdade real de um enunciado básico que fazemos
depois de haver decidido que

51. Essa demarcação desempenha um papel não só no primeiro mas também no


quarto tipo de decisões do falseacionista metodológico. (Sobre a quarta decisão, veja mais
adiante, p. 134.)
52. Sobre uma discussão fascinante, veja Feyerabend, “Problems of Em - piricism
II”, 1969.
53. Ficamos a imaginar se não seria melhor acabar com a terminologia do
falseacionismo naturalista e rebatizar as teorias observacionais com o nome de “teorias de
pedra de toque” (“touchstone theories”).

130
“teoria observacional” aplicar. Uma única observação pode ser o resultado
fortuito de algum erro trivial; no intuito de reduzir tais riscos, os falseacionistas
metodológicos prescrevem algum controle de segurança. O mais simples desses
controles consiste em repetir a experiência (o número de vezes é uma questão de
convenção), fortificando assim o falseador pçtencial por meio de uma “hipótese
fal- seadora bem corroborada”. 54
O falseacionista metodológico também assinala que, na realida de, essas
convenções são institucionalizadas e endossadas pela comunidade científica; a
lista de falseadores “aceitos” é fornecida pelo veredito dos cientistas
experimentadores. 55
É assim que o falseacionista metodológico estabelece sua “base empírica”.
(Ele usa aspas a fim de “dar uma ênfase irônica” à expressão. 56 ) Essa “base”
dificilmente poderá ser chamada de “base” pelos padrões justificacionistas: não
há nada provado no que diz respeito a ela — ela denota “estacas colocadas em um
pântano”. 57 Com efeito, se essa “base empírica” colide com uma teoria, a teoria
pode ser dita “falseada”, mas não é falseada no sentido em que é refutada. O
“falseamento” metodológico é muito diferente do falseamento dog mático. Se uma
teoria for falseada, provou-se que é falsa; se for “falsificada”, ainda poderá ser
verdadeira. Se seguirmos essa espécie de “falseamento” pela “eliminação” real de
uma teoria, poderemos acabar eliminando uma teoria verdadeira e aceitando uma
falsa (possibilidade totalmente repugnante ao justificacionista antiquado).
Não obstante, é exatamente isso que o falseacionista metodo- , lógico nos
recomenda que façamos. O falseacionista metodológico compreende que, se
quisermos conciliar o falibilismo com a racionalidade (não-justificacionista),
precisamos encontrar um jeito de eliminar algumas teorias. Se não o conseguirmos,
o crescimento daj ciência não será mais do que um caos cada vez maior.
Por conseguinte, o falseacionista metodológico sustenta que “[se quisermos]
fazer funcionar o método de seleção por eliminação

54 Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 22. Muitos filósofos passaram por
alto a importante restrição de Popper segundo a qual umenunciado b
hipótese falseadora bem corroborada.

55. Cf. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30.


56. Popper, Conjectures and Refutations, 1963, p. 387.
57. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 30; cf. também a seção
29: “A Relatividade dos Enunciados Básicos”.

131
e assegurar a sobrevivência apenas das teorias mais aptas, devemos tornar severa
sua luta pela vida”. 58 Depois que uma teoria tiver sido falseada a despeito do
risco envolvido, precisa ser eliminada: “[com as teorias só trabalhamos] enquanto
elas suportam os testes”. 59 A eliminação deve ser metodologicamente conclusiva:
“Em geral encaramos um falseamento intersubjetivamente testável como definiti-
vo. . . Uma avaliação corroborativa feita em data ulterior. .. pode substituir um
60
grau positivo de corroboração por um negativo, mas não vice-versa. Essa é a
explicação do falseacionista metodológico sobre como sair de um atoleiro: “É
sempre a experiência que nos impede de seguir um caminho que não conduz a
parte alguma.” 61
O falseacionista metodológico separa a rejeição da refutação, que o
falseacionista dogmático havia fundido. 62 É um falibilista, mas o falibilismo não
lhe enfraquece a posição crítica; converte proposições falíveis numa “base” para
uma política de linha dura. Com esse pretexto, propõe um novo critério de
demarcação: somente são “científicas” as teorias — isto é, proposições não-
“observacionais”
— que proíbem certos estados de coisas “observáveis” e, portanto, podem ser
“falseadas” e rejeitadas; ou, em poucas palavras, uma teoria é "científica” (ou
",aceitável”) se tiver uma “base empírica”. Esse critério põe de manifesto, com
nitide#, a diferença entre o falseacionismo dogmático e o metodológicoí 63

58. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 134. Em outros lugares, Popper
enfatiza que esse método não “assegura” a sobrevivência do mais apto. A seleção natural
pode desandar: é possível que os mais aptos pereçam e monstros sobrevivam.

59. Popper, “Induktionslogik und Hypothesenwahrscheinlichkeit”, 1935.


60. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.
61. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 82.
62. Essa espécie de “falseamento” metodológico, à diferença do falsea
mento dogmático (refutação), é uma idéia pragmática, metodológica. Mas en tão que é o que
devemos exatamente entender por ela? Responde Popper — que porei de lado — que o
“falseamento” metodológico indica a "necessidade urgente de su bstituir uma hipótese
falseada por uma hipótese melhor” (Popper, The Logic of Scientific Discovery, 1959, p. 87,
nota de rodapé n.° 1). Eis aí uma excelente ilustração do processo que descrevi em meu
ensaio “Proofs and Refutations”, de19634, por cujo intermédio a discussãocríticatransf
problema original sem mudar necessariamente os velhostermos. Os subprodu
tos desses processos são transferências de significado. Sobre uma discussão adicional, cf.
mais adiante, à p. 149, nota de rodapé n.° 127, e p. 193, nota de rodapé n.° 245.

63. O critério de demarcação do falseacionista dogmático era o seguinte: uma teoria


será “científica” se tiver uma base empírica (veja mais acima, à p. 118).

132
Esse critério metodológico de demarcação é muito mais liberal do que o
dogmático. O falseacionismo metodológico abre novas ave nidas para a crítica: um
número muito maior de teorias pode ser qualificado de “científico”. Já vimos que
existem mais teorias “obser- vacionais” do que teorias observacionais 04 e,
portanto, há mais enunciados “básicos” do que enunciados básicos. 05 Além disso,
as teorias probabilísticas fazem jus agora à qualificação de “científicas”; em bora
não sejam falseáveis, podem facilmente tornar-se “falseáveis” por uma decisão
adcional (de terceiro tipo) que o cientista pode tomar especificando certas regras
de rejeição capazes de tornar a evidência estatisticamente interpretada
“inconsistente” com a teoria pro- babilística”. r,fi
Mas nem essas três decisões são suficientes para permitir -nos “falsear” uma
teoria que não pode explicar nada “observável” sem uma cláusula ceteris
paribus.67 Nenhum número finito de “observações” será bastante para “falsear”
uma teoria nessas condições. Entretanto, se for esse o caso, como se pode
razoadamente defender uma metodologia que afirma “interpretar leis naturais ou
teorias como ... enunciados parcialmente decidíveis, isto é, que não são, por
razões lógicas, verificáveis mas, de um modo assimétrico, falseá veis. ..”? 158
Como se podem interpretar teorias, como a teoria newto-

64. Veja mais acima. pp. 118-119.


65. A propósito, em sua Logik der Forschung, 1934, Popper não parece ter visto com
clareza este ponto. Escreve ele: “É reconhecidamente possível interpretar o conceito de um
evento observável num sentido psicologista. Em- prego-o, porém, num sentido tal que ele bem
pode ser substituído por ‘um vento que envolve posição e movimento de corpos físicos
macroscópicos' ”, (Logik der Forschung, seção 28.) À luz da nossa discussão, por exemplo, po-
demos considerar um posítron que passa através de uma câmara de Wilson no momento to
como um evento “observável”, a despeito do caráter não -ma- croscópico do posítron.

66. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 68. Com efeito, esse falseacionismo
metodológico é a base filosófica de alguns dos desenvolvimentos mais interessantes da
estatística moderna. Todo o enfoque Neyman-Pearson repousa no falseacionismo metodológico.
Cf. também Braithwaite, Scientific Explanation, 1953, capítulo VI. (Infelizmente, Braithwaite
reinterpreta o critério de demarcação de Popper como se este separasse proposições
significativas de proposições carentes de significado, em lugar de separar proposições cientí -
ficas de proposições não-científicas.)

67. Cf. mais acima, pp. 122-4.


68. Popper, “Ein Kriterium des empirischen Charakters theoretischer Sys -
teme”, 1933.

133
niana da dinâmica e da gravitação, de “unilateralmente decidíveis”? 6S Como
podemos fazer em casos assim genuínas “tentativas de suprimir teorias falsas —
de encontrar os pontos fracos de uma teoria a fim de rejeitá-la se ela for falseada
pelo teste”? 70 Como podemos levá-las ao domínio da discussão racional? O
falseacionista metodológico resolve o problema tomando mais uma decisão (de
quarto tipo): quando ele testa uma teoria juntamente com uma cláusula cete- ris
paribus e descobre que essa conjunção foi refutada, precisa decidir se deve tomar
a refutação também como refutação da teoria específica. Por exemplo, pode
aceitar o periélio “anômalo” de Mercúrio como refutação da tripla conjunção N }
da teoria de Newton, das condições iniciais conhecidas e da cláusula ceteris
paribus. Em seguida, testa “severamente” 71 as condições iniciais e pode decidir
relegá-las ao “conhecimento de fundo não-problemático”. Essa decisão implica
na refutação da dupla conjunção N2 da teoria de Newton e da cláusula ceteris
paribus. Agora lhe cabe tomar a decisão crucial: se também relega a cláusula
ceteris paribus ao fundo comum do “conhecimento de fundo não-problemático”.
Será isso o que fará, se lhe parecer que a cláusula ceteris paribus está bem
corroborada.
Como se pode testar severamente uma cláusula ceteris paribus? Pressupondo
que há outros fatores influentes, especificando tais fatores e testando as
suposições específicas. Se muitas forem refutadas, a cláusula ceteris paribus será
considerada bem corroborada.
A decisão, porém, de “aceitar” uma cláusula ceteris paribus é muito
arriscada mercê das graves conseqüências que implica. Se se decidir aceitá -la
como parte desse conhecimento de fundo os enunciados que descrevem o periélio
de Mercúrio desde a base empírica de N2 são convertidos na base empírica da
teoria específica de Newton Nt e o que era antes uma simples “anomalia” em
relação a Nlt passa a ser agora uma prova crucial contra ela, seu fal seamento.
(Podemos chamar a um acontecimento descrito por um enunciado A uma
“anomalia em relação a uma teoria T’, se A for um falseador potencial da
conjunção de T e uma cláusula ceteris paribus, mas torna-se um falseador
potencial da própria T depois de haver decidido relegar a cláusula ceteris paribus
ao “conhecimento de fundo não-

70. Popper, The Poverty of Historicism, 1957, p. 133.


71. Sobre uma discussão desse importante conceito da metodologia pop - periana, cf.
meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”, 1968, pp. 397 e seguintes.

134
-problemático.” 72) como, para o nosso selvagem falseacionista, os falseamentos
são metodologicamente conclusivos, 73 a decisão fatal eqüivale à eliminação
metodológica da teoria de Newton, irraciona- lizando o trabalho subseqüente nela.
Se o cientista fugir a essas decisões ousadas, “nunca se beneficiará da
experiência”, “acreditando, talvez, que é sua obrigação defender um sistema bem -
sucedido contra a crítica enquanto nao tiver sido conclusivamente refutado”.7i
Degenerará num apologista que sempre proclamará que “as discre - pâncias que se
afirmam existir entre os resultados experimentais e a teoria são apenas aparentes e
desaparecerão com o avanço de nosso entendimento”. 75 Mas para o falseacionista
isto é “exatamente o inverso da atitude crítica própria do cientista”, 76 e não é
permissível. Para usar uma das expressões favoritas do falseacionista metodoló -
gico, a teoria “precisa ser obrigada a deixar a cabeça de fora”.
O falseacionista metodológico vê-se numa situação séria quando chega o
momento de decidir onde traçar a demarcação, nem que seja apenas num contexto
bem definido, entre o problemático e o não- -problemático. A situação é mais
dramática ainda quando ele tem de tomar uma decisão sobre cláusu las ceteris
paribus, quando lhe cabe promover um dentre as centenas de “fenômenos
anômalos” numa “experiência crucial”, e decidir que nesse caso a experiência foi
“controlada”. 77
Assim, com a ajuda desse quarto tipo de decisão, 78 o nosso falseacionista
metodológico conseguiu finalmente interpretar como “científicas” até teorias
como a teoria de Newton. 70

72. Sobre uma “explicação" melhorada, veja mais adiante, p. 195, nota de rodapé n.°
251.
73. Cf. mais acima, à p. 132, o texto correspondente às notas de pé de página n.°' 59 e
60.
74. Popper, Logik der Forschung, 1934, seção 9.
75. Ibid.
76. Ibid.
77. Pode dizer-se que o problema da “experiência controlada” nada mais é que o
problema de arranjar condições experimentais de maneira que reduza ao mínimo o ri sco
envolvido nessas decisões.
78. Esse tipo de decisão pertence, num sentido importante, à mesma ca tegoria a que
pertence a primeira: separa, por decisão, o conhecimento pro blemático do conhecimento não-
problemático. Cf. mais acima, à p. 30, o texto correspondente à nota de rodapé n.° 51.

79. Nossa exposição mostra claramente a complexidade das decisões necessárias à


definição do “conteúdo empírico” de uma teoria — isto é, o conjunto dos seus falseadores
potenciais. O “conteúdo empírico” depende da nossa decisão sobre as “teorias observacionais”
que são nossas e as anomalias

135
Com efeito, não há razão para que ele não deva dar mais um
passo. Por que não decidir que uma teoria — que nem essas quatro
decisões podem converter numa teoria empiricamente fal seável — é
falseada se entra em conflito com outra teoria que é científica por
alguns dos motivos anteriormente especificados e é igualmente bem
corroborada? so Afinal de contas, se rejeitamos uma teoria porque
verificamos que um dos seus falseadores potenciais é verdadeiro à
luz de uma teoria observacional, por que não rejeitar outra teoria
por completar diretamente com uma que pode ser relegada ao co-
nhecimento de fundo não-problemático? Isso nos permitiria, por um
quinto tipo de decisão, eliminar até teorias “sintaticamente metafí-
sicas”, isto é, teorias que, como enunciados do tipo “todos -alguns”
ou enunciados puramente existenciais, 81 devido a sua forma lógica,
não podem ter falseadores potenciais espaço-temporalmente singu-
lares.
Resumindo: o falseacionista metodológico oferece uma solução interessante
ao problema de combinar a crítica vigorosa com o fali- bilismo. Não só oferece
uma base filosófica para o falseamento depois que o falibilismo puxou o tapete
debaixo dos pés do falseacionista dogmático, mas também amplia de modo
considerável a extensão dessa crítica. Colocando o falseamento num cenário
novo, salva o atraente código de honra do falseacionista dogmático: que a ho -
nestidade científica consiste em especificar, de antemão, uma expe riência de tal
ordem que, se o resultado contradisser a teoria, esta terá de ser abandonada. 82

que devera ser promovidas a exemplos contrários. Se tentarmos comparar o conteúdo


empírico de diferentes teorias científicas a fim de verificar qual é o “mais científi co”, ver-
nos-emos envolvidos num sistema de decisões comple - xíssimo e, portanto,
irremediavelmente arbitrário a respeito de suas classes respectivas de “enunciados
relativamente atômicos” e .seus “campos de aplicação”. (Sobre o significado desses termos
(muito) técnicos, cf. Popper, Logik der Forschung, seção 38.) Mas uma comparação dessa
natureza só é possível quando uma teoria suplanta outra (cf. Popper, The Logic of
Scientific Discovery, 1959, p. 401, nota de rodapé n.° 7). E mesmo assim pode haver di fi-
culdades (as quais, todavia, não se somariam à irremediável “incomensura - bilidade”).

80. Isto foi sugerido por J. D. Wisdom: cf. seu ensaio de 1963: “The Refutability of
'Irrefutable’ Laws”.
81. Por exemplo: “Todos os metais têm um solvente”; ou “Existe uma substância
que pode transformar todos os metais era ouro”. Sobre discussões dessas teorias, cf.
especialmente Watkins, “Between Analytical and Empirical”, 1957, e Watkins, “When are
Statements Empirical?”, 1960. Mas cf. mais adiante, pp. 154-5 e pp. 227-8.

82. Veja mais acima, p. 116.

136
O falseacionismo metodológico representa um avanço conside rável para
além do falseacionismo dogmático e do convencionalismo conservador.
Recomenda decisões arriscadas. Mas os riscos são tão ousados que atingem as
raiaà da temeridade e a gente pergunta a si mesmo se não haverá um meio de
atenuá-los.
Examinemos primeiro, com mais atenção, os riscos envolvidos.
As decisões desempenham um papel crucial nessa metodologia
— como em qualquer classe de convencionalismo. As decisões, todavia, podem
levar-nos desastrosamente para o mau caminho. O falseacionista metodológico é
o primeiro a admiti-lo. Mas isso, argumenta ele, é o preço que temos de pagar
pela possibilidade de progresso.
Cumpre apreciar a atitude diabolicamente atrevida do nosso falseacionista
metodológico. Ele se tem na conta de um herói que, defrontando -se com duas
alternativas catastróficas, teve a coragem de refletir friamente sobre os méritos
relativos de cada uma e escolheu o menor dos males. Uma das alternativas era o
falibilismo cético, com sua atitude de “vale tudo”, o abandono desesperado de
todos os padrões intelectuais, e com estes a idéia do progresso cie ntífico. Nada
pode se restabelecido, nada pode ser rejeitado, nada sequer pode ser comunicado:
o crescimento da ciência é um crescimento do caos, uma verdadeira Babel.
Durante dois mil anos, cientistas e filósofos de espírito científico escolheram
ilusões justificacionistas de alguma espécie para escapar a esse pesadelo. Alguns
afirmaram que temos de escolher entre o justificacionismo indutivista e o irra-
cionalismo: “Não vejo nenhuma saída, fora a afirmação dogmática de que
conhecemos o princípio indutivo ou algum equivalente; a única alternativa é jogar
fora quase tudo que a ciência e o bom senso consideram como conhecimento”. 83
O nosso falseacionista metodológico rejeita orgulhosamente esse
escapismo: ousa medir todo o impacto do falibilismo é, aind a assim, escapar ao
ceticismo através de uma atrevida e arriscada política con- vencionalista, sem
dogmas. Tem plena consciência dos riscos mas insiste em que é preciso escolher
entre uma espécie de falseacionismo metodológico e o irracionalismo. Oferece um
jogo em que temos poucas esperanças de vencer, mas afirma que ainda é melhor
jogar do que desistir. 84

83. Russell, “Reply to Critics”, 1943, p. 683.


84. Estou certo de que alguns acolherão o falseacionismo metodológico como filosofia
“existencialista” da ciência.

137
Com efeito, esses críticos do falseacionismo ingênuo, que não oferecem
nenhum método alternativo de crítica, são inevitavelmente impelidos para o
irracionalismo. Por exemplo, o argumento confuso de Neurath de que o
falseamento e a conseqüente eliminação de uma hipótese podem resultar em “um
obstáculo ao progresso da ciência”, 85 não terá peso algum enquanto a única
alternativa que ele parece oferecer é o caos. Hempel, sem dúvida, está certo ao
acentuar que a “ciência apresenta vários exemplos [quando] o conflito entre uma
teoria altamente confirmada e uma sentença experimental recal - citrante
ocasional puder ser resolvida pela anulação desta última em lugar de sacrificar a
primeira” 8B ; não obstante, ele admite não poder oferecer nenhum outro “padrão
fundamental” além do falseacionismo ingênuo. 87 Neurath — e, aparentemente,
Hempel — rejeita o falseacionismo como “pseudo-racionalismo” 85 ; mas onde está
o “racionalismo”? Popper advertia já em 1934 que a metodologia per missiva de
Neurath (ou melhor, a sua falta de metodologia) tornaria a ciência não-empírica
e, portanto, irracional: “Precisamos de um conjunto de regras para limitar a
arbitrariedade de “suprimir” (ou “aceitar”) uma sentença protocolar. Neurath
deixa de dar essas regras e, assim, inadvertidamente, atira o empirismo pela
janela. . . Todo sistema se torna defensável se nos for permitido (e toda a gente
tem essa permissão, no entender de Neurath) simplesmente “suprimir” uma
sentença protocolar por ser inconveniente’’. 89 Popper concorda com Neurath em
que todas as proposições são faííveis; mas defende com vigor o ponto crucial de
que não podemos fazer

85. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, p. 356.


86. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 621. Agassi, em seu
ensaio de 1966, “Sensationalism", segue Neurath e Hempel, sobretudo às pp. 16 e seguintes. É
divertido observar que Agassi, ao defender esse ponto de vista, pense estar pegando em armas
contra “toda a literatura relativa aos métodos da ciência” .
Com efeito, muitos cientistas tinham plena consciência das dificuldades inerentes à
“confrontação da teoria e dos fatos”. (Cf. Einstein, “Autobiogra - phical Notes”, 1949, p. 27.)
Vários filósofos simpáticos ao falseacionismo en fatizam que “o processo de refutação de uma
hipótese científica é mais complicado do que parece à primeira vista” (Braithwaite, Scientific
Explanation, 1953, p. 20). Mas apenas Popper ofereceu uma solução construtiva, racional.

87. Hempel, “Some Theses on Empirical Certainty”, 1952, p. 622. As agudas “teses
sobre a certeza empírica” de Hempel não fazem outra coisa senão tirar o pó dos velhos
argumentos de Neurath — e alguns de Popper — (contra Carnap, creio eu); deploravelmente,
contudo, ele não menciona seus predecessores nem seus adversários.

88. Neurath, “Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935.


89. Popper. Logik der Forschung, 1934, seção 26.

138
progresso sem uma estratégia ou método racional firme para guiar- nos quando
elas colidem. 90
Mas a estratégia firme da classe do falseacionismo metodológico discutida
até aqui não será firme demais ? As decisões que ela advogada não estarão fadadas a
ser demasiado arbitrárias ? Alguns podem até sustentar que a única coisa que
distingue o falseacionismo metodológico do dogmático é q ue ele é falibilista da boca
para fora\

Criticar uma teoria da crítica é quase sempre muito difícil. O falseacionismo


naturalista era relativamente fácil de refutar, pois repousava numa psicologia
empírica da percepção: bastava mostrar que ele era falso. Mas como se pode
falsear um falseacionismo metodológico? Nenhum desastre pode jamais refutar
uma teoria não-jus- tificacionista da racionalidade. Ademais, como podemos
reconhecer algum dia um desastre epistemológico? Não temos meios para julgar
se a verossimilhança das nossas teorias sucessivas aumenta ou dimi nui. 91 Até o
momento, ainda não desenvolvemos uma teoria geral da crítica nem mesmo para
as teorias científicas, quanto mais para as teorias da racionalidade 92 ; portanto, se
quisermos falsear nosso falseacionismo metodológico, teremos de pôr mãos à obra
antes de ter uma teoria sobre como fazê-lo.
Se observarmos a história da ciência, se tentarmos ver como alguns dos
falseamentos mais célebres aconteceram, teremos que chegar à conclusão de que
algumas delas ou são claramente irracionais ou se apóiam em princípios de
racionalidade radicalmente diferentes dos princípios que acabamos de discutir.
Primeiramente, o nosso falseacionista deve deplorar o fato de que teóricos
obstinados contestem com freqüência vereditos experimentais e os invertam. Na
concepção falseacionista da “lei e da ordem” científica que descrevemos não há
lugar para tais apelos bem-sucedidos. Outras dificuldades surgem do falseamento
de teorias a que se acrescenta uma cláusula ceteris pa-

90. O ensaio de Neurath, "Pseudorationalismus der Falsifikation”, 1935, mostra que


ele jamais apreendeu o argumento simples de Popper.
91. Estou empregando aqui o termo “verossimilhança” no sentido de Popper: a
diferença entre o conteúdo de verdade e o conteúdo de falsidade de uma teoria. Sobre os riscos
envolvidos na sua avaliação, cf. meu ensaio, “Changes in the Problem of Inductive Logic”,
1968, especialmente as pp. 395 e seguintes.

92. Tentei desenvolver uma teoria geral da critica em meus trabalhos de 1971 e 1972.

139
ribusP Seu falseamento, tal como ocorre na história real, é prima facie irracional
segundo os padrões do nosso falseacionista. Segundo estes padrões os cientistas
parecem ser com freqüência irracionalmente lentos: por exemplo, oitenta e cinco
anos decorreram entre a aceitação do pcriclio dc Mercúrio como anomalia e sua
aceitação como falseamento da teoria de Newton, apesar de ser a cláusula ceteris
paribus razoavelmente bem corroborada. Por outro lado, os cientistas parecem,
não raro, irracionalmente impetuosos: Galileu e seus discípulos, por exemplo,
aceitaram a mecânica celeste helio- cêntrica de Copérnico apesar das abundantes
evidências contra a rotação da Terra; e Bohr e seus discípulos aceitaram uma
teoria de emissão da luz embora esta última contrariasse a bem corroborada teoria
de Maxwell.
De fato, não é difícil ver pelo menos duas características cruciais, comuns
ao falseacionismo dogmático e ao nosso falseacionismo metodológico, que
destoam claramente da verdadeira história da ciência: a saber (1) um teste é — ou
deve-se fazer que seja — uma luta, de dois adversários, entre a teoria e a experiência
de modo que, na confrontação final, só as duas se defrontem; e ( b ) o único resultado
interessante dessa confrontação é o falseamento (conclusivo): ‘‘[aí únicas genuínas]
descobertas são refutações de hipóteses científicas.” 84 Entretanto, a história da
ciência sugere que (1’) os testes são — pelo menos — lutas, de três adversários,
entre as teorias rivais c a experiência e (2’) algumas das experiências mais
interessantes resultam, prima faciej antes em confirmação do que em falseamento.
Mas se a história da ciência — como parece ser o caso — não confirma
nossa teoria da racionalidade científica, temos duas alternativas. Uma delas é
abandonar os esforços para dar uma explicação racional do êxito da ciência. O
método científico (ou “lógica da descoberta"), concebido como disciplina da
avaliação racional das teo

93. O falseamento das teorias depende do alto grau de corroboração da cláusula


cetcris paribus. Tal corroboração, todavia, muitas vezes falta. Eis aí por que o falseacionismo
nietodológico pode aconselhar-nos a confiar em nosso “instinto científico" (Popper, Logik der
Forschung, 1934, seção 18, nota de rodapé n." 2) ou cm nosso “palpite" (Braithwaite,
Scientific Explanation, 1953, p. 20).

94. Agassi, “How are Facts Discovered?” 1959, chama à idéia de ciência de Popper
“seientia negativa" (Agassi, “The Novelty of Popper’s Philo- sophy of Science", 1968).

140
rias científicas — e dos critérios de progresso — desaparece. Está claro que ainda
podemos tentar explicar mudanças em “paradigmas” em termos de psicologia
social. 95 Esse é o caminho de Polanyi e de Kuhn. 96 A outra alternativa é tentar, ao
menos, reduzir o elemento convencional do falseacionismo (não podemos de
maneira alguma eliminá-lo) e substituir as versões ingênuas do falseacionismo
metodológico — caracterizadas pelas teses (1) e (2) acima —- por uma versão
sofisticada que daria um novo fundamento lógico ao falseamento e, por esse modo,
salvaria a metodologia e a idéia de progresso científico. Este é o caminho de
Popper, e o caminho que pretendo seguir.
(c) Falseacionismo metodológico sofisticado versus falseacionismo metodológico
ingênuo. Transferência progressiva e degenerativa de problemas.
O falseacionismo sofisticado difere do falseacionismo ingênuo assim nas
regras de aceitação (ou “critério de demarcação”) como nas regras de falseamento
ou eliminação.
Para o falseacionista ingênuo qualquer teoria que se possa interpretar como
experimentalmente falseável é “aceitável” ou “científica”. 97 Para o sofisticado
uma teoria só será “aceitável” ou “científica” se tiver um excesso corroborado de
conteúdo empírico em relação à sua predecessora (ou rival), isto é, se levar à
descoberta de fatos novos. Essa condição pode ser analisada em duas cláusulas: a
nova teoria tem um excesso de conteúdo empírico (“ aceitabilidadei”) e parte
desse excesso de conteúdo é verificada (aceitabilida

95. Dever-se-ia mencionar aqui que o cético kuhniano ainda fica com
o que eu denominaria o “dilema do cético cientifico": qualquer cético científico
ainda tentará explicar mudanças em crenças e encarará sua própria teo ria psicológica como
uma teoria que, sendo mais que simples crença, em certo s entido é “científica”. Enquanto
tentava apresentar a ciência como mero sistema de crenças com o auxílio da sua teoria da
aprendizagem estímulo-resposta, Hume nunca ventilou o problema de saber se sua teoria da
aprendizagem também se aplica a si própria. E m termos contemporâneos, podemos perguntar
se a popularidade da filosofia de Kuhn indica que as pessoas lhe reconhecem a verdade. Nesse
caso, ela seria refutada. Ou essa popularidade indica que as pessoas a consideravam como
atraente moda nova? Nesse caso, ela seria “verificada”. Mas gostaria Kuhn dessa
“verificação”?

96. Feyerabend, que contribuiu provavelmente mais do que ninguém


para a difusão das idéias de Popper, parece agora ter passado para o campo
inimigo. Cf. o seu intrigante ensaio “Against Method”, 1970.
97. Cf. mais acima, p. 132.

141

Você também pode gostar