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A FIM DO PROBLEMA DE DEMARCAÇÃO (excerto)

Larry Laudan

Trad. provisória do Prof. Filipe Lazzeri (Faculdade de Filosofia, Universidade Federal de Goiás),
apenas para fins de estudo na disciplina de Filosofia da Ciência por ele ministrada

Do original: “The demise of the demarcation problem”. In R. S. Cohen & L. Laudan (Eds.),
Physics, philosophy and psychoanalysis (pp. 111-127). Springer: Dordrecht.

1. INTRODUÇÃO
Vivemos em uma sociedade que dá grande importância à ciência. ‘Especialistas’ científicos
desempenham um papel privilegiado em muitas de nossas instituições, que vão desde os tribunais
de justiça até os corredores do poder. Em um nível mais fundamental, a maioria de nós se esforça
para moldar nossos pensamentos sobre o mundo natural à imagem ‘científica’. Se cientistas dizem
que os continentes se movem, ou que o universo tem bilhões de anos, nós geralmente acreditamos
neles, por mais contra-intuitivas e implausíveis que possam parecer suas afirmações. Da mesma
forma, tendemos a seguir a recomendação que os cientistas fazem sobre o que não acreditar. Se, por
exemplo, os cientistas dizem que Velikovsky era um excêntrico, que a história bíblica da criação
não faz sentido, que OVNIs não existem, ou que a acupuntura é ineficaz, então geralmente fazemos
nosso o desprezo do cientista por essas coisas […]. Em suma, grande parte de nossa vida
intelectual, e cada vez mais grandes porções de nossa vida social e política, assenta-se no
pressuposto de que nós (ou, se não o nós mesmos, então alguém em quem confiamos nesses
assuntos) pode traçar a diferença entre a ciência e a farsa.
Por uma variedade de razões históricas e lógicas, algumas remontando há mais de dois
milênios, aquele ‘alguém’ a quem recorremos para descobrir a diferença geralmente acontece de ser
o filósofo. Com efeito, não seria ir longe demais dizer que, por muito tempo, os filósofos foram
considerados como os guardiões do patrimônio científico. Eles são aqueles que deveriam ser
capazes de dizer a diferença entre ciência real e pseudo-ciência. No esquema acadêmico familiar
das coisas, são especificamente os teóricos do conhecimento e os filósofos da ciência encarregados
de ajuizar e legitimar as reivindicações de qualquer seita ao status ‘científico’. Não é de admirar,
sob as circunstâncias, que a questão da natureza da ciência tem figutado tanto na filosofia ocidental.
De Platão a Popper, filósofos procuraram identificar as características epistêmicas que separam a
ciência de outros tipos de crença e atividade.
No entanto, parece bastante claro que a filosofia tem predominantemente falhado em
entregar os produtos relevantes. Quaisquer que sejam os pontos fortes e as deficiências específicas
dos numerosos esforços bem conhecidos de demarcação (vários dos quais serão discutido abaixo),
provavelmente é justo dizer que não há linha de demarcação entre ciência e não ciência, ou entre
ciência e pseudociência, que ganharia o consentimento da maioria dos filósofos. Nem há um que
deveria ganhar aceitação de filósofos ou qualquer outra pessoa; mas mais sobre isso abaixo.
Que lições devemos tirar do fracasso recorrente da filosofia para detectar os traços
epistêmicos que separam a ciência de outros sistemas de pensamento? Essa falha pode,
concebivelmente, ser devida simplesmente à nossa empobrecida imaginação filosófica; é
concebível, afinal, que a ciência seja de fato sui generis, e que nós, filósofos, ainda não atingimos
seus atributos característicos. Alternativamente, pode ser que não haja características epistêmicas
que todas e somente as disciplinas que aceitamos como ‘científicas’ tenham em comum. Meu
objetivo neste trabalho é fazer uma breve excursão na história da demarcação ciência/não-ciência,
para ver que luz ela pode lançar à viabilidade contemporânea da busca por um dispositivo de
demarcação.

[…]

4. A NOVA TRADIÇÃO DEMARCIONISTA


Como vimos, havia muitas razões em 1900 para concluir que nenhuma certeza, nem geração
de acordo com um conjunto privilegiado de regras metodológicas, era adequado para denominar a
ciência. Portanto, não deve ser surpresa que os filósofos das décadas de 1920 e 1930 adicionaram
algumas novas rugas ao problema. Como é bem conhecido, vários membros proeminentes do
Wiener Kreis tomaram uma abordagem sintática ou lógica ao assunto. Se, os positivistas lógicos
aparentemente raciocinaram, epistemologia e metodologia são incapazes de distinguir o científico
do não científico, então talvez a teoria do significado fará o trabalho. Uma afirmação, eles
sugeriram, é científica apenas caso tivesse um significado determinado; e afirmações significativas
seriam aquelas que pudessem ser exaustivamente verificadas. Como Popper observou certa vez,
positivistas pensaram que “verificabilidade, significância e caráter científico, todos
coincidem”1.
Apesar de suas muitas reformulações durante o final dos anos 1920 e os anos 1930, o
verificacionismo desfrutou de fortunas variadas como teoria do significado2. Mas como um
candidato à demarcação entre o científico e o não científico, foi um desastre. Não apenas muitas
afirmações nas ciências não estão abertas a uma verificação exaustiva (por exemplo, todas as leis
universais), mas a grande maioria das não científicas e dos sistemas de crença pseudocientíficos têm
constituintes verificáveis. Considere, por exemplo, a tese de que a Terra é plana. Subscrever a tal
crença no século vinte seria o auge da loucura. No entanto, tal declaração é verificável, no sentido
de que podemos especificar um conjunto de observações possíveis que iria verificá-la. Com efeito,
toda crença que já foi rejeitada como parte da ciência porque foi ‘falsificada’ é (pelo menos
parcialmente) verificável. Por ser verificável, é assim (de acordo com o critério dos ‘positivistas
maduros’) significativo e científico.
Uma segunda abordagem familiar do mesmo período é o critério ‘falseacionista’ de Karl
Popper, que não se sai melhor. Além do fato de que ele deixa ambíguo o status científico de
praticamente toda afirmaçãos existêncial singular, não importa quão bem apoiada (por exemplo, a
afirmação de que existem átomos, que existe um planeta mais próximo do sol do que da Terra, que
existe um elo perdido), tem a consequência desfavorável de considerar como ‘científica’ toda
afirmação excêntrica que faça afirmações comprovadamente falsas. Assim, terraplanistas,
criacionistas bíblicos, proponentes de caixas de laetrile ou orgônio, devotos de Uri Geller,
Trianguladores das Bermudas, […], todos acabam por ser científicos no critério de Popper –
conquanto estejam preparados a indicar alguma observação, por mais improvável que seja, que (se
viesse a acontecer) faria com que mudassem de ideia.
Pode-se responder a essas críticas dizendo que o status científico é um mais questão de grau
do que de tipo. Ciências como a física e a química têm um alto grau de testabilidade, pode-se dizer,
enquanto os sistemas que consideramos como pseudo-científicos são muito menos abertos ao
escrutínio empírico. Dificuldades técnicas agudas confrontam essa sugestão, pois a única teoria

1 Karl Popper, Conjectures and Refutations (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963), p. 40.
2 Para um breve relato histórico, consulte o clássico de C. G. Hempel, “Problems and Changes in the Empiricist
Criterion of Meaning”. Revue Internationale de Philosophie II (1950), 41-63.
articulada de graus de testabilidade (Popper) torna impossível comparar os graus de testabilidade de
duas teorias distintas, exceto quando uma implica a outra. Como (espera-se!) nenhuma teoria
‘científica’ implica qualquer teoria ‘pseudo-científica’, as comparações relevantes não podem ser
feitas. Mas, mesmo que esse problema pudesse ser superarado, e se fosse possível concluirmos
(digamos) que a teoria geral da relatividade é mais testável (e, portanto, por definição mais
científica) do que a astrologia, não se seguiria que a astrologia é menos digna de crença do que
relatividade – pois testabilidade é uma noção semântica em vez de epistêmica, que não envolve
absolutamente nada sobre merecimento de crença.
Vale a pena fazer uma pausa para refletir sobre a importância desta diferença. Eu disse antes
que a mudança da orientação demarcacionista mais antiga para a mais nova pode ser descrita como
um movimento de uma estratégia epistêmica para estratégias sintáticas e semânticas. Na verdade, a
mudança é ainda mais significativa do que aquela forma de descrever que a transição sugere. A
preocupação central da tradição mais antiga tinha sido identificar aquelas ideias ou teorias que eram
dignas de crença. Julgar uma afirmação como científica era fazer um julgamento retrospectivo sobre
como essa afirmação resistiu ao escrutínio empírico. Com os positivistas e Popper, no entanto, esse
elemento retrospectivo sai inteiramente. O status científico, em sua análise, não é uma questão de
apoio em evidências ou merecimento de crença, pois todos os tipos de alegações infundadas são
testáveis e, portanto, científicas, na nova visão.
O fracasso da tradição demarcacionista mais recente em insistir na necessidade de avaliações
retrospectivas de evidências para determinar o status científico acaba consideravelmente minando a
utilidade prática do empreendimento demarcacionista; precisamente porque a maioria dos
pensamentos ‘excêntricos’ sobre os quais alguém pode se inclinar a ser desdenhoso resultam ser
‘científicos’ de acordo com critérios falseacionistas ou os critérios (parciais) verificacionistas. A
tradição demarcacionista mais velha, preocupada com a garantia epistêmica real em vez de
potencial escrutabilidade epistêmica, nunca teria permitido tal pouco exigente sentido do
‘científico’. Mais especificamente, a nova tradição teve que pagar um preço alto por suas
expectativas reduzidas. Não querendo vincular status científico a qualquer garantia evidencial, os
demarcacionistas do século XX têm sido forçados a caracterizar as ideologias às quais se opõem
(seja o marxismo, a psicanálise ou o criacionismo) como não testável em princípio. Muito
ocasionalmente, esse rótulo é apropriado. Mas, na maioria das vezes, as opiniões em questão podem
ser testadas, têm sido testadas e falharam nesses testes. Mas tais falhas não podem impugnar seu
(novo) status científico: muito pelo contrário, em virtude de falharem nos testes epistêmicos a que
são submetidos, essas visões garantem que elas satisfazemm os critérios semânticos relevantes
para o status científico! O novo demarcacionismo, portanto, se revela como uma maravilha
amplamente desdentada, que não serve nem para explanar os usos paradigmáticos de ‘científico’ (e
seus cognatos), nem para realizar as tarefas críticas de limpeza do estábulo para as quais foi
originalmente pretendido.
Por essas e uma série de outras razões familiares na literatura filosófica, nem
verificacionismo, nem falseacionismo, oferecem sinais promissores em traçar uma distinção útil
entre o científico e o não científico.
Existem outros candidatos plausíveis para explanar a distinção? Vários parecem esperar nos
bastidores. Pode-se sugerir, por exemplo, que as afirmações científicas são bem testadas, enquanto
as não científicas não são. Alternativamente (uma abordagem adotada por Thagard3), pode-se
sustentar que o conhecimento científico é único em exibir progresso ou crescimento. Alguns
3 Ver, por exemplo, Paul Thagard, “Resemblance, Correlation and Pseudo-Science”. In M. Hanen et al., Science,
Pseudo-Science and Society (Waterloo, Ont.: W. Laurier University Press, 1980), pp. 17-28.
sugeriram que as teorias científicas sozinhas fazem previsões surpreendentes que se revelam
verdadeiras. Pode-se até ir na direção pragmática e manter que a ciência é o único repositório de
conhecimento útil e confiável. Ou, finalmente, pode-se propor que a ciência é a única forma de
edifício-sistema intelectual que prossegue cumulativamente, com visões posteriores abrangendo as
anteriores, uns, ou, pelo menos, retendo aquelas visões anteriores como casos limites4.
Pode-se prontamente mostrar que nenhuma dessas sugestões pode ser uma condição
necessária e suficiente para algo ser considerado ‘ciência’, pelo menos não como esse termo é
comumente usado. E, na maioria dos casos, elas nem mesmo são plausíveis como condições
necessárias. Deixe-me esboçar algumas das razões pelas quais essas propostas são tão pouco
promissoras. Considere o requisito de ser bem testado. Infelizmente, não temos uma abordagem
abrangente viável das circunstâncias sob as quais uma alegação pode ser considerada como bem
testada. Mas, mesmo que nós tivéssemos, é plausível sugerir que todas as afirmações em textos
científicos (sem falar nas revistas ciêntíficas) foram bem testadas, e que nenhuma das afirmações
em campos convencionalmente não científicos, tais como teoria literária, carpintaria ou estratégia
de futebol, são bem testados? Quando um cientista apresenta uma conjectura que ainda não foi
testada e tal que ainda não temos certeza do que poderia ser considerado um teste robusto dela, o
cientista deixou de fazer ciência quando ele discute a sua conjectura? Do outro lado da linha
divisória, alguém está preparado para dizer que não temos evidências convincentes para alegações
‘não científicas’ como “Bacon não escreveu as peças atribuídas a Shakespeare”, que “uma junta de
mitra é mais forte do que uma junta de descarga”, ou que “off-side kicks [no futebol americado]
geralmente não são atrapalhados”? Com efeito, não temos o direito de dizer que todas essas
alegações são muito melhor apoiadas por evidências do que muitas das suposições ‘científicas’ da
(digamos) cosmologia ou psicologia?
A razão para essa divergência é simples de ver. Muitas partes, talvez a maioria, da ciência,
são altamente especulativas em comparação com muitas disciplinas não científicas. Parece haver
uma boa razão, dada a partir do registro histórico, para supor que a maioria das teorias científicas
sejam falsas; sob as circunstancias, quão plausível pode ser a afirmação de que a ciência é o
repositório de todas e apenas teorias confiáveis ou bem confirmadas?
Da mesma forma, o progresso cognitivo não é exclusivo das ‘ciências’. Muitas disciplinas
(por exemplo, a crítica literária, a estratégia militar e talvez até a filosofia) podem alegar saber mais
sobre seus respectivos domínios do que 50 ou 100 anos atrás. Em contraste, podemos apontar para
várias ‘ciências’ que, durante certos períodos de sua história, exibiram pouco ou nenhum progresso5.
Crescimento cognitivo contínuo, ou mesmo esporádico, não parece ser condição nem necessária
nem suficiente para as atividades que consideramos científicas. Finalmente, considere a exigência
de transições teóricas cumulativas como um critério de demarcação. Como vários autores6
mostraram, isso não funcionará nem mesmo como uma condição necessária para delimitar o

4 Para os proponentes dessa visão cumulativa, consulte Popper, Conjectures and Refutations; Hilary Putnam, Meaning
and the Moral Sciences (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1978); Wladysiaw Krajewski, Correspondence Principle
and Growth of Science (Dordrecht, Boston: D. Reidel, 1977); Heinz Post, “Correspondence, Invariance and Heuristics”,
Studies in History and Philosophy of Science 2 (1971), 213-55; e L. Szumilewicz, “Incommensurability and the
Rationality of Science”, Brit. Jour. Phil. Sci. 28 (1977), 348ss.
5 Prováveis candidatos provisórios: acústica de 1750 a 1780; anatomia humana de 1900 a 1920; astronomia cinemática
de 1200 a 1500; mecânica racional de 1910 a 1940.
6 Veja-se, entre outros: T. S. Kuhn, Structure of Scientific Revolutions (Chicago: University of Chicago Press, 1962); A.
Grünbaum, “Can a Theory Answer More Questions than One of Its Rivals?”, Brit. Journ. Phil. Sci. 27 (1976), 1-23; L.
Laudan, “Two Dogmas of Methodology”, Philosophy of Science 43 (1976), 467-472; L. Laudan, “A Confutation of
Convergent Realism”, Philosophy of Science 48 (1981), 19-49.
conhecimento científico, uma vez que muitas teorias científicas – mesmo aquelas nas chamadas
‘ciências maduras’ – não contêm suas predecessoras, nem mesmo como casos-limite.
Não vou fingir ser capaz de provar que não existe uma reconstrução filosófica concebível de
nossa distinção intuitiva entre o científico e o não científico. Eu acredito, no entanto, que estamos
autorizados a dizer que nenhum dos critérios que foram oferecidos até agora promete explanar a
distinção.
Mas podemos ir além disso, pois aprendemos o suficiente sobre o que passa por ciência em
nossa cultura para ser capaz de dizer com bastante segurança que nem tudo é cortado do mesmo
tecido epistêmico. Algumas teorias científicas são bem testadas; algumas não são. Alguns ramos da
ciência estão apresentando altas taxas de crescimento; outros não. Algumas teorias científicas
criaram uma série de previsões bem-sucedidas de fenômenos surpreendentes; algumas fizeram
poucas ou nenhuma de tais previsões. Algumas hipóteses científicas são ad hoc; outras não.
Algumas alcançaram uma ‘consiliência de induções’; outras não. (Comentários semelhantes
poderiam ser feitos sobre várias teorias e disciplinas não científicas.) A evidente heterogeneidade
epistêmica das atividades e pensamentos habitualmente considerados científicos deve nos alertar
para a provável futilidade de buscar uma versão epistêmica de um critério de demarcação. Onde,
mesmo depois de análise detalhada, parece não haver invariantes epistêmicos, é aconselhável não se
tomar sua existência como algo garantido. Mas dizer isso significa dizer que o problema da
demarcação – o próprio problema que Popper rotulou de ‘o problema central da epistemologia’ – é
espúrio, pois esse problema pressupõe a existência de tais invariantes.
Ao afirmar que o problema da demarcação entre ciência e não ciência é um pseudo-
problema (pelo menos no que diz respeito à filosofia), eu manifestamente não estou negando que
existem questões epistêmicas e metodológicas cruciais a serem levantadas sobre as afirmações de
conhecimento, seja classificando-as como científicas ou não. Nem, para aprofundar o óbvio, estou
dizendo que nunca estamos autorizados em argumentar que uma determinada parte da ciência é
epistemicamente garantida e que uma determinada parte da pseudociência não é. Permanece tão
importante quanto sempre foi fazer perguntas como: quando uma alegação é bem confirmada?
Quando podemos considerar uma teoria como bem testada? O que caracteriza o progresso
cognitivo? Mas, uma vez que tivermos respostas para essas perguntas (e ainda estamos muito longe
desse estado feliz!), restará pouco a investigar sobre o que é epistemicamente significativo.
Um último ponto precisa ser enfatizado. Ao argumentar que continua a ser importante
mantermos uma distinção entre conhecimento confiável e não confiável, eu não estou tentando
ressuscitar a demarcação ciência/não-ciência sob um novo disfarce7. Não importa como
eventualmente resolveremos a questão do conhecimento confiável, o conjunto de afirmações que se
enquadram nessa rubrica incluirão muito que não é geralmente considerado como ‘científico’, e
excluirá muito do que é geralmente considerado ‘científico’. Isso também decorre da
heterogeneidade epistêmica das ciências.

7 Em um excelente estudo [“Theories of Demarcation Between Science and Metaphysics”, em Problems in the
Philosophy of Science (Amsterdam: North-Holland, 1968), 40ss], William Bartley também argumentou que o problema
de demarcação (popperiano) não é um problema central da filosofia da ciência. O principal motivo de Bartley para
desvalorizar a importância de um critério de demarcação é sua convicção de que é menos importante se um sistema é
empírico ou testável do que se um sistema é ‘criticável’. Como ele pensa que muitos sistemas não empíricos estão, no
entanto, abertos a críticas, ele argumenta que a demarcação entre ciência e não ciência é menos importante do que a
distinção entre o revisável e o não revisável. Aplaudo a insistência de Bartley de que a distinção empírico/não empírico
(ou, o que é para um popperiano a mesma coisa, a distinção científico/não-científico) não é central; mas não estou
convencido, como Bartley está, de que devemos atribuir lugar de honra para a dicotomia revisável/não-revisável. Estar
disposto a mudar de opinião é uma característica louvável, mas não está claro para mim que tal revisabilidade aborda a
questão epistêmica central da boa fundamentação de nossos pensamentos.
5. CONCLUSÃO
Através de certos caprichos da história, alguns dos quais aludi aqui, nós acabamos fundindo
duas questões bastante distintas: o que faz um pensamento ser bem fundamentado (ou
heuristicamente fértil)? E o que torna científico um pensamento? O primeiro conjunto de questões é
filosoficamente interessante e possivelmente até tratável; a segunda questão é desinteressante e, a
julgar por seu passado xadrez, intratável. Se fôssemos nos levantar e contar com o lado da razão,
devemos abandonar termos como ‘pseudo-ciência’ e ‘não científico’ do nosso vocabulário; são
apenas termos ocos que fazem apenas trabalho emotivo para nós. Como tais, eles são mais
adequados à retórica de políticos e dos sociólogos do conhecimento escoceses do que pesquisadores
empíricos8. Na medida em que nossa preocupação é proteger a nós mesmos e nossos companheiros
do pecado capital de acreditar no que gostaríamos que fosse, e não naquilo para o que existem
evidências substanciais (e certamente é a isso que se resume a maioria das formas de
‘charlatanismo’), então nosso foco deve estar diretamente nas credenciais empíricas e conceituais
para alegações sobre o mundo. O status ‘científico’ dessas alegações é totalmente irrelevante9.

8 Não posso resistir a esse estalo nos esforços da chamada escola de Edimburgo para reformular a sociologia do
conhecimento nos moldes do que eles imaginam ser a ‘imagem científica’. Para um típico exemplo do fracasso desse
grupo em perceber a imprecisão da noção de ‘científico’, ver Knowledge and Social Imagery, de David Bloor (Londres:
Routledge and Kegan Paul, 1976), e minha crítica a ela, “The Pseudo-Science of Science?”, Phil. Soc. Sci. 11 (1981),
173-198.
9 Sou grato a NSF e NEH pelo apoio a esta pesquisa. Aproveitei enormemente os comentários de Adolf Grünbaum, Ken
Alpern e Andrew Lugg em uma versão anterior deste trabalho.

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