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1 É POSSÍVEL AFIRMAR A CRIAÇÃO?

Seguindo a linha aristotélica das quatro causas, Artigas afirma que a ciência se ocupa
com as causas eficiente e material, enquanto a filosofia detém-se principalmente na
investigação das causas formal e final. É assim que caminha por uma tênue fronteira entre
ambos os campos: sem preocupar-se necessariamente com as investigações filosóficas, a
ciência pode pesquisar livremente em seu campo de atuação – é totalmente autônoma em seu
campo próprio; no entanto, o proceder da investigação das causas formal e final não pertence
ao âmbito científica, o que faz com que oé o mesmo, e por isso o cientista, neste caso, não
tenham o aval da ciência para argumentar. O cientista Ttem o total direito de propor novas
compreensões das causas finais ou formais, mas deve notar que não está fazendo ciência ao
propô-las, e sim filosofia. Precisamente por isso, a ciência ganha neutralidade: não pode afirmar
nem negar absolutamente nada sobre as causas que não investiga, e o cientista que afirma algo
acerca delasqualquer coisa em nome da ciência está cometendo uma extrapolação de seu campo
de pesquisa. Este é o fundamento que perpassará toda a argumentação. O dever do filósofo,
neste caso, não é propor uma explicação correta dentro dos parâmetros científicos, mas alertar
para esta eventual ideologização da ciência que faz mal para ela mesma (Artigas, 2004, p. 75).
Artigas é um admirador da obra de Karl Popper. O que está em jogo, por trás deste alerta
para as eventuais ideologizações, é a tentativa de falsear, com a filosofia, as posturas científicas.
Para Popper, aceitar uma teoria T exige que todas as suas consequências (c1, c2, c3, ..., cn) sejam
verdadeiras e também observáveis. Não sendo observáveis, não podem ser científicas. Em sua
investigação, o filósofo espanhol nota que algumas destas consequências não exigem uma mera
observação científica, discorrendo sobre as causas formal e final. O que apresentaremos ao
longo deste capítulo é justamente este trabalho de discernimento, realizado pelo espanhol, sobre
o que é legitimamente científico e o que extrapola o campo. Iniciando a reflexão sobre a origem
do cosmos e chegando até a discussão sobre a vida humana – sem esquecer da origem da vida,
percebe-se como a fronteira entre a filosofia – especificamente uma filosofia cristã – e a ciência
é difusa, como ambos os conhecimentos podem, e devem, tomar parte ao longo das reflexões;
alguns pensam esta relação como conflituosa ou contrastante, mas é possível tomar uma postura
de diálogo e até de confirmação, no sentido de uma que confirma e até mesmo estimula a outra
parte.
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1.1 A ORIGEM DO UNIVERSO

A cosmologia começou a ganhar força a partir de 1964, quando Arno Penzias e Robert
Wilson descobriram a radiação de fundo de micro-ondas, confirmando o que formularam os
físicos teóricos de antes da década de 1930. Foi o padre Georges Lamaître quem propôs a tese
de um átomo primitivo que produziu a Grande Explosão (Modelo Cosmológico Padrão ou
Modelo do Big Bang); Albert Einstein e Alexander Friedmann teorizaram sobre a relatividade
geral em um universo em expansão, e Edwin Hubble notou o distanciamento (e velocidade)
entre as galáxias.//1
Acontecido há cerca de 15 bilhões de anos a A teoria formula a hipótese de explosão de
uma partícula elementar a 10 bilhões de graus Kelvin – temperatura longe de ser alcançada em
laboratório - há cerca de 15 bilhões de anos. Nos três primeiros minutos, há ocorreu a
nucleossíntese – formação de Hélio e Nitrogênio, que constituem quase toda a massa do
universo. Em alguns milhões de anos a temperatura esfria esfriou e se iniciainiciou-se a
formação atômica (núcleo e elétrons). Mais alguns bilhões de anos se formam formaram
estrelas, galáxias. Outras observações contribuem com o modelo originário, e a física apoia a
composição da matéria em dois elementos fundamentais que são as partículas e as forças
(interações entre partículas). Segundo o modelo do Big Bang, elas não eram diferenciadas.
No do campo científico, o modelo apresentado é aceito como clássico. Entretanto, há
muitos alguns problemas vindos deste modelo, como os quasares, que não seguem a Lei de
Hubble, contradizendo a ideia de expansão generalizada do universo, ou a idade das estrelas,
bem maior que a idade do Universo (feita por extrapolação). Existem modelos alternativos ao
Big Bang, como a Teoria do Estado Quase Estacionário, o Modelo Cosmológico de Jayant
Narlikar entre outros2. Ao recordá-los, lembramos como estes modelos alternativos Estes
campos contribuem para a noção de que o Big Bang é só uma hipótese, não um dogma ou uma
certeza. Com isso, não se pretende desafirmá-lo ou desacreditá-lo, mas Ttrocar estes os
conceitos seria extremamente prejudicial para a ciência, e o fato da teoria não ser comprovada
não a prejudica, uma vez que continua sendo o melhor cenário para o passado do universo.
Relacionado com o Big Bang está o conceito de Criação ex-nihilo, isto é, “do nada”.
Não se pode, contudo, interpretar o Modelo PadrãoBig Bang como o início temporal do
universo, numa tentativa de provar cientificamente a Criação, – como se fosse a prova científica

1
“//”: indica que o parágrafo abaixo foi unido com o parágrafo atual.
2
Para mais informações a respeito, recomendamos, entre outros, SILVA, M.B.E. 2009, Teorias
Cosmológicas alternativas ao Modelo Padrão, Estudo Orientado, Departamento de Física, UFMG. Disponível
em: www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/marina-teorias.doc. Acessado em 28.09.2015.
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da Criação:pois há a possibilidade de um estado anterior. Ademais, a própria noção de Criação


pressupõe uma dependência de uma experiência radical no Ser que não pode ser investigada na
ciência experimental.//
Por outro lado, o pensamento materialista – ratificado com a dificuldade em comprovar
a Criação – também falha: o universo auto-suficienteautossuficiente precisaria de algumas
características divinas incompatíveis com o caráter limitado e variável de todo ser material.
Ademais, não se deve confundir Criação com origem do tempo:, o mundo pode ser criado,
independente da sua duração, como argumenta Tomás de Aquino em De aeternitate mundi
contra murmurantes. Em geral, os cientistas, inclusive agnósticos, reconhecem que há diferença
entre a criação e a explicação física da evolução do universo.
Existe, ainda, uma teoria de auto-criaçãoautocriação, consequência de uma flutuação
do vazio quântico, defendida por Edward Tryon e Alan Guth – que erram ao considerar
sinônimos ‘vazio quântico’ e ‘nada absoluto’, quando são conceitos diferentes. Em geral, os
cientistas, inclusive agnósticos, reconhecem que há diferença entre a criação e a explicação
física da evolução do universo.//
Para Artigas, uma proposta de defende o absurdo que é a proposta de uma autocriação
do uUniverso é um absurdo, . Sseja porque é impossível paraabsurdo a ciência ter uma
experiência do ‘nada’ ou da ‘dependência no ser’ ou porque isso fere o princípio de conservação
entre matéria e energia (que antes era a lei de Lavoisier e anteriormente a ideia de que nada sai
do nada). Portanto, não é possível falar em criação das estruturas do Universo sem remeter-se
a um Criador; seria melhor que se falasse em “formação” destas estruturas.
A ideia de criação do universo, em sentido absoluto, não pode ser compreendida pelas
leis físicas. Esta tentativa de explicação científica parte de duas extrapolações: 1) se pretende
ter uma explicação física de algo que não pode ser relacionado com experimentos reais ou
possíveis; 2) Atribui-se às teorias físicas (espaço, tempo, energia, matéria e vazio) sentido
metafísico que não possuem; tais teorias podem ser definidas com dados experimentais e teorias
matemáticas, enquanto o nada e a dependência radical no ser “não são processos que relacionam
um estado físico com outro estado também físico” (Artigas, 2004, p. 72).//
Isso porque o conceito de ‘Criação’ pode ser entendido em sentido estrito, referindo-se
à produção a partir do nada (ex-nihilo) ou em sentido amplo, aplicado à natureza, referindo-se
à criatividade do natural. ‘Criação’ e ‘Aniquilação’ no campo da física só podem ser tomados
no sentido amplo, enquanto transições entre estados físicos (como no caso de partículas
subatômicas). As novidades postas no curso da evolução são criativas, mas são um
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desenvolvimento das potências postas por Deus na natureza, que é participante do Ser. Não
vêm, portanto, absolutamente “do nada”.
Além do problema da Criação, surge, também, a questão do “princípio antrópico”Há,
ainda, uma questão fundamental, o princípio antrópico:

A ideia básica é simples. Na atualidade sabemos que as condições físicas que fazem
possível a vida humana são enormemente específicas. Parece lógico perguntar-se se
são o resultado de uma série de casualidades ou se, ao contrário, apontam até a
existência de um plano superior dirigido até a aparição do ser humano (Artigas, 2004,
p. 31)3.

Durante a 2ª metade do século XX se retomou esse problema, propondo o ser humano


como ocupante de um “lugar” central – ou melhor, privilegiado – no universo, haja vista as
inúmeras necessidades atendidas, desde o Big Bang, para a nossa existência. Contudo, a
proposta de uma teleologia – finalidade – é bastante controversa. Artigas aponta uma dupla
formulação: forte e débil. Enquanto a primeira afirma que a ciência revela um plano comum do
universo, o que está além das possibilidades do método científico, a segunda “se limita a afirmar
que as leis científicas devem ser compatíveis com a nossa existência” (Artigas, 2004, p. 33).
Todavia, permanece a questão da finalidade não é respondida pela ciência experimental.
O problema de Deus, a partir do que foi dito, não pode ser resolvido. Existe, contudo,
convites à reflexão. É possível perceber que a ciência indica pontos válidos para a razoabilidade
de Deus, como a história do universo.

1.2 ORIGEM DA VIDA

Muito do que sabemos hoje sobre a origem da vida e do ser humano é fruto do trabalho
iniciado por Gregor Mendel. Sem sua inovação nos estudos da genética, desprezada até o século
XX, seria muito difícil a projeção que ganhou a teoria de Darwin. Igualmente importante é o
estudo da estrutura do ácido desoxirribonucleico (DNA), com o qual o estudo genético está
interligado. Notório é que, embora em meados do século XIX já se conhecesse sua composição
como portador da carga genética, foi só em 1953 que o modelo de dupla hélice surgiu e explicou
a transmissão hereditária.//
Tal descoberta traz à tona a questão da origem da vida: a replicação do DNA exige a
presença de enzimas, que requerem ácidos nucleicos. Surge a hipótese de que a vida tenha

3
La idea básica es simple. En la actualidad sabemos que las condiciones físicas que hacen posible la vida
humana son enormemente específicas. Parece lógico preguntarse si son el resultado de una serie de casualidades
o si, por el contrario, apuntan hacia la existencia de un plan superior dirigido hacia la aparición del ser humano.
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surgido a partir da matéria inerte, mas este continua sendo um problema sem solução e –
argumenta Artigas – com pouco investimento, pois não traz retorno financeiro imediato.
No século XIX surge a teoria da “panspermia”, pela qual microorganismosmicro-
organismos do espaço teriam originado a vida na Terra. Francis Crick, descobridor do DNA,
retoma a teoria, acrescentando que o fato foi deliberado por outros seres inteligentes. O
astrônomo inglês Fred Hoyle refuta a ideia das condições primitivas na Terra, afirmando que
esta surgiu a partir das nuvens de gás e partículas que (hipoteticamente) formaram o sistema
solar. Para Artigas, o que se percebe destas teorias é que não respondem a questão radical sobre
o surgimento da vida, mas apenas a postergam ao discorrerem sobre a origem da vida neste
planeta e não em geral.Às duas primeiras teorias, Artigas menciona que não respondem
propriamente a questão, mas adiam-na.
O bioquímico russo Aleksandr Oparin, por sua vez, propõe a ideia de coacervados – um
‘caldo’ de substâncias orgânicas no oceano. A teoria ganhou novo alento quando o cientista
Stanley Miller obteve 4 dos 20 aminoácidos das proteínas, a partir de uma reconstituição da
atmosfera primitiva. Tais noções, segundo Artigas, não alteram a razoabilidade de Deus, que
pode agir a partir da matéria criada. O autor apresenta ainda outras teorias, em especial, o já
citado Hoyle, com a ‘teoria do estado estacionário’, mas todas caem no mesmo problema, o
materialismo. Se a ciência não é capaz de investigar em seu método a intervenção divina,
tampouco é possível negá-la, apresentando a origem química da vida como uma certeza
fundamental, embora não contraditória com a Criação. O próprio Hoyle, ateu convicto, aos 68
publica um livro (The Intelligent Universe) propondo uma inteligência superior que é guia do
universo. Nesta reflexão, Artigas vê o 5º argumento de Tomás, sobre o qual discorreremos
adiante, e insiste na validade da possibilidade de uma criação divina.

1.3 ORIGEM DO SER HUMANO

1.3.1 Desenvolvimento da teoria da evolução

Se são muitas as possibilidades e os detalhes por nós desconhecidos no campo do


surgimento da vida, não é diferente em relação à origem das espécies e também da espécie
humana. No século XVIII, imaginava-se que os seres vivos fossem criados por Deus tal como
são hoje, ordenados segundo graus de perfeição; é o sistema de Carlos Lineu, partidário do
“fixismo” estrito. Seu Sistema Naturae de divisão dos seres vivos está ainda vigente e não
atribui nenhum parentesco com o Homo sapiens. Com o desenvolvimento das ciências
6

biológicas, incentivado pela demanda de alimentos (procuravam aumentar a produção) 4,


percebe-se que os seres vivos derivam uns dos outros, e o fixismo foi derrubado. Surge o
modelo de classificação natural, baseado nas afinidades reais entre os organismos. É nesse
período que Kant formula a frase “o homem deriva do símio”, atribuída a Darwin (Artigas &
Turbón, 2007, p. 30).
Um modelo inicial foi proposto por Jean-Baptiste de Lamarck, para quem “os processos
evolutivos consistem em uma adaptação ativa ao meio, graças ao desenvolvimento dos órgãos
mais utilizados e a redução dos inúteis” (Artigas & Turbón, 2007, p. 30), decorrentes de um
impulso interno dos animais para sobreviverem e adaptarem-se: a diversidade de animais se
explica pela diversidade de climas e ambientes – e eles deveriam ter mais de 6 mil anos, como
se pensava antes. Por outro lado, Georg Cuvier, crítico de Lamarck, enunciou a teoria do
catastrofismo, com o intuito de defender o fixismo: propunha que uma destruição cataclítica
era sucedida por novas criações de espécies. Mas uma sucessão contínua foi possível de explicar
graças a alguns “elos perdidos”, como o Archaeopteryx, “que associava os répteis às aves”
(Artigas & Turbón, 2007, p. 31). Os estudos destesEstes elos nos deixam muitas lacunas, pois
a maioria dos organismos se decompõe: a fossilização é um processo que requer condições nem
sempre encontradas, e também porque as transições entre grandes grupos (de répteis a
mamíferos, por exemplo) iniciam-se a partir de um dependem do número reduzido de
indivíduos.
Com Charles Darwin e Alfred Wallace inicia-se uma nova etapa, propondo a ideia de
que o ambiente favorece a reprodução de um indivíduo sobre os outros (seleção natural), e o
ser humano é um ser a mais que é descendente dessa grande cadeia. Esta ideia foi ampliada
para aspectos socioeconômicos gerando o darwinismo social, mesmo sob os protestos de
Darwin. O grande desafio era a herança de caracteres, que seria desenvolvida pela genética.
Darwin não se enfrentou com o problema da variedade de espécies e sobre a herança dos
caracteres: supunha, como Lamarck, a possibilidade de herdar caracteres adquiridos. Por isso,
alguns estudiosos das mutações genéticas no início do século XX eram críticos da seleção
natural. No entanto,
Inicialmente, acreditou-se que o mutacionismo era uma proposta contra a seleção
natural, mas a partir da década deos anos 30 se percebeu que uma das causas centrais da
evolução era precisamente a mutação combinada com a seleção natural: aquela é fonte de sua

4
Incentivadas ou incentivado? Pois quem foi incentivado foi o desenvolvimento.
7

diversidade. Dobhansky, Mayr e Simpson desenvolveram a teoria sintética da evolução, pela


qual os seres vivos são produtos da inter-relação de cinco fatores distintos:

1) a mutação, ou mudanças ao acaso no material hereditário, o DNA;


2) a recombinação genética do DNA;
3) a derivação genética, ou mudança na frequência de variantes genéticas por
acaso, de uma geração a outra, quando a população é pequena;
4) a migração, que incorpora ao grupo reprodutor indivíduos portadores de
variantes genéticas distintas;
5) a seleção natural, ou reprodução diferencial de uns organismos sobre outros,
causada pelo ambiente (Artigas & Turbón, 2007, p. 34).

Nos anos 70, propôs-se a ideia de ‘punctuated equilibria’, em que um brusco salto
interrompe um período de estabilidade. Tal teoria não foi aceita, mas hoje admite-se uma
possibilidade, pois descobriu-se genes reguladoras (hox) que controlam outros genes.

1.3.2 O ser humano como ser de cultura

O ser humano, com o tempo, foi visto como um animal racional capaz de gerar cultura
– o que determinaria a sua própria evolução. Atualmente a ciência vê a espécie humana como
dominadora da natureza, devido à sua expansão demográfica e geográfica; somos capazes de
aprender tarefas complexas e temos a linguagem articulada. Nossa inteligência nos permite uma
grande adaptação e até modificação do meio: o que implica em menor dependência genética.
Há, entretanto, uma dependência desta capacidade cognitiva grupal. //
Por isso é necessário: “... primeiro1º, um potente suporte biológico de memória e
interrelaçãointer-relação de conceitos: o cérebro humano; segundo2º, normas de regulação da
vida social que permitam perpetuar-se a linhagem; 3º e terceiro, um sistema eficaz para a
instrução e aprendizagem das crias. Disso depende a espécie” (Artigas & Turbón, 2007, p. 36).
Esse desenvolvimento sócio cognitivo, que fez decrescer a importância da mudança
morfológica à medida em que se desenvolvia a comunicação, a fabricação de ferramentas e,
posteriormente, o desenvolvimento da ritualidade e da arte(conforme indica a figura 3.1, p. 375),
exigiu a infância e adolescência como tempos que possibilitam um novo irmão6 (favorecendo
o aumento demográfico) ao mesmo tempo em que formam e educam para o comportamento
adultoque o filhote tivesse um tempo maior de formação e educação durante a infância e
adolescência. Os cientistas notam a relação entre essa transformação na conduta e a
reorganização do nosso cérebro; conforme se nota na tabela apresentada abaixo, se o cérebro
do Homo sapiens precisasse nascer com 60% do tamanho que possuirá na idade adulta, como

5
Cf citação
6
Possibilidade de um novo irmão: confusa para o leitor. Explicar melhor.
8

é o caso dos símios, resultaria que precisaria ter 810cm³, e não os 350cm³ com os quais
efetivamente nasce. Com isso, o feto humano nasce bem mais imaturo que o de outros animais,
exigindo um longo tempo de cuidado do grupo. Em compensação, o tempo de gestação é menor,
o que possibilita um aumento demográfico mais rápido. Na tentativa de dominar a natureza, a
cultura se torna a principal adaptação humana. Este alongamento do desenvolvimento permitiu
uma reorganização do nosso cérebro: mesmo sendo maior que o de todos os outros primatas e
ancestrais, seu tamanho relativo ao nascer é significativamente menor: enquanto um símio ou
um Australophitecus nascem com 60% do tamanho cerebral que terão na fase adulta, o H.
sapiens nasce com 26% do tamanho do cérebro na idade adulta. Com os cuidados do grupo, foi
possível o parto de um feto bem mais imaturo que o de outros animais. Desta forma o ser
humano domina a natureza: a cultura – sua principal adaptação.

Tabela 1: Tamanho cerebral ao nascer e em adultos, em símios, Homo (actual) e


hominídios fósseis (calculado). (Segundo P.V.Tobias)
Tamanho Tamanho Porcentagem do Tamanho
cerebral médio cerebral ao tamanho em cerebral
no adulto nascer relação ao estimado se não
adulto se adiantasse o
parto
cm³ cm³ cm³ cm³
Símio 480 300 60
Australopithecus 480 300 60 300
H. habilis 646 300 46 390
H. erectus
(Ásia e África) 890 300 35 530
H.erectus
pekinensis 1043 300 29 625
H. sapiens 1344 350 26 810

1.3.3 Como e quando se deu a evolução do ser humano?

Hoje sabemos que a origem biológica do gênero humano teve lugar há uns 2 milhões
de anos. Certos hominídeos remotos, os australopitecos, seres já bípedes,
experimentaram modificações até um cérebro maior, e reorganizado na linha
‘humana’, isto é, com aparição de estruturas das que dependem funções superiores
cognitivas e a linguagem articulada. A aurora da humanidade está associada a um
câmbio climático de impacto planetário, que modelou drasticamente os ecossistemas
do leste e sul da África, desertificando a região. Uma de suas consequências foi a
desapropriação dos primatas bípedes nestas áreas e a sobrevivência exclusiva do
Homo habilis, autor da mais remota indústria de pedra conhecida (Artigas & Turbón,
2007, p. 41).
9

Em novembro de 1924, M. de Bruyn descobriu, na localidade de Taung, Sul da África,


um crânio muito maior que o dos chipanzés e, nas posteriores pesquisas de Raymond Dart,
concluiu-se que se tratava do “elo perdido” entre homem e símios – o Australophitecus (macaco
do sul). Possuía um sulcus lunatus7, caninos e perfil facial similares aos humanos, mas molares
e caixa craneal próximos ao do chimpanzé. Posteriormente, se descobriu mais sobre a sua
locomoção e seu hábitat.
O Australopiteco não conseguiu sobreviver às mudanças climáticas já comentadas, mas
o Homo habilis (1º do gênero Homo), capaz de elaborar ferramentas de pedra, foi capaz. “O
termo encefalização se utiliza atualmente para expressar a proporção entre o tamanho cerebral
obtido e esperado em um grupo ou ‘taxón8’ determinado” 9. Em todos os cálculos realizados, o
ser humano é o mais encefalizado: seu coeficiente é de 7,6 – isso significa que possuímos um
cérebro 7,6 vezes maior que um animal de mesmo tamanho. A encefalização do australopiteco
varia entre 3,1 e 3,5, do Homo habilis, 4, e do chipanzé, 2,6.
O Homo habilis se encefalizou mais que os outros, graças ao aumento no tempo de
‘maturação’ pós-parto (o que aumentou também a vulnerabilidade e dependência da cria). As
áreas 39 e 40 de Brodmann – atrás do lóbulo parietal também se formaram e expandiram
progressivamente após os australopitecos, áreas cruciais na elaboração de nossa conduta
simbólica. O Sulcus Lunatus é central nessa constatação. O aumento da complexidade social,
emprego de ferramentas e necessidade de comunicação são causas desta reorganização parietal
posterior, na qual a linguagem se associa. As bases da fala humana já foram lançadas com todo
o gênero humano.
A espécie seguinte na evolução é o Homo erectus, formador da infância e adolescência
e dono de grande capacidade migratória. Há 1,8 milhões de anos, esta espécie se expandiu para
além da África, atingindo o cáucaso, China e sudeste asiático... percebe-se isso pela grande
quantidade de ferramentas de pedra encontradas. Diante disso, Turbón e Artigas se perguntam:

Como é possível que os hominídeos pudessem sobreviver na savana aberta, há 2


milhões de anos, com crias cada vez mais dependentes, sem que se extinguisse a
espécie? E não somente isso: como pôde10 colonizar outros continentes em tão
somente 100 mil anos? Não há outra explicação que a modificação da conduta e o
alargamento de nosso desenvolvimento orgânico (Artigas & Turbón, 2007, p. 53).

7
Cf. o que é o sulcus lunatus.
8
Taxón: cada uma das subdivisões da classificação biológica, desde a espécie, que se toma como unidade,
até o filo ou tipo de organização.
9
Cf. citação.
10
Cf português: pôde, pode, puderam?
10

Os estudos mostram que 73% dos Homo habilis morriam antes de alcançar a idade
adulta – enquanto os Australophitecus tinham 35% de mortalidade. Curiosamente, estes não
sobreviveram, enquanto aqueles conseguiram; em parte, graças ao encurtamento do intervalo
de partos. As altas taxas de coesão grupal, bem como a tendência a aumentar o prazer da
atividade sexual, contribuíram para a sobrevivência dos infantes e aumento da taxa
reprodutiva11.
O processo de evolução do Homo erectus não foi tão rápido e uniforme quanto o do
Homo habilis. Houve outras espécies além do Homo sapiens: um processo de
pitecantropização, que gerou o Homo florensis, resultado do ilhamento em Java, e outro de
neandertalização, provocada pela era do gelo europeia. Não há qualquer indício de contribuição
destas espécies para a nossa linhagem genética, mas não se pode negar que foram
contemporâneos de nossos antepassados diretos.

1.3.4 O Homo sapiens

Há cerca de 300 mil anos, a população de Homo sapiens constituía algo em torno de 3
milhões, ocupando boa parte do globo: maior parte da Europa, costa asiática, África. Habitavam
em pradarias e zonas com bosques, onde encontravam animais herbívoros para alimentação
(embora fossem muito importantes os vegetais na dieta).
O cérebro já estava formado, e o Homo sapiens podia controlar a aprendizagem e
aumentar a complexidade das relações grupais; alcançando, inclusive, a domesticação de
plantas e animais. As variações anatômicas existentes são traços superficiais, não linhas
profundas de divisão de espécie.
Desde 130 mil anos, os restos fósseis são distinguidos apenas pelos restos ósseos: o
homem dominava o fogo e produzia muitas ferramentas, aproveitando os recursos e
aumentando o controle ambiental; a arte e o rito tomaram força12 e os ritos funerais são
apontados há 90 mil anos.
Não é fácil sabermos “como, onde, quando e por que” deu-se a transição entre os
humanos sapiens arcaicos e os atuais. Os mais antigos fósseis, localizados no Quênia e no sul
da África, são de 154-160 mil anos. A Ásia também tem registros de fósseis, e até mesmo a
Austrália tem uma ocupação de 55 mil anos. A Europa ficou isolada, por conta das barreiras

11
Cf. figura 3.9, em p. 55
12
Cf. p.60§3
11

glaciais, mantendo os neandertais. Parece ter sido ocupada há 40 mil anos, sendo que a última
comunidade de que se tem notícia possui 28 mil anos.
Boa parte do registro fóssil e estudos moleculares apontam para a tese de “reemplazo
rápido”, em que da África surgiu a humanidade atual, que se espalhou por toda parte. A hipótese
de “continuidade regional”13, por sua vez, defende a formação paralela na África e Eurásia, o
que explicaria as diferenças somáticas entre as populações europeia, melano-africana, asiático-
mongoloide e australiana. É menos provável, mas não pode ser descartada, uma vez que é
possível, devido à grande capacidade migratória14.
Esta transição afetou o crâneo e, especialmente o rosto. A face e os dentes se reduziram,
apareceu a barba. Os instrumentos de caça a distância permitiram a gracilização do corpo. Há
10 mil anos, ocorreu domesticação de animais e cultivo de plantas. A expansão demográfica e
depois, geográfica, absorveu geneticamente todos os grupos do mundo, constituindo um grande
obstáculo para o estudo do período.
Em 1987, alguns cientistas norte-americanos, por meio de enzimas fragmentadoras do
DNA, analisaram o DNA mitocondrial de 147 pessoas de diferentes regiões, e concluíram que
a espécie humana originou-se há cerca de 200 mil anos e espalhou-se há 100 mil anos. O DNA
mitocondrial é uma ferramenta muito útil: “número elevado de cópias por célula, aparente falta
de recombinação, alta taxa de mutação e herança materna” (Artigas & Turbón, 2007, p. 64)
auxiliaram a compreensão de que as mitocôndrias são cópias modificadas de uma única mulher
que viveu no passado15.
As informações do DNA mitocondrial são certamente limitadas, pois só representa a
linhagem materna. É certo que existiram outras linhagens maternais que não se transmitiram.
Os estudos indicam uma pequena variação genética intercontinental e grande variação
intracontinental16.

1.4 O DEBATE CRIACIONISMO VS. EVOLUCIONISMO E O DESIGN INTELIGENTE

A questão da origem da vida, em especial da vida humana, suscita grandes discussões.


Uma delas é a da oposição forte entre criacionistas e evolucionistas, especialmente nos EUA, a
ponto de propor-se o ensino do criacionismo nas escolas. Mas Artigas explica que ambos os

13
Cf. estas aspas.
14
P. 62, imagem com os fósseis.
15
Para rotas e migrações, cf fig 4.5, p.67.
16
Cf.
12

grupos não estão apenas enfrentando as doutrinas científicas: possuem sociologia e história
próprias.
Os ultracriacionistas17 estão muito ligados à derrota da Guerra Civil. Se o Sul perdeu
belicamente e foi obrigado a aceitar algumas propostas políticas, recusou-se a abandonar suas
ideias. Isso inclui uma interpretação bíblica segundo “a letra”, contrariando a tradição exegética
nortista, de interpretação segundo “o espírito”. Em que isso altera a relação com a teoria da
evolução? Uma interpretação segundo “a letra” aceitará como verdade a literalidade do texto, e
portanto, o relato do Gênesis tal como está escrito, enquanto uma interpretação segundo “o
espírito” é capaz de compreender que a intenção (o espírito) do autor não era fazer um relato
científico da criação, mas lembrar que Deus é o autor do mundo. Colocou-se, então, o
antievolucionismo18 neste pacote de antimodernismo19. Este grupo, entretanto, consiste numa
tentativa de resposta aos dogmáticos e infundados ultra-evolucionistas. Evidentemente, Artigas
não justifica sua posição: apenas esclarece que o grupo erra no remédio, não no diagnóstico.
De fato, doutrinas como as de Carl Sagan, especialmente na série de TV “Cosmos” extrapolam
o conhecimento científico e tratam a questão como se apenas dependesse de alguma evidência
científica quando não depende. Em outras palavras, se os ultracriacionistas estão errados por
não aceitarem a interpretação bíblica a partir da Tradição, dando-lhe um status científico, os
ultraevolucionistas também estão, por extrapolarem a cientificidade seja por tratar temas
filosóficos e teológicos como se fossem científicos, seja porque os cientistas são humanos e
podem confundir posturas pessoais com dados científicos. De Sagan, Artigas escreve: “... como
é possível que um físico como Sagan encontre tanta oposição entre a ciência e a religião e dirija
contra esta ataques em nome da ciência, quando, ademais, no começo de sua série televisiva
afirmou que somente apresentaria como certo o que estivesse demonstrado?” (Artigas, 2004, p.
114).
É nesse contexto que se insere, por exemplo, o tribunal McLean vs. Arkansas, em que
no dia 19 de março de 1981 o estado de Arkansas aprovou o ensino do criacionismo, gerando
protestos em todos os lugares, e tendo recurso contra assinado por cientistas, autoridades civis
e inclusive eclesiásticas. No dia 5 de janeiro do ano seguinte, após ouvir inúmeros cientistas, o
juiz Overton declarou que a ciência tem cinco características essenciais:

17
Confira o português.
18
idem
19
idem
13

(1) Guia-se pelas leis naturais; (2) deve explicar as leis naturais; (3) se pode contrastar
empiricamente; (4) suas conclusões são tentativas, ou seja, não são necessariamente a
última palavra; (5) é falseável (Artigas & Turbón, 2007, p. 104).

Desta maneira, o criacionismo não foi considerado científico. Disto Artigas não duvida,
embora assinale que é diferente defender Criação e criacionismo científico. Aliás, apoiar este
tipo de ensino nas escolas nem sempre é adequado:

Compreende-se que quando se ensina o materialismo junto com o evolucionismo,


como se fosse uma conclusão científica, há que aclarar as coisas. Mas é de temer que
essa batalha escolar possa confundi-las mais ainda, aguçando a falsa oposição entre
criação e evolução (Artigas & Turbón, 2007, p. 103).

Para o autor estudado, embora a polêmica se torne, muitas vezes, superficial, existem
problemas reais de fundo da polêmica norte-americana, a saber, o que é ciência e o que não é.
Citando Popper, argumenta que o criacionismo não é científico, e sustenta que os doutores da
Igreja também concordariam com esta afirmação. Utilizar argumentos como a segunda lei da
termodinâmica, peculiaridades do magnetismo natural ou teorias do Big Bang para defender a
existência da Criação é atitude suspeitosa. Mas o problema também se faz do outro lado: “Com
que direito pretende um evolucionismo que mescla certezas, hipóteses e ideologias, o
monopólio no ensino acerca da história do universo e da vida? (Artigas, 2004, p. 116)20”. O
problema é que uma valoração absoluta e objetiva de cada teoria é impossível, tamanha seria a
extensão do projeto. A solução proposta pelo filósofo é o compromisso com a exposição do
conhecimento científico prescindindo da pseudociência.
O autor esclarece que concorda com a separação entre os âmbitos, e afirma que
precisamente o fato de não atuarem no mesmo nível os faz complementares. Para ele, é uma
verdadeira educação científica, feita de maneira a questionar retamente a própria ciência que
seria capaz de combater as descrições “super-simplificadoras ou dogmáticas”. Se aos cientistas
não agrada que se possa sustentar com propriedade científica uma cosmovisão cristã, também
não podem ser desonrados e fazerem alusões em sentido contrário. Ser evolucionista teísta
também possibilita uma liberdade maior frente às evidências científicas, enquanto o
evolucionista materialista obriga-se à única e obrigatória escolha da atividade físico-química.
Numa tentativa de fugir deste debate, apresenta-se o Desenho Inteligente (Intelligent
Design), teoria recente que, mesmo com o intuito de combater o materialismo científico, não
se baseia na Bíblia e na religião para afirmar suas ideias, e sim em raciocínios que se pretendem
científicos.

20
Cf tradução.
14

O Desenho Inteligente é um movimento que, sem recorrer à religião, se opõe ao


darwinismo porque o considera como uma fonte de materialismo e, ainda que admita
que algumas explicações darwinistas são válidas, afirma que existem fenômenos que
o darwinismo não pode explicar (Artigas & Turbón, 2007, pp. 97-98).

Para os defensores dessa teoria, os sistemas naturais apresentam “complexidade


irredutível” – constituem um sistema harmônico e interatuante que não funciona com a
eliminação de qualquer uma das peças”21. Dambski auxiliou na divulgação da teoria inserindo
no debate a matemática e a teoria da informação, necessárias para compreender este desenho.
Para Artigas, é correto que muitas estruturas pareçam desenhadas, devido a tamanha
complexidade, mas é muito difícil não admitir uma intenção teológica nesses estudos, posto
que se negam os fatores puramente naturais apresentados pelos darwinistas. É interessante
sublinhar a finalidade, mas não é adequado propor um plano “inteligente” na biologia,
extrapolando o método da ciência experimental. A ciência parte de um naturalismo
metodológico que não pode ser extrapolado. Se não é correto lançar mão de um naturalismo
ontológico, o oposto também não pode ser válido, e por isso esta teoria traz extrapolações
ilegítimas.

1.5 QUEM É O SER HUMANO?

Tomás de Aquino, nas questões 75 a 102 de sua Suma Teológica, escreve um breve
tratado sobre o ser humano, caracterizando-o como alguém que possui corpo e alma. Esta alma,
como podemos perceber ao longo do tratado, não se trata simplesmente de algo religioso, mas
diz respeito diretamente à capacidade de intelecção e também em relação aos afetos e vontade.
Outro pensador de destaque, Blaise Pascal, no §347 de seu livro Pensamentos, afirma: “O
homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante” (1973,
p. 123). Mais recentemente, vimos o crescimento da filosofia de tipo personalista, a qual
defende como núcleo do pensamento filosófico uma concepção antropológica, de maneira que
o ser humano é pessoa à medida que é partícipe da pessoalidade divina. O personalismo valoriza

... a pessoa como eu e quem, a afetividade e a subjetividade, a interpessoalidade e o


caráter comunitário, a corporalidade, a tripartição da pessoa no nível somático,
psíquico e espiritual, a pessoa como varão e mulher, primazia do amor, liberdade
como autodeterminação, caráter narrativo da existência humana, transcendência como
relação com um Tu (Burgos, 2012, pp. 239-240).

Já apresentamos nas páginas anteriores a vantagem cultural que, segundo os estudos


científicos, temos diante dos outros animais, e aqui nos deteremos à percepção de que um estudo

21
Referência
15

filosófico também é capaz de notar a espiritualidade humana – como podemos verificar em


reflexões de diferentes filósofos em distintas épocas da história da filosofia.
Publicada em 1859, a obra “Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural”,
mesmo sem falar do ser humano, deixava clara a tese de que o homem também estaria incluído
nesta cadeia. Foi 12 anos mais tarde que Darwin publicou um livro especificamente sobre isso
– “Sobre a origem do homem”. Nele, considerava que as principais características humanas
(linguagem, pensamento abstrato, sentido moral e religião) não são diferenças essenciais, mas
de grau. Marcante desta moda de “destronamento do homem” é a asserção de Sigmund Freud,
para quem o ser sofreu três duros golpes em sua presunção de destaque no universo.
Primeiramente com a Revolução Copernicana, que depôs seu mundo de centralidade no
cosmos, seguido pela Teoria da Evolução, que lhe arrancou a noção de criação privilegiada e
por fim, a descoberta do Inconsciente, o qual lhe suprimiu a noção de auto-governo22.
Diante de pretensos golpes, Artigas posiciona-se num tom caloroso, quase apologético,
ímpar em sua obra:

... resulta curioso que se utilize a ciência, uma de nossas criações mais assombrosas,
para rebaixar o que realmente somos. Mas, além disso, essas revoluções científicas
não têm o alcance que Freud e muitos contemporâneos lhes atribuem. Que a Terra não
seja o centro do universo não modifica nem no mínimo o que realmente somos como
seres espirituais e filhos de Deus. E nossa possível proveniência a partir do reino
animal não acrescenta nada ao que desde a antiguidade se tem sabido e dito: que
somos animais. Simplesmente, somos animais especiais. Somos parte da natureza,
mas, ao mesmo tempo, a transcendemos. Somos capazes de conhecê-la
cientificamente e de transformá-la, e em ocasiões o fazemos de um modo nocivo para
nossa própria espécie, destruindo a própria natureza que nos serve de refúgio e
introduzindo nela uma contaminação funesta.
Mais funesta, todavia, é a contaminação intelectual e moral que se realiza quando, em
nome da ciência, se pretende degradar o ser humano muito abaixo de sua autêntica
dignidade, privando-o do sentido profundo de sua vida e impedindo sua realização
mais originária. Não se trata de destruir pedestais artificialmente construídos pelo
orgulho. Reconhecer a dignidade humana não é orgulho. É um dever ético que resulta
plenamente coerente com o impressionante progresso da ciência e da tecnologia em
nossa época (Artigas & Turbón, 2007, p. 111).

Não só é estranho o rebaixamento do ser humano pela ciência, numa atitude de pouca
compreensão filosófica de sua pessoalidade, como também é notável a incompreensão da
relação entre criação humana no acaso e causalidade. Embora exista uma parcela desses dois
elementos, pois muitos sucessos não correspondem às leis necessárias, para Deus não existe
acaso, nada cai fora de seus planos, seja por querer o por permitir. Quanto a isso, discorreremos
adiante, no capítulo 3.

22
Inserir referência
16

Só nós podemos fazer ciência e possuímos a capacidade de autorreflexão. Conhecemos


e refletimos os nossos conhecimentos. Além do mais, abstraímos o mundo e o representamos,
para podermos estudá-lo (é o que Newton fez para compreender a gravitação universal).

Somos capazes de realizar uma atividade deste tipo porque possuímos uma capacidade
intelectual que nos permite criar modelos teóricos, idealizar experimentos para pô-los
à prova e ver se funcionam, interpretar os resultados dos experimentos, ver se estão
de acordo com as previsões da teoria, julgar se o acordo é suficiente para aceitar a
teoria e em que grau (Artigas & Turbón, 2007, p. 112).

Tudo isso porque demandamos a verdade. Essas capacidades humanas, de fato


participam de uma base física, o cérebro e os sentidos. A ciência também tem base dupla:
inteligência e sentidos, teoria e experimento.
Conforme Artigas, independentemente da forma como surgiram, nossas capacidades
espirituais são reais – e podem ter existido nos hominídeos pré Homo sapiens moderno,
paralelas ao desenvolvimento de seu organismo. Não sabemos quando surgiram as dimensões
espirituais, e é possível que tenham existido de modo incompleto nos nossos antepassados e,
plenamente, só em nós, embora alguns pensem que o Homo habilis já tivesse as capacidades
humanas fundamentais. Essa aparente incompletude não é de surpreender, uma vez que, do
ponto de vista biológico, cada ser humano já foi uma única célula, o zigoto, e nem por isso foi
menos humano do que é nesse instante23.
“É preciso desenvolver uma compreensão suficientemente equilibrada do ser humano,
pois julgamos nossa própria vida na ideia que temos de nós mesmos” (Artigas & Turbón, 2007,
p. 114). O zoólogo averigua as semelhanças e diferenças do humano em relação aos outros
mamíferos superiores, mas seu trabalho claramente não esgota as considerações sobre o
homem: temos mãos, e compreender para que servem exige a noção de serviço e estabilidade
dentro da estrutura familiar, que depende da linguagem. Esta possui partes físicas, mas também
é necessário algo mais para dizer, algo que se pensa. Assim encerra-se o ciclo. Possuímos mãos
por possuirmos pensamento.
O pensar possibilita enfrentar a realidade, e por isso o homem não está determinado em
seu comportamento. Por ser livre, pode amar e também criar cultura e história, transformar o
mundo. Não se vive só uma vida biológica, mas biográfica. Dessa forma, compreende-se que o
ser humano está na natureza, segue a natureza, mas também a transcende.
Na discussão acerca da possível espiritualidade da natureza humana, encontram-se duas
correntes: o materialismo e o emergentismo. O primeiro nega as dimensões propriamente

23
Acrescentar citação
17

humanas, que são imateriais. Não há uma realidade material que explique um universal ou uma
negação. Também não é possível explicar como um ser material conhece as leis da matéria e as
aproveite em seu favor. O segundo aceita a singularidade humana, mas a explica como uma
emergência de uma nova propriedade a partir de uma complexidade da matéria. O pensamento
seria fruto do crescimento cerebral. Dois suportes, porém, não estão claros: (i) parece supor que
se algo vem de outra coisa se reduz ao anterior e (ii) parece supor que o anterior é mais
fundamental que o posterior por este provir daquele.

1.5.1 A pessoa humana como término da ação divina24

 Assimetria entre indivíduo e espécie


 Societariedade: a sociedade aperfeiçoa, não apenas conserva o homem
 O material é criado em função da pessoa humana
A pessoa humana é uma realidade que contém dimensões materiais e espirituais.

24
Reorganizar este trecho.

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