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Seguindo a linha aristotélica das quatro causas, Artigas afirma que a ciência se ocupa
com as causas eficiente e material, enquanto a filosofia detém-se principalmente na
investigação das causas formal e final. É assim que caminha por uma tênue fronteira entre
ambos os campos: sem preocupar-se necessariamente com as investigações filosóficas, a
ciência pode pesquisar livremente em seu campo de atuação – é totalmente autônoma em seu
campo próprio; no entanto, o proceder da investigação das causas formal e final não pertence
ao âmbito científica, o que faz com que oé o mesmo, e por isso o cientista, neste caso, não
tenham o aval da ciência para argumentar. O cientista Ttem o total direito de propor novas
compreensões das causas finais ou formais, mas deve notar que não está fazendo ciência ao
propô-las, e sim filosofia. Precisamente por isso, a ciência ganha neutralidade: não pode afirmar
nem negar absolutamente nada sobre as causas que não investiga, e o cientista que afirma algo
acerca delasqualquer coisa em nome da ciência está cometendo uma extrapolação de seu campo
de pesquisa. Este é o fundamento que perpassará toda a argumentação. O dever do filósofo,
neste caso, não é propor uma explicação correta dentro dos parâmetros científicos, mas alertar
para esta eventual ideologização da ciência que faz mal para ela mesma (Artigas, 2004, p. 75).
Artigas é um admirador da obra de Karl Popper. O que está em jogo, por trás deste alerta
para as eventuais ideologizações, é a tentativa de falsear, com a filosofia, as posturas científicas.
Para Popper, aceitar uma teoria T exige que todas as suas consequências (c1, c2, c3, ..., cn) sejam
verdadeiras e também observáveis. Não sendo observáveis, não podem ser científicas. Em sua
investigação, o filósofo espanhol nota que algumas destas consequências não exigem uma mera
observação científica, discorrendo sobre as causas formal e final. O que apresentaremos ao
longo deste capítulo é justamente este trabalho de discernimento, realizado pelo espanhol, sobre
o que é legitimamente científico e o que extrapola o campo. Iniciando a reflexão sobre a origem
do cosmos e chegando até a discussão sobre a vida humana – sem esquecer da origem da vida,
percebe-se como a fronteira entre a filosofia – especificamente uma filosofia cristã – e a ciência
é difusa, como ambos os conhecimentos podem, e devem, tomar parte ao longo das reflexões;
alguns pensam esta relação como conflituosa ou contrastante, mas é possível tomar uma postura
de diálogo e até de confirmação, no sentido de uma que confirma e até mesmo estimula a outra
parte.
2
A cosmologia começou a ganhar força a partir de 1964, quando Arno Penzias e Robert
Wilson descobriram a radiação de fundo de micro-ondas, confirmando o que formularam os
físicos teóricos de antes da década de 1930. Foi o padre Georges Lamaître quem propôs a tese
de um átomo primitivo que produziu a Grande Explosão (Modelo Cosmológico Padrão ou
Modelo do Big Bang); Albert Einstein e Alexander Friedmann teorizaram sobre a relatividade
geral em um universo em expansão, e Edwin Hubble notou o distanciamento (e velocidade)
entre as galáxias.//1
Acontecido há cerca de 15 bilhões de anos a A teoria formula a hipótese de explosão de
uma partícula elementar a 10 bilhões de graus Kelvin – temperatura longe de ser alcançada em
laboratório - há cerca de 15 bilhões de anos. Nos três primeiros minutos, há ocorreu a
nucleossíntese – formação de Hélio e Nitrogênio, que constituem quase toda a massa do
universo. Em alguns milhões de anos a temperatura esfria esfriou e se iniciainiciou-se a
formação atômica (núcleo e elétrons). Mais alguns bilhões de anos se formam formaram
estrelas, galáxias. Outras observações contribuem com o modelo originário, e a física apoia a
composição da matéria em dois elementos fundamentais que são as partículas e as forças
(interações entre partículas). Segundo o modelo do Big Bang, elas não eram diferenciadas.
No do campo científico, o modelo apresentado é aceito como clássico. Entretanto, há
muitos alguns problemas vindos deste modelo, como os quasares, que não seguem a Lei de
Hubble, contradizendo a ideia de expansão generalizada do universo, ou a idade das estrelas,
bem maior que a idade do Universo (feita por extrapolação). Existem modelos alternativos ao
Big Bang, como a Teoria do Estado Quase Estacionário, o Modelo Cosmológico de Jayant
Narlikar entre outros2. Ao recordá-los, lembramos como estes modelos alternativos Estes
campos contribuem para a noção de que o Big Bang é só uma hipótese, não um dogma ou uma
certeza. Com isso, não se pretende desafirmá-lo ou desacreditá-lo, mas Ttrocar estes os
conceitos seria extremamente prejudicial para a ciência, e o fato da teoria não ser comprovada
não a prejudica, uma vez que continua sendo o melhor cenário para o passado do universo.
Relacionado com o Big Bang está o conceito de Criação ex-nihilo, isto é, “do nada”.
Não se pode, contudo, interpretar o Modelo PadrãoBig Bang como o início temporal do
universo, numa tentativa de provar cientificamente a Criação, – como se fosse a prova científica
1
“//”: indica que o parágrafo abaixo foi unido com o parágrafo atual.
2
Para mais informações a respeito, recomendamos, entre outros, SILVA, M.B.E. 2009, Teorias
Cosmológicas alternativas ao Modelo Padrão, Estudo Orientado, Departamento de Física, UFMG. Disponível
em: www.fisica.ufmg.br/~dsoares/ensino/marina-teorias.doc. Acessado em 28.09.2015.
3
desenvolvimento das potências postas por Deus na natureza, que é participante do Ser. Não
vêm, portanto, absolutamente “do nada”.
Além do problema da Criação, surge, também, a questão do “princípio antrópico”Há,
ainda, uma questão fundamental, o princípio antrópico:
A ideia básica é simples. Na atualidade sabemos que as condições físicas que fazem
possível a vida humana são enormemente específicas. Parece lógico perguntar-se se
são o resultado de uma série de casualidades ou se, ao contrário, apontam até a
existência de um plano superior dirigido até a aparição do ser humano (Artigas, 2004,
p. 31)3.
Muito do que sabemos hoje sobre a origem da vida e do ser humano é fruto do trabalho
iniciado por Gregor Mendel. Sem sua inovação nos estudos da genética, desprezada até o século
XX, seria muito difícil a projeção que ganhou a teoria de Darwin. Igualmente importante é o
estudo da estrutura do ácido desoxirribonucleico (DNA), com o qual o estudo genético está
interligado. Notório é que, embora em meados do século XIX já se conhecesse sua composição
como portador da carga genética, foi só em 1953 que o modelo de dupla hélice surgiu e explicou
a transmissão hereditária.//
Tal descoberta traz à tona a questão da origem da vida: a replicação do DNA exige a
presença de enzimas, que requerem ácidos nucleicos. Surge a hipótese de que a vida tenha
3
La idea básica es simple. En la actualidad sabemos que las condiciones físicas que hacen posible la vida
humana son enormemente específicas. Parece lógico preguntarse si son el resultado de una serie de casualidades
o si, por el contrario, apuntan hacia la existencia de un plan superior dirigido hacia la aparición del ser humano.
5
surgido a partir da matéria inerte, mas este continua sendo um problema sem solução e –
argumenta Artigas – com pouco investimento, pois não traz retorno financeiro imediato.
No século XIX surge a teoria da “panspermia”, pela qual microorganismosmicro-
organismos do espaço teriam originado a vida na Terra. Francis Crick, descobridor do DNA,
retoma a teoria, acrescentando que o fato foi deliberado por outros seres inteligentes. O
astrônomo inglês Fred Hoyle refuta a ideia das condições primitivas na Terra, afirmando que
esta surgiu a partir das nuvens de gás e partículas que (hipoteticamente) formaram o sistema
solar. Para Artigas, o que se percebe destas teorias é que não respondem a questão radical sobre
o surgimento da vida, mas apenas a postergam ao discorrerem sobre a origem da vida neste
planeta e não em geral.Às duas primeiras teorias, Artigas menciona que não respondem
propriamente a questão, mas adiam-na.
O bioquímico russo Aleksandr Oparin, por sua vez, propõe a ideia de coacervados – um
‘caldo’ de substâncias orgânicas no oceano. A teoria ganhou novo alento quando o cientista
Stanley Miller obteve 4 dos 20 aminoácidos das proteínas, a partir de uma reconstituição da
atmosfera primitiva. Tais noções, segundo Artigas, não alteram a razoabilidade de Deus, que
pode agir a partir da matéria criada. O autor apresenta ainda outras teorias, em especial, o já
citado Hoyle, com a ‘teoria do estado estacionário’, mas todas caem no mesmo problema, o
materialismo. Se a ciência não é capaz de investigar em seu método a intervenção divina,
tampouco é possível negá-la, apresentando a origem química da vida como uma certeza
fundamental, embora não contraditória com a Criação. O próprio Hoyle, ateu convicto, aos 68
publica um livro (The Intelligent Universe) propondo uma inteligência superior que é guia do
universo. Nesta reflexão, Artigas vê o 5º argumento de Tomás, sobre o qual discorreremos
adiante, e insiste na validade da possibilidade de uma criação divina.
4
Incentivadas ou incentivado? Pois quem foi incentivado foi o desenvolvimento.
7
Nos anos 70, propôs-se a ideia de ‘punctuated equilibria’, em que um brusco salto
interrompe um período de estabilidade. Tal teoria não foi aceita, mas hoje admite-se uma
possibilidade, pois descobriu-se genes reguladoras (hox) que controlam outros genes.
O ser humano, com o tempo, foi visto como um animal racional capaz de gerar cultura
– o que determinaria a sua própria evolução. Atualmente a ciência vê a espécie humana como
dominadora da natureza, devido à sua expansão demográfica e geográfica; somos capazes de
aprender tarefas complexas e temos a linguagem articulada. Nossa inteligência nos permite uma
grande adaptação e até modificação do meio: o que implica em menor dependência genética.
Há, entretanto, uma dependência desta capacidade cognitiva grupal. //
Por isso é necessário: “... primeiro1º, um potente suporte biológico de memória e
interrelaçãointer-relação de conceitos: o cérebro humano; segundo2º, normas de regulação da
vida social que permitam perpetuar-se a linhagem; 3º e terceiro, um sistema eficaz para a
instrução e aprendizagem das crias. Disso depende a espécie” (Artigas & Turbón, 2007, p. 36).
Esse desenvolvimento sócio cognitivo, que fez decrescer a importância da mudança
morfológica à medida em que se desenvolvia a comunicação, a fabricação de ferramentas e,
posteriormente, o desenvolvimento da ritualidade e da arte(conforme indica a figura 3.1, p. 375),
exigiu a infância e adolescência como tempos que possibilitam um novo irmão6 (favorecendo
o aumento demográfico) ao mesmo tempo em que formam e educam para o comportamento
adultoque o filhote tivesse um tempo maior de formação e educação durante a infância e
adolescência. Os cientistas notam a relação entre essa transformação na conduta e a
reorganização do nosso cérebro; conforme se nota na tabela apresentada abaixo, se o cérebro
do Homo sapiens precisasse nascer com 60% do tamanho que possuirá na idade adulta, como
5
Cf citação
6
Possibilidade de um novo irmão: confusa para o leitor. Explicar melhor.
8
é o caso dos símios, resultaria que precisaria ter 810cm³, e não os 350cm³ com os quais
efetivamente nasce. Com isso, o feto humano nasce bem mais imaturo que o de outros animais,
exigindo um longo tempo de cuidado do grupo. Em compensação, o tempo de gestação é menor,
o que possibilita um aumento demográfico mais rápido. Na tentativa de dominar a natureza, a
cultura se torna a principal adaptação humana. Este alongamento do desenvolvimento permitiu
uma reorganização do nosso cérebro: mesmo sendo maior que o de todos os outros primatas e
ancestrais, seu tamanho relativo ao nascer é significativamente menor: enquanto um símio ou
um Australophitecus nascem com 60% do tamanho cerebral que terão na fase adulta, o H.
sapiens nasce com 26% do tamanho do cérebro na idade adulta. Com os cuidados do grupo, foi
possível o parto de um feto bem mais imaturo que o de outros animais. Desta forma o ser
humano domina a natureza: a cultura – sua principal adaptação.
Hoje sabemos que a origem biológica do gênero humano teve lugar há uns 2 milhões
de anos. Certos hominídeos remotos, os australopitecos, seres já bípedes,
experimentaram modificações até um cérebro maior, e reorganizado na linha
‘humana’, isto é, com aparição de estruturas das que dependem funções superiores
cognitivas e a linguagem articulada. A aurora da humanidade está associada a um
câmbio climático de impacto planetário, que modelou drasticamente os ecossistemas
do leste e sul da África, desertificando a região. Uma de suas consequências foi a
desapropriação dos primatas bípedes nestas áreas e a sobrevivência exclusiva do
Homo habilis, autor da mais remota indústria de pedra conhecida (Artigas & Turbón,
2007, p. 41).
9
7
Cf. o que é o sulcus lunatus.
8
Taxón: cada uma das subdivisões da classificação biológica, desde a espécie, que se toma como unidade,
até o filo ou tipo de organização.
9
Cf. citação.
10
Cf português: pôde, pode, puderam?
10
Os estudos mostram que 73% dos Homo habilis morriam antes de alcançar a idade
adulta – enquanto os Australophitecus tinham 35% de mortalidade. Curiosamente, estes não
sobreviveram, enquanto aqueles conseguiram; em parte, graças ao encurtamento do intervalo
de partos. As altas taxas de coesão grupal, bem como a tendência a aumentar o prazer da
atividade sexual, contribuíram para a sobrevivência dos infantes e aumento da taxa
reprodutiva11.
O processo de evolução do Homo erectus não foi tão rápido e uniforme quanto o do
Homo habilis. Houve outras espécies além do Homo sapiens: um processo de
pitecantropização, que gerou o Homo florensis, resultado do ilhamento em Java, e outro de
neandertalização, provocada pela era do gelo europeia. Não há qualquer indício de contribuição
destas espécies para a nossa linhagem genética, mas não se pode negar que foram
contemporâneos de nossos antepassados diretos.
Há cerca de 300 mil anos, a população de Homo sapiens constituía algo em torno de 3
milhões, ocupando boa parte do globo: maior parte da Europa, costa asiática, África. Habitavam
em pradarias e zonas com bosques, onde encontravam animais herbívoros para alimentação
(embora fossem muito importantes os vegetais na dieta).
O cérebro já estava formado, e o Homo sapiens podia controlar a aprendizagem e
aumentar a complexidade das relações grupais; alcançando, inclusive, a domesticação de
plantas e animais. As variações anatômicas existentes são traços superficiais, não linhas
profundas de divisão de espécie.
Desde 130 mil anos, os restos fósseis são distinguidos apenas pelos restos ósseos: o
homem dominava o fogo e produzia muitas ferramentas, aproveitando os recursos e
aumentando o controle ambiental; a arte e o rito tomaram força12 e os ritos funerais são
apontados há 90 mil anos.
Não é fácil sabermos “como, onde, quando e por que” deu-se a transição entre os
humanos sapiens arcaicos e os atuais. Os mais antigos fósseis, localizados no Quênia e no sul
da África, são de 154-160 mil anos. A Ásia também tem registros de fósseis, e até mesmo a
Austrália tem uma ocupação de 55 mil anos. A Europa ficou isolada, por conta das barreiras
11
Cf. figura 3.9, em p. 55
12
Cf. p.60§3
11
glaciais, mantendo os neandertais. Parece ter sido ocupada há 40 mil anos, sendo que a última
comunidade de que se tem notícia possui 28 mil anos.
Boa parte do registro fóssil e estudos moleculares apontam para a tese de “reemplazo
rápido”, em que da África surgiu a humanidade atual, que se espalhou por toda parte. A hipótese
de “continuidade regional”13, por sua vez, defende a formação paralela na África e Eurásia, o
que explicaria as diferenças somáticas entre as populações europeia, melano-africana, asiático-
mongoloide e australiana. É menos provável, mas não pode ser descartada, uma vez que é
possível, devido à grande capacidade migratória14.
Esta transição afetou o crâneo e, especialmente o rosto. A face e os dentes se reduziram,
apareceu a barba. Os instrumentos de caça a distância permitiram a gracilização do corpo. Há
10 mil anos, ocorreu domesticação de animais e cultivo de plantas. A expansão demográfica e
depois, geográfica, absorveu geneticamente todos os grupos do mundo, constituindo um grande
obstáculo para o estudo do período.
Em 1987, alguns cientistas norte-americanos, por meio de enzimas fragmentadoras do
DNA, analisaram o DNA mitocondrial de 147 pessoas de diferentes regiões, e concluíram que
a espécie humana originou-se há cerca de 200 mil anos e espalhou-se há 100 mil anos. O DNA
mitocondrial é uma ferramenta muito útil: “número elevado de cópias por célula, aparente falta
de recombinação, alta taxa de mutação e herança materna” (Artigas & Turbón, 2007, p. 64)
auxiliaram a compreensão de que as mitocôndrias são cópias modificadas de uma única mulher
que viveu no passado15.
As informações do DNA mitocondrial são certamente limitadas, pois só representa a
linhagem materna. É certo que existiram outras linhagens maternais que não se transmitiram.
Os estudos indicam uma pequena variação genética intercontinental e grande variação
intracontinental16.
13
Cf. estas aspas.
14
P. 62, imagem com os fósseis.
15
Para rotas e migrações, cf fig 4.5, p.67.
16
Cf.
12
grupos não estão apenas enfrentando as doutrinas científicas: possuem sociologia e história
próprias.
Os ultracriacionistas17 estão muito ligados à derrota da Guerra Civil. Se o Sul perdeu
belicamente e foi obrigado a aceitar algumas propostas políticas, recusou-se a abandonar suas
ideias. Isso inclui uma interpretação bíblica segundo “a letra”, contrariando a tradição exegética
nortista, de interpretação segundo “o espírito”. Em que isso altera a relação com a teoria da
evolução? Uma interpretação segundo “a letra” aceitará como verdade a literalidade do texto, e
portanto, o relato do Gênesis tal como está escrito, enquanto uma interpretação segundo “o
espírito” é capaz de compreender que a intenção (o espírito) do autor não era fazer um relato
científico da criação, mas lembrar que Deus é o autor do mundo. Colocou-se, então, o
antievolucionismo18 neste pacote de antimodernismo19. Este grupo, entretanto, consiste numa
tentativa de resposta aos dogmáticos e infundados ultra-evolucionistas. Evidentemente, Artigas
não justifica sua posição: apenas esclarece que o grupo erra no remédio, não no diagnóstico.
De fato, doutrinas como as de Carl Sagan, especialmente na série de TV “Cosmos” extrapolam
o conhecimento científico e tratam a questão como se apenas dependesse de alguma evidência
científica quando não depende. Em outras palavras, se os ultracriacionistas estão errados por
não aceitarem a interpretação bíblica a partir da Tradição, dando-lhe um status científico, os
ultraevolucionistas também estão, por extrapolarem a cientificidade seja por tratar temas
filosóficos e teológicos como se fossem científicos, seja porque os cientistas são humanos e
podem confundir posturas pessoais com dados científicos. De Sagan, Artigas escreve: “... como
é possível que um físico como Sagan encontre tanta oposição entre a ciência e a religião e dirija
contra esta ataques em nome da ciência, quando, ademais, no começo de sua série televisiva
afirmou que somente apresentaria como certo o que estivesse demonstrado?” (Artigas, 2004, p.
114).
É nesse contexto que se insere, por exemplo, o tribunal McLean vs. Arkansas, em que
no dia 19 de março de 1981 o estado de Arkansas aprovou o ensino do criacionismo, gerando
protestos em todos os lugares, e tendo recurso contra assinado por cientistas, autoridades civis
e inclusive eclesiásticas. No dia 5 de janeiro do ano seguinte, após ouvir inúmeros cientistas, o
juiz Overton declarou que a ciência tem cinco características essenciais:
17
Confira o português.
18
idem
19
idem
13
(1) Guia-se pelas leis naturais; (2) deve explicar as leis naturais; (3) se pode contrastar
empiricamente; (4) suas conclusões são tentativas, ou seja, não são necessariamente a
última palavra; (5) é falseável (Artigas & Turbón, 2007, p. 104).
Desta maneira, o criacionismo não foi considerado científico. Disto Artigas não duvida,
embora assinale que é diferente defender Criação e criacionismo científico. Aliás, apoiar este
tipo de ensino nas escolas nem sempre é adequado:
Para o autor estudado, embora a polêmica se torne, muitas vezes, superficial, existem
problemas reais de fundo da polêmica norte-americana, a saber, o que é ciência e o que não é.
Citando Popper, argumenta que o criacionismo não é científico, e sustenta que os doutores da
Igreja também concordariam com esta afirmação. Utilizar argumentos como a segunda lei da
termodinâmica, peculiaridades do magnetismo natural ou teorias do Big Bang para defender a
existência da Criação é atitude suspeitosa. Mas o problema também se faz do outro lado: “Com
que direito pretende um evolucionismo que mescla certezas, hipóteses e ideologias, o
monopólio no ensino acerca da história do universo e da vida? (Artigas, 2004, p. 116)20”. O
problema é que uma valoração absoluta e objetiva de cada teoria é impossível, tamanha seria a
extensão do projeto. A solução proposta pelo filósofo é o compromisso com a exposição do
conhecimento científico prescindindo da pseudociência.
O autor esclarece que concorda com a separação entre os âmbitos, e afirma que
precisamente o fato de não atuarem no mesmo nível os faz complementares. Para ele, é uma
verdadeira educação científica, feita de maneira a questionar retamente a própria ciência que
seria capaz de combater as descrições “super-simplificadoras ou dogmáticas”. Se aos cientistas
não agrada que se possa sustentar com propriedade científica uma cosmovisão cristã, também
não podem ser desonrados e fazerem alusões em sentido contrário. Ser evolucionista teísta
também possibilita uma liberdade maior frente às evidências científicas, enquanto o
evolucionista materialista obriga-se à única e obrigatória escolha da atividade físico-química.
Numa tentativa de fugir deste debate, apresenta-se o Desenho Inteligente (Intelligent
Design), teoria recente que, mesmo com o intuito de combater o materialismo científico, não
se baseia na Bíblia e na religião para afirmar suas ideias, e sim em raciocínios que se pretendem
científicos.
20
Cf tradução.
14
Tomás de Aquino, nas questões 75 a 102 de sua Suma Teológica, escreve um breve
tratado sobre o ser humano, caracterizando-o como alguém que possui corpo e alma. Esta alma,
como podemos perceber ao longo do tratado, não se trata simplesmente de algo religioso, mas
diz respeito diretamente à capacidade de intelecção e também em relação aos afetos e vontade.
Outro pensador de destaque, Blaise Pascal, no §347 de seu livro Pensamentos, afirma: “O
homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante” (1973,
p. 123). Mais recentemente, vimos o crescimento da filosofia de tipo personalista, a qual
defende como núcleo do pensamento filosófico uma concepção antropológica, de maneira que
o ser humano é pessoa à medida que é partícipe da pessoalidade divina. O personalismo valoriza
21
Referência
15
... resulta curioso que se utilize a ciência, uma de nossas criações mais assombrosas,
para rebaixar o que realmente somos. Mas, além disso, essas revoluções científicas
não têm o alcance que Freud e muitos contemporâneos lhes atribuem. Que a Terra não
seja o centro do universo não modifica nem no mínimo o que realmente somos como
seres espirituais e filhos de Deus. E nossa possível proveniência a partir do reino
animal não acrescenta nada ao que desde a antiguidade se tem sabido e dito: que
somos animais. Simplesmente, somos animais especiais. Somos parte da natureza,
mas, ao mesmo tempo, a transcendemos. Somos capazes de conhecê-la
cientificamente e de transformá-la, e em ocasiões o fazemos de um modo nocivo para
nossa própria espécie, destruindo a própria natureza que nos serve de refúgio e
introduzindo nela uma contaminação funesta.
Mais funesta, todavia, é a contaminação intelectual e moral que se realiza quando, em
nome da ciência, se pretende degradar o ser humano muito abaixo de sua autêntica
dignidade, privando-o do sentido profundo de sua vida e impedindo sua realização
mais originária. Não se trata de destruir pedestais artificialmente construídos pelo
orgulho. Reconhecer a dignidade humana não é orgulho. É um dever ético que resulta
plenamente coerente com o impressionante progresso da ciência e da tecnologia em
nossa época (Artigas & Turbón, 2007, p. 111).
Não só é estranho o rebaixamento do ser humano pela ciência, numa atitude de pouca
compreensão filosófica de sua pessoalidade, como também é notável a incompreensão da
relação entre criação humana no acaso e causalidade. Embora exista uma parcela desses dois
elementos, pois muitos sucessos não correspondem às leis necessárias, para Deus não existe
acaso, nada cai fora de seus planos, seja por querer o por permitir. Quanto a isso, discorreremos
adiante, no capítulo 3.
22
Inserir referência
16
Somos capazes de realizar uma atividade deste tipo porque possuímos uma capacidade
intelectual que nos permite criar modelos teóricos, idealizar experimentos para pô-los
à prova e ver se funcionam, interpretar os resultados dos experimentos, ver se estão
de acordo com as previsões da teoria, julgar se o acordo é suficiente para aceitar a
teoria e em que grau (Artigas & Turbón, 2007, p. 112).
23
Acrescentar citação
17
humanas, que são imateriais. Não há uma realidade material que explique um universal ou uma
negação. Também não é possível explicar como um ser material conhece as leis da matéria e as
aproveite em seu favor. O segundo aceita a singularidade humana, mas a explica como uma
emergência de uma nova propriedade a partir de uma complexidade da matéria. O pensamento
seria fruto do crescimento cerebral. Dois suportes, porém, não estão claros: (i) parece supor que
se algo vem de outra coisa se reduz ao anterior e (ii) parece supor que o anterior é mais
fundamental que o posterior por este provir daquele.
24
Reorganizar este trecho.