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EDGAR MORÍN / ILHA PRIGOGINE e outros autores. (2000): A Sociedade em busca de Valores. Lisboa: Piaget.

EDGAR MORÍN / ILHA PRIGOGINE e outros autores. (2000): A Sociedade em busca de Valores. Lisboa: Piaget.

COMPLEXIDADE E LIBERDADE

EDGAR MORIN*
Edgar Morin, director de pesquisas no CNRS, iniciador da «Sociologie du présent» e cuja reflexáo se encontra no
cruzamento da filosofia, da antropologia, da sociologia e da biologia, publicou numerosíssimas obras, das quais,
recentemente, Terre Patrie (editado pelo Instituto Piaget, com o título Terra Pátria), Seuil, 1996, La Méthode: les
idées, Seuil, 1995, La complexité humaine, Flammarion, 1994.

A complexidade reclama uma verdadeira reforma do pensamento, semelhante a queda


provocada no passado pelo paradigma de Copérnico. Mas esta nova abordagem e
compreensão do mundo, de um mundo que «se autoproduz», dá também um novo sentido a
acção: é fazer apostas, o que significa que com a complexidade ganhamos a liberdade.

A grande descoberta deste século é que a ciência não é o reino da Certeza. É claro que se fundamenta sobre
urna serie de certezas; situadas localmente e espacialmente. A translação da Terra a volta do Sol, por exemplo,
parece--nos certa, mas é possível dizer o mesmo 100 milhões de anos antes ou depois da nossa era, sabendo
que o universo está submetido a flutuações, perturbações àquilo que chamamos hoje o movimento caótico?
A ciência é um domínio de muitas certezas de facto e não o domínio da certeza absoluta no plano teórico.

A obra de Popper foi indispensável para a compreensão de que uma teoria científica não existe como tal senão na
medida em que aceita ser falível e se submete ao jogo da sua “posiibilidadade de ser falsa» e, portanto, na medida
em que aceita a sua possibilidade de biodegrado.

ORDEM, SEPARABILIDADE E LÓGICA: OS PILARES DA CIÉNCIA CLÁSSICA

A ciência clássica construiu-se sobre os três pilares da certeza, que são a ordem, a separabilidade e a lógica.
Eram, para ela, fundamentos absolutos.
A ordem do universo, como com Descartes ou Newton, era o produto da perfeição divina. Com Laplace, a hipótese
de Deus é alastada: a ordem funciona sozinha, é «autoconsolida » esta ideia de determinismo absoluto foi,
também ela, objecto de uma crença religiosa entre os cientistas, que se esqueceram que isto era
completamente impossível de demonstrar.

A segunda ideia-chave foi a da separabilidade. Conhecer é separar. Em face de um problema complicado, dizia
Descartes, é preciso separálo com pequenos fragmentos e tratar cada um deles, um após outro. As disciplinas
científicas desenvolveram-se, deste modo, com base na ideia da sua separação e com o aparecimento, no
interior dessas grandes disciplinas, a física, a biologia, etc., de compartimentos sempre novos. Em última
análise podemos dizer que a separação entre ciéncia e filosofia e, de forma mais alargada entre ciência e
cultura humanista, seja a filosofia, literatura, i poesia, etc., se instituiu progressivamente, no nosso século,
como uma necessidade legítima.
A separação nas ciências, entre o observador e o objecto observado, isto é, entre nós, os humanos, que
consideramos um fenómeno, e estes fenómenos ou objectos de conhecimento, tinha valor de certeza absoluta. O
conhecimento científico, objectivo, implicava a eliminação do individuo e da subjectividade. Se houvesse nisso um
sujeito, era perturbador. Era um ruído.

Terceiro pilar: A lógica. A indução, baseada num número importante e variado de observaçãos, permitia, á evidencia,
extrair leis gerais dessas observações. A dedução, quanto a ela, era um meio implacável de chegar á verdade. Os
princípios Aristotélicos de identidade, da não contradição e da exclusão do terceiro permitiam eliminar qualquer
confusão, qualquer equívoco, qualquer contradição.

A lógica1 a separabilidade e a ordem trouxeram assim á ciência clássica esta certeza absoluta em que ele se baseou. E
os seus resultados foram tão brilhantes que acabaram, paradoxalmente, por pôr em causa os princípios de base
de que partlram.
E a ordem, ou seja, o determinismo - tudo aquilo que escapa ao acaso, ás perturbações, á previsão - que primeiro
entrou em crise. A termodinâmica, com efeito, introduziu a desordem molecular no fenómeno chamado calor.

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Sabemos hoje que o nosso universo tem uma origem calorífica, que surgiu de um fenómeno térmico inicial, de
uma espécie de explosão, de uma deflagração seguida de uma enorme agitado. A presença da desordem no
universo revela-se a todos os níveis, ao nível micro físico, ao nível cosmofísico, bern como ao nível histórico,
humano, em que nos deveríamos ter lembrado de que a história não se reduz a processos deterministas, mas que
é feita também de bifurcações, de acaso, de crises, daquilo a que Shakespeare chamava «o barulho e o furor».
Isto não quer dizer, contudo, que a desordem tomou o lugar da ordem. Um tal universo seria também tão
insensato, impossível, como aquele onde reinasse uma ordem pura.

Quando reina a ordem pura, não existe criação, não há novidades possíveis. Quando apenas existe a desordem
pura, a agitação, o aleatório, o universo não pode simplesmente existir. É por tanto preciso que, desde o
inicio, um determinado número de princípios, considerados como princípios de ordem, provoquem nesta
agitação de partículas, e em certas condições, vários encontros. O principio de interacção forte vai ligar e
formar núcleos; o principio de interacção electromagnético vai empurrar os electrões a porem-se á volta dos
núcleos e, assim, formarem átomos; finalmente, o principio gravitacional actua ao nível da formação das
galáxias, dos astros...

Por outras palavras, estamos perante este paradoxo: as noçãos ordem e de desordem repudiam-se
mutuamente. O universo é um cocktail de ordem e de desordem, um cocktail muito diferente consoante os casos,
as condições, os lugares, os momentos... Consoante o ângulo de observação, o mesmo fenómeno pode provir
tanto da ordem como da desordem. Os átomos de carbono, por exemplo, formaram-se em sóis anteriores ao
nosso, pelo encontro instantâneo de frés núcleos de hélio.

No interior destas forjas insensatas que são os astros, as interacções são inumeráveis, e o encontro, simultâneo,
de três núcleos de hélio é também tão raro como puramente aleatório. Mas, urna vez que aconteceu, entra
em cena urna lei: a do carbono que vai ser produzido.
É no encontro da ordem e da desordem que se produzem organizações. Quando os três núcleos de hélio se
encontram, nasce urna organização, a do átomo de carbono. E estas organizações criam, no interior delas
próprias, urna ordem organizacional que Ihes é peculiar. O mundo biológico, das coisas vivas, obedece a
todas as leis da física e da química, mas a sua organização permite-Ihe constituir urna determinada ordem
que é baseada sobre a autoprodução, a regeneração, etc.
Quanto á separabilidade, apercebemo-nos que o facto de separar as partes que constituem conjuntos organizados
do sistema dava um conhecimento insuficiente, mutilado. Podia extrair-se um corpo do seu meio natural,
metê-lo num meio experimental controlado pelas variações operadas sobre este corpo. Mas não se conhecia
a relação profunda existente entre este corpo e o seu ambiente. Ora, os seres vivos não são nada sem o seu
ambiente. As experiencias realizadas em cativeiro para conhecer a inteligência de seres sociais corno são os
chimpanzés não nos permitiram saber aquilo que aprendemos no processo. Com efeito, no decorrer da
observarão paciente destes animais, no seu meio natural e na sua sociedade, foi possível constatar que os
indivíduos são diferentes e que existem relações muito complexas entre eles. O chimpanzé adulto, por
exemplo, não pratica o incesto.

A separabilidade perdeu o seu valor absoluto. Aquilo que é próprio de um conjunto organizado em sistema
deve-se ao facto de, urna vez que esta organização existe, produzir qualidades novas, que chamamos
«emergências», que retroagem elas próprias sobre o todo e que não podem ser identificadas se tornarmos
isoladamente os elementos. E é deste modo que a organização viva produz um determinado número de
qualidades como a autoprodução, a auto-alirnentação, a autoreparação..., qualidades que se não encontram nas
partes, mas de que elas beneficiam. Da mesma forma que urna sociedade tem emergências culturais, como o
caso da linguagem, que retroage sobre os indivíduos e Ihes permite, por esta aquisição, que é tambérn a
aquisição do conhecimento, tornarem-se plenamente humanos.

Nas ciências está actualmente a acontecer urna segunda transformação. A primeira aconteceu na primeira parte
deste século, no domínio da física, e destronou a ordem. A segunda começa na segunda metade do século, com
as ciências ditas sistémicas, ciências que consideram os sistemas; tal como os ecossistemas ecológicos
espontâneos que nascem das interacções entre plantas, animais, o terreno geofísico, o clima. Todas estas
interacções produzem um conjunto mais ou menos auto-regulado, submetido a perturbações. A ecologia chegou

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assim, a partir dos anos 80, a considerar, para além dos ecossistemas, o sistema ainda mais complexo, mais ou
menos regulado, que e a biosfera. Esta permite a introdução dos humanos e da sua civilização técnica e a
previsão, sem qualquer tipo de certeza, dos riscos possíveis de desregulação.

A partir da descoberta da tectónica das placas, nos anos sessenta, as ciências da Terra (sismologia,
vulcanologia, geologia...), que não comunicavam entre si, articularam-se umas com as outras e permitiram
compreender a Terra como um conjunto complexo articulado. O etólogo, por exemplo, não conhece todos os
dados da zoologia, da botânica da física, da geografia... Tem um conhecimento parcial de cada um, «um Pouco de
tudo», como dizia Pascal, mas apelando as competências destes_diferentes especialistas, dá urn sentido a esses
conhecimentos e articula-os entre sí. Infelizmente a sociologia não fez essa revolução. E a biologia também não.

No fundo, a cosmofisica tornou-se inseparável da cosmologia, que é urna tentativa de compreensão do mundo.
A revolução que é a ressurreição do cosmos (durante um século o espaco-tempo, urna espécie de infinito, tinha
substituído o cosmos) começou quando constatarmos o afastamento das galáxias, supondo portanto que elas
estavam, em determinado momento, muito próximas urnas das outras e que urn núcleo inicial tinha, sem dúvida,
existido.
Hoje sabermos que o cosmos tem urna história, que sofre transformações. O cosmólogo foi levado a reflectir
sobre ) mundo, sobre a sua origem, a sua finalidade ou o seu sentido se é que ele existe. Ressuscita desse modo
a relação filosófica, reinventa uma filosofia em estado selvagem. Os cientistas são, na verdade, obrigados a
reflectir, por falta de interesse dos filósofos, sobre o sentido das suas descobertas.

A questão «o que é o real?», que parecia tão evidente, ressurge. O que é este universo onde - para seguir
d'Espagnat –as coisas evidentemente separadas se tornam, a um determinado nível inseparáveis, a partir do
momento em que se registou urna interacção entre elas? Isto é falar da inseparabilidade na separabilidade. O
grande desafio do conhecimento assenta neste paradoxo: para fugir da mesma realidade, encontramos
simultaneamente o continuo e o descontínuo. As célebres experiencias sobre a onda e o corpúsculo, referentes á
natureza da partícula, mostraram que esta se conduz tanto corno urna onda, tanto como urn corpúsculo, portanto
ou de modo continuo ou de modo descontínuo. O que logicamente é contraditório. Voltamos a encontrar os
mesmos problemas ern relação á sociedade:
Se considerarmos esta globalmente, é um continuo. Os indivíduos dissolvem-se na sociedade, conforme ainda
pensam numerosos sociólogos; ou então consideramos apenas os indivíduos, e a sociedade dissolve-se, o que
permite a certos sociólogos dizer que a sociedade não existe e que apenas contarn as interacções entre os
indivíduos espécie e para o individuo é indiferente: só existem .indivíduos, mas se tornarmos em conta um longo
espaço de tempo, os indivíduos dissolvem-se e a noção continua da espécie aparece.

Este paradoxo do separável e do inseparável Pascal não só já o tinha colocado corno tinha indicado também a
via a seguir para avançar no conhecimento. Que dizia ele? Que «todas as coisas sendo ajudadas e ajudantes,
causadas e causas e tudo estando ligado por um laço natural e insensível considero impossível conhecer as
partes sem conhecer o todo assim como considero impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as
partes. Nesta Frase, de uma densidade e claridade extraordinárias, ele formula - na mesma altura, Descartes,
triunfante, vern com o principio da separação absoluta - o programa do conhecimento contemporâneo, programa
que ainda não foi possível aplicar.

No que respeita á lógica, foi dado o passo no momento em que certos teóricos ou pensadores mostraram os
lirnites da indução. Segundo o célebre exemplo de Popper, a regra geral «todos os cisnes são brancos» não é
urna regra por não podermos pressupor que não exista, noutro sitio, cisnes negros. A indução não dá uma certeza
absoluta, mas fortes probabilidades, quase certezas, em muitos casos. Esta «derrapagem», que acontece também
na dedução, tinha sido referenciada pelos Gregos. É «o paradoxo do cretense», segundo o qual todos os
cretenses são mentirosos. Se um cretense diz a verdade é porque é mentiroso urna vez que é cretense. Se mente,
diz a verdade, porque os cretenses são mentirosos. Este paradoxo é retomado por Russell que o tentou superar.
Conduz-nos ao teorema de Gödel, cujo sentido é múltiplo na condição de o utilizarmos para além dos seus limites
matemáticos. Trata-se de urn problema de lógica fundamental que nos diz que nenhum sistema tern capacidade
de trazer, em si mesmo, a prova da sua consistência; de se dar urna certeza suficiente apenas com os seus
próprios recursos. Consequência metalógica: nenhum ser humano se pode totalmente conhecer a si mesmo e a

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humanidade também não. É urna janela sobre o inacabado do conhecimento e da lógica.

Quando a ciência clássica encontrava urna contradição, partia do principio que havia erro. Niels Bohr teve a
coragem de afrontar a contradição da onda e do corpúsculo sern a poder ultrapassar, ou seja, tendo de admitir
tratar-se de termos contraditórios e complementares. Hoje admite-se poder chegar, empiricamente, por meios
racionais e empírico-lógicos, a estas contradições. De resto, Kant tinha mostrado que no horizonte da razão
aparecia um certo número de aporias fundamentais.

Podermos atacar este problema, não pensando em entrar nurna nova lógica que nos permita integrar
contradições, mas mostrando que se pode fazer um encadeamento permanente entre a nossa lógica tradicional e
as transgressões lógicas necessárias á progressão de urna racionalidade aberta.

Podermos ilustrar este propósito, tornando o seguinte aforismo de Heraclito: “viver de morte morrer de vida».
Eis uma proposta insensata. Ora hoje sabermos que o ser vivo, o nosso organismo, por exemplo, degrada a sua
energia ao trabalhar, isto é, as moléculas das suas células. As células rnorrem e sáo substituídas por células
novas. Por outras palavras, a nossa vida continua graças a morte das nossas células, porque o nosso organismo
está dotado de um poder de regeneração continuo. Cada batimento do coração, cada respiração dos pulmões, é
um trabalho de regeneração. O oxigénio é um desintoxicante.

Da mesma forma, urna sociedade vive da morte dos seus indivíduos. Ela faz isso inculcando nas novas
gerações a cultura que começa a decompor-se nos cérebros senis. Este processo é viver de morte. Esta
contradição lógica fundamental pode explicar-se, passo a passo, de modo segmentarão, continuando na lógica
clássica (as células tém esta propriedade de se reproduzirem). Porém, para compreender este fenómeno
fundamental, precisarmos do paradoxo - que é também válido para os ecossistemas - aquilo que chamamos a
cadeia alimentar, ou seja, a cadeia de vida, o ciclo de vida, que é também urn ciclo de morte. Sáo as duas faces
da mesma realidade.

Morrer de vida é o nosso processo de rejuvenescimento continuo: é «matando» que se rejuvenesce, é esta a
trágica lição da vida.

Estas formulações permitem-nos unir aquilo que o pensamento clássico não pode fazer. Continua a ser
verdade que o maior inimigo da vida é a morte; que o maior desafio ao fenómeno da decomposição é o
renascimento da vida.
O pensamento deve ser capaz de afrontar os antagonismos, mesmo as aporias, sem contudo negar o valor
da lógica, da dedução ou da indução.

O PENSAMENTO COMPLEXO

Destes três desafios: a relação entre a ordem e a desordem, a questão da separabilidade ou distinção e da
insuperabilidade ou da não separação, o problema da lógica, podemos extrair as três «tetas» do pensamento
complexo.
Como tratar, sem afastar: a expressão complexus tern aqui o seu primeiro sentido, isto é, «aquilo que é tecido
em conjunto». Pensar a complexidade e respeitar este tecido comum, o complexo que ele constitui, para além das
suas partes.

O segundo traço fundamental é a impredictabilidade. Urn pensamento complexo deve poder não apenas
relacionar mas ter urna estratégia em relação ao incerto. As ciências físicas, que descobriram a incerteza,
encontraram estratégias de ofensiva para a tratar, através do modo estatístico, por exemplo. A electrónica permite
atingir resultados de grande precisão para conhecer este mundo flutuante. Este pensamento que trata o incerto
existe no domínio das ciências, mas não no domínio do social, do económico, do psicológico, do histórico.

O terceiro ponto é a oposição da racionalização_fechada á racionalização aberta. A primeira pensa que é a


razão que está ao serviço da lógica, enquanto que a segunda pensa que é a lógica que está ao serviço da razão.

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A racionalização é acreditar que um sistema é coerente, por tanto perfeito e sem necessidade de ser verificado.
Vivemos sob o domínio das ideias nacionalizadoras, que não consideram aquilo que se passa, mas que
privilegiam os sistemas fechados, coerentes, consistentes. A ciência económica contemporânea, ciência
formalizada, matemática, é um magnífico exemplo de racionalização. Ela é inteiramente fechada, não considera as
paixões, a vida, a carne dos seres humanos. É incapaz de efectuar urna previsão quando aparece um
acontecimento inesperado. Mais ainda do que no século de Moliére, os Diafoirus triunfam.

O desafio é hoje generalizado. Falar de incerteza é falar de caos. Emprego este termo no seu sentido
original, e não no sentido derivado, que tomou nas teorias do caos.

Com o pensamento grego, a ideia que o cosmos, um universo ordenado, filho do caos, isto é, que forcas
genésicas externamente violentas, contendo em si, potencialmente, a ordem e a desordem indiferenciadas, se
exprimem em determinado momento. Os Gregos pensaram que na origem do que é organizado ou racional existe
a loucura. É o que defende Platáo, quando diz que Diké, a justiça, é filha de Ubris, o delírio. O caos é um pouco
aquilo que corresponde á palavra Physis, isto é, o mundo onde estamos, onde as coisas nascem. O caos está
continuamente presente no Cosmos ou, pouco importa, no interior do Cosmos. O universo é o caos, isto é, saem
dele forças de ordem, de desordem e de organização, com a formação constante de novas estrelas, de colisões
de galáxias e, na nossa Terra, o conflito de forcas de barbárie e de associação.

Segundo_a teoria do caos, processos_deterministas por natureza conduzem muito rapidamente a estados
imprevisíveis e aparentemente desordenados Porque'? Porque as interacções são incontroláveis e porque nos
falta o conhecimento total e absoluto dos estados iniciais. É urna maneira de dizer que, mesmo se existe um
determinismo inicial, há uma imprevisibilidade e uma desordeno aparente.

O que é que quer dizer esse termodinâmico, de origem austríaca e ignorado hoje, quando afirmava que a
vida existe na temperatura da sua própria destruição? De é preciso compreender que nós não somos nem fumo
acordo com o belo título de Atían «Entre o cristal e fumo» ¡porque nos dissolvemos, nem cristal, porque é
demasiado rígidos para viver. Não somos nem seres líquidos, nern sólidos. Somos híbridos, que vivemos á
temperatura da nossa combustão, da nossa destruição.

Neste desafio á complexidade, certos filósofos podem ajudar-nos: Heraclito, com o afrontamento das contradições;
Sócrates, corn a dialéctica, cujo jogo das oposições faz progredir o conhecirnento; Nicolau de Cues, no plano
místico; Jean de la Croix; Jakob Bóhme; Pascal, de quem não compreendermos o papel central que as
contradições representarn na sua concepção; Hegel, evidentemente; Nietzsche, de certo modo.

Contudo, para termos os meios intelectuais e conceptuais para entrar neste universo da complexidade,
precisarmos de esperar pelos anos cinquenta e pela chegada de teorias novas.

A prirneira, a cibernética, a de Norbert Wiener, que é simultaneamente engenheiro e pensador. Devernos-lhe a


ideia de retroacção e de cadeia, urna ideia até então latente, corno ern Marx, em que a superstrutura reage sobre
a infra-estrutura. Esta ideia de cadeia retroactiva, que rompe a causalidade linear, mostra que os factos podem,
eles próprios, ser causadores, reagindo retroactivamente sobre a causa, o que já dizia Pascal. Esta cadeia
retroactiva tern dois aspectos: urn regulador, que impede que desvios destruam os sistemas, e outro que é
potencialmente destruidor, chamado o <feedback positivo», e que faz saltar o sistema.

Nos anos 60, um outro pensador nipo-americano mal conhecido; Magoroh Maruyana, fez a seguinte proposta:
não pode haver criação senáo a partir_de feedback_positivos. Quer dizer que sempre que um sistema se
desregula ou um desvio se amplifica este sistema, sobretudo se for complexo - social ou humano - em vez de se
embalar, pode transformar-se. A criação só é possível através da desregulação.
A segunda achega conceptual é a teoria dos sistemas, que parte do principio que o todo é mais do que a soma
das partes, mas tambérn que o todo é menos do que a sorna das partes, urn todo que pode oprimir as partes e
irnpedi-las de dar o melhor de si mesmas. Este facto tem consequências político-sociais indirectas. Um grande
império não é o melhor porque é um todo. A derrocada deste império pode ser salutar, libertando potencialidades
das suas partes.

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Aqui, a ideia capital é a da emergência. As qualidades que aparecem, se as pudermos induzir, não podemos,
em contrapartida, deduzi-las logicamente. As emergências, ern certa medida, são corno as flores. A evolução
biológica levou, em determinado momento, a urna verdadeira explosão floral. O que falta saber é porque é que as
flores tiveram necessidade de mostrar o seu sexo, de fazer exibicionismo!

A terceira achega, é a teoria da informação que veio de Shannon é de Weawer. E um utensílio de tratamento
da incerteza, do inesperado. Extraímos do mundo do ruído algo de novo e, muitas vezes, surpreendente. Esta
noção de informação, simultaneamente física e semântica, introduz-nos num mundo onde algo de novo pode
aparecer, ser reconhecido, encontrado... nesta relação permanente entre a ordem da redundância, da integração
no conhecido, e a ordem do ruído, onde captarmos algo novo.

Estas três teorias formam urna espécie de «rés-do-cháo». No primeiro andar podemos meter a achega de
Foerster e de Von Neumann. Este último, reflectindo sobre a diferença entre as maquinas artificiais, as que
produzirmos a partir de elementos fabricados, fiáveis, e as maquinas naturais, cujos elementos são pouco fiáveis
(essas moléculas que se degradam por nada!), interrogou-se corno as primeiras, desde que entram em marcha,
corneçam os seus processos de erosão e degradação, enquanto que as segundas, os seres vivos, podem
progredir, evoluir? A resposta é que estas tém o poder de auto-reparação de auto-reformação.

A segunda ideia, a de Von Foerster, é «orderfrom noise». O jogo experimental é o seguinte: agarrava numa caixa,
onde metia cubos irnanizados em determinados lados. De seguida agitava-os, isto é, introduzia energia não
direccional, portanto desordene. Apesar disso, a presença de imanes, de um principio de ordem, no interior da
caixa permitia obter urna arquitectura muito bern organizada. Estarnos perante urn fenómeno de auto-organização.

A segunda fase é aquilo a que poderíamos chamar a auto-eco-organizado. Um ser vivo tern necessidade de se
alimentar para regenerar a sua energia. Para ser autónomo tem necessidade do seu ambiente, onde apanha não a
energia bruta mas já organizada. Da mesma maneira, nós registamos no seio da nossa organização urna ordem
cósmica, a alternância do dia e da noite que - por urna espécie de mecanismo cíclico, que pode tomar-se
independente da luz e da obscuridade, como as experiências em grutas escuras o demonstraram - nos permite
alternar a vigília e o sono...

Tudo isto para dizer que a separação entre aquilo que se conhece e o conhecirnento já e difícil de manter. Isto era
sabido desde Kant: para o conhecer, nós projectamos no mundo as nossas categorias, os nossos a priori espácio-
temporais. Isto pode ainda ser confirmado pelo trabalho do cérebro humano: isolado no interior de urna caixa
fechada, comunica apesar disso com o universo exterior através de terminais sensórias. Os estímulos visuais, por
exemplo, são transformados num código binário que o cérebro volta a trabalhar e transforma em percepção ou
representação. O conhecirnento não é mais do que uma tradução, urna reconstrução. Nós não conhecemos a
essência das coisas exteriores. Conhecemos coisas objectivas, coisas que podermos confirmar. Mas não existe
conhecimento sem a integração do objecto do conhecimento. Isto também é verdade em relação ao conhecimento
dos fenómenos sociais e humanos. O sociólogo, o economista, são, eles próprios, uma parte da sociedade, mas a
sociedade, como um todo, isto é, a cultura, a lingua, tarnbém existe neles. Não apenas a parte está no todo mas o
todo está na parte.

No último andar, vejo a necessidade de urna reforma paradigmática dos conceitos soberanos e dás suas relações
lógicas que controlam todo o nosso conhecimento e o fazem inconscientemente e inelutavelmente. O paradigma
em que vivemos é o da disjunção e da dedução actualmente nos torna cegos na era de globalidade,
mundialização, em conduz- nos á catástrofe.

A reforma necessária (e não a podermos decretar, porque ela está inscrita na duração, na história; pensemos na
passagem do paradigma ptolemaico ao Copérnico!) passar a um paradigma de reliance, de conjunção, de
implicação mútua e de distinção. Esta reforma do pensamento ¡pressupõe urna reforma do ensino, que necessita,
ela própria, de urna reforma do pensamento. Círculo vicioso, de que vai ser bem preciso sair um dia ...

Um conhecimento pertinente é aquele que é capaz de contextualizar, ou seja, de reunir, de globalizar. Ao torna

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aqui um novo sentido: é fazer apostas. Pascal, novamente ele, apostava em Deus. Nós devemos apostar em
valores que não podem ser fundados . Da mesma forma como o mundo se autoproduz, a ética autoproduz-se.

Conhecer é também urna estratégia que se pode modificar em relação programam, que é maleável, que tem em
consideração aquilo a que chamo a ecologia da acção. Sabemos hoje que uma acção lançada no mundo, entra
num turbilhão de inter-retroaçãos que podem voltar-se contra a intenção.

Finalmente, urna última ideia: o sentimento de uma comunidade de destino profundo, que alie a ideia de
solidariedade e de fraternidade. A ligação entre complexidade e solidariedade não é mecânica. Uma sociedade
muito complexa concede muitas liberdades de actuação aos seus indivíduos 1 aos seus grupos: Permité-lhe que
sejam criativos, muitas vezes delinquentes. A complexidade também corre os seus riscos. Ao nível da extrema
complexidade, a sociedade desintegra-se. Para impedi-lo, podermos recorrer a medidas de autoridade. Mas,
supondo que querermos o mínimo de coerção possível, o único cimento que resta é o sentimento de solidariedade
vivida.

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