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“A ciência moderna começou por negar as visões antigas e a legitimidade das questões postas pelo
homem a propósito da sua relação com a natureza. Ela iniciou o diálogo experimental, mas a partir
duma série de pressupostos e de afirmações dogmáticas que votavam os resultados dessa interrogação
(e sobretudo a ‘concepção do mundo‘ que os acompanhava) a se apresentarem como inaceitáveis
para os outros universos culturais, incluindo o que os produziu. A ciência moderna constituiu-se
como produto de uma cultura, contra certas concepções dominantes desta cultura (o aristotelismo em
particular, mas também a magia e a alquimia). Poder-se-ia mesmo dizer que ela constituiu contra a
natureza, pois que lhe negava a complexidade e o devir em nome dum mundo eterno e cognoscível
regido por um pequeno número de leis simples e imutáveis”. p. 4
“Esta ideia duma ‘natureza autômato’, cujo comportamento teria por chave leis acessíveis ao homem
através dos meios finitos da mecânica racional, era certamente uma aposta audaciosa. Ela suscitou
um entusiasmo e uma rejeição igualmente apaixonados. Estabeleceu também, fato doravante
incontornável, que leis matemáticas podem efetivamente ser descobertas. A ciência newtoniana
descobriu completamente uma lei universal, à qual obedecem aos corpos celestes e o mundo
sublunar. É a mesma que faz cair as pedras para o solo e os planetas girar ao redor do Sol. Este
primeiro sucesso nunca foi desmentido. Grande números de fenômenos obedecem a leis simples e
matematizáveis. Mas, desde então, a ciência parecia mostrar que a natureza não é senão um autômato
submisso. Uma hipótese fascinante e temerária torna-se a ‘triste’ verdade. Daí por diante, cada
progresso da ciência iria reforçar a angústia e o sentimento de alienação daqueles mesmos que lhe
“Não estamos mais no tempo em que os fenômenos imutáveis prendiam a atenção. Não são
mais as situações estáveis e as permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as
crises e as instabilidades. Já não queremos estudar apenas o que permanece, mas também o que se
transforma, as perturbações geológicas e climáticas, a evolução das espécies, a gênese e as mutações
das normas que interferem nos comportamentos sociais. (...)” p. 5
“A concepção do mundo produzida pela ciência clássica parece obrigar a escolher entre aceitação das
conclusões alienantes que parecem impostas pela ciência e a rejeição do procedimento científico. A
ciência clássica caracteriza-se, pois, por uma inserção cultural instável: ela suscita o entusiasmo, a
afirmação heroica das duras implicações da racionalidade e a rejeição, até mesmo das reações
irracionalistas”. p. 6
“(...) essas leis descrevem o mundo em termos de trajetórias deterministas e reversíveis. Por isso, não
são somente a liberdade ou a possibilidade de inovação que se encontram negadas, mas também a
“Queremos assim depreender o significado de três séculos de evolução científica segundo uma
perspectiva particular, e lembrar como a ciência, parte de uma cultura ocidental dita clássica, através
de um complexo processo histórico, se abriu pouco a pouco até poder integrar diferentes
interrogações”. p. 8
“(...) não queremos pôr em evidencia a aquisição definitiva da ciência, seus resultados estáveis e bem
estabelecidos. Não pretendemos fazer visitar o edifício imponente duma ciência cristalizada e
triunfante. Queremos realçar a criatividade da atividade científica, as perspectivas e os problemas
novos que ela faz surgir. p. 9
“Não há, na hora atual, um modo canônico de aproximação para o problema da ciência; conhecemos
somente o preço inaceitável que pagaram alguns dos que tentaram ‘purificar’ o assunto e esquecer
que a descrição da atividade científica não pode, sem violência, ser separada do mundo a que
pertence”. p. 9
1. O DISCURSO DO VIVENTE
“[D’Alembert] um ponto vivo... não, estou enganado. Primeiro, nada; depois um ponto vivo... A esse
ponto vivo junta-se um outro, e ainda um outro; e dessas junções sucessivas resulta um ser uno, pois
eu sou realmente uno, disso não posso duvidar. (Dizendo isto, ele se tateava por todo lado). Mas
como terá acontecido esta unidade... olha, filósofo: eu bem vejo um agregado, um tecido de pequenos
seres sensíveis; mas um animal... um todo... tendo consciência da sua unidade! Não o vejo, não, não o
vejo”. [DIDEROT] p. 63
“Vedes este ovo? É com isto que derrubam todas as escolas de teologia e todos os templos da terra. O
que é esse ovo? Uma massa insensível, antes que o germe aí seja introduzido... como passará esta
massa a uma outra organização, à sensibilidade, à vida? Pelo calor. Quem produzirá calor? O
movimento? Quais serão os efeitos sucessivos desse movimento? Em lugar de me responderdes,
sentai-vos e sigamo-los com a vista de momento a momento. Em primeiro lugar, é um ponto que
oscila, um filamento que se estende e colore; carne que se forma, um bico, pontos de asas, olhos,
patas que surgem; uma matéria amarelada que se desenrola e produz os intestinos; é um animal...
anda, voa, irrita-se, foge, aproxima-se, queixa-se, sofre, ama, deseja, goza; tem toda a vossa afeição;
todos os vossos atos, ele os executa. Pretendereis, como Descartes, que é uma pura máquina
imitativa? Mas as crianças rir-se-ão de vós, e os filósofos vos replicarão que, se aquilo é uma
máquina, vós a sois também. Se reconhecerdes que entre o animal e vós há apenas diferenças de
organização, mostrarei senso e razão, estareis de boa fé; mas, contra vós, se concluirá que, com uma
matéria inerte, disposta de certa maneira, impregnada de uma outra matéria inerte, calor e
movimento, se obtém sensibilidade, vida, memória, consciência, paixões, pensamentos... escutai e
terei piedade de vós próprios; sentireis que, por não admitirdes uma suposição simples que tudo
“Contra o templo da mecânica racional, contra todos os que anunciam que a natureza material não é
senão massa inerte e movimento, Diderot chama assim àquilo que foi, sem dúvida, uma das mais
antigas fontes de inspiração da física, o espetáculo do desenvolvimento progressivo, da diferenciação
e da organização aparentemente espontâneas do embrião. Forma-se a carne, o bico, os olhos, os
intestinos; sim, há de fato organização progressiva de um espaço propriamente biológico,
aparecimento a partir de um meio homogêneo, de uma massa que parece insensível, de formas
diferenciadas, precisamente no momento e no lugar oportunos, num processo coordenado e
harmonioso”. p. 64
“O sistema newtoniano constitui um sistema de mundo. A totalidade dos corpos do Universo está em
interação e nada privilegia os movimentos restritos a um subespaço em relação às trajetórias sem
limites espaciais. O sistema newtoniano não dá sentido algum à diferenciação do espaço, à
constituição de limites naturais, à aparição de um funcionamento organizado, em resumo, a nenhum
dos processos que o desenvolvimento de um ser vivo implica”. p. 64
“Diderot sustenta que a matéria é sensível, e até mesmo a pedra tem surdas sensações, no sentido de
que as moléculas que a compõem procuram ativamente certas combinações, evitam outras e são
regidas por seus desejos e aversões. A sensibilidade do organismo inteiro não é senão a soma das
sensibilidades de suas partes, tal como o enxame de abelhas, de comportamento globalmente
coerente, é criada pela interação local, pouco a pouco, entre as abelhas; não existe mais alma humana
do que alma da colmeia”. p. 65
“É preciso eu a natureza material seja descrita de tal modo que possa explicar, sem absurdos, a
existência fundamentalmente natural do homem. Não sendo assim – e é o que acontece com a
“Afirma Stahl que as leis universais se aplicam ao ser vivo apenas no sentido em que são elas que o
destinam à morte, à decomposição; as matérias de que o ser vivo é constituído são de tal maneira
frágeis, decompõem-se tão facilmente que, se fosse apenas pelas leis comuns da matéria, não
resistiria um só instante à corrupção e à dissolução. Se, apesar disso, o ser vivo subsiste, é preciso
que haja nele um ‘princípio de conservação’ que constitua e mantenha o equilíbrio social harmonioso
da textura e estrutura do seu corpo – seja qual for a duração da sua vida em relação à de uma pedra
ou de qualquer outro corpo inanimado. A admirável duração de vida do corpo vivo, dada extrema
corruptibilidade da matéria que o compõe, manifesta a ação de um ‘princípio natural, permanente e
imanente’, duma causa particular estranha às leis da matéria inanimada, e que luta sem cessar contra
a corrupção sempre atuante, a qual, por sua vez, resulta dessas leis”. p. 66
“O homem de ciência não seria capaz de se dirigir à natureza senão como a um conjunto de objetos
particulares, manipuláveis e mensuráveis: tomaria assim posse de uma natureza que submete e
controla, mas desconhece. O verdadeiro conhecimento encontra-se assim, por essência, fora do
alcance da ciência”. p. 67
2. RADIFICAÇÃO CRÍTICA
“(...) é necessário distinguir as simples sensações que recebemos e o modo de conhecimento objetivo,
o modo de conhecer do entendimento; o conhecimento objetivo não é passivo, mas constitui seus
objetos. Quando tomamos um fenômeno por objeto de experiencia supomos-lhes a priori, antes de
qualquer experiência efetiva, um comportamento legal, a obediência a um conjunto de princípios”. p.
68
“A estrutura desta fórmula [F = E – TS] traduz o fato de o equilíbrio resultar aqui de uma
competição entre os fatores energéticos e entrópicos. É a temperatura que determina os pesos
relativos dos dois fatores: na baixa temperatura, a energia domina; formam-se então estruturas
ordenadas (entropia fraca) e baixa energia, como os cristais: no seio de tais estruturas, cada átomo,
cada molécula, interagem com seus vizinhos, e as energias cinéticas são bastante pequenas para que
essas forças de interação mantenham as partículas praticamente imóveis. Ao contrário, na alta
temperatura, é a entropia que é dominante e, com ela, a desordem molecular. Chegamos assim ao
estado líquido, e depois ao estado gasoso. (...)”
“No mundo que conhecemos, o equilíbrio é um estado raro e precário, a evolução para o
equilíbrio, por seu turno, implica um mundo suficientemente afastado do sol para que o isolamento
dum sistema parcial seja concebível (não há “redoma” que resista à temperatura do sol), mas onde o
não-equilíbrio seja a regra: um mundo ‘tépido’”.
2. A TERMODINÂMICA LINEAR
“As células de Bénard constituem um primeiro tipo de estrutura dissipativa, cujo nome traduz
a associação entre a ideia de ordem e a de desperdício, tendo sido escolhido de propósito para
exprimir o fato fundamental novo: a dissipação de energia e de matéria – geralmente associada às
“Em equilíbrio e perto dele, as leis termodinâmicas eram gerais; os estados de equilíbrio e os
estados estacionários próximos do equilíbrio apenas dependiam da relação entre as diferentes
velocidades de reação. Pelo contrário, o comportamento do sistema longe do equilíbrio torna-se
específico, depende de maneira crítica dos mecanismos das transformações químicas. Já não existe
lei universalmente válida donde poderia ser deduzido, para cada valor das condições aos limites, o
comportamento geral do sistema; cada sistema constitui um problema singular, cada conjunto de
reações químicas deve ser explorado e pode determinar um comportamento qualitativamente distinto.
(...)” p.115
“De forma mais precisa, por um lado a termodinâmica descobria a possibilidade de estruturas
complexas e organizadas longe do equilíbrio e concluía pela singularidade desses novos estados da
matéria, pela necessidade absoluta de conhecer o pormenor dos mecanismos químicos de um sistema
para descobrir os novos comportamentos suscetíveis de se manifestarem longe do equilíbrio. (...)”
p.116
“O comportamento periódico adotado pelo sistema é estável; a partir do limiar crítico, não
somente o sistema deixa espontaneamente, por ampliação de uma flutuação, o estado estacionário,
mas a evolução do sistema a partir de qualquer situação inicial lhe faz recuperar o ciclo; por
“A reação descoberta por Belousov (1958) e estudada em seguida por Zhabotinsky é, sem
contestação, a mais célebre. Trata-se da oxidação de um ácido orgânico, como por exemplo o ácido
malônico, por um bromato de potássio, em presença de um catalizador apropriado, o cério, o
manganês ou a ferroína. No mesmo sistema, condições experimentais diferentes podem produzir um
relógio químico, uma diferenciação espacial estável, ou a formação de frentes de onda de atividade
química deslocando-se através do meio reativo em distâncias macroscópicas. (...)” p. 121
6. HISTÓRIA E BIFURCAÇÕES
“Chama-se bifurcação ao ponto crítico a partir do qual um novo estado se torna possível. Os
pontos de instabilidade à volta dos quais uma perturbação infinitesimal é suficiente para determinar o
regime de funcionamento macroscópico de um sistema são pontos de bifurcação. (...) p. 123
7. DE EUCLIDES A ARISTÓTELES
“Um dos aspectos mais interessantes das estruturas dissipativas é certamente a coerência do
sistema no seu conjunto. Para lá da primeira bifurcação, o sistema parece comportar-se como um
todo, como se fosse a sede de forças de longo alcance; a população das moléculas, cujas interações
não ultrapassam a amplitude de uns 10-8 cm, estrutura-se como se cada molécula estivesse
“informada” do estado do conjunto do sistema. (...)” p. 124
“A cada nível, uma totalidade emerge, a qual supõem as partes, mas as integra num
comportamento de conjunto regido por uma lógica que lhe é estranha e que elas não podem explicar.
Chegamos aqui a uma concepção mais “equilibrada” dos papéis respectivos das partes e dos
parâmetros macroscópicos que definem o sistema como um todo. E essa concepção não é válida
unicamente para as estruturas físico-químicas, onde se encontram ligados de maneira inseparável os
aspectos moleculares e, em particular, os mecanismos catalíticos e os aspectos supermoleculares.
(...)” p. 127
“Nas proximidades dos pontos de bifurcação, onde o sistema tem “escolha” entre dois
regimes de funcionamento e não está, por assim dizer, nem em um nem em outro, o desvio em
relação à lei geral é total: as flutuações podem atingir a mesma ordem de grandeza que os valores
macroscópicos médios. A própria ideia de uma descrição macroscópica, isto é, de uma distinção entre
flutuações e leis médias, desmorona-se. Podem aparecer correlações entre acontecimentos
normalmente independentes. (...)” p. 131
“A flutuação não pode invadir de uma só vez o sistema inteiro. Ela deve estabelecer-se
primeiro numa região. E, conforme essa região inicial for ou não menor que uma dimensão crítica,
assim a flutuação regressa ou pode, ao contrário, invadir todo o sistema; essa dimensão crítica
depende, designadamente, no caso das estruturas dissipativas químicas, das constantes cinéticas e dos
coeficientes de difusão. (...)” p. 131
“O cálculo mostra que, quanto mais complexo é um sistema, maiores são as possibilidades de,
em qualquer caso, certas flutuações serem perigosas. Houve quem perguntasse como é possível que
conjuntos da complexidade das organizações ecológicas ou humanas possam manter-se e como
escapam eles ao caos permanente. É provável que nos sistemas muito complexos, em que as espécies
ou os indivíduos interagem de maneira muito diversificada, a difusão, a comunicação entre todos os
pontos do sistema seja igualmente muito rápida nesse caso, o limiar de nucleação muito elevado das
flutuações perigosas assegura uma certa estabilidade ao sistema. Assim, a rapidez da comunicação é
que determinaria a complexidade máxima que a organização de um sistema pode atingir sem se
tornar demasiado instável. (...)” p. 132
“É muito frequente a ideia de que foi de grupos restritos, excluídos e às vezes até perseguidos
pelo resto da sociedade, que vieram certas inovações que abalaram essa mesma sociedade: poder
inovador de grupos minoritários caracterizados por uma situação marginal em relação aos circuitos
dominantes. Por outro lado, há quem assinale que a rapidez da circulação das informações que
“Flutuações de origem externa, tal como as de origem interna, podem engendrar novas
estruturas; em determinadas circunstâncias precisas, o ruído, a perturbação aleatória das condições
aos limites, pode por conseguinte tornar-se fonte de ordem. Essa sensibilidade dos estados de não-
equilíbrio, não apenas às flutuações engendradas por sua atividade interna, mas também às dos fluxos
que os constituem, do meio no qual estão mergulhados, confirma essa ideia de que a estrutura
dissipativa constitui de fato a tradução singular dos fluxos que a nutrem. Nesse sentido, não há
nenhum milagre em descobrir uma “organização adaptativa” da atividade do sistema em função de
condições aos limites flutuantes, pois isso não é senão outro aspecto desta participação do meio do
qual vive. (...)” p. 134
4. ACASO E NECESSIDADE
“O conceito de ordem por flutuação não supõe, portanto, a distinção (tradicional em certas
escolas sociológicas) entre funcional e disfuncional; o que num dado momento é desvio
insignificante em relação a um comportamento normal pode, noutras circunstâncias, ser fonte de crise
e de renovação. Se os modelos da ordem por flutuação nos podem ensinar alguma coisa, é realmente
que toda a norma resulta de uma escolha, contém um elemento de acaso, mas não de arbitrário. (...)”
p. 141
“O ser vivo funciona longe do equilíbrio, num domínio onde as consequências do crescimento
da entropia não podem mais ser interpretadas segundo o princípio de ordem de Boltzmann; funciona
num domínio onde os processos produtores de entropia, os processos que dissipam energia,
desempenham um papel construtivo, são fonte de ordem. Nesse domínio, a ideia de lei universal cede
o lugar à de exploração de estabilidade e instabilidades singulares, a oposição entre o acaso das
configurações iniciais particulares e a generalidade previsível da evolução que elas determinam dá
lugar à coexistência de zonas de bifurcação e de zonas de estabilidade, à dialética das flutuações
incontroláveis e das leis médias deterministas. (...)” p. 143
“No fim do século XIX, a irreversibilidade era associada aos fenômenos de fricção, de
viscosidade, de aquecimento; estava na origem das perdas e do esbanjamento de energia contra os
quais os engenheiros lutavam; podia ser sustentada a ficção de que não se tratava de um fenômeno
secundário, ligado à imperícia das nossas manipulações, à rudeza das nossas máquinas, e de que,
fundamentalmente, a natureza era reversível como pretendia a dinâmica. Mas essa ficção torna-se
doravante insustentável: os processos irreversíveis desempenham um papel construtivo; os processos
1. A ABERTURA DE BOLTZMANN
“No instante inicial, podemos ter muitas informações sobre um sistema e localizá-lo com
muita precisão numa região restrita do espaço das fases, mas à medida que o tempo passa, os pontos
compatíveis com as condições iniciais poderão dar origem a trajetórias que se afastem cada vez mais
do ponto de partida. A informação ligada à preparação inicial perde assim, irreversivelmente, sua
pertinência até o último estádio onde não se conhece do sistema mais do que as grandezas que a
evolução dinâmica deixa. (...)” p. 159
“A termodinâmica é, por certo, a ciência dos sistemas complexos, mas segundo esta
interpretação, a única especificidade dos sistemas complexos é que o conhecimento que temos deles é
sempre aproximativo e que a incerteza, determinada por essa aproximação, vai crescendo com o
tempo. Em vez de poder reconhecer no devir irreversível das coisas o análogo do devir que o
constitui a si mesmo, o observador tem de admitir que a natureza, estranha a esse devir, limita-se a
“Com efeito, é interessante notar que, de certo modo, a nossa situação não deixa de ter
analogia com aquela donde provém o materialismo dialético. A evolução contemporânea da física, a
descoberta do papel construtivo da entropia, impôs no interior das ciências da natureza uma questão
há muito colocada por aqueles para quem compreender a natureza era compreendê-la capaz de
produzir os homens e as suas sociedades. Descrevemos uma natureza que se pode qualificar de
“histórica”, capaz de desenvolvimento e inovação, mas a ideia de uma história da natureza foi
afirmada há muito tempo por Marx e, de maneira mais detalhada, por Engels, como parte integrante
da posição materialista. (...)” p. 161
“A descoberta de uma possibilidade física não é produto de uma resignação ao bom senso, é a
descoberta de uma estrutura intrínseca do real que se ignorava até aí e que condena à impossibilidade
um projeto teórico. Na verdade, essa descoberta tem como consequência excluir a possibilidade de
uma operação que podia até aí imaginar-se realizável em princípio; máquina térmica nenhuma poderá
explorar o calor do meio se não estiver simultaneamente em contato com uma fonte fria; mas isso é
também a abertura de um ponto de vista novo sobre o mundo, a base de uma nova possibilidade de
ciência. (...)” p. 165
“O físico não descobre uma verdade determinada, que o sistema silenciaria; ele deve escolher
uma linguagem, isto é, o conjunto dos conceitos macroscópicos, em cujos termos será solicitado ao
sistema que responda. É precisamente esta ideia de escolha que Bohr exprimia com o princípio de
complementaridade. Nenhuma linguagem, ou seja, nenhuma preparação do sistema que permita
representa-lo por uma função própria de um ou de outro operador, pode esgotar a realidade do
sistema; as diferentes linguagens possíveis, os diferentes pontos de vistas tomados sobre o sistema,
são complementares; todos tratam da mesma realidade, mas não podem ser reduzidos a uma
descrição única. Esse caráter irredutível dos pontos de vista de uma mesma realidade é muito
rigorosamente a impossibilidade de descobrir um ponto de vista genérico, um ponto de vista a partir
do qual a totalidade do real seria simultaneamente visível. (...)” p. 175
“Dissemos que os grandes temas da física clássica se juntam em volta da convicção de que o
microscópio é simples. Esta convicção foi rebatida por duas vezes. Uma primeira, pela descoberta de
que a simplicidade dinâmica pertence, de fato, ao mundo macroscópico, que ela não é atribuível ao
fenômeno quântico senão através dos nossos instrumentos. Uma segunda vez, pela descoberta de que,
em mecânica clássica, raros são os casos em que a evolução dinâmica é simples bastante para admitir
a ideia de trajetória. O operador microscópico de entropia pode ser construído onde, neste último
sentido, o microscópico deixa de ser simples. (...)” p. 199
1. O FIM DA ONISCIÊNCIA
“As máquinas simples da dinâmica, como os Deuses de Aristóteles, não se ocupam senão com
eles mesmos. Nada têm a aprender; mais ainda, tem tudo a perder, de um contato qualquer com o
mundo exterior. Simulam um ideal que o sistema dinâmico realizará. Descrevemos esse sistema e
mostramos em que sentido ele constitui a rigor um sistema do mundo, sem ceder lugar algum a uma
realidade que lhe seria exterior. A cada instante, cada um dos seus pontos sabe tudo o que deverá um
dia saber, ou seja, a distribuição espacial das massas e suas velocidades. O sistema está presente em
si, sempre e por toda a parte: cada estado contém a verdade de todos os outros, e todos podem se
entre predizer, quaisquer que sejam suas posições respectivas no eixo monódromo do tempo. Pode
“As leis universais da dinâmica das trajetórias são conservativas, reversíveis e deterministas.
Implicam que o objeto da dinâmica seja cognoscível de parte a parte: a definição de um qualquer
estado do sistema e o conhecimento da lei que rege a evolução permite deduzir, com certeza e a
precisão de um raciocínio lógico, a totalidade de seu passado e de seu futuro. (...)” p.205
“A termodinâmica dos processos irreversíveis descobriu que fluxos que atravessam certos
sistemas físico-químicos e os afastam do equilíbrio podem nutrir fenômeno de auto-organização
espontânea, rupturas de simetria, evoluções no sentido de uma complexidade e diversidade
crescentes. No ponto onde se detêm as leis gerais da termodinâmica pode-se revelar o papel
construtivo da irreversibilidade; é o domínio onde as coisas nascem e morrem ou se transformam
numa história singular tecida pelo acaso das flutuações e a necessidade das leis. (...)” p. 207
“Os caminhos da natureza não podem ser previstos com segurança; a parte de acidente é neles
irredutível e bem mais decisiva do que o próprio Aristóteles julgava: a natureza bifurcante é aquela
em que pequenas diferenças, flutuações insignificantes, podem, se se produzirem em circunstâncias
oportunas, invadir todo o sistema, engendrar um regime de funcionamento novo. (...)” p.207
“Hoje, a física não nega mais o tempo. Reconhece o tempo irreversível das evoluções para o
equilíbrio, o tempo ritmado das estruturas cuja pulsão se alimenta no mundo que as atravessa, o
tempo bifurcantes das evoluções por instabilidade e amplificação de flutuações. (...)” p. 211
“Cada ser complexo é constituído por uma pluralidade de tempos, ramificados uns nos outros
segundo articulações sutis e múltiplas. A história, seja a de um ser vivo ou de uma sociedade, não
poderá nunca ser reduzida a simplicidade monótona de um tempo único, quer esse tempo cunhe uma
invariância, quer trace os caminhos de um progresso ou de uma degradação. A oposição entre Carnot
e Darwin deu lugar a uma complementaridade que nos falta compreender em cada uma das suas
produções singulares. (...) p. 211
“A própria natureza dos argumentos teóricos pelos quais explicitamos a nova posição das
descrições físicas manifesta o duplo papel de ator e de espectador que passa a nos ser destinado.
Assim, mesmo em teoria dinâmica dos sistemas de fraca estabilidade, ou em mecânica quântica,
continuamos a fazer referência às noções de ponto no espaço, das fases e de trajetórias, que nos
definem a nós mesmos como espectadores, mas para precisar imediatamente em que se trata nos dois
casos de idealizações inadequadas. Chegamos aqui a certos temas associados ao “idealismo”, mas é
muito notável que as exigências mais determinantes na adoção da nova posição conceitual que
acabamos de descrever sejam as normalmente associadas ao “materialismo”: compreender a natureza
de tal maneira que não haja absurdo em afirmar que ela nos produziu. (...)” p. 213
“Assim a ciência se afirma hoje como ciência humana, ciência feitas por homens e para
homens. No seio de uma população rica e diversa em práticas cognitivas, nossa ciência ocupa a
posição singular de escuta poética da natureza – no sentido etimológico em que o poeta é um
fabricante –, exploração ativa, manipuladora e calculadora, mas doravante capaz de respeitar a
natureza que ela faz falar. É provável que esta singularidade continue a excitar a hostilidade daqueles
para os quais todo cálculo e toda manipulação são suspeitos, mas não deviam muito legitimamente
suscitar certos juízos sumários da ciência clássica. (...)” p. 215
“A sabedoria helênica atinge aqui um dos seus pontos mais altos. Onde o homem é no mundo,
do mundo, na matéria, da matéria. Não é um estranho, mas um amigo, um familiar, um comensal e
um igual. Mantém com as coisas um contrato venéreo. Muitas outras sabedorias e ciências são
fundadas, ao invés, sobre a ruptura do contrato. O homem é um estranho ao mundo, à aurora, ao céu,
às coisas. Odeia-as, luta contra elas. O meio que o circunda é um inimigo perigoso a combater, a
manter em sujeição... Epicuro e Lucrécio vivem um universo reconciliado. Onde a ciência das coisas
e a do homem convêm na identidade. Eu sou tumulto, um turbilhão na natureza turbulenta. (...)”
Apud. SERRES, M. p. 218
7. AS METAMORFOSES DA NATUREZA