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1
súdito de ambas as cidades, é ingressar na Cidade de Deus
quando a sua jornada na outra cidade terminar. Em ambos os
marcos — e poderíamos referir inúmeros outros —, nem a
realidade nem muito menos a verdade são tidas como
antagônicas ao extra-sensível: nunca, pelo menos até o
advento da modernidade, se negou o status ontológico
daquilo que ultrapassa o físico (daí o prefixo grego µετα,
metha, fora, além), nem a sua participação na realidade
juntamente com os fenômenos acessíveis aos cinco sentidos.
O ser humano, nessa longa tradição, sempre participou de
ambos os mundos, sensível e insensível, da cidade dos
homens e da cidade de Deus, respectivamente como carne que
perece e como espírito imortal.
2
aparências. A passagem de umas a outro, aliás, sempre
correspondeu a um continuum, inclusive no plano da
causalidade: a investigação quanto às causas últimas do
mundo fenomênico material sempre se estendeu, sem
maiores dificuldades epistemológicas, ao mundo metafísico,
a ponto de a investigação metafísica ser caracterizada por
Aristóteles como “a mais excelsa das ciências, a que mais
autoridade tem sobre as subalternas”, porque é a “que
conhece a causa pelas quais os singulares agem”, ou seja, “o
bem de cada coisa em particular e o bem absoluto em toda a
natureza”. É claro, por outro lado, que a maior dignidade
científica da metafísica pressupunha, na concepção
aristotélica, uma maior dificuldade investigativa, pois os
objetos universais são, “para os homens, as coisas que são
mais difíceis de conhecer”, exatamente porque “são as mais
distantes dos sentidos”3. Mas esta dificuldade intrínseca das
investigações da metafísica não a desmerecia enquanto
ciência; muito ao contrário, valorizava-a grandemente.
3
pensamento humano, como as filosofias de Platão, Aristóteles
e Santo Tomás de Aquino, são hoje referidos como
curiosidades de museu, que convém conhecer com a ressalva
expressa de que correspondem a um passado distante de uma
civilização extinta? O que explica o fato de, para muitos
estudiosos de nossa época, a Suma Teológica possuir o
mesmo status arqueológico de uma pirâmide maia; cada um
dos livros do corpus aristotélico, o das estátuas de pedra dos
Rapa Nui; o monumento intelectual do direito natural, nada
mais do que o das escrituras rupestres? Por que o fato
histórico de que grande parte dos avanços científicos no
mundo ocidental foi realizada por religiosos teve de ser
“reescrito”, para apagar essa contribuição e separar, em
definitivo, ciência de religião, uma separação que seria risível
para um cientista do século XVII ou XVIII4? Qual foi, em
suma, a razão para o descrédito em que caiu a metafísica na
modernidade?
4
qual se voltam os homens é o da Antiguidade clássica, grega
e romana, uma Antiguidade até certo ponto idealizada. O
objetivo renascentista passa a ser a criação de uma nova
sociedade, cujas regras de convívio fossem livremente
escolhidas por meio da razão pura. A partir de tal meta,
“importa não só configurar-se a si mesmo eticamente, mas
configurar de novo todo o mundo circundante, a existência
política e social da humanidade, a partir da razão livre, a
partir das intelecções de uma filosofia universal”5. Essa
filosofia universal constituiria uma ciência omni-englobante,
que reuniria em si todas as ciências particulares, aspirando a
“nada menos que abraçar, com rigor científico, todas as
questões que têm em geral sentido na unidade de um sistema
teórico, numa metodologia de intelecção apodítica e num
progresso infinito, mas racionalmente ordenado, da
pesquisa.” Teríamos, assim, uma “construção única de
verdades definitivas, ligadas teoricamente, que continua a
crescer infinitamente de geração em geração”, e que deveria
ser capaz de “responder a todos os problemas que se
pudessem pensar — problemas de fatos ou problemas da
razão, problemas da temporalidade ou da eternidade”6.
5
de que a atividade filosófica não progrediu na mesma
velocidade em que progrediram as ciências particulares,
como a física, a matemática, a química, a astronomia, etc..
Como explica Husserl, a “crença no ideal da filosofia e do
método, que guiava os movimentos desde o início da
Modernidade, começa a oscilar; e isso não, por exemplo, pela
simples razão exterior de que cresceu enormemente o
contraste entre os constantes insucessos da metafísica e o
ininterrupto e cada vez mais impressionante avolumar dos
resultados teoréticos e práticos das ciências positivas. Tal
contraste atuou tanto sobre os que estavam de fora do
movimento como sobre aqueles cientistas que, no
empreendimento especializado das ciências positivas, se
tornaram cada vez mais especialistas não filosóficos. Mas
também nos investigadores completamente imbuídos do
espírito filosófico, interessados, por isso, principalmente
pelas questões metafísicas supremas, instalou-se um
sentimento de fracasso cada vez mais agudo, e, nestes, por
motivos mais profundos, embora completamente obscuros,
motivos que levantavam um protesto cada vez mais ruidoso
contra as obviedades profundamente enraizadas do ideal
dominante. Chega, então, a longa época de uma luta
apaixonada, que se estende desde Hume a Kant até os nossos
dias, para aceder a uma autocompreensão das verdadeiras
razões desse fracasso de séculos; naturalmente, uma luta que
se desenrolou numa pequena minoria de vocacionados e
eleitos, enquanto a massa dos restantes encontrou e continua
6
a encontrar rapidamente a sua fórmula para se tranquilizar a
si e aos seus leitores.”7
7
“redomas”, universos em miniatura, falsamente tomados
como a totalidade do real.
8
proporciona o sentido último a todos os
conhecimentos, aos conhecimentos de todas as outras
ciências. Também isto foi assumido pela filosofia de
maneira renovada, sendo que esta até acreditou ter
descoberto o verdadeiro método universal pelo qual
teria de ser possível construir uma filosofia sistemática
culminar na metafísica, decididamente como
philosophia perennis.”10
9
métodos utilizados nas ciências matematizastes do
mundo exterior possuíam uma virtude inerente, razão
por que todas as demais ciências alcançariam êxitos
comparáveis se lhe seguissem o exemplo e aceitassem
tais métodos como modelo. Essa crença, por si só, era
uma idiossincrasia inofensiva, e teria desaparecido
quanto os entusiasmados admiradores do método-
modelo se pusessem a trabalhar em sua própria ciência
e não obtivessem os resultados esperados. Ela tornou-
se perigosa por se haver combinado com uma segunda
premissa, qual seja a de que os métodos das ciências
naturais constituíam um critério para a pertinência
teórica em geral. A combinação desses dois conceitos
resultou na bem conhecida série de afirmações no
sentido de que qualquer estudo da realidade somente
poderia ser qualificado como científico se usasse os
métodos das ciências naturais; de que os problemas
colocados em outros termos eram penas ilusórios; de
que as questões metafísicas, em especial, que não
admitem resposta através dos métodos das ciências
fenomenológicas, não deveriam ser formuladas; de que
os domínios da existência que não fossem acessíveis à
exploração por meio dos métodos-modelo não eram
pertinentes; e nu ponto extremo, de que tais domínios
da existência nem ao menos existiam.
10
premissa subordina a pertinência teórica ao método e,
por conseguinte, perverte o significado da ciência. A
ciência é a busca da verdade com respeito aos vários
domínios da existência. Para ela, é pertinente o que
quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos
são pertinentes na medida em que seu conhecimento
contribua para o estudo da essência, enquanto que os
métodos são adequados na medida em que possam ser
usados efetivamente como meios para chegar a esse
fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes.
Um cientista político que deseje compreender o
significado da República de Platão não encontrará muita
utilidade na matemática; um biólogo que estude a
estrutura da célula não julgará convenientes os
métodos da filologia clássica ou os princípios da
hermenêutica. Isto pode parecer trivial, mas ocorre que
a desatenção para com as verdades elementares é uma
das características da atitude positivista; daí que se
torne necessário elaborar o óbvio. Talvez sirva como
consolo lembrar que essa desatenção é um problema
perene na história da ciência, uma vez que o próprio
Aristóteles teve de recordar a alguns elementos nocivos
do seu tempo que “um homem educado” não deve
esperar exatidão de tipo matemático em um tratado
sobre política.”11
11
às mãos (quando cai) é toda a realidade, e o seu trabalho
cognitivo, sem as bases fundantes da metafísica, se
transforma em simples jogo mental, muitas vezes
embrutecedor da inteligência. No direito público brasileiro, é
o que ocorre quando, v.g., os estudiosos negam a existência
do princípio da subsidiariedade, vilipendiam o direito de
propriedade ou a livre iniciativa em face de regulações
estatais desprovidas de utilidade pública relevante e
demonstrada, ou, o que é um resumo dos exemplos
anteriores, instituem ex ante uma suposta superioridade
coletiva sobre o indivíduo, pretendendo ser ela o núcleo
mesmo e a razão de ser da atividade legislativa e executiva
estatais. Há, ainda, sob o rótulo do neoconstitucionalismo ou
pós-positivismo, aquela categoria de estudiosos que se perde
em jogos mentais, em ponderações tão artificiais quanto inúteis,
que não escondem um inequívoco fundo voluntarista. Isto é
sintoma do embotamento da inteligência, que se produz
quando o indivíduo passa a operar, segundo veremos
adiante, em segunda realidade.
12
centralizada, uma barbárie reflexivamente inumana”12. O
direito atual cumpre o vaticínio de Lubac: sob a roupagem de
uma técnica racional, pratica-se uma ciência reduzida à
irracionalidade de uma diminuição forçada e artificial do seu
objeto; sob o rótulo do humanismo, pratica-se uma ciência
desumanizada; sob a fachada da ordem, pratica-se uma
ciência instauradora da incerteza, do medo e da confusão.
13
2 — A ciência em segunda realidade
14
ideologia passou a ocupar um espaço inaudito no debate
filosófico, graças sobretudo à obra de Karl Marx, que a elevou
a um conceito-chave de sua teoria. Embora sem defini-la
nestes termos, é claro o sentido que exsurge da obra daquele
pensador, como n’A ideologia alemã, escrita com conjunto com
Engels: o de uma falsa consciência ou um processo mental
ofuscado no qual os indivíduos não compreendem as forças
que realmente guiam o seu pensamento, mas, ao contrário,
acreditam ser ele totalmente governado pela lógica e por
influências intelectuais racionais.15
15
vários sentidos. Sua particularidade se torna evidente
quando é contrastada com a concepção total, mais
inclusiva, da ideologia. Referimo-nos aqui à ideologia
de uma época ou de um grupo histórico-social
concreto, por exemplo, a de uma classe, ocasião em que
nos preocupamos com as características e a
composição da estrutura total da mente desta época ou
deste grupo”16
16
considera a visão de mundo (Weltanschauung) total do sujeito,
em seu sentido mais amplo, procurando compreender sua
ideologia como uma decorrência da vivência coletiva na qual
aquele se insere. A segunda diferença entre ambas as
concepções consiste no fato de que, na particular a análise
sempre será restrita aos aspectos psicológicos do indivíduo,
enquanto a total operaria no nível noológico, significando,
com isso, que se considera não apenas o conteúdo do discurso
analisado (e suas implicações psicológicas), mas também a
sua forma e a estrutura conceptual de um modo de
pensamento, como uma função da situação de vida de um
sujeito. Correspondendo a esta segunda diferença,
esquadrinha-se a terceira distinção, segundo a qual a
concepção particular de ideologia opera principalmente como
uma psicologia de interesses, enquanto a concepção total
utiliza uma análise funcional formal, sem quaisquer
referências a motivações, restringindo-se a uma descrição
objetiva das diferenças estruturais das mentes operando em
contextos sociais diferentes. Assim, para Mannheim, a
primeira “pretende que este ou aquele interesse seja a causa
de uma dada mentira ou ilusão. A última pressupõe
simplesmente que existe uma correspondência entre uma
dada situação social e uma dada perspectiva, ponto-de-vista
ou massa aperceptiva”18.
17
fenômeno, a saber, àquilo que Olavo de Carvalho denomina
discurso pretextual, que consiste em um discurso que mascara
a real situação existencial do sujeito, servindo para justificar
— não importa se para o sujeito consigo mesmo, se do sujeito
para os seus semelhantes — as suas ações e o seu
comportamento. Como destaca Lúcia Santaella, “a ideologia
não aclara, ou melhor, não diz a realidade, nem procura dizê-
la, mascara-a, homogeneizando os indivíduos aos clichês,
slogans, termos abstratos, signos ocos, que têm por função
fazer passar por eternas condições sociais que são históricas e
relativas.”20
Voegelin. Vol. 28. What is history? Late unpublished writings. Kansas City:
University of Missouri Press, 1990, pp. 111-162.
18
“condenado a ser livre”. Para esse eu encolhido ou contraído,
conforme o denomina Voegelin, “Deus está morto, o passado
está morto, o presente é o vôo da não-essencial facticidade do
eu para o seu contrário, o futuro é o campo de possíveis
dentre os quais o eu deve escolher o seu projeto de estar além
da mera facticidade, e a liberdade é a necessidade de realizar
uma escolha que irá determinar o ser particular do eu. A
liberdade do eu contraído é a condenação do eu a não poder
não ser livre.”22 É esta a característica do homem moderno: a
contração da sua humanidade em um eu aprisionado à sua
própria individualidade (self-hood). Eis o início da
complicação. Assim:
19
Primeira Realidade da experiência comum de sua
visão. Longe de serem removidas, as fricções
consequentemente irão se transformar em um conflito
generalizado entre o mundo da imaginação e o mundo
real.”23
23 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. Op. cit., pp. 111-112. Grifos
nossos.
24 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. Op. cit., p. 112.
20
Tanto o conteúdo da realidade imaginada, quanto o ato
de adoção consciente ou inconsciente da realidade imaginada
como suplantadora da realidade experienciada, quanto ainda
os expedientes de que faça uso o indivíduo para projetar e
sustentar a segunda realidade como algo real, apesar de sua
falsidade intrínseca e de sua não correspondência com a
realidade da experiência comum de todos os indivíduos, são
fatores que adquirem, por força de sua reiteração pelo sujeito
e da multiplicidade de sujeitos que reproduzem o mesmo
comportamento, o status de uma força política real. Por isso é
que o “homem compacto” de que fala Voegelin é tão
poderoso na sociedade e na história quanto o homem comum,
e às vezes até mais poderoso que este último. Assim, o que se
inicia como um conflito de uma realidade imaginada com a
realidade verdadeira converte-se, sem despir-se de tal
estatuto, em um conflito dentro da realidade.
21
ingênuo”, que consiste em compreender que a realidade seria
uma realidade “em si”, “no sentido de uma coisa real no
mundo independentemente de minha percepção”.25 Para ele:
22
b) Esta formalidade compete à coisa apreendida
por si mesma. Já o direi: a formalidade da realidade é
algo em virtude do qual o conteúdo é o que é
anteriormente à sua própria apreensão. É a coisa o que
por ser real está presente como real. Realidade é o “de
seu”.
23
apreendida à realidade não apreendida. É um
movimento dentro da própria realidade do real.”27
24
E como reconhecer a realidade? Essa pergunta, típica
de um idealista, ou seja, de alguém que parte do pensamento
para o real, simplesmente é um contrassenso, pois o
conhecimento, para o realista, é o resultado da assimilação
das coisas. E numa “ordem em que a adequação do
entendimento em relação à coisa, que o juízo formula, supõe
a adequação concreta e vivida do entendimento aos seus
objetos, seria absurdo exigir ao conhecimento que garantisse
uma conformidade sem a qual aquele mesmo conhecimento
sequer existiria”30. A prova da realidade é a adequação da
experiência concreta do sujeito ao juízo sobre ela elaborado.
Todo discurso filosófico ou científico verdadeiro pode ser
qualificado, em última análise, como um testemunho sincero
da existência do sujeito que o formula. A modéstia no
conhecimento é a virtude própria do realista31.
25
Lewis S. Feuer entende que as ideologias, quaisquer
que sejam, possuem aspectos estruturais comuns entre si. Tais
aspectos estruturais — ou “ingredientes”, como diz o autor —
, analisando-se as ideologias modernas como o marxismo, o
fascismo, o estruturalismo, o marcuseanismo, o bakuninismo,
a negritude africana, entre outras, são três: (i) um mito
invariável; (ii) uma composição de doutrinas ou formulações
filosóficas que se alternam ciclicamente na história da
ideologia; e (iii) a ideia de existência de um grupo social (ou
classe) que seja historicamente escolhido para encarnar os
desígnios da ideologia.33
26
(5) ele experimenta o chamado para redimir o
povo oprimido;
(6) ele retorna para demandar liberdade para o
povo oprimido;
(7) ele é desprezado pelo tirano;
(8) ele lidera ações que, depois de derrotas
iniciais, derrotam o opressor;
(9) ele liberta o povo oprimido;
(10) ele transmite uma nova doutrina sagrada,
um novo modo de vida, para o seu povo;
(11) o povo recém-liberado falha na lealdade
para com a sua missão histórica;
(12) quase desiludido, o seu líder impõe uma
disciplina coletiva ao povo a fim de reeducá-lo
moralmente para sua nova vida;
(13) um falso profeta aparece e rebela-se contra
o regime autoritário do líder, mas é destruído;
(14) o líder, agora um legislador reverenciado,
morre, ao vislumbrar longinquamente a nova
existência.”35
Para Feuer:
27
povo, entretanto, ainda está escravizado em sua
psicologia, sendo incapaz de perceber a nova
sociedade; ele requer um período preparatório sob
uma ditadura tutelar; o intelectual revolucionário se
torna o seu benevolente ditador; ele reprime os
elementos facciosos; ele morre, outorgando a visão da
nova sociedade, e vivendo na memória do seu povo.”36
28
desafia mais do que nega. Pelo menos no início, não
elimina Deus: simplesmente, fala-lhe de igual para
igual. Mas não se trata de um diálogo cortês. Trata-se
de uma polêmica animada pelo desejo de vencer. O
escravo começa reclamando justiça e termina
querendo a realeza. Ele também precisa ter a sua vez
de dominar. Insurgir-se contra a condição humana
transforma-se em uma incursão desmedida contra o
céu para capturar um rei, que será primeiro
destronado, para em seguida ser condenado à morte.
A rebelião humana acaba em revolução metafísica.
Evolui do parecer para o fazer, do dândi ao
revolucionário. Derrubado o trono de Deus, o rebelde
reconhecerá essa justiça, essa ordem, essa unidade que
em vão buscava no âmbito de sua condição, cabendo-
lhe agora criá-las com as próprias mãos e, com isso,
justificar a perda da autoridade divina. Começa então
o esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço
do crime, se for o caso, o império dos homens.”38
29
compreendido como um lugar estranho no qual o homem se encontra
por acidente (ou pela vontade de um Deus mau) e a partir do qual
ele (homem) deve encontrar o seu caminho de volta para o outro
mundo, ao qual ele pertence39. Voegelin, seguindo a lição de
Clemente de Alexandria, relembra que a gnose envolve uma
experiência anímica particular: o conhecimento de quem
éramos e do que nos tornamos, de onde estávamos e para
onde fomos lançados, de para onde nos dirigimos e de onde
seremos redimidos, do que é o nascimento e do que é o
renascimento. A ontologia do antigo gnosticismo — baseada
na crença na existência de um “deus mau”, responsável por
este mundo em que nos encontramos, e de um “deus bom”,
que será responsável pela nossa libertação — se transforma
na modernidade: seja por meio da assunção de um espírito
absoluto que, no desdobramento dialético da consciência,
passa da alienação para a consciência de si próprio; seja pela
assunção de um processo dialético-material da natureza que
leva da alienação, inerente à propriedade privada e à crença
em Deus, para um estado de liberdade de uma existência
humana plena; seja, por fim, por meio da assunção de uma
vontade da natureza que, se abraçada, transformará o homem
em um super-homem40.
8.
30
Conforme aponta já no subtítulo da obra
(“Redescobrindo o direito natural em um mundo pós-
cristão”), Russell Hittinger concentra seus esforços na
compreensão do direito natural em um mundo que ele
qualifica como pós-cristão. A civilização ocidental —
relembremos Santo Agostinho — é obra judaico-cristã; não
apenas se afirma a partir do cristianismo como dele retira seus
principais traços (das artes aos costumes, da ciência à
política), atingindo o seu ápice na Idade Média, quando a
influência cristã foi mais forte e a identificação entre a
sociedade e a religião, mais perfeita. A civilização ocidental
surgiu nos escombros de Roma e, caminhando para o oeste,
impregnou-se nas tribos bárbaras (celtas, visigodos,
lombardos, saxões etc.) e, um milênio depois, atingiu, pela
colonização, os povos dos continentes americanos recém-
descobertos.
31
estamos em um mundo pós-cristão, estamos também em um mundo
pós-ocidental.
World Order. Nova York: Simon & Schuster, 1997; (iii) MORRIS, Ian. Why
the West Rules — For Now. The Patterns of History and What They Reveal
About the Future. Londres: Profile Books, 2010; e (iv) FERGUSON, Niall.
Civilization. The West and the Rest. Londres: Penguin, 2011.
32
vai paulatinamente perdendo importância até praticamente
desaparecer. Isso porque a discussão sobre a fonte do direito
natural, que antes era pacificamente reconhecida como sendo
Deus (ou o direito divino), passa para a natureza e depois para
o homem. Sem o apoio da autoridade divina, cai por terra a
ideia de participação, que era o meio pelo qual o homem
poderia acessar o conteúdo do direito natural na medida em
que este participava da lei divina. Note-se que, segundo o
pensamento cristão, o homem, maculado pelo pecado original
e pela queda, não tinha mais clareza quanto ao conteúdo do
direito natural, mas tinha o apoio da Graça e da predisposição
para o seu conhecimento, que era, como diz São Paulo, “a obra
da lei gravada em seus corações” (Romanos, 2:15). Sem o
apoio da autoridade divina, o direito natural se terrestrializa,
passa a residir unicamente na razão, e a razão possui apenas
a si mesma como prova, o que abre caminho para o
relativismo. Se cada homem pode, pelo uso da própria razão,
chegar a resultados diversos quanto ao conteúdo de um
pretenso direito natural, então o conhecimento do direito
natural se torna uma empresa impossível.
33
XIX), a influência do positivismo, e o surgimento e
crescimento do marxismo como ideologia de massas, são
todos fatores que contribuíram para a afirmação do direito
positivo, em detrimento do direito natural. Por trás desses
eventos está a universalização do sentimento gnóstico, que
afirma a morte de Deus, a solidão do homem na terra e a
terrestrialização da redenção humana. O sentimento gnóstico
é o nome da doença da alma (para Voegelin, pneumopatologia),
e as ideologias todas (liberalismo, positivismo, marxismo,
etc.) são os seus sintomas, as suas manifestações particulares.
A fonte por excelência do direito passa a residir unicamente
na vontade do homem, que não está vinculado a nenhum
padrão moral universalmente vigente.
34
do direito alemães resistissem à arbitrariedade nazista, como
também auxiliou na legitimação do governo nazista”43. De
sua parte, o marxismo aplicado ao direito buscava instituir
um novo senso individual de justiça, instituído pela razão
comunista. Na União Soviética, ressalta Harold J. Berman:
35
socialismo], de outro. A personalidade dos governantes
ainda exerce um papel dominante; a influência pessoal
é um fator crucial que impede o movimento pela
estabilidade das leis.”44
the Nazi War Crimes Trials Changed the Course of History. Nova York:
Palgrave Macmillan, 2007, pp. 107-112; e HAFETZ, Jonathan. Punishing
Atrocities through a Fair Trial. International Criminal Law from Nuremberg to
the Age of Global Terrorism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018,
pp. 6-27.
36
Mas não era só em sociedades totalitárias que a
ausência de uma compreensão correta do direito natural se
fez sentir. Mesmo em sociedades desenvolvidas e prósperas
como os Estados Unidos, cuja declaração de independência
prevê expressamente a prevalência do direito natural sobre o
direito positivo46, foi exatamente do “direito natural” — na
utilização que dele fez a Suprema Corte, note-se bem — que
se extraiu um direito subjetivo “de definir o próprio conceito
de existência, de significado, do universo e do mistério da
vida humana” (Planned Parenthood v. Casey, 1992), que serviu
para amparar a continuidade da descriminalização do aborto,
inaugurada na década de 1970 (Roe v. Wade, 1973). Sem entrar
no mérito de tal decisão (que Russell Hittington aborda em
detalhes em A Primeira Graça), é claro que ela não apenas
subverte o sentido protetivo da vida que seria o único
extraível da tradição cristã do direito natural (não matar é,
além de tudo, um dos Mandamentos expressamente
revelados por Deus), como expõe e corporifica o sentimento
gnóstico na sua máxima pureza: o homem, livre de qualquer
força transcendente, é dotado da máxima liberdade, podendo,
pela sua vontade, dar sentido ao universo e não somente à sua
própria vida, mas à vida em geral. Uma afirmação que um
Nietzsche, Stalin ou Hitler não hesitaria em subscrever.
37
Reconhecendo que a luta do direito natural foi
perdida, Russell Hittinger retoma a discussão que floresceu
na tradição católica, tendo o seu ponto culminante na obra de
Santo Tomás de Aquino. A ideia é recuperar a discussão pelos
seus fundamentos. Sobre o problema da fonte do direito
natural — se ele estaria em Deus, na natureza ou na razão
humana —, ele retoma Santo Tomás, enfatizando que o
direito natural participa do direito divino, que é a mente de
Deus, da mesma forma que o direito positivo deve participar
do direito natural. O conceito de participação é a chave do
sistema tomista, e envolve dois pontos distintos: (i) a pura
perfeição (perfectio separata) pode ser apenas uma, e o esse é a
primeira perfeição e o ato de todos os atos; daí resultando que
o esse é apenas um, a saber, Deus, cuja essência é ser; e (ii)
todas as criaturas são seres por participação, na medida em
que sua essência participa no esse que é o ato final de toda a
realidade; daí que a essência das criaturas se relacione com o
esse como a potência está para o ato47. Sendo assim, o direito
natural não apenas é direito, como só o é na medida em que participe
do direito divino; e o direito positivo, do mesmo modo, só será,
propriamente, direito, enquanto participando do direito natural. A
fonte de qualquer direito, nessa linha, só pode ser Deus.
38
natural, embora conte, é claro, com a ajuda da Revelação e da
tradição católica, no plano objetivo, e da Graça, no plano
subjetivo, é ela própria uma atividade a ser responsavelmente
empreendida. Como destaca Rhonheimer, o homem “ao invés
de ‘ler’ uma ordem natural a partir das coisas, está imbuído
da tarefa ‘criativa’ de formar a ordem moral”48. Essa
responsabilidade se estende à legislação humana, que deve
expressar o telos do direito natural, mediante a prudência e o
engenho humanos.
39
a analisar casos sensíveis da realidade americana. Destaca
como a ideia de direito natural, no contexto americano,
passou a significar o inverso da tradição cristã. De uma
instância de participação no direito divino, da qual por sua
vez participaria o direito positivo, em uma continuidade
teleológica e em uma unidade moral, o direito natural passou
a significar uma esfera de liberdade contra o Estado e contra
qualquer julgamento moral. Dentro dessa esfera, o indivíduo
seria soberano, não podendo ser censurado por qualquer
poder temporal ou espiritual.
40
natural é desrespeitado, também a ordem jurídica que dele
participa se coloca em risco.
41
florescimento de sociedades outras que o próprio Estado”.
Toda a tradição dos juristas cristãos, que vai de Santo Tomás
a Maurice Hauriou, passando por Francisco Suarez e pelo
calvinista Johannes Althusius, afirma a existência do
pluralismo jurídico, que significa não apenas a multiplicidade
das fontes do direito, mas também a de instituições (Igreja,
Estado, Associações, famílias e indivíduos) encarregadas da
sua produção.
42
o niilismo e todas as suas variantes contemporâneas. Aqui,
bem caberia a advertência da encíclica Libertas
Praestantissimum (1888), editada pelo Papa Leão XIII, para
quem:
43
da exposição, quer, por fim, pela correta aplicação desses
elementos a problemas modernos, como o aborto, suicídio
assistido, relação entre Igreja e Estado, liberdade religiosa e
fundamentos da sociedade civil, a obra representa uma
valiosa contribuição ao tema.
Amauri F. Saad
Lake Ontario, inverno de 2020-2021.
44