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POSFÁCIO à obra: A Primeira Graça: Redescobrindo o

Direito Natural em um Mundo Pós-Cristão, de Russell


Hittinger (Londrina: EDA, 2021 – Tradução de Amauri
Feres Saad)

1 — A aversão metafísica na modernidade

Desde o início da civilização ocidental, a aventura


existencial do homem representou um progressivo “olhar
para fora” de si mesmo e um “olhar para dentro” do seu
espírito e do mistério da transcendência. Não à-toa, dois dos
marcos fundantes de nossa civilização são a alegoria da
caverna1 e a concepção historiográfica agostiniana. Na
primeira, o gênio platônico coloca o problema da realidade
transcendental das essências que informam o mundo sensível
(ou das aparências). Na segunda, especialmente na obra
Cidade de Deus, Santo Agostinho descreve, não menos
genialmente que Platão, o fenômeno, de um lado, de
cristianização do mundo antigo, que resultou no
abrandamento dos costumes, no florescimento das virtudes e
na afirmação da civilização cristã sobre os escombros do
mundo antigo, pagão e bárbaro; e, de outro, a coexistência de
duas cidades, a de Deus e a dos homens, a primeira
significando o reino de Deus e a segunda o de César. A cidade
dos homens, que representa o universo secular, participa da
cidade de Deus naquilo que apresente de virtuosa, mas será
sempre imperfeita e separada daquela. O objetivo do homem,

1 O famoso mito da caverna está no Livro VII da República (cf. Oeuvres


complètes. Sob a direção de Luc Brisson. Paris: Flammarion, 2011, p. 1679).

1
súdito de ambas as cidades, é ingressar na Cidade de Deus
quando a sua jornada na outra cidade terminar. Em ambos os
marcos — e poderíamos referir inúmeros outros —, nem a
realidade nem muito menos a verdade são tidas como
antagônicas ao extra-sensível: nunca, pelo menos até o
advento da modernidade, se negou o status ontológico
daquilo que ultrapassa o físico (daí o prefixo grego µετα,
metha, fora, além), nem a sua participação na realidade
juntamente com os fenômenos acessíveis aos cinco sentidos.
O ser humano, nessa longa tradição, sempre participou de
ambos os mundos, sensível e insensível, da cidade dos
homens e da cidade de Deus, respectivamente como carne que
perece e como espírito imortal.

O trabalho científico, do mesmo modo, jamais foi algo


que se isolasse da condição humana (corpo e alma, mortal e
imortal) ou que negasse a estrutura da realidade (composta
pelos mundos sensível e insensível, pelas formas visíveis e
invisíveis). A ciência, aliás, sempre foi um instrumento para o
acesso às essências que existem em plano diverso ao do
mundo sensível2 e para a investigação das múltiplas
implicações e correlações entre tais essências e o mundo das

2 Leibiniz, tomando parte na discussão que na modernidade se alastraria


com a velocidade, a resistência e os malefícios de uma praga, arrasando
tudo pela frente – o suposto conflito entre fé e razão, metafísica e ciência
positiva –, equaciona, com simplicidade, a questão: “Eu suponho que duas
verdades não poderiam se contradizer; pois o objeto da fé é a verdade que
Deus revelou de uma maneira extraordinária e a razão é o encadeamento
das verdades, mais particularmente (quando ela é comparada à fé)
daquelas em que o espírito humano pode chegar naturalmente, sem ser
ajudado pela luz da fé” (LEIBINIZ, G. W. Ensaios de Teodiceia sobre a
bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal. Tradução de William
de Siqueira Piauí e Juliana Cecci da Silva. 2 ed. São Paulo: Estação
Liberdade, 2017, p. 73).

2
aparências. A passagem de umas a outro, aliás, sempre
correspondeu a um continuum, inclusive no plano da
causalidade: a investigação quanto às causas últimas do
mundo fenomênico material sempre se estendeu, sem
maiores dificuldades epistemológicas, ao mundo metafísico,
a ponto de a investigação metafísica ser caracterizada por
Aristóteles como “a mais excelsa das ciências, a que mais
autoridade tem sobre as subalternas”, porque é a “que
conhece a causa pelas quais os singulares agem”, ou seja, “o
bem de cada coisa em particular e o bem absoluto em toda a
natureza”. É claro, por outro lado, que a maior dignidade
científica da metafísica pressupunha, na concepção
aristotélica, uma maior dificuldade investigativa, pois os
objetos universais são, “para os homens, as coisas que são
mais difíceis de conhecer”, exatamente porque “são as mais
distantes dos sentidos”3. Mas esta dificuldade intrínseca das
investigações da metafísica não a desmerecia enquanto
ciência; muito ao contrário, valorizava-a grandemente.

Se o conhecimento da ciência primeira dignificava o


homem, elevando-o e o tornando mais perfeito, por que então
a metafísica foi eliminada das discussões científicas,
incluindo-se aquelas próprias ao Direito, na atualidade? Por
que o ideal de objetividade, entendido como a circunscrição
do pensamento ao universo imanente, elevou-se a dogma na
modernidade, um dogma fora do qual os estudiosos não
cogitam sequer pisar, sob pena de perda do estatuto científico
e da ridicularização acadêmica? Por que monumentos do

3 ARISTÓTELES. Oeuvres complètes. Sob a direção de Pierre Pellegrin.


Paris: Flammarion, 2014, pp. 1739-1740.

3
pensamento humano, como as filosofias de Platão, Aristóteles
e Santo Tomás de Aquino, são hoje referidos como
curiosidades de museu, que convém conhecer com a ressalva
expressa de que correspondem a um passado distante de uma
civilização extinta? O que explica o fato de, para muitos
estudiosos de nossa época, a Suma Teológica possuir o
mesmo status arqueológico de uma pirâmide maia; cada um
dos livros do corpus aristotélico, o das estátuas de pedra dos
Rapa Nui; o monumento intelectual do direito natural, nada
mais do que o das escrituras rupestres? Por que o fato
histórico de que grande parte dos avanços científicos no
mundo ocidental foi realizada por religiosos teve de ser
“reescrito”, para apagar essa contribuição e separar, em
definitivo, ciência de religião, uma separação que seria risível
para um cientista do século XVII ou XVIII4? Qual foi, em
suma, a razão para o descrédito em que caiu a metafísica na
modernidade?

Explica Edmund Husserl que no Renascimento a


sociedade europeia volta-se contra o estilo de vida então
vigente, o qual era, em linhas gerais, o mesmo desde a Idade
Média. Passa-se então a desvalorizar o modo de existir
medieval, idealizando-se um estilo de vida livre: o modelo ao

4 Ver, a propósito: STANLEY, Matthew. Huxley’s Church & Maxwell’s


Demon. From theistic Science to naturalistic Science. Chicago: Chicago
University Press, 2015; UDÍAS, Agustín. Jesuit contribution to Science. A
history. Nova York: Springer, 2015; HESS, Peter M. J. e ALLEN, Paul L.
Catholicism and Science. Westport, CT: Greenwood, 2008; WADDELL,
Mark A. Jesuit Science and the end of nature’s secrets. Surrey: Ashgate, 2015;
FEINGOLD, Mordechai (editor). The new Science and Jesuit Science:
seventeenth century perspectives. N/a: Springer, 2003; FEINGOLD,
Mordechai (editor). Jesuit science and the Republic of letters. Cambridge, MA:
MIT Press, 2003.

4
qual se voltam os homens é o da Antiguidade clássica, grega
e romana, uma Antiguidade até certo ponto idealizada. O
objetivo renascentista passa a ser a criação de uma nova
sociedade, cujas regras de convívio fossem livremente
escolhidas por meio da razão pura. A partir de tal meta,
“importa não só configurar-se a si mesmo eticamente, mas
configurar de novo todo o mundo circundante, a existência
política e social da humanidade, a partir da razão livre, a
partir das intelecções de uma filosofia universal”5. Essa
filosofia universal constituiria uma ciência omni-englobante,
que reuniria em si todas as ciências particulares, aspirando a
“nada menos que abraçar, com rigor científico, todas as
questões que têm em geral sentido na unidade de um sistema
teórico, numa metodologia de intelecção apodítica e num
progresso infinito, mas racionalmente ordenado, da
pesquisa.” Teríamos, assim, uma “construção única de
verdades definitivas, ligadas teoricamente, que continua a
crescer infinitamente de geração em geração”, e que deveria
ser capaz de “responder a todos os problemas que se
pudessem pensar — problemas de fatos ou problemas da
razão, problemas da temporalidade ou da eternidade”6.

Esse ideal, se efetivamente correspondeu a um início


positivo e promissor — o Iluminismo é, na largada, um
movimento essencialmente otimista —, foi logo colocado em
dúvida e, ao final, abandonado. E por quê? Pelo simples fato

5 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e fenomenologia


transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Tradução de Diogo
Falcão Ferrer. Rio de Janeiro: GEN/Forense Universitária, 2012, p. 5.
6 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e fenomenologia

transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Op. cit., p. 5.

5
de que a atividade filosófica não progrediu na mesma
velocidade em que progrediram as ciências particulares,
como a física, a matemática, a química, a astronomia, etc..
Como explica Husserl, a “crença no ideal da filosofia e do
método, que guiava os movimentos desde o início da
Modernidade, começa a oscilar; e isso não, por exemplo, pela
simples razão exterior de que cresceu enormemente o
contraste entre os constantes insucessos da metafísica e o
ininterrupto e cada vez mais impressionante avolumar dos
resultados teoréticos e práticos das ciências positivas. Tal
contraste atuou tanto sobre os que estavam de fora do
movimento como sobre aqueles cientistas que, no
empreendimento especializado das ciências positivas, se
tornaram cada vez mais especialistas não filosóficos. Mas
também nos investigadores completamente imbuídos do
espírito filosófico, interessados, por isso, principalmente
pelas questões metafísicas supremas, instalou-se um
sentimento de fracasso cada vez mais agudo, e, nestes, por
motivos mais profundos, embora completamente obscuros,
motivos que levantavam um protesto cada vez mais ruidoso
contra as obviedades profundamente enraizadas do ideal
dominante. Chega, então, a longa época de uma luta
apaixonada, que se estende desde Hume a Kant até os nossos
dias, para aceder a uma autocompreensão das verdadeiras
razões desse fracasso de séculos; naturalmente, uma luta que
se desenrolou numa pequena minoria de vocacionados e
eleitos, enquanto a massa dos restantes encontrou e continua

6
a encontrar rapidamente a sua fórmula para se tranquilizar a
si e aos seus leitores.”7

Sem a metafísica, restam ao homem meras ciências de


fatos. E “[m]eras ciências de fatos fazem meros homens de
fatos”.8 É isto, no fim das contas, o grande resultado dessa
“queda” da metafísica: a construção de uma filosofia, de uma
teoria social, de um direito, para ficarmos apenas nas
humanidades, completamente separados dos grandes
problemas humanos e para os quais o indivíduo, na sua
infinita complexidade, não possui maior significação. A
ciência do direito, nesse contexto, não escapa da metáfora do
louco, de Chesterton. Para este escritor, como se sabe, a
loucura não é uma doença caracterizada pela falta de razão,
mas, ao contrário, pelo fato de que o louco só tem razão,
faltando-lhe todo o resto.9 Assim é que, preso a uma única
ideia explicativa da realidade, em geral uma ideia
aparentemente racional, e sem se deixar atrapalhar pelo senso
de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da
experiência, o louco constrói para si uma redoma, muito
menor do que o universo real, e passa a crer que aquilo é o
mundo, e não este. Liberalismo, positivismo e marxismo, para
nos atermos aos principais “ismos” que se sucederam como
ideologias predominantes na modernidade, constituem

7 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e fenomenologia


transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Op. cit., p. 7.
8 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e fenomenologia

transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Op. cit., p. 3.


9 Para Chesterton, o louco “não é um homem que perdeu a razão. O louco

é um homem que perdeu tudo exceto a razão.” Ver: CHESTERTON, G. K.


Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Ed. Mundo Cristão,
2007, cap. II.

7
“redomas”, universos em miniatura, falsamente tomados
como a totalidade do real.

Como destaca Edmund Husserl:

“Se o homem se torna um problema ‘metafísico’,


um problema especificamente filosófico, ele está em
questão como ser racional; e, se a sua história está em
questão, é porque se trata do ‘sentido’, da razão na
história. O problema de Deus contém manifestamente
o problema da razão ‘absoluta’ enquanto fonte
teleológica de toda a razão no mundo, do ‘sentido’ do
mundo. Naturalmente, também a questão da
imortalidade é uma questão da razão, como não o é
menos a questão da liberdade. Todas estas questões
‘metafísicas’, tomadas de um modo alargado, as
questões que no discurso usual são as especificamente
filosóficas, ultrapassam o mundo enquanto universo
de meros fatos. Ultrapassam-no precisamente
enquanto questões que têm o sentido da ideia de razão.
E todas elas reivindicam uma maior dignidade em face
das questões acerca de fatos, as quais estão abaixo
delas também na ordem do questionamento. O
positivismo, por assim dizer, decapita a filosofia. Já na
ideia antiga de filosofia, que encontra a sua unidade na
unidade inseparável de todo o ser, esta covisada uma
ordem do ser plena de sentido e, por isso, também dos
problemas do ser. Deste modo, coube à metafísica, à
ciência das questões supremas e últimas, a dignidade
de rainha das ciências, cujo espírito unicamente

8
proporciona o sentido último a todos os
conhecimentos, aos conhecimentos de todas as outras
ciências. Também isto foi assumido pela filosofia de
maneira renovada, sendo que esta até acreditou ter
descoberto o verdadeiro método universal pelo qual
teria de ser possível construir uma filosofia sistemática
culminar na metafísica, decididamente como
philosophia perennis.”10

O perigo da negação da metafísica não apenas na


filosofia mas em todo o universo das ciências, em grande
parte já concretizado nesta quadra histórica, consiste na
instituição de um irracionalismo científico mascarado de
racionalismo: ao seccionar da realidade somente o plano
material, elegendo-o como único digno de investigação, os
intelectuais da modernidade amputam voluntariamente a maior
e a mais nobre parte da realidade, sobre a qual um intelecto normal
deveria naturalmente se debruçar. Voegelin, que teve Husserl
como professor, vai mais além nas reflexões deste,
identificando “duas premissas fundamentais” adotadas pelo
positivismo, que considera responsáveis pela destruição do
conhecimento no último século e meio:

“A destruição causada pelo positivismo é


consequência de duas premissas fundamentais. Em
primeiro lugar, o esplêndido desenvolvimento das
ciências naturais foi responsável, juntamente com
outros fatores, pela premissa segundo a qual os

10 HUSSERL, Edmund. A crise das ciências europeias e fenomenologia


transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. Op. cit., p. 6.

9
métodos utilizados nas ciências matematizastes do
mundo exterior possuíam uma virtude inerente, razão
por que todas as demais ciências alcançariam êxitos
comparáveis se lhe seguissem o exemplo e aceitassem
tais métodos como modelo. Essa crença, por si só, era
uma idiossincrasia inofensiva, e teria desaparecido
quanto os entusiasmados admiradores do método-
modelo se pusessem a trabalhar em sua própria ciência
e não obtivessem os resultados esperados. Ela tornou-
se perigosa por se haver combinado com uma segunda
premissa, qual seja a de que os métodos das ciências
naturais constituíam um critério para a pertinência
teórica em geral. A combinação desses dois conceitos
resultou na bem conhecida série de afirmações no
sentido de que qualquer estudo da realidade somente
poderia ser qualificado como científico se usasse os
métodos das ciências naturais; de que os problemas
colocados em outros termos eram penas ilusórios; de
que as questões metafísicas, em especial, que não
admitem resposta através dos métodos das ciências
fenomenológicas, não deveriam ser formuladas; de que
os domínios da existência que não fossem acessíveis à
exploração por meio dos métodos-modelo não eram
pertinentes; e nu ponto extremo, de que tais domínios
da existência nem ao menos existiam.

A segunda premissa é a verdadeira fonte do


perigo. É a chave para a compreensão da
destrutividade positivista e não tem recebido, de modo
algum, a atenção que merece. Isto porque essa segunda

10
premissa subordina a pertinência teórica ao método e,
por conseguinte, perverte o significado da ciência. A
ciência é a busca da verdade com respeito aos vários
domínios da existência. Para ela, é pertinente o que
quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos
são pertinentes na medida em que seu conhecimento
contribua para o estudo da essência, enquanto que os
métodos são adequados na medida em que possam ser
usados efetivamente como meios para chegar a esse
fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes.
Um cientista político que deseje compreender o
significado da República de Platão não encontrará muita
utilidade na matemática; um biólogo que estude a
estrutura da célula não julgará convenientes os
métodos da filologia clássica ou os princípios da
hermenêutica. Isto pode parecer trivial, mas ocorre que
a desatenção para com as verdades elementares é uma
das características da atitude positivista; daí que se
torne necessário elaborar o óbvio. Talvez sirva como
consolo lembrar que essa desatenção é um problema
perene na história da ciência, uma vez que o próprio
Aristóteles teve de recordar a alguns elementos nocivos
do seu tempo que “um homem educado” não deve
esperar exatidão de tipo matemático em um tratado
sobre política.”11

Ignorando justamente o que é mais relevante conhecer,


o cientista passa a crer que a migalha de realidade que lhe cai

11 VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Tradução de José Viegas


Filho. 2 ed. Brasília: UNB, 1982, p. 19.

11
às mãos (quando cai) é toda a realidade, e o seu trabalho
cognitivo, sem as bases fundantes da metafísica, se
transforma em simples jogo mental, muitas vezes
embrutecedor da inteligência. No direito público brasileiro, é
o que ocorre quando, v.g., os estudiosos negam a existência
do princípio da subsidiariedade, vilipendiam o direito de
propriedade ou a livre iniciativa em face de regulações
estatais desprovidas de utilidade pública relevante e
demonstrada, ou, o que é um resumo dos exemplos
anteriores, instituem ex ante uma suposta superioridade
coletiva sobre o indivíduo, pretendendo ser ela o núcleo
mesmo e a razão de ser da atividade legislativa e executiva
estatais. Há, ainda, sob o rótulo do neoconstitucionalismo ou
pós-positivismo, aquela categoria de estudiosos que se perde
em jogos mentais, em ponderações tão artificiais quanto inúteis,
que não escondem um inequívoco fundo voluntarista. Isto é
sintoma do embotamento da inteligência, que se produz
quando o indivíduo passa a operar, segundo veremos
adiante, em segunda realidade.

Para Henri de Lubac, se até a Idade Média existia um


esforço de racionalização do homem contra a barbárie, na
modernidade a guerra foi perdida. E perdida para o quê? Para
a irracionalidade travestida de ciência, para a técnica do
mundo material, para a racionalidade que perdeu todo o resto,
para a anti-metafísica. E isto significa que, conforme alerta o
autor, “[h]averemos de retroceder à barbárie, mas a uma
barbárie, sem dúvida, muito diferente da antiga e, com
certeza, bastante mais atroz, uma barbárie técnica e

12
centralizada, uma barbárie reflexivamente inumana”12. O
direito atual cumpre o vaticínio de Lubac: sob a roupagem de
uma técnica racional, pratica-se uma ciência reduzida à
irracionalidade de uma diminuição forçada e artificial do seu
objeto; sob o rótulo do humanismo, pratica-se uma ciência
desumanizada; sob a fachada da ordem, pratica-se uma
ciência instauradora da incerteza, do medo e da confusão.

São típicas dessa “ciência jurídica” duas atitudes


perante o fenômeno jurídico, ambas patológicas: a primeira,
que compreende o direito como uma ciência natural ou exata,
em que os fenômenos se mostram e podem ser apreendidos
pelo observador nos mesmíssimos termos em que aquelas; e
a segunda, a que nega peremptoriamente a viabilidade
mesma do direito como ciência, classificando todos os juízos
jurídicos como manifestações de interesses de classe, de
posições políticas ou de preferências ideológicas e opiniões
pessoais. As consequências disso são, de um lado, o
deliberado afastamento dos valores em relação ao fenômeno
jurídico, o que muito contribui para a aceitação da estatalidade
como a única fonte jurídica possível, e de outro a própria
desconfiança em face do direito, pois todas as posições
passam a ser, no fim das contas, equivalentes e igualmente
justificáveis. No primeiro caso, a verdade não é atingida
porque o direito não é estudado na sua integralidade; no
segundo caso, a verdade é simplesmente excluída como uma
impossibilidade, ainda que, curiosamente, os seus artífices
continuem se apresentando como cientistas.

12LUBAC, Henri de. O drama do humanismo ateu. Revisão da tradução de


Lyege Ornellas Pires de Carvalho. Itapevi, SP: Nebli, 2015, p. 67.

13
2 — A ciência em segunda realidade

Não temos dúvida de que tal estado de coisas é


consequência direta da influência, desde o século XVIII, de
certas correntes filosóficas no ambiente ocidental (e um século
depois, por extensão, no Brasil). Toda filosofia, verdadeira ou
falsa, boa ou má, não se afirma ou produz efeitos na vida
humana somente a partir da discussão entre filósofos. Este
debate fica na maior parte das vezes inacessível, inclusive às
camadas letradas, para fora daquele minúsculo círculo, que é
o dos filósofos e intelectuais de projeção universal. O que faz
uma filosofia se difundir e influenciar é a sua tradução em
ideologia; somente por meio desse processo de pasteurização é
que certas ideias, irradiadas a partir de doutrinas filosóficas,
podem chegar a públicos maiores.

O termo ideologia foi cunhado no início do século XIX


pelo filósofo francês Destut de Tracy para significar a ciência
que estuda as sensações, memórias, julgamentos e desejos —
como manifestações da faculdade de pensar13. Nessa primeira
concepção, a ideologia, que o autor qualificava como parte da
zoologia, era uma mistura de filosofia do conhecimento, de
psicologia e até mesmo de semiótica14.

Logo, porém, o seu sentido mudou, passando a


designar objetos muito diversos. Mais do que isto, a ideia de

13 Ver, a propósito: TRACY, Destut de. Eléméns d’Ideologie. Primeira Parte.


3 ed. Paris: Mme. Ve. Courcier, 1817.
14 TRACY, Destut de. Eléméns d’Ideologie. Op. cit., pp. 389-424.

14
ideologia passou a ocupar um espaço inaudito no debate
filosófico, graças sobretudo à obra de Karl Marx, que a elevou
a um conceito-chave de sua teoria. Embora sem defini-la
nestes termos, é claro o sentido que exsurge da obra daquele
pensador, como n’A ideologia alemã, escrita com conjunto com
Engels: o de uma falsa consciência ou um processo mental
ofuscado no qual os indivíduos não compreendem as forças
que realmente guiam o seu pensamento, mas, ao contrário,
acreditam ser ele totalmente governado pela lógica e por
influências intelectuais racionais.15

Para Karl Mannheim, o termo ideologia pode ser


estudado em dois sentidos distintos, um particular e outro
total:

“A concepção particular de ideologia é


implicada quando o termo denota estarmos céticos das
ideias e representações apresentadas por nosso
opositor. Estas são encaradas como disfarces mais ou
menos conscientes da real natureza de uma situação, cujo
reconhecimento não estaria de acordo com seus interesses.
Essas distorções variam numa escala que vai desde as
mentiras conscientes até os disfarces semiconscientes e
dissimulados. Esta concepção de ideologia, que veio
gradativamente sendo diferenciada da noção de
mentira, encontrada no senso comum, é particular em

15 KOLAKOWSKI, Leszek. Main currents of marxism. Its rise, growth and


dissolution. Vol. I . The founders. Traduzido do polonês para o inglês por P.
S. Falla. Oxford: Clarendon Press, 1978, p. 154. Cf. MARX, Karl; ENGELS,
Frederick. Marx & Engels. Collected Works. Vol. 5 (1845-1847). N/a:
Lawrence & Wishart. Electric Book, 2010, pp. 28 e ss.

15
vários sentidos. Sua particularidade se torna evidente
quando é contrastada com a concepção total, mais
inclusiva, da ideologia. Referimo-nos aqui à ideologia
de uma época ou de um grupo histórico-social
concreto, por exemplo, a de uma classe, ocasião em que
nos preocupamos com as características e a
composição da estrutura total da mente desta época ou
deste grupo”16

O traço comum entre ambas as acepções —


“particular” e “total” — reside no fato de que elas não
dependem exclusivamente de algo que tenha sido dito ou
escrito: para que se conclua o que realmente constituiu o
significado da atuação e da intenção do agente, deve-se
concentrar antes na sua pessoa e na sua posição existencial.
“Isto significa”, como diz Mannheim, “que opiniões,
declarações, proposições e sistemas de ideias não são
tomados pelo seu valor aparente, mas são interpretados à luz
da situação de vida de quem os expressa. Significa, ainda
mais, que o caráter e a situação de vida específicos do sujeito
influenciam suas opiniões, percepções e interpretações”17.

As diferenças entre as concepções particular e total de


ideologia são, pelo menos, três. A primeira consiste no fato de
que a concepção particular qualifica como ideologias apenas
parte dos enunciados do agente, levando em consideração
somente o seu conteúdo; ao passo que a concepção total

16 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio de Magalhães


Santeiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, pp. 81-82.
17 MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Op. cit., pág. 82. Grifos nossos.

16
considera a visão de mundo (Weltanschauung) total do sujeito,
em seu sentido mais amplo, procurando compreender sua
ideologia como uma decorrência da vivência coletiva na qual
aquele se insere. A segunda diferença entre ambas as
concepções consiste no fato de que, na particular a análise
sempre será restrita aos aspectos psicológicos do indivíduo,
enquanto a total operaria no nível noológico, significando,
com isso, que se considera não apenas o conteúdo do discurso
analisado (e suas implicações psicológicas), mas também a
sua forma e a estrutura conceptual de um modo de
pensamento, como uma função da situação de vida de um
sujeito. Correspondendo a esta segunda diferença,
esquadrinha-se a terceira distinção, segundo a qual a
concepção particular de ideologia opera principalmente como
uma psicologia de interesses, enquanto a concepção total
utiliza uma análise funcional formal, sem quaisquer
referências a motivações, restringindo-se a uma descrição
objetiva das diferenças estruturais das mentes operando em
contextos sociais diferentes. Assim, para Mannheim, a
primeira “pretende que este ou aquele interesse seja a causa
de uma dada mentira ou ilusão. A última pressupõe
simplesmente que existe uma correspondência entre uma
dada situação social e uma dada perspectiva, ponto-de-vista
ou massa aperceptiva”18.

Entendemos19 que as concepções total e particular de


ideologia referem-se a diferentes aspectos do mesmo

MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Op. cit., pág. 83.


18

De certa forma Mannheim reformula, em termos gerais, os usos que os


19

marxistas fazem do termo a partir da concepção de ideologia formulada

17
fenômeno, a saber, àquilo que Olavo de Carvalho denomina
discurso pretextual, que consiste em um discurso que mascara
a real situação existencial do sujeito, servindo para justificar
— não importa se para o sujeito consigo mesmo, se do sujeito
para os seus semelhantes — as suas ações e o seu
comportamento. Como destaca Lúcia Santaella, “a ideologia
não aclara, ou melhor, não diz a realidade, nem procura dizê-
la, mascara-a, homogeneizando os indivíduos aos clichês,
slogans, termos abstratos, signos ocos, que têm por função
fazer passar por eternas condições sociais que são históricas e
relativas.”20

Por isto é que as ideologias, todas elas, funcionam como


elementos instituidores de segundas realidades, diversas da
primeira realidade, que é, nunca é demais repetir, a única que nós
temos e na qual, quer queiramos, quer não, estamos inseridos. Eric
Voegelin foi o estudioso que melhor descreveu este problema,
que é de fato o grande problema da modernidade. No clássico
artigo The eclipse of reality,21 o alemão (posteriormente
naturalizado norte-americano) explica que, por um ato de
imaginação, o homem se encolhe a um “eu” que é

por Karl Marx. Como destaca H. M. Druker: <<Marxistas filosóficos e


políticos pensam em ideologia em termos que se enquadrem nas
respectivas preocupações. Cada um deles enfatiza um aspecto diferente
dos ensinamentos de Marx. Marxistas filosóficos tendem a enfatizar o
aspecto de “falsa consciência” da teoria. Marxistas políticos são inclinados
a enfatizar a função das ideias, especialmente as do inimigo, numa luta de
classes. Nenhum resolve a matéria inteiramente, mas a tendência de
enfatizar um ou outro aspecto é suficientemente real.>> (The political uses
of ideology. Londres: The Mackmillan Press, 1977, p. 104. Tradução livre.).
20 BRAGA, Maria Lúcia Santaella. Produção de linguagem e ideologia. São

Paulo: Cortez Editora, 1980, p. 50.


21 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. In: The collected works of Eric

Voegelin. Vol. 28. What is history? Late unpublished writings. Kansas City:
University of Missouri Press, 1990, pp. 111-162.

18
“condenado a ser livre”. Para esse eu encolhido ou contraído,
conforme o denomina Voegelin, “Deus está morto, o passado
está morto, o presente é o vôo da não-essencial facticidade do
eu para o seu contrário, o futuro é o campo de possíveis
dentre os quais o eu deve escolher o seu projeto de estar além
da mera facticidade, e a liberdade é a necessidade de realizar
uma escolha que irá determinar o ser particular do eu. A
liberdade do eu contraído é a condenação do eu a não poder
não ser livre.”22 É esta a característica do homem moderno: a
contração da sua humanidade em um eu aprisionado à sua
própria individualidade (self-hood). Eis o início da
complicação. Assim:

“Como nem o homem que se dedica a deformar


a sua própria individualidade deixa de ser um homem
na sua integralidade, nem a circundante realidade de
Deus e do homem, do mundo e da sociedade, muda a
sua estrutura, nem tampouco as relações entre o
homem e a circundante realidade podem ser abolidas,
fricções entre o eu contraído e a realidade tendem a se
desenvolver. O homem que sofre da doença da
contração, no entanto, não está inclinado a deixar a
prisão de sua individualidade, de modo a remover as
fricções. Ele prefere colocar sua imaginação para
trabalhar mais e envolver o seu eu imaginário com uma
realidade imaginária apta a confirmar o eu em sua
pretensão de realidade; ele irá construir uma Segunda
Realidade, que é o nome do fenômeno, para apagar a

22 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. Op. cit., p. 111.

19
Primeira Realidade da experiência comum de sua
visão. Longe de serem removidas, as fricções
consequentemente irão se transformar em um conflito
generalizado entre o mundo da imaginação e o mundo
real.”23

Esta confusão se manifesta, primeiramente, quanto à


discrepância de conteúdo entre as realidades imaginada e
experienciada: uma realidade imaginada pode omitir ou
deformar certos aspectos da realidade experienciada pelo
sujeito; dito de outro modo: a segunda realidade obscurece ou
eclipsa a primeira realidade. Partindo do conteúdo para o ato,
podemos notar a intenção do indivíduo de eclipsar a
realidade: tal intenção, explica Voegelin, adota uma
variedade de formas: “pode ir da mentira pura e simples
relacionada a um fato até uma mentira mais sutil, que consiste
em arranjar o contexto de maneira que a omissão de um fato
não será notada”; ou, de forma mais sofisticada, “desde a
construção de um sistema que, por sua forma, sugere a sua
visão parcial como a visão do todo da realidade até a recusa
do seu autor em discutir as premissas do seu sistema em
termos da realidade experienciada”24. Para além do ato, temos
o ator, o homem que cometeu o ato de deformar a sua
humanidade em um “eu” e que deixa que este “eu” encolhido
venha a obscurecer ou eclipsar a sua própria realidade como
ser integral.

23 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. Op. cit., pp. 111-112. Grifos
nossos.
24 VOEGELIN, Eric. “The eclipse of reality”. Op. cit., p. 112.

20
Tanto o conteúdo da realidade imaginada, quanto o ato
de adoção consciente ou inconsciente da realidade imaginada
como suplantadora da realidade experienciada, quanto ainda
os expedientes de que faça uso o indivíduo para projetar e
sustentar a segunda realidade como algo real, apesar de sua
falsidade intrínseca e de sua não correspondência com a
realidade da experiência comum de todos os indivíduos, são
fatores que adquirem, por força de sua reiteração pelo sujeito
e da multiplicidade de sujeitos que reproduzem o mesmo
comportamento, o status de uma força política real. Por isso é
que o “homem compacto” de que fala Voegelin é tão
poderoso na sociedade e na história quanto o homem comum,
e às vezes até mais poderoso que este último. Assim, o que se
inicia como um conflito de uma realidade imaginada com a
realidade verdadeira converte-se, sem despir-se de tal
estatuto, em um conflito dentro da realidade.

Mas o que é a realidade? A verdadeira realidade — a


primeira realidade — é aquela que é experimentada pelo
homem sem a mediação de um discurso pretextual. Consiste
do mundo da experiência, que se reflete, conforme referido no
início deste capítulo, do ponto de vista do ser humano, na
tensão entre espírito imortal e carne que perece, no
reconhecimento de que o indivíduo se insere em um mundo
exterior, que existe de forma independente dele.

Xavier Zubiri foi, dentre os filósofos modernos, talvez


quem tenha melhor descrito a estrutura formal da realidade.
Para o filósofo, ao se delimitar o conceito geral de realidade,
deve-se afastar a ideia, que ele relaciona a um “realismo

21
ingênuo”, que consiste em compreender que a realidade seria
uma realidade “em si”, “no sentido de uma coisa real no
mundo independentemente de minha percepção”.25 Para ele:

“Não se trata de ir além do apreendido na


apreensão, mas do modo como o apreendido “fica” na
apreensão mesma. Por isso é que às vezes penso que,
melhor que realidade, esta formalidade deveria ser
chamada de “reidade”. É o “de seu” do que está
presente na apreensão. É o modo de apresentar-se a
própria coisa numa apresentação real e física.
Realidade não é aqui algo inferido. Assim como a
estimulidade é modo do imediatamente presente na
apreensão, isto é, do presente tão só estimulicamente,
assim também realidade é aqui uma formalidade do
imediatamente presente, do modo mesmo de a nota
“ficar” presente. Segundo esse modo, o calor, sem
sairmos dele, apresenta-se a mim como esquentando
“de seu”, isto é, como sendo quente. Esta é a
formalidade da realidade.”26

A realidade, nessa concepção, apresenta um caráter


eminentemente formal. Para Zubiri:

“a) Primordialmente, realidade é formalidade.

25 ZUBIRI, Xavier. Inteligência e realidade. Tradução de Carlos Nougué. São


Paulo: É Realizações, 2011, p. 35.
26 ZUBIRI, Xavier. Inteligência e realidade. Op. cit., p. 35.

22
b) Esta formalidade compete à coisa apreendida
por si mesma. Já o direi: a formalidade da realidade é
algo em virtude do qual o conteúdo é o que é
anteriormente à sua própria apreensão. É a coisa o que
por ser real está presente como real. Realidade é o “de
seu”.

c) Essa formalidade não é formalmente


realidade para além da apreensão. Mas, tão
energicamente como se disse isso, deve-se dizer que
não é algo puramente imanente, empregando-se uma
terminologia antiga e literalmente inadequada. A
formalidade é, por um lado, o modo de ficar na
apreensão, mas, por outro, é o modo de ficar “em
próprio”, em ser “de seu”. Essa estrutura é justamente
o que obriga a falar não apenas de minha apreensão do
real, mas da realidade mesma do apreendido em
minha apreensão. Não se trata de um salto do
percebido para o real, mas da própria realidade em sua
dupla face de apreendida e de própria em si mesma.
No devido momento, veremos em que consiste
formalmente a unidade desses dois momentos.

d) Essa formalidade da realidade é, pois, como


veremos, o que leva da realidade apreendida à
realidade para além da compreensão. Esse “levar” não
é, como acabo de dizer, um levar da realidade

23
apreendida à realidade não apreendida. É um
movimento dentro da própria realidade do real.”27

O conhecimento da primeira realidade pressupõe uma


postura metodológica, podendo-se chamar realista ao
estudioso que dela se ocupe, ao homem que não sofreu o
“achatamento” de que fala Voegelin. Como pondera Etienne
Gilson, a maior diferença entre o realista e o seu oposto, o
idealista, está em que “este pensa, enquanto o outro
conhece”.28 O realista tem como método inevitável pensar a
partir da realidade, procurando fixar conceitos teoréticos
apenas em consequência daquela realidade apreendida. Por
isto é que, procedentemente, Gilson sustenta que “[p]ara o
realista, pensar é somente ordenar conhecimentos ou refletir
sobre seu conteúdo; jamais lhe ocorreria tomar o pensamento
como ponto de partida de sua reflexão, porque para ele não é
possível o pensamento se não houver antes conhecimentos. O
idealista, pelo fato mesmo de proceder do pensamento às
coisas, não pode saber se o que toma como ponto de partida
corresponde ou não a um objeto; quando pergunta ao realista
como chegar ao objeto partindo do pensamento, o realista
deve contestar imediatamente que isso é impossível, e que
precisamente aqui está a razão principal para não ser
idealista, porque o realismo parte do conhecimento, é dizer, de um
ato do entendimento que consiste essencialmente em captar um
objeto”29.

27 ZUBIRI, Xavier. Inteligência e realidade. Op. cit., pp. 35-36.


28 GILSON, Etienne. El realismo metódico. 4 ed. Tradução de Valentín García
Yebra. Madrid: Ediciones RIALP, 1974, p. 170. Tradução livre. Grifos
aditados.
29 GILSON, Etienne. El realismo metódico. Op. cit., p. 170.

24
E como reconhecer a realidade? Essa pergunta, típica
de um idealista, ou seja, de alguém que parte do pensamento
para o real, simplesmente é um contrassenso, pois o
conhecimento, para o realista, é o resultado da assimilação
das coisas. E numa “ordem em que a adequação do
entendimento em relação à coisa, que o juízo formula, supõe
a adequação concreta e vivida do entendimento aos seus
objetos, seria absurdo exigir ao conhecimento que garantisse
uma conformidade sem a qual aquele mesmo conhecimento
sequer existiria”30. A prova da realidade é a adequação da
experiência concreta do sujeito ao juízo sobre ela elaborado.
Todo discurso filosófico ou científico verdadeiro pode ser
qualificado, em última análise, como um testemunho sincero
da existência do sujeito que o formula. A modéstia no
conhecimento é a virtude própria do realista31.

Recorremos mais uma vez a Etienne Gilson, quando


este afirma que todo realismo é uma filosofia do senso
comum. O despertar da inteligência, defende este autor,
“coincide com a apreensão de coisas, que, tão logo as
percebemos, são classificadas segundo suas analogias mais
patentes. A partir deste fato, que nada tem que ver com nenhuma
teoria, é que deve tomar nota a teoria. Assim procede o realismo,
seguindo nisto o senso comum.”32

3 — A identificação das ideologias

30 GILSON, Etienne. El realismo metódico. Op. cit., p. 173.


31 GILSON, Etienne. El realismo metódico. Op. cit., p. 182.
32 GILSON, Etienne. El realismo metódico. Op. cit., p. 174.

25
Lewis S. Feuer entende que as ideologias, quaisquer
que sejam, possuem aspectos estruturais comuns entre si. Tais
aspectos estruturais — ou “ingredientes”, como diz o autor —
, analisando-se as ideologias modernas como o marxismo, o
fascismo, o estruturalismo, o marcuseanismo, o bakuninismo,
a negritude africana, entre outras, são três: (i) um mito
invariável; (ii) uma composição de doutrinas ou formulações
filosóficas que se alternam ciclicamente na história da
ideologia; e (iii) a ideia de existência de um grupo social (ou
classe) que seja historicamente escolhido para encarnar os
desígnios da ideologia.33

No tocante ao mito, a ideologia tende a repetir —


melhor dizendo, tende a reformulá-lo, incorporando-o — o
mito mosaico, ou seja, “a história dramática da libertação dos
hebreus por Moisés”.34 Não é exatamente a sua gênese bíblica
o que faz desse mito algo atraente para as formulações
ideológicas; o que o torna interessante é a sua estrutura
narrativa:

“(1) Um povo é oprimido;


(2) um homem jovem, ele mesmo não
pertencente ao povo oprimido, aparece;
(3) movido por simpatia, ele intervém, e derruba
o representante do regime opressor;
(4) ele foge, ou se dirige ao exílio;

33 FEUER, Lewis S. Ideology and the ideologists. Oxford: Basil Blackwell,


1975, p. 1.
34 FEUER, Lewis S. Ideology and the ideologists. Op. cit., p. 1.

26
(5) ele experimenta o chamado para redimir o
povo oprimido;
(6) ele retorna para demandar liberdade para o
povo oprimido;
(7) ele é desprezado pelo tirano;
(8) ele lidera ações que, depois de derrotas
iniciais, derrotam o opressor;
(9) ele liberta o povo oprimido;
(10) ele transmite uma nova doutrina sagrada,
um novo modo de vida, para o seu povo;
(11) o povo recém-liberado falha na lealdade
para com a sua missão histórica;
(12) quase desiludido, o seu líder impõe uma
disciplina coletiva ao povo a fim de reeducá-lo
moralmente para sua nova vida;
(13) um falso profeta aparece e rebela-se contra
o regime autoritário do líder, mas é destruído;
(14) o líder, agora um legislador reverenciado,
morre, ao vislumbrar longinquamente a nova
existência.”35

Para Feuer:

“O mito Mosaico é o drama do jovem intelectual


revolucionário. Movido por um idealismo altruísta,
por pura generosidade (como ele se vê), ele toma para
si a causa dos explorados; ele sofre o exílio e a prisão;
mas ele lidera o seu povo para sua histórica vitória; o

35 FEUER, Lewis S. Ideology and the ideologists. Op. cit., p. 1.

27
povo, entretanto, ainda está escravizado em sua
psicologia, sendo incapaz de perceber a nova
sociedade; ele requer um período preparatório sob
uma ditadura tutelar; o intelectual revolucionário se
torna o seu benevolente ditador; ele reprime os
elementos facciosos; ele morre, outorgando a visão da
nova sociedade, e vivendo na memória do seu povo.”36

A abertura para a ideologia é gerada pelo que Camus


denominou “revolta metafísica”, o movimento pelo qual um
homem se insurge contra a sua condição e contra a criação. A
qualificação dessa insurgência como metafísica decorre do
fato de ela contestar “os fins do homem e da criação”37. Essa
revolta, então, parte da recusa categórica de uma intromissão
considerada inadmissível e no sentimento confuso de que o
sujeito tem o direito de se insurgir porque tem um direito a algo,
que pode ser um “estado de coisas justo”, a “igualdade
material entre todos” ou qualquer outra realidade não
existente presentemente mas antevista, como devida ou
necessária, em um futuro próximo ou remoto. A revolta
metafísica nasce como um sentimento quase religioso,
conforme destaca Camus:

“A história da revolta metafísica não pode,


portanto, ser confundida com a do ateísmo. Sob certa
ótica, chega a confundir-se até com a história
contemporânea do sentimento religioso. O revoltado

36FEUER, Lewis S. Ideology and the ideologists. Op. cit., p. 2.


37CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio
de Janeiro: BestBolso, 2017, p. 30.

28
desafia mais do que nega. Pelo menos no início, não
elimina Deus: simplesmente, fala-lhe de igual para
igual. Mas não se trata de um diálogo cortês. Trata-se
de uma polêmica animada pelo desejo de vencer. O
escravo começa reclamando justiça e termina
querendo a realeza. Ele também precisa ter a sua vez
de dominar. Insurgir-se contra a condição humana
transforma-se em uma incursão desmedida contra o
céu para capturar um rei, que será primeiro
destronado, para em seguida ser condenado à morte.
A rebelião humana acaba em revolução metafísica.
Evolui do parecer para o fazer, do dândi ao
revolucionário. Derrubado o trono de Deus, o rebelde
reconhecerá essa justiça, essa ordem, essa unidade que
em vão buscava no âmbito de sua condição, cabendo-
lhe agora criá-las com as próprias mãos e, com isso,
justificar a perda da autoridade divina. Começa então
o esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço
do crime, se for o caso, o império dos homens.”38

Embora as observações acima esclareçam, em alguma


medida, certos aspectos psicológicos das ideologias, elas
apenas tangenciam a essência do fenômeno. Eric Voegelin
defende que as ideologias refletem uma experiência
essencialmente gnóstica. Deste modo, as ideologias não
passariam de variantes do gnosticismo, um fenômeno que
permeia a humanidade desde a Antiguidade e que se funda
numa experiência fundamental: aquela em que o mundo é

38 CAMUS, Albert. O homem revoltado. Op. cit., pp. 32-33.

29
compreendido como um lugar estranho no qual o homem se encontra
por acidente (ou pela vontade de um Deus mau) e a partir do qual
ele (homem) deve encontrar o seu caminho de volta para o outro
mundo, ao qual ele pertence39. Voegelin, seguindo a lição de
Clemente de Alexandria, relembra que a gnose envolve uma
experiência anímica particular: o conhecimento de quem
éramos e do que nos tornamos, de onde estávamos e para
onde fomos lançados, de para onde nos dirigimos e de onde
seremos redimidos, do que é o nascimento e do que é o
renascimento. A ontologia do antigo gnosticismo — baseada
na crença na existência de um “deus mau”, responsável por
este mundo em que nos encontramos, e de um “deus bom”,
que será responsável pela nossa libertação — se transforma
na modernidade: seja por meio da assunção de um espírito
absoluto que, no desdobramento dialético da consciência,
passa da alienação para a consciência de si próprio; seja pela
assunção de um processo dialético-material da natureza que
leva da alienação, inerente à propriedade privada e à crença
em Deus, para um estado de liberdade de uma existência
humana plena; seja, por fim, por meio da assunção de uma
vontade da natureza que, se abraçada, transformará o homem
em um super-homem40.

4 — O direito natural em um mundo pós-cristão

39 VOEGELIN, Eric. Science, politics and Gnosticism. Two essays.


Washington, D.C.: Regnery: 1997, p. 7.
40 VOEGELIN, Eric. Science, politics and Gnosticism. Two essays. Op. cit., p.

8.

30
Conforme aponta já no subtítulo da obra
(“Redescobrindo o direito natural em um mundo pós-
cristão”), Russell Hittinger concentra seus esforços na
compreensão do direito natural em um mundo que ele
qualifica como pós-cristão. A civilização ocidental —
relembremos Santo Agostinho — é obra judaico-cristã; não
apenas se afirma a partir do cristianismo como dele retira seus
principais traços (das artes aos costumes, da ciência à
política), atingindo o seu ápice na Idade Média, quando a
influência cristã foi mais forte e a identificação entre a
sociedade e a religião, mais perfeita. A civilização ocidental
surgiu nos escombros de Roma e, caminhando para o oeste,
impregnou-se nas tribos bárbaras (celtas, visigodos,
lombardos, saxões etc.) e, um milênio depois, atingiu, pela
colonização, os povos dos continentes americanos recém-
descobertos.

Curiosamente, quando atingiu a sua maior extensão


geográfica, a civilização ocidental já tinha iniciado o seu longo
declínio, que já dura cinco séculos. Este movimento foi
identificado por intelectuais como Arnold Toynbee, que
ainda relutava em reconhecer o declínio como um processo
que levaria à extinção dessa civilização ou, ao contrário, ao
seu renascimento41. Essa é uma questão que, embora para
uma parte da historiografia e da ciência política, permaneça
em aberto42, foi tomada como resolvida por Hittinger: se

41 TOYNBEE, Arnold. A study in history. Vol. XIX. Londres: Oxford


University Press, 1954, pp. 406-644.
42 Ver: (i) MELKO, Matthew. The Nature of Civilizations. Civilizations and

world-systems: studying world-historical change. Boston: Porter Sargent, 1969;


(ii) HUNTINGTON, Samuel. The Clash of Civilizations and the Remaking of

31
estamos em um mundo pós-cristão, estamos também em um mundo
pós-ocidental.

Ao rejeitar a herança cristã, a sociedade ocidental se


coloca em uma situação pior do que a dos pagãos dos séculos
IV e V, sobre os quais escrevia Agostinho. O novo paganismo
tem uma substância diferente do anterior; ele se apoia em
ideologias de massa, que renderam nos últimos dois séculos
uma experiência amarga de morticínio e miséria, numa
dimensão nunca antes vista na história humana. Isto é
resultado, vimos acima, do aprofundamento da experiência
gnóstica, que impõe não apenas a morte de Deus, mas o ódio
implacável a todo o criado. Hoje em dia, o ocidente
testemunha a perseguição aberta aos cristãos, que só podem
viver conforme a sua fé (quando o podem) no interior dos
seus lares; o professamento do cristianismo na esfera pública
está virtualmente proibido em todo o mundo ocidental. Por
último, o novo pagão, o pagão do mundo pós-cristão, tem a
desvantagem de estar mais longe da Revelação, que nos
primeiros séculos da era cristã infundia nos sucessores dos
apóstolos e nos convertidos o frescor da novidade e a força
dos eventos divinos.

Esse estado de coisas se reflete, naturalmente, no


campo do direito. O direito natural, que configurava o terreno
comum das reflexões acadêmicas e mesmo da prática jurídica,

World Order. Nova York: Simon & Schuster, 1997; (iii) MORRIS, Ian. Why
the West Rules — For Now. The Patterns of History and What They Reveal
About the Future. Londres: Profile Books, 2010; e (iv) FERGUSON, Niall.
Civilization. The West and the Rest. Londres: Penguin, 2011.

32
vai paulatinamente perdendo importância até praticamente
desaparecer. Isso porque a discussão sobre a fonte do direito
natural, que antes era pacificamente reconhecida como sendo
Deus (ou o direito divino), passa para a natureza e depois para
o homem. Sem o apoio da autoridade divina, cai por terra a
ideia de participação, que era o meio pelo qual o homem
poderia acessar o conteúdo do direito natural na medida em
que este participava da lei divina. Note-se que, segundo o
pensamento cristão, o homem, maculado pelo pecado original
e pela queda, não tinha mais clareza quanto ao conteúdo do
direito natural, mas tinha o apoio da Graça e da predisposição
para o seu conhecimento, que era, como diz São Paulo, “a obra
da lei gravada em seus corações” (Romanos, 2:15). Sem o
apoio da autoridade divina, o direito natural se terrestrializa,
passa a residir unicamente na razão, e a razão possui apenas
a si mesma como prova, o que abre caminho para o
relativismo. Se cada homem pode, pelo uso da própria razão,
chegar a resultados diversos quanto ao conteúdo de um
pretenso direito natural, então o conhecimento do direito
natural se torna uma empresa impossível.

Assim é que, num caminho que vai de Locke a teólogos


do século XX, o direito natural perde o status de direito, que
se transfere, com exclusividade, para o direito positivo. O
direito produzido pelo Estado, que sempre foi avaliado em
razão de sua conformidade (participação) com a lei natural,
passa a ser o único direito, o direito por excelência.

A Reforma protestante, a revolução francesa (e as


demais revoluções liberais europeias e americanas do século

33
XIX), a influência do positivismo, e o surgimento e
crescimento do marxismo como ideologia de massas, são
todos fatores que contribuíram para a afirmação do direito
positivo, em detrimento do direito natural. Por trás desses
eventos está a universalização do sentimento gnóstico, que
afirma a morte de Deus, a solidão do homem na terra e a
terrestrialização da redenção humana. O sentimento gnóstico
é o nome da doença da alma (para Voegelin, pneumopatologia),
e as ideologias todas (liberalismo, positivismo, marxismo,
etc.) são os seus sintomas, as suas manifestações particulares.
A fonte por excelência do direito passa a residir unicamente
na vontade do homem, que não está vinculado a nenhum
padrão moral universalmente vigente.

Não é por acaso que o século XX conheceu as maiores


atrocidades da história humana. É conhecido, por exemplo, o
papel do positivismo jurídico na legitimação do regime
nazista na Alemanha no período pré-Segunda Guerra, o qual,
nas palavras de um estudioso: “ao propor uma rígida
separação entre ‘ser’ e ‘dever-ser’, (...) parece ter promovido a
expulsão da ética e da metafísica da jurisprudência. Essa
estrita distinção não apenas via as leis do regime nazista como
válidas, como levava a uma falta de vontade de questionar a
moralidade das leis e a uma herdada auto-compreensão do
jurista de que a sua própria consciência não poderia exercer
qualquer papel na interpretação do direito, nem tampouco
afetar o seu resultado. A crueldade nazista, sob a forma de
legislação formalmente válida, manifestou-se perante uma
justiça alemã indefesa. O positivismo jurídico não apenas não
oferecia nenhuma ferramenta teórica para que os operadores

34
do direito alemães resistissem à arbitrariedade nazista, como
também auxiliou na legitimação do governo nazista”43. De
sua parte, o marxismo aplicado ao direito buscava instituir
um novo senso individual de justiça, instituído pela razão
comunista. Na União Soviética, ressalta Harold J. Berman:

“O regime soviético procurou criar um sistema


de direito que era conforme à razão. Os juristas
soviéticos têm aplicado seu poder de análise a
conceitos tais como propriedade, contratos, a relação
da atuação administrativa com as decisões judiciais, os
elementos volitivos da conduta criminal, e assim por
diante. Foi estimulada uma crença na completude do
direito. A supremacia do direito tem sido declarada em
princípio, e juízes têm sido obrigados a basear suas
decisões em regras e princípios estabelecidos mais do
que em meras considerações de conveniência
econômica. Entretanto, este movimento na direção da
razão, análise e legalidade, é seriamente obstaculizada
por uma crença fundamental que a vida está
essencialmente fora da razão e do direito, e por uma
recusa fundamental em acreditar minimamente na
razão e no direito. Daí porque esferas inteiras da vida ainda
permanecem fora do direito, particularmente nas áreas da
política e das políticas públicas, onde a confiança é
depositada em fatores não-racionais e não-legais da força e da
violência, de um lado, e da unidade moral e fé comum [no

43YANG, Kenny. “The rise of legal positivism in Germany: a prelude to Nazi


arbitrariness?”. The Western Australian Jurist, vol. 3, 2012, pp. 245-257, p.
257.

35
socialismo], de outro. A personalidade dos governantes
ainda exerce um papel dominante; a influência pessoal
é um fator crucial que impede o movimento pela
estabilidade das leis.”44

A debacle, séculos antes, do direito natural no ocidente


se fez sentir no século XX. Nos julgamentos de Nuremberg e
de Tóquio, em que os nazistas e japoneses, respectivamente,
foram julgados pelos crimes praticados na Segunda Guerra,
havia o problema não desprezível de que a maior parte das
atrocidades cometidas ficava fora da tipificação tradicional do
direito internacional (os crimes de guerra que se aplicavam
eram o de conspiração para guerra agressiva e guerra
agressiva). Campos de concentração, câmaras de gás,
experimentos científicos cruéis com prisioneiros, assassinatos
em massa, toda a bestialidade nazista (e em parte japonesa)
não era tipificada e poderia ser muito melhor enquadrada à
luz da tradição cristã do direito natural, poupando-se as
enormes discussões havidas em tais julgamentos, que só
contaram com uma efetiva condenação dos responsáveis por
tais crimes porque havia uma pressão política das potências
vencedoras para que houvesse a condenação, mesmo à custa
do devido processo legal e da legalidade45.

44 BERMAN, Harold. J.. Justice in the U.S.S.R.. Cambridge, MT: Harvard


University Press, 1963, p. 270. Grifos nossos.
45 Ver, a propósito: EHRENFREUND, Norbert. The Nuremberg Legacy. How

the Nazi War Crimes Trials Changed the Course of History. Nova York:
Palgrave Macmillan, 2007, pp. 107-112; e HAFETZ, Jonathan. Punishing
Atrocities through a Fair Trial. International Criminal Law from Nuremberg to
the Age of Global Terrorism. Cambridge: Cambridge University Press, 2018,
pp. 6-27.

36
Mas não era só em sociedades totalitárias que a
ausência de uma compreensão correta do direito natural se
fez sentir. Mesmo em sociedades desenvolvidas e prósperas
como os Estados Unidos, cuja declaração de independência
prevê expressamente a prevalência do direito natural sobre o
direito positivo46, foi exatamente do “direito natural” — na
utilização que dele fez a Suprema Corte, note-se bem — que
se extraiu um direito subjetivo “de definir o próprio conceito
de existência, de significado, do universo e do mistério da
vida humana” (Planned Parenthood v. Casey, 1992), que serviu
para amparar a continuidade da descriminalização do aborto,
inaugurada na década de 1970 (Roe v. Wade, 1973). Sem entrar
no mérito de tal decisão (que Russell Hittington aborda em
detalhes em A Primeira Graça), é claro que ela não apenas
subverte o sentido protetivo da vida que seria o único
extraível da tradição cristã do direito natural (não matar é,
além de tudo, um dos Mandamentos expressamente
revelados por Deus), como expõe e corporifica o sentimento
gnóstico na sua máxima pureza: o homem, livre de qualquer
força transcendente, é dotado da máxima liberdade, podendo,
pela sua vontade, dar sentido ao universo e não somente à sua
própria vida, mas à vida em geral. Uma afirmação que um
Nietzsche, Stalin ou Hitler não hesitaria em subscrever.

46“Consideramos que essas verdades são evidentes por si mesmas, que


todos os homens são criados iguais, que são dotados por seu Criador com
certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a
busca da Felicidade. — Para garantir esses direitos, os governos são
instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do
consentimento dos governados, — que sempre que qualquer forma de
governo se tornar destrutiva para esses fins, é direito do povo alterá-la ou
aboli-la e instituir um novo governo, estabelecendo seus alicerces em tais
princípios e organizando seus poderes de tal forma que lhes pareça mais
provável que efetue sua Segurança e Felicidade.”

37
Reconhecendo que a luta do direito natural foi
perdida, Russell Hittinger retoma a discussão que floresceu
na tradição católica, tendo o seu ponto culminante na obra de
Santo Tomás de Aquino. A ideia é recuperar a discussão pelos
seus fundamentos. Sobre o problema da fonte do direito
natural — se ele estaria em Deus, na natureza ou na razão
humana —, ele retoma Santo Tomás, enfatizando que o
direito natural participa do direito divino, que é a mente de
Deus, da mesma forma que o direito positivo deve participar
do direito natural. O conceito de participação é a chave do
sistema tomista, e envolve dois pontos distintos: (i) a pura
perfeição (perfectio separata) pode ser apenas uma, e o esse é a
primeira perfeição e o ato de todos os atos; daí resultando que
o esse é apenas um, a saber, Deus, cuja essência é ser; e (ii)
todas as criaturas são seres por participação, na medida em
que sua essência participa no esse que é o ato final de toda a
realidade; daí que a essência das criaturas se relacione com o
esse como a potência está para o ato47. Sendo assim, o direito
natural não apenas é direito, como só o é na medida em que participe
do direito divino; e o direito positivo, do mesmo modo, só será,
propriamente, direito, enquanto participando do direito natural. A
fonte de qualquer direito, nessa linha, só pode ser Deus.

Quanto à forma de conhecer o direito natural,


Hittinger se apoia, com acerto, no pensamento de Martin
Rhonheimer, para quem a cognição humana do direito

47 FABRO, Cornelio. “The intensive hermeneutics of Thomistic


Philosophy. The notion of participation.” The Review of Metaphysics, Mar.
1974, Vol. 27, no. 3, pp. 449-491, p. 467.

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natural, embora conte, é claro, com a ajuda da Revelação e da
tradição católica, no plano objetivo, e da Graça, no plano
subjetivo, é ela própria uma atividade a ser responsavelmente
empreendida. Como destaca Rhonheimer, o homem “ao invés
de ‘ler’ uma ordem natural a partir das coisas, está imbuído
da tarefa ‘criativa’ de formar a ordem moral”48. Essa
responsabilidade se estende à legislação humana, que deve
expressar o telos do direito natural, mediante a prudência e o
engenho humanos.

Russell Hittinger destaca o entendimento de Santo


Tomás, de que são as autoridades constituídas (leia-se,
seculares), as responsáveis por aplicar o direito natural, e que
nessa tarefa o juiz pode recusar-se a proferir julgamento, se
uma norma estatal não estiver em conformidade com o direito
natural, pelo simples fato que uma norma positiva contrária
ao direito natural não é direito. De todo modo, a recusa em
julgar uma norma corrupta não autoriza que o juiz substitua
o legislador, adotando para o caso concreto a norma de sua
preferência. A concepção tomística do direito repele (e nisto
não difere do positivismo kelseniano ou hartiano, por
exemplo) a ideia de produção legislativa por parte da
autoridade incompetente para tanto (caso do juiz)49.

Essas considerações de A Primeira Graça lançam o


caminho para a segunda parte do livro, em que o autor passa

48 RHONHEIMER, Martin. Natural Law and Practical Reason. A Thomist


View of Moral Autonomy. Tradução de Gerald Malsbary. Nova York:
Fordham University Press, 2000, p. 13.
49 Veja-se o Capítulo 4, de A Primeira Graça.

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a analisar casos sensíveis da realidade americana. Destaca
como a ideia de direito natural, no contexto americano,
passou a significar o inverso da tradição cristã. De uma
instância de participação no direito divino, da qual por sua
vez participaria o direito positivo, em uma continuidade
teleológica e em uma unidade moral, o direito natural passou
a significar uma esfera de liberdade contra o Estado e contra
qualquer julgamento moral. Dentro dessa esfera, o indivíduo
seria soberano, não podendo ser censurado por qualquer
poder temporal ou espiritual.

Esse tipo de argumentação, contra a qual Hittinger se


insurge, aparece na discussão sobre o suicídio assistido, que
ocorreu no final da década de 1990 perante a Suprema Corte
norte-americana. Em um dos principais casos analisados
(Compassion in Dying v. State of Washington, 1997), a Suprema
Corte considerou que o direito ao suicídio assistido não estava
abrangido pela Cláusula do Devido Processo da Décima-
Quarta Emenda. Hittinger, analisando tal caso, aponta a
incoerência das discussões, quer em relação à tradição do
direito natural, quer em relação a precedentes da corte que,
por exemplo, consideraram o direito ao aborto como
abrangido dentro de uma liberdade inexpugnável pelo
Estado (Roe v. Wade e Planned Parenthood v. Casey, de 1973 e
1992, respectivamente). Mas o pior de tudo, aponta Hittinger,
é a boa-vontade com que os cidadãos americanos, e alguns
juízes, parecem dispostos a abrir mão de um dos
fundamentos da sociedade política, de que o Estado é a
corporificação: o monopólio do uso de força e da decisão
sobre a vida e a morte dos seus súditos. Quando o direito

40
natural é desrespeitado, também a ordem jurídica que dele
participa se coloca em risco.

Este mesmo tipo de crítica se coloca quando o autor


identifica uma verdadeira mudança (silenciosa) de regime na
sociedade americana. De um governo democrático, em que a
criação do direito está a cargo dos representantes eleitos pelo
povo, para um governo de juízes, em que a Suprema Corte,
de fato e de direito, assume o papel de órgão decisório
máximo na sociedade. Aqui a juristocracia50 se reveste da
usurpação de poder, ofendendo um dos fundamentos de
direito natural da sociedade política (segundo Santo Tomás):
a ideia, já o referimos acima, de que o direito estatal deve ser
produzido pelas autoridades competentes. É tão contrário ao
direito natural que um juiz assuma como válida uma lei
estatal corrupta quanto o é a criação do direito pelo juiz, quer
o direito criado atenda (vale dizer, participe) ou não ao direito
natural.

Também segundo a tradição do direito natural, o autor


analisa a encíclica Dignitatis Humanae, que trata da liberdade
religiosa e das tormentosas relações ente a Igreja e o Estado.
Hittinger aponta, com acerto, que a posição da Igreja após o
Concílio Vaticano II tem sido coerente com a tradição e que é
intimamente ligada à harmoniosa ordem que deflui do direito
natural, especialmente quando se considera o Estado “como
um bem instrumental cuja finalidade é proteger o

50 Ver, a propósito: HIRSCHL, Ran. Rumo à juristocracia. As origens e


consequências do novo constitucionalismo. Tradução de Amauri Feres Saad.
Londrina: EDA, 2020.

41
florescimento de sociedades outras que o próprio Estado”.
Toda a tradição dos juristas cristãos, que vai de Santo Tomás
a Maurice Hauriou, passando por Francisco Suarez e pelo
calvinista Johannes Althusius, afirma a existência do
pluralismo jurídico, que significa não apenas a multiplicidade
das fontes do direito, mas também a de instituições (Igreja,
Estado, Associações, famílias e indivíduos) encarregadas da
sua produção.

Por último, Russell Hittinger parece de alguma forma


partilhar da nostalgia (veja-se o Capítulo 10) de Christopher
Dawson com relação ao chamado Estado liberal, que teria
dado lugar, em razão do progresso tecnológico, à chamada
sociedade planificada. O liberalismo, no século em que foi
praticado pelos Estados ocidentais (século XIX), teria
garantido, como em nenhuma outra época, a liberdade
humana, o florescimento das qualidades individuais, a
democracia e a prosperidade. O idílio, claro, seria
interrompido pelas duas guerras mundiais do século XX, pela
revolução bolchevique e pelos flagelos que decorreram de tais
eventos. Aqui não é a compreensão do direito natural mas sim
a do fenômeno gnóstico que fornece a resposta: ambos,
Dawson e Hittinger, erram quando pranteiam (mesmo que
levemente) o liberalismo. Embora este possa, pelo menos em
comparação com o que veio em seguida, ser considerado um
bem, ele com certeza não é um bem em si. O liberalismo —
sob cuja égide os Estados Unidos e o Brasil surgiram como
nações independentes — é já ele uma marca da
pneumopatologia gnóstica ocidental. Depois dele só poderiam
vir “sintomas” mais graves, como o positivismo, o marxismo,

42
o niilismo e todas as suas variantes contemporâneas. Aqui,
bem caberia a advertência da encíclica Libertas
Praestantissimum (1888), editada pelo Papa Leão XIII, para
quem:

“[E]sta doutrina [o liberalismo] é em extremo


perniciosa, tanto para os particulares quanto para os
Estados. Porque, se o juízo sobre a verdade e o bem fica
exclusivamente abandonado somente a si, desaparece
toda a diferença objetiva entre o bem e o mal, o vício e
a virtude não mais se distinguem na ordem da
realidade, senão somente no juízo subjetivo de cada
indivíduo; será lícito tudo quanto agrade, e
estabelecida uma moral impotente para refrear e
acalmar as paixões desordenadas da alma, ficará
espontaneamente aberta a porta a toda a classe de
corrupções. No tocante à vida pública, o poder de
mandar fica separado de sua verdadeira origem
natural, da qual recebe toda a eficácia realizadora do
bem comum; e a lei, reguladora do que se deve fazer e
do que se deve evitar, fica abandonada ao capricho de
uma maioria numérica, verdadeiro plano inclinado
que leva à tirania.”

A Primeira Graça — Redescobrindo o Direito Natural em


um Mundo Pós-Cristão, de Russell Hittinger, que tive a honra
de traduzir para o português, é uma obra fundamental para
retomarmos a discussão sobre o direito natural. Quer por
apoiar-se na lição imortal de Santo Tomás e de clássicos
modernos como Martin Rhonheimer, quer pela profundidade

43
da exposição, quer, por fim, pela correta aplicação desses
elementos a problemas modernos, como o aborto, suicídio
assistido, relação entre Igreja e Estado, liberdade religiosa e
fundamentos da sociedade civil, a obra representa uma
valiosa contribuição ao tema.

Amauri F. Saad
Lake Ontario, inverno de 2020-2021.

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