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Cristianismo e ciência: da

integração entre razão e fé ao


obscurantismo
Por Roberto Carlos Gomes de Castro, jornalista, subeditor de Cultura do Jornal
da USP

Igreja que desconsidera a ciência pratica péssima teologia, está


afastada da mais autêntica tradição cristã e ofende diretamente o
Criador.
No que se refere à teologia, as mais antigas manifestações do
pensamento teológico cristão já se colocam a favor de uma
integração entre a fé e a razão. No século 2, Justino Mártir (100-165),
por exemplo, afirmou que “tudo o que de verdade se disse pertence a
nós, os cristãos” (Segunda Apologia, XIII). Com isso, ele quis dizer que os
resultados da reflexão racional – venham de onde vierem –
contribuem para aproximar o cristão do objetivo tão almejado de
conhecer os mistérios da criação divina.
A profunda visão de Santo Agostinho (354-430) – o maior teólogo da
Antiguidade cristã – sobre a colaboração entre fé e razão está
resumida na famosa frase do Sermão 43: “Entende para que creias, crê
para que entendas”.
É certo que o cristianismo produziu também um pensador como
Tertuliano (160-220), que via na razão um inimigo, combatia a filosofia
grega e condenava as artes e os espetáculos. Mas essa concepção
sempre foi minoritária ao longo da trajetória da Igreja – com exceção
de alguns momentos na história –, e Tertuliano chegou a ser chamado
de haereticus pelo maior teólogo medieval, Tomás de Aquino (1225-
1274), justamente porque atribuía aos demônios e ao paganismo
aquilo que, fundamentalmente, tem origem divina.
Tomás de Aquino foi o teólogo que mais longe levou a reflexão sobre
a conciliação entre a razão e a fé, que, para ele, jamais poderiam estar
em contradição, uma vez que ambas são dádivas da graça de Deus.
Ele afirma que a fé é um modo de conhecimento, mas inferior ao tipo
de conhecimento que há na scientia, pois esta “conduz o intelecto ao
um pela visão e intelecção dos primeiros princípios” (Suma Teológica,
parte I, questão 12, artigo 13, ad 3, tradução de Jonathas Ramos de
Castro). Surpreendentemente para nós hoje, quando ciência e
teologia se distanciaram tanto, o conhecimento científico leva a Deus,
de acordo com Tomás de Aquino.
Diante das duas tendências radicais opostas com que se defrontou
em sua época – o movimento bíblico das ordens mendicantes e a
investigação puramente racional do mundo natural, impulsionada
pelo aristotelismo então recém-redescoberto –, Tomás de Aquino não
faz opção por uma dessas duas possibilidades extremas, mas
“escolhe” ambas, pois “compreende e demonstra a união, ou ainda, a
necessidade da associação do que aparentemente excluía uma à
outra”, como afirma o filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997), um
dos maiores especialistas em Tomás de Aquino do século 20, no
capítulo 3 de Thomas von Aquin. Leben und Werk.
Essa teologia aberta à razão e à cultura orientou a formação de uma
tradição que deu grandes contribuições à civilização ocidental. O
monasticismo cristão, nascido no século 3 nos desertos do Egito,
inicialmente como um movimento de protesto contra o
“mundanismo” infiltrado nos círculos cristãos, em relativamente
pouco tempo se modificou e se tornou o principal agente cultural do
Ocidente, responsável pelo surgimento de alguns dos maiores
eruditos da história, como o teólogo, historiador, escritor e tradutor
Jerônimo (347-420).

No século 6, Cassiodoro (496-575) fundou o mosteiro de Vivarium, na


atual região da Calábria, na Itália, que introduziu uma novidade entre
os monges – o estudo e a cópia de obras clássicas, de autores cristãos
e não cristãos. A novidade foi adotada pelos mosteiros beneditinos,
que se espalharam por toda a Europa e consolidaram o trabalho de
preservação dos textos antigos. Graças a esse movimento, as obras
da Antiguidade grega e latina estão disponíveis hoje, como um dos
principais legados dos monges copistas. Estes eram intelectualmente
tão abertos que não colocaram restrições em sua atividade: copiaram
desde os textos sagrados dos Evangelhos e o pensamento pré-cristão
do filósofo grego Platão (427-347 antes de Cristo) até as obscenidades
do dramaturgo romano Plauto (230-180 antes de Cristo).

Embora não se conheça com clareza a origem do monasticismo


cristão na Irlanda, o certo é que aquela ilha do mar do Norte –
conhecida como insula sanctorum et doctorum (“ilha dos santos e
doutores”) – se tornou um poderoso centro de cultura, que através de
seus monges itinerantes irradiou o conhecimento para amplas
regiões da Europa. Entre os longevos resultados da atuação desse
centro está a obra do teólogo e historiador Beda (673-735), famoso
por seu trabalho de cristianização dos povos anglo-saxões, que em
razão da sua vasta sabedoria e erudição recebeu o título de
“Venerável”.
Também originário do norte europeu era o monge e educador
Alcuíno (735-804), admirado como o homem mais sábio da sua época.
Conselheiro de Carlos Magno (742-814), ele liderou a fundação de
escolas por todo o reino dos francos e, com isso, se tornou um dos
principais artífices do chamado “Renascimento Carolíngio”.

No ramo protestante do cristianismo, surgido com a Reforma


Religiosa do século 16, a postura em relação à ciência não foi
diferente. Num ensaio publicado em 2018, o professor José Antônio
Lucas Guimarães demonstrou que o teólogo francês João Calvino
(1509-1564), um dos grandes líderes daquele movimento, estimulou
uma orientação intelectual que está na base da ciência moderna –
diferente do que supõem pensadores como Bertrand Russell (1872-
1970) e Thomas Kuhn (1922-1996), para quem o reformador seria um
adversário intransigente do pensamento científico. Já o pesquisador
Vitor Albiero, numa tese de doutorado na área de História da Ciência
defendida na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo em
2016, revelou que a célebre Royal Society – uma das primeiras e mais
influentes sociedades científicas da história, fundada em Londres no
século 17 – teve como precursor o Office of Address for
Communications, instituição criada por cristãos protestantes, entre
eles o educador Jan Amos Comenius (1592-1670).

É possível citar várias outras personalidades da história do


cristianismo que associaram a teologia com a ciência e a cultura,
como as monjas alemãs Rosvita de Gandersheim, que viveu no século
10 e foi responsável pela reintrodução do teatro no Ocidente, e
Hildegarde von Bingen (1098-1179), poetisa, compositora e autora de
tratados de teologia, medicina e botânica.

Que os cristãos ofendem o Criador quando, em desacordo com seus


antepassados, rejeitam a ciência é fácil demonstrar. O célebre
prólogo do Evangelho de João, referindo-se a Cristo, afirma (a tradução
é minha): “Todas as coisas surgiram através dele, e sem ele nem uma
surgiu”.
Ou seja, segundo o evangelista João, tudo o que existe tem origem
divina. Isso inclui o mar, o céu, a terra, as pessoas, os animais, as
plantas, o amor, a esperança, a alegria, o bom humor, as artes e a
ciência. A capacidade dos cientistas de investigar o mundo natural – e,
em consequência, criar medicamentos e produtos para uso da
sociedade – pode ser vista, assim, como um ato da bondade de Deus,
que tem por fim o benefício da humanidade.

É claro que a ciência possui um caráter provisório, e está sujeita a ser


“falseada” por novos dados surgidos com o aprofundamento das
pesquisas, como explicou o filósofo austríaco Karl Popper (1902-
1994). Mas algumas descobertas são definitivas, como a idade do
Universo, calculada em pelo menos 13,7 bilhões de anos – e não em 6
mil anos –, a circunferência da Terra, a eficácia das vacinas e o fato de
que remédios produzidos para combater protozoários são inócuos
contra vírus.

Atualmente, no Brasil, as Igrejas – com as exceções de praxe –


parecem ter esquecido a mais elevada teologia cristã praticada ao
longo dos séculos e desprezado a longa tradição de estudos e de
apreço pela ciência, da mesma forma como ocorreu em
determinados períodos da história, em que líderes religiosos se
desvirtuaram desse caminho e promoveram aberrações como a
condenação de Giordano Bruno (1548-1600), a atuação do “grande
inquisidor” Tomás de Torquemada (1420-1498) e o julgamento do
matemático italiano Galileu Galilei (1564-1642).

Isso acontece, em boa medida, porque as Igrejas brasileiras


vergonhosamente se submeteram a um político obscurantista,
mentiroso, medíocre, defensor de valores contrários ao Evangelho,
como a discriminação de minorias, o armamentismo, a indiferença
em relação à pobreza e à dor do próximo e o pouco caso com o
ambiente.

E não só se submeteram como se colocaram a serviço desse político


obscurantista, contribuindo diretamente para atacar e desvalorizar a
universidade pública – uma das instituições mais benéficas para o
País, como ficou demonstrado ao longo desta pandemia de covid-19
–, perseguir professores e jornalistas, demonizar a arte e a cultura,
restringir o acesso ao ensino superior e impor a educação
militarizada, uma contradição em termos, equivalente à expressão
“círculo quadrado”. Chega a ser estarrecedor: os herdeiros da
instituição que gerou Jerônimo, Beda e Alcuíno agora perseguem a
universidade, impõem limites à expansão do saber e descaracterizam
a educação.

Uma das tristes consequências dessa atitude é a perda da relevância


das Igrejas. Elas, que conservam ou conservavam a mais
revolucionária, profunda e maravilhosa mensagem existente, capaz
de transformar indivíduos e sociedades inteiras – a mensagem do
amor de Deus para com os seres humanos e do amor dos seres
humanos para com os seres humanos –, se diluíram na mediocridade.
Elas, que têm ou tinham a função profética de denunciar as mazelas e
injustiças dos poderosos, se reduziram à insignificância. Essas Igrejas
cumprem em si mesmas a palavra do Senhor: “Vós sois o sal da terra;
se o sal se estragar, em que será pego? Para nada mais tem força
senão ser atirado fora e ser pisado pelos homens” (Evangelho de
Mateus 5:13).
É urgente o surgimento de um movimento que, denunciando o
obscurantismo das Igrejas atuais, recupere o legítimo pensamento
cristão – voltado para o cultivo e fortalecimento da ciência, da arte e
da cultura – e valorize os grandes feitos da autêntica tradição cristã.

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