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HISTÓRIA DAS

RELIGIÕES

Mayara Joice Dionizio


Historiografia da religião
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar os principais pensadores teológicos do século XIX.


 Categorizar as ideias de base dos pensadores teológicos do século XX.
 Caracterizar a historiografia da religião brasileira.

Introdução
O lugar da religião passa a ser questionamento veementemente durante
a Idade Moderna, que se estende até o século XIX. Nesse período, acon-
teceram mudanças no tecido social: no campo das ciências, os conheci-
mentos foram segmentados e buscavam fiar-se tão somente na validade
científica do trabalho. No aspecto econômico, vemos a intensificação
da modernização do trabalho, dos avanços industriais e das demandas
políticas por melhores condições de vida por parte de movimentos sociais.
Nesse contexto, a religião enfrenta uma enorme combativa por parte
dos teóricos de diversas áreas. É, então, dada a tarefa aos estudos teoló-
gicos de conciliar a fé à ciência, à razão. Isso se estende até o século XX,
que, por um lado, intensifica os limites da ciência perante as religiões e,
por outro, dicotomiza ainda mais uma esfera da outra. Isso, inevitavel-
mente, reverbera também no estudo da teologia no Brasil quanto na
historiografia religiosa brasileira.
Neste capítulo, você verá quais foram os principais teóricos e movi-
mentos teológicos no século XIX. Além disso, conhecerá as bases teóri-
cas da teologia do século XX, bem como os seus desdobramentos em
distintas interpretações, e verá uma análise da historiografia da religião
brasileira, suas vertentes teóricas e suas principais dificuldades.
2 Historiografia da religião

1 Os principais pensadores teológicos


do século XIX
O século XIX foi um período de extrema importância para o desenvolvimento
de diversas áreas do conhecimento. Nesse contexto, podemos ressaltar a
ascensão do discurso científico, que foi um fator predominante da história do
pensamento e das sociedades. Nessa época, que, do ponto de vista da história
da religião, destacou-se como um momento de secularização, o modernismo
contextualizou uma mudança paradigmática em torno da filosofia, da socio-
logia, da antropologia e da recém-surgida psicanálise. Podemos filiar muito
dos avanços nessas áreas ao avanço científico possibilitado pela teoria de
Charles Darwin (1809–1882), que apresenta o argumento evolucionista como
base para o desenvolvimento da vida na Terra em oposição à teoria criacio-
nista. Essa teoria, junto a outras descobertas, apresenta ao indivíduo moderno
possibilidades outras de pensar o mundo e de compreender a si perante esse
mundo, o que cria, automaticamente, uma oposição entre ciência e religião,
secularização e dessecularização a partir da Idade Moderna.
Em 1859, o cientista naturalista Charles Darwin publica Da origem das
espécies por meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas
na luta pela vida. Esse texto apresenta evidências de que os organismos vivos
teriam evoluído de acordo com uma seleção natural, ou seja (DARWIN,
2003), os teriam se modificado dadas as condições naturais de cada hábitat.
O mesmo vale para a espécie humana, que teria evoluído ao longo dos anos
de seu ancestral, o macaco: dadas as necessidades que a espécie enfrentava
em distintas condições, o humano acaba evoluindo do Homo sapiens, uma
espécie hominídea de macacos. Tal teoria causa um enorme impacto em
relação às concepções estabelecidas até então e, nesse contexto, as religiões
e as instituições religiosas, majoritariamente as judaicas e as cristãs, apelam
para ameaças, excomunhão, inferno e outras interpretações punitivas. Surgem,
assim, diversas linhas teológicas que buscam conciliar ciência e religião ou
combater o discurso científico.
É a partir dessas narrativas que os teólogos se apoiam em argumentos
filosóficos que possibilitam a fundamentação teológica (SARANYANA, 2002).
Aristóteles, por exemplo, que buscou, em sua obra, estabelecer pressupostos
e uma base científica para as investigações, passa a ser citado e estudado por
meio de sua teoria das quatro causas, tal como ocorrera anos antes com a
filosofia escolástica.
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No contexto da historiografia das religiões, é no século XIX que pensa-


dores se dedicam a pensar o fenômeno religioso por meio da antropologia
(SARANYANA, 2002). Max Müller apresenta uma metodologia comparada
quando estuda e traduz os textos sagrados do hinduísmo; Edward Tylor apre-
senta a teoria animista — que admite a existência espiritual de não humanos
e que busca dignificar outras existências por meio da teoria darwinista e de
diferentes religiões. Outros acontecimentos e movimentos possibilitaram esse
caráter inaugural da modernidade, como o Iluminismo e a Reforma Protestante
ocorridos no século XVIII. Tais movimentos trouxeram um caráter mais
racional à sociedade e uma abertura para outras manifestações religiosas que
divergiam da católica.
Assim, chega-se ao século XIX, e o contexto imperialista predominava: ocorre
a Revolução industrial, a modernização do trabalho e da vida; com isso, países
colonizados passam a ser modernizados em sua produção — exemplos disso são
os Estados Unidos e, mais tardiamente, o Brasil. Em contraste à cultura europeia,
a alteridade cultural passa a ser incontornável e, por conseguinte, surgem outras
religiões. A Europa estabelece, assim, o ideal conceitual do que é a cultura, que
é entendida, a partir de então, em um paralelo com a noção de civilidade. Por-
tanto, cultura é aquilo que nutre faculdades de alta índole, de superioridade, de
desenvolvimento artístico e científico principalmente. A religião, nesse sentido,
é um sinal de cultura, ainda que nutra (de acordo com o argumento científico)
faculdades intelectivas inferiores. Assim, ocorre a distinção entre sagrado e o
profano, como empreendida por Émile Durkheim, que reconhece na organização
social religiosa a evolução cultural em detrimento do profano, que consiste na
magia — portanto, incapaz de criar corpo social político.
Dado tal contexto, o modernismo, no aspecto eclesiástico, teve como percus-
sores Ernesto Buonaiuti e Romolo Muri na Itália; Paul Sabatier e Alfred Loisy
na França; e, na Inglaterra, quem protagonizou o pensamento foi George Tyrrel.
Contudo, Tyrrel e Loisy tiveram grande prospecção na Europa (SARANYANA,
2002). Loisy, por exemplo, ficou conhecido à época pela publicação de duas
importantes obras, L’Évangile et l’Église e Études evangéliques. Na primeira
obra, Loisy trava um diálogo com o teólogo protestante Harnack, que havia
ministrado um curso recentemente à época na Universidade de Berlim sobre a
essência do cristianismo. Segundo Harnack, a mensagem cristã se deturpou a
partir do momento em que o cristianismo passou a ser afetado pela cultura pagã,
principalmente a grega. Loisy adota esse modo histórico de pensar a religião
e, para tanto, desvincula-se da Igreja por compreender que o cristianismo
deveria configurar muito mais um modo de vida do que uma comunidade.
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Essa disparidade entre uma posição e outra, a saber, do argumento histórico


para o de fé, acarretou uma dissociação em relação à figura de Jesus Cristo:
o histórico e o filho de Deus (SARANYANA, 2002).
O argumento moderno passa então, a orbitar entre a história da religião e o
dogma religioso. Os teólogos desse período passam a pensar que a experiência
religiosa independe da instituição; portanto, a igreja seria somente o lugar de
comunicação subjetiva e imanente, o que acaba por criar uma separação ainda
maior entre história e dogma. Nesse contexto, o filósofo Maurice Blondel
(1861–1949) contrapõe essa visão (SARANYANA, 2002) e entende que a
problematização acerca da história e da religião deve partir da vontade e da
ação. Portanto, a ação concreta se origina da vontade, que só pode se realizar por
meio dessa ação. Com isso, a vontade é uma pulsão transgressora, inesgotável
e responsável pelo questionamento acerca da realidade. Ao buscar se realizar,
a vontade possibilita ao indivíduo o questionamento sobre os limites para a sua
concretização; nesse sentido, por meio do dinamismo em relação à vontade
e à ação, o espírito anseia o encontro com o sagrado. A relação entre Deus e
individuo acontece, então, por uma correlação: a fé é um dom que propicia a
vontade e a procura por Deus, e Deus se corresponde com os indivíduos por
meio dessa vontade sobrenatural.
Contextualmente, podemos dizer que, diferentemente de Loisy, que era his-
toricista, Blondel buscava defender uma terceira via à extrinsecista (aquela que
significa o sobrenatural como algo não comum, não corriqueiro, extraordinário)
e à histórica (que defende uma história pura por meio dos fatos) (SARANYANA,
2002). Para Blondel (1997), ambas as correntes contêm equívocos: de um lado,
temos uma posição que ignora a história e, de outro, temos uma história que
defende um sincretismo com a história sagrada. Para tanto, a terceira via apre-
sentada por Blondel (1997) argumenta a favor de uma teoria da tradição. Tal
teoria busca conciliar a história, as crenças e as doutrinas, ou seja, estabelecer
relações entre Jesus e Cristo, entre a história e a história sagrada.
A Igreja Católica, para tanto, emitiu, nesse período, dois documentos
com vistas a combater o racionalismo modernista. O primeiro, o Decreto
Lamentabili sane exitu, emitido pelo Santo Ofício, condenava 65 proposições
modernistas que defendiam que a leitura da Bíblia por vias históricas não é
aceitável, uma vez que tais leituras apresentam Jesus como um simples humano,
portanto, sem capacidades sobre-humanas. Outro aspecto considerado foi
que a moral e os sacramentos passam a ser, do ponto vista histórico, apenas
um conjunto de regras criados por uma organização humana. Já a Encíclica
Pascendi Dominici Gregis, emitida pelo Papa São Pio X, consiste em uma obra
que refuta as teses modernistas, colocando-as como erros de leitura sobre Jesus.
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Tais documentos demonstram que a tradição enfrentou, a partir da Idade


Moderna, um grande desafio. Isso se deve a vários acontecimentos, desen-
volvimentos e desenrolamentos sociais, culturais, econômicos e científicos.
A teologia, que até a Idade Moderna se fundamentava sem maiores dificuldades
na narrativa bíblica, passa a ser confrontada com os argumentos modernos.
Desse modo, o que acontece enquanto esforço hercúleo teológico é a tentativa de
conciliação entre as narrativas divergentes que compõem o entendimento acerca
da realidade e do fenômeno religioso. Pode-se dizer que tal esforço teológico
se manteve mesmo após esse período, na pós-modernidade. Até a atualidade,
a teologia enfrenta dificuldades em fundamentar a fé a partir da ciência ou,
ainda, em proteger a fé, a doutrina e os discursos religiosos das contestações
científicas — o que se aprofunda a partir do desenvolvimento teórico presente
no século XX e paralelamente também ganha espaço, principalmente com o
pensamento antropológico sobre a alteridade cultural e religiosa.

2 As ideias de base dos pensadores teológicos


do século XX
Advindas do século XIX, do modernismo, podemos dizer que, no século XX,
as questões e problematizações teológicas continuaram. Entretanto, apesar da
evolução científica e tecnológica, a religião se reinventou de diversos modos,
buscando adequações à nova realidade, aos novos discursos e aprofundando
ainda mais a dicotomia, com base no argumento de que a religião diz respeito
a outro âmbito da vida do individuo e, portanto, não há a necessidade de
concordância entre uma dimensão e outra. Ainda que tal divisão tenha se
iniciado principalmente a partir da Idade Moderna, na pós-modernidade ou
na contemporaneidade, a religião passou por um processo de refundamento,
de ressignificação e amplificação. Se antes havia uma hegemonia judaico-
-cristã, com o acesso à informação promovido pela globalização, as religiões
de distintas matrizes se tornaram mais acessíveis. Por isso, a seguir, vamos ver
como se dá o desenvolvimento teológico em distintos países que trabalharam
tais questões no século XX (PAULY, 2012).
A Alemanha, há muito tempo, tem uma tradição teológica e filosófica muito
presente: se a abertura à divergência doutrinária teve início com o alemão
Lutero, também a filosofia alemã não só tratou da dimensão religiosa, como
também a contrapôs, tal como é apresentado na obra de Nietzsche (1997), por
exemplo. Contudo, dois pensadores influenciaram profundamente a teologia
alemã nesse período: Martin Heidegger e Friedrich Hegel.
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Apesar de Hegel (1974) ter vivido no século XIX, sua teoria dialética fornece
as bases para a fundamentação teórica da religião. A teoria hegeliana apresenta
um sistema de compreensão do mundo que é dividido em três momentos: tese,
antítese e síntese. A tese consiste, nesse sentido, no pensamento. Ou seja,
quando o pensamento se dá, ele se dá sobre algo, sobre a realidade — em
termos hegelianos, a natureza — que configura a antítese, aquilo que nega
o pensamento; ou aquilo sobre o qual o pensamento tem que compreender,
argumentar. Dessa relação entre pensamento e natureza, homem e mundo,
surge uma compreensão, ou uma constatação que se configura como síntese:

[...] a Filosofia do espírito absoluto conduz, para além da separação de sub-


jetividade e objetividade, às três regiões da distinta e crescente presença
do Absoluto para os homens, no homem e na humanidade, ou através da
intuição (= arte), a representação (= religião) e o pensamento (= filosofia)
(KERN, 2003, p. 689).

Assim, para Kern (2003), a dialética, em suas divisões, ou momentos, pode


ser associada à religião tanto em sua escritura quanto em relação à história da
religião. Poderíamos, então, compreender historicamente a religião hebraica
como a tese, o momento mais absoluto, mais incivil da religião. Posteriormente,
têm-se a ascensão grega, que configura a antítese na medida em que nega a
religião enquanto fim em si (THONNARD, 1968). Nesse contexto, a religião
se torna um meio para alcançar a beleza e os ideais humanos. Em seguida,
teríamos a síntese, que se dá com o cristianismo: a religião que combina
o universalismo do Deus uno com o aperfeiçoamento do humano. Depois,
em relação à religião em si, a dialética se configura a partir da Santíssima
Trindade: Deus corresponde ao pensamento, à ideia pura; Jesus à natureza, à
realidade — Jesus como a figura que se conectou concretamente à realidade;
por fim, tem-se a síntese na figura do Espírito Santo, que simboliza a cons-
ciência cristã obtida por meio da união entre Deus pai e Deus filho (KERN,
2003). Assim, associa-se a tríade tese, antítese e síntese com a tríade lógica,
natureza e filosofia. Essa foi uma forma de se justificar Deus equiparadamente
à história e à ciência, e é também desse modo que o racionalismo influencia
a teologia liberal e a cisão entre Jesus histórico e Cristo. Hegel, dessa forma,
aborda a teologia em relação à filosofia.
Já a partir da filosofia heideggeriana, que entende a existência a partir do
“ser-aí” — o existente que pode se questionar acerca do sentido da existência e
assim buscar por tal sentido —, a teologia passa a ser pensada em sua relação
com o mundo (KERN, 2003). É a partir desses dois pensadores que a teologia
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alemã se desenvolve no século XX, buscando colocar em prática o que se


nomeou como “protestantismo cultural”, que nada mais é do que propiciar
uma relação, um diálogo entre cristianismo e ciência. Nesse eixo, o nome de
maior destaque é o de Harnack, que defendia um cristianismo puro, isto é,
pensar o Evangelho em seu elemento substancial: a fé em Deus e a mensagem
de Cristo de amor ao próximo (BONACCORSI, 1904). Harnack argumenta
que, após a morte de Jesus, o cristianismo se dogmatizou, em especial do
helenismo ao fim da Idade Média. Ainda que a reforma tenha empreendido
uma volta, um retorno às Escrituras Sagradas, aos poucos, os dogmas foram
evoluindo e acabaram por dar o mesmo destino ao cristianismo católico com
o qual os reformadores pretendiam romper.
À mesma época, em contraposição à teologia liberal, têm-se a teologia
dialética (IZQUIERDO, 2008). Nesse contexto, destacaram-se nomes como
os de Rudolf Bultmann (1884–1976) e Karl Barth (1886–1968). Barth defendia
uma teologia da revelação: a única forma de conhecer realmente a Deus é
por meio da palavra divina. Assim, a religião faz parte, juntamente a toda a
construção da humana, de algo que não revela Deus, mas o inibe, que busca
desfazê-lo. A teologia barthiana, então, configura-se de dois modos: a singu-
laridade da palavra de Deus — a singularidade da fé — e, ao mesmo tempo, a
desvalorização do humano como capaz de compreender profundamente a Deus.
Já o teólogo Bultmann (apud IZQUIERDO, 2008) defendia que a teologia
liberal busca um ideal que não o de Deus. Portanto, ao buscar conciliar a
religião e ciência, a teologia liberal acabaria tratando das relações culturais
humanas, não divinas. Bultmann se aproxima, então, de Heidegger e acaba
por desenvolver o que chama de teologia existencial. Essa teologia buscava
compreender Jesus independentemente de sua existência histórica, isto é, não
a negando, mas, sim, focando em sua existência enquanto sentido. Pensar de
acordo com a teologia existencial é levar em consideração que a continuidade
material da história sempre fará mais sentido científico do que a descontinui-
dade teológica, na medida em que o Evangelho quer passar uma mensagem,
um sentido existencial, e não histórico.
Na França, o pensamento moderno também fez com que surgisse uma crise
em relação à teologia (IZQUIERDO, 2008). Os teólogos franceses, no século
XX, buscaram desenvolver uma teologia que reaproximasse as pessoas por
meio da realidade, ou seja, que não apresentasse tantas divergências. Assim,
construiu-se a chamada nouvelle théologie, que durou de 1938 a 1946. Tal
movimento foi protagonizado pelo debate entre Marie-Dominique Chenu e
Louis Charlier em torno da problematização da natureza e dos métodos teoló-
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gicos, buscando ligar a teologia cada vez mais à contemporaneidade. Henri de


Lubac (1896-1991), membro da escola de jesuítas, foi um dos protagonistas do
jesuísmo que cunhou a contraposição ao intelectualismo escolástico. Por outro
lado, tem-se os defensores de Chenu, que desenvolve concepções teológicas
de que a teologia deve surgir da experiência, visto que Deus é vivo e mutável.
Coclui-se, assim, que a teologia no século XX se concentrou na possibilidade
de diálogo entre a religião e a ciência, bem como em achar meios de renovação
teológica, uma vez que a tradição de seu pensamento estava fundamentada
ainda no período escolástico (IZQUIERDO, 2008). A partir dessas concepções,
pode-se ver o desdobramento que ocorreu na Europa, em especial em países
franco-germânicos. Na Alemanha, as duas correntes mais significativas cir-
cundaram em torno das filosofias de Hegel e Heideggeer. Se, de um lado, o da
filosofia hegeliana, vemos a disseminação da dialética do espírito, por outro,
vemos as vias de uma teologia existencial se desenhar a partir da filosofia
heideggeriana. Ambas as correntes se interseccionam com outra, a da teologia
da libertação elaborada a partir da teoria de Karl Marx, que apresenta a teologia
como caminho para a correção das injustiças históricas. Portanto, a teologia
da libertação parte da dialética dentro do escopo do materialismo histórico e
da exploração — essa corrente teológica foi fortemente difundida na América
Latina. Na França, vimos como a relação entre história e liberdade se configurou
enquanto preocupação teológica, acabando por contribuir com o Concílio do
Vaticano II. Podemos atribuir ao século XX, portanto, uma ressignificação da
teologia, em que o passado passa a ser pensado como fonte científica e histórica
e, contudo, passa a coexistir com a religião na vida do indivíduo.

Você conhece o pensamento pós-estruturalista de Jacques Derrida? Derrida foi um


filósofo franco-argelino que deu importantes contribuições para o pensamento, nas
mais distintas áreas, inclusive em relação à sociologia da religião. Seu “sistema” de
pensamento se dava por meio da desconstrução: o hiato presente entre a construção e
a indesconstrução. Para Derrida, quando se estabelece posições binárias para delimitar
a estrutura de um objeto, pode-se perder a diferença que as une. Pensar a religião é,
então, pensar a sua ausência, o lugar entre a fé e a ausência dela. É como se pudéssemos
afirmar “creio e por isso não creio”, admitindo que a condição de existência da crença
é sua relação com a descrença (DERRIDA; VATTIMO, 2000).
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3 A historiografia da religião brasileira


Pensar na historiografia da religião brasileira exige pensar em uma ampla
formação cultural, econômica, política e social. Com isso, busca-se destacar
que os fatos históricos que formaram a população brasileira a distinguem da
formação de outros povos da América Latina, o que nos permite dizer que a
história cultural brasileira é extremamente singular. Temos, enquanto povo,
um enorme enlace étnico que nos compõe: as matrizes portuguesa, africana e
indígena, que, ao longo dos séculos, foram somadas à política de imigração da
Europa, em especial de alemães e italianos, e do Oriente, em especial o Japão.
A partir desse trânsito cultural e demográfico, a formação religiosa brasileira
se tornou plural. Apesar de uma forte presença do cristianismo de vertente
católica, principalmente, como se deu já no momento da colonização por via
impositivas, atualmente, podemos dizer que novas religiões e manifestações
espirituais vêm surgindo.
Para pensar a historiografia religiosa brasileira, devemos voltar ao perí-
odo colonial. Se o Brasil chegou a alcançar o status de maior país católico
do mundo em nossa recente história, isso se deve em muito à colonização
portuguesa. Quando chegaram ao Brasil, os portugueses traçaram como
projeto de colonização uma imposição também cultural (SOUZA, 1997).
Isto é, os modos europeus, assim como a religião predominante, no caso o
cristianismo católico, faziam parte do ideário colonial. Outro aspecto cultural
é o indígena: vale ressaltar que os povos indígenas já habitavam o território
que veio a ser nomeado como Brasil; quando os portugueses chegaram, eles
já tinham suas manifestações culturais, que foram amplamente combatidas,
tidas como selvagens e, portanto, primitivas. Acontece que, com a dominação
desses povos, também em seu caráter violento simbolicamente e fisicamente,
os indígenas foram escravizados. Muitos adoeceram e muitos foram mortos.
Com isso, a coroa portuguesa precisava de uma nova mão de obra, de modo
que se iniciou a escravidão negra. Assim, muitos escravos foram trazidos
do continente africano para servir de mão de obra, principalmente com a
exploração da monocultura da cana-de-açúcar. Os escravos trouxeram consigo
suas tradições culturais e religiosas, que acabaram inserindo-se no contexto
católico e indígena.
Posteriormente, no século XVIII, começaram a ocorrer as imigrações.
Após as pressões comerciais e industriais de países como a Inglaterra e França
para que o Brasil abolisse a escravidão — isso também ocorre dado o caráter
progressista do modernismo —, a mão de obra escrava é substituída pela dos
imigrantes europeus (SOUZA, 1997). Tais imigrantes não foram escraviza-
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dos, apesar de muitos terem vivido em situações análogas, pois seu trabalho
era remunerado. Muitos desses imigrantes eram de origem italiana e alemã
e acabaram por fundar distintas colônias de raízes católicas e protestantes.
No século XX, o país recebeu muitos imigrantes de origem oriental, que
também trouxeram consigo suas tradições culturais — destacam-se ,nesse
contexto, as religiões Seicho-No-Ie e budista (SOUZA, 1997). Nesse mesmo
século, ocorreram missões religiosas de vertente protestante que deram, mais
tarde, respaldo ao surgimento de ramificações como o pentecostalismo e o
neopentecostalismo.
Esses fenômenos e acontecimentos apresentam dificuldades para a aplicação
de uma historiografia das religiões no Brasil. Dada a multiplicidade cultural que
compõe a história do Brasil, podemos dizer que se trata de um lastro enorme
de temas a serem abordados e, também, há que se reconhecer as influências
de outras historiografias que participam do modo como escrevemos a história
de nosso país. Desde o final do século XX, as pesquisas têm se voltado para o
estudo das religiões por meio de agendas relacionadas a identitarismo, cultura
e resistência. Entretanto, a religião pensada em relação a si mesma carece de
pesquisas acadêmicas, tal como elucidam Refkalefsky e Patriota (2006, docu-
mento on-line): “[...] [a] temática sobre religião e religiosidade na comunicação
social ainda não recebeu da comunidade acadêmica brasileira — apesar de
importantes estudos pioneiros — a relevância necessária”.
Isso se deve, em grande parte, à influência positivista que os estudos
históricos têm sofrido desde a Proclamação da República (1889) (FREYRE,
2000). A exemplo disso, os cursos de teologia só passaram a ser reconhecidos
pelo Ministério da Educação e puderam formar bacharéis em 1999. Por outro
lado, a ciência da religião empreendeu poucas investigações acadêmicas e,
consequentemente, têm-se poucas produções nessa área do conhecimento.
Destacam-se, nesse sentido, os trabalhos em torno da questão positivista,
movimento protagonizado por Augusto Comte, que se fundamentava na
organização rigorosa do trabalho científico por meio da observação e da
compreensão. Ou seja, o pensamento positivista se baseava na pesquisa por
meio da ciência (FREYRE, 2000). A partir dessa matriz de pensamento,
constituia-se a crença indubitável na ciência e no racionalismo, de modo
que o desenrolar da história não podia ser outro senão o do esclarecimento
racional e científico. Isso levou a que vários teóricos pensassem as áreas do
conhecimento por um determinismo; por exemplo, após a modernidade, seria
inevitável que as religiões desaparecessem, pois as saídas argumentativas da
religião se esgotariam frente à explicação científica.
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No Brasil, essa vertente filosófica, sociológica e histórica se difundiu


amplamente no período da ditadura militar (1964–1985) (FONSECA, 1995).
Nesse contexto, a reflexão histórica fundamentada no positivismo se adequava
às pautas ideológicas do Estado, uma vez que a sociedade se organizava
hierarquicamente, o individuo não tinha espaço de reflexão política, crítica e
era meramente instrumentalizado aos interesses estatais.
Outra vertente adotada para se pensar a religião e a sua historiografia foi a
marxista (FONSECA, 1995). Em contraposição à teologia liberal e de vertente
positivista, a teologia da libertação se alinhava aos ideais de Marx, que entendia
a religião como fonte de alienação do indivíduo. Nesse sentido, a reflexão
crítica acerca da estrutura social, econômica e cultural levava o individuo a
não se compreender como explorado, tampouco onde se dava as explorações
pela classe dominante, a saber, os detentores dos meios de produção. Porém, a
religião acabaria por se extinguir frente ao desvelamento, ao desmascaramento
dessa estrutura por meio da razão. A religião só poderia beneficiar de alguma
forma os indivíduos caso ela promovesse esse esclarecimento social. Com
isso, surgiu uma série de trabalhos críticos à ditadura e, consequentemente,
à instituição religiosa que era conivente ao regime. É a partir dessa oposição
que surge também na América Latina o movimento da teologia da libertação.
No Brasil, esse movimento teve grande impacto político e social: protagonizou
uma ressignificação da teologia e da concepção cristão no país (FONSECA,
1995). O fundamento do movimento consistia em aliar a religião à promoção
da consciência política, social e econômica no Brasil, e a intenção era corrigir
as desigualdades da sociedade brasileira.
Outra vertente historiográfica que influenciou os estudos religiosos bra-
sileiros foi a da Escola de Annales, que surgiu na França em torno da revista
acadêmica Annales d’historie économique et sociale, que propunha uma
aplicação metodológica das ciências sociais na história. Assim, seria possível
superar o positivismo não mais pensado a história por meio dos fatos, mas, sim,
de seus processos (FONSECA, 1995). Essa seria a chamada Nova História,
que nada mais é do que o estudo da história por meio de diferentes matrizes
do conhecimento, pensando toda e qualquer atividade humana como história
e estudo por métodos multidisciplinares.
Por fim, cabe ressaltar a grande influência que também exerce a escola
marxista inglesa nas bases de nossa historiografia (HOBSBAWM, 1998).
Tal vertente promovia o estudo da história por meio dos modos de produção
existentes desde a formação da sociedade. Para tanto, a religião passa a ser
pensada, nessa perspectiva, como um componente necessário ao modo de
produção e que retroalimenta a estrutura econômica e social.
12 Historiografia da religião

Conclui-se que foi entre as décadas de 1970 e 2000 que essas correntes se
desenvolveram em distintas perspectivas nos estudos da religião no Brasil, o
que apresenta um paradoxo: ao mesmo tempo que, ao fim do século XX, tem-se
uma intensa influência de várias bases historiográficas no estudo da religião,
tem-se, também, a dificuldade de intensificar uma historiografia que abandone
essas bases metodológicas ou, ainda, que as ressignifique (FONSECA, 1995).
Atualmente, a historiografia abre espaço para debates em torno da religião
também voltada aos estudos de gênero, neo-historicismo e micro-história,
por exemplo, o que é de grande relevância, uma vez que o Brasil tem uma
formação cultural que relaciona distintos fenômenos religiosos.

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Leitura recomendada
PIERUCCI, A. F. Secularização em Max Weber: da contemporanea serventia de vol-
tarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n.
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d=S0102-69091998000200003. Acesso em: 19 jul. 2020.

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