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Antropologia da

Religião

Prof. Hermes de Sousa Veras

Indaial – 2022
1a Edição
Elaboração:
Prof. Hermes de Sousa Veras

Copyright © UNIASSELVI 2022

Revisão, Diagramação e Produção:


Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech
Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI.


Núcleo de Educação a Distância. VERAS, Hermes de Sousa.

Antropologia da Religião. Hermes de Sousa Veras. Indaial - SC: UNIASSELVI, 2022.

184p.

ISBN 978-85-515-0618-9
ISBN Digital 978-85-515-0619-6

“Graduação - EaD”.
1. Antropologia 2. Religião 3. Brasil

CDD 266
Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679

Impresso por:
APRESENTAÇÃO
Esse livro será um guia, ou um passeio, pela Antropologia Social e pela
Antropologia da Religião. Percorreremos um pouco da história dessa disciplina, que se
intensificou e se institucionalizou no final do século XIX, completando, no século XX, o
seu processo de modernização e prática.

Aprenderemos que a Antropologia é, na prática, aprender com a diferença,


dialogar, sair de nós mesmos e mergulharmos na prática e no conhecimento de
outras pessoas e sociedades. Para executar essa perspectiva, nada melhor do que o
estudo dos fenômenos religiosos através da Antropologia da Religião. Afinal, sendo
um tema sensível, muitas vezes polêmico, acompanharemos como podemos estudar
cientificamente o fenômeno religioso, com respeito para com as pessoas religiosas, mas
também respeitando o direito e a liberdade religiosa e não religiosa.

A Antropologia da Religião nasceu junto com a própria Antropologia. Desde


o início dessa ciência, assim como da própria Sociologia, uma espécie de irmã da
Antropologia, o fenômeno religioso foi questão e objeto de reflexão. Portanto, quando
estudamos Antropologia da Religião, aprendemos o quanto a humanidade é rica em
símbolos, regras e sanções religiosas, mas também em criatividade, comportamentos
rituais e festivos. E o mais importante, aprendemos que a diversidade de religiões é uma
expressão de riqueza epistemológica e cultural, e não um problema em si.

Na Unidade 1, vamos percorrer a história do pensamento antropológico,


compreendendo que a diversidade não é apenas o objeto da antropologia, como ela
mesma tem a diversidade em seus métodos e subcampos. Também mergulharemos
na etnografia e na observação participante como as principais práticas antropológicas.
Em sequência, na Unidade 2, aprenderemos como a religião passou a ser um objeto
de estudo antropológico, quando também passamos a falar em religiões, no plural.
Abordaremos as diferenças entre as religiões dominantes e as tradicionais, assim como
os rituais, símbolos e mitos ganham centralidade no estudo antropológico das religiões.
Finalmente, na Unidade 3, abordaremos os temas contemporâneos da Antropologia
da Religião. Veremos como a laicidade e o secularismo fazem parte de um registro
histórico do ocidente, não necessariamente atendendo aos modelos não ocidentais
de sociedades. Também nos aprofundaremos na espiritualidade enquanto fenômeno
contemporâneo e como a intolerância e o pluralismo religioso estão em pauta.

Espero que a jornada seja interessante, de muitos aprendizados, questionamen-


tos e mergulho na diversa e fascinante experiência que é a humanidade dentro das religi-
ões. Às vezes imersa, às vezes em crise e contraste, mas sempre em movimento.

Bons estudos!
Prof. Hermes de Sousa Veras
GIO
Olá, eu sou a Gio!

No livro didático, você encontrará blocos com informações


adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento
acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender
melhor o que são essas informações adicionais e por que você
poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações
durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais
e outras fontes de conhecimento que complementam o
assunto estudado em questão.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos


os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina.
A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um
novo visual – com um formato mais prático, que cabe na
bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada
também digital, em que você pode acompanhar os recursos
adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo
deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura
interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no
texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que
também contribui para diminuir a extração de árvores para
produção de folhas de papel, por exemplo.

Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente,


apresentamos também este livro no formato digital. Portanto,
acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com
versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.

Preparamos também um novo layout. Diante disso, você


verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses
ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos
nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos,
para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os
seus estudos com um material atualizado e de qualidade.

QR CODE
Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e
dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes
completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você
acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar
essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só
aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos.
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dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de
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para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira,
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LEMBRETE
Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma
disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conheci-


mento, construímos, além do livro que está em
suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem,
por meio dela você terá contato com o vídeo
da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa-
res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de
auxiliar seu crescimento.

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preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


SUMÁRIO
UNIDADE 1 - ANTROPOLOGIA: HISTÓRIA, FUNDAMENTOS E CAMINHOS.......................... 1

TÓPICO 1 - FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA.....................................3


1 INTRODUÇÃO........................................................................................................................3
2 PRIMÓRDIOS, ORIGENS, POR ONDE COMEÇAR? ..............................................................4
3 AS SOCIEDADES E INSTITUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS.................................................... 7
4 UNIDADE BIOLÓGICA, DIVERSIDADE CULTURAL ........................................................... 10
RESUMO DO TÓPICO 1.......................................................................................................... 15
AUTOATIVIDADE................................................................................................................... 16

TÓPICO 2 - ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL, ARQUEOLOGIA, BIOANTROPOLOGIA


E ANTROPOLOGIA LINGUÍSTICA...................................................................... 19
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 19
2 A CENTRALIDADE DO CULTURAL, SOCIAL E HISTÓRICO .............................................. 19
2.1. BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEMPO E A ARQUEOLOGIA ....................................................24
3 BIODIVERSIDADE E SOCIOBIODIVERSIDADE ................................................................ 25
4 O CAMPO DA LINGUAGEM................................................................................................ 28
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 32
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 33

TÓPICO 3 - A ETNOGRAFIA E A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENQUANTO


PRÁTICAS FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA.......................................... 35
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 35
2 A PRIMAZIA DO TRABALHO DE CAMPO: BOAS, MALINOWSKI ...................................... 36
3 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ...................................................................................... 41
4 A ETNOGRAFIA COMO FUNDAMENTO DA ANTROPOLOGIA .......................................... 44
LEITURA COMPLEMENTAR..................................................................................................47
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................... 52
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................. 53

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 56

UNIDADE 2 — ANTROPOLOGIAS DAS RELIGIÕES...............................................................59

TÓPICO 1 — ANTROPOLOGIAS DAS RELIGIÕES.................................................................. 61


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 61
2 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO, DAS RELIGIÕES............................................................ 62
3 TEMAS CLÁSSICOS DA ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO: MAGIA, ANIMISMO
E TOTEMISMO.....................................................................................................................67
3.1 MAGIA......................................................................................................................................................68
3.2 ANIMISMO..............................................................................................................................................69
3.3 TOTEMISMO............................................................................................................................................71
4 A RELIGIÃO NA ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA......................................................73
RESUMO DO TÓPICO 1..........................................................................................................78
AUTOATIVIDADE...................................................................................................................79
TÓPICO 2 - RELIGIÕES MAJORITÁRIAS, RELIGIÕES MINORITÁRIAS............................... 81
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 81
2 AS RELIGIÕES DOS OUTROS E A NOSSA RELIGIÃO ....................................................... 81
3 AS DICOTOMIAS DO RELIGIOSO...................................................................................... 86
4 O COMPROMISSO COM A LIBERDADE RELIGIOSA E AS RELIGIÕES MINORITÁRIAS.......... 89
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................... 94
AUTOATIVIDADE...................................................................................................................95

TÓPICO 3 - RITUAIS, MITOS E SÍMBOLOS...........................................................................97


1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................97
2 RITUAL COMO EXPRESSÃO .............................................................................................97
3 O MITO COMO LINGUAGEM .............................................................................................102
4 O RITO, O MITO E O SIMBÓLICO.......................................................................................106
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................ 110
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................ 116
AUTOATIVIDADE..................................................................................................................117

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 119

UNIDADE 3 — TEMAS CONTEMPORÂNEOS NA ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO..............123

TÓPICO 1 — LAICIDADE E SECULARISMO.........................................................................125


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................125
2 O SECULARISMO COMO TEMA SOCIOLÓGICO ..............................................................125
3 DISTINÇÕES ENTRE SECULARISMO E LAICIDIDADE ...................................................130
4 SECULARISMOS E LAICIDADES NO BRASIL .................................................................135
RESUMO DO TÓPICO 1....................................................................................................... 140
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 141

TÓPICO 2 - ESPIRITUALIDADES........................................................................................143
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................143
2 A EMERGÊNCIA DAS ESPIRITUALIDADES.....................................................................143
3 ESTUDOS SOBRE ESPIRITUALIDADES NO BRASIL....................................................... 147
4 ESPIRITUALIDADES E CIÊNCIAS SOCIAIS....................................................................152
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................156
AUTOATIVIDADE................................................................................................................. 157

TÓPICO 3 - INTOLERÂNCIA E PLURALISMO RELIGIOSO.................................................159


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................159
2 INTOLERÂNCIA RELIGIOSA.............................................................................................160
3 RACISMO RELIGIOSO......................................................................................................165
4 O PLURALISMO RELIGIOSO............................................................................................170
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................ 175
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................ 179
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................180

REFERÊNCIAS.....................................................................................................................182
UNIDADE 1 -

ANTROPOLOGIA: HISTÓRIA,
FUNDAMENTOS E
CAMINHOS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Iniciar uma reflexão sobre a humanidade e as suas diversidades;

• compreender a posição da antropologia na ciência;

• identificar as diversas áreas da Antropologia e seus campos de estudo e atuação;

• reconhecer os procedimentos da antropologia para a construção do conhecimento.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA

TÓPICO 2 – ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL, ARQUEOLOGIA, BIOANTROPOLOGIA E


ANTROPOLOGIA LINGUÍSTICA

TÓPICO 3 – A ETNOGRAFIA E A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ENQUANTO PRÁTICAS


FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

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UNIDADE 1!

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2
UNIDADE 1 TÓPICO 1 -
FORMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA ENQUANTO
CIÊNCIA

1 INTRODUÇÃO
A Antropologia é uma ciência que carrega em seu nome uma simplicidade. Ora,
não precisamos ir muito longe para saber que Antropologia significa o estudo científico
do ser humano em uma perspectiva totalizante e sistemática. Logo, descobrimos
que, apesar de ter uma perspectiva total, seguiu diversos caminhos, com campos e
subcampos que se estabeleceram ao longo do tempo. Portanto, começaremos com um
panorama comum a todos os sujeitos que se interessam pela antropologia no geral, para
depois passearmos pelas perspectivas da humanidade em seu enfoque social e cultural
(antropologia sociocultural), em sua dimensão da diversidade de expressões linguísticas
e de linguagens (antropologia linguística), em sua experiência em múltiplos tempos
históricos (antropologia arqueológica) e, finalmente, na humanidade em sua constituição
enquanto espécie, um ser vivo configurado biologicamente (bioantropologia).

Assim, este livro é sobre a religião enquanto possibilidade de estudo da


antropologia. Mais especificamente, da antropologia sociocultural. Mas, antes de
mergulharmos nessa especialidade, abordaremos, de uma maneira resumida, como
esses múltiplos campos constituíram a antropologia enquanto uma ciência, no geral, e
como uma ciência social, em particular, ou seja, em sua dimensão de estudo sociocultural
da experiência humana.

Portanto, em Formação da antropologia enquanto ciência (Tópico 1),


abordaremos a história desta disciplina, em sua trajetória enquanto disciplina científica,
que cometeu muitos equívocos, mas estabeleceu algumas possibilidades e valores para
a interpretação e compreensão da diversidade da experiência humana.

Em Antropologia sociocultural, Arqueologia, Bioantropologia e Antropologia


Linguística (Tópico 2), continuaremos nessa jornada da antropologia científica, agora
detalhando e exemplificando as distintas abordagens desses subcampos da antropologia.

Finalmente, em A etnografia e a observação participante enquanto práticas


fundamentais da antropologia (Tópico 3), veremos como a prática da etnografia confere
identidade ao fazer da antropologia, sobretudo a sociocultural, e como essa prática
constitui a própria especificidade da antropologia perante as demais ciências. Após essa
breve, porém, intensa viagem, seremos capazes de articular nossos conhecimentos
antropológicos com a experiência da religião.

3
A antropologia, justamente pelas abrangências de seus objetos (a humanidade
em toda a sua experiência), métodos e abordagens, iniciou a sua trajetória enquanto uma
disciplina, relativamente unificada, que se propunha a compreender o humano em sua
totalidade. Em nossa busca por uma maior compreensão sobre a formação da antropo-
logia e como um de seus subcampos, a antropologia da religião se tornou importante no
cenário da antropologia, acompanharemos o diálogo entre a unidade do gênero humano e
a diversidade de suas manifestações sociais, culturais e históricas. Para começar, acom-
panharemos a preocupação manifesta por pessoas interessadas em exercer “o estudo do
homem inteiro” dentro de um campo científico (LAPLANTINE, 2003).

Após esse encontro com os possíveis primórdios de uma ciência da humanida-


de, acompanharemos como as sociedades científicas foram importantes para a insti-
tucionalização da antropologia, embora grande parte das sociedades antropológicas do
século XIX possuíssem uma perspectiva racialista, que hierarquizava a diversidade étni-
co-racial da humanidade, considerando o homem branco como o padrão de evolução,
enquanto negros, indígenas e mestiços eram considerados inferiores. Por outro lado,
a etnologia se institucionalizava e passava a desenvolver métodos etnográficos, que
abriam mão da especulação histórica. Logo, a etnologia se transformará no que hoje
chamamos de Antropologia Social, Antropologia Cultural e Antropologia Sociocultural,
embora em determinados períodos históricos e escolas de pensamento, a etnologia seja
reservada para o estudo das populações indígenas e tradicionais.

Encerraremos nossa unidade acompanhando o dilema unidade x diversidade,


que atravessa toda a antropologia. Veremos que a antropologia é uma disciplina que
se funda estabelecendo grandes divisores e dualidades, que ao longo de seu tempo,
embora tenha estabelecido possibilidades críticas e de diluição dessas divisões, ficou
profundamente marcada pela separação entre modernidade x tradição, natureza x
cultural, indivíduo x sociedade, nós x eles e daí por diante. Veremos como, por outro lado,
o conceito de cultura ajudou a desestabilizar o racismo pseudocientífico que alimentou
o senso comum e algumas disciplinas, tais como a própria antropologia física.

2 PRIMÓRDIOS, ORIGENS, POR ONDE COMEÇAR?


Há muitas formas de contar a história da antropologia. Lembremos que o nosso
objetivo não é historiográfico. Nos situaremos em relação ao pensamento antropológico
e em sua transformação em disciplina científica. Nosso recorte, portanto, será decisivo
nesse quesito. Não vasculharemos os primórdios e as origens da antropologia. Alguns
gostam de encontrar essa origem na Grécia Antiga, evocando o nome do historiador
Heródoto (484-424 a.C) (LARAIA, 2001), o filósofo francês e uns dos desenvolvedores do
ensaio enquanto gênero, Michel de Montaigne (1533-1572) (LAPLANTINE, 2003, LARAIA,
2001), ou, se ficarmos no campo das ciências humanas, temos a hipótese do próprio
Claude Lévi-Strauss, uns dos principais nomes da antropologia até hoje, que sugere

4
que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo do Iluminismo, tenha fundado as
ciências do homem (LÉVI-STRAUSS, 1993) pelo seu interesse humanista em apreender
a realidade humana em toda a sua complexidade política, histórica e geográfica.

A escolha desses nomes para representar os alicerces de um pensamento antro-


pológico, tem alguma fundamentação. Acompanharemos, para exemplificar a diversidade
de abordagens sobre a história de nossa disciplina. Quando evocamos a Grécia Antiga
para apontar a origem do pensamento antropológico, lembremos, há um esforço de co-
nexão entre a tradição moderna da antropologia e certa contiguidade de modelos de civi-
lização e práticas de conhecimento com o mundo grego clássico. Entretanto, essa relação
pode ser encontrada em diversas outras culturas e modelos de civilização. Afinal, se inte-
ressar pela diferença humana e, portanto, nossas semelhanças, não é característica única
dos ocidentes, da humanidade europeia e euroamericana. Roque de Barros Laraia, em um
livro bastante lido entre nossos estudantes de graduação interessados na antropologia e
na cultura (“Cultura: um conceito antropológico”), não somente, por exemplo, cita o his-
toriador Heródoto como uns dos primeiros formuladores do pensamento antropológico,
mas também aponta o pensador chinês Confúcio, que teria, quatro séculos antes de Cris-
to, expresso que: "A natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm
separados" (LARAIA, 2001, p. 5). Isto é, essa elaboração filosófica já apresentava umas das
preocupações centrais da antropologia: a natureza compartilhada da humanidade e a sua
diversidade de hábitos e costumes, isto é, de culturas.

Voltemos, então, para os pensadores citados logo no início desse tópico. He-
ródoto é lembrado por Laraia justamente por ter se preocupado com “a diversidade de
modos de comportamento existentes entre os diferentes povos” (LARAIA, 2001, p. 5).
Heródoto de Halicarnasso (484-425 a.C), portanto, tendo nascido em um território colo-
nial grego, é conhecido por ter viajado pela Ásia e o Egito, tendo produzido relatos e re-
flexões sobre as diferenças entre os Gregos e outros povos do mundo, preocupado em
saber “como devemos relacionar-nos com os ‘outros’” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 10).

IMPORTANTE
Já reparou que, ao citar outros autores, como Laraia e Eriksen e Nielsen,
tive que datar os anos de nascimento e morte de pessoas com a sigla “a.C”.
Você já deve imaginar que isso significa “antes de Cristo”. Como estamos
em um livro de Antropologia da Religião, vale ressaltar que dividir toda a
nossa experiência de tempo a partir do marcador “Antes” e “Depois” de
Cristo reflete a influência e a importância da cosmologia cristã para a
razão ocidental. Entretanto, como a antropologia tem a diversidade e o
diálogo com a multiplicidade de pontos de vistas como base, não considera
razoável que todas as outras experiências religiosas sejam anuladas. É um
princípio básico antropológico de evitar o etnocentrismo. Para contornar
tal problema, a arqueologia, por exemplo, utiliza “A.P”, isto é, Antes do
Presente, com referência a datação com radiocarbono, que é uma técnica
de medição arqueológica (BICHO, 2006), ou Antes da Era Comum.

5
Dando um salto histórico, lembremos, nossa preocupação aqui não é
historiográfica, estamos apenas elencando algumas características encontradas entre
outros campos dos saberes que estão presentes na antropologia contemporânea,
chegamos a Montaigne e a sua abordagem ensaística da humanidade. O filósofo francês
é lembrado como um relativista cultural antes mesmo do conceito ser elaborado.
Como muitos de seus conterrâneos e contemporâneos, se interessou pela prática do
canibalismo encontrada entre indígenas da América do Sul, assunto que quase sempre
foi pensado a partir de visões estereotipadas e etnocêntricas. Montaigne, entretanto,
considera que os costumes das populações ditas selvagens, não eram menos bárbaros
do que algumas práticas encontradas entre os europeus, como a tortura e o mutilamento
(LARAIA, 2001; LAPLANTINE, 2003; ERIKSEN; NIELSEN, 2007).

Montaigne, nos contam Eriksen e Nielsen: “No ensaio ‘Dos Canibais’, ele inclusive
conclui que se tivesse nascido e sido criado numa tribo canibal, com toda probabilidade
teria comido carne humana” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 15). Os autores ainda contam que
Montaigne cunhou o termo “o bom selvagem”, influenciando Rousseau posteriormente.
Assim, acompanhamos em Montaigne que a diferença cultural se dá muito mais pelos
nossos costumes, da maneira como eles são construídos em determinado grupo social.
Assim, a diferença passa a ser pensada como um valor na humanidade, e não como um
grau de comparação entre civilizações superiores e inferiores.

Como não estamos abordando a história com profundidade, mas dando saltos,
é evidente que embora ideias aproximadas do que hoje denominamos de relativismo
cultural, que é o valor de que nenhuma cultura pode ser compreendida por valores
externos a ela mesma, portanto, não podemos hierarquizar diferenças culturais,
nem tampouco avaliar uma cultura pelo olhar da nossa própria (o que consiste em
etnocentrismo), isto é, embora tudo isso esteja presente em várias reflexões, isto não
significa que o etnocentrismo, a xenofobia e outrofobia tenham saído de cena. Mas
como já citamos Rousseau e a sua influência em Montaigne, recordemos da proposição
de Lévi-Strauss, para quem o próprio Rousseau é um fundador da antropologia:

Rousseau não se limitou a prever a etnologia: ele a fundou.


Inicialmente de modo prático, escrevendo este Discours sur l'origine
et Les fondements de l'inégalité parmi les hommes [Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens]. Nele
se pode ver o primeiro tratado de etnologia geral, onde se coloca o
problema das relações entre a natureza e a cultura. No plano teórico,
distinguindo, com uma clareza e uma concisão admiráveis, o objeto
próprio do etnólogo dos objetos do moralista e do historiador (LÉVI-
STRAUSS, 1993, p. 42-43).

Etnologia, conforme veremos adiante, foi o nome dado para a ciência que estuda
a humanidade em uma perspectiva cultural e comparativa, tendo se preocupado sobre-
tudo com o estudo das sociedades e populações tradicionais, ou seja, os “outros”, aqueles
que apresentavam maiores diferenças, mas também semelhanças, em relação a socie-
dade do próprio observador, isto é, o etnólogo e a etnóloga. Para Lévi-Strauss, Rousseau,
em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens,

6
publicado em 1755, estabeleceu as bases da antropologia, isto é, a sua especificidade em
relação a outros conhecimentos já estabelecidos. É nessa obra mesmo, que Lévi-Strauss
identifica, em Rousseau, uma imagem antropológica percursora. Pois, pensa Rousseau:
“Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de si; mas para estudar o ho-
mem, é preciso aprender a dirigir para longe o olhar; para descobrir as propriedades, é
preciso primeiro observar as diferenças” (ROUSSEAU apud LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 43).
No trecho de Rousseau, podemos identificar as relações semelhança – diferença, ou fa-
miliaridade – alteridade e um certo imperativo da distância geográfica como critério para
conhecer a diferença. Afinal, conforme acompanharemos, a antropologia, dentre muitas
outras características, dependeu dos movimentos de expansão das sociedades europeias
e o choque de cultura resultante dessa expansão.

Até aqui, portanto, pudemos verificar que a formação da antropologia, mesmo


que hoje se reconheça que todas as sociedades humanas tiverem interesses, embora
distintos, de compreensão de nossas semelhanças e diferenças, tem se firmado e se
relacionado com a ciência e o pensamento ocidental. Isto não significa que sejam as
sociedades modernas e imperiais europeias, e posteriormente, norte-americanas, as
mais interessadas em antropologia, isto é, em compreender a humanidade em suas
distintas frentes. Mas, de fato, por conta de um contingente histórico, a antropologia
como a conhecemos hoje é tributária da história das expansões coloniais dessas
sociedades, nas suas formações enquanto nações modernas e na maneira como se
relacionaram com outros povos, territórios e nações do mundo, geralmente considerados
como fazendo parte de fora da própria história da civilização, palavra mais usada entre
os euramericanos para descreverem seus feitos culturais e tecnológicos. Portanto,
a antropologia é uma resposta a esse encontro, tenso, entre o “Ocidente e o Resto”,
expressão parodiada pelo antropólogo Marshall Sahlins (2003), para evidenciar essa
relação desigual, expressa como o ocidente se pensa distinto das demais esferas do
planeta, resumidas ao “resto”.

Diante o exposto, podemos reconhecer que a antropologia possui diversas


histórias e possibilidades, junto com uma variedade quase que aleatória de “mitos de
origem” da disciplina e a sua subsequente especialização. O que devemos levar em
consideração, junto com essa diversidade toda, é que tradicionalmente a antropologia
tem um vínculo com a sociedade moderna ocidental e a sua expansão colonial. É como
nos conta o antropólogo Talal Asad (2017), sem o colonialismo, a antropologia não
existiria. Entretanto, a proposição, se invertida, talvez não possua a mesma força. Sem
a antropologia, o colonialismo continuaria existindo.

3 AS SOCIEDADES E INSTITUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS


Como estamos acompanhando, a antropologia praticada hoje apresenta muitas
origens. Uma maneira de compreender a institucionalização da antropologia enquanto
ciência é acompanharmos a criação e o desenvolvimento, assim como o fim, de
Sociedades e Instituições antropológicas.

7
Quando se conta a história da antropologia, a nossa tendência é reproduzir as
trajetórias da Antropologia em basicamente, três países: França, Inglaterra e Estados
Unidos da América. Via de regra, a Antropologia, no final do século XIX, era considerada
uma ciência mais próxima das ciências da natureza. Diferente da sociologia, que pelo
menos com o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), em especial em sua obra
As regras do método sociológico (1895), tem os seus métodos bem estabelecidos e o
seu objeto bem deliminado, isto é, a sociedade, a realidade do próprio social e do fato
social. Portanto, no século XIX a antropologia ainda estava enraizada em pressupostos
biológicos e racistas, quando muito, imersos no paradigma do evolucionismo cultural de
Tylor, Morgan e Frazer (CASTRO, 2005).

Assim, na França, a antropologia, como já sabemos, era essencialmente uma


atividade de estudo das características físicas dos seres humanos, focando em suas
diferenças, mas também orientada por um racismo pseudocientífico.

A França está praticamente ausente da cena da antropologia social e


cultural da segunda metade do século XIX. Nenhum pesquisador fran-
cês teve, nessa época, a influência de um Tylor (inglês) ou de um Mor-
gan (americano). As preocupações da antropologia francesa estavam
voltadas para outra área. Quando se falava de antropologia, tratava-se
da antropologia física, que era então ilustrada pelos trabalhos de Bro-
ca, Quatrefages ou Topinard, que publicou em 1876 uma obra intitulada
simplesmente A Antropologia (LAPLANTINE, 2003, p. 78).

Paul Topinard (1830-1911), ao publicar uma obra denominada de “A Antropologia”,


nos sugere essa concepção da disciplina enquanto atividade unitária, focada no estudo
físico, sob o viés da raça. Esse aspecto leva a antropologia, na França do século XIX, para
longe das ciências sociais. Durkheim, por exemplo, em As formas elementares da vida
religiosa: o sistema totêmico na Austrália (1912), dialoga com a antropologia britânica
(ORTIZ, 2012), da corrente do evolucionismo cultural, e não com a antropologia física de
seu país. Pois, embora o evolucionismo cultural fosse uma teoria etnocêntrica, desviava
o foco da raça para a cultura e a sociedade, como possibilidades mais interessantes,
mas também científicas, de se compreender a diversidade humana.

As sociedades científicas antropológicas tiveram, portanto, um papel importante


de institucionalização da antropologia enquanto ciência, embora no século XIX estivesse
presa na perspectiva da antropologia física, sobretudo. Vejamos sobre a história e o
papel da Sociedade Antropológica de Paris:

Criada em 1859, era composta sobretudo por médicos dedicados ao


estudo de morfologia comparativa das raças humanas e tinha em
Paul Broca um de seus mais destacados representantes. Em 1875
Broca redigiu as “Instructions craniologiques et craniométriques de
la Société d’Anthropologie de Paris”, elaboradas a partir de ampla
experiência em análises de crânios. As instruções ditavam os
procedimentos fundamentais da prática craniológica e normatizavam
a utilização dos aparelhos de medição. O alcance que tais diretrizes
atingiram consolidou a influência da antropologia física francesa (SÁ
et al., 2008, p. 201).

8
A influência da Antropologia Física francesa se deu em todo o mundo, inclusive
no Brasil, tendo impacto na obra de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), considerado
o primeiro pesquisador a se interessar, em uma perspectiva etnográfica, por religiões
de matriz africana no Brasil, embora estivesse limitado, justamente, pelo racismo
pseudocientífico do século XIX.

No caso da Inglaterra, há a Sociedade Etnológica de Londres, que foi inaugurada


pelo médico James Cowles Prichard (1786-1848), em 1843 (KEULLER, 2012). Prichad,
“Em seu estudo intitulado Researches into the physical history of mankind de 1813, ele
acumulou material relevante da organização física, lingüística, psicológica, e etnográfica
a fim de comprovar a unidade da espécie e de fornecer argumentos em favor da cronologia
bíblica” (KEULLER, 2012, p. 37). É importante nos ater, portanto, que essas sociedades
antropológicas, ou etnológicas, acionavam uma perspectiva que ligava aspectos físicos
e raciais, com os sociais e culturais, embora o predominante fosse o aspecto racial
hierarquizante. Já a Sociedade Etnológica de Nova York, nos conta Adriana Keuller em
sua tese de doutorado, Os estudos físicos de antropologia no Museu Nacional do Rio de
Janeiro, foi fundada em 1842.

No caso do Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em


1838 e com sede no Rio de Janeiro, teve um papel na realização de estudos etnográficos
com populações indígenas, embora essas pesquisas apresentassem muitas limitações,
por falta de uma disciplina antropológica mais consistente, ainda dependente, portanto,
da história (KODAMA, 2010). O principal realizador de pesquisas etnográficas no IHGB
foi o escritor Antônio Gonçalves Dias (1823-1864). O IHGB tinha um papel e missão dita
civilizatória. Devemos lembrar que o instituto foi fundado por conta das políticas do
“Império do Brasil”. Diante disso, essa política imperial compreendia os povos indígenas
enquanto um problema e entrave para o desenvolvimento da nação e do império
português. A missão do IHGB, portanto, dava destaque para a questão indígena:

O destaque que a questão indígena ganhou nas primeiras gerações do


Instituto Histórico em seu aporte à história ocorre concomitantemente
com as ações civilizatórias do Estado imperial, por meio das políticas
indigenistas, em nível mais amplo. Há uma confluência da reflexão do
papel e do ‘lugar’ dos índios em uma história do Brasil, com as formas
particulares com que o Estado imperial e seus agentes exerceram
a difusão de valores culturais e ações políticas específicas frente à
sociedade, no intento de atingir a formação do povo deste mesmo
Império (KODAMA, 2010, p. 261).

Essa preocupação com os povos indígenas tinha um viés paternalista e colonial.


Cabe lembrar, que, no Brasil, até a década de 1930, não havia formação acadêmica na área
da antropologia em uma perspectiva social e cultural, isto é, em sua institucionalização
etnológica. Ou seja, quando a etnologia rompe com o paradigma racial. Até 1930, portanto,
“Tanto os brasileiros como os estrangeiros desse período nem sempre eram puramente
etnólogos, mas sim antropólogos gerais, lidando indistintamente com problemas
etnológicos, arqueológicos, linguísticos ou de Antropologia Física” (MELATTI, 2007 p. 5).

9
Diante desse panorama, podemos perceber que as sociedades antropológicas
e etnológicas no século XIX ajudaram a consolidar a antropologia enquanto ciência,
embora estivessem, em grande medida, enraizadas em uma perspectiva generalista,
ancorada na antropologia física. Veremos, adiante, que o problema não é o aspecto
total, ou seja, de compreender a humanidade em suas diversas camadas, aspectos
e realidades. O que encontramos enquanto problemático, nesse período histórico da
antropologia, é o seu amparo em um racismo pseudocientífico que, pouco a pouco,
deixará de ser evocado e substituído pelo desenvolvimento da antropologia social e
cultural, junto com a etnologia em sua perspectiva moderna.

INDICA
Para uma boa exemplificação do que seriam as Sociedades Científicas,
o papel que elas tiveram na ciência e na sociedade, assim como
as principais sociedades científicas antropológicas, sugerimos o podcast
Antropocast: navegando pela antropologia (2020), criado, produzido, dirigido
e gravado pelo antropólogo Fred Lucio. Há 16 episódios, além do introdutório.
Um desses episódios, tem o título de “As primeiras sociedades científicas de
antropologia”. Mas o convite fica para a escuta de todos os episódios! Há um
episódio para cada subcampo da antropologia: social e cultural, arqueologia,
linguística e antropologia física e biológica, além de um momento dedicado
para a produção da pesquisa etnográfica no Iluminismo. Assim, podemos
estabelecer algumas relações entre o que acompanhamos sobre Rousseau ser
considerado, por Lévi-Strauss, como um precursor da etnologia (antropologia).

4 UNIDADE BIOLÓGICA, DIVERSIDADE CULTURAL

Figura 1 – Reflexividade

Fonte: http://courses.washington.edu/anmind/theory%20of%20mind.pdf. Acesso em: 12. jun. 2022.

10
Apesar das muitas divergências entre a Antropologia Física do século XIX e a
Antropologia Social e Cultural que se estabelece, sobretudo, no século XX, a própria
Antropologia, que atualmente denominamos de Antropologia Biológica, concorda com
a unidade biológica da espécie humana, ao mesmo tempo que reconhece a riqueza
das interações na esfera da sociobiodiversidade, evitando a repetição e paradigmas
deterministas.

Conforme estamos acompanhando, a antropologia, em sua constituição


histórica, carrega a história da expansão colonial e imperialista de sociedades europeias.
Por conta das navegações e do contato com uma humanidade considerada tão diferente
da sociedade do colonizador, isto é, as sociedades, civilizações e grupos indígenas das
Américas e da África, de início, posteriormente com os coletivos indígenas na Oceania.
Esse espanto do colonizador produziu um esforço de ciência.

Reconhecendo essa herança colonial, podemos acompanhar desdobramentos


da antropologia quando ela se desenvolve enquanto atividade científica principalmente
humanística e se preocupa de fato com os efeitos nocivos causados por conta do
colonialismo e da ocidentalização do mundo.

Ao mesmo tempo que o contato colonial mobilizava genocídio e epistemicídio


de civilizações tradicionais, a antropologia se preocupava em catalogar e compreender a
infinita diversidade encontrada entre as culturas humanas. Nos comenta o antropólogo
norte-americano Clifford Geertz (1926-2006): “A grande variação natural de formas
culturais é, sem dúvida, não apenas o grande (e desperdiçado) recurso da antropologia,
mas o terreno do seu mais profundo dilema teórico: de que maneira tal variação pode
enquadrar-se com a unidade biológica da espécie humana?” (GEERTZ, 2015, p. 33).

Essa aparente contradição, despertou o interesse da antropologia, mas também


de outras áreas do campo científico, assim como ainda alimenta o senso comum, hoje
bem elaborado nos discursos midiáticos e das redes sociais digitais. A antropologia
contemporânea compreende, portanto, que a diversidade, em todos as suas dimensões,
é característica da humanidade. Conforme acompanharemos ao longo de todo este
livro, a antropologia se funda, e de certa maneira, reproduz, diversos dualismos, tais
como Natureza x Cultura, Indivíduo x Sociedade, Universal x Particular, Local x Global,
Unidade x Pluralidade.

Roque de Barros Laraia (2001), identifica três possibilidades contemporâneas de se


interpretar o conceito de cultura, sempre relacionando-o com o seu suposto contrário e dual,
a natureza. Essas três possibilidades, ele colhe com o antropólogo linguista Roger Kessing
(1935-1993), que identifica nessas abordagens uma compreensão idealista de cultura.
Idealistas, cabe ressaltar, no sentido em que compreende a cultura como sistema, que de
certa maneira, organiza a vida social e a articula com a natureza, seja ela a especificidade
biológica do ser humano, seja a sociobiodiversidade que está inserido, evidenciando que a
ação da cultura tem possibilidade de modificar o meio (e aqui, não estamos falando apenas
de impactos profundos, como o da sociedade industrial sobre o planeta).

11
Essas três teorias são: 1) a cultura como sistema cognitivo; 2) cultura como sistema
estrutural, 3) cultura como sistema simbólico (LARAIA, 2001). Essas três concepções não
esgotam as possibilidades de cultura, o que seria impossível, mas nos coloca em contato
com três grandes possibilidades de perceber cultura que nos coloca dentro da capacidade
de interpretar a unidade do gênero humano e a sua multiplicidade cultural.

A cultura como sistema cognitivo, está enraizada em uma “abordagem


antropológica [que] tem se distinguido pelo estudo dos sistemas de classificação de
folk [popular], isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros da comunidade”
(LARAIA, 2001, p. 57-58). Como o nome já sugere, essa antropologia é cognitivista, e
ao conceber a cultura desta maneira, “ela fica situada epistemologicamente no mesmo
nível da linguagem, como um evento observável” (LARAIA, 2001, p. 58).

A cultura como sistema estrutural foi desenvolvida, basicamente, pelo


antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009). Para a ilustração desse subtópico, é
importante ressaltar que Lévi-Strauss aposta em uma unidade psíquica da humanidade.
Essa sua elaboração também combate as teorias racistas que vimos da antropologia
física, assim como possibilita interpretar a diversidade cultural.

Lévi-Strauss, a seu modo, formula uma nova teoria da unidade


psíquica da humanidade. Assim, os paralelismos culturais são por ele
explicados pelo fato de que o pensamento humano está submetido a
regras inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios — tais como
a lógica de contrastes binários, de relações e transformações — que
controlam as manifestações empíricas de um dado grupo (LARAIA,
2001, p. 58).

Nessa abordagem, a unidade psíquica da humanidade garante que todas as


sociedades e grupos humanos, possuem, se quisermos usar uma metáfora lúdica, a
capacidade de jogar. O que vai orientar qual jogo será jogado, a partir de quais regras, é
as articulações dentro desse sistema estrutural. Assim, todos nós possuímos as mesmas
possibilidades de jogarmos infinitos jogos, mas vamos, efetivamente, jogar apenas alguns.

A terceira alternativa, descrita por Keesing e resumida por Laraia, é a cultura


como sistema simbólico. Para apresentar essa antropologia interpretativa, Keesing
identifica dois antropólogos, que cada um a seu modo, impactou o conceito de cultura
e o desenvolveu nos Estados Unidos: Clifford Geertz (1926-2006) e David M. Schneider
(1918-1995). Como podemos perceber, o conceito de cultura é tão central na Antropologia
norte-americana que a subdisciplina antropológica que estuda os fenômenos dinâmicos
e sociohistóricos da humanidade é denominada, justamente, de Antropologia Cultural.

Portanto, para Clifford Geertz, a cultura é um sistema simbólico que não deve
ser estudada dentro da cabeça das pessoas, mas em seu aspecto público: está nas
praças, nos encontros entre as pessoas, enfim, está em ação quando as pessoas se
encontram e estabelecem relações. Nesse aspecto, cultural, para Geertz, pode ser
chamada, também, de “programa”, ou seja, uma metáfora computacional. Com esse
recurso linguístico, Geertz justifica a unidade da humanidade e a sua diversidade cultural.

12
Assim, para Geertz, todos os homens são geneticamente aptos para
receber um programa, e este programa é o que chamamos de cultura.
E esta formulação — que consideramos uma nova maneira de encarar
a unidade da espécie — permitiu a Geertz afirmar que "um dos mais
significativos fatos sobre nós pode ser finalmente a constatação de
que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas, mas
terminamos no fim tendo vivido uma só!" Em outras palavras, a criança
está apta ao nascer a ser socializada em qualquer cultura existente.
Esta amplitude de possibilidades, entretanto, será limitada pelo con-
texto real e específico onde de fato ela crescer (LARAIA, 2001, p. 59).

Em resumo, como Lévi-Strauss, Geertz reforça a unidade humana, em seu


equipamento biológico, que nos possibilita executar os infinitos programas (culturas)
possíveis. Ou seja, toda a humanidade, pode experimentar qualquer possibilidade
cultural. Isto significa que não podemos hierarquizar, portanto, as culturas, como
fazia o Evolucionismo Cultural, que considerava que todas as culturas passavam por
determinadas etapas: selvageria, barbárie e civilização, sendo esta última representativa
da sociedade moderna, ou seja, do próprio analista antropólogo. Com essas três
concepções de cultura, por outro lado, acompanhamos que não há uma hierarquia
entre cultura superiores e inferiores. Há apenas culturas.

IMPORTANTE
A diversidade de religiões sempre despertou a atenção e curiosidade das ciências sociais,
assim como do senso comum. Antropólogos evolucionistas, como Edward Burnett Tylor
(1832-1917) e James George Frazer (1858-1951) tentaram compreender a origem da religião.
Para tal missão, estudaram as religiões das sociedades ditas primitivas. Como eles entendiam
que as populações tradicionais fora da Europa representavam as culturas modernas
europeias em sua infância, acreditavam que era possível compreender todas as religiões,
caso interpretassem essas sociedades “crianças”. Quem desconstrói essa ideia, no
âmbito dos estudos da religião, é o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917).
Embora apresente interpretações etnocêntricas sobre as “religiões australianas”,
conforme nos relembra Renato Ortiz: “Durkheim utiliza o termo primitivo num
duplo sentido, o de selvagem (reforçando o etnocentrismo europeu) e o
de primeiro (os povos que teriam antecedido a todos os outros na escala
evolutiva dos homens)” (ORTIZ, 2012, p. 19), Durkheim compreendia que
ao se entender como funciona uma religião em suas instituições e funções
fundamentais, seria possível compreender o funcionamento de todas as
religiões. Ou seja, não é um problema de origem, mas de estrutura social.

Encerrando a outra vertente da cultura enquanto sistema simbólico, Roque de


Barros Laraia comenta sobre a visão de David Schneider sobre a cultura:

David Schneider tem uma abordagem distinta, embora em muitos


pontos semelhante à de Geertz. O ponto de vista de Schneider
sobre cultura está claramente expresso em sua introdução do seu
livro American Kinship: A Cultural Account: "Cultura é um sistema
de símbolos e significados. Compreende categorias ou unidades
e regras sobre relações e modos de comportamento. O status

13
epistemológico das unidades ou ‘coisas’ culturais não depende da
sua observabilidade: mesmo fantasmas e pessoas mortas podem ser
categorias culturais”. Neste ponto, o leitor já deverá ter compreendido
que a discussão não terminou — continua ainda —, e provavelmente
nunca terminará, pois uma compreensão exata do conceito de
cultura significa a compreensão da própria natureza humana, tema
perene da incansável reflexão humana (LARAIA, 2001, p. 59).

Com esses comentários aprendemos que falar de diversidade cultural é,


necessariamente, pensar na unidade da humanidade, em um aspecto central.
Pois o conceito de cultura foi mobilizado, justamente, para combater o racismo
e o etnocentrismo. Conforme acompanhamos, o racismo estava impregnado na
Antropologia Física, que se inscreveu em diversas sociedades científicas, assim como o
evolucionismo cultural foi uma corrente de pensamento pautada no etnocentrismo, que
considerava a civilização europeia o mais alto grau de desenvolvimento social e cultural.

Por essa razão, essas concepções de cultura, encontradas em autores como Lévi-
Strauss, Schneider e Geertz, reforçam nossa unidade psíquica e do nosso equipamento
biológico, ao mesmo tempo que reforçam a nossa capacidade de construir diversas
relações e articulações entre sistemas e estruturas, portanto, de construir diferentes
sociedades e culturas.

14
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• As múltiplas origens do pensamento antropológico, que pode ser conectado com


o pensamento de Confúcio (552-489 AEC), Heródoto (484-424 AEC), se ficarmos
em eras mais remotas, mas também pelo ensaísta Montaigne (1533-1592) e o
filósofo iluminista Rousseau (1712-1778). De qualquer maneira, acompanhamos
que a antropologia moderna é fruto da expansão colonial europeia e com o seu
intenso contato com sociedades e culturas diferentes dos modelos de sociedades
ocidentais. Com essa diferença, passou a se sistematizar um conhecimento que
possibilitasse a compreensão, interpretação e explicação da diversidade humana
em seus mais diversos aspectos: biológicos, históricos, sociais e culturais.

• Por outro lado, até o século XIX, a antropologia, em especial a praticada nas
primeiras sociedades científicas antropológicas, possuía um paradigma racialista,
isto é, hierarquizava as diferenças étnico-raciais, colocando no ápice da evolução,
o homem branco. Na etnologia e na antropologia social, começava-se a substituir
esse paradigma racialista por um cultural, embora ainda evolucionista, pois
considerava a civilização ocidental como a experiência máxima de evolução
social. Assim, o evolucionismo cultural separava as sociedades em três etapas
evolutivas: selvageria, barbárie e civilização.

• Acompanhamos que com o desenvolvimento da Antropologia Social e Cultural,


as explicações racializadas, ou seja, baseadas em hierarquização racial, eram
substituídas por interpretações sociais e culturais. Assim, a Antropologia passa
a compreender que a humanidade possui uma unidade, isto é, possui o mesmo
equipamento biológico, considerando que as variações e diferenças encontradas
entre as sociedades e culturais são, portanto, de razões históricas, sociais e
culturais. Mesmo os aspectos biológicos passam a ser compreendido menos por
uma perspectiva determinista e mais por uma dinâmica relacional.

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AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia é a ciência da humanidade. Acerca dessa afirmativa, assinale as
alternativas CORRETA:

a) ( ) A Antropologia é uma ciência humana que se interessa, exclusivamente, por


assuntos sociais e culturais.
b) ( ) O principal ramo da Antropologia é a Arqueologia, pois esta é uma ciência
histórica que desvenda, a partir do estudo da cultural material, a origem de toda
a sociedade humana.
c) ( ) É uma ciência complexa, que se interessa pelo humano em seus mais diversos
aspectos: culturais, sociais, históricos, linguísticos e biológicos, dedicando, para
cada aspecto desses, uma subdisciplina.
d) ( ) A Antropologia, por muito tempo, foi uma atividade indispensável para a susten-
tação do colonialismo e a manutenção dos impérios europeus, atravessando os
séculos XVIII, XIX e XX.

2 As primeiras Sociedades Científicas de Antropologia estavam enraizadas em uma


perspectiva física de Antropologia, sendo o desenvolvimento da etnologia, etnografia
e da antropologia social e cultural, posterior. Considerando as Sociedades Científicas
de Antropologia, analise as sentenças a seguir:

I- As primeiras sociedades científicas de Antropologia foram criadas no século XVI e


alinhavam o estudo etnográfico com a caracterização física e racial das populações
exóticas.
II- Como as primeiras Sociedades Científicas de Antropologia foram fundadas antes
da institucionalização da Antropologia moderna, a maioria de seus membros eram
médicos, ou profissionais de outras áreas.
III- No Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desenvolveu pesquisas de
interesse antropológico, embora a sua realização não fosse estabelecida nos
modernos métodos de análise etnográfica.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença II está correta.

16
3 Apesar das diferenças de abordagem da Antropologia contemporânea, mesmo
em seus subcampos, há um consenso de que a diversidade cultural e social não
é explicada pela nossa biologia. Isto é, não podemos interpretar comportamentos
sociais e culturais sob uma ótica biológica. Levando em consideração a unidade
biológica da humanidade e a sua diversidade cultural, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

( ) A antropologia mostra que a cultura é fato condicionante para a evolução humana,


isto é, só somos humanos porque somos culturais.
( ) Embora existam várias culturas, desde o difusionismo é consenso científico de que
todas as culturas se originaram do Egito.
( ) Há uma série de elementos que são comuns na experiência humana e em sua vida
em sociedade, tais como a existência de regras e interditos. Isso acontece porque
há uma unidade psíquica na humanidade.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A antropologia, principalmente dentro das primeiras sociedades científicas


antropológicas, concentrava-se nos aspectos físicos da humanidade. Apesar de se
constituir enquanto ciência, o seu postulado era pseudocientífico, pois reforçava
a hierarquização biológica e racial entre a espécie humana. Disserte sobre A
Antropologia em seus primórdios científicos e a importância que foi o conceito de
cultura para a superação do paradigma racista na antropologia.

5 Perguntar-se sobre nossas origens, o que nos une e o que nos diferencia, é uma
forma de pensamento que aparece em qualquer sociedade. Entretanto, foi o ocidente
que construiu a antropologia enquanto uma ciência. Disserte as razões para tal feito.

17
18
UNIDADE 1 TÓPICO 2 -
ANTROPOLOGIA SOCIOCULTURAL,
ARQUEOLOGIA, BIOANTROPOLOGIA E
ANTROPOLOGIA LINGUÍSTICA

1 INTRODUÇÃO
Neste Tópico 2, acompanharemos, com um pouco mais de atenção, a formação
dos subcampos da Antropologia. Como já sabemos, esse livro se interessa sobretudo
pelos fenômenos históricos, sociais e culturais, afinal, trata-se de uma obra de
Antropologia da Religião. Entretanto, para que você possa se aprofundar no estudo
antropológico da religião, estamos percorrendo um pouco da história da antropologia e
a sua complexidade.

Por essa razão, no Tópico 2, nos aprofundaremos nas áreas da Antropologia


que se interessam pelos fenômenos históricos, sociais e culturais; é o que estudaremos
em “A centralidade do cultural, social e histórico”. Nesse subtópico, mergulharemos nas
definições de Antropologia sociocultural e de Arqueologia. Na sequência, no subtópico
“Biodiversidade e sociobiodiversidade”, estudaremos como a Antropologia Física foi
superada e substituída por um paradigma sociobiodiversidade, tendendo a estudar a
evolução humana (não em uma perspectiva hierárquica), e como aspectos de nossa
genética e biologia se relacionam com aspectos sociais e culturais.

Finalmente, no último subtópico, “O campo da linguagem”, trilharemos os cami-


nhos da diversidade linguística e das possibilidades de comunicação e linguagem que a
experiência humana constrói. Perceberemos que todo um subcampo da antropologia, A
Antropologia Linguística, tentou compreender como o campo da linguagem constituía
a nossa própria realidade.

2 A CENTRALIDADE DO CULTURAL, SOCIAL E HISTÓRICO


Apesar das múltiplas possibilidades de se estudar e compreender os fenômenos
humanos, pela área de especialização deste autor, assim como pelo objeto deste livro, não
poderíamos deixar de evidenciar a importância dos aspectos culturais, sociais e históricos.

Até agora foi possível acompanhar o uso alternado entre Antropologia Social,
Cultural e sociocultural. Agora, é o momento de entender essa variação. Primeiro,
é importante ressaltar que as diferenças entre Antropologia Social e Antropologia
Cultural é basicamente da histórica especialização que elas desenvolveram em
determinados países. Portanto, a explicação para essa variação está na nacionalidade

19
dessas antropologias. A Antropologia Social se desenvolveu sobretudo na Inglaterra,
enquanto a Antropologia Cultural nos Estados Unidos da América. Isso não significa
que esses países são os únicos a desenvolverem essas antropologias. Entretanto, eles
são exemplares para entendermos como se deu essa diferenciação. Entretanto, cabe
mencionar que não há uma separação total entre sociedade e cultura entre essas
tradições. O que acontece é, de fato, um foco e escopo distinto, embora muitas vezes
essas diferenças sejam atenuadas e mesmo rompidas.

Vimos que o paradigma do evolucionismo cultural acabou por trazer para o


âmbito da cultura e da sociedade as explicações sobre as diversidades humanas. Antes,
essa justificativa estava presa em determinismos biológicos e geográficos (LARAIA, 2001).
Isso não significa, como já acompanhamos, que o evolucionismo cultural estivesse livre
de etnocentrismo. Como o próprio nome do paradigma descreve, acreditava-se em uma
língua contínua e evolucionária que acompanharia todas as culturas e sociedades. Há, de
início, uma espécie de uso alternado entre o conceito de sociedade e cultura; cultura e
civilização. Dentre os evolucionistas culturais, dois eram britânicos: Tylor e Frazer.

Tylor, por exemplo, apresentou uns dos primeiros conceitos de cultura. Pelo
menos, um mais próximo do que é utilizado pela antropologia hoje. Para o autor:

Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico,


é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte,
moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos
adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade. A
situação da cultura entre as várias sociedades da humanidade, na
medida em que possa ser investigada segundo princípios gerais, é
um tema adequado para o estudo de leis do pensamento e da ação
humana. De um lado, a uniformidade que tão amplamente permeia
a civilização pode ser atribuída, em grande medida, à ação uniforme
de causas uniformes; de outro, seus vários graus podem ser vistos
como estágios de desenvolvimento ou evolução, cada um resultando
da história prévia e pronto para desempenhar seu próprio papel na
modelagem da história do futuro (TYLOR, 2005, p. 31).

Vamos nos ater ao fato de que Tylor acionava, já nesse conceito, uma relação
entre sociedade e cultura. Outro aspecto importante é que essa definição mostra como
funcionou o evolucionismo cultural. Tylor utiliza o conceito no singular, como sinônimo
de civilização, diferente do que a Antropologia Cultural norte-americana fará (CASTRO,
2005). Tylor, portanto, considerava a cultura como um efeito único e hierárquico.

No caso de Frazer, ainda dentro do mesmo paradigma, temos um detalhe


que deve ser enfatizado. Foi Frazer que assumiu, pela primeira vez, uma cadeira de
Antropologia Social em uma universidade. Isso aconteceu em 1908, tendo Frazer
proferido uma palestra intitulada “O escopo da Antropologia Social” na Universidade
de Liverpool, onde recebeu a cadeira para ministrar. Ali, Frazer especulava sobre a
Antropologia Social e como ela se relacionava, ou se distanciava, de outras ciências.

20
Na verdade, poder-se-ia sustentar, com alguma razão, que a Antro-
pologia Social, ou o estudo do homem em sociedade, é apenas uma
outra expressão para Sociologia. No entanto, penso que as duas ci-
ências podem ser convenientemente distinguidas e que, enquanto o
nome Sociologia deve ser reservado para o estudo da sociedade hu-
mana no mais abrangente sentido das palavras, o nome Antropologia
Social pode, com vantagem, ser restringido a um departamento par-
ticular daquele imenso campo de conhecimento. Pelo menos, desejo
deixar perfeitamente claro, de início, que eu, por exemplo, não pre-
tendo tratar da totalidade da sociedade humana, passada, presente
e futura. Que o escopo mental e a amplitude de conhecimento de um
único homem sejam suficientes para tão vasto empreendimento, isso
não me atrevo a dizer, mas o que digo, sem hesitação ou ambigüi-
dade, é que, no meu caso, certamente não são. Posso falar apenas
sobre o que estudei, e meus estudos, em sua maior parte, estiveram
limitados a uma parcela pequena, muito pequena, da história social
do homem. Essa parcela corresponde à origem, ou melhor, às fases
rudimentares, à infância e à meninice da sociedade humana, e a ela,
portanto, proponho que se restrinja o escopo da Antropologia Social
ou, de qualquer modo, meu tratamento dela (FRAZER, 2005, p. 47).

Apesar de parecer estranho para grande parte da comunidade antropológica,


de fato uma parte da antropologia social britânica inseria a disciplina como fazendo
parte da sociologia, sendo, aliás, algo menor, um subcampo daquela disciplina. Ora,
como estamos acompanhando aqui, a antropologia tem preocupações bem amplas,
com diversas subáreas, sendo difícil manter essa tese. Entretanto, para Frazer, assim
como Radcliffe-Brown (1881-1955), outro antropólogo inglês que ajudará a desenvolver
a antropologia social moderna, essa disciplina é uma parte da sociologia. Parte porque se
interessa pelas sociedades “primitivas”, “tradicionais”, “simples”, “selvagens”. São muitas
as palavras utilizadas pela antropologia dessa época. Todas etnocêntricas. Mas como
acompanhamos no trecho de Frazer, o que se acreditava era que essas sociedades
representavam a infância das sociedades modernas e ocidentais, ou seja, as sociedades
adultas. O escopo da antropologia social seria, portanto, estudar essas sociedades,
assim, seria possível compreender mais de nossas origens, e da humanidade em geral.

Não por outro motivo, a religião dessas sociedades ditas primitivas, muito
interessaram a esses estudiosos da antropologia. Acreditava-se que ao se debruçar sobre
religiões animistas, fetichistas, “primitivas”, se compreenderia não apenas essa parcela
da humanidade, como toda ela. Na prática, o que acontecia era uma supervalorização
dos elementos do homem moderno, ocidental e branco, incluindo a sua religião.

Assim, esses dois ajudaram a construir a Antropologia Social, embora Tylor


também seja apontado como um fundador da Antropologia Cultural. Mas fato é que Tylor
nunca deixou de se interessar pelos assuntos que a Antropologia Social tanto dedicou
para aprofundar: instituições sociais, organização social e relações de parentesco. Como
já sabemos, Radcliffe-Brown ajudou a desenvolver a moderna Antropologia Social:
focada em trabalho de campo entre as sociedades ditas primitivas.

21
A tarefa da Antropologia Social era desenvolver “estudos geralmente de caráter
sincrônico em que se procuram relacionar técnicas, costumes, instituições, crenças,
valores de uma mesma sociedade, ou encontrar princípios que valham para todas
as sociedades” (MELATTI, 2007, p. 5), que se não servissem de fato para todas as
sociedades humanas, que fossem pelo menos entre os mesmos tipos de sociedade
(idem). Desta maneira, a Antropologia Social se moderniza e estabelece esse foco,
com a ajuda de uma comunidade antropológica, evidentemente. Nesse momento, são
importantes as antropologias sociais desenvolvidas pelo próprio Radcliffe-Brown, mas
também Bronislaw Malinowski (1884-1942) e seus alunos e continuadores, tais como
Evans-Pritchard (1902-1973), Raymond Firth (1901-2002), Edmund Leach (1910-1989).

A Antropologia Cultural é uma tradição norte-americana e está ligada ao modelo


de formação da antropologia naquele país. Embora hoje a situação seja diferente, o
contexto de formação a antropologia e sua modernização no século XX nos Estados
Unidos teve como legado a institucionalização de departamentos que tentavam
apresentar os quatro subcampos da disciplina, quando não todos, ao menos mais de um
deles. É impossível falar de antropologia cultural sem mencionar o nome de Franz Boas
(1858-1942), alemão erradicado nos Estados Unidos. Boas combateu o evolucionismo
cultural e as teorias racistas de sua época.

Nos conta, Celso Castro (2005), sobre a atuação do antropólogo:

É preciso observar, no entanto, que a principal contribuição para a


antropologia cultural não foi como formalizador de teorias; seu papel
foi acima de tudo o de crítico de teorias então consagradas, como
o evolucionismo e o racismo. Com isso, abriu caminho para que
outros antropólogos – muitos deles, seus alunos – desenvolvessem
as implicações decorrentes da percepção da relatividade das formas
culturais sob as quais os homens têm vivido (CASTRO, 2005, p. 18).

Franz Boas, por exemplo, atacou o evolucionismo cultural, que ele denominava
de “método comparativo”. A principal preocupação de Boas quanto ao método dos
evolucionistas, era a sua tendência para com a generalização. Afinal, esse paradigma
teórico, como já apresentamos, acreditava piamente que era possível deduzir uma única
linha evolutiva na cultura humana. Aliás, cultura no singular é, justamente, aquilo que
melhor descreve essa linha interpretativa. Portanto, Boas apostava que não era possível
afirmar, cientificamente, essas grandes generalizações, unido as mais variadas culturas
humanas em uma “camisa-de-força teórica” (CASTRO, 2005, p. 16). Portanto, em 1866,
Franz Boas já apresentava “As limitações do método comparativo da antropologia”,
afirmando que a antropologia deveria desenvolver um método indutivo e empírico, para
escapar dessa amarra teórica que generalizava. Com essa tendência, Boas passou a
desenvolver um argumento de que cada cultura poderia ser pensada em si mesma, a
partir também, das relações que estabelecia com outras culturas e dimensões da vida:
o ambiente e o tempo, por exemplo.

Com isso, nos aproximamos do conceito de cultura desenvolvido por Franz


Boas e aprimorado, modificado e transformado por suas discípulas e seus discípulos:

22
A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um relativis-
mo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento de que cada
ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura em que cresceu
- em uma expressão que se tornou famosa, ele disse que estamos
acorrentados aos "grilhões da tradição". O antropólogo deveria procurar
sempre relativizar suas próprias noções, fruto da posição contingente
da civilização ocidental e de seus valores (CASTRO, 2005, p. 18).

Com isso, Franz Boas ajuda a constituir o espírito da antropologia cultural e


sociocultural moderna. Valorização da diversidade cultural, desenvolvimento de um
método indutivo e etnográfico e intensificação do relativismo como paradigma e ética.
No aspecto da pesquisa empírica e etnográfica, Franz Boas e Malinowski se aproximam
no que tange ao valor do trabalho de campo e da etnografia. Afinal, conforme veremos
no último tópico desta Unidade, Malinowski, uns dos principais desenvolvedores da
Antropologia Social britânica, é considerado, também, uns dos grandes nomes do
estabelecimento da pesquisa de campo e da etnografia moderna.

Relativismo cultural, pesquisa empírica e etnográfica entre culturas diferentes e


distantes da ocidental, portanto, fazem com que a Antropologia Cultural aconteça, tam-
bém, nesses pressupostos boasianos e continuados pela sua comunidade de discípulo,
destacando-se vários nomes, tais como Ruth Benedict (1887-1948), Margaret Mead (1901-
1978), Zora Hurston (1891-196), Alfred Kroeber (1876-1960), Edward Sapir (1884-1939).

Apesar das diferenças entre Antropologia Social e Cultural, por conta de suas
formações nacionais e foco empírico, a Antropologia Social não renuncia à noção de
cultura, nem vice-versa. Os conceitos continuam centrais, embora apresentem focos
e posições diferentes. Portanto, “O conceito de sociedade (e de social) parece prestar-
-se mais a uma percepção mecânica do mundo humano, pois ele põe claramente pro-
blemas de inter-relação entre grupos, segmentos, pessoas, papéis sociais” (MATTA,
1981, p. 55), daí a importância dos temas da organização social, das instituições, das
relações de parentesco. A religião, por exemplo, quando surge nessa vertente social
e funcionalista, tende a ser justificada como um elemento que organiza e estrutura a
social (enquanto instituição).

Por outro lado, “A noção de cultura permite descobrir uma série de dimensões
internas ligadas ao modo como cada papel é vivenciado, além de indicar as “escolhas”
que revelam como este grupo difere daquele na sua atualização como uma coletividade
viva” (MATTA, 1981, p. 56). Nesse sentido, a cultura é dimensionada como uma espécie
de conteúdo vivo da sociedade e sua organização social. De qualquer maneira, como já
bem definido, sociedade e cultura permanecem conceitos centrais para a antropologia,
tendo inclusive, sofrido muitas críticas e reelaborações.

23
2.1. BREVE COMENTÁRIO SOBRE O TEMPO E A ARQUEOLOGIA
Até aqui, acompanhamos como as dimensões sociais e culturais são basilares
para a antropologia. Agora, peço licença para meus colegas da arqueologia para ser
muito breve. Como já deixamos bem definido, por questão de espaço e possibilidade, a
nossa ideia não é desenvolver uma história da antropologia nem de seus subcampos.
Sabemos, também, que a Arqueologia é tão desenvolvida que pode ser pensada
fora do campo da Antropologia, sendo uma irmã da disciplina, e não uma filha, se
quisermos utilizar a metáfora familiar e hierarquizante. Basicamente, a Arqueologia lida
com a dimensão do tempo, que conforme já estudamos, acaba saindo de evidência
na Antropologia Social britânica, que enfatiza pesquisas sincrônicas e empíricas de
instituições e organizações sociais. O tempo é importante para a corrente boasiana de
cultura, evidentemente, por considerar como as culturas são atravessadas pelo tempo,
mas não é fundacional quanto o é para a Arqueologia.

Recorreremos, mais uma vez, a Roberto da Matta para expressar o que é a


Arqueologia e como ela se relaciona com os demais campos da antropologia:

O arqueólogo trabalha por meio de especulações e deduções, numa


base comparativa, balizando sistematicamente seus achados do pas-
sado com o conhecimento obtido pelo conhecimento contemporâneo
de sociedades com aquele mesmo grau de complexidade social. Seu
trabalho segue, então, em linhas gerais, o mesmo ritmo daquele reali-
zado pelo etnólogo ou antropólogo social (ou cultural), só que ele estu-
da uma população que somente existe pelo que foi capaz de ter cris-
talizado em materiais não-perecíveis. Como o homem é o único animal
que tem essa fantástica capacidade projetiva, pois ele efetivamente
se projeta (projeta seus valores e ideologias) em tudo o que concretiza
materialmente, toda sociedade humana deixa sempre algum vestígio
das suas relações sociais e valores naquilo que usou, negociou, adorou
e entesourou com ganância, sabedoria ou generosidade ao longo dos
tempos. É porque os homens são assim que a esfera do conhecimento
arqueológico é possível (MATTA, 1981, p. 31).

Por se interessar em reconstituir a vida social de sociedades antigas a partir de


seu vestígio material, que a Arqueologia se aproxima da Antropologia, embora em seu
período formativo, a Antropologia sociocultural tenha se afastado do tempo. Entretanto,
essa é uma história para outra hora.

Cabe reforçar um ponto. Nossa mente colonizada tende a imaginar que a


Arqueologia se interesse apenas por sociedades antigas e clássicas, tais como as
sociedades grego-romana, egípcia, da mesopotâmia e daí por diante. As consideradas
“grandes civilizações”. Mas a Arqueologia se interessa por qualquer sociedade humana
que tenha deixado vestígio ao longo do tempo.

A Arqueologia é bem desenvolvida no Brasil, existindo em diversos programas


de graduação e pós-graduação. Também se interessa por sociedades indígenas antigas,
de muito antes do Brasil existir enquanto país, ou seja, antes da colonização portuguesa

24
(FAUSTO, 2000). A Arqueologia feita no Brasil, em diálogo com a etnologia indígena
e a Etno-história, tem mostrado a complexidade social, a diversificação de grupos e
nações indígenas que habitaram as Américas, os seus complexos integrados de relação
mercantil e guerreira, enfim, tem demonstrado que do pouco conhecemos das Américas
antes da colonização, é possível afirmar a que nunca existiu simplicidade e ausência de
transformação social e histórica na América indígena.

INDICA
Para você conhecer um pouco mais de Arqueologia, sugiro a consulta do site
da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Fundada em 1980, essa instituição
agrega muitas importâncias. Você poderá desvendar um pouco mais da
Arqueologia e de sua estrutura no Brasil. Basta visitar o site em: https://
www.sabnet.org/. Ali, você poderá visitar e conhecer, também, a Revista de
Arqueologia. Caso tenha ficado uma curiosidade maior sobre a Arqueologia
Brasileira, que tal consultar o livro de mesmo título, justamente Arqueologia
Brasileira, de André Prous (1992)?

3 BIODIVERSIDADE E SOCIOBIODIVERSIDADE
Ao longo dessa unidade, acompanhamos como a Antropologia Física teve
centralidade na história da Antropologia, com o desenvolvimento relativamente posterior
da Antropologia Social e Cultural. Mostramos o quanto a Antropologia Física ficou
restrita em um vocabulário e paradigma racista. Entretanto, como era de se esperar,
a Antropologia Física também passou por suas transformações, afinal, não poderia
continuar se sustentando em uma perspectiva pseudocientífica, tendo ficado cada
vez mais próxima dos estudos da diversidade de populações humanas, a diversidade
genética e a sociobiodiversidade.

A Antropologia Física, como podemos imaginar, em seus primórdios metodo-


lógicos, executava técnicas de pesquisas invasivas, além disso, estava fundamentada
em um racismo pseudocientífico. Medição de crânios, assim como outros elementos do
fenotípico, ou seja, a aparência física, foram utilizados para distinguir e hierarquizar os
grupos humanos em raças (KEULLER, 2008, SÁ et al., 2008).

A antropologia física buscava, sobretudo nos crânios, nos ossos e nas


análises morfométricas entender as diversidades visualizadas entre
os grupos humanos. Da segunda metade do século XX em diante,
a diversidade continua a ser o pano de fundo de todos os estudos
antropológicos, porém agora não mais como forma de reificar as
diferenças entre as supostas "raças", mas buscando entender de que
forma a seleção natural e a cultura fazem com que os seres humanos
sejam singulares, como as diferentes sociedades lidam com essas
variabilidades e quais os impactos destas no cotidiano dos indivíduos
e grupos (MÜLLER; SILVA, 2019, p. 52).

25
Portanto, podemos observar que no século XX há uma transformação na
Antropologia Física. Com o desenvolvimento da biologia, se aproxima da perspectiva
da evolução humana, no sentido processual, na maioria das vezes, buscando escapar
dos determinismos e racismos anteriormente defendidos. Nesse aspecto, a interação
entre cultura e biologia é importante, criando conceitos tais como o de biossocial e
sociobiodiversidade.

Assim, no século XX, sobretudo a partir da década de 1950, a antropologia física


passa por profundas transformações, sendo denominada, a partir daí de maneira cada vez
mais definitiva, de antropologia biológica (MÜLLER; SILVA, 2019). No caso do Brasil, há um
programa de pós-graduação na Universidade Federal do Pará, que é em Antropologia e
agrega a antropologia em sua vertente biológica, sociocultural e arqueológica. A antropolo-
gia biológica é mais denominada, nesse curso, de “bioantropologia” (MÜLLER; SILVA, 2019).

Cabe falar um pouco desse Programa de Pós-Graduação em Antropologia,


desenvolvido na Universidade Federal do Pará, portanto, em contexto amazônico. Ali, a
bioantropologia também encontra espaço para se desenvolver em cursos de mestrado
e doutorado.

Nesse programa, a antiga antropologia física, determinista e métri-


ca, que buscava reificar diferenças entre «raças» humanas, passou
a apresentar uma nova abordagem, mais abrangente, preocupada
em qualificar profissionais para atuar de forma interdisciplinar com a
arqueologia, a antropologia social, as ciências sociais e biomédicas.
Assim, esses profissionais seriam capazes de contribuir na escava-
ção e investigação de sítios arqueológicos e paleoantropológicos; na
interação com pesquisadores interessados nos dispositivos biosso-
ciais que originam doenças entre populações tradicionais e grupos
vulneráveis, possibilitando o desenvolvimento de políticas públicas
para estes temas; em estudos sobre as relações entre biodiversida-
de e sociodiversidade; em questões relacionadas à ética e bioética
das pesquisas envolvendo seres humanos e, também, em perícias na
área de antropologia genética e forense (MÜLLER; SILVA, 2019, p. 55).

Importante observamos o quanto essa nova antropologia biológica, ou


bioantropologia, aciona perspectivas interdisciplinares, aproximando-se da própria
antropologia sociocultural e arqueológica também que tendem a ser praticadas em
relação com outros campos de conhecimento.

Conforme nos relembra Roberto Da Matta, a antropologia biológica trabalha


em um eixo “verdadeiramente planetário e cósmico” (MATTA, 1981, p. 35). Pois nela,
“especulamos sobre mudanças intrínsecas do corpo e do cérebro humanos, apreciando
por comparação com os animais as conquistas realizadas por esse primata superior que
acabou tão diferenciado” (MATTA, 1981, p. 35-36). Esse campo da ciência é também o
lugar para apresentar as especificidades do animal humano em relação a tantos outros
viventes. Como já sabemos, umas dessas características especiais é a possibilidade de
simbolizar e produzir cultura.

26
A Antropologia Biológica, como estamos acompanhando, se desenvolveu em
contato interdisciplinar. A sua relação com a antropologia cultural, a arqueologia e a
antropologia linguística aceleram e produziram algumas hipóteses sobre a experiência
humana. Os outros subcampos também se aproveitam dessa proximidade. Como
já comentamos, Clifford Geertz, por exemplo, especulou, ao dialogar com a evolução
humana e a antropologia biológica, que a cultura não surgiu do nada, sendo ela coetânea
com o desenvolvimento cerebral do gênero homo.

Lembrando a hipótese de que a cultura é aspecto fundamental para a condição


da existência humana, Geertz desenvolve essa perspectiva, que evidenciaremos aqui
para efeito didático:

Na antropologia, algumas das evidências mais reveladoras que apoiam


tal posição provêm de avanços recentes em nossa compreensão
daquilo que costumava ser chamado a descendência do homem: a
emergência do Homo sapiens do seu ambiente geral primata. Três
desses avanços são de importância relevante: (1) o descartar de
uma perspectiva sequencial das relações entre a evolução física e o
desenvolvimento cultural do homem em favor de uma superposição
ou uma perspectiva interativa; (2) a descoberta de que a maior parte
das mudanças biológicas que produziram o homem moderno, a partir
de seus progenitores mais imediatos, ocorreu no sistema nervoso
central, e especialmente no cérebro; (3) a compreensão de que o
homem é, em termos físicos, um animal incompleto, inacabado; o
que o distingue mais graficamente dos não homens é menos sua
simples habilidade de aprender (não importa quão grande seja ele) do
que quanto e que espécie particular de coisas ele tem de aprender
antes de poder funcionar (GEERTZ, 2015, p. 33-34).

Podemos afirmar que a perspectiva interativa entre os aspectos considerados


biológicos, mas também ecológicos, e as dimensões culturais, sociais e históricas,
são centrais para a bioantropologia e para a antropologia de maneira geral. Para não
perdemos de alcance os fenômenos da religião, a partir dessa perspectiva, pode-se
explicitar que a religião foi uns dos elementos que intensificou e desenvolveu esse
“animal incompleto”, afinal, a religião está associada ao campo da cultura e do social,
portanto, do simbolizar e de compartilhamento de códigos e representações. É sobre o
compartilhamento de uma linguagem que nos ateremos agora.

INDICA
Quer conhecer um pouco mais sobre a bioantropologia e suas relações
com as demais áreas da antropologia? Então você pode acessar o blog
Bioantropologia na Amazônia, organizado e publicado pelo Laboratório de
estudos bioantropológicos em saúde e meio ambiente. Se quiser conferir
algumas pesquisas publicadas na área, você pode acessar o periódico
Amazônica: revista de antropologia.
Consulta em: https://bit.ly/3BSsLqj; https://bit.ly/3rfwc5B.

27
4 O CAMPO DA LINGUAGEM
Há uma espécie de anedota antropológica que diz que Franz Boas resolveu
mudar de carreira (saindo das ciências físicas e geográficas para a antropologia), quando
descobriu que as sociedades inuítes, às dezes denominadas de inuítes, possuíam várias
palavras para distinguir as cores e tonalidades da neve. Independente da veracidade
dessa história, nela encontramos o espírito da antropologia linguística, mostrar,
justamente, as relações entre a linguagem e a natureza, a cultura, a sociedade e a tudo
mais que nos constrói humanos.

Voltaremos a anedota mais tarde. Mas o que é indiscutível é que Franz Boas
ajudou a desenvolver a linguística em sua perspectiva moderna (STOCKING JR., 2004,
p. 193). Foi ele quem também impulsionou o estudo das línguas indígenas americanas,
tendo publicado o Handboock of American Indian Languages, “cujo primeiro volume
saiu em 1911, marcou uma transformação estrutural no método e nos pressupostos
linguísticos americanos, tornando-se o ponto de partida da tradição moderna em
linguística descritiva” (STOCKING JR., 2004, p. 193).

Em linhas gerais, a abordagem linguística de Boas, pelo menos no que concerne


aos estudos das línguas indígenas, considerava que muito do que é a visão de mundo
de grupos culturais, é formado a partir da sua língua. Entretanto, a sua interpretação
não era determinista do ponto de vista linguístico. Portanto, apesar de considerar que
a visão de mundo era condicionada pela língua, a sua compreensão dessa relação era
relativa e contextualizada (STOCKING JR., 2004, p. 195). Além disso, Boas valorizava
a diversidade das línguas indígenas, considerando que elas possuíam várias “formas
internas” (idem). Assim, o princípio da diversidade também é evidente na abordagem
antropológica da língua e da linguagem.

Nesse sentido, a perspectiva de Boas influenciará toda uma geração posterior da


comunidade linguística e antropológica. Em um texto de 1920, Boas, preocupado com “a
vida primitiva”, ou seja, as sociedades não ocidentais que interessavam a antropologia social
e cultural, sobretudo em seus períodos formativos, Boas define uma relação complexa entre
língua e cultura: “Onde quer que as condições primitivas tenham sido estudadas em detalhe,
pode-se provar que elas estão num estado de fluxo, e parece que há um estrito paralelismo
entre a história da linguagem e a história do desenvolvimento cultural geral” (BOAS, 2005, p.
48). O que Franz Boas está dimensionando aqui é que há uma relação interna e complexa,
mas também paralela, ou mesmo analógica, entre as transformações da linguagem e da
cultura. Essa abordagem de Boas era também um chamado para um estudo empírico e
cuidadoso da diversidade linguística encontrada entre civilizações ditas primitivas.

Afinal, como quase tudo que não era ocidental e interpretado sob a lógica do
selvagem e do primitivo, a língua também era considerada de maneira hierárquica,
sendo considerada menos complexa entre essas civilizações denominadas. O que Boas
e a comunidade antropológica linguística fizeram foi desconstruir esse preconceito.

28
A linguagem, evidentemente, ganha centralidade para Boas, mas também para essa
comunidade, porque faz parte de uns dos elementos centrais da experiência humana
(no caso de Boas, seriam linguagem, organização social, religião). O que é relativamente
óbvio para nós. Não podemos pensar fora do campo da linguagem, nem nos expressar
sem um código linguístico.

Edward Sapir (1884-1939), conforme já vimos, foi uns dos alunos de Franz Boas
e uns dos principais antropólogos a se dedicar ao campo da linguagem. Em um artigo
proeminente, intitulado “Língua e ambiente”, Sapir define a um só tempo a língua e a
sua relação com o ambiente. A língua, portando, é definida como: “um complexo de
símbolos refletindo todo o quadro físico e social em que se acha situado um grupo
humano, convém compreender no termo ‘ambiente’ tanto os fatores físicos como os
sociais” (SAPIR, 1969, p. 44).

O ambiente, para Sapir, vai se relacionar com a língua, mas de uma maneira
muito específica. Segundo a melhor tradição boasiana, ele não vai estabelecer uma
relação determinística entre língua, ambiente e cultura. Ambiente, portanto, para Sapir,
em grande medida, pode ser considerado como fruto de “forças sociais”, ou seja, aquilo
que apesar de fazer parte do meio, é transformado por conta de tais forças. Por outro
lado, considera que: “De maneira geral, é melhor empregar o termo ‘ambiente’ apenas
quando se faz referência a influências, principalmente de natureza física, que escapam
à vontade do homem” (SAPIR, 1969, p. 44). O ambiente, portanto, que articula aspectos
físicos e sociais, e que se relacionará com a língua, terá, sim, uma atuação, porém, não
de forma determinada. Assim, o ambiente físico, geralmente, só atua sobre a língua
quando esse aspecto físico é modelado por “forças sociais”.

É assim que Sapir exemplifica essa relação, ao supor uma suposta interação
entre um animal e uma cultura/linguagem:

A mera existência, por exemplo, de uma espécie animal no ambiente


físico de um povo não basta para fazer surgir um símbolo linguístico
correspondente. É preciso que o animal seja conhecido pelos mem-
bros do grupo em geral e que eles tenham nele algum interesse, por
mínimo que seja, antes da língua da comunidade ser levada a repor-
tar-se a esse elemento particular físico. Em outras palavras, no que
concerne à língua, toda a influência ambiental se reduz, em última
análise, à influência da parte social do ambiente (SAPIR, 1969, p. 45).

Nessa antropologia da linguagem, Sapir considera como elementos centrais


da língua os aspectos do léxico (o assunto ou conteúdo da língua), o sistema fonético
(os sons que são emitidos para produzir as palavras), e a forma gramatical (processos
formais e de classificação da língua) (SAPIR, 1969). O léxico, nesse sentido, por exemplo,
estaria bem próximo do ambiente físico, embora não determinado por ele. Assim, Sapir
explora como se relaciona o léxico de populações costeiras e o seu interesse com o mar
e animais marinhos, por exemplo.

29
É aí que podemos relembrar da anedota de Boas e os muitos termos para
neve para os inuítes. Entretanto, o tempo e a comunidade antropológica e linguística
acabaram por fazer uma hipérbole com a experiência de Boas entre as sociedades
inuítes. Boas, conforme veremos no último tópico dessa unidade, fez os seus primeiros
trabalhos de campo entre essas sociedades. No já citado Handboock of American Indian
Languages, Boas elencava apenas quatro palavras para neve (MARTIN, 1986). Apesar do
exagero que foi criado em cima desse fato, não se tira a importância e a complexidade
das relações entre cultura, ambiente e linguagem. Lembrando que para a antropologia,
essas relações nunca são determinísticas, ou seja, não podem ser explicadas em línguas
de casualidades simples, podendo ser pensadas, sim, a partir de intricadas, dinâmicas e
complexas redes de interrelações.

INDICA
A ficção científica é um campo muito inventivo e interessante para pensarmos sobre a
nossa experiência humana. Há um filme que pode nos auxiliar na compreensão de como
a nossa linguagem influencia elementos básicos de nossa vida, inclusive, a maneira como
estabelecemos e criamos o nosso tempo. Estou falando do filme A chegada (Arrival), de
2016, dirigido por Denis Villeneuve. O filme é uma adaptação de um conto do escritor Ted
Chiang. No filme, seres extraterrestres entram em contato com a Terra e deixam marcas
que podem ser compreendidas enquanto linguagem. Para interpretar esses códigos
alienígenas, o governo convoca a mais proeminente antropóloga linguística de seu tempo.

No Brasil, a antropologia linguística, ou apenas a linguística, com interesse


antropológico, tem se dedicado ao estudo das línguas indígenas, embora os estudos nunca
sejam o suficiente diante da complexidade que é a situação linguística no Brasil. Hoje,
diversos povos e lideranças indígenas, militam para que a revitalização de suas línguas

30
se torne uma prática de política pública, considerando que o idioma é uns dos elementos
basilares para a continuidade de suas sociedades, embora ela, a língua, não possa ser
considerada como parâmetro definidor de um marcador de identificação indígena.

Assim, define a linguagem o antropólogo Baniwa Gersem Luciano (2017):

A linguagem é uma das capacidades criadoras mais impressionantes


e impactantes da humanidade. É o meio pelo qual os seres humanos se
humanizam entre si, ou seja, ao mesmo tempo em que as identificam
entre si, também as distinguem dos outros animais. No entanto, essa
distinção não significa, de modo algum, hierarquização, uma vez que
em termos de capacidade de comunicação ou linguagem, todos os
seres são iguais. Assim, para os Baniwa é também o meio pelo qual
se comunicam com outros seres do mundo e com o próprio mundo,
uma vez que, para eles, a comunicação entre os seres é o segredo
para o equilíbrio do mundo cósmico (LUCIANO, 2017, p. 296).

Nessa perspectiva, segundo Gersem Luciano (2017), a escola indígena, também


como política pública, auxiliaria, quando possível, no processo da revitalização da língua
indígena. Assim, pudemos acompanhar a quão intrincada e complexa é a relação entre
cultura, linguagem, ambiente e outros elementos da vida.

31
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Aprendemos que a antropologia, apesar de suas diversas maneiras de compreender


o humano, apresenta uma certa unidade. Entretanto, para que a pesquisa científica
fosse possível, especializou-se em diversos subcampos. Assim, pudemos nos apro-
fundar na centralidade dos fenômenos sociais e culturais, distinguindo, em deter-
minado momento, o que seria a Antropologia Social e Antropologia Cultural. Além
disso, mergulhamos na dimensão da temporalidade e como a relação com o tempo
foi um fator predominante para a Antropologia Social e Cultural, sendo, o tempo e o
vestígio material deixado pela humanidade ao longo do tempo, a principal matéria
de estudo da Arqueologia, ou de uma antropologia em vertente arqueológica.

• Iniciamos nossa trajetória com a Antropologia compreendendo o papel da Antro-


pologia Física na constituição dessa disciplina enquanto ciência. Entretanto, sou-
bemos que até o século XIX e até um período do século XX, a Antropologia em sua
dimensão física e biológica estava embasada em um paradigma racista, portanto,
pseudocientífico. Acompanhamos como no século XX e a transição de Antropolo-
gia Física para Antropologia Biológica, ou bioantropologia, essa ciência passou a se
interessar pela evolução humana do ponto de vista genético, também levando em
consideração a nossa diversidade, que geralmente é pensada a partir de uma arti-
culação biológica e social, assim, conceitos como: biossocial e sociobiodiversidade
passam a fazer parte do escopo de pesquisa e análise da bioantropologia.

• A linguagem é tão importante para a formação do que é o humano e a humanidade,


que é quase um clichê reforçar isso. Mas tente pensar sem articular nenhuma
expressão e código linguístico? Pensar em um silêncio idiomático, apenas com
símbolos, imagens e outras possibilidades. Tentou? Parece impossível, e de fato o
é. A Antropologia Linguística ou a Linguística com inspiração antropológica, tentou
mostrar como a diversidade humana se expressa também no campo da linguagem,
além disso, tentou compreender como a experiência da língua e da comunicação
nos formou e são fundamentais para que possamos nos expressar, nos comunicar,
nos compreender, mas também nos desentender. Questões como políticas públicas
para a promoção da diversidade e troca linguística e o direito a aprender e se
expressar em sua língua tradicional, como é o caso dos povos indígenas, inspiram a
Antropologia Linguística.

32
AUTOATIVIDADE
1 A moderna Antropologia Social foi desenvolvida na Inglaterra. Apesar de James Frazer,
considerado como um antropólogo de gabinete, ter assumido a primeira cadeira
com esse nome em uma universidade, são nomes da próxima geração, tais como
Radcliffe-Brown e Malinowski, que fundamentaram a Antropologia Social com base
no trabalho de campo intensivo e científico. Sobre esse momento da Antropologia
Social, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A Antropologia Social britânica se interessava, sobretudo, pela reconstituição


histórica de sociedades primitivas, extintas por causa do contato colonial.
Baseava-se no método comparativo e etnográfico.
b) ( ) A etnografia subjetiva, alinhada com a sensibilidade artística, era o fundamento da
Antropologia Social. O seu método valorizava o artesanato intelectual e o recurso
da história biográfica, na medida em que ignorava a visão positivista de ciência.
c) ( ) A antropologia desse período passou a ser conhecida como estrutural e/ou es-
trutural-funcionalista, por valorizar a pesquisa etnográfica sincrônica, conside-
rando ser possível conhecer uma sociedade a partir de suas instituições e suas
interrelações.
d) ( ) Bronislaw Malinowski foi um continuador direto de Frazer. Por isso, Frazer assinou
o prefácio da obra mais conhecida do antropólogo polonês.

2 A Antropologia Cultural obteve forma, especialmente, nos Estados Unidos da América.


O alemão Franz Boas foi a figura central na institucionalização e modernização da An-
tropologia naquele país, que reuniu, em um só departamento, diversos profissionais da
área da antropologia, que antes estavam separadas em outros departamentos. Sobre
essa antropologia e o conceito de cultura boasiano, analise as sentenças a seguir

I- A antropologia cultural de Franz Boas deslocou a centralidade da raça para o estudo


da cultura. Assim, a diversidade humana seria compreendida a partir das suas
diversas culturas, e não características supostamente raciais.
II- O particularismo histórico é uma perspectiva que considera que cada cultura tem a
sua própria história. Assim, as relações entre cultura e história são complexas e não
lineares.
III- A pesquisa de campo desenvolvida por Franz Boas focava na interação do etnógrafo
com o grupo estudado, sem acontecer uma interação interdisciplinar. Além disso, o
campo deveria acontecer ao longo de um ano ininterrupto.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.

33
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A linguagem e a cultura são fenômenos interdependentes. Partindo da perspectiva


antropológica sobre esses fenômenos, classifique V para as sentenças verdadeiras e
F para as falsas:

( ) Podemos dizer que a diversidade linguística é tão importante quanto a diversidade


cultural.
( ) A antropologia, apesar de reconhecer a diversidade linguística, não desenvolveu
nenhum método próprio e antropológico para analisar essa diversidade.
( ) A antropologia de inspiração linguística apresenta aspectos centrais da língua,
tais como o léxico, o fonético e a gramática, como relacionais e constitutivos de
fenômenos culturais, tais como a nossa relação com o tempo e o ambiente, por
exemplo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A Antropologia é uma ciência que tenta compreender a humanidade em seus


mais distintos aspectos. Comente qual foi o evento fundamental que constituiu as
preocupações da antropologia, elencando os principais subcampos da disciplina,
assim como suas respectivas perspectivas de atuação científica.

5 Apesar da diversidade de métodos e de abordagens antropológicas, pode-se


afirmar que a antropologia, apesar de suas limitações históricas, desconstruiu
determinismos: o geográfico, o biológico e o racial, dentre outros, derivados desses
anteriores. Sabendo disso, discorra como a antropologia consegue articular diversas
dimensões da realidade humana, sem perder de perspectiva as diversas possibilidades
interpretativas do humano.

34
UNIDADE 1 TÓPICO 3 -
A ETNOGRAFIA E A OBSERVAÇÃO
PARTICIPANTE ENQUANTO PRÁTICAS
FUNDAMENTAIS DA ANTROPOLOGIA

1 INTRODUÇÃO
Até agora acompanhamos um pouco da história da antropologia e de seus
subcampos. Passeamos pelas dimensões biológicas, culturais e sociais, históricas
e linguísticas da experiência humana. A partir de agora, vamos começar a afunilar:
focaremos na antropologia social e cultural. Via de regra, usarei indistintamente o
termo antropologia e, quando preciso, alternarei entre antropologia social, cultural e
sociocultural. Como já compreendemos a dinâmica e a multiplicidade dessa ciência,
podemos agora focar no que interessa diretamente a esse livro: a religião enquanto
fenômeno antropológico.

Antes de entrarmos na religião de vez, vamos aprender um pouco mais sobre a


etnografia. Veremos que a etnografia é muito mais do que um método ou uma técnica
de pesquisa, sendo um princípio fundamental para a prática da antropologia como a
conhecemos hoje. Tendo, inclusive, a etnografia se espalhado, sendo praticada por
outras disciplinas. Nem sempre com o mesmo cuidado que a antropologia, mas muitas
vezes trazendo importantes contribuições para a prática da etnografia e a ampliação da
compreensão da experiência humana.

Em “A primazia do trabalho de campo: Boas, Malinowski”, seguiremos nos


aprofundando com personagens que já conhecemos. Acompanharemos como Franz
Boas e Bronislaw Malinowski contribuíram para o desenvolvimento de uma antropologia
empírica, focada na experiência do trabalho de campo, com o uso de métodos e técnicas
direcionados para a observação e participação junto da vida coletiva entre sociedades
de pequena escala, geralmente consideradas como “primitivas”, que hoje tendemos a
denominar de tradicionais ou sociedades não-ocidentais. Não há um nome ideal para
denominar a todas elas, portanto, importante sempre lembrar disso, é fundamental ouvir
como essas sociedades e grupos sociais se denominam.

Já em “A observação participante”, veremos como a observação participante


sai dos escritos de Malinowski (embora ele não utilize o termo), e passa a ser umas das
bases contemporâneas da prática antropológica. Observar enquanto se participa, ou
participar enquanto se observa, torna-se chave de leitura e uma prática de pesquisa
voltada para a ampliação do que conhecemos como experiência humana. Aprender e

35
ampliar a noção que temos sobre a vida social e nós mesmos, vira uns dos objetivos
da antropologia, especialmente a de Tim Ingold, para quem o termo “observação
participante” é mais interessante do que a própria etnografia.

Finalmente, em “A etnografia como fundamento da antropologia”, acompanha-


remos como a etnografia tem sido um fator de rejuvenescimento da disciplina, dialo-
gando com a noção de teoria vivida, da antropóloga Mariza Peirano, assim como outras
perspectivas teóricas que compreendem que a etnografia é o que a antropologia tem de
mais vivo e dinâmico, portanto, sendo o seu próprio coração.

Após esse passeio entre as epistemologias, métodos, técnicas e o próprio


coração da antropologia, teremos um arcabouço mais variado e aprofundado sobre
a antropologia para, finalmente, nos aprofundarmos na religião enquanto fenômeno
humano e estudado pela antropologia, em especial, o que justifica a antropologia da
religião enquanto campo de conhecimento.

2 A PRIMAZIA DO TRABALHO DE CAMPO: BOAS,


MALINOWSKI
Começaremos com Franz Boas. Vamos ler, então, o que François Laplantine tem
a nos dizer sobre Boas, em seu Aprender antropologia (2003).

Com ele assistimos a uma verdadeira virada da prática antropológi-


ca. Boas era antes de tudo um homem de campo. Suas pesquisas,
totalmente pioneiras, iniciadas, notamo-lo, a partir dos últimos anos
do século XIX (em particular entre os Kwakiutl e os Chinook de Co-
lúmbia Britânica), eram conduzidas de um ponto de vista que hoje
qualificaríamos de microssociológico. No campo, ensina Boas, tudo
deve ser anotado: desde os materiais constitutivos das casas até as
notas das melodias cantadas pelos Inuítes, e isso detalhadamente, e
no detalhe do detalhe. Tudo deve ser objeto da descrição mais meti-
culosa, da retranscrição mais fiel (por exemplo, as diferentes versões
de um mito, ou diversos ingredientes entrando na composição de um
alimento) (LAPLANTINE, 2003, p. 58-59).

Pudemos dizer, portanto, que Boas inaugura também uma certa compulsão
etnográfica, quase que o imperativo antropológico de saber e dar conta de tudo.
Evidentemente que nem com esforço coletivo isso é possível, ainda mais entre uma
única pessoa realizando uma pesquisa.

Entretanto, evidenciamos a importância de Boas em ressaltar o detalhe, as


múltiplas variáveis da vida coletiva e, mais ainda, o chamado para nenhuma generalização
fácil. Por conta dessa sua postura metodológica e empírica, lembremos, Franz Boas foi
capaz de contribuir para os diversos campos da antropologia, não somente a social e
cultural. Conforme já lemos anteriormente, as suas pesquisas entre os Kwakiutl e os
Inuítes, localizados no atual Canadá, e os Chinook, nos Estados Unidos da América,
possibilitaram que ele desenvolvesse também a antropologia linguística. Conforme

36
o trecho de Laplantine demonstra, isso não é nenhum milagre, ou um aspecto de
genialidade que se despontava entre as pesquisas antropológicas de seu tempo. Se
deu, simplesmente, porque Boas se apoiava em vasto material etnográfico.

Foi Boas que começou a desenvolver a perspectiva de cada sociedade


enquanto uma totalidade. Assim, qualquer comportamento cultural só passava a ser
compreendido e fazer sentido, se fosse interpretado relacionado ao contexto total de
uma determinada sociedade e cultura. Como acompanhamos com os primórdios do
pensamento antropológico, essa relatividade e interpretação já aparecia em outros
pensamentos e percursores, mas só em Boas que “Pela primeira vez, o teórico e o
observador estão finalmente reunidos” (LAPLANTINE, 2003, p. 59). É quando podemos
dizer que nasceu a etnografia profissional. Afinal, anteriormente, como no evolucionismo
cultural de Tylor, Morgan e Frazer, a antropologia fazia praticamente uma pesquisa de
gabinete, interpretando material escrito e colhido por outras pessoas, que não tinham
passado por um treinamento profissional e etnográfico.

Mesmo a sociologia, uma disciplina que divide muito com a antropologia, forman-
do parte das ciências sociais, não tinha tradição em fazer pesquisas empíricas no sentido
em que estamos falando aqui, do etnográfico, um contato prolongado e continuado com
grupos humanos, a partir de técnicas de observação e registro. Assim, o próprio Durkheim,
de quem já falamos, ao falar sobre as religiões “primitivas” australianas, baseava-se nos
relatos de etnólogos que por si só, já se baseavam em relatos de outras pessoas.

É verdade que antes de Boas e Malinowski, outras pesquisas de campo foram


realizadas, mas esses dois condensaram, muito bem, o espírito da pesquisa etnográfica,
embora cada um a seu modo. Antes disso, veremos o que Laplantine tem a dizer sobre
outras pesquisas empíricas, já realizadas pela comunidade antropológica:

Esse trabalho de campo, como o chamamos ainda hoje, longe de ser


visto como um modo de conhecimento secundário servindo para
ilustrar uma tese, é considerado como a própria fonte de pesquisa.
Orientou a partir desse momento a abordagem da nova geração de
etnólogos que, desde os primeiros anos do século XX, realizou estadias
prolongadas entre as populações do mundo inteiro. Em 1906 e 1908,
Radcliffe-Brown estuda os habitantes das ilhas Andaman. Em 1909 e
1910, Seligman dirige uma missão no Sudão. Alguns anos mais tarde,
Malinowski volta para a Grã-Bretanha, impregnado do pensamento e
dos sistemas de valores que lhe revelou a população de um minúsculo
arquipélago melanésio. A partir daí, as missões de pesquisas etnográ-
ficas e a publicação das obras que delas resultam se seguem em um
ritmo ininterrupto. Em 1901, Rivers, um dos fundadores da antropolo-
gia inglesa, estuda os Todas da Índia; após a Primeira Guerra Mundial,
Evans-Pritchard estuda os Azandés (trad. franc. 1972) e os Nuer (trad.
franc. 1968); Nadei, as Nupes da Nigéria; Fortes, os Tallensi; Margaret
Mead, os insulares da Nova Guiné etc. (LAPLANTINE, 2002, p. 58).

De qualquer forma, a estratégia metodológica de Boas é diferente da de Ma-


linowski, a quem dedicaremos alguns parágrafos logo mais. O trabalho de campo de
Franz Boas não necessariamente era de uma duração tão prolongada e solitário, como

37
será a tradição da antropologia social britânica. A sua pesquisa era colaborativa. Afinal,
lembremos, Boas tinha muitas preocupações e estabelecia contato com linguistas, ar-
queólogos, antropólogos físicos e daí por diante. Portanto, o trabalho de campo acon-
tecia por um longo período, intercalado por intervalos, junto a uma equipe. De qualquer
maneira, isso não significa que Boas não tenha marcado a pesquisa etnográfica, afinal,
deixou um legado diverso para uma comunidade diversa pesquisadora que continuou o
seu trabalho. Em relação ao período da pesquisa de campo, que com uma circularidade
de uma equipe, nos esclarecem Eriksen e Nielsen: “Essa estratégia metodológica talvez
fosse perfeitamente natural, visto que, nos Estados Unidos, ‘o campo’ estava próximo, e
não no outro lado do globo, como na Inglaterra” (ERIKSEN; NIELSEN, 2007, p. 53).

Esse aspecto “natural”, como apontam os dois antropólogos, deve ser


contextualizado. Aliás, é o que estamos fazendo desde o início desta unidade. Como já
sabemos, a antropologia dependeu, em grande medida, da expansão marítima e colonial
para estabelecer as suas pesquisas. Se interessou, portanto, pela diferença apresentada
a partir desse encontro colonial. Se os Estados Unidos (assim como o Brasil) já era,
por si só, uma colônia, mesmo que emancipada, estabelecia com as suas populações
tradicionais e originárias a mesma relação de exploração, genocídio e curiosidade que a
Europa compactuava com as populações de suas colônias ao redor do globo. Assim, os
Estados Unidos e sua antropologia possuía possibilidade de “trabalho de campo” mais
próximo de casa do que a Inglaterra, por exemplo. Essa tensão colonial da antropologia
leva a disciplina a muitos equívocos, mas também a alguns acertos. É o caso de Franz
Boas, que, como já vimos, tem um papel no combate ao racismo e ao etnocentrismo.
Acreditamos que muito de sua contribuição é fruto de seu interesse empírico, da sua
metodologia e do seu respeito aos aspectos da cultura de cada sociedade.

Leiamos, portanto, como Franz Boas encerra uns de seus relatos etnográficos,
resultado de pesquisa junto aos Inuíte da Ilha de Baffin, no Canadá ártico:

Depois de muitas pequenas aventuras, e depois de uma relação


longa e íntima com os esquimós, foi com um sentimento de tristeza
e pesar que me separei de meus amigos árticos. Eu tinha visto que
eles desfrutavam a vida, e uma vida dura, como nós; que a natureza
também é bela para eles; que os sentimentos de amizade também
estão arraigados nos seus corações; que, apesar de levar uma vida
rude, o esquimó é um homem como nós; que seus sentimentos,
suas virtudes e suas deficiências são baseados na natureza humana,
como os nossos (BOAS, 2004, p. 80).

Se Franz Boas desenvolveu a noção de relativismo cultural e de que só podemos


compreender uma cultura em seus próprios termos, além de elaborar uma noção deno-
minada de particularismo histórico, isto é, de associar cultura e história em uma intricada
relação, tão complexa que dificilmente levaria a qualquer generalização, Malinowski de-
senvolveu a pesquisa que seria denominada de observação participante, posteriormente,
além de ter definido um tipo bem específico de pesquisa de campo: de longa duração e
continuada, em sociedades de larga escala, também em um sentido total. Ou seja, em
como determinada sociedade articulava seus elementos internos e funcionava por si só.

38
Em Argonautas do Pacífico Ocidental, publicado originalmente em 1922,
Malinowski estudou o Kula, um “fato social total”, para utilizar o termo do sociólogo
francês Marcel Mauss, que se inspirou na etnografia de Malinowski para cunhá-lo. O
Kula é uma instituição que coloca em relação os mais variados aspectos da vida social
de grupos das Ilhas Trobriand, ilha da Papua Nova-Guiné. O início da obra é dedicado
a fundamentar os aspectos de sua metodologia e como o moderno etnógrafo deve se
portar. Em um desses trechos, estabelece:

Vivendo na aldeia, sem quaisquer responsabilidades que não a de ob-


servar a vida nativa, o etnógrafo vê os costumes, cerimônias, transa-
ções etc., muitas e muitas vezes; obtém exemplos de suas crenças,
tais como os nativos realmente as vivem. Então, a carne e o sangue
da vida nativa real preenchem o esqueleto vazio das construções abs-
tratas. É por esta razão que o etnógrafo, trabalhando em condições
como as que vimos descrevendo, é capaz de adicionar algo essencial
ao esboço simplificado da constituição tribal, suplementando-o com
todos os detalhes referentes ao comportamento, ao meio ambiente e
aos pequenos incidentes comuns. Ele é capaz, em cada caso, de es-
tabelecer a diferença entre os atos públicos e privados; de saber como
os nativos se comportam em suas reuniões ou assembleias públicas e
que aparência elas têm; de distinguir entre um fato corriqueiro e uma
ocorrência singular ou extraordinária; de saber se os nativos agem em
determinada ocorrência com sinceridade e pureza de alma, ou se a
consideram apenas como uma brincadeira; se dela participam com to-
tal desinteresse, ou com dedicação e fervor (MALINOWSKI, 1976, p. 33).

Observando essa citação, podemos relacionar esse sentido de totalidade que


aparece tanto em Boas quanto em Malinowski. Mas no caso do antropólogo polonês, há
uma obsessão mais detalhada de método e com o tempo dedicado para a pesquisa. Além
disso, a sua perspectiva de “aldeia” e “vida tribal” enquanto possibilidade empírica de ser
capturada pelo etnógrafo, o leva a pensar quase sempre em sociedades localizadas em
ilhas e relativamente isoladas. Ou seja, na realidade, faz com que Malinowski ignore, na
maior parte do tempo, a influência colonial britânica e europeia.

Podemos estabelecer muitas críticas a Malinowski. Mas acompanharemos


como Laplantine resumiu, em quatro pontos, as contribuições de Malinowski. As
apresentaremos, aqui, de maneira resumida.

Quadro 1 – As contribuições de Malinowski

1) Compreendendo que o único modo de conhecimento em profundidade dos outros e


a participação a sua existência, ele inventa literalmente e é o primeiro a pôr em prática
a observação participante, dando-nos o exemplo do que deve ser o estudo intensivo
de uma sociedade que nos é estranha. O fato de efetuar uma estadia de longa duração
impregnando-se da mentalidade de seus hóspedes e esforçando-se para pensar em
sua própria língua pode parecer banal hoje.

39
2) Em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, pela primeira vez, o social deixa de ser
anedótico, curiosidade exótica, descrição moralizante ou coleção exaustiva erudita. Pois,
para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é preciso dedicar-se à observação
de fatos sociais aparentemente minúsculos e insignificantes, cuja significação só pode
ser encontrada nas suas posições respectivas no interior de uma totalidade mais ampla.
Assim, as canoas trobriandesas [...] são descritas em relação ao grupo que as fabrica e
utiliza, ao ritual mágico que as consagra, às regulamentações que definem sua posse, etc.
Algumas transportando de ilha em ilha colares de conchas vermelhas, outras, pulseiras
de conchas brancas, efetuando em sentidos contrários percursos invariáveis, passando
necessariamente de novo por seu local de origem, Malinowski mostra que estamos frente
a um processo de troca generalizado, irredutível à dimensão econômica apenas, pois nos
permite encontrar os significados políticos, mágicos, religiosos, estéticos do grupo inteiro.
3) Finalmente, uma das grandes qualidades de Malinowski é sua faculdade de restituição
da existência desses homens e dessas mulheres que puderam ser conhecidos apenas
através de uma relação e de uma experiência pessoais. Mesmo quando estuda
instituições, não são nunca vistas como abstrações reguladoras da vida de atores
anônimos. Seja em Os Argonautas ou Os Jardins de Coral [outra obra do autor], ele faz
reviver para nós esse povo trobriandês que não poderemos nunca mais confundir com
outras populações “selvagens”. O homem nunca desaparece em proveito do sistema.
Ora, essa exigência de conduzir um projeto científico sem renunciar à sensibilidade
artística chama-se etnologia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a
olhar, mas a escrever, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor.
Fonte: adaptado de Laplantine (2002)

Agora, nos ateremos em cada um desses pontos. Primeiro, como já explicitamos,


Malinowski não escreve o termo observação participante em Argonautas. Entretanto,
conforme acompanharemos no próximo tópico, consolida essa metodologia. Cabe refor-
çar que o tipo de campo que Malinowski desenvolve é fundamentado em uma pesquisa
de longa duração e continuada, junto a sociedades de pequena escala, especialmente
localizadas em ilhas. No ponto 2, podemos acompanhar como Malinowski contribuiu para
reforçar a ânsia da antropologia de abarcar tudo, ou seja, conhecer todos os detalhes e
suas variedades. Sabemos que isso é impossível, entretanto, a chamada de atenção para
o micro e a interação da vida cotidiana, assim como podemos inserir esses elementos
dentro de uma totalidade cultural e social, muito contribuiu para a compreensão das so-
ciedades humanas. Essa sua sugestão, inclusive, apesar de Malinowski enfatizar que uma
sociedade devesse ser estudada em seu todo, sem desmembrá-la em assuntos econômi-
cos, religiosos e sociais, contribuiu com a própria Antropologia da Religião, que conforme
acompanharemos, enfatiza que fatos religiosos não ficam restritos a eles mesmos, inte-
ragindo e se relacionando com diversos outros fatos e instituições.

No ponto 3, finalmente, percebemos a importância de Malinowski na


consolidação da etnografia como um projeto, também, estético. Isso implica que os
métodos científicos, que devem ser praticados, não dão conta de toda a complexidade

40
da nossa vida em sociedade. Portanto, a etnografia pretende articular sensibilidade com
pesquisa empírica. Essa articulação, posteriormente, vai ser utilizada como categoria
de acusação para com a antropologia. De qualquer maneira, essa articulação persiste
enquanto umas das potências da antropologia, sendo explicitada no uso da observação
participante e da etnografia por áreas vizinhas da antropologia.

3 A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
A observação participante, desde Malinowski, passa a ser umas das caracterís-
ticas centrais da prática antropológica. Não é incomum que ela seja tratada como, pra-
ticamente, sinônimo de etnografia. Entretanto, muitas imprecisões e confusões fizeram
com que a observação participante e a própria etnografia fosse tratada como apenas
um método. Veremos que não é esse o caso. Apesar do sucesso que a etnografia e
a observação participante fizeram na antropologia, espalhando-se para várias outras
disciplinas, tais como a própria sociologia e a educação, precisamos refletir sobre es-
ses dois processos de pesquisa que, na maioria das vezes, convergem, e são a própria
possiblidade epistemológica da antropologia estabelecer relações entre perspectivas
distintas e, portanto, produzir conhecimento.

Leremos, portanto, uns dos trechos de Os Argonautas do Pacífico Ocidental,


onde Malinowski estabelece os princípios daquilo que será denominado de observação
participante. Cabe ressaltar, entretanto, que pela complexidade de Argonautas e
seu volume, Malinowski explicitou e esboçou a observação participante em diversos
momentos. Foquemos em um deles:

Por outro lado, nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógrafo


que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e ca-
derno, e participe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode
tomar parte nos jogos dos nativos, acompanhá-los em suas visitas
e passeios, ou sentar-se com eles, ouvindo e participando das con-
versas. Não acredito que todas as pessoas possam fazer isso tudo
com igual facilidade – talvez a natureza do eslavo seja mais flexível e
mais espontaneamente selvagem que a do europeu ocidental – mas,
embora o grau de sucesso seja variável, a tentativa é possível para
todos. Esses mergulhos na vida nativa – que participei frequente-
mente não apenas por amor à minha profissão, mas também porque
precisava, como homem, da companhia de seres humanos – sempre
me deram a impressão de permitir uma compreensão mais fácil e
transparente do comportamento nativo e de sua maneira de ser em
todos os tipos de transações sociais (MALINOWSKI, 1976, p. 35-36).

Vamos nos ater a esse trecho de Malinowski. Ele é demonstrativo do que vem a
ser a observação participante. Entretanto, precisamos comentar, o quanto antes, o que
Malinowski supõe ali pelo meio dessa citação. Podemos notar que o antropólogo polonês
faz um comentário nada científico, tentando associar a sua origem étnica, enquanto
eslavo, com o sucesso que teve em interagir com seus interlocutores “selvagens”. Isso
está centrado em preconceitos e estereótipos do início do século XX. Por ser um europeu
mais “espontaneamente” selvagem, Malinowski estaria mais próximo dos próprios

41
“selvagens”. Assim, a chance de obter sucesso com a observação participante, seria
muito maior. Devemos reforçar que Malinowski era um antropólogo polonês tentando
ser aceito na comunidade britânica de antropologia. A um só passo ele se nivela com “os
selvagens”, nesse sentido, mas também reforça a sua qualidade enquanto etnógrafo.
Apesar de ser um jogo de autoafirmação, tem muito mais nesse trecho.

Por exemplo, o chamado para que a pessoa etnógrafa deixe de lado seus equipa-
mentos de registro da vida empírica – caderno, lápis, máquina fotográfica – para, de fato,
participar da vida social do grupo que está tentando estudar, descreve muito bem o que é
a observação participante. Reparemos que a citação aos equipamentos de registro não é
simplória. Malinowski admite que deixar de lado esses objetos de “captação” é essencial,
mas junto a esse método da observação participante, há justamente o intenso registro da
vida nativa. Por isso que o campo deve durar por bastante tempo. O suficiente para que a
pessoa etnógrafa identifique os comportamentos e fatos rotineiros, e os diferencie do que
é considerado como extraordinário. Enfim, o chamado para deixar de lado os equipamen-
tos que formam a objetividade da pesquisa, para “participar”, é o coração da antropologia
porque admite que se aprende muito mais em convívio e participação. Não se trata de
“virar nativo”, como já foi discutido em outros momentos, mas de participar dessa vida, de
alguma maneira. Como o próprio Malinowski diz, cada um respeitando a sua limitação. É
nesse aspecto também, como já mencionamos anteriormente, que se articulam a sensi-
bilidade com o anseio de objetividade da pesquisa científica.

O final da citação aborda outro elemento que se cristaliza na observação


participante, mas tem a ver também com a maneira como Malinowski pensou o trabalho de
campo, que já evidenciamos: uma pesquisa de longa duração, com interação continuada
junto ao grupo social proporcionador da etnografia. Assim, Malinowski reconhece que
se juntava a seus interlocutores não simplesmente por amor ao método e a prática da
etnografia, mas por ser uma pessoa convivendo com outros seres humanos, que sente
a necessidade de conviver e interagir em coletivo. Conviver e participar, portanto, são
aspectos fundamentais da observação participante.

Como já sabemos, a observação participante acaba por ser utilizada como uma
espécie de técnica de pesquisa, fruto da etnografia, lida como um método. Conforme
veremos no último tópico dessa unidade, discordamos dessa abordagem, pois como já
deixamos evidente, a etnografia e a observação participante são as próprias condições
para que a antropologia estabeleça relação com as pessoas e seus coletivos, portanto,
gere conhecimento. Há, evidentemente, muitas limitações em todo esse processo, mas
não devemos esquecer de sua riqueza e contribuição.

Observando o sucesso da etnografia e da observação participante entre outras


disciplinas, especialmente na educação, Tim Ingold (1948), uns dos antropólogos mais
importantes em atuação, demonstra o seu descontamento, quando confundem a
etnografia com a própria antropologia, e principalmente, quando confundem a etnografia
com a observação participante. Para Ingold (2015, 2016) chega a propor que se substitua
o termo etnografia por observação participante, porque para ele, a etnografia em seu

42
uso, se desgastou e desviou a antropologia para o que é mais importante, justamente
aqueles aspectos que já mencionamos, a convivência e a participação, a construção de
um conhecimento compartilhado. Não aprofundaremos a crítica de Ingold à etnografia,
mas ressaltaremos alguns aspectos.

Portanto, Tim Ingold (2015, 2016) desenvolve uma perspectiva crítica em


relação à etnografia, demonstrando preocupação com o uso excessivo da palavra e
pela apropriação da etnografia por outras áreas. Segundo o autor, essa apropriação
acontece de uma forma descuidada, apontando a etnografia enquanto método, quase
que sinônimo de “pesquisa qualitativa”. Mas a insatisfação do antropólogo é também
para com a comunidade antropológica. Mostrando a sua insatisfação para com o uso
antropológico do termo, sugerindo que não devêssemos mais falar em etnografia, e sim,
em aprendizagem, ou simplesmente, antropologia. A proposta do autor está conectada
com sua teoria desenvolvida nos últimos anos, bem cristalizada em seu livro Estar vivo
(2015). Para conectar sua perspectiva teórica com a crítica ao que a etnografia se tornou,
Ingold retoma o termo de observação participante, no sentido de que o antropólogo
deve estar engajado junto com as pessoas e do mundo onde elas estão imersas, com
intuito de extrair disso uma aprendizagem.

Observar significa ver que o acontece no entorno e, é claro, também


ouvir e sentir. Participar significa fazê-lo a partir de dentro da corrente
de atividades através da qual a vida transcorre, concomitante e
conjuntamente com as pessoas e coisas que capturam a atenção
que se dispensa a elas. Assim como o encontro, a observação
participante antropológica só difere em grau daquilo que as pessoas
fazem o tempo todo, especialmente as crianças. Mas as crianças têm
a vida inteira pela frente para aprender. Para o antropólogo adulto,
que chega como um noviço, com pouco tempo à disposição, os
obstáculos são significativamente maiores. Enquanto uma maneira
de trabalhar – ou talvez, uma expressão condensada do modo como
todos trabalham –, a observação participante é um procedimento
que se endossa plenamente (INGOLD, 2016, p. 407).

Nesse ponto, Ingold endossa uma comparação que se faz rotineiramente na


antropologia. Isto é, a pessoa etnógrafa e a criança. Afinal, quem está disposto a estudar
junto a outras pessoas, que geralmente são diferentes em diversos sentidos, tem que
aprender como uma criança, uma pessoa neófita, portanto, mas possuindo bem menos
tempo que a criança. Por isso a observação participante de Ingold, mas também na
antropologia em muitos momentos, enfatiza a participação como uma prática de
atenção e educativa.

Com efeito, a observação participante consiste precisamente nisso


[um deslocamento de ponto de vista]. Convida o antropólogo noviço a
se manter atento ao que os outros estão fazendo ou dizendo, ao que
acontece à sua volta; a acompanhar os demais aonde quer eles vão,
ficar à sua disposição, não importando o que isso implique e para onde
o leve. Fazê-lo pode ser perturbador, e implicar riscos existenciais
consideráveis. É como lançar o barco na direção de um mundo
ainda não formado – um mundo no qual as coisas ainda não estão
prontas, são sempre incipientes no limiar da emergência contínua.

43
Comandados não pelo dado, mas pelo que está a caminho de sê-lo,
deve-se estar preparado para esperar [wait] (MASSCHELEIN, 2010b,
p. 46). Com efeito, esperar pelas [wait upon] coisas é precisamente o
que se quer dizer por atender [attend] a elas (INGOLD, 2016, p. 408).

É nesse sentido que Ingold associa a antropologia com a educação, pois para
ele, conforme pudemos acompanhar, a observação participante, prática fundamental
da antropologia, insere quem pesquisa em uma rede de transformação e deslocamento
de suas perspectivas, assim como insere esse sujeito em uma trama de convivência
e participação, onde nunca é possível prever os próximos passos e dias. Esperar e
atender, nesse sentido, é corresponder com o mundo das pessoas com quem estamos
relacionados. Independente da proposta de Ingold de substituir a etnografia pela
observação participante, ou pelo termo educação, devemos reforçar o seguinte: a
observação participante é uma maneira de se engajar com as outras pessoas, e nesse
engajamento, tudo que é importante para essas pessoas, passa a fazer parte dessa
relação: ou seja, seus ambientes, preocupações e todos os outros seres mais-que-
humanos e não-humanos que participam dessa vida.

4 A ETNOGRAFIA COMO FUNDAMENTO DA


ANTROPOLOGIA
Para fins didáticos, continuaremos utilizando a palavra etnografia. E ela está
intimamente ligada com a observação participante. Mas de fato, não consideramos
esses dois processos nem como método, nem como técnica. Mas como aquilo que
condiciona a construção de conhecimento na antropologia. Até aqui, não abordamos
como a etnografia, com o desenrolar da disciplina antropológica, foi também, algumas
vezes, relegada a relato empírico, ou seja, que estivesse distante da elaboração de
teorias mais gerais que nos ajudasse a compreender melhor a realidade. Entretanto,
antropólogas como Mariza Peirano (2008) e Laura Nader (2011) têm demonstrado que a
etnografia é a teoria vivida, ou a teoria, o coração, da própria antropologia, afinal, junta
a um só tempo a realidade da vida cotidiana, os saberes, conhecimentos e práticas de
várias sociedades e maneiras de se estar junto, com aquilo que denominamos, de uma
maneira relativamente genérica, de antropologia.

Acompanharemos com a antropóloga brasileira Mariza Peirano, uma boa


explicação sobre o porquê de não consideramos a etnografia como um método,
tampouco como uma técnica:

É nesse contexto amplo que gostaria de sugerir que a (boa) etnogra-


fia de inspiração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou
uma prática de pesquisa, mas a própria teoria vivida. Uma referência
teórica não apenas informa a pesquisa, mas é o par inseparável da
etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia, que
cria as condições indispensáveis para a renovação e sofisticação da
disciplina - a “eterna juventude” de que falou Weber. No fazer etno-
gráfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada
nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais: a união da et-

44
nografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográ-
fico. Ela está presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas
trocas entre professor e aluno, nos debates com colegas e pares, e,
especialmente, na transformação em “fatos etnográficos” de eventos
dos quais participamos ou que observamos. Desta perspectiva, etno-
grafia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma
maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em
ação (PEIRANO, 2008, p. 3).

Mariza Peirano já considera, em seu público, que a etnografia é praticada em


diversos campos das ciências sociais e humanas. Por essa razão, ela se refere a uma
“etnografia de inspiração antropológica”, ou seja, que tenha como base a afirmação da
etnografia como justamente essa articulação entre base teórica e a pesquisa e a escrita
antropológica, que evidentemente está relacionada com as práticas e saberes de outras
pessoas e grupos. É nesse sentido que a etnografia é sempre jovem, pois está em
constante diálogo com aspectos da vida cotidiana e as diversas teorias que compõem
e informam o nosso entendimento do que é e pode o humano. Assim, não faria sentido
dizer que a etnografia se resume a uma metodologia. Ela é, como diz mesmo a Mariza
Peirano, a própria “teoria em ação”.

A antropóloga Laura Nader apresenta um argumento parecido em defesa da


etnografia e da sua afirmação enquanto prática constitutiva da antropologia. Em um
breve artigo, Nader (2011) reafirma a etnografia enquanto constitutiva da antropologia.
Para a antropóloga, a etnografia é também teoria, aproximando-se da perspectiva
de Mariza Peirano. Assim, não faz muito sentido distinguir entre etnografia (prática) e
antropologia (teoria). Nessa esteira, estamos ainda concordando com Ingold, embora
não aposentemos o termo “etnografia” nem o substitua, em definitivo, pela observação
participante e a educação.

Para fundamentar o seu argumento, Nader (2011) faz um sucinto comentário


histórico sobre a prática antropológica associada ao trabalho de campo, para além de
Malinowski, e argumenta que a etnografia foi sempre o forte do pensamento antropoló-
gico, embora tradicionalmente houvesse “consensos não ditos” sobre como se deveria
fazer uma boa etnografia. Assim, pouco se disse sobre como se fazer uma etnografia,
mas na prática, a comunidade antropológica sabia como fazê-la. Evidentemente, o pró-
prio Malinowski, mas também outros e outras, apresentou um conjunto de direciona-
mento metodológico. Mas como a etnografia é fluida, viva e dinâmica, ela só acontece,
de fato, no processo.

O argumento de Tim Ingold é interessante, para pensarmos o quanto a pesquisa


etnográfica, a observação participante e a antropologia têm sido utilizadas por outras
áreas, mas principalmente, pela lógica do mercado, de uma maneira superficial e
pouco proveitosa, pois não mobiliza o que esses campos de possibilidade de produção
de conhecimento têm de melhor. Aspectos que já ressaltamos: aprender junto com
outras pessoas, valorizar a diferença enquanto aspecto positivo das relações, ou seja,
a diferença como uma potência criativa e educadora e daí por diante. Por isso, não faz

45
muito sentido largar a noção de etnografia agora, justamente quando cada vez mais
outras áreas das ciências humanas e das ciências sociais aplicadas tentam utilizar o
arcabouço ferramental (e nem tanto conceitual) da antropologia.

Agora que nosso passeio pela história do pensamento antropológico, a


institucionalização dessa ciência e a variedade de seus campos de atuação, assim como
acompanhamos a centralidade da etnografia e da observação participante para essa
disciplina, poderemos nos aprofundar no tema principal desse livro, ou seja, o estudo
antropológico da religião. A partir daqui, teremos condições de interpretar a experiência
humana em sua diversidade de abordagens e perspectivas, ao mesmo tempo que
compreenderemos que grande parte da contribuição antropológica sobre a experiência
religiosa, é oriunda de pesquisas de campo e diálogo com religiões, das mais diversas,
fazendo parte de cosmologias de variados grupos humanos.

46
LEITURA
COMPLEMENTAR
ETNOGRAFIA, OU A TEORIA VIVIDA

Mariza Peirano

Início com uma constatação elementar – a de que conceitos acadêmicos, assim


como outras ideias da nossa experiência, mudam no tempo e no espaço, isto é, são his-
tóricos e são contextuais. Nenhum conceito tem um significado perene e, especialmen-
te, nas ciências sociais, a vida dos conceitos reflete o que Max Weber definiu como sua
“eterna juventude”. Para Weber, essa era uma característica positiva das ciências sociais
e refletia um otimismo raro nele – o de que, por definição, essas ciências seriam sempre
jovens, sempre em processo de elaboração e sofisticação, sempre renovadas.

Dessa perspectiva da “eterna juventude”, não é surpresa verificar que a ideia do


que seja etnografia tenha uma história longa e frequentemente espiralada, ou pendular –
modificamos nossa concepção de etnografia, muitas vezes para voltar, revigorados, a um
ponto familiar. Como em outros momentos na antropologia, devemos a Malinowski uma
perspectiva que propunha e defendia a etnografia quando definiu a apresentação do kula
como “interna”, “etnográfica”, isto é, em consonância com a prática e a perspectiva dos
trobriandeses. Malinowski evitava uma descrição que chamou de “sociológica”, resultado
de uma observação “do lado de fora” – ele a considerava importante, sim, mas dizia que
a utilizava apenas quando indispensável para dissipar concepções falsas e definir alguns
termos. Mas era a distinção entre etnografia e etnologia que dominava a época – a etno-
grafia era vista como mera descrição de dados; a etnologia, como uma tentativa de teori-
zação dos dados prévios, considerados meramente empíricos, etnográficos. Naturalmen-
te, etnologia tinha mais prestígio que etnografia. Algumas décadas depois, já nos anos de
1950, foi a vez de Radcliffe-Brown enfraquecer a etnologia como o estudo histórico das
sociedades primitivas – uma impossibilidade, para ele – e, por contraste, propor a antro-
pologia social como um ramo da sociologia comparada.

No Brasil, não foi diferente. Em 1961, ao fazer uma conferência na reunião da ABA,
Florestan Fernandes estimulou os antropólogos ali reunidos a abandonar a perspectiva pura-
mente empírica, etnográfica, e a ousar mais, almejando uma perspectiva teórica, etnológica.

Etnografia, sociologia, etnologia, antropologia comparada são, portanto, termos


que habitam o nosso universo, mas, com frequência, mudam de significado na configu-
ração geral da disciplina. É curioso, no entanto, que até hoje a distinção etnografia=da-
dos vs. etnologia=teoria ainda tenha o seu lugar, como descobri recentemente, ao ver
um exercício para alunos de um curso do Human Relations Area Files, na Universidade

47
de Yale. O exercício era formulado da perspectiva de que “etnografia é o estudo profun-
do de um grupo cultural particular”, enquanto a “etnologia é o estudo comparativo dos
dados etnográficos, da sociedade e da cultura”. Nele, pedia-se que o aluno desenvol-
vesse uma “apresentação etnológica” a partir de dados coletados. Embora recente, esse
exercício parece, hoje, fora de moda.

Mais na moda, no entanto, foi a preocupação com a etnografia no final dos anos
80/início dos 90. Naquele contexto “pós-moderno”, a etnografia passou a ser abertamente
criticada, agora pelos próprios antropólogos, tendo como motivação central a característica
“politicamente incorreta” do que ficou conhecido como “a autoridade etnográfica”. Nesse
movimento incluíam-se Paul Rabinow, que falava de um estágio “além da etnografia”; Mar-
tyn Hammersley, que se perguntava o que estava errado com a etnografia; Nicholas Tho-
mas, que se posicionava abertamente “contra a etnografia”. (Foi nesse contexto que achei
por bem tomar uma posição “a favor da etnografia”, em um texto-ficção – já que, escrito em
português, os autores não saberiam que estavam sendo questionados no Brasil).

Rememoro esses acontecimentos com o objetivo de dizer que, hoje, um panora-


ma muito diferente se apresenta: a etnografia volta à cena de forma positiva e potencial-
mente criativa – e não apenas no Brasil. Menciono dois indícios dessa renovação. O pri-
meiro vem dos centros de produção acadêmica socialmente reconhecidos (para alguns,
“internacionais”) e tem como índice o lançamento da revista Ethnography, em 2000, pu-
blicado pela Sage. Essa revista abriu com um manifesto a favor da etnografia, escrito por
Paul Willis e Mats Trondman, que foi seguido de respostas positivas nos números seguin-
tes. Essa iniciativa ampliou-se em vários encontros acadêmicos, sob o nome de Ethno-
grafeasts, e geralmente reúnem pesquisadores de várias nacionalidades – os dois últimos
de que tenho conhecimento foram realizados em Lisboa e Taipei, em junho deste ano. No
momento atual, portanto, a etnografia passa a ser não apenas uma prática aceitável, mas
desejável, sobre a qual se debate e se pretende afinar concepções.

O segundo indício vem de lugares que anteriormente foram sítios de pesquisa.


Todos sabem que a antropologia sempre tendeu a dividir o mundo: há um século
estavam, de um lado, seus poucos praticantes, geralmente oriundos de uma pequena,
mas dominante, fração do globo (Europa e Estados Unidos); de outro, os nativos
possíveis, o resto do mundo (populações inteiras da Melanésia, Oceania, Ásia, depois
África e América do Sul). Pois é pela população atual dos antigos sítios de pesquisa
que o termo “etnografia” vem sendo recuperado, ao mesmo tempo em que se recusa a
expressão “antropologia”, por suas conotações colonialistas. Penso, especialmente, na
situação africana, na qual o que nós chamaríamos de antropologia é, lá, desenvolvida
por filósofos, geógrafos, educadores, sociólogos. Todos podem “fazer etnografia”, e a
todos é desejável uma “perspectiva etnográfica”. (Lembro-me do desconforto que o
termo antropologia provocou em seminário realizado no ano passado na UnB, e que
comparou Brasil e África do Sul, com a presença de especialistas de ambos os países, e
a relativa tranqüilidade com que se utilizava o termo etnografia).

48
Há, nisto tudo, porém, um dado curioso. Tanto na revista Ethnography,
quanto na prática dos cientistas sociais africanos, a etnografia é compreendida como,
basicamente, um método. Desta forma, mesmo quando se pleiteia a necessidade de
um quadro teórico, a etnografia, sendo, basicamente, uma metodologia, está acessível
e aberta a sociólogos, historiadores, geógrafos, filósofos. Em alguns casos, inclusive,
fazer etnografia é a forma de um autor se diferenciar e se distinguir nas respectivas
disciplinas ou áreas de conhecimento.

É nesse contexto amplo que gostaria de sugerir que a (boa) etnografia de ins-
piração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou uma prática de pesquisa,
mas a própria teoria vivida. Uma referência teórica não apenas informa a pesquisa, mas
é o par inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia,
que cria as condições indispensáveis para a renovação e sofisticação da disciplina - a
“eterna juventude” de que falou Weber. No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de ma-
neira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais:
a união da etnografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico.
Ela está presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e
aluno, nos debates com colegas e pares, e, especialmente, na transformação em “fatos
etnográficos” de eventos dos quais participamos ou que observamos. Desta perspecti-
va, etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de
interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação. Os comentários que se
seguem têm como objetivo examinar algumas implicações deste ponto de vista.

Mencionei a expressão “fato etnográfico”, expressão cunhada por Evans-


Pritchard. Em contraste com o “fato social” durkheimiano, Evans-Pritchard nos dizia
que o fato etnográfico não deveria apenas estar refletido no caderno de campo do
pesquisador. O fato etnográfico precisava estar dentro do antropólogo. Para atingir essa
proeza, certas qualidades do observador eram necessárias: segundo ele, abandonar-se
sem reservas, possuir certas características intuitivas, afinar-se com o grupo estudado,
ter um temperamento específico, possuir uma determinada habilidade literária. Essa
perspectiva de Evans-Pritchard obviamente ia contra a ideia da antropologia como
ciência, e ele se sentiu à vontade para aproximá-la mais da arte, escandalizando a
muitos, na época. A capacidade intelectual e a preparação teórica seriam indispensáveis,
naturalmente, mas só elas não fariam, necessariamente, um bom antropólogo.

Este é um ponto central da síntese que Evans-Pritchard fez após viver várias
experiências de campo – nem todos somos, ou podemos ser, bons etnógrafos. A
personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas
do trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos
etnográficos que são selecionados e interpretados. Como relembrou o escritor sul-
africano J. M. Coetzee, por meio da personagem Elizabeth Costello, a simpatia está do
lado do “eu”, e não do “outro”, e se revela plenamente na capacidade de se colocar no
lugar desse “outro”. Nesse encontro singular entre o etnógrafo e o grupo observado, a
teoria surge como um terceiro elemento [um Terceiro peirceano], em princípio como
uma convenção flexível que permite o diálogo produtivo.

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Ao falar de etnografia, portanto, indiretamente nos reportamos às monografias
clássicas da antropologia. O fazer etnográfico está na base das monografias, que
continuam sendo o objetivo ideal (ou utópico) do investigador. Construídas como um
retrato sincrônico de um momento específico, elas tornaram-se documentos de um
horizonte histórico para as culturas e sociedades sob análise e, igualmente, documentos
de um horizonte histórico para as sociedades dos etnógrafos que as produziram. Mas
elas não apenas refletem um passado. Esta seria uma apreciação apenas histórica. De
um ponto de vista teórico, elas nos indicam mais:

I. Primeiro, indicam-nos, na prática, os “fatos sociais totais” de Mauss, sugerindo como


os diversos domínios que a ideologia do mundo ocidental separou – a política, o paren-
tesco, a economia, a religião – estão sempre articulados, tanto nos grupos estudados,
quanto nas sociedades do pesquisador. É pelo confronto com fatos sociais totais, ge-
ralmente não-habituais na nossa experiência, que o próprio pesquisador percebe que
sua sociedade, sua cultura, sua visão de mundo, são apenas uma entre várias.
II. Segundo, as monografias revelam o diálogo continuamente presente entre as
perspectivas teóricas dominantes, inclusive no senso comum acadêmico, e os
dados novos que o pesquisador presenciou, possibilitando, com frequência,
reconfiguração, questionamento, revisitação, refinamento das perspectivas teóricas
iniciais. Malinowski confrontou a teoria econômica da época; Evans-Pritchard
revisitou a bruxaria; Mary Douglas introduziu a noção de pureza; Leach questionou
a ideia de que sociedade e cultura se sobrepõem necessariamente – e, a partir do
trabalho de todos esses autores, nosso conhecimento e compreensão sobre esses
temas ampliaram-se. Agitar, fazer pulsar as teorias reconhecidas por meio de dados
novos, essa é a tradição da antropologia.
III. terceiro, as monografias confirmam a ideia de que a surpresa é um elemento fun-
damental do conhecimento etnográfico. Essa surpresa, de que falaram tanto Ma-
linowski, quanto Lévi-Strauss, não decorre apenas de uma ingenuidade assumida
- que não é de todo negativa –, mas é parte integrante da inquietação e do interesse
que o etnógrafo experimenta no trabalho de campo. Mais uma vez, esses sentimen-
tos estão no investigador, o que faz com que seja possível, como sabemos, fazer
pesquisa etnográfica em lugares distantes, como em lugares próximos – com as
mesmas força e densidade. Malinowski mencionou como, prevendo a existência de
muitos “mistérios etnográficos” (o termo é dele), ocultos sob o aspecto trivial de tudo
que se vê, o etnógrafo fica à espreita de fatos significativos. Esses sentimentos, sa-
bem bem os alunos de graduação que fazem pesquisa, nos acometem, nos assaltam
no momento que definimos, para nós mesmos, que estamos “em campo”. O “campo”,
portanto, não está lá; ele está dentro de nós, e se as surpresas nos parecem, às
vezes, meros acasos, é que deles é feita a vida. Muitas vezes, inclusive, somos sur-
preendidos pelo fato de que a vida parece imitar a teoria.
IV. Dadas essas características das monografias, não é de todo inusitado que muitos
antropólogos as considerem o legado mais importante da antropologia. Louis Dumont
foi um deles, ao enfatizar que as monografias sempre incluem “fatos sociais totais”
e se afastam das categorias ocidentais. Mais perto de nós, Darcy Ribeiro também
confessou, um dia, que seus trabalhos teóricos pouco valiam, estavam inclusive

50
“errados”. O conjunto de seus diários de campo era, sim, o que de mais importante
havia produzido. E antecipava, inclusive, que o trabalho de Florestan Fernandes
sobre os Tupinambá é que permaneceria vivo, enquanto as teses sobre a “revolução
burguesa” possivelmente envelheceriam. (Isto foi dito em 1978.) Nesse contexto,
também, fica mais claro o interesse recente por Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss,
um livro que, por muito tempo, foi relegado às margens da antropologia.

Mencionei, anteriormente, como o movimento pós-moderno nos Estados


Unidos questionou a etnografia. Como para comprovar os novos tempos (ou a retomada
dos velhos), hoje alguns dos antigos defensores do credo pós-moderno recuperam o
conceito de cultura tanto quanto as realizações passadas da antropologia. Em texto
recente, Michael Fischer define a perspectiva antropológica numa metáfora instigante,
como “o olhar do joalheiro”. Para ele, o olhar de joalheiro dos etnógrafos do início até a
metade do século XX consistia em colocar em um mapa comparativo as lógicas culturais,
as implicações sociais e as circunstâncias históricas dos trobriandeses, Nuer, Azande,
Yoruba, Ndembu, Navaho, Kwakiutl, Shavante, Walpiri e outros, de modo a permitir a
compreensão das possíveis variantes culturais e suas implicações sociais em diversos
domínios. Do meu ponto de vista, o “olhar do joalheiro” revela, também, o movimento
contínuo entre uma perspectiva teórica ampla e o mais minúsculo dos olhares. Assim,
contradizer, reformular, repensar, desafiar as categorias do nosso senso comum do dia
a dia (inclusive o senso comum acadêmico, repito mais uma vez), que experimentamos
e vivemos como a nossa própria cosmologia, é uma tarefa central da etnografia. Em um
mundo dominado por julgamentos de valor apressados, a antropologia (e a etnografia
como seu exercício), tornam-se um modo de conhecimento que se caracteriza pela
atenção permanente ao contexto e à comparação, construído em constante referência
às dimensões da cultura e da linguagem.

Talvez não tenha sido por acaso que foi tão comum encontrarmos títulos
espirituosos ou provocativos na primeira metade do século XX, tanto nos livros quanto
nos artigos etnográficos. (P. ex., os títulos das monografias de Malinowski; os artigos
“Virgin birth”, de Leach; Twins, birds and vegetables, de Firth; Some muddles in the
models, de Schneider.) Não creio muito na versão que os vê apenas como expediente
para uma maior vendagem. De uma perspectiva etnográfica, eles talvez denunciem
um aspecto mais profundo. Talvez eles denunciem o empenho do etnógrafo em
trazer a experiência da pesquisa para seus leitores. Hoje, passada a moda da ênfase
exagerada, a persistência do caráter poético dos títulos, tanto quanto a arquitetura
das monografias, talvez indique aquele pequeno detalhe do grande empreendimento
existencial e intelectual da pesquisa de campo, apontando para a complexidade da
tarefa que é comunicar uma nova descoberta e reavaliar a teoria acumulada, fazendo
a teoria espiralar e alcançar novos patamares, desvendar novas questões, trazer novas
dúvidas, ampliar o leque de possibilidades interpretativas e, assim, continuar a tradição
da “eterna juventude” das ciências sociais.

Fonte: https://journals.openedition.org/pontourbe/1890. Acesso em: 9 jul. 2022.

51
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• A primazia do trabalho de campo para a antropologia social e cultural, que se


constituiu com o protagonismo de dois antropólogos, Franz Boas e Bronislaw
Malinowski. Boas desenvolveu o relativismo como princípio metodológico e moral,
elencando o particularismo histórico para interpretar as culturas como uma
possibilidade de combater o evolucionismo cultural e aquilo que era denominado
de “método comparativo”. Assim, se as sociedades não ocidentais, ditas primitivas
e selvagens, eram interpretadas como o passado da cultura e sociedade ocidental,
com Boas, elas foram interpretadas como sociedades de culturas próprias, assim
como produtoras de suas próprias histórias. Malinowski, por seu lado, intensificou a
noção de trabalho de campo de longa duração, com o foco total em uma sociedade,
examinando como suas instituições se interrelacionam, em uma perspectiva
sincrônica, portanto, a-histórica. Essa perspectiva possibilitava que a pesquisa
renunciasse à conjuntura histórica e focasse na ação cotidiana e como as instituições
e a organização social funcionavam em conjunto. Nessas duas abordagens, o mais
importante para a nossa aprendizagem, é que a antropologia, a partir daqui, passa a
centralizar na experiência empírica alinhada com uma perspectiva teórica científica,
mas aberta para a imprevisibilidade do trabalho de campo.

• Acompanhamos como Malinowski ajudou a fortalecer a imagem da observação


participante como uma técnica de pesquisa, mas que a transcendia enquanto
técnica, simplesmente, sendo considerado como o coração da antropologia. A
observação participante, ao alinhar os princípios científicos da observação com o
da participação na vida coletiva das pessoas foco do estudo, abriu a antropologia
para que as pessoas na pesquisa fossem consideradas em suas práticas e saberes
mobilizados, na medida em que a pessoa pesquisadora, ao participar de diversas
atividades, adquiria um conhecimento prático, participativo e dialógico.

• Finalmente, aprendemos que embora etnografia e observação participante não


são sinônimos, assim como não são, simplesmente, um método e uma técnica de
pesquisa, são atividades que possuem centralidade para a antropologia, pois juntam
a base científica acumulada pelas ciências sociais, com a constante exposição
e “teste” desse conhecimento no mundo, sempre em aberto, disposto e exposto
diante os saberes, as práticas e os conhecimentos das mais distintas sociedades
e grupos sociais. Por essa razão, também, a etnografia e a observação participante
passaram a serem utilizadas pela Educação, a Sociologia e outras ciências sociais.

52
AUTOATIVIDADE
1 “A revolução que ocorrerá da nossa disciplina durante o primeiro terço do século XX é
considerável: ela põe fim a repartição das tarefas, até então habitualmente divididas
entre o observador (viajante, missionário, administrador) entregue ao papel subal-
terno de provedor de informações, e o pesquisador erudito, que, tendo permanecido
na metrópole, recebe, analisa e interpreta – atividade nobre! – essas informações. O
pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete
de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não
mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o rece-
bem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a
viver entre eles, mas a viver como eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a
sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. Trata-se, como podemos ver, de
condições de estudo radicalmente diferentes das que conheciam o viajante do sé-
culo XVIII e até o missionário ou o administrador do século XIX, residindo geralmente
fora da sociedade indígena e obtendo informações por intermédio de tradutores e
informadores: este último termo merece ser repetido”. Com base no texto, acerca do
que mais se aproxima da “revolução” que Laplantine comenta e que aconteceu na
antropologia, assinale a alternativa CORRETA:

LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora


Brasiliense. 1988.

a) ( ) Malinowski revolucionou a antropologia. Por ser de origem eslava, Malinowski


apresentava uma maleabilidade e capacidade de adaptação. Assim, a pesquisa
de campo intensa e contínua em regiões tropicais, se tornou especialidade da
antropologia, requisitando que a comunidade antropológica fosse capaz de se
adaptar a rigorosas condições climáticas.
b) ( ) Com a moderna pesquisa de campo, uniu-se em uma pessoa só, a figura
investigativa e empírica, que colheria os materiais etnográficos, com a pessoa
analista, fazendo com que as interpretações fossem a um só tempo empíricas e
orientadas cientificamente.
c) ( ) O alemão Franz Boas revolucionou a antropologia, sendo considerado o único
pesquisador de campo do século XIX, uniu em uma só pessoa a figura do
pesquisador e do teórico.
d) ( ) A etnografia é uma revolução antropológica. Desenvolvida ao longo do século
XIX e aprimorada no XX, a pesquisa de campo, a observação participante e a
etnografia são elementos exclusivos da antropologia científica.

2 “O pesquisador, na verdade, está bem visível ai no palco, não necessariamente no seu


centro. E mais vale contar com isso. O pesquisador nunca contempla um campo em
si, mas um campo-com-pesquisador, e um campo-para-o-pesquisador. Isso significa

53
simplesmente que o pesquisador não pode deixar de ser social, e que o fruto do seu
trabalho está composto precisamente das suas interações em campo. E daí que seu
trabalho não consiste em eludir as distorções provocadas pela sua presença, mas
precisamente focá-las e anotá-las. O pesquisador de campo deve tirar partido das
diferenças entre o campo e o laboratório, e não imaginar um laboratório no campo.
A isso se reduz, em síntese, a observação participante”. Considerando a observação
participante, analise as sentenças a seguir:

SÁEZ, O. Esse obscuro objeto de pesquisa. Florianópolis:


Ilha de Santa Catarina. 2013.

I- A observação se resume a uma técnica de pesquisa, oriunda do método etnográfico.


Deve ser praticada em conjunto com o método genealógico e estatístico.
II- A observação participante implica em um compromisso da pesquisa antropológica,
evitando que a pesquisa seja totalmente controlada pela pessoa do antropólogo,
dando abertura ao imponderável.
III- Podemos dizer que a observação participante é um sinônimo de etnografia e toda
pesquisa etnográfica, necessariamente, lançará uso da observação participante.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A etnografia é a junção da pesquisa empírica com a reflexão teórica. Ao contrário


do que algumas áreas da antropologia deram a entender, não há uma separação
entre reflexão teórica e empírica na elaboração do conhecimento antropológico. Isto
é, quando nos deparamos com uma boa etnografia. Levando em consideração as
práticas etnográficas contemporâneas, classifique V para as sentenças verdadeiras e
F para as falsas:

( ) Na antropologia contemporânea, a etnografia é considerada como uma ficção.


Embora de cunho científico, dá margem para o delírio, o pastiche e a invenção das
falas de interlocutores.
( ) A etnografia tem sido o casamento da razão empírica com a sensibilidade artística.
Portanto, todo antropólogo deve se dedicar a alguma prática artística, como a
literatura, o desenho e a fotografia.
( ) Autoras como Mariza Peirano e Laura Nader defendem que a etnografia é sempre
teórica e empírica. Além disso, rejuvenesce o conhecimento antropológico.
( ) A única forma de apresentar uma etnografia, mesmo atualmente, é em texto, pois
essa prática consiste na escrita da cultura.

54
Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F – V.
b) ( ) F – F – V – F.
c) ( ) F–V–F-V
d) ( ) F – F – V – V.

4 Franz Boas e Bronislaw Malinowski são considerados como os pioneiros que


desenvolveram a moderna pesquisa de campo e a etnografia como a conhecemos
até hoje. Disserte quais foram as principais contribuições desses antropólogos no
campo da pesquisa de campo e da etnografia, o que eles acrescentaram para o que já
estava estabelecido tanto na pesquisa de gabinete, quanto nas pesquisas empíricas
que já aconteciam na transição do século XIX para o XX.

5 “Permitam-me descrever, como um exemplo específico de técnica de observação,


o que meus colegas e eu fizemos ao estudar uma Escola de Medicina. Assistimos
seminários com estudantes que cursavam seus primeiros dois anos de ciência básica
e frequentamos os laboratórios nos quais passavam a maior parte de seu tempo,
estimulando-os e iniciando conversações casuais enquanto dissecavam cadáveres
ou examinavam casos em patologia. Acompanhávamos estes estudantes em suas
residências universitárias e estávamos com eles quando discutiam suas experiências
na universidade. Acompanhamos estudantes em seus anos de clínica em plantões
com médicos que os assistiam, observando-os quando examinavam pacientes em
enfermarias e nas clínicas e quando participavam de grupos de estudo ou prestavam
exames orais. Comemos e dormimos segundo sua rotina. Andamos no encalço
de internos e residentes em seus apertados horários de aula ou de atendimento
clínico. Permanecemos em companhia de um pequeno grupo de estudantes em
cada serviço por períodos que iam de uma semana a dois meses, despendendo com
eles muitas jornadas de tempo integral. Nas situações de observação, havia tempo
para conversas, e nós aproveitamos isso para entrevistar estudantes sobre coisas
que tinham acontecido e que estavam em vias de acontecer, e também sobre suas
próprias experiências anteriores e suas aspirações”. Considerando o enxerto do
sociólogo Howard Becker, comente porque a observação participante e a etnografia
fizeram sucesso em outras disciplinas científicas, para além da antropologia.

BECKER, H. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais.


São Paulo: HUCITEC. 1999.

55
REFERÊNCIAS
ASAD, T. Introdução a “Anthropology and the Colonial Encounter”. Ilha: revista de
antropologia, v. 19, n. 2, Florianópolis, 2017.

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Rio de Janeiro: CONTRAPONTO/Editora da UFRJ, 2004.

57
58
UNIDADE 2 —

ANTROPOLOGIAS DAS
RELIGIÕES
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Conhecer as principais escolas antropológicas modernas e contemporâneas que


analisaram a religião;

• compreender a religião como uma categoria ocidental e os seus limites;

• identificar as diferenças entre as religiões majoritárias, especialmente o cristianismo,


e as religiões minoritárias;

• analisar e interpretar as linguagens religiosas, expressas em ritos, mitos e símbolos

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de
reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIAS DAS RELIGIÕES

TÓPICO 2 – RELIGIÕES MAJORITÁRIAS, RELIGIÕES MINORITÁRIAS

TÓPICO 3 – RITUAIS, MITOS E SÍMBOLOS

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

59
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A TRILHA DA
UNIDADE 2!

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60
UNIDADE 2 TÓPICO 1 —
ANTROPOLOGIAS DAS RELIGIÕES

1 INTRODUÇÃO
Vamos tentar pensar sobre religião? Será que nos consideramos uma pessoa
religiosa? Caso sim, talvez percebamos o quanto os fenômenos religiosos estão presentes
não só na nossa vida, como na de muitas outras pessoas. Caso nos consideremos uma
pessoa sem religião, ateia ou agnóstica, é possível que compreendamos que a religião
está presente em diversas instâncias e esferas que nos rodeiam. O catolicismo, durante
boa parte da história colonial e moderna do Brasil, foi e ainda é a religião dominante,
embora tenha perdido espaço, paulatinamente, para as religiões evangélicas. Assim,
os códigos católicos, símbolos e condutas foram naturalizados. Podemos encontrar
cruzes, santos, santas e outros símbolos católicos em tribunais, câmeras legislativas e
outros espaços que seriam considerados, em nossa sociedade, como laicos (GIUMBELLI,
2013). Por outro lado, independentemente da sua condição religiosa ou não, já deve
ter percebido o quanto o carnaval (CUNHA, 1986), por exemplo, mas também outros
elementos da cultura popular brasileira, mobilizam símbolos e conteúdos das religiões
de matriz africana, atingindo certo sucesso com isso. Por outro lado, se essas religiões
são “toleradas” (NOGUEIRA, 2020) no carnaval, não é muito difícil encontrar exemplos
de intolerância e racismo religioso, voltados para essas religiões. Basta abrir os portais
de notícias ou ficar atento ao nosso redor.

Ao longo do deste livro, tentaremos lançar algumas luzes sobre a presença


da religião em sua vida. Também os motivos que a sua negação, é, em algum sentido,
uma relação com o religioso. Veremos que, embora a Antropologia da Religião seja uma
tentativa de compreender a vida social a partir de aspectos religiosos, não estamos
evidenciando uma perspectiva religiosa apartada de outras esferas da vida. A partir
daqui, leremos algumas definições de religião, a nível didático. Mas cabe ressaltar que,
na antropologia contemporânea, a tendência é não partir de uma definição estanque e
universalizada de religião, sendo sim, considerada, como fazendo parte de “fenômenos
historicamente específicos” (ASAD, 2010, p. 277). Isso significa que só se chega ao
religioso ao situá-lo em processos históricos, discursivos e de outras ordens sociais.
Assim, a religião está na vida, está na sociedade. Ela pode, e certamente tem suas
características, mas não está separada do senso comum, da estética, e até mesmo, da
ciência. Para compreendermos um pouco mais dessa realidade, caminharemos com
essa Antropologia da Religião.

61
Figura 1 – Tirinha de Carlos Ruas

FONTE: Tirinha de Carlos Ruas. Disponível em: <https://bit.ly/3SnSnCC>. Acesso em: 3 jul. 2022.

Portanto, em Antropologia da Religião, das Religiões, resumiremos como a


Antropologia da Religião se pensa, a partir de uma perspectiva plural de métodos e de
perspectivas. Em Temas clássicos da antropologia da religião: magia, animismo e totemismo,
acompanharemos algumas definições de religião, que tentaram conceituar o que seria
animismo e totemismo, como definições mínimas e essenciais de religião, mas também
discutiremos como essas definições flertavam com definições mais amplas de religião. Já
na “A religião na antropologia contemporânea”, acompanharemos alguns exemplos de como
a antropologia contemporânea, especialmente Brasileira, pesquisa o fenômeno religioso.

2 ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO, DAS RELIGIÕES


No livro Compêndio de Ciência da Religião (2013), que tinha o objetivo de reunir
diversas pessoas acadêmicas e interessadas com a religião, com o foco na Ciência da
Religião e as disciplinas e subdisciplinas que a auxiliam na compreensão do religioso,
Silas Guerriero ficou responsável pelo capítulo sobre Antropologia da Religião. Assim, o
antropólogo abre o seu texto:

A religião sempre esteve presente como tema nos estudos


antropológicos. Não existe até os dias atuais uma definição clara do
que se compreende por Antropologia da Religião, a começar pela
própria singularidade ou pluralidade da temática em foco. Para uns,
não é possível falar em Antropologia da Religião no singular, pois essa
unidade indicaria a ideia de busca de uma essência da religião. Para
outros, essa é uma questão menor. É por Antropologia da Religião
que a disciplina ficou conhecida, e não se faz exigência de que o

62
tema permaneça no singular ou no plural. No entanto, essa questão
já aponta para um debate bastante sério que diz respeito ao objeto
próprio. Afinal, qual o conceito de religião que se está utilizando?
(GUERRIERO, 2013, p. 243).

Conforme acompanhamos até aqui, a antropologia foi constituída em contato


com a diferença e a alteridade, por conta da expansão colonial do mundo europeu.
Nos primórdios da disciplina, discutia-se, até, se o que as diversas sociedades e grupos
sociais apresentavam, imersa na vida, elementos que, para o ocidental, lembrassem a
religião, fosse, de fato, religião. Essa afirmação tem uma dupla problemática. A primeira,
é se o que essas sociedades na África, Oceania, nas Américas, por exemplo, apresentam
uma religião, isso é reforçado, para o mundo ocidental e a própria antropologia, que a re-
ligião, para o ocidental, é tão fundamental que é necessário reconhecê-la no outro, para
passar a valorizá-la. Na prática, há um entendimento particular e moderno de religião,
mas que é entendido como categoria universal e essencial de religião (ASAD, 2010).
Assim, o problema não é se outras culturas e situações históricas apresentam, de fato,
uma religião, mas uma necessária equalização entre o que o mundo ocidental compre-
ende como religião e o que outros contextos considera e elabora o fenômeno. Por outro
lado, o segundo problema, é que quando, nos primórdios da antropologia evolucionista,
com Taylor, Morgan e Frazer, por exemplo, e com outros antropólogos menos cuidado-
sos ainda, o questionamento se os não ocidentais possuíam uma religião ou não, os
colocava em uma situação de provável impossibilidade de elaborar as instituições, con-
cepções e práticas lidas como religiosas, ou seja, as que tinha como parâmetro aspec-
tos cristãos: uma divindade única, com a sua verdade revelada em escrituras sagradas.

Assim, antes da formação do que hoje consideramos como antropologia da re-


ligião, compreendia-se que essas sociedades não ocidentais, apresentavam “crenças”,
apenas, e que “Não se reconhecia nessas crenças uma verdadeira religião. Religião, afi-
nal, seriam somente as monoteístas, reveladas e denominadas religiões do livro” (GUER-
RIERO, 2013, p. 244).

Mas voltemos para a citação que abriu nosso subtópico. Silas Guerriero
apresenta um debate bastante repetido em nossa área. De fato, para muitas pessoas
que se dedicam ao estudo da religião na antropologia, não é possível falar em uma
Antropologia da Religião, no singular (CAMURÇA, 2008). Nesta unidade, a preocupação
está justamente no coração da antropologia, ou seja, na cautela para que não exista
uma projeção única de religião dominante, para todas as experiências possíveis que, de
alguma maneira, percebemos e reconhecemos como religiosa. Contudo, nas disciplinas
oferecidas nos cursos de antropologia, nas linhas de pesquisa e nos núcleos de pesquisa,
opta-se por falar em Antropologia da Religião. Conforme pontuam tanto Guerriero
(2013) quanto Camurça (2008), não é por denominar de Antropologia da Religião que
a disciplina considera que exista uma religião única. Se esse fosse o fato, não haveria
nem a possibilidade de uma antropologia. Entretanto, é importante compreender que
a disciplina ficou reconhecida assim, na unidade, justamente por herdar um esforço
unificador da disciplina. Isso levou para algumas definições essencialistas e universais
da religião, a quais nos referiremos no próximo subtópico.

63
IMPORTANTE
Com a dinâmica das nossas relações sociais, tendemos a naturalizar as-
pectos de nossas vidas que são construídos social e culturalmente. Um
fenômeno próximo ao naturalizar, é o de essencializar, que é tornar uma
realidade complexa em uma realidade simples, ao considerar que realida-
des humanas podem ser explicadas a partir de essências imutáveis. Esse
processo acontece, por exemplo, quando nos deparamos com uma rea-
lidade cultural distinta, e nela reconhecemos um elemento dessa cultura
como a sua característica central. Dessa maneira, há uma essencialização
de uma cultura, o que impossibilita a sua compreensão, pois o essencialis-
mo, ao reduzir a complexidade da realidade cultural, a deforma.

A Antropologia da Religião, obviamente, é o estudo das religiões, obviamente.


Mas também se preocupa em expandir o conceito de religião sempre quando entra em
contato com pessoas, de alguma maneira, relacionadas ao universo religioso. Conforme
já acompanhamos, desde o início da antropologia e também da sociologia, a religião
foi uma preocupação, muitas vezes central. Portanto, a preocupação com o religioso
atravessou a história da disciplina, não necessariamente precisando de um subcampo
dedicado a ela: “A Antropologia da Religião não nasceu como área específica, mas por
vias paralelas como um esforço de compreensão das diferenças entre os povos. Pensar
o diferente passava por pensar as diferentes mentalidades, fossem essas tidas por
animista, mágica, mítica ou até pré-lógica” (GUERRIERO, 2013, p. 244).

Aqui, fica impossível não ter compreendido que a diversidade é umas das princi-
pais chaves de leitura da antropologia. Com o subcampo da religião, acontece o mesmo.
Com o esforço de tentar compreender, conceber e até mesmo dominar essa diversidade,
encontrada também em uma variedade de práticas e concepções cosmológicas do mun-
do e do universo, a antropologia, e disciplinas vizinhas, tentaram definir a religião de di-
versas maneiras. Cabe ressaltar que: “Longe de demonstrar fraqueza teórica, essa diver-
sidade evidencia uma riqueza e um eterno questionamento que fez com que essa ciência
avançasse e renovasse a si mesma na busca de uma melhor compreensão da religião e do
ser humano em geral” (GUERRIERO, 2013, p. 248). Assim, antes de avançarmos para algu-
mas dessas definições, é preciso termos esse entendimento. O interesse da Antropologia
da Religião, o que justificaria que fosse considerada como Antropologia das Religiões, ou
até mesmo Antropologias das Religiões, é justamente alargar a nossa compreensão sobre
a humanidade e a religião, em suas pluralidades, conflitos, mediações e possibilidades.

No livro “Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmicas e interlocutores”, Mar-


celo Camurça reflete sobre a sua atuação enquanto antropólogo dentro de um Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Como podemos imaginar, dentro desse campo,
há também um debate: fala-se de ciências ou ciência, religião ou religiões? Evidentemen-
te que a resposta depende do que se pensa enquanto ciência e religião. Mas devemos
fazer um esforço de analogia entre o debate Antropologia da Religião / Religiões e Ciência
da Religião e Ciência(s) das Religiões. Mesmo quando se opta pelo singular, dificilmente a
64
escolha é por um esforço total de unidade, mas por um esforço de compreensão unificada
de determinadas experiências (a religião, portanto) e uma maneira de pensá-la, que no
caso da Ciência da Religião, se quer científica e mobilizadora de diversos subcampos e
subdisciplinas dentro de um mesmo espaço: uma ciência, um departamento. Leremos o
que Marcelo Camurça nos apresenta sobre Religião - Religiões:

É curioso notar a presença da denominação “ciência das religiões” nas


obras clássicas de pais-fundadores de nossa disciplina, como Émile
Durkheim e Marcel Mauss, para nomear aquilo que à época foi legiti-
mado como científico no estudo das religiões e em que estes autores
queriam intervir para cobrir insuficiências e acrescentar precisões teóri-
cas. Embora ambos os autores concebam a religião como expressão de
uma realidade sui generis – o social – presente em qualquer sociedade
concreta, “primitiva” ou moderna, logo como “algo de eterno destinado
a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento
religioso se envolveu” [citação de Durkheim], não há nenhuma repro-
vação por parte destes pais fundadores à colocação no plural do fe-
nômeno religioso. Por seu lado, Max Weber, outro pai fundador, apesar
de ter cunhado a expressão Religionssoziologie (Sociologia da Religião),
enfatizando o singular, em seus estudos sobre a tipologia da ação reli-
giosa, examina processos de diferenciação entre sistemas de crenças,
na tentativa de discernir e compreender as características distintivas de
cada trajetória (China, Índia, judaísmo) em relação à trajetória da “ética
protestante e o espírito do capitalismo” ocidental, logo em uma pers-
pectiva histórica e plural das religiões (CAMURÇA, 2008, p. 29).

Antes de evidenciar alguns dos aspectos elencados por Camurça, devemos


relembrar que Antropologia, como as ciências no geral, foi uma atividade, por conta
da maneira como as diferenças de gênero foram estruturadas na sociedade ocidental,
apresentando “formas agudas de desigualdade, especificamente no que diz respeito ao
direito à educação, à propriedade e ao voto” (MAZZARIELO e FERREIRA, 2015, n. p). Essa
organização social fez com que a ciência fosse destinada a homens, em sua maioria,
enquanto as mulheres que conseguiam furar essa barreira e limitação imposta pela
sociedade tiveram seus nomes silenciados. Não faremos, aqui, uma arqueologia desses
nomes, mas é importante, para que avencemos, que tenhamos isso em mente. Termos
como “pai fundador”, obviamente um termo facilmente identificado com um patriarcado,
expressam tal posição do homem na ciência e no estudo da religião.

IMPORTANTE
O conceito de gênero descreve as diferenças atribuídas entre homens
e mulheres justificadas como naturais, como na verdade, fazendo parte
de processos e construções sociais, históricas e culturais. Assim, as
desigualdades encontradas entre esses gêneros, concretizam-se por uma
percepção natural dessas diferenças e assimetrias de poder. Portanto,
as ciências sociais, junto com intelectuais feministas e de outros sujeitos
coletivos que se denominam para além das definições de gênero, têm
demonstrado os aspectos sociais e históricos das categorias de gênero.

Fonte: https://ea.fflch.usp.br/conceito/genero. Acesso: 27 de jul. 2022.

65
Assim, voltemos para os pontos de Camurça. Podemos centralizar o seu
argumento, fixando a ideia de que o termo ciências das religiões já aparecia nos
principais autores da antropologia e sociologia na transição do século XIX para o
XX: Émile Durkheim, Marcel Mauss, Max Weber, e que, portanto, não havia nenhuma
objeção desses autores a considerarem a religião em uma perspectiva plural, embora
acreditassem ser possível considerar as religiões das escrituras como mais complexas
do que as religiões tradicionais e étnicas de boa parte do mundo.

Com o desenrolar da Antropologia da Religião, o que predominou foi a postura


dessa disciplina diante de todos os fenômenos humanos. A ênfase na diversidade,
no relativismo como proposta metodológica, ética e epistemológica, que conforme já
acompanhamos, para Franz Boas, o ético e o metodológico eram inseparáveis. Portanto,
a religião, que em sua experiência pode ser pensada como absoluta, passa a ser pensada
pela antropologia por suas particularizações, das maneiras como grupos distintos cria
o religioso, imerso em aspectos sociais, culturais, históricos, linguísticos, dentre outros.

IMPORTANTE
Você deve ter reparado que já comentamos bastante sobre Émile
Durkheim (1858-1917). Agora, vimos o nome de Marcel Mauss (1872-
1950), que era o seu sobrinho. Durkheim, Mauss, mas também Henri
Hubert (1872-1927), Arnold van Gennep (1873-1957), Robert Hertz
(1881-1915), dentre outras pessoas, fazem parte do que denominamos
de “Escola sociológica francesa”, ou “Escola francesa de sociologia”. Caso
você tenha interesse em se aprofundar, cabe consultar os artigos de
Renata Menezes (2009), disponível em: https://bit.ly/3dL6uD3 e o artigo
de Juliana de Farias Pessoa Guerra e Paulo Henrique Martins (2013),
disponível em: https://bit.ly/3CiDhsm.

Se a Antropologia passou a se interessar pela religião, a partir do estudo


das religiões dos “outros”, hoje ela se interessa, dialoga e investiga como as diversas
religiões fabricam o social, assim como podem interagir dentro das sociedades
contemporâneas com inspirações democráticas, laicas e seculares. Atualmente, apesar
das múltiplas possibilidades de se interpretar o religioso, compreende-se que nossas
percepções do religioso são historicamente situados, atravessada por relações de poder
bem específicas (ASAD, 2010), por isso a ênfase, ainda, nas pesquisas de campo e na
produção de etnografias que busquem ampliar a noção que temos de religioso, assim
como contrastá-la, distorcê-la e colocá-la em relação com as infinitas possibilidades
apresentadas pelas pessoas, nos mais variados grupos e espaços. Isso significa que
o religioso é pensado junto com aspectos sociais e históricos. Isso não implica em
desconhecer ou desvalorizar a experiência religiosa e aquilo que o sagrado fabrica para
além do estritamente social:

66
Concluindo estas minhas ideias, gostaria de dizer que a tentativa de
me opor a uma perspectiva essencialista de religião – que comportaria
uma ciência própria – não significa que defenda um reducionismo
socioantropológico stricto sensu da dimensão religiosa a uma
fundamentação sociocultural, em que ela exerça apenas funções
de integração ou compensação de relações sociais. Como observou
Magalhães, em ensaio sobre os paragimas em ciências da religião,
a experiência religiosa aponta para “algo mais, que transcende o
aspecto da função social, [das] relações sociais” que é o seu “lado
fantástico, fantasioso e poético, [...] dimensão da auto-satisfação,
do envolvimento com o lúdico, [...] subjetividade do encontro com o
sagrado (CAMURÇA, 2008, p. 34).

IMPORTANTE
O conceito e representação social e/ou coletiva é central para a sociologia
de Durkheim e a escola sociológica francesa. Está próximo do fato social:
um fenômeno exterior ao indivíduo, coercitivo e coletivo. Entretanto, é
mais flexível, pois está na ordem das interações sociais e simbólicas. Desta
maneira, as representações coletivas fazem parte da maneira como um
grupo social produz conhecimento e ação social. Assim, “Socialmente, as
representações coletivas sintetizam o que os homens pensam sobre si
mesmos e sobre a realidade que os cerca” (OLIVEIRA, 2012, p. 71).

É nesse sentido que a antropologia acrescenta nas relações entre religião e


ciência, que sabemos, muitas vezes acontecem a partir de tensões, justamente pelas
características da religião, em grande parte, de construir respostas mais absolutas, en-
quanto as ciências (sociais), evidentemente, trabalham com hipóteses, métodos, verifi-
cações, testagens e distorções das próprias hipóteses a partir de pesquisa empírica, e
daí por diante. Contudo, “o antropólogo cumpriria, então, o papel de intérprete e inter-
locutor – mediador cultural por excelência – entre estas duas dimensões antinômicas,
cada uma portadora de sua episteme e cosmovisão” (p. Camurça, 2008, p. 35).

3 TEMAS CLÁSSICOS DA ANTROPOLOGIA DA RELIGIÃO:


MAGIA, ANIMISMO E TOTEMISMO
Há diversas definições de religião. Comentaremos algumas. Nosso critério será
o seu impacto nas pesquisas posteriores e a sua importância para o estudo das religiões
em uma perspectiva antropológica, além de ter um interesse histórico, por exemplo,
quando falarmos das distinções que se fez entre magia e religião, por exemplo, assim
como nas tentativas de uma definição mínima, ou elementar de religião, baseado no que
foi considerado como animismo e totemismo.

67
3.1 MAGIA
Em Esboço de uma teoria geral da magia (1902), Marcel Mauss e Henri Hubert
ensaiam uma definição sociológica da magia, considerando-a como um fenômeno que
se relaciona, mas que é distinto da religião. Posteriormente, veremos que a distinção
entre magia e religião, apesar de ser evocada por algumas pessoas religiosas, na prática,
não se sustenta de uma maneira definitiva. Mas voltemos para o “esboço”. Magia,
portanto, seria percebida e estudada a partir de uma outra noção, que é importante
para os estudos socioantropológicos da religião, o rito:

Chamamos assim todo rito que não farpam de um culto organizado,


rito privado, secreto, misterioso, e que tende no limite ao rito proibido.
Dessa definição, levando em conta a que demos dos outros elementos
da magia, resulta uma primeira determinação de sua noção. Percebe-
se que não definimos a magia pela forma de seus ritos, mas pelas
condições nas quais eles se produzem e que marcam o lugar que
ocupam no conjunto dos hábitos sociais (MAUSS, 2003, p. 61).

Antes de chegar a essa definição, Hubert e Mauss, desenvolvem essa noção


de que a magia seria a “anti-religião”, construindo, analogias entre o que se faz no dia
e na noite, para distinguir esses dois fenômenos. Assim, para os dois autores, “Ela [a
magia] tende para o malefício, em torno do qual se agrupam os ritos mágicos e que
sempre oferece os contornos principais da imagem que a humanidade formou da
magia” (MAUSS, 2003, p. 59). Nesse aspecto, a magia costuma ser ilícita sob a ótica
da religião e do direito. Devemos destacar que para Hubert e Mauss, a magia, apesar
de estar concentrada no mágico, enquanto indivíduo, é uma força social, pois elenca
representações sociais, empreende um tipo de conhecimento e tem sua eficácia ritual
e prática. Assim, “enquanto a religião, por seus elementos intelectuais, tende para a
metafísica, a magia, que descrevemos mais apaixonada pelo concreto, dedica-se a
conhecer a natureza” (MAUSS, 2003, p. 176).

Ainda nesse aspecto, os sociólogos citados apostavam que a ciência foi


elaborada, em parte, por mágicos nas mais diversas sociedades antigas e ditas
“primitivas”. “Os mágicos alquimistas, os mágicos astrólogos, os mágicos médicos foram,
na Grécia, como na Índia e noutras partes, os fundadores e os obreiros da astronomia,
da física, da química, da história natural” (MAUSS, 2003, p. 176).

Assim, ambos continuam apostando na diferença da magia com a religião, e


na aproximação da primeira com o conhecimento empírico e científico. Como dialoga
com um público europeu, também reforça que a magia não é questão do passado
de sua sociedade, nem exclusiva das sociedades ditas “primitivas” e “selvagens” pelo
pensamento eurocêntrico da época.

Por mais distantes que pensemos estar da magia, ainda continuamos


presos a ela. Por exemplo, as ideias de sorte e de azar, de quintessência,
que nos são ainda familiares, são muito próximas da ideia da própria
magia. Nem as técnicas, nem as ciências, nem mesmo os princípios
diretores de nossa razão estão lavados de sua mancha original. Não

68
é temerário supor que, em boa parte, tudo o que as noções de força,
de causa, de fim, de substância ainda possuem de não positivo, de
místico e de poético, deve-se aos velhos hábitos mentais de que
nasceu a magia, e dos quais o espírito humano é lento em desfazer-
se (MAUSS, 2003, p. 177).

Podemos perceber que os autores possuíam uma perspectiva evolucionária e li-


near de magia. Acreditavam que, embora fosse um processo difícil, lento e gradual, a
magia abandonaria a sociedade moderna ocidental. Eles apostam nessa durabilidade por-
que acreditam que a magia é uma “forma primeira de representações coletivas” (MAUSS,
2003, p. 178). Sabemos que a magia continua existindo nas mais diversas sociedades, in-
clusive nas ocidentais e ocidentalizadas. Assim como, não necessariamente, se distingue
da religião. Em muitos momentos, há a utilização do termo “mágico-religioso” (GOODY,
2012), por exemplo. De qualquer maneira, o pensamento de Mauss, e da escola socioló-
gica francesa, contribui para erradicar outros tipos de preconceitos de sua época. Pois, é
verdade, a impressão que fica ao acompanharmos essa definição é de que estamos mais
próximos da magia do que próximos de expurgá-la de nossas práticas, além disso, a es-
cola sociológica francesa teve outro triunfo, que Guerriero nos apresenta:

Seu grande triunfo foi quebrar a visão positivista e evolucionista


dominante no final do século XIX, que atribuía o pensamento
mítico e religioso, e por extensão o pensamento mágico, ao campo
do primitivismo arcaico a ser substituído, então, pela verdade
científica. Ao considerar o sagrado e a religião como construções
sociais, empreendeu uma guinada de pensamento, pois a religião
e a magia não seriam mais vistas como produtos de uma mente
primitiva, compreendida pelo atraso biológico da raça, mas, sim,
como elementos do processo de classificação e de elaboração das
representações sociais (GUERRIERO, 2012, p. 13).

Há uma afirmação que, embora parta também do senso comum, serve para
pensarmos um sobre a magia na contemporaneidade. Diz-se que a magia é a religião
do outro. Isto significa que esse argumento é mobilizado quando não se reconhece
a prática religiosa de um coletivo ou grupo social, enquanto real, ou seja, tendo valor
equivalente ao religioso do observador (GUERRIERO, 2014).

3. 2 ANIMISMO
O animismo foi pensado por muitas autorias. Entretanto, foi em Edward Tylor
(1832-1917), que já conhecemos, que o termo ganhou destaque como uma tentativa
de definição mínima de religião, pois: “Quando Tylor escreveu sobre o culto dos mortos
como sendo central para o desenvolvimento da religião, o significado é claro porque
ele propõe uma definição mínima de religião: a crença em seres espirituais, ou seja, o
animismo” (GOODY, 2012, p. 21).

Foi em seu livro Primitive Culture (Cultura Primitiva), publicado em 1871, que
Edward Tylor apresentou a sua elaboração sobre o animismo. Para Tylor (1871), o animismo
faz parte de uma definição mínima de religião. Dessa forma, poderíamos compreender, a

69
partir dela, como se formaram as outras ideias religiosas. Nessa concepção, animismo é
a crença de que certos seres e objetos do mundo são dotados de alma. Pedras, vegetais,
rios e outros elementos da natureza, por exemplo, são pensados como animados, no sen-
tido de possuírem alma. Vale ressaltar que Tylor acreditava que essas crenças foram for-
madas a partir do sonho. Por conta do mundo onírico, a humanidade forjava seus espíritos
e deuses. Assim, Tylor apresenta a sua definição mínima de religião: “a crença em seres
espirituais”, e esses seres devem ser compreendidos como “sujeitos conscientes, dotados
de poderes superiores aos que possui o comum dos homens; essa qualificação convém,
portanto, às almas dos mortos, aos gênios, aos demônios, tanta quanta às divindades
propriamente ditas” (TYLOR APUD DURKHEIM, 1996, p. 11-12).

É importante nos lembrarmos que Tylor estava inserido em um paradigma


evolucionista de cultura. Assim, o animismo seria a etapa mais simples do religioso,
evoluindo, posteriormente, para as etapas do politeísmo e do tão valorizado, moderno
e cristão monoteísmo. Portanto, “o animismo seria universal e o primeiro estágio
do processo evolutivo daquilo que viria a se tornar a religião. Embora sem a crença
em deuses, o primitivo atribuía os fenômenos naturais à intervenção de espíritos
benevolentes ou malévolos” (GUERRIERO, 2013, p. 244).

Essa definição mínima, ou seja, a crença em seres espirituais, como podemos


perceber, apresenta muitos problemas, como qual seria a separação entre natural e
sobrenatural (GOODY, 2012), além de não abarcar o budismo, por exemplo. Atualmente,
o animismo tem sido revisitado pela antropologia. Há uma valorização em concepções
cosmológicas sobre a vitalidade de coisas e seres nesse mundo, que amplie a noção
ocidental de agência humana e da separação entre vida humana e social e a ação de
agentes não-humanos. Assim, o animismo seria uma maneira de relacionar natureza
e cultura, segundo o antropólogo Philippe Descola pensou junto com a população
indígena Achuar. Ele conta em entrevista:

De repente, o animismo ressurgiu das cinzas. De minha parte,


utilizei o termo porque, em relação ao totemismo classificatório, ele
tinha a vantagem de enfatizar algo que havia sido completamente
deixado de lado havia um bom tempo. As teorias do ritual não se
interessavam por isso, na época; e não somente Lévi-Strauss, uma
vez que, em Turner, por exemplo, a noção de animismo tampouco
estava presente. É um pouco como a ideia de uma “antropologia da
natureza”. Por vezes, isso pode enganar. Eu estava num colóquio
em Berlim, há algumas semanas, em que Wendy James, que alguns
de vocês conhecem, me disse que não se pode falar de “animismo”.
Ela trabalha com as populações nilóticas do sul do Sudão, que são
desqualificadas como “animistas” pelas populações muçulmanas
do Norte. E essas pessoas se refugiam em cavernas porque são
bombardeadas. Na verdade, ela me censurava por contribuir para
a difusão de um estereótipo estigmatizante, com consequências
evidentemente dramáticas. Mas, é claro que o animismo dos Achuar
definido pelos antropólogos, não é, de forma alguma, a mesma coisa
que o animismo dos Dinka definido pelos missionários e o governo de
Cartum! (DESCOLA, 2013, p. 508).

70
IMPORTANTE
Cosmologia é um conceito central para a antropologia. No caso da antropologia
produzida no Brasil, foi desenvolvida no campo da etnologia indígena
e está relacionada, intimamente, com outro importante conceito para
as ciências sociais, a noção de pessoa. Isso significa que há muitas variações
sociais sobre a concepção de pessoal, do que a define, como é construída e
quais moralidades e práticas as atravessa e constitui. A cosmologia situa a
pessoa, o corpo e a sociedade em uma dimensão cósmica e ampla. Por essa
razão, é muito próxima da religiosidade. No artigo “A construção da pessoa
nas sociedades indígenas brasileiras”, Anthony Seeger, Roberto da Matta e
Viveiros de Castro (1979) apresentam as articulações sobre a noção de pessoa
e a cosmologia. Embora na antropologia contemporânea consideramos que
há cosmologias nos universos da ciência e do próprio capitalismo, a noção
de cosmologia geralmente é empreendida para descrever sociedades que
elaboram concepções morais, econômicas e políticas diferentes da ciência
moderna e ocidental (SILVA, 2020).

Portanto, conforme Descola aponta, o animismo deixa de ser uma definição mí-
nima de religião, que passa pela definição de Tylor, passa a ser, como muito o foi, uma
categoria de acusação, como no caso dos missionários em contato com sociedades tra-
dicionais do Sudão (os Dinka, por exemplo), ou o governo da capital daquele país (Car-
tum), por ser de maioria mulçumana, acusa de animista essa e outras sociedades tradi-
cionais. Descola, ainda assim, defende o uso como categoria antropológica situada no
contexto dos Achuar, sem ter a pretensão de espalhá-la para todo o mundo. Tampouco,
a ideia é dizer que determinado povo é animista ou não, mas mostrar como o animismo
pode ser pensado com uma antropologia da natureza, em determinados contextos.

3.3 TOTEMISMO
O totemismo, assim como o animismo, foi uma tentativa de compreender
práticas e concepções tão diversas, que fez com que a antropologia no século XX e em
diante, passasse a duvidar se fosse, de fato possível, reunir todos esses acontecimentos
em um único rótulo e conceito de totemismo.

Émile Durkheim, por exemplo, cunhou uma definição de religião a partir do estudo
bibliográfico de materiais etnográficos sobre as sociedades tradicionais australianas,
que ele definia como totémicas, isto é, a religião desses grupos, segundo Durkheim,
partia do totemismo enquanto um sistema de classificação. Portanto, em seu As formas
elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, publicado em 1912,
Durkheim apostou que o totemismo seria a forma de religião “elementar”, isto é, a mais
simples e que derivou o próprio animismo. Ao analisar o totemismo, Durkheim acreditava
que podia extrair uma definição fundamental e universal de religião. O sistema do totem,
como o próprio Durkheim reconhece, tem esse nome apenas em sociedades indígenas
na América do Norte. Mas com o desenrolar da história das religiões comparadas,

71
acreditou-se encontrar elementos similares em diversas outras sociedades, inclusive
nas australianas, o que justificaria a classificação destas enquanto totêmicas. Esse
tipo de transformação de uma categoria êmica de determinadas sociedades, em uma
categoria antropológica de pretensões mais amplas, foi comum na antropologia, com as
noções de mana e tabu, por exemplo. Mas Durkheim, portanto:

Durkheim toma o totemismo como uma forma elementar de religião


que, pela sua simplicidade, permitiria acessar o fundamento de toda
configuração religiosa como um modo de conhecimento sistemático
do mundo a partir de sua divisão nas categorias sagrado e profano,
formas primeiras e universais de “representação”. O totemismo
também é estratégico para a tese durkheimiana de que as categorias
de pensamento não são dadas a priori, isto é, não são anteriores à
experiência nem imanentes ao espírito” (MONTERO, 2014, p. 128).

Assim, Durkheim estabelece que estudar as religiões como fatos sociais é


compreendê-las como elementos da representação coletiva, assim como um estudo
de sociologia do conhecimento. O totemismo seria um sistema de organização social
que colocaria em relação diversos tipos de grupos, mediados por emblemas e totens.
Para além dessas definições que ficaram mais ancoradas no tempo de Durkheim, a sua
definição de religioso como uma instituição que divide o mundo em aspectos sagrados
e profanos, muito influenciou as ciências sociais posteriores. Sobre o totem como
organização social e religião, a antropóloga Paula Montero comenta:

O totem associa pessoas dispersas em uma comunidade moral que


se reconhecem por serem portadoras de um mesmo emblema, essa
representação inscrita nas coisas e no corpo do nativo para expressar
seu pertencimento. Nesse sentido, tudo o que as relações sociais
reúnem sob a mesma rubrica é representado como sagrado, posto
que organizam simbolicamente um grupo” (MONTERO, 2014, p. 133).

Isso não significa que a teoria de totem de Durkheim seja aceita até hoje.
Veremos, adiante, que o totemismo passou por diversas configurações e contestações
desde Lévi-Strauss, que publicou a obra “O totemismo hoje” em 1962. Apesar de não
descartar a importância da obra de Durkheim sobre a religião e reconhecer a sua
contribuição na contemporaneidade, Renato Ortiz aponta o problema de Durkheim ter
enraizado a sua análise no totemismo como uma realidade encontrável nas sociedades
australianas, assim como influenciadora de outras formas de religião:

O próprio objeto escolhido por Durkheim, o totemismo, é colocado em


causa, por ser considerado um tipo de organização atípica e que difi-
cilmente poderia servir de base para a generalização de suas conclu-
sões. Na verdade, a ideia de que o totemismo constituiria um sistema,
como pensava Frazer, cai por terra; cada vez mais se percebe que por
trás dessa denominação comum existia um conjunto de fenômenos
distintos. Lévi-Strauss (1974) dirá que nos encontrávamos diante da
história de uma ilusão que pouco a pouco se desfaz (ORTIZ, 2012 p. 18).

Apesar dessas inconsistências, o conceito de Durkheim de religião continua


influenciando as pesquisas em antropologia e sociologia da religião, sofrendo,
evidentemente, modificações, distorções, críticas e reformulações. Por não ter inserido

72
a sua definição dentro de uma noção, necessariamente totêmica, mas também pela
consistência de alguns dos elementos que Durkheim apresenta, a sua definição de
sociologia, portanto, continua inspirando os estudos socioantropológicos. Então, como
Durkheim define a religião no seu livro? Para o sociólogo francês: “uma religião é um
sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas,
proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada
igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM, 1996, p. 32)

Sobre isso, é importante termos bem definido que igreja, aqui, não é a mesma
do senso comum cristão. Igreja, para Durkheim, é uma instituição que agrega, reúne e
evidentemente, institucionaliza a religião. Uns dos aspectos mais importantes de seu
conceito está na noção de comunidade moral, que faz com que uma série de elementos
e práticas sejam consideradas como proibidas, inseridas na dinâmica do tabu. Por isso
a separação entre sagrado e profano.

Atualmente, conforme já conversamos, o totemismo não é considerado como um


conceito que consegue, de fato, abarcar todas as experiências, sistemas e organizações
que no passado, pretendeu reunir e explicar. Lévi-Strauss, em “O totemismo hoje”: “o
define como um dispositivo classificatório que transpõe as distâncias diferenciais
entre uma série natural — a descontinuidade morfológica entre as espécies — para a
esfera cultural — as distâncias diferenciais no interior da série dos grupos totêmicos”
(DESCOLA, 2013, p. 498). Assim, o totemismo é mais um dispositivo de classificação
social que relaciona a natureza (a descontinuidade morfológica entre as espécies) com
a cultura, ou seja, a maneira como as diferenças e as distâncias são pensadas, entre
grupos, a partir de suas classificações totêmicas.

4 A RELIGIÃO NA ANTROPOLOGIA CONTEMPORÂNEA


A Antropologia da Religião contemporânea herda essas diversas classificações,
assim como já a ampliou, reformulou, criticou e construiu um quadro comparativo e mais
dinâmico das religiões. Hoje, é possível utilizar o arcabouço da antropologia da religião
para estudar fenômenos que não se enquadram, segundo as pessoas envolvidas, no
campo religioso, como é o caso das espiritualidades (TONIOL, 2017). Vamos apresentar
alguns desses temas, focados na antropologia da religião desenvolvida no Brasil.

Podemos dizer que o tema da antropologia da religião, em nosso país, começou


com os estudos das religiões formadas no contexto da diáspora africana e da escravi-
dão, que foi estudada sob as mais diversas perspectivas teóricas, desde o paradigma
racialista e evolucionista de Nina Rodrigues (1862-1906), que realizou uma etnografia de
terreiros de Salvador, publicada em capítulos de 1896-97. Desde então, muitos autores e
autoras, tais como Edison Carneiro, Manuel Querino, Gilberto Freyre, Ruth Landes, Roger
Bastide, Marlene Cunha, Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento, cada uma ao seu modo,
ajudaram a consolidar esse campo, muitas vezes nomeado como estudos afro-brasi-
leiros, assim como contribuíram em sua crítica e ampliação. Por outro lado, a etnologia

73
indígena também se interessou pelas religiões indígenas, evidentemente, assim como
buscou analisar como essas religiões se tensionaram a partir do contato colonial, da
catequese e das mediações (MONTERO, 2006). Essa predominância dos estudos an-
tropológicos da religião enfatizando as religiões minoritárias, está relacionada com a
própria história da antropologia no Brasil: “Duas tradições inauguraram a antropologia
brasileira: a dos estudos das populações indígenas e a das populações afro-brasileiras”
(SILVA, 2008, p. 285).

Hoje, muitos temas são possíveis, desde as religiões de matriz africana e a


persistência da intolerância e do racismo religioso, as religiões indígenas e os sistemas
xamânicos, a religião e o espaço público, o secularismo, a maneira como as religiões
constroem paisagens e sociabilidades urbanas, as religiões nas sociedades camponesas,
o catolicismo popular e o controle eclesiástico, o aumento da presença evangélica
na política e muitos outros. Há uma variedade de programas de pós-graduação em
Antropologia por todo o país, com diversos núcleos de pesquisa voltados para a religião.

Em um livro que reúne pesquisas realizadas a partir dos Programa de Pós-


Graduação em Antropologia da UFBA, em Salvador e o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da UFRGS, em Porto Alegre, Emerson Giumbelli e Fátima Tavares
refletem que: “estudar a religião reitera-se como oportunidade para o exercício de
variadas elaborações analíticas, que permitem relacioná-la a muitas outras dimensões
culturais e sociais” (GIUMBELLI e TAVARES, 2015, p. 10). Dentro desse subtópico, vamos
acompanhar algumas das pesquisas que foram reunidas nesse livro, a critério de
exemplo. Cabe comentar o que Giumbelli e Tavares reforçam com relacionar a religião
com dimensões culturais e sociais. Já vimos que a antropologia, quando estuda a
religião, tende a inseri-la em contextos sociais, culturais e históricos, predominando
a crítica que Talal Asad fez ao conceito essencialista de religião de Geertz. Antes de
continuarmos, então, retornemos a esse ponto.

A definição de religião enquanto sistema cultural, de Clifford Geertz, embora não


seja apreendida de maneira acrítica, exerceu forte influência em nossa antropologia.
Não será muito difícil encontrar pesquisadoras e pesquisadores que se interessam pela
religião, baseando a sua pesquisa em um desdobramento do conceito de Geertz.

Foi na década de 1960 que Geertz “estabelece uma definição de religião tida
como clássica atualmente. Religião para ele é um sistema de símbolos, e a possibilidade
de estudo se dá por uma via Hermenêutica e Semiótica” (GUERRIERO, p. 2013, 249).
Isso não significa que Geertz tenha sido o único a enfatizar a questão do símbolo, do
signo, do significado e do simbolismo como entradas para interpretar o religioso. Essas
chaves analíticas e conceituais foram utilizadas desde sempre, apesar de Geertz ter
empreendido um esforço de uma antropologia interpretativa, que por consequência, é
um desdobramento da antropologia cultural norte-americana. Assim, acompanharemos
com uma maior precisão o que é uma religião para Geertz:

74
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência
geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade
que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas
(GEERTZ, 2008, p. 67).

INDICA
A antropologia interpretativa, hermenêutica ou simbólica, é uma corrente do pensamento
antropológico que enfatiza a raiz humanística das ciências sociais, reforçando que a
realidade social e cultural deve ser entendida sob uma perspectiva compreensiva.
Essa perspectiva tem base no sociólogo alemão Max Weber, que propunha que
a sociologia fosse uma ciência compreensiva. Assim, a ciência social interpreta
e compreende, no lugar de explicar. O antropólogo norte-americano Clifford
Geertz (1926-2006) reelaborou essa perspectiva e foi uns dos principais
responsáveis pela consolidação de uma antropologia interpretativa. Para ele,
a antropologia é uma atividade empírica, mas sobretudo interpretativa, pois
a ação humana é sempre simbólica. Umas das principais obras de Geertz,
de apresentação ao seu paradigma hermenêutico, é A interpretação das
culturas, publicado pela primeira vez em 1973.

Esse conceito, de alguma maneira, está presente na própria representação co-


letiva da antropologia social do que seria religião. Silas Guerriero, por exemplo, considera
esse conceito útil e que serve, também, para descrever e analisar as espiritualidades
(GUERRIERO, 2013). Como já acompanhamos, Talal Asad critica essa definição de Geertz:

Asad procura examinar os caminhos pelos quais a busca teórica por


uma essência da religião, trans-histórica, convidou a separar a religião
da política. Faz isso por meio de uma análise da definição de Geertz.
Seu argumento é que não pode haver uma definição universal de reli-
gião, não apenas porque seus elementos constitutivos e suas relações
são historicamente específicos, mas porque é ela mesma um produto
histórico do processo discursivo (GUERRIERO, 2013, p. 250-251).

Portanto, além da permanência da religião enquanto sistema simbólico,


na antropologia da religião, há a tendência de considerá-la como fazendo parte de
processos históricos e discursivos, assim como a coloca dentro do poder. Ou seja, umas
das perguntas que a antropologia deveria fazer, segundo Talal Asad, mas também o
próprio religioso, seria: “Quais são as condições em que símbolos religiosos de fato
podem produzir disposições religiosas? Ou, como diria alguém que não crê: como o
poder (religioso) cria a verdade (religiosa)?” (ASAD, 2010, p. 267).

Voltemos ao livro “Religiões e temas de pesquisa contemporâneos: diálogos


antropológicos”, organizado por Fátima Tavares e Emerson Giumbelli. Com esse livro,
podemos ter uma boa noção de como a antropologia da religião é importante e como
ela é mobilizada no Brasil contemporâneo.

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O livro é dividido em 4 partes, e conforme já acompanhamos, relaciona pesqui-
sas feitas em Salvador e Porto Alegre, no Nordeste e no Sul brasileiro, respectivamente.
Por limitação de espaço, comentarei as duas primeiras partes desse livro.

A primeira parte, “Religiões, patrimônio e cidade”, relacionam o tema da


religião com a sociabilidade urbana. Nessa parte, (a) há pesquisas sobre o acarajé e a
tentativa evangélica de substituir os símbolos afrorreligiosos dessa comida sagrada e a
transformando em “bolinho de Jesus” (ÉVORA, 2015); (b) uma reflexão sobre a presença
das religiões afro-brasileiras no espaço público, no sul do Brasil, e as controvérsias
geradas a partir do deslocamento de uma imagem de Oxum em uma cidade gaúcha
(HÉRBELE, 2015); c) uma análise relacionando religião, modernidade e cidade, a partir
do desaparecimento de uma festa afro e católica, a Lavagem da Pituba, em Salvador,
que homenageava Nossa Senhora da Luz (RAMOS, 2015); d) um ensaio que articulou
três casos empíricos distintos, em Porto Alegre, para pensar as relações entre religião,
cidade e modernização (GIUMBELLI, HÉRBELE, KERBER, 2015).

Como podemos perceber, essa primeira parte apresenta uma pluralidade de


temas e abordagens, mas articula, cada um a seu modo, maneiras como a religião é
uns dos aspectos que “faz sociedade”. É dessa maneira que a pesquisadora Léa Perez
comenta esse primeiro bloco de pesquisa:

Assim é muito bem-vindo e vindo em boa hora uma renovada


abordagem antropológica das relações entre cidade e religião nos
quadros da modernidade, nos mostrando o potencial analítico
que este par enseja em termos de uma compreensão ampliada da
questão sociológica fundamental, o que faz sociedade, isto é, o que
liga as gentes e as coisas em comunidade, seja a afetiva de desejos
e de sonhos, seja a de crenças e de fé, seja a política, pautando e
regulando a comunicação e as trocas, conformando o viver em
coletividade e seus ritmos sociais (PEREZ, 2015, p. 123).

A segunda parte, “Religiões, redes de cuidado e vulnerabilidades”, acompanha como


agentes religiosos e sociais, no geral, se articulam para a construção de modos de cuida-
do e de assistência para com comunidades e pessoas vulnerabilizadas. Nesse bloco, en-
contramos pesquisas que: a) apresentam como um curso de formação para cuidadoras de
idosos, em Salvador, conflitam, ou às vezes confluem, valores (ou a sua ausência) religiosos
das cuidadoras, com valores (ou a sua ausência) religiosos das pessoas idosas; b) os ten-
sionamentos e trocas entre práticas filantrópicas, políticas públicas assistenciais e religião
(DECKER, 2015); c) como as religiões católicas, evangélicas e afro-brasileiras se relacionam
com práticas terapêuticas, por conta das vulnerabilidades das redes de cuidados de uma
série de municípios, a Baía de Todos os Santos (TAVARE; BASSI, 2015); d) uma etnografia de
como catadores de lixo, em uma comunidade popular em Porto Alegre, relacionam-se com
uma igreja evangélica, mobilizando ação social e religião (STEIL; SANTOS, 2015).

Nesse segundo bloco, a antropóloga Regina Novaes aciona as mutações das


experiências religiosas no campo religioso brasileiro, que rotacionou a hegemonia
católica na sociedade brasileira, inclusive nos projetos de assistência social, indagando:

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“O decréscimo da população católica não significa necessariamente um óbvio
enfraquecimento de seu poder institucional. Mas, como (re)definir o lugar e o peso do
catolicismo nas identidades, expedientes e recursos da vida cotidiana e, também, no
acesso e efetivação das políticas públicas?” (NOVAES, 2015, p. 226-227) Essas perguntas
ainda estão em processo de resposta, mas nos ajuda a compreender como não há
respostas fáceis na área da antropologia da religião. Como encontramos no trecho a
seguir, de Giumbelli e Tavares, uma reflexão sobre a complexidade do que é religião e
como ela está relacionada com outras esferas da nossa vida:

Em suma, nas cidades a religião aparece em seus templos (lugares de


culto), mas também fora deles, em muitas formas e muitos lugares.
Nas cidades, a religião pode se converter em cultura e pode adquirir
expressão social. E assim se multiplicam ainda mais os lugares e
dimensões, como mostram os textos reunidos neste livro. Um mapa
das religiões nas cidades precisaria de muitas legendas e cores para
dar conta dessas variáveis. Mas não simplifiquemos os lugares de
culto, pois nos casos que envolvem cultura e sociedade, a religião
não precisa estar fora dos templos, bastando que o que acontece
neles conquiste um reconhecimento por meio do qual concepções
cosmológicas e práticas devocionais adquirem outros sentidos além
dos religiosos. Ou seja, os templos, nas suas mais diversas formas, só
dentro de certa visão são o lugar estrito de prática da religião. Pois a
religião que neles se pratica projeta-se para o exterior, nem que seja
meramente pelo modo como se apresenta na arquitetura externa
dos templos, comunicando-se com as outras formas de presença da
religião na cidade. Pois a religião que neles se pratica pode incorporar
sentidos que dependem de agentes e agenciamentos não religiosos,
como aqueles mobilizados pelas categorias “cultura” e “social”. Assim,
quando buscamos os limites da religião, a tentativa de precisá-los nos
leva não a encontrar contornos que constrangem substâncias, e sim
a percorrer caminhos que seguem em muitos sentidos” (TAVARES E
GIUMBELLI, 2015, p. 15-16).

Assim, a religião, apesar de ter sua institucionalização nos seus lugares de culto,
ela transcende esses espaços e percorre a sociedade. O religioso pode se transformar
em “cultural”, em “social”, por um lado, e por outro, quando somos obrigados a definir
os “limites da religião”, não encontramos uma substância, em separado, da vida social,
mas muitas concepções e práticas associada a ela. Por isso, as pesquisas empíricas,
etnográficas e comparativas se fazem pertinentes e importantes, afinal, a antropologia
contemporânea não trabalha com definições essencialistas nem universalistas, e a
elaboração conceitual é constantemente re-feita, na medida em que pesquisas e
diálogos se ampliam.

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RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• A religião, desde a formação da antropologia social e cultural moderna, foi tema e


objeto de estudo dessa ciência. Portanto, de início, não houve uma necessidade de
criar um subcampo denominado de Antropologia da Religião. Entretanto, no século
XX, com o desenvolvimento da disciplina e a proliferação de subcampos dentro da
própria antropologia social e cultural, a Antropologia da Religião passou a fazer parte
de programas e linhas de pesquisa, ganhando livros e revistas próprias, especiali-
zadas no assunto. O cenário hoje, da Antropologia da Religião, é de uma multipli-
cidade de métodos e maneiras de construir a pesquisa, enfatizando a importância
do trabalho empírico, em diálogo com agentes religiosos e não religiosos. A diversi-
dade é tanta, no cenário da Antropologia da Religião, que fez com que a disciplina
continuasse no singular por costume, pois na experiência, sabemos que estamos
estudando junto a religiões.

• A religião, por ter sido sempre umas das preocupações da antropologia social e
cultural, e por consequência, essa ciência ter se dedicado ao estudo de sociedades
não-ocidentais, passou por diversas definições, conceitualizações, a partir do
contato com as religiões ditas primitivas, tradicionais e minoritárias, assim como
noções que antes estavam fora dos estudos sobre religião, tais como magia,
animismo e totemismo, passaram a fazer parte da história das religiões comparada.
Assim, a ampliação e redefinição do que seria religião, entra em pauta constante na
Antropologia da Religião, sem almejar alcançar uma resposta definitiva.

• Aprendemos como a religião, na antropologia, passou desde por definições míni-


mas, essencialistas e universalistas, até chegar em conceitualizações localizadas
historicamente. Essa tensão entre uma perspectiva universal e outra histórica e
culturalmente desenhada, atravessa a antropologia contemporânea. Acompanha-
mos, portanto, exemplos de como a Antropologia da Religião, no Brasil, elege seus
temas de pesquisa e redefine a religião em diálogo com os mais diversos agentes.
São temas contemporâneos da Antropologia da Religião: as relações entre cidade,
espaço público e religião; movimentos sociais e assistenciais e religião, religião e
modernidade, dentre muitos outros.

78
AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia da Religião recebeu influência da “escola sociológica francesa”, que
possuía como o seu maior representante, o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917),
autor de As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico (1912), reforçando
a tradição de se estudar a religião a partir das religiões “ditas” primitivas, por serem
consideradas mais “simples” e por não possuírem ligação histórica com nenhuma
outra religião, principalmente as chamadas religiões da revelação e da escritura.
Sobre a obra do Durkheim e a referida escola assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Émile Durkheim acreditava que as religiões totêmicas eram mais simples do que
as religiões monoteístas, por isso seria impossível compreender as religiões mais
elevadas a partir do conhecimento das religiões mais simples.
b) ( ) A escola sociológica francesa era formada exclusivamente por franceses. Um
de seus fundamentos era a defesa da civilização francesa como o ápice da
humanidade.
c) ( ) O livro As formas elementares da vida religiosa, apesar de ter mais de cem anos,
continua relevante nas ciências sociais da religião contemporâneas.
d) ( ) Junto com Marcel Mauss, Émile Durkheim defendia que o totemismo, apesar
de apresentar elementos religiosos, não poderia ser compreendido como uma
religião, por ser demasiado simples.

2 A Antropologia da Religião, alargou a própria definição de religião no mundo ocidental,


inserindo elementos da organização social e do simbolismo de outras sociedades, que
seriam considerados apenas como magia, feitiçaria, bruxaria, animismo e totemismo,
e não elementos da religião que auxiliam na compreensão desse fenômeno no geral.
Considerando a magia, o animismo e o totemismo, analise as sentenças a seguir:

I- A magia é estritamente individual, focada em um agente mágico e um cliente. Por


essa razão, a magia e seus elementos não podem serem consideradas como um
fato social, por isso, embora estudada pela sociologia e antropologia, não chega a
ser um tema central para a compreensão da sociedade.
II- O animismo é definito por Tylor como a crença em seres espirituais, que seriam
animados por uma “alma”.
III- O totemismo australiano, para Durkheim, é a forma elementar de religião por não
possuir nenhuma relação histórica com as demais religiões mundiais e possuir um
sistema simples de classificação e crença.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.

79
c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A antropologia foi constituída em contato com a diferença e a alteridade, por conta


da expansão colonial do mundo europeu. Sobre a Antropologia da Religião no Brasil,
analise os seguintes itens:

( ) A religião, no Brasil, começou a ser estudada sob uma perspectiva antropológica a


partir dos estudos afro-brasileiros e da etnologia indígena.
( ) A antropologia da religião contemporânea, em nosso país, descarta a possibilidade
de se estudar, antropologicamente, as religiões cristãs.
( ) Há uma tendência, na antropologia da religião contemporânea, de evitar conceitu-
alizações essencialistas e universalistas de religião, procurando estabelecer defini-
ções etnográficas e provisórias.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 Há muitas razões para o interesse científico e o estudo dos fenômenos religiosos. No


campo da Antropologia Social e Cultural, o estudo dos aspectos religiosos é pensado
em relação com o social, o cultural, o histórico, a linguagem etc. Portanto, não cabe
a quem pesquisa religião sob a perspectiva da antropologia, questionar as crenças
religiosas, nem tratar a religião como um comportamento irracional. Por outro lado, o
estudo antropológico da religião não procura fazer apologia de dogmas e preceitos de
determinada religião. Compreendendo que Antropologia da Religião é uma atividade
científica, elabore como essa área constrói o seu conhecimento.

5 A antropologia da Religião, em seu período formativo, ficou conhecida como a ciência


que estuda as religiões dos “outros”. Com isso, criou-se várias dicotomias, tais como
religião natural versus religião revelada, religião tradicional versus religião histórica,
religião do costume versus religião mundial e daí por diante. Comente como essas
dicotomias ajudaram a compreender a própria noção de religião no ocidente, ao
mesmo tempo que perderam suas potências analíticas.

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UNIDADE 2 TÓPICO 2 -
RELIGIÕES MAJORITÁRIAS, RELIGIÕES
MINORITÁRIAS

1 INTRODUÇÃO
A Antropologia da Religião, portanto, teve papel fundamental na análise das
religiões não-ocidentais, o que mostra o papel da disciplina, que a um só tempo, tem uma
perspectiva crítica em relação ao ocidente, na medida em que pretende compreendê-lo.
Para compreendermos esse processo de entendimento das religiões no mundo, vamos
acompanhar pelo que ficou conhecido como religião majoritária e religião minoritária.

Em “As religiões dos outros e a nossa religião”, nos aprofundaremos no princípio


da antropologia da religião, que na verdade é um pensamento de base antropológico, de
que para compreendermos a religião no geral, ou aquilo que, em determinado contexto,
é definido como a “nossa” religião, deveríamos compreender, necessariamente, a reli-
gião do “outro”. Na sequência, em “As dicotomias do religioso”, estudaremos como esse
procedimento de estudo da antropologia, acabou por criar uma série de dicotomias, se-
parando as religiões entre religiões tradicionais (minoritárias) e religiões históricas (ma-
joritárias), mas que, no avançar do pensamento antropológico, perderam seus poderes
explicativos e universais.

Finalmente, no subtópico “O compromisso com a liberdade religiosa e as religiões


minoritárias”, aprenderemos que a antropologia tem um compromisso com a laicidade,
a liberdade de culto e o pluralismo religioso. Isso, necessariamente, estabelece um
compromisso com as religiões minoritárias no Brasil, que desenvolveu a sua antropologia
a partir do estudo das religiões de matriz africana e indígena.

2 AS RELIGIÕES DOS OUTROS E A NOSSA RELIGIÃO


Sabemos que a antropologia elegeu como objetivo, o estudo das sociedades
e culturas dos povos ditos primitivos, consequentemente, a antropologia da religião
seguiu o mesmo caminho. Assim, como foi comum na antropologia social e cultural do
final do século XIX e início do século XX, o argumento de apontar a importância de se
estudar e compreender as sociedades e culturas dos “outros”, foi semelhante ao esforço
para fazer que a sociedade ocidental reconhecesse valor na religião dos outros, dos
povos ditos primitivos. Portanto, o argumento de que é importante compreender os
outros, para “nos” compreender, foi bastante utilizado.

81
O antropólogo Evans-Pritchard, em “Theories of Primitive Religion” (1965),
traduzido no Brasil como “Antropologia social da religião” (1978), considera que há, pelo
menos, duas razões para compreendermos, estudarmos e levarmos a sério as religiões
ditas primitivas. Devemos ter em mente que a audição de Evans-Pritchard é europeia,
portanto, para valorizar as religiões dos outros, ele traçará relações entre aquelas
e o pensamento ocidental. A primeira justificativa, portanto, é a de que os principais
filósofos da moralidade, da política, da filosofia social, “desde Hobbes, Locke e Rousseau
até Herbert Spencer, Durkheim e Bergson julgaram os dados da vida primitiva como
sendo dotados de grande significação para a compreensão da vida social em geral”
(EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 11-12). Esse argumento é irrefutável, pelo menos em seu
aspecto empírico: de fato, essas intelectualidades pensaram as religiões ditas primitivas
e marcaram, em cada particularidade de pensamento, a razão ocidental.

A segunda justificativa merece uma citação mais longa, pois define muito do
que foi o estudo comparativo das religiões dentro do campo da antropologia, sobretudo
em seu período moderno. Aqui, moderno no sentido que definimos na Unidade I, ou
seja, de quando a antropologia passou a praticar a observação participante, ou seja, a
pesquisa empírica como a maneira fundamental como a disciplina constrói seus dados,
e elencou as sociedades ditas primitivas, ou pelo menos, não ocidentais, como seu foco
de pesquisa imediato. Portanto, acompanhemos como Evans-Pritchard termina de
justificar essa importância:

Em segundo lugar, eu responderia que as religiões primitivas são


espécies do género Religião e todo aquele que tiver qualquer
interesse pela religião deve compreender que um estudo das ideias
e práticas religiosas dos povos primitivos, que são muito variadas
podem ajudar-nos a chegar a certas conclusões acerca da religião
em geral, e por extensão, acerca das religiões ditas mais elevadas,
ou das religiões históricas ou positivas, ou das religiões de revelação,
incluindo a nossa própria. Contrariamente a essas religiões mais
elevadas, que são geneticamente relacionadas entre si (Judaísmo,
Cristianismo, Islamismo, ou Hinduísmo, Budismo e Jainismo), as
religiões primitivas em partes do mundo isoladas e amplamente
apartadas entre si, dificilmente poderão ser outra coisa senão
desenvolvimentos independentes, sem relações históricas entre
elas, de modo que fornecem valiosíssimos dados para uma análise
comparativa que vise a determinação dos caracteres essenciais do
fenómeno religioso e que pretenda efetivar afirmações gerais, válidas
e significativas a este respeito (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 12).

Importante notar que na década de 1960, Evans-Pritchard ainda tem que


reforçar que as religiões “dos outros” fazem parte do gênero Religião, em maiúsculo,
ou seja, fazendo parte da mesma categoria que as religiões “ditas mais elevadas”, que
como lembra Evans-Pritchard, possuem relações que ele denomina de “genéticas”, ou
seja, judaísmo, cristianismo, islamismo, de um lado, e hinduísmo, budismo e jainismo,
por outro. Lembremos que quando antropólogos europeus, dessa fase moderna, falam
em “nossa” religião, estão referenciando o cristianismo, quando muito, são lembradas
as chamadas religiões mundiais. Por essa razão, mas também outras, calcada no

82
etnocentrismo, conforme já acompanhamos, acreditava-se que as religiões monoteístas
eram as mais elevadas, já as animistas (por não possuírem nenhuma noção de deuses,
mas sim de seres sagrados), e as politeístas, seriam fases menos elevadas de religião.

O reconhecimento de Evans-Pritchard, de que as religiões ditas primitivas


são essenciais para compreendermos mais sobre a “Religião”, por elas não possuírem
relações históricas entre si e por terem se desenvolvido de maneira independente, é
um desdobramento da teoria durkheimiana da religião. Entretanto, sabemos que essas
religiões ditas primitivas possuíam suas próprias dinâmicas e não estavam, nem estão,
fora da história. O contato colonial e a ação missionária, cada qual em seu contexto,
colocou em relação essas religiões com as religiões da revelação e das escrituras, que
no contexto ocidental, são religiões majoritárias.

De qualquer forma, Evans-Pritchard, assim como a antropologia no geral,


apostam no estudo científico das religiões para que possamos nos livrarmos de pré-
noções e afirmações frágeis: “Os leigos podem não estar alertados para o fato de que
muito do que se escreveu no passado — e às vezes com muita segurança — e que ainda
hoje circula por escolas e universidades a respeito de animismo, totemismo, magia, etc.,
revelou-se com o tempo, erróneo, ou, pelo menos, duvidoso” (EVANS-PRITCHARD, 1978,
p. 15). Conforme estamos acompanhando, Evans-Pritchard reforça o seu alerta porque
a sua plateia é de antropólogos e de um público interessado no tema dos estudos da
religião, mas também era constituída por não especialistas.

Esse esforço de Evans-Pritchard de compreensão do religioso, o fez inserir sob


o rótulo de religião, “tópicos tais como magia, totemismo, tabu e mesmo bruxaria; ou
seja, praticamente tudo o que integra a expressão ‘mentalidade primitivas’, ou o que,
para o erudito europeu, parece irracional e supersticioso” (EVANS-PRITHCARD, 1978, p.
14). Portanto, coube ao esforço antropológico a ampliação do conceito de religião, com a
reunião de diversos sistemas simbólicos e de organização social sob esse rótulo. Assim,
se sabemos das críticas em relação a isso, ou seja, de reduzir diversas práticas a um nome
em comum, a religião (ASAD, 2010), também estamos cientes de que a antropologia
apresentou avanços a fazer isso, incluindo no combate ao modelo predominante e
evolucionista de religião, que já comentamos, que considerava o monoteísmo como a
maneira mais elevada de se vivenciar os fenômenos religiosos.

Acompanharemos, no próximo subtópico, algumas das dicotomias que o


pensamento ocidental construiu para separar as religiões ditas primitivas e as religiões
que eram mais próximas da “nossa” religião. Uma delas, classificava as religiões
tradicionais, ditas primitivas e minoritárias, de “religiões naturais”, pois seriam religiões
que sacralizam forças da natureza, mais próximas, mas distintas do animismo, conforme
já lemos (DURKHEIM, 1996). Na feita que classificava as religiões majoritárias, que por
diversos fatores se transformaram em religiões mundiais, enquanto “religião revelada”,
ou religiões históricas e das escrituras. Atentemos como Evans-Pritchard desconstrói
essa separação:

83
Gostaria mesmo de dizer mais: que para compreender plenamente a
natureza da religião revelada, temos que compreender a natureza das
chamadas religiões naturais, uma vez que nada poderia ser revelado
acerca de qualquer coisa, se o homem não estivesse já dotado de uma
ideia acerca da coisa mesma. Ou então, talvez devamos dizer, a dico-
tomia entre religião natural e religião revelada é falsa e suscita obscuri-
dade, pois há um sentido dentro do qual se pode dizer que todas as re-
ligiões são religiões de revelação: o mundo que as circunda e sua razão
em toda parte revelaram aos homens algo divino e algo de sua própria
natureza e seu próprio destino (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 13).

Se o termo “religião revelada” tem o intuito de reforçar as religiões que possuem


uma doutrina escrita, fruto da revelação divina, em oposição a todas as outras
religiões que estão calcadas muito mais na tradição oral, Evans-Pritchard, em seu
argumento, apresenta uns dos aspectos centrais da antropologia da religião: primeiro, o
reconhecimento de que não existe nenhuma religião falsa (um postulado de Durkheim,
no sentido que toda religião, independente de sua cosmologia, tem um fundamento
social, portanto, real) e de que não podemos elencar um aspecto que é valorizado
em nossa cultura, ou que herdamos por conta da razão ocidental, e projetá-lo como
único e superior entre nós, por um lado, nem tampouco utilizá-lo como parâmetro de
comparação hierárquica para com as outras culturas e religiões.

Portanto, quando Evans-Pritchard rompe com a dicotomia entre religião natural


e religião da revelação, porque todas as religiões seriam da revelação, Evans-Pritchard
está afirmando, com a antropologia, a validade dessas religiões que foram interpretadas
sob a ótica do preconceito e do juízo de valor religioso dominante. Entretanto, esse valor
religioso dominante não era único, o próprio Evans-Pritchard recorda que os primeiros
antropólogos da religião, tinham um objetivo próximo do de Frazer, que na sua obra mais
famosa, “O ramo de ouro”, ou “Ramo dourado”, o seu principal objetivo “era desacreditar
a religião revelada, demonstrando como um ou outro dos seus aspectos essenciais,
por exemplo, a ressureição de um homem-deus, são análogos ao que encontramos em
religiões pagãs”. O antropólogo vai além, alcançando uns dos debates que geralmente
entram em cena quando o assunto é o estudo científico da religião, especialmente sob
a ótica das ciências sociais. Evans-Pritchard chega a comentar sobre os seus pares:

Quase todos os antropólogos de minha geração – creio –


sustentariam que a fé religiosa é uma ilusão, um curioso fenômeno
que logo será extinto e que poderá ser explicado com expressões tais
como ‘compensação’ e ‘projeção’, ou, como estabelecem algumas
interpretações sociológicas, algo que diz respeito à manutenção da
solidariedade social (EVANS-PRITCHARD, 1986, p. 11).

O ponto de Evans-Pritchard, para continuarmos em seus argumentos apresen-


tados em “A religião e os antropólogos”, era que um cientista, por exemplo, um biólogo,
que tem como foco os seres vivos e as mais distintas formas de vida, não ataca nenhum
ser vivo, afinal, esse é o seu interesse científico. Ele também cita o astrônomo, que cer-
tamente não vai denunciar um “sistema planetário”. Portanto, pergunta: por que um

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estudioso da religião, que reconhece na religião uma instituição social como qualquer
outro, a atacaria? Esse ponto é delicado e polêmico. Portanto, voltemos para um argu-
mento complementar, apresentado no já citado “Antropologia social da religião”:

O que acabo de dizer não implica em que o antropólogo “deva" possuir,


ele mesmo, uma religião, e quero deixar isto bem claro, desde já. Ao
antropólogo não interessa, “qua" antropólogo, a verdade ou falsidade
do pensamento religioso. Do modo como compreendo o assunto, ele
não tem possibilidade de "saber" se os seres espirituais das religiões
primitivas ou outros quaisquer são dotados de existência ou não;
e, se assim é, não lhe cabe levar em consideração tal problema.
As crenças são, para ele, fatos sociológicos, não fatos teológicos e
sua única preocupação ó a relação que tais fatos mantêm entre si
e com outros fatos sociológicos. Seus problemas são científicos e
não metafísicos, ou ontológicos. O método que ele emprega é aquele
que agora se designa frequentemente como sendo fenomenológico:
um estudo comparativo de crenças e ritos, temas tais como deus,
sacramento, e sacrifício, com a finalidade de lhes determinar a
significação Intrínseca e social (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 32).

Portanto, como já estamos na condição de compreender e aplicar em nossos


estudos, sabemos que a preocupação da antropologia, quando se depara com o religioso,
é científica. Não cabe ao interessado em antropologia da religião julgar a validade de um
comportamento religioso, e sim, calcar a sua ação e análise no diálogo, na interpreta-
ção, na contextualização histórica, social e cultural, assim como no mergulho, ou seja, no
melhor uso dos arcabouços teóricos e conceituais de sua disciplina. A complexidade do
religioso, quando tratada antropologicamente, ou seja, acionando o diálogo para com as
pessoas, referenciada na ciência e na pesquisa empírica e bibliográfica, assim como fa-
zendo uso da criticidade e da imaginação, nos permite compreender que na antropologia
da religião, a pesquisa transpassa, e vai muito além, do que simplesmente “da boa e da má
vontade para com a religião nos cientistas sociais da religião” (CAMURÇA, 2008).

INDICA
Umas das melhores maneiras de estudar com o interesse acadêmico, é
cercar-se de bons textos e argumentos. Esse caminho pode ser traçado
com a leitura de revistas especializadas e acadêmicas. A Revista Senso pode
ser um guia para uma compreensão da religião no mundo contemporâneo,
que aposta na diversidade religiosa e cultural, assim como na liberdade
e no combate à intolerância religiosa. Conheça como a revista se define:
“A Senso é uma revista bimestral voltada à temática do senso religioso
contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como
referencia os Estudos Religião”.

FONTE: https://revistasenso.com.br/. Acesso em 9. jul. 2022.

85
3 AS DICOTOMIAS DO RELIGIOSO
Para entender, diferenciar e relacionar as múltiplas religiões, a antropologia criou
algumas dicotomias, que a nível didático e classificatório, nos auxiliam na compreensão,
mas que acabam por não se sustentar de uma maneira definitiva, nem tampouco empí-
rica. Acabamos de conhecer como Evans-Pritchard descarta a dicotomia entre religião
natural e religião da revelação. Mas percorreremos mais algumas dessas dicotomias.

Em seu livro “Os antropólogos e a religião” (2015), André Mary apresenta


algumas dicotomias, que se complementam e se complexificam, mas que se englobam
nas definições de religiões do costume - tradicionais x religiões históricas. André Mary
abre a sua discussão perguntando se deveríamos renunciar ao “termo ‘etnocêntrico’
de religião? Os historiadores africanistas como John Peel (2000) preferem falar de
country fashion e os etnólogos falam muito mais, como os indígenas, de costumes ou
de tradições locais” (MARY, 2015, p. 22). Como já percebemos, esse debate sobre o uso
ou não do termo religião, não terá fim. Mas já apresentamos esse debate. Avançaremos:
para André Mary, o problema vai além. Pois o próprio “termo ‘religiões tradicionais’ que
se opõe às ‘religiões históricas’ é por si mesmo portador de ambiguidade e pode ser
fonte de um grave contrassenso’ (MARY, 2015, p. 22).

As argumentações do antropólogo francês André Mary são próximas das de


Evans-Pritchard, porque estão calcadas em um raciocínio antropológico básico:

As religiões chamadas “históricas” são assim designadas porque se


inscrevem numa história, e sobretudo, numa consciência histórica
marcada pelo evento de sua fundação. Elas encontram numa
revelação datada, em figuras proféticas e na exegese das Escrituras
que supostamente transmitem a palavra divina, o que faz o sentido
último da história da humanidade. O universo das religiões do costume
ou do culto dos ancestrais faz parte, nessa configuração histórica, do
mundo de antes da Revelação: é o mundo “encantado” da magia, no
sentido weberiano do termo (Entzauberung). E toda uma literatura
do “encantamento” da sociedade primitiva, promove esse mundo à
função de arquétipo da Tradição imemorial, imerso no Mito original e
sujeito ao puro regime da Heteronomia (MARY, 2015, p. 23).

Assim, o conceito de religião histórica está conectado com a noção de religiões


reveladas. São consideradas históricas pela consciência histórica, citada por André Mary,
assim por conta de suas escrituras. Lembremos que a sociedade ocidental valoriza os
registros escritos e tende a hierarquizá-lo em relação ao oral. Portanto, ao descrever as
religiões históricas, André Mary não nega as suas características, mas problematiza a
caracterização das religiões do costume, as religiões tradicionais, utilizadas para reforçar
e caracterizar as religiões históricas, ou seja, as religiões das Escrituras. Devemos
recordar que embora a antropologia da religião tenha se firmado e apresentando as
suas principais discussões a partir da pesquisa junto a religiões ditas primitivas, ou seja,

86
que possuem registros para além do escrito, enfatizando os aspectos da tradição e dos
textos orais, a religião comparada e a história das religiões enfatizaram a interpretação
de textos escritos, ou seja, as religiões das escrituras.

No Congresso de História das Religiões de 1900, no qual foram


lançadas muitas das premissas da nova religião, definiu-se um campo
de estudo que buscava avaliar as origens das religiões e as suas
evoluções através de uma análise comparativa dos seus elementos.
Não é coincidência que uma abordagem analítica desta ordem tenha
emergido apresentando como foco as religiões da Ásia (Oriente
Médio, Índia e China), que em muito se ajustavam à ideia consagrada
no Ocidente daquilo que se entendia por religião, conceito regido
pelo modelo judaico-cristão (TORRES-LONDONO, 2013, p. 218).

Já acompanhamos como Evans-Pritchard e parte da antropologia da religião


busca construir um equilíbrio na compreensão das religiões, evitando utilizar a religião
dominante, seja qual for, como parâmetro para analisar as demais. De qualquer maneira,
voltemos a André Mary e como ele considera que a noção de religião do costume
inventou a noção de religião histórica:

Tem-se a tendência de projetar sobre o universo dos costumes ou


das tradições ancestrais um conceito “tradicionalista” da Tradição
que é a invenção das religiões históricas. A miscelânea indiferenciada
de mitos fragmentários, de tradições orais e de ritos que se chamam
“costumes” é antes de tudo estranha ao culto do passado como tal
e ao escrúpulo da conservação de sua memória. As sociedades de
tradição oral não são sociedades da memória como as sociedades
da escritura. Os ancestrais não estão mortos e a evocação do mito
fundador da ordem das coisas, da mesma forma que o cumprimento
retirado dos ritos, se conjugam no “passado presente”. Em segundo
lugar, o costume é evidente porque ele depende de sua ordem que
transcende todas as razões que podemos atribuir-lhe. O caráter formal
e circular das justificações correntes que fazem apelo à antiguidade e
à continuidade (nossos pais sempre o fizeram) confirma a seu modo
que o costume vale por ele mesmo e permanece estranho a toda
elaboração de um discurso da Tradição como lar de legitimidade e
fonte de ortodoxia” (MARY, 2015, p. 23).

O argumento de Mary é, basicamente, reforçar que algumas religiões não


centralizaram a sua lógica na noção de revelação e escritura. O culto aos ancestrais, por
exemplo, conecta passado-presente-futuro de uma maneira que não faz mais sentido
pensar esses momentos como totalmente separados, que só seriam acessados pela
consulta a um texto histórico e sagrado, por exemplo. O antropólogo não está dizendo
que essas sociedades são sem memória, mas enfatizando que a maneira como elas se
relacionam com o passado é diferente da ocidental, sociedade focada em museus e
monumentos, por exemplo (WAGNER, 2010).

Entretanto, apesar das argumentações, essas dicotomias apresentam em


suas forças, fazendo com que a antropologia repense não só o conceito de religião
tradicional, como o de religião histórica. Como acompanhamos, essa dicotomia também

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está centrada em outra, no oral versus o escrito. Assim, André Mary reflete, essa maneira
dicotômica de pensar as religiões, reforçou uma divisão do trabalho científico, tornando
“impensável a ideia de um trabalho etnológico sobre os textos” (MARY, 2015, p. 24).
Mesmo no do estudo das chamadas ‘grandes religiões’”, haveria algo de irreconciliável,
pois como aponta Mary, por um lado estaria os teólogos e os estudos teológicos, que
ao estudar os textos sagrados, chegariam na verdadeira noção e essência da religião, e
de outro, o estudo com os porta-vozes “das tradições orais e da experiência ritual das
comunidades rurais” (MARY, 2015, p. 24) que professam essa mesma religião.

Assim, não se confundiria o texto sagrado e a sua interpretação hermenêutica,


com os usos da religião pelo “povo”. O antropólogo Clifford Geertz, por exemplo, ao
estudar o islamismo, reflete sobre a limitação de fazer essa partilha entre o texto e a
sua prática: “Pode-se perguntar, como o fez Geertz, sobre o peso de uma tal divisão
a propósito das pesquisas sobre o islã e sobre essa ‘grande partilha’ entre o estudo
escriturário dos orientalistas (juristas, teólogos, exegetas) e a abordagem etnológica
das comunidades particulares” (MARY, 2015, p. 25). Ou seja, a separação enquanto
divisão do trabalho científico, com intuito de avanços nos estudos sobre a religião, é
compreensível, ela não pode é depurar e separar essas realidades, como se elas não
fossem conectáveis e conectadas.

Assim, embora a antropologia da religião tenha se firmado como o estudo as


religiões “ditas primitivas” e tenha contribuído, de alguma maneira, em construir uma
“grande partilha” entre as religiões tradicionais, ou seja, de interesse antropológico, e
as religiões históricas e mundiais, de interesse “sociológico”, atualmente encontramos a
corrosão dessa grande partilha e na complexificação de abordagens e realidades.

A grande partilha disciplinar entre o religioso dos antropólogos e a


religião dos sociólogos está hoje consideravelmente embaralhada
pelo desenvolvimento de uma sociologia dos “movimentos religiosos
modernos” que se estende aos fenômenos religiosos da África, da
Ásia ou da América Latina e abala as “reservas” das sociedades
tradicionais. O pentecostalismo que avança entre os índios [sic] da
Amazônia ou o Evangelho entre os Papuas tornaram-se lugares
comuns. Mais recentemente, a crise das religiões instituídas e o
requestionamento das fronteiras que seriam supostamente de um
“campo religioso”, da mesma forma que instrumentos conceituais
forjados no estudo dessa esfera especializada, levaram também os
sociólogos a encontrar os questionamentos provenientes do religioso
antropológico para compreender melhor as formas pós-modernas de
um religioso flutuante, secular ou híbrido (HERVIEU-LÉGER, 1999, pp.
19-20) (MARY, 2015, p. 25).

Não é por menos que uma antropologia do cristianismo tem se constituído


no seio da antropologia contemporânea. A compreensão de que não há uma grande
partilha, que impossibilite o trabalho e a interlocução entre essas maneiras distintas de
compreender e estudar a religião, embaralharam as posições entre sujeitos, fenômenos
religiosos e a sua pesquisa, ampliando as possibilidades interpretativas e tornado cada
vez mais complexa e provisória as afirmações sobre o fenômeno religioso.

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O antropólogo Joel Robbins considera que a antropologia do cristianismo passa
a se firmar e a existir, como a conhecemos hoje, de fato, a partir da década de 1990.
Ou seja, é um subcampo da disciplina bastante recente. Ele apresenta como umas das
principais preocupações desse desdobramento da antropologia da religião, o campo da
ideologia linguagem. Como essa disciplina se desenvolveu, sobretudo em estudos junto
a comunidades tradicionais não-ocidentais que passaram pela influência missionária
pentecostal, sendo esse o caso do próprio Joel Robbins, que estudou os processos
de conversão na Papua Nova Guiné (ROBBINS, 2011). Joel Robbins, assim justifica a
sua opção pelo pentecostalismo: “Outra razão, talvez mais preponderante, é que o fluxo
pentecostal é o ramo do cristianismo que cresce mais rapidamente hoje, com mais de
600 milhões de seguidores em todo o mundo” (ROBBINS, 2011, p. 16). Esse é também
uns dos motivos que fizeram com que os estudos antropológicos junto a comunidades
pentecostais e neopentecostais cresceram no Brasil, por conta do seu crescimento e
maior presença no espaço e poder público.

Portanto, podemos afirmar que a “grande partilha” entre religiões ditas


primitivas e religiões históricas, que conforme pudemos aprender, se apresentam a
partir de diversas outras categorias, está cada vez mais questionada na antropologia.
A nossa disciplina, hoje, estuda qualquer tipo de religião e possui diversos métodos e
abordagens para tal. Contudo, sabe-se que há, ainda, uma dimensão discursiva e de
poder que constrói religiões enquanto mundiais e dominantes, na feita que insere várias
outras religiões no escopo de religiões minoritárias, que constantemente precisa existir
enquanto minoria religiosa. Abordaremos essa complexidade no tópico a seguir.

4 O COMPROMISSO COM A LIBERDADE RELIGIOSA E AS


RELIGIÕES MINORITÁRIAS
Até aqui, aprendemos que a Antropologia da Religião vai muito além do que um
processo simples e dicotômico, que estaria dividido entre uma apologia ao religioso e a
sua crítica. A Antropologia da Religião reconhece que o fenômeno religioso é complexo e
não pode ser reduzido a explicações simplistas que relacionariam, de uma maneira mecâ-
nica e determinista, religião e sociedade (EVANS-PRITCHARD, 1978). Apesar disso, reco-
nhece que o interesse antropológico na religião está em investigar e compreender como
o religioso “fabrica” o social, isto é, como a nossa vida social é conduzida por processos,
discursos e práticas que identificamos como fazendo parte da religião. Diante disso, a co-
munidade antropológica tem o compromisso com a laicidade e o secularismo, fenômenos
para qual dedicaremos algumas páginas na Unidade III. Para avançarmos nesse tópico,
devemos reforçar que o compromisso com a laicidade, oriundo da Antropologia da Reli-
gião, é, basicamente, uma aposta na regulação do religioso em um espaço democrático,
ou seja, um compromisso de que nas interrelações entre religião e sociedade e entre a
sociedade e as mais diversas religiões do dito “campo religioso”, nenhuma delas codifique
e determine o espaço destinado para as demais religiões, nem que um fenômeno religioso
possa determinar e interferir em como a sociedade civil discute seus temas.

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Portanto, se estamos no campo da laicidade em uma sociedade democrática,
construindo uma Antropologia da Religião, um de nossos interesses é o pluralismo
religioso enquanto valor. Quando essa pauta entra em voga, um outro tema surge
em sua importância, que é o da intolerância religiosa. Para falarmos sobre esse tema,
abordaremos o caso brasileiro e a realidade histórica das religiões de matriz africana
no Brasil, mas também comentaremos sobre outras minorias religiosas e como a
antropologia tem adotado um compromisso de diálogo com esses grupos.

Faço, agora, um exercício que você pode emular em casa, embora, certamente,
os resultados variem um pouco, o seu cerne permanecerá. Abro o meu buscador de
pesquisa online e digito o termo, no modo navegação anônima, “Intolerância religiosa”.
De imediato, surgem algumas notícias de pessoas e grupos relatando terem sofrido
intolerância religiosa. Há, também, uma matéria vinculada ao Jornal da Universidade
de São Paulo (USP), com o título de “Falta de conhecimento sobre outras culturas
agrava intolerância religiosa no Brasil”, publicado em 14 de junho por Léia Coelho (2021).
Leiamos o início do texto:

Apesar da nomenclatura, intolerância religiosa – o ato de discriminar


ou ofender religiões, liturgias, cultos ou agredir pessoas por conta
de suas práticas religiosas e crenças – também pode ser considera-
da xenofobia, aversão a estrangeiros. E esse tipo de intolerância tem
crescido no Brasil. Dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos mostram crescimento de 56% nas denúncias de intole-
rância religiosa em 2019. E a falta de maior conhecimento sobre as
culturas religiosas aprofunda a questão no País (COELHO, 2021, n. p).

Uns dos espaços que teria que modificar esse cenário de intolerância, gerada,
em parte, pelo desconhecimento e a ignorância, seria a própria escola, que conta com
professores formados em ciências da religião, aptos, portanto, a lecionarem a disciplina
de ensino religioso, assim como contaria com o apoio das demais disciplinas para dar
conta dos conteúdos previstos na Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e
da cultura africana, afro-brasileira e indígena em todos os níveis de ensino. Além disso,
como mostra a reportagem citada, a intolerância religiosa é crime. Para ampliar o seu
espaço de interlocução, Léia Coelho escuta Sidnei Nogueira, professor e doutor pela
USP, também coordenador do Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-
Brasileiras e autor do livro “Intolerância religiosa” (NOGUEIRA, 2020).

Para aumentar a conscientização da população sobre a importância


das religiões, principalmente as de menor expressão no País, em 1997
foi implantada e continua em vigência a Lei 9.459. Contudo, informa o
professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador do Instituto
Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-Brasileiras Sidnei
Barreto Nogueira, a lei brasileira apresenta dificuldades para “tipificar
racismo religioso e identificar crimes de perseguição religiosa”.
Assim, à falta de amparo legal soma-se a ausência de maiores
conhecimentos que poderiam evitar a estereotipação e imagem
negativa das religiões, situação que, avalia Nogueira, colabora para a
intolerância religiosa, mesmo sendo obrigatório o ensino da história e
da cultura africana nas escolas públicas e particulares no País desde

90
2003 (Lei 10.639). No entanto, continua o professor, essas culturas
ainda têm pouco espaço nas salas de aula, locais que poderiam
ajudar a combater a intolerância religiosa, formando e ensinando
sobre a cultura de outros povos (COELHO, 2021, n. p).

Assim, Sidnei Nogueira, apresenta a indiscernibilidade entre racismo e


intolerância religiosa, quando o assunto são os ataques que as religiões afro-brasileiras
sofrem ao longo de sua história. Essa relação não é fortuita, como podemos acompanhar
e está embasada em dados, fruto de pesquisas científicas. A xenofobia também é
acionada, quando o assunto são outras minorias religiosas. A aposta da reportagem
é, portanto, que a falta de conhecimento leva à intolerância religiosa. Temos, ainda
no texto citado, a participação da professora Francirosy Barbosa, que apresenta um
resumo sobre a situação do islã no Brasil:

Colega de Nogueira, a professora Francirosy Campos Barbosa, da


Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP)
da USP e pesquisadora do Grupo de Antropologia em Contextos
Islâmicos e Árabes, concorda que falta conhecimento sobre outros
grupos religiosos não dominantes no Brasil. E, até mesmo, nos
materiais didáticos usados nas escolas. Francirosy cita, como
exemplo, o caso de livros de história que contam a revolta dos malês,
negros muçulmanos que lutaram contra a escravidão no Brasil.
Segundo a professora, a publicação não explica suficientemente bem
a história desse povo, que possui apenas “um parágrafo nos livros de
história”. Com relação ao universo digital, que cada vez mais ganha
importância, Francirosy diz que as mídias sociais reproduzem essa
ausência de conhecimento nos mais diversos espaços e situações
cotidianas. E fala sobre a utilização recente de “figurinhas do Ramadã”
por diferentes grupos de internautas. Segundo a professora, as
imagens sobre o período religioso de jejum dos muçulmanos foram
usadas inadequadamente para vender os mais diferentes serviços.
Mas Francirosy acredita que as repercussões nas redes sociais ainda
podem ser positivas, uma vez que abrem oportunidades para a
discussão do tema (COELHO, 2021, n.p).

Encontramos na fala da professora e pesquisadora, um importante registro sobre


a falta de informação e conhecimento relacionado a grupos religiosos não dominantes
em nosso país. Como somos um país de maioria cristã, nossa sociedade, em diversos se-
tores, acaba por naturalizar os símbolos religiosos (GIUMBELLI, 2014) e a presença cristã,
enquanto estranha os símbolos e a presença religiosa de outros grupos e minorias. Esse
processo de naturalização, é uns dos fatores de impulso da intolerância religiosa: “Está
posto que, de modo geral, a cristinianização da sociedade é mais do que um movimento
de fé. Trata-se efetivamente de um projeto de poder” (NOGUEIRA, 2020, p. 27)

IMPORTANTE
A Lei nº 10.639, instituída em 2003, alterou a lei das diretrizes e bases da educação nacional,
incluindo no currículo oficial da rede de ensino a história e cultura africana e afro-brasileira.
Já a lei 11. 645 incluiu a obrigatoriedade do ensino com temática indígena:

91
O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a
formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africa-
nos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultu-
ra negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas
áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil (BRASIL, 2008).

FONTE: https://bit.ly/3y4bJEz. Acesso em: 10. jun. 2022.


https://bit.ly/3LOmm4a. Acesso em: 10 jun. 2022.

Sabemos que a intolerância religiosa para com as religiões de matriz africana


é histórica no Brasil. As leis que citamos, que tenta modificar essa situação, reconhece
que a contribuição afro-brasileira e indígena, para a formação do Brasil enquanto nação,
foi silenciada e historicamente jogada para as margens da nossa sociedade. Até o final
do século XIX, praticamente só se encontrava registro escrito sobre essas religiões
nas páginas policiais, demonstrando o lugar de desprestígio e preconceito que essas
religiões estiveram inseridas em nossa sociedade:

Como objetos do discurso, os poucos relatos produzidos até então


sobre as religiões dos negros e seus descendentes, consistiam
nas descrições dos cronistas e viajantes ou nos autos do Santo
Ofício relatando casos de negros acusados de praticar feitiçaria.
No século XIX por meio da imprensa, outra forma descritiva destes
cultos ganhou evidência. Tratava-se da reprodução na seção policial
de relatos dos órgãos comprometidos com a repressão aos cultos
de origem africana identificados como práticas de curandeirismo,
charlatanismo etc. Nesses discursos, as práticas religiosas afro-
brasileiras eram vistas ora como exóticas ou “folclóricas”, ora como
delituosas ou farsas, e não havia lugar neles para o surgimento de
uma outra compreensão além daquela imposta pela própria ideologia
que motivou o texto (SILVA, 2008, p. 288).

Se por um lado, os estudos afro-brasileiros, a articulação com os movimentos


negros e civis que buscam uma efetiva liberdade de culto, que é constitucional no Brasil
desde 1988, que ampliaram os conhecimentos sobre as religiões afro-brasileiras, por
outro, permanecem os preconceitos e ignorâncias em nossa sociedade, no geral. Sidnei
Nogueira apresenta como essa intolerância religiosa se apresenta junto do racismo
na sociedade Brasileira e cria diversos efeitos, desde o ataque direto a praticantes
dessas religiões, até a estigmatização e a vergonha que é internalizada por parte de
afrorreligiosos, refletindo nos dados dos censos religiosos. O autor nos apresenta os
dados do Disque 100, canal de denúncia de violações de direitos humanos, evidenciando
os resultados para 2018:

92
É importante destacar que os dados de 2018 evidenciam que, das 506
denúncias, 30% (152) das vítimas são adeptos de umbanda, candomblé
ou religiões de matriz africana; 1,97% (10), católicas; e 11,6 (59), evan-
gélicas e protestantes. Do total, 51% (261) não especifica qual a religião.
Os dados revelam que a religião hegemônica, a católica, quase não
é perseguida e, na sequência, os evangélicos e protestantes sofrem
cerca de 10% das perseguições. No entanto, os adeptos de umbanda,
candomblé e religiões afins são alvo de 30% das perseguições. Ao se
considerar a invisibilidade, a marginalização, a estigmatização e a ver-
gonha desses grupos em assumirem ser praticantes dessas tradições
religiosas de origem africana, pode-se elevar o número de denúncias
para praticamente 80% com o somatório das denúncias com e sem
informação da religião (NOGUEIRA, 2020, p. 76).

O que podemos reforçar é que a antropologia da religião, portanto, defende a


liberdade religiosa, o diálogo interreligioso e o pluralismo. Assim como se alia ao combate
à intolerância e o racismo religioso. O seu compromisso com as minorias religiosas é,
também, um desdobramento de sua existência enquanto interessada em religiões não-
ocidentais e o seu conhecimento como possibilidade de ampliação sobre os fenômenos
religiosos no geral, incluindo os da sociedade ocidental.

93
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• O princípio antropológico de diálogo com a alteridade, a diferença e os “outros”.


Essa característica antropológica se reflete no estudo da religião por essa ciência.
O estudo da religião dos “outros” também serviu para a compreensão da religião
no geral. Para esse princípio atingir outras áreas interessadas na religião, como a
história das religiões e o estudo da religião comparada, a antropologia teve que
desconstruir a visão etnocêntrica de que as religiões ditas primitivas seriam menos
elevadas do que as religiões que se tornaram mundiais.

• Para estudar a religião no contexto do contato colonial, a antropologia construiu uma


série de classificações e dicotomias entre as religiões. Se por um lado, acreditava
no valor das religiões ditas primitivas, não-ocidentalizadas, por outro, reforçava a
separação entre essas duas religiões por meio de suas dicotomias e classificações.
Com o avançar das pesquisas, essas dicotomias perderam poder analítico e ficaram
com uma função didática. Portanto, ela não descreve uma essência e uma situação
universal da religião, mas apresenta como em um contexto particular e histórico
específico, o ocidente pensou as religiões.

• No caso brasileiro, a antropologia tinha duas grandes áreas: a etnologia indígena


e os estudos afro-brasileiros. O que teve um efeito direto na nossa antropologia da
religião, especialmente com as religiões de matriz africana e afro-brasileiras, que
são religiões minoritárias, no sentido em que sofreram perseguições por parte do
Estado, e depois, mesmo com a constitucionalidade da liberdade de culto, passou
a sofrer estigma e racismo. Nesse aspecto, a antropologia da religião aposta na
laicidade como valor, no pluralismo religioso e estabelece um compromisso com as
religiões minoritárias.

94
AUTOATIVIDADE
1 A Antropologia, quando estuda a religião, depara-se com uma série de afirmações
e comportamento que são interpretados pelos fiéis enquanto sagrados e verdades
imutáveis. Além disso, junto com a sustentação dessa postura, pode haver o
reconhecimento de seres e/ou deuses que reforçam essa concepção ontológica de
mundo. Sobre o estudo antropológico da religião, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A religião tem afirmações teológicas, dogmas e procedimentos e linguagens para


explicar o mundo. Entretanto, a antropologia não se interessa pelas crenças em seu
estatuto ontológico, mas em seu aspecto social. Ou seja, a religião como fato social.
b) ( ) Apesar de não fazer nenhum juízo de valor sobre as crenças religiosas, a
antropologia parte de um ateísmo metodológico, sem considerar o sentido de
verdade relatado pelos fiéis, fazendo com que o antropólogo não possa possuir
suas crenças religiosas.
c) ( ) Toda pesquisa antropológica com a religião, parte do trabalho de campo, não
sendo possível estudar as escrituras religiosas, nem como elas se relacionam
com a vida cotidiana de fiéis.
d) ( ) A religião, para a antropologia, é uma etapa anterior da filosofia e da ciência. Como
originou todas as formas de conhecimento da humanidade, deve ser considerada
como única, sendo que a antropologia considera como bizarro e anormal a
ausência da religião dentro de um grupo.

2 A Antropologia da Religião estabeleceu algumas dicotomias com o intuito de


interpretar as diferenças, mas também as semelhanças, nas mais diversas religiões
conhecidas no mundo. Sobre essas dicotomias e os modos antropológicos de estudar
a religião, analise as sentenças a seguir:

I- As religiões históricas possuem uma consciência fundacional, relacionada com a


revelação. Já as religiões do costume e da tradição, valorizam o culto ao ancestral e
possuem uma visão encantada de mundo.
II- As religiões reveladas, por possuírem suas escrituras, não podem ser estudadas pela
antropologia. É o caso do cristianismo, que por possuir status de verdade em nossa
sociedade, é estudado apenas por teólogos.
III- Embora exista a dicotomia entre religião histórica e religião do costume, essas duas
religiões são históricas, pois são experiências humanas.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.

95
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A antropologia, no Brasil, teve como interesse as religiões de grupos minoritários:


populações afro-brasileiras, indígenas, camponesas etc. Sobre o estudo e a postura
que a antropologia tem em relação a esses grupos, classifique V para as sentenças
verdadeiras e F para as falsas:

( ) A antropologia é uma ciência, portanto deve se abster e permanecer neutra em


relação aos conflitos interreligiosos.
( ) A antropologia reconhece a laicidade e o pluralismo religioso, ao mesmo tempo
que reconhece que as religiões de matriz africana sofrem, inaceitavelmente, com
perseguições e o racismo religioso.
( ) As religiões indígenas, como estão extintas, não fazem parte das preocupações da
antropologia da religião.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, por meio


da lei 10.639, implica na transmissão de conteúdo e reflexão sobre as religiões de
matriz africana, como o candomblé e a umbanda, o que não caracteriza como ensino
religioso, mas como reconhecimento das populações negras e afro-brasileiras para
a constituição do Brasil. Sobre isso, comente como a antropologia pode contribuir
erradicar preconceitos e contribuir com a lei 10.639.

5 A antropologia, ao estudar a religião, encontrou algumas dificuldades em suas


abordagens. Em alguns momentos da disciplina, pensou-se na religião como uma
ilusão e um comportamento irracional que seria superado pela ciência. Para evitar
esse tipo de julgamento, a antropologia parou de se interessar pela ‘origem” do
religioso e passou a estudar a “função” da religião. Comente como a antropologia
pode encontrar um equilíbrio ao estudar os fenômenos religiosos.

96
UNIDADE 2 TÓPICO 3 -
RITUAIS, MITOS E SÍMBOLOS

1 INTRODUÇÃO
Não há religião sem comunicação. Rituais, mitos e símbolos são elementos que
se conectam e, em grande medida, expressam e constituem a religião. Evidentemente,
ritos, mitos e símbolos não são exclusivos da religião, mas encontram no religioso um
lócus de imaginação e possibilidade expressiva. Para acompanharmos essa constatação,
percorreremos o universo do ritual e do rito como comunicação, que apresenta suas
características formais, suas dinâmicas de variação e repetição, assim como o seu
aspecto de transmissão de valores e conhecimentos em “Ritual como expressão”.

Na sequência, em “O mito como linguagem”, aprenderemos a importância do


mito como narrativas que revelam aspectos profundos das sociedades, inclusive da
nossa. Se o ritual, em algumas escolas de pensamento antropológico, foi compreendido
como a ação, o mito foi interpretado como o pensamento. O rito, seria o que as pessoas
fazem, o mito, dizem. Entretanto, como em toda a história da antropologia, aprenderemos
como essa dicotomia não se sustenta, compreendendo que o mito é uma linguagem
que está presente em todas as sociedades e tem a sua própria regra, poética e modo de
transmissão e variação.

Em o “Rito, o mito e o simbólico” aprenderemos que ritos e mitos estão inseridos em


contextos simbólicos. Não existe o rito sem o encadeamento de símbolos, nem mitologias
que não evoquem e relacionem símbolos para transmitirem suas lições, valores e regras.
Fecharemos compreendendo que a contribuição antropológica para o estudo da religião,
passa em grande medida, por um esforço interpretativo do simbólico, mas também na des-
construção do símbolo como um significado único e imutável. Nos importa como o símbolo
é fixado, transmitido e modificado, ou seja, todo o seu percurso, porque estamos interessa-
dos nas relações entre esses universos simbólicos e a sociedade e a cultura.

2 RITUAL COMO EXPRESSÃO


Os rituais fazem parte da nossa vida, seja qual for a nossa sociedade, grupo social,
cultural e contexto. Apesar disso, ritual é uma palavra que, no senso comum ocidental,
evoca culturas exóticas, comportamentos irracionais e absurdos. A literatura fantástica de
horror e terror, assim como os filmes populares do gênero, ajudaram a difundir essa ima-
gem. Essa mentalidade persiste e continua presente em obras audiovisuais contemporâ-
neas. Desde o filme Midsommar (2019), dirigido pelo norte-americano Ari Aster, que relata
a história de um casal e seus amigos visitando uma comunidade rural e pagã na Suécia,

97
até Desalma (2020), uma série audiovisual escrita pela autora e escritora de literatura Ana
Paula Maia. Desalma conta a história de uma cidade fictícia, no sul do Brasil, onde há um
ritual pagã e ucraniano chamado de Ivana Kupala.

Com esses exemplos, parece que o ritual é algo de fato, distante, não cotidiano.
Mas e quando comemoramos nosso aniversário? Quando defendemos o nosso trabalho
de conclusão de curso? Quando antes de dormir, ou em outra ocasião que pode
demandar, pedimos bênção aos nossos pais e parentes mais próximos, mesmo quando
não somos religiosos? Esses são apenas alguns dos exemplos possíveis. Mas não,
rituais não são comportamentos irracionais, nem tampouco estão situados apenas em
culturas ditas exóticas e distantes de nós. Os rituais sempre comunicam algo e fazem
parte da nossa vida cotidiana. Autoras como Mariza Peirano (2003), defendem que o
ritual não é exclusivo da religião e faz parte, por exemplo, da vida política: “a natureza
dos eventos rituais não está em questão: eles podem ser profanos, religiosos, festivos,
formais, informais, simples ou elaborados” (PEIRANO, 2003, n.p).

De fato, os rituais estão em todas as dimensões e esferas da sociedade, sendo


a religião, uns deles. Sendo inclusive, na religião, que o ritual ganha um significado e
aciona símbolos que ganham uma densidade ligada ao mundo da religião, mas isso
não significa que há uma separação bem definida, na expressão ritual, entre o sagrado
e o profano, entre a vida cotidiana e a extraordinária. Acontece, no ritual, um fenômeno
parecido com o que ocorre com a religião, no geral. Lembremos quando na antropologia,
a religião deixa de ter uma definição universal e essencialista, e passa a ter definições
mediadores, a partir com o diálogo com as pessoas envolvidas. Ou seja, a definição de
ritual, atualmente, tende a ser etnográfica.

Em diálogo com o antropólogo Stanley Tambiah, Mariza Peirano traduz uma


“definição operativa” de ritual desse autor, que a elaborou em um texto de 1985. Leiamos
essa definição (os acréscimos entre colchetes, são da própria Mariza Peirano:

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é


constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e
atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm
conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade
(convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e
redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos
pode ser vista como “performativa” em três sentidos: 1) no sentido pelo
qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional
[como quando se diz “sim” à pergunta do padre em um casamento];
2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente
uma performance que utiliza vários meios de comunicação [um
exemplo seria o nosso carnaval] e 3), finalmente, no sentido de
valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance
[por exemplo, quando identificamos como “Brasil” o time de futebol
campeão do mundo] (TAMBIAH apud PEIRANO, 2003, n. p).

98
Com essa definição, temos algumas características fundamentais para compre-
endermos o ritual como conceito antropológico. Todo ritual comunica e expressa. Por
isso, é um sistema de comunicação simbólico. O simbólico, aqui, de uma maneira didá-
tica, implica que há uma série de símbolos que são operacionalizados e fazem sentido
dentro de algum grupo específico, mas que também pode se espalhar e comunicar para
além desse grupo. Por exemplo, o crucifixo. Dificilmente nos depararíamos com esse
símbolo sem compreender e evocar, mesmo que de uma maneira caótica e complexa,
diversos significados referentes a cultura cristã ocidental, ocidentalizada e a sua própria
presença na sociedade brasileira.

Outro ponto muito importante dessa definição, é que o ritual se expressa em uma
sequência padronizada, em diversos níveis de rigidez e flexibilidade, juntando palavras
e atos (gestos), ou seja, mobilizando uma linguagem que vai para além da verbal. Ou
seja, para ficarmos em exemplos religiosos: uma missa, uma gira de umbanda e de
candomblé, um culto evangélico, há modos de fazer e de realizar esses eventos rituais,
que variam de acordo com as diversas circunstâncias, mas que ainda permanecem
de alguma maneira “redundantes”, ou seja, repetitivos, para que possam ainda ser
considerados como rituais.

Em relação ao sentido performativo da ação ritual, é importante nos atermos nos


três aspectos citados: 1) no dizer como fazer, 2) na intensidade e nas diversas maneiras
de se apreender uma experiência ritual e 3) na transmissão e criação de valores por
parte de quem está performando o ritual. Por isso os exemplos acrescentados por Mariza
Peirano. Se dizer algo, é, em alguma medida, fazer, o “sim” digo em um casamento,
evidentemente, reforça e estabelece um laço matrimonial. No caso do carnaval, por
exemplo, o apreendemos por diversas maneiras e sentidos, porque ele mesmo, o carnaval,
se comunica por diversos meios. O último exemplo de Mariza Peirano, é interessante
porque mostra que a performance ritual, cria uma identificação entre quem o pratica,
e quem, de alguma maneira, o assiste. Assistir, nesse sentido, é também participar: ou
seja, faz parte da ação ritual a identificação que fazemos entre a nação Brasil e o time
de futebol (seleção brasileira) que está em campo.

Assim, “Rituais são bons para transmitir valores e conhecimentos e também


próprios para resolver conflitos e reproduzir as relações sociais” (PEIRANO, 2003, n.p).
Podemos dizer, portanto, que são os rituais que, na religião, criam, reforçam e transmitem
aspectos que são considerados como valorativos e morais, ao mesmo tempo que passa
o conhecimento religioso, no sentido que cria e reforça as cosmologias religiosas. O
ritual é dinâmico, cria, mantém e transforma as religiões, portanto.

Rituais são adequados para realizar essas funções aparentemente


diversas, porque são performativos. Desta forma, a eficácia da ação
social, que Mauss tanto insistiu em incluir em sua visão da sociedade,
recebe uma formulação renovada: não se trata mais apenas do mana
— esse poder que está presente, por exemplo, nas noções de sorte,
azar, acaso (e que escapa às nossas noções de racionalidade), porém

99
de uma abordagem que nos auxilia a examinar a fonte desse poder
nas características próprias da ação social plena, que inclui tanto o
falar quanto o agir (PEIRANO, 2003, n. p).

Isso implica que a noção de ritual o reconhece como mobilizador de forças e


de uma eficácia, e para a teoria antropológica, essa eficácia vai para além das noções
cosmológicas e mágico-religiosas que carrega. Portanto, o ritual é uma expressão que
de fato, faz acontecer. Do ponto de vista social, como já acompanhamos, restabelece
laços, assim como também pode cortá-lo. Portando, é um poder, de fato, que põe o social
em movimento. Resumidamente, “Por meio da análise de rituais, podemos observar
aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, se pensa e se transforma – o que
não é pouco” (PEIRANO, 2003, n.p).

Embora a proposta de Mariza Peirano seja secularizar a noção de ritual, ou seja,


reconhecer a sua contribuição enquanto categoria antropológica que, de fato, iniciou
com os estudos das religiões ditas primitivas, ou seja, analisando comportamentos
rituais que para a razão ocidental eram incompreensíveis, Mariza Peirano propõe que
possamos estudar o ritual, também, para compreender toda a sociedade: acompanhando
as paradas e manifestações civis, as marchas políticas e o carnaval, por exemplo.

Antes de concluirmos esse subtópico, voltaremos para as definições de ritual


conectadas ao universo religioso. O antropólogo Jack Goody, ao comentar a definição de
ritual e de religião de diversos eminentes cientistas sociais: Durkheim, Mauss, Radcliffe-
Brown, Parsons, Eliade nos apresenta uma definição ampla de ritual, que em alguns
aspectos, já foram comentados até aqui. Mas a citaremos para encerrar esse tópico:

Em conclusão, então, por ritual queremos dizer uma categoria de


comportamento padronizado (costume) em que o relacionamento
entre os meios e o fim não é “intrínseco”, i. e., é ou irracional ou não
racional. Dentro dessa categoria geral encontramos a ação mágica,
que é essencialmente irracional, visto que tem um fim pragmático
que seus procedimentos não conseguem realizar, ou realizam por
outras razões que o paciente, e possivelmente até o praticante,
supõem. Essa é a “ciência bastarda” de Frazer. Depois existem
atos religiosos, que podem ser irracionais (como no caso de muitas
formas de sacrifício e oração) ou podem ser não racionais, como em
muitas celebrações públicas, mas todos os quais envolvem seres
sobrenaturais. E finalmente há uma categoria de ritual que não é
nem religiosa nem mágica: ela nem presume a existência de seres
espirituais nem está direcionada a algum fim empírico, embora isso
não seja negar que ela possa ter um “objetivo” reconhecido dentro do
sistema de coordenadas do ator, bem assim como alguma “função
latente” do ponto de vista do observador. Nessa categoria de ritual
encontram-se cerimônias do tipo não mágico-religioso: cerimônias
de casamento civil, rituais de nascimento e morte em domicílios ou
sociedades seculares (GOODY, 2012, p. 32).

Importante notar que a definição de Goody elenca uma dicotomia entre racional e
não racional. Ou racional e irracional. O objetivo de Mariza Peirano foi, justamente, extrapo-
lar essa dicotomia e mostrar que não precisamos estudar o ritual sob essa lógica. Mesmo

100
com a noção de Goody, que se comunica com outras definições da antropologia da religião,
compreende-se que comportamentos aparentemente irracionais, estão inseridos em um
sistema simbólico possível de ser interpretado, não somente pelo nativo, mas principalmen-
te, sob essa ótica da antropologia, pelo próprio antropólogo e antropóloga. Assim, o prag-
matismo da ação ritual e mágica, se foi interpretado por Goody como um padrão de com-
portamento irracional e sem uma ligação entre fim e meios, Mariza Peirano, em diálogo com
Tambiah, mostrou que a magia é uma linguagem, e que a ação ritual, conforme já vimos,
tem efeitos sociais, que muitas vezes extrapola o seu ambiente religioso e ritual e perpassa
outras esferas do social. Antes de encerrar, acompanhemos mais uma definição de rito:

Ritos são ocasiões para que indivíduos se reúnam, reconheçam-se,


sejam integrados ou excluídos de certas comunidades, reafirmem
suas identidades individuais e coletivas. Com maior ou menor
autonomia diante dos modelos oferecidos pela sociedade, os rituais
operam processos de distinção e hierarquização justificando e
visibilizando desigualdades entre os que deles participam, e aqueles
aos quais é vetada a presença. Mesmo que realizadas por grupos
particulares, as práticas rituais tendem a se escandir e impactar
outros grupos, uma vez que a vida social dos sujeitos transcorre em
meio a participações sociais diversificadas (VILHENA, 2013, p. 513).

Essa definição da cientista social Maria Vilhena enfatiza os ritos religiosos, encontran-
do neles, o seu poder de transformação social, de movimentar a estrutura social. O rito, por-
tanto, pode ser tanto para agregar uma comunidade, na medida em que a separa de um todo.
Reforçar laços sociais, mas também, pode rompê-lo e daí por diante. Diante da complexidade
de definições sobre o que é o ritual, podemos compreender que os rituais são linguagens e
sistemas de ação imprescindíveis para a compreensão da religião. E, conforme acompanha-
mos até aqui, não se limitam ao religioso, mas possuem um forte vínculo com esse universo.

INDICA
Figura 2 – Capa da revista Religião e Sociedade vol 13

FONTE: <https://religiaoesociedade.org.br/revistas/v-13-no-01>. Acesso em: 12 jul. 2022.

101
A revista Religião e Sociedade é um periódico acadêmico, fundada em
1977 pelo Centro de Estudos da Religião (CER) e pelo Instituto de Estudos
da Religião (ISER). Em atividade até hoje, a revista reúne uma ampla
variedade de artigos científicos sobre a religião, sob a ótica das ciências
sociais. Recentemente, todos os números foram digitalizados, podendo
ser acessados no site do periódico.

FONTE: Disponível em: https://bit.ly/3So1zH8. Acesso em: 12 jul. 2022.

3 O MITO COMO LINGUAGEM


A palavra mito, assim como rito e ritual, carrega fortes noções em nosso senso
comum. Antes de avançarmos mais algumas linhas, vamos pausar a leitura e pensar: o
que a palavra mito evoca para mim?

As respostas, certamente, são muitas. Mas posso apostar que ela deve apresen-
tar pelo menos dois sentidos, um positivo e outro negativo. Esse último, é o mito como
algo falso, uma mentira, algo que não se encontra na realidade. Nesse sentido, mito tem
como sinônimo, lenda. Próximo desse sentindo, tem a palavra mito como uma informa-
ção errônea que é tida como verdade por sua repetição e que acaba passando, desper-
cebidamente, por nós. Por isso, continuamos a perpetuá-la. Já o significado positivo, é
utilizado para descrever alguém que se credita ter construído e executado feitos glorio-
sos, tornando essa pessoa, praticamente, em um ente não-humano, um super-humano.
Ambos os sentidos pouco têm a nos dizer sobre o que é o mito na antropologia.

O mito é o espaço da imaginação. Você já deve ter entrado em contato com


alguns deles. Funcionam como contos de tradição oral, mas que passam pela tradição
escrita também. Eles possuem funções narrativas, mas suas regras são próprias.
O mito é uma forma de linguagem, portanto, tendo sua própria maneira de contar e
pensar o mundo, como nos diz o antropólogo Lévi-Strauss, uns dos principais autores
responsáveis pela nossa maior compreensão do mito como linguagem, reconhecendo a
sua importância em todas as sociedades, ou seja, em nossa própria condição humana.

Além disso, o mito, na antropologia, geralmente é pensado em relação com


o rito. Ora como uma relação complementar, ora de oposição. Houve uma noção na
antropologia de que os ritos estão na ordem da ação, ou seja, no que as pessoas fazem.
Já os mitos, é sobre o que as pessoas dizem. Um, é sobre agir, o outro, sobre pensar.
Qualquer pessoa sensata sabe que não se age sem pensar nem o contrário. Entretanto,
conforme já temos acompanhado, a antropologia gosta de trabalhar com esses tipos
de dicotomias e ela, de fato, chega a algumas observações interessantes a respeito
delas. O aviso que tenho dado até aqui, permanece: na prática, essas dicotomias não se
sustentam. Mas vamos acompanhar os motivos para essa separação:

102
Ritos e mitos marcariam, portanto, uma antinomia inerente à condição
humana: a do viver e a do pensar. Influenciado pela linguística
dominante na época (derivada de Ferdinand de Saussure e de Roman
Jakobson), para Lévi-Strauss o mito tinha uma afinidade profunda
com a estrutura da língua, transformando-se no pensar pleno — e,
assim, superior ao rito, relacionado à prática. Curiosamente, até os
contendores de Lévi-Strauss na época contribuíram para a analogia
mitos = representações. Victor Turner, por exemplo, ao se definir
claramente contra a linguística, estabeleceu que ritos eram bons
para a resolução de contendas e explicitação das ambiguidades
da estrutura social. Turner se colocava, portanto, do lado oposto a
Lévi-Strauss, fazendo dos ritos o caminho virtuoso para se acessar
a estrutura — não da mente, mas da sociedade. Em outras palavras,
o viver e o pensar definiam-se como incompatíveis na prática e na
teoria: Turner se interessava pelo primeiro, Lévi-Strauss afirmava a
importância do segundo (PEIRANO, 2003, n. p).

Portanto, de fato, a antropologia compreendeu, de maneira separada, o rito e o


mito. Ao menos em algum aspecto, reforçado por Lévi-Strauss, que enfatizava o papel do
mito para a compreensão do humano, e Victor Turner, por outro, que reforçava o papel do
rito para a resolução de conflitos e a ação. Esses resquícios permanecem, em nossa ciência,
em parte, porque a antropologia da religião se especializou, em alguma medida, separando
as linguagens religiosas: o mito, o rito, o simbolismo religioso. Assim, a antropologia da re-
ligião poderia estudar esses aspectos em separado, ou enfatizando algum deles, embora,
ainda, levando em consideração as relações que essas linguagens estabelecem entre si.
Como já acompanhamos, nem sempre se interpreta o mito e o rito como dicotômicos:

De certa maneira, os rituais encenam um ou vários mitos. Para mui-


tos antropólogos, a relação entre ritual e mito é direta. Os mitos são
narrativas coletivas, contadas a partir de um discurso metafórico, que
tratam das questões mais íntimas de uma sociedade. Em geral costu-
mam-se ver apenas as narrativas que tratam das origens das coisas,
de ordem material ou social, e que ligam o mundo dos humanos ao dos
deuses e heróis míticos. No entanto, o mito é uma forma de linguagem
muito mais ampla e presente em todas as sociedades. Em um primei-
ro momento, e seguindo as posições positivistas, a Antropologia via
nos mitos uma expressão de irracionalidade dos povos tradicionais. A
partir da crítica que a Antropologia empreendeu á visão evolucionista,
os mitos começaram a ser compreendidos como tendo relação com a
estrutura social. Como fazem sentido para os povos que os vivenciam,
os mitos são tidos como manifestação de outra racionalidade, que tra-
tam de verdades profundas do grupo. Longe de perceber o mito como
uma fábula infantil ou um discurso ilusório, a Antropologia percebe a
presença de mitos em praticamente todas as religiões. As histórias e
narrativas sagradas são, em última instância, mitos. Estão longe do
que poderia ser chamado de falsidade. Trata-se de profundas expres-
sões do imaginário humano (GUERRIERO, 2013, p. 253).

Nesse aspecto, portanto, o mito é o lócus da imaginação. E a imaginação, aqui,


tem um sentido positivo: é o espaço da criação. A criatividade, no mito, é uma lingua-
gem, mas que está sempre relacionada com a sociedade. Aqui, temos que ressaltar o
fato de que “as histórias e narrativas sagradas” são mitos. Ou seja, não só as escrituras
sagradas, das religiões mundiais, são mitos, assim como são mitos as diversas narrativas

103
que fundamentam as religiões de matriz africana, indígena e diversas outras. A chave
para interpretar esses mitos, portanto, não é da falseabilidade da realidade, mas da po-
tência criativa e de como essas narrativas funcionam e nos revelam aspectos profundos
das sociedades. Lévi-Strauss, por exemplo, em seu empreendimento monumental, nos
livros Mitológicas, interpretou as mitologias dos povos indígenas das Américas. Para Lé-
vi-Strauss, a chave interpretativa do mito não só é o do falso e do irracional, como, para
ele, o mito tem a sua própria ciência e se encontra, de alguma maneira, com a ciência.

As questões sobre a ciência dos mitos, que se espalham por entre os


quatro volumes das Mitológicas, retornam logo nas primeiras páginas
de História de lince (1991), designado por Lévi-Strauss como a última
de suas “pequenas mitológicas”. O autor emprega a metáfora do jogo
de xadrez para se referir à análise estrutural do mito, uma vez que
o mito ocupa o papel de rival do analista, e isso espelha a paridade
entre ambos. Nós, modernos, acreditamos que o mito já teria perdido
o jogo para a ciência. Mas Lévi-Strauss lembra que o primeiro devolve
à última os “poderes da imaginação”, sem os quais esta sequer
poderia ter existido. E alega que no tempo atual o pensamento mítico
tem voltado a ser um intercessor decisivo no mundo científico. Em
primeiro lugar porque ele se tornou “o único meio para os físicos
de se comunicar com os não físicos”. As descobertas da ciência
– o universo em expansão, a descrição do mundo físico de duas
maneiras alternativas e excludentes (corpuscular e ondula tória), o
Big Bang etc. – apareceriam, para os leigos, como mitos, já que sua
compreensão dependeria fortemente de um esforço imaginativo. O
abismo entre o mundo clássico e o mundo quântico, revelado pelos
físicos, recolocaria para nós a imagem de uma sobrenatureza, de
algo intangível que deve ser imaginado (SZTUMAN, 2009, p. 59).

Notemos que, para Lévi-Strauss, o mito é de fato o espaço da imaginação e


da criatividade. Entretanto, a ciência também o é. Ora, tanto o mito, quanto a ciência,
possuem suas próprias regras e não estabelecem seus conhecimentos de uma maneira
aleatória e totalmente caótica, embora, em uma primeira lida ou escutada, os mitos
pareçam um quanto que confusos. Mas a revanche do mito acontece, para Lévi-
Strauss, justamente quando a ciência, por parte da física, avança o seu conhecimento
de uma maneira tão complexa, que a sua linguagem, os fenômenos que descreve,
ressoam como absurdos para pessoas leigas. Portanto, a física quântica, por exemplo,
só consegue se comunicar com o senso comum, quando aciona um enorme esforço
imaginativo e comunicativo. Algo muito próximo do mito.

Renato Sztuman comenta, ainda, um artigo de Lévi-Strauss, publicado em 1993,


quando o antropólogo reflete o quanto a física, em seus paradoxos, encontra dificuldade
semelhante do que encontraram os indígenas americanos por meio de seus mitos:

Descrever o Big Bang como um tempo em que o tempo ainda não


existia e um espaço antes do espaço, isto é, todo um “universo em
germe”, remete a descrições míticas em que essas tor ções espaço-
-temporais se veem igualmente operantes. Os mitos americanos não
cansam, por exemplo, de descrever um tempo “antes do tempo” em
que os animais eram humanos, ou melhor, todos eram simultane-
amente animais e humanos. No mesmo artigo, Lévi-Strauss evoca
um expoente da física quântica, o dinamarquês Niels Bohr (1885-

104
1962), para reiterar a necessidade de uma colaboração entre cien-
tistas, etnólogos e poetas. Isso porque, para Bohr, assim como para
Lévi-Strauss, não há especulação intelectual sem imaginação, sem
representação antecipada e algo confusa de uma ordem de realidade
que não se pode conhecer por via imediata (SZTUMAN, 2009, p. 59).

Talvez, por já termos uma base, ou seja, por termos acompanhado até aqui como a
antropologia constrói o seu conhecimento, já não nos pareça tão absurda essa cooperação
imaginativa e experimental entre cientistas, etnólogos e poetas. As pessoas, em todos os
lugares e tempos, ao se expressarem, elaboraram o rito e o mito a partir de suas linguagens
próprias, expressas em uma comunicação simbólica. Não é exagero dizer que a antropolo-
gia, de fato, aprende com essa criatividade envolvida nessas expressões, assim como pre-
cisa exercitar a sua imaginação para fazer jus a essa criatividade (WAGNER, 2010).

Cabe reforçarmos que, para Lévi-Strauss, encontrar uma ordem na linguagem


mitológica, era um procedimento não somente metodológico:

Falar de regras e falar de significado é falar da mesma coisa; e, se


olharmos para todas as realizações da Humanidade, seguindo
os registos disponíveis em todo o mundo, verificaremos que o
denominador comum é sempre a introdução de alguma espécie de
ordem. Se isto representa uma necessidade básica de ordem na
esfera da mente humana e se a mente humana, no fim de contas,
não passa de uma parte do universo, então quiçá a necessidade
exista porque há algum tipo de ordem no universo e o universo não é
um caos (LÉVI-STRAUSS, 1978 p. 18).

Esse raciocínio de Lévi-Strauss é também epistemológico, no sentido em que


considera os mitos como constituídos de alguma ordem e racionalidade, porque constituídos
pela mente humana e porque a mente humana faz parte do “universo”. Evidentemente que
por todas as realizações da humanidade devemos entender desde o mito, até a ciência. De
fato, Lévi-Strauss considera que houve uma ruptura entre a linguagem do mito e da ciência,
mas esse laço teve que ser refeito por uma questão de linguagem e compreensão.

O que tenho tentado dizer até agora é que houve um divórcio – um


divórcio necessário entre o pensamento científico e aquilo que eu cha-
mei a lógica do concreto, ou seja, o respeito pelos dados dos sentidos
e a sua utilização como opostos às imagens, aos símbolos e coisas
do mesmo género. Estamos agora num momento em que podemos,
quiçá, testemunhar a superação ou a inversão deste divórcio, porque
a ciência moderna parece ser capaz de progredir não só segundo a
sua linha tradicional – pressionando continuamente para a frente, mas
sempre no mesmo canal limitado – mas também, ao mesmo tempo,
alargando o canal e reincorporando uma grande quantidade de pro-
blemas anteriormente postos de parte (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 19).

Para os nossos objetivos, relacionados a um livro de Antropologia da Religião,


cabe reforçar, portanto, que o mito é uma linguagem, um espaço de imaginação e
profundamente complexo. Podemos dizer que o mito, em alguma medida, cria o próprio
social. A sua interpretação é um desafio, como o próprio Lévi-Strauss admite e se
permitiu, a topar o próprio desafio.

105
As escrituras das religiões mundiais e as narrativas - literaturas das religiões
minoritárias, são mitológicas e nos possibilitam uma maior compreensão das sociedades
relacionadas a elas, assim como amplia a nossa possibilidade interpretativa sobre a
humanidade, a respeito do que significa ser gente.

4 O RITO, O MITO E O SIMBÓLICO


Até aqui, estivemos, também, no campo do simbólico. Pois ritos e mitos, como
formas de expressões, operacionam, mobilizam, criam e fazem circular símbolos.
Sabemos que a cultura é, também, o campo do simbólico. Assim como a religião
dificilmente é pensada sem esse seu aspecto expressivo. Podemos dizer que umas das
principais contribuições da antropologia, em especial da religião, é o seu arcabouço
conceitual-interpretativo dos sistemas simbólicos. Até aqui, alguns dos autores que
já citamos, tais como Clifford Geertz e Lévi-Strauss, assim como a antropóloga Mary
Douglas, possuíram um papel fundamental nessa contribuição, enfatizando como
podemos compreender essas linguagens dentro de um campo simbólico de atuação:

Talvez umas das mais fortes contribuições da Antropologia para o


estudo da religião se dê no fato de ela ter dirigido especial atenção
para a pesquisa de sistemas simbólicos. Considerar a cultura humana
como fruto da capacidade de simbolização é apenas ponto de partida.
A grande contribuição se dá porque compreende o universo simbólico
como elemento fundamental das comunicações e das trocas. Perce-
be-se então o papel fundamental de Lévi-Strauss, que não apenas de-
lineou o funcionamento da magia através da eficácia simbólica, como
trouxe enormes contribuições no campo das trocas simbólicas. Mary
Douglas elaborou uma teoria sobre a naturalidade dos símbolos, ao
menos como eles passam a ser manifestações previsíveis. Focada na
dimensão do simbolismo da experiência corporal, Douglas enfatizou o
ritual como um sinônimo de símbolo. O efeito do rito se liga à modifi-
cação da experiência. Experiências díspares ganham sentido quando
vivenciadas em um quadro de estruturas simbólicas. Para ela, o ritual
consiste essencialmente em uma forma de comunicação. Clifford Ge-
ertz, como afirmado anteriormente, elegeu os sistemas simbólicos de
uma cultura como centro de suas análises, como o religioso, o político,
o científico e outros. (GUERRIERO, 2013, p. 252).

Portanto, estamos sempre diante de sistemas comunicativos. Vimos que todo


rito comunica, que o mito é uma narrativa e que, evidentemente, comunica e narra.
Todos esses aspectos estão inseridos dentro de um universo simbólico de comunicação.
Por conta dessa proximidade, a própria Mary Douglas, por exemplo, considerou o
símbolo como sinônimo de rito. A concepção do simbólico como uma comunicação,
cria uma postura específica em sua análise: “A análise antropológica dos símbolos
procura descobrir os sistemas de significado subjacentes, em um esforço interpretativo
empreendido pelo pesquisador” (GUERRIERO, 2013, p. 252).

Cabe reforçar que o esforço interpretativo da antropologia da religião, não é o


mesmo do que a exegese da teologia, nem tampouco, conforme já acompanhamos,
está interessada em encontrar uma “verdade” dentro de cada símbolo. Mary Douglas, por
106
exemplo, mostra uns dos objetivos da análise simbólica, ao mesmo tempo que define um
sistema simbólico: “Por um lado, cada sistema simbólico se desenvolve autonomamente
de acordo com suas próprias regras. Por outro lado, ambientes culturais somam suas
diferenças. E ainda, as estruturas sociais acrescentam uma gama adicional de variação”
(DOUGLAS, 2021, n. p). Ou seja, embora os sistemas simbólicos possuam suas linguagens
e dinâmicas próprias, variam de acordo com os ambientes sociais e são modificados pela
estrutura social. Isso significa, reversamente, que ao interpretarmos esses universos sim-
bólicos, compreendemos um pouco mais sobre ambientes culturais e estruturas sociais.

Para a Antropologia, a simbolização reflete a maneira como os


símbolos religiosos se constituem, se fixam e se transmitem na história
e nas sociedades humanas. Ela se diferencia de outras abordagens
sobre os símbolos tanto as que possam vir da Psicanálise quanto as
de uma concepção que parta do princípio de que os símbolos têm
um significado fixo, inerente a eles mesmos, em todas as religiões e
culturas (GUERRIERO, 2013, p. 252).

Portanto, os símbolos e a linguagem simbólica, na concepção antropológica,


não confere uma fixação de significado para cada símbolo, pois não concebe nenhum
universo humano que não seja pautada pela dinâmica social, cultural e histórica. O
objetivo não é, afinal, chegar ao significado do símbolo, mas percorrê-lo e acompanhá-
lo em seu caminho, em como ele se constitui, se fixa e é transmitido, mas também
o que acontece, no campo do social, quando esse processo é estabelecido. Para
encerrarmos com definições mais precisas, vale recorrermos a um dicionário, hoje
clássico. É o Dicionário de Etnologia e Sociologia de Hebert Baldus e Emilio Willems
(1939). Acompanhemos, como os dois definem o símbolo:

O símbolo como projeção material, representa uma forma de


objetivação social [...] com significado específico, dentro de um
determinado grupo. Young [...] frisa a função do símbolo como sendo
«sinal, substituto ou representação de algum objeto ou situação.»
Quase todas as esferas culturais têm símbolos, mas a religião é
sobremaneira produtiva nessa atividade objetivadora (BALDUS e
WILLEMS, 1939, p. 206).

Nessa definição, temos o reforço de que a religião é um jardim para os


símbolos. É na religião onde há a proliferação da linguagem simbólica, embora ela não
seja exclusiva ao religioso. Mas isso nós já sabemos e temos acompanhado até aqui,
justamente a circularidade dos símbolos e seus efeitos que vão para além do universo
religioso. Baldus e Willems prosseguem, nos fornecendo alguns exemplos de símbolos e
reforçando as suas importâncias:

Exemplos de símbolos: ordens, bandeiras, altares, coroas, trajes,


anéis (alianças!), cores, armas, escudos, brasões, monumentos,
textos, inscrições, ritos, cerimônias etc. A respeito da importância
dos símbolos Simmel [...] observa: «Regimentos há que perderam
sua coesão logo que sua bandeira foi roubada, exemplos há de
associações que se dissolveram quando seus paládios, suas arcas
santas, seus graals foram destruídos». As influências que os símbolos
exercem sobre os homens, são, antes de tudo, de natureza afetiva:
«Uma bandeira encarna tanto a glória ade um regimento quanto uma

107
coroa as funções e o alcance da monarquia, e a aliança a importância
do matrimônio. Esses objetos são susceptíveis de exercer os efeitos
afetivos mais poderosos porque acompanham, continuamente, a
vida do grupo, acumulando em si todos os acontecimentos afetivos
mais poderosos porque acompanham, continuamente, a vida do
grupo, acumulando em si todos os acontecimentos afetivos. Ao lado
dos efeitos afetivos podem partir dessas objetivações poderosas,
influências sobre a vontade e as ideias do grupo» VIERKANDT [...]
(BALDUS e WILLEMS, 1939, p. 206).

O aspecto das motivações, influências e vontades sobre um grupo, é uns


dos mais importantes para a interpretação dos símbolos, portanto, pois nos ajuda a
compreender as dinâmicas sociais. Apesar dos exemplos apresentados parecerem um
tanto que exagerados, mostram, ao menos, a sua força: as bandeiras, por exemplo, são
tão importantes para determinados grupos, que a sua captura ou o a subversão do seu
uso, o afeta profundamente.

Entretanto, compreender a linguagem simbólica na religião, nos mostra Paula


Montero (2014), levou a antropologia a mobilizar uma noção cognitivista de crença
e símbolo, ou seja, desde Durkheim, com a separação entre a representação socia e
simbólica, e o nível empírico e factual, até a análise de Geertz, que resgata a teoria
do símbolo como representação social. Contudo, essa não é a única maneira de
compreender o simbólico, o universo das crenças e da religião:

O problema da abordagem cognitivista da religião, centrada no


conceito de representação, é seu suposto implícito de que o mundo
simbólico e o mundo social são duas dimensões separadas. Ao adotar
acriticamente esse entendimento, essa abordagem reproduz sem
perceber, como sugere Asad, o discurso teológico que transforma
ocorrências, gestos e eventos em significados cosmológicos. Por
essa razão, o autor sugere que a antropologia da religião abandone
esse viés cognitivista, no qual o observador pensa poder definir o
sentido das práticas de um ponto de vista exterior a elas. Essa atitude
heurística, em grande parte herdada das práticas missionárias
cristãs, está presente na antropologia das religiões desde os
clássicos até o momento atual. Tratar as crenças religiosas como
representações simbólicas supõe que, para interpretá‑las, é preciso
decifrar as ideias que elas produzem na mente e descobrir como os
sentidos cosmológicos ocultos organizam as práticas. Para superar
essa separação do pensamento e da sociedade em duas ordens de
realidade distintas, Talal Asad sugere que a antropologia das religiões
se pergunte não sobre o sentido das crenças, mas sim como os
discursos constroem a religião no mundo. Se estivermos dispostos a
aceitar que as religiões são formas discursivas que, nas sociedades
contemporâneas, articulam lugares, pessoas, coisas e ideias as
mais diversificadas, podemos concluir que as condições históricas
que deram sustentação à ideia de “crença” como convicção íntima
ou como aquilo que uma pessoa ou grupo considera verdadeiro se
modificaram profundamente. Nesse caso, as proposições de Asad
nos oferecem um caminho para que possamos desafiar as hipóteses
fundamentais da teoria do simbolismo herdadas pelos clássicos,
deslocando a primazia da noção da representação do campo do
conhecimento para o campo do poder (MONTERO, 2014, p. 141-142).

108
Nesse aspecto, podemos articular o estudo da linguagem simbólica com as
dimensões históricas e discursivas de produção do poder e da verdade religiosa. Ao
mesmo tempo que essa ênfase nos permite rastrear como os símbolos, os ritos, os
mitos, enfim, a religião, são constituídos em sociedade, assim como constituem o que
consideramos como a sociedade e o próprio mundo.

INDICA
Aprendemos que não existe apenas uma antropologia da religião porque estamos falando,
sempre, de religiões. Sabemos que o Brasil é um país considerado plural em suas religiões,
embora existam grupos hegemônicos e as religiões cristãs sejam dominantes. Para uma
melhor compreensão dessa multiplicidade religiosa e seus conflitos, vale assistir ao
documentário-reportagem, da TV Brasil, Intolerância e fé no Brasil, que assim, abre a sua
chamada: “No Brasil, apesar da miscigenação e da diversidade de credos, a intolerância
religiosa também deixa suas marcas. Em 2014, igrejas católicas de diferentes cidades do
interior de Minas Gerais foram atacadas. No Rio, terreiros de candomblé tornaram-se alvos
de vândalos. O da Mãe de Santo Conceição d'Lissá, em Duque de Caxias, já sofreu oito
invasões. O que estaria por trás do aumento das notificações de casos de intolerância
registrados por órgãos como a Secretaria de Direitos Humanos, em Brasília?

Figura 3 – Caminhos da reportagem aborda a intolerância no contexto nacional

FONTE: <https://bit.ly/3ynCrZd>. Acesso em: 12 jul. 2022.

109
LEITURA
COMPLEMENTAR
A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss: desdobramentos
contemporâneos no estudo das religiões

Paula Montero
Lévi‑Strauss e a escola sociológica francesa

Em um de seus posfácios ao livro Antropologia estrutural, Lévi‑Strauss postula


que, para o etnólogo, toda sociedade engloba um conjunto de estruturas que correspon-
dem a diferentes tipos de ordem social, como parentesco, organização social e estratifi-
cação econômica. O desafio que se coloca para a etnologia seria o de formular o modelo
geral de uma sociedade particular que fosse capaz de determinar o modo como todas
essas ordens se regem umas às outras de um ponto de vista sincrônico. Na perspectiva
levistraussiana, as tentativas de construção desse modelo geral não tiveram muito êxito
porque levaram em conta apenas as estruturas tais como podem ser objetivamente ob-
servadas na vida social. Lévi‑Strauss distingue, assim, as estruturas de ordem “vividas”
(que equivalem à realidade objetiva) das estruturas de ordem “concebidas” — as repre-
sentações que os homens fazem de sua realidade. Desse modo, enquanto o parentesco,
a organização social, as relações de troca pertencem à primeira ordem, a religião e o mito
correspondem à segunda. Essa formulação inspira‑se explicitamente na distinção mar-
xista infra/superestrutura, correlacionando as religiões e os mitos das sociedades não
europeias ao campo da ideologia nas sociedades contemporâneas. No entanto, as con-
clusões que Lévi‑Strauss retira dessa distinção da sociedade em duas ordens diversas (a
social e a representacional) estão mais próximas de Durkheim do que de Marx.

Como Durkheim, Lévi‑Strauss reconhece que os fatos religiosos devem ser


estudados como parte integrante da vida social. O papel da etnologia seria, pois, o de
estabelecer correlações entre diversos tipos de religião e diversos tipos de organização
social. Mas as relações entre religião e sociedade não são nem diretas nem imediatas.
O pecado de Radcliffe‑Brown e o consequente fracasso de sua sociologia religiosa
deveram‑se, segundo Lévi‑Strauss, a sua tentativa de fazer uma aproximação abstrata
entre religião e sociedade. O autor propõe uma etnologia religiosa fundada em estudos
concretos de pequena escala. Somente a partir da construção de vários modelos de
sociedade seria possível, pela comparação, compreender a série regular de variações
concomitantes das crenças. Chamo aqui atenção à importância que o autor dá à noção
de modelo. Apenas uma etnologia capaz de construir modelos poderia equiparar‑se
às ciências mais avançadas. Segundo ele, as jovens teorias da comunicação daquele
momento, em particular o modelo da linguística estrutural, estariam abrindo novas
possibilidades metodológicas para tratar de maneira mais rigorosa esses objetos
representacionais que são os signos.
110
Ao submeter os mitos à sua análise estrutural, Lévi‑Strauss de‑ compõe a trama
narrativa em unidades mínimas de relações, como o parentesco. As frases narrativas que
desenvolvem o mesmo tema são, então, agrupadas em conjuntos orgânicos. E esses
conjuntos são com‑ parados de modo a construir uma série de variações. A teoria do
significado levistraussiana está subordinada, portanto, a essa operação de composição
de séries: é a relação lógica das séries entre si que nos dá acesso ao significado do
mito. Podemos perceber que, para além da sofisticação teórica e analítica implicada no
esforço levistraussiano, as duas ordens descritas por Durkheim permanecem em sua
análise do pensamento religioso — a das relações sociais e a das operações mentais.

Na análise de Lévi‑Strauss, a narrativa mítica se desenvolve no plano das


relações sociais — relações de parentesco —, mas o seu significado se realiza no plano
das estruturas mentais. No mito, “o espírito, deixado a só consigo mesmo e liberado da
obrigação de compor‑se com os objetos, fica de certo modo reduzido a imitar‑se a si
mesmo […] e evidencia assim sua natureza de coisa entre as coisas”. A mitologia assim
apresentada, como o universo da regra em si, seria a mais pura expressão do modus
operandi da mente humana. Desse modo, se, para Durkheim, o estudo das crenças
religiosas observadas nos daria acesso às categorias abstratas de entendimento, tais
como tempo, espaço, gênero e espécie, para Lévi‑Strauss, as categorias sensíveis —
cru e cozido, fresco e podre —, definidas pela observação etnográfica, servem como
ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá‑las em proposições.
Nos dois casos, as operações da mente se caracterizam por processos classificatórios
de oposição e homologia. Comparando, no entanto, os dois procedimentos,
poderíamos dizer que a diferença entre as duas démarches estaria no lugar atribuído
às categorias para o funcionamento da mente. Durkheim relaciona crenças (que estão
no plano etnológico) às categorias mentais (que são universais), ferramentas de todo
conhecimento humano. As primeiras dão acesso às segundas. Lévi‑Strauss as coloca
no plano etnológico — as categorias são sensíveis. Elas dão acesso à estrutura da
mente, pensada como um conjunto de relações lógicas, mas elas mesmas permanecem
no plano particular. Ou seja, se, por um lado, os dois autores trabalham com a mesma
ideia universal de mente humana, por outro, trabalham a teoria da representação por
caminhos distintos: enquanto, para o primeiro, ela é uma teoria do pensamento, para o
segundo, trata‑se de uma teoria da comunicação.

Mito e religião como formas de representação

Pode‑se atribuir a Durkheim a cristalização do conceito de representação nas


ciências sociais. A noção de “sistema de representações” é ainda muito influente nas ci-
ências sociais contemporâneas e designa, de modo geral, o conjunto de ideias e valores
próprios de uma sociedade. Essas “representações coletivas”, pensadas como relativa-
mente autônomas tanto no que diz respeito à materialidade social como em relação à
consciência dos indivíduos, elaboram modos de representar o cosmos, a totalidade so-
cial, a magia, a feitiçaria, a pessoa etc. Em sua crítica à psicologia, Durkheim é bastante
enfático em sublinhar que as atitudes intelectuais do grupo são independentes das dis-
posições mentais individuais. Além de defender a posição de que as ideias religiosas não

111
podem ser consideradas indícios de um pensamento ou emoção aberrantes ou equi-
vocados, o autor ainda postula que elas constituem um modo particular de expressar o
real e a vida social. “[…] [D]ebaixo do símbolo, é preciso saber atingir a re‑ alidade que ele
figura e que lhe dá sua significação verdadeira […]”16, observa Durkheim ao afirmar que
as religiões primitivas não podem ser consideradas nem “erro” nem “mentira”, porque
estão “fundadas na natureza das coisas”. Temos aqui a distinção entre estrutura social e
estrutura mental mencionada por Lévi‑Strauss. Está bastante claro nesse trecho que o
autor entende a representação como imagens men‑ tais transfiguradas do mundo real.
Mas qual seria a relação que essas imagens mantêm com a materialidade das coisas?
Durkheim afirma que “[…] quando abordamos o estudo das religiões primitivas, é com a
certeza de que elas pertencem ao real e o exprimem”. Há aqui um modo bastante atu-
al de formular as relações entre ideia e mundo. Para Durkheim as representações são
compostas de símbolos. O conceito durkheimiano de símbolo postula que as represen-
tações religiosas expressam o mundo das coisas sociais. Desse modo, o símbolo nele
mesmo não é o objeto da reflexão. Ele precisa ser decifrado em termos daquilo que es-
conde. A significação, portanto, diz respeito a buscar os referentes das ideias que estão
em outra dimensão, fora do mundo simbólico: uma ideia significa quando encontra sua
contrapartida social. É nesse sentido que Durkheim considera o totem “antes de tudo
simbólico”. “O deus do clã [no caso dos Arunta], o princípio do totem, nada mais é do que
o próprio clã, hipostasiado e representado na imagi‑ nação sob a forma perceptível de
espécies vegetais ou animais vistas como totens”. O engano aqui — indicado na escolha
da palavra de origem grega hipóstase — diz respeito ao fato de o homem primitivo tomar
como real o que apenas existe na abstração. Duas implicações interessantes podem ser
retiradas dessa colocação: a primeira se refere a esse entendimento da representação
como engano; a segunda, à representação como figuração.

Em sua crítica à interpretação naturalista da religião em Max Müller, Durkheim


argumenta que, se a função da religião fosse “nos dar uma representação do mundo que
nos guiasse em nossas relações [práticas] com ele […], os fracassos, infinitamente mais
frequentes do que os êxitos, rapidamente lhes teriam advertido de que estavam em um
caminho equivocado […]”19. Nesse comentário, é possível perceber que, se a religião ex-
pressa o mundo real, esse real não é a natureza física. As representações religiosas não
são, para ele, uma teoria extra‑ vagante sobre as causas que regem os fenômenos físi-
cos. Ainda assim, Durkheim trata a crença como um engano. Qual seria então a diferença
do estatuto do engano na teoria durkheimiana com relação aos autores que ele critica?
Questão que nos leva à segunda implicação, a da representação como figuração.

Para encontrar uma alternativa à ideia de representações religiosas como


engano, Durkheim desenvolve uma estratégia argumentativa na qual é possível perceber
uma diferenciação entre a categoria de crença e a noção de ideias religiosas. Na minha
leitura do texto de Durkheim, as crenças são o modo como as ideias religiosas são ditas,
o modo como os nativos expressam as ligações que concebem entre as coisas. No caso
das crenças totêmicas, elas aparecem na forma do medo e/ou res‑ peito a certos animais,
na convicção do parentesco entre homens e animais. “Quando o australiano da tribo
Port‑Mackay sustenta que o sol, as serpentes etc. pertencem à fratria […] [ele] realmente

112
crê que os ‘caimãs são cangurus’, e que os cangurus são Wootaroo”20. Ao enfatizar o verbo
ser, em itálico no texto, Durkheim explica que a etiqueta da fratria tem para o nativo um
sentido: o de expressar que há um laço que liga coisas e animais às pessoas, tornando‑os
parte do mesmo grupo. O homem simboliza essas crenças em imagens e lhes rende culto.
Cabe, pois, ao observador analisar as ideias atrás das crenças e dos símbolos. Explicar o
totemismo, argumenta Durkheim, é mostrar a razão por que as coisas são reunidas sob
um totem, e por que, uma vez reunidas, essas figurações são consideradas sagradas e
passam a ser objeto de culto. A explicação durkheimiana se desenvolve, portanto, em
dois planos distintos: o do pensamento lógico e o dos sentimentos de coletividade,
exacerbados pelas virtudes dinamogênicas de toda espécie de religião.

As ideias religiosas, tais como o totem, estão ocultadas atrás das crenças reli-
giosas e têm que ver com o exercício prático da classificação dos homens e das coisas
em classes (por exemplo, fratrias e clãs). Observando essa realidade empírica da orga-
nização totêmica que apareceria reiteradamente no material etnográfico compulsado
por Durkheim, ele pôde perceber, por detrás desse exercício classificatório prático, a
presença de um pensamento ainda mais abstrato: as categorias de pensamento, agora
não mais ideias religiosas, mas instrumentos universais de conhecimento, como gênero
e classe. Se as ideias religiosas são um modo particular de como as categorias se apre-
sentam, o passo seguinte é perguntar quais os princípios que ordenam os homens e as
coisas nessas categorias, ou, na formulação de Durkheim, quais seriam as razões que
inspiram essa forma de classificar. “É muito verossímil que as duas fratrias constituí-
ram os marcos iniciais e fundamentais dessas classificações, que consequentemente
começaram a ser dicotômicas”. Durkheim sugere que categorias como gênero impõem
um modo dicotômico de classificação. As sociedades separam coisas e pessoas em
classes nitidamente antagônicas, tomando como referência as propriedades mais con-
trastantes das coisas. Assim, ao contrário das ideias religiosas que são imagens vagas
flutuantes, as categorias têm uma forma definida, constituindo um “símbolo lógico com
o qual pensamos com precisão as semelhanças e outras [coisas] análogas”.

No entanto, esse modo de organizar homens e coisas em classes antagônicas


não responde apenas a um princípio exclusivamente lógico, ele é “ao mesmo tempo
moral”, observa Durkheim. As coisas que estão reunidas sob o mesmo totem são sagradas
porque “participam de uma mesma carne no sentido de que participam da natureza do
animal totêmico”24. É importante ressaltar que o clã reunido simbolicamente sob o nome
de um totem não corresponde a um grupo local, nem a uma comunidade de sangue.
O totem associa pessoas dispersas em uma comunidade moral que se reconhecem
por serem portadoras de um mesmo emblema, essa representação inscrita nas coisas
e no corpo do nativo para expressar seu pertencimento. Nesse sentido, tudo o que as
relações sociais reúnem sob a mesma rubrica é representado como sagrado, posto que
organizam simbolicamente um grupo.
[...]

113
E, para Durkheim, existe religião, ou sentimento religioso, no momento em que
se distingue sagrado e profano. Explicar o sistema religioso totêmico é, pois, demonstrar
as razões que movem os homens a designar essas imagens como sagradas. A resposta
durkheimiana a essa questão é bem conhecida. O culto não se dirige aos emblemas,
mas à “força anônima e impessoal”, esse princípio comum, neles presente, mas que não
se confunde com nenhum deles.

Analisando o totemismo na chave da representação, isto é, da “forma material por


meio da qual a imaginação se representa essa substância imaterial, essa energia que se
difunde em todo tipo de seres heterogêneos, e que é o único objeto de culto”26, Durkheim
propõe uma ideia de simbólico como forma mental separada das coisas empíricas. Quando
o autor lança mão do termo “representação”, ele informa ao leitor que está se deslocando
para o ponto de vista do nativo. “Significado”, neste caso, seria o sentido que o nativo dá
aos símbolos inseridos de modo mais ou menos visível em suas crenças. As imagens do ser
totêmico são mais sagradas — leia‑se mais significativas — do que o ser ele mesmo, porque
as imagens representam e permitem formular abstratamente a ideia da força social que os
move. Pode‑se, talvez, para concluir, arriscar o desenho de um paradigma durkheimiano
das representações que incluiria duas dimensões: uma teoria do conhecimento e uma
teoria da significação. Na primeira, as representações são concepções nativas que nos dão
acesso à “ossatura da inteligência”; modos universais e não religiosos de organizar o mundo
para conhecê‑lo — estamos aqui no plano das proposições lógicas que implicam o uso
das categorias; já a teoria da significação diz respeito ao plano das ideias religiosas que
produzem, mais do que pensam, forças de coesão social. Neste plano, as imagens são a
forma mental por meio da qual o nativo simboliza, ou “imagina” na linguagem de Durkheim,
essa substância imaterial, essa energia dinamogênica que os une. Nesse sentido, o símbolo
é uma imagem mental composta pelo nativo para expressar sua crença ou sentimento
de coesão. Esta teoria do simbólico postula a vida mental como separada do mundo das
coisas. Sacralizar as coisas é fazer delas o símbolo de algo que está fora delas. “É o emblema
que é sagrado. Conserva este caráter com independência do objeto sobre o qual ele se
representa”. O símbolo aqui está no lugar da coisa representada.

Retomando criticamente os problemas sobre as formas primitivas de pensar


inaugurados por Durkheim, Lévi‑Strauss lhe inverte radicalmente os termos: ao invés
de uma teoria sociológica do simbolismo, ele propõe uma teoria simbólica da sociedade.
Lévi‑Strauss trata as culturas ditas “primitivas” não como um conjunto de dados a
serem descritos, mas como ponto de partida para um modelo a ser construído pelo
observador. Dito de outra forma, não é a variedade empírica particular das culturas que
o interessa, mas a regra de suas variações. Pela comparação é possível estabelecer
uma gramática das diferenças, isto é, demonstrar que apenas um número limitado de
invariantes organiza todas as estruturações possíveis. É nesse sentido que Lévi‑Strauss
se interessa pela religião primitiva e pelos mitos. Para ele, toda religião diz respeito a
uma exigência universal de ordem: “essa exigência de ordem está na base de todo
pensa‑ mento que chamamos de primitivo, mas somente porque ela está na base de
todo pensamento”. Ao submeter ao foco de sua atenção o modo primitivo de pensar,
Lévi‑Strauss retoma criticamente o tema durkheimiano da classificação.

114
Quando Lévi‑Strauss se coloca o problema do simbolismo animal, conclui que
os fenômenos totêmicos traduzem uma cesura entre a ordem da natureza e a da cultura.
A ideia do quadro de permutações entre diferenças e semelhanças relativas seja aos
grupos sociais, seja às espécies animais ou vegetais resulta de uma hipótese sobre um
duplo movimento do intelecto: por um lado, os nativos, em sua observação do mundo
natural, comparam as coisas e percebem suas homologias e diferenças; por outro,
tomando como modelo a natureza, se aproveitam dessas distâncias e aproximações
lógicas para descreverem a si próprios. Trata‑se, pois, como em Durkheim, de colocar em
operação uma lógica do contínuo/descontínuo inerente aos sistemas de classificação.
No entanto, se para Durkheim os homens tomam como modelo a sociedade, para
Lévi‑Strauss os ho‑ mens tomam como modelo a natureza. Ao privilegiar o tema das
classificações primitivas, Lévi‑Strauss privilegia a vertente durkheimiana de uma teoria
do conhecimento em detrimento de uma teoria da significação na qual o símbolo está
no lugar da coisa representada. Na abordagem estruturalista, o pensamento primitivo
articula proposições cosmológicas por meio de categorias sensíveis. A significação se
produz, então, como se sabe, na relação dos elementos nas frases das narrativas míticas
ou na tradução daquilo que está expresso em uma linguagem para outra situada em
nível diferente, mas isomórfico. Para Lévi‑Strauss falar em significação é, pois, falar em
regras de tradução. Como Durkheim, Lévi‑Strauss procurou um sentido sob a aparente
desordem das representações míticas. Mas, diferentemente de Durkheim, não fundou
essa ordem na “natureza das coisas”, e sim nas regras que organizam a linguagem.
Para Lévi‑Strauss o signo não é um símbolo, ele não “representa” algo que está fora
dele. Revelar a significação de um signo não é encontrar o seu sentido verdadeiro, mas
compreender a relação que estabelece com outros signos. Há de se notar aqui, portanto,
uma diferença significativa no uso da ideia de representação pelos dois autores. Em
ambos os casos o conceito de representação remete a uma concepção em dois níveis: o
das imagens mentais tomadas como símbolos e signos e o daquilo a que elas remetem.
Enquanto para Durkheim as imagens remetem às forças sociais de coesão (a ordem dos
fatos), para Lévi‑Strauss elas remetem à regras de tradução (a ordem da significação).
No entanto, se aproximarmos os dois autores a partir de suas teorias do conhecimento,
perceberemos certa similitude quanto ao entendimento das representações como uma
porta de acesso aos modos universais do funcionamento da mente humana.

FONTE: MONTERO, P. A teoria do simbólico de Durkheim e Lévi-Strauss: desdobramentos contemporâneos no


estudo das religiões. Novos estud. CEBRAP, v 98, mar., 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/
PQhwQhztLGf3ZgvvxzgW9Md/?lang=pt. Acesso em: 10 jul. 2022.

115
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Os ritos são expressões sociais que sempre comunicam, transmitem conhecimentos


e determinados valores, a partir de linguagem gestual e verbal. Também possuem
efeitos na sociedade: expressam contradições, resolvem conflitos. Embora sejam
importantes para a linguagem religiosa, os rituais não são exclusivos do religioso.
Paradas cívicas, marchas e protestos políticos, assim como o desfile de carnaval,
são rituais, por exemplo.

• O mito não é sinônimo de falsidade, nem tampouco de lenda. Mitos são narrativas
que conduzem e revelam elementos fundamentais da sociedade. Existem mitos em
todas as sociedades e culturas, assim como em todas as religiões. As escrituras,
são mitos, as histórias contadas a partir da tradição oral, sobre divindades também
o são. O mito é uma linguagem específica e que possui suas próprias regras. Além
disso, é o espaço da imaginação e da criatividade.

• Os ritos, os mitos, enfim, as religiões, são universos simbólicos. Não existe ritual sem
símbolos, nem mitos que não os apresente. O simbólico, sobretudo nas religiões, é
uns elementos mais importantes para a antropologia, que se interessa sobretudo
como os símbolos são criados, transmitidos e transformados e nos revelam, em
alguma medida, sobre o grupo, a sociedade e a religião que o mobiliza.

116
AUTOATIVIDADE
1 Embora em nosso senso comum, a palavra ritual evoque comportamentos irracionais
de culturas exóticas e distantes, e até mesmo, seja pensado como apenas um
elemento de histórias de terror, a nossa vida em sociedade é toda atravessada por
rituais e não exista ninguém nesse mundo que não tenha participado de alguma
atividade ritual. Sobre o rito como linguagem, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Apesar de surgir em todas as sociedades, os ritos que a antropologia estuda são


necessariamente religiosos e irracionais.
b) ( ) O rito é um sistema cultural de comunicação simbólica, que comunica e tem
efeito social.
c) ( ) A antropologia classifica os ritos entre simpáticos, mágicos, científicos e
teológicos.
d) ( ) A ação ritual, mesmo na religião, possui uma estrutura lógica e compreensível,
entretanto, o mito que o rito carrega é sempre irracional.

2 Em nossa sociedade, a palavra mito pode evocar um sentido negativo de falsidade: o


mito é uma lenda, uma história falsa que tem teria apenas efeito lúdico. Entretanto,
sabemos que para a antropologia, o mito é um conceito fundamental. A respeito do
mito na antropologia, analise as sentenças a seguir:

I- O mito, por ser o espaço da imaginação e da criatividade, por apresentar alguns


elementos difíceis de compreensão. Entretanto, ele não é interpretado como
totalmente irracional.
II- A linguagem do mito é tão importante quanto a ciência. Para a antropologia, nunca
houve, de fato, uma separação entre esses dois aspectos.
III- Os mitos revelam aspectos fundantes de uma determinada sociedade. São histórias
que conduzem valores, moralidades e, em grande medida, narram a origem de
determinado grupo social.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 Simbolizar, ou seja, expressar-se a partir de símbolos e significar o nosso meio a partir


de uma linguagem simbólica, é umas das características de nossa humanidade.
Portanto, não existe uma religião sem símbolos. A respeito do estudo dos símbolos na
antropologia, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

117
( ) A antropologia se interessa em saber como os símbolos se constituem, se fixam e
se transmitem ao longo da história.
( ) A partir da interpretação dos símbolos, a antropologia pode alcançar o significado
último de cada símbolo que constitui uma religião.
( ) Os símbolos são históricos e não estão confinados em situações religiosas.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 As pessoas, em todos os lugares e tempos, ao se expressarem, elaboraram o rito e o


mito a partir de suas linguagens próprias, expressas em uma comunicação simbólica
Escolha um rito e o caracterize enquanto comunicação e ação.

5 Ritos e mitos fazem parte do campo do simbólico. Assim como não existe uma
cultura sem símbolos, o mesmo acontece com uma religião. Comente como estão
interlaçados os ritos, os mitos e os símbolos.

118
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WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

122
UNIDADE 3 —

TEMAS CONTEMPORÂNEOS
NA ANTROPOLOGIA DA
RELIGIÃO
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Compreender a centralidade do Secularismo e da Laicidade para a construção de


um Estado Democrático de Direito;

• compreender a centralidade do Secularismo e da Laicidade para a construção de


um Estado Democrático de Direito;

• identificar o fenômeno das espiritualidades contemporâneas e o seu diálogo com o


não-religioso e o religioso;

• interpretar a dinâmica entre intolerância e pluralismo religioso, considerando o


racismo religioso nessa equação.

PLANO DE ESTUDOS
A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar
o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – LAICIDADE E SECULARISMO

TÓPICO 2 – ESPIRITUALIDADES

TÓPICO 3 – INTOLERÂNCIA E PLURALISMO

CHAMADA
Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure
um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

123
CONFIRA
A TRILHA DA
UNIDADE 3!

Acesse o
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124
UNIDADE 3 TÓPICO 1 —
LAICIDADE E SECULARISMO

1 INTRODUÇÃO
A laicidade e o secularismo são processos dinâmicos que acontecem em
sociedades que pretendem, de alguma maneira, regular o religioso, por um lado, ou
acreditam que a religião, paulatinamente, perderá a sua força no espaço público, cada
vez mais destinada ao mundo da subjetividade e privado.

Apesar das semelhanças, laicidade e secularismo não são sinônimos. Essas


palavras, em determinados contextos, até funcionam como equivalentes, entretanto,
enquanto conceitos das ciências sociais, apresentam suas diferenças.

No tópico Laicidade e Secularismo, aprenderemos em “O secularismo como tema


sociológico” como o secularismo é um tema sociológico, em especial, da sociologia da
religião, considerado até mesmo como um conceito central na disciplina. Em “Distinções
entre secularismo e laicidade”, estudaremos as origens distintas desses conceitos e os
diferentes aspectos que relacionam religião e sociedade que eles levantam e descrevem.
Finalmente, no subtópico “Secularismos e laicidades no Brasil” teremos exemplos de
como esses fenômenos e conceitos são estudados no Brasil contemporâneo.

2 O SECULARISMO COMO TEMA SOCIOLÓGICO


Aprendemos que os considerados três grandes clássicos e fundadores da
sociologia: Karl Marx (1818 – 1883), Émile Durkheim (1858 – 1917) e Max Weber (1864 –
1920), de alguma maneira, pensaram e estudaram o fenômeno da religião. Como disciplina
incipiente, também solidificando-se na virada do século XIX para o XX, a sociologia
buscava compreender as transformações vividas pelas sociedades europeias: processos
de industrialização, modernização, êxodo rural e as mudanças no mundo do trabalho.
Se por um lado, a antropologia concentrava seus estudos no contato dessa realidade
moderna e ocidental com as sociedades colonizadas pelo mundo euro-americano, a
sociologia procurava desvendar e compreender os fenômenos de sua própria sociedade
fundadora: basicamente europeia e posteriormente, norte-americana.

A socióloga Danièle Hervieu-Léger e o sociólogo Jean-Paul Willaime, em um


texto introdutório sobre sociologia e religião, comentam sobre a predominância do tema
entre os clássicos da disciplina:

125
Todos os grandes clássicos da sociologia se confrontaram com a
análise do religioso e essa análise ocupa frequentemente um lugar não
pequeno no conjunto de sua obra. É que o nascimento da sociologia
como disciplina científica encontrou-se fortemente ligado a uma
interrogação sobre o futuro do religioso nas sociedades modernas. É
pelo fato de os autores clássicos da sociologia terem sido sociólogos
da modernidade (econômica, política, social, cultural) – por terem
sido habitados pela consciência histórica de um sentimento de
ruptura com o passado – que eles não podiam, ao pesquisar para
descobrir a emergência da sociedade moderna, deixar de encontrar o
fenômeno religioso. E é justamente por sua problemática – retomada,
transformada, desviada – continuar a inspirar as pesquisas atuais
que nos pareceu importante voltar aos clássicos. Tal retorno é
mais imperativo ainda pelo fato de que o abalo de alguns grandes
paradigmas interpretativos – como o da secularização – arrisca-
se, ano na sociologia das religiões como em outros domínios da
sociologia, a reduzir a investigação sociológica para formas mais
ou menos sofisticadas de positivismo dos dados, esquecendo as
grandes interrogações epistemológicas e a profundidade história dos
grandes clássicos da sociologia. Voltar à análise sociológica do fato
religioso, realizada por esses autores, é também, inevitavelmente,
medir a pertinência de sua abordagem para analisar as mutações
religiosas contemporâneas (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 10).

A postura dos clássicos da sociologia para com a religião, de ruptura, ou seja,


de compreender a religião como um fenômeno do passado e da tradição, enquanto a
modernidade seria o mundo da transformação do social que romperia com a tradição,
faz parte da base positivista que formulou a própria sociologia.

IMPORTANTE
Para a compreensão dos clássicos da sociologia, precisamos nos ater ao positivismo. Como
corrente filosófica, o positivismo compreendia que a humanidade passaria por etapas de
evolução, até chegar em seu auge, manifesta pela ciência e pela modernidade. Por coincidência,
esse auge já representava parte da sociedade ocidental que formulou o positivismo. Na
sociologia, a principal influência positivista vem do próprio fundador desse sistema filosófico,
Auguste Comte (1798-1857), que impactou diretamente na sociologia, especialmente em
Durkheim. O postulado dessa filosofia considera que o conhecimento humano passa por três
etapas. A primeira, é a teológica, quando a humanidade explicou todos os fenômenos partindo
de pressupostos mágico-religiosos. Essa etapa também era considerada de uma maneira
unilinear e evolucionista, dividida em três fases: fetichista (crença em poderes mágicos),
politeísta (crença em múltiplos deuses) e monoteísta (crença em um ser absoluto e criador).
A segunda etapa é o momento de transição da humana, a etapa metafísica. Nesse momento,
a humanidade desloca as causas e explicações do mundo e do universo para a
natureza, tirando a centralidade da explicação divina. Finalmente, a segunda etapa
seria a que, segundo Comte, estaríamos atualmente, denominada de “o estado
positivo”, onde predominam a racionalidade e a observação e interpretação dos
fatos. A ironia disso tudo é que Comte chegou a propor uma nova religião,
que substituiria o cristianismo (religião dominante em sua sociedade). Nessa
religião, o Deus seria a própria humanidade.

Fonte: Porto Editora – positivismo (filosofia) na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Edi-
tora. Disponível em: https://bit.ly/3fs2gAC. Acesso em: 1 ago. 2022.

126
Essa influência positivista, portanto, fez com que as teorias clássicas da
sociologia sobre a religião reproduzissem, mesmo que de maneira irrefletida, esse
esquema evolutivo. Entretanto, cada teoria clássica, de cada autor, apresenta questões
centrais para compreendermos a religião no mundo moderno, assim como nos auxilia
e nos situa sobre a religião em nossa realidade. Acompanharemos como o sociólogo
Ricardo Mariano, em seu artigo “Sociologia da Religião e seu foco na secularização”,
resume as ideias de Marx, Durkheim e Weber.

Marx interpretou a religião como um produto e reflexo das forças


sociais, ideologia alienante, instrumento de legitimação do Estado
e das classes dominantes, falsa consciência e epifenômeno que
dissimula a realidade e as fontes da dominação política e econômica,
mas também como protesto (simbólico) contra a opressão da miséria,
ópio e felicidade ilusória para suportar as privações materiais. A
religião, a seu ver, seria superada pela construção, mediante a luta
revolucionária, de um novo modo de produção econômico e de uma
sociedade sem classes (MARIANO, 2013, p. 233).

Aqui, podemos compreender como a teoria de Marx da religião estava relacionada


com a sua concepção sobre a sociedade, considerando a luta de classes como o motor
da história e o sistema econômico e produtivo como estrutura da sociedade. Dentro
dessa mesma teoria de Marx, a interpretação da religião como uma falsificação do real,
alienante, assim como uma possibilidade de resistência simbólica mobilizada pelos
oprimidos dentro desse sistema econômico e de classes. Ainda assim, seguia uma
vertente de transformação linear da sociedade, pois considerava que a religião seria
superada junto com o capitalismo.

Durkheim enfatizou a perda da relevância da religião (cristã) como


prática social e, sobretudo, como base normativa, fator de coesão e
solidariedade social na era moderna. Reforçado pelo Protestantismo,
o individualismo constituía, a seu ver, a principal força secularizante
a corroer o tradicional papel normativo e comunitário da religião.
Já Weber, ao mesmo tempo em que realçou o papel da ascese
protestante na formação do “espírito do capitalismo”, associou o
avanço da razão instrumental, da burocracia, do capitalismo, da
ciência e da diferenciação das esferas culturais e institucionais ao
desencantamento o mundo (desmagificação efetuada também pelas
religiões éticas, especialmente o Protestantismo), à secularização
das esferas econômica, jurídica e política e à perda de valor cultural
da religião na modernidade (MARIANO, 2013, p. 234).

Durkheim, portanto, compreendia que a sociedade moderna perdia o senso


coletivo e se concentrava em formar, cada vez mais, sujeitos individualizados. Como a
religião seria uns dos principais elementos formador de coesão social e representações
coletivas, a diminuição de sua incidência na sociedade produzia essa desagregação
por parte da relação entre indivíduo e sociedade. O Protestantismo é interpretado por
Durkheim, também, como um acelerador desse processo, por conta da sua ênfase na
possibilidade de se encontrar Deus em todos os lugares, sendo possível, para o indivíduo,
entrar em contato com o divino sem a mediação de uma liderança religiosa.

127
A relação entre protestantismo, modernidade e economia (capitalista) é melhor
explorada por Max Weber. Em Weber, temos a possibilidade de um fenômeno cultural, a
religião, interferir em fenômenos materiais e econômicos, pois a sua tese é mostrar como
a subjetividade protestante, de alguma maneira, configurou o capitalismo (WEBER, 2004).
Por outro lado, Weber também descreve como fenômenos relacionados a organização
social, de estrutura sociológica, tais como a burocratização e a racionalização da socie-
dade moderna, estabelecem o processo do desencantamento de mundo, que na socio-
logia weberiana descreve a diminuição de explicações e subjetividades mágico-religiosas
e místicas no mundo, sendo a religião, nesse sentido, considerada “ascética” e racional.

Sabemos que o protestantismo faz parte de uma ruptura com a igreja católica
e de um processo histórico que reconfigurou as relações entre religião e sociedade
no mundo euroamericano. Nesse aspecto, sobre os fundadores da sociologia e suas
preocupações com o fenômeno religioso, podemos dizer que:

Entre os fundadores da Sociologia, Durkheim e Weber foram os que


mais se dedicaram a investigar os fenômenos religiosos e seu im-
pacto sociocultural e econômico. Ambos estabeleceram forte asso-
ciação entre modernidade e declínio da religião no Ocidente europeu;
declínio tanto da autoridade e influência dos poderes hierocráticos
sobre os indivíduos e, especialmente, as instituições políticas, jurí-
dicas, econômicas etc. (que se especializaram e se autonomizaram,
em grande medida, das religiões) quanto das funções da religião na
promoção da coesão e da regulação social (MARIANO, 2013, p. 234).

Com essa introdução sobre como os clássicos da sociologia pensaram a religião,


podemos considerar o foco dessa ciência na secularização.

A secularização descreve o processo pelo qual a religião perde a sua


influência sobre as diversas esferas da vida social; se vivêssemos
em uma sociedade inteiramente secular, o conceito de religião seria
redundante. Na Europa ocidental, o padrão religioso ficou conhecido
como “acreditar sem pertencer”, pois as pesquisas mostram que
uma maioria de pessoas ainda acredita em Deus ou deuses, porém
frequenta cada vez menos as igrejas (Davie, 1994). Nos Estados
Unidos, porém, tanto a crença religiosa quanto a frequência nas
igrejas continuam altas. A dificuldade de chegar a uma conclusão
geral se dá pela falta de consenso sobre o modo como a secularização
deve ou pode ser mensurada (GIDDENS e SUTTON, 2017, p. 139).

Portanto, a secularização descreve um processo muito bem localizado em so-


ciedades euroamericanas, mostrando a diminuição do religioso nas esferas da vida so-
cial, especialmente a pública e o poder explicativo do mundo. Entretanto, conforme já
vimos com Talal Asad, esse processo é histórico e particular, específico do ocidente.
Contudo, é impossível negar a influência do secularismo no pensamento sociológico e
antropológico, em alguma medida. Assim como ele de fato descreve alguns momentos
e aspectos da nossa vida social. Como reforçam Giddens e Sutton, a maior parte das
pessoas continuaram acreditando em Deus ou em deuses, embora o poder centrali-
zador das igrejas enquanto matriz de explicação das nossas vidas e como o universo
funciona, seja menor.

128
Assim, a secularização é um conceito que não apresenta um consenso, sendo
muitas vezes uma expectativa, enquanto processo, das próprias ciências sociais, fruto
da ligação dessas ciências com o positivismo de Comte. Sobre a teoria da secularização
e a maneira como o sociólogo José Casanova a estudou:

José Casanova sintetizou as diversas formulações da teoria da


secularização, caracterizando-a como composta de três proposições
distintas e não integradas: (1) “secularização como diferenciação
de esferas seculares das instituições e normas religiosas”; (2)
“secularização como declínio das crenças e práticas religiosas”, e (3)
“secularização como marginalização da religião para a esfera privada”
(MARIANO, 2013, p. 235).

Nesse aspecto, o ponto um concentra-se na regulamentação do religioso e a


sua diferenciação das esferas seculares: históricas, mundanas e civis. Basicamente, é
o reconhecimento de que o estado e a sociedade não são constituídos por uma relação
simbiótica com a religião, nem tampouco poderia estar impregnado de apenas uma
religião em sua estrutura, pois, conforme veremos no caso da laicidade, a separação
entre estado e religião é, em alguma medida, a tentativa de que haja um pluralismo
religioso e não um centralismo protagonizado por apenas uma religião dominante. A
respeito dos dois outros pontos, vejamos:

Diante de evidências empíricas que falsificam as duas últimas pro-


posições, caso dos Estados Unidos, país que exemplifica, há longo
prazo, a possibilidade de convivência entre o que há de mais moder-
no na ciência, na Economia, na tecnologia etc. com a presença de
elevados índices de crenças e práticas religiosas na população, com
um pluralismo religioso e com um forte ativismo político e midiático
de grupos religiosos, entre eles a Direita Cristão, Casanova avaliou
que a secularização como diferenciação funcional das instituições
constitui a proposição mais sustentável dessa teoria. Tal processo de
diferenciação vale para explicar a secularização na Europa. Noutros
países, contudo, é preciso considerar o papel exercido pela coloniza-
ção europeia e pela difusão das categorias normativas e ideológicas,
como público e privado, secular e religioso (MARIANO, 2013, p. 235).

Sabemos, com os exemplos de Casanova, que as definições do secular não são


simples, tampouco seguem um esquema unilinear de transformação do religioso no
campo social, como queria Comte. Isso não significa que a sociologia da religião, e a
própria antropologia, perdem o seu poder de crítica em relação a maneira como o religioso
é usado para justificar o etnocentrismo e a intolerância. Entretanto, e o Brasil tem sido
um exemplo sobre isso também, as transformações das relações entre religião e política
fazem com que a sociologia repense a maneira como definiu a secularização. Desta
maneira, não há apenas uma maneira de definir o secular. Ainda com Ricardo Mariano,
podemos acompanhar a teoria da secularização mais popular, inclusive no Brasil, é a de
Peter Berger, “publicada em O dossel sagrado, e por décadas, considerada referência
paradigmática na Sociologia da Religião. Segundo Berger, a separação entre Igreja e
Estado, ao pôr fim ao monopólio religioso e abrir espaço para o avanço do pluralismo,
destruiu o “dossel’ religioso” (MARIANO, 2013, p. 236), que dominava a sociedade, sob
a lógica unitária de uma religião, uma sociedade. A aposta de Peter Berger é que o

129
pluralismo religioso diluiu a noção de religião no geral: “ao dissolvê-la como dever e
herança tradicional e tornar a pertença religiosa uma questão de livre escolha individual,
ao multiplicar as estruturas de plausibilidade religiosas concorrentes e ao promover a
relativização, a privatização e a subjetivação do conteúdo dos discursos religiosos”
(MARIANO, 2013, p. 236).

Dessa forma, a secularização foi uma teoria dominante, mas apresenta


certo declínio, senão contradição, enquanto explicadora das relações entre religião e
sociedade. Conforme veremos daqui para diante, as novas configurações do religioso
criaram os movimentos das espiritualidades, uma tendência individualista, em algumas
esferas sociais, da religião, ao mesmo tempo que em resposta, o fundamentalismo
religioso se faz presente, junto com a organização de novos movimentos religiosos
(NMR), assim “o avanço de grupos fundamentalistas sobre a esfera pública e a difusão
dos NMR e espiritualidades individualizadas colocaram novos desafios à Sociologia da
Religião e provocaram a rediscussão da ideia secularização e do secularismo como
produtos de processos estruturais impessoais” (MARIANO, 2013, p. 239).

IMPORTANTE
O desencantamento de mundo é uma noção desenvolvida pelo sociólogo
Max Weber, que descreve o processo de racionalização e burocratização da
vida em sociedade, diminuindo a influência da religião na maneira como nos
organizamos e vivemos em sociedade, sobretudo nos seus aspectos públicos.
Contudo, muitos cientistas sociais têm demonstrado, conforme nos mostram
Giddens e Sutton (2017), que longe de desparecer, a religião, no século XX,
ressurge com o fundamentalismo religioso, as novas espiritualidades e
novos movimentos religiosos, com a criação de grupos religiosos, às vezes
considerados como “seitas” e também com a articulação da religião com as
tecnologias modernas, como o uso religioso de canais de rádio, televisão,
e atualmente, a internet e as redes sociais, assim, considera-se que há um
processo, também, de “reencantamento” de mundo.

3 DISTINÇÕES ENTRE SECULARISMO E LAICIDIDADE


A noção de secularidade e laicidade, embora usadas como sinônimas em muitos
contextos, estão constantemente em embate no campo das ciências sociais e da
política. A pesquisadora Marcela Tanaka, em seu artigo “Secularização, laicidade e espaço
público: como pensar a política contemporânea brasileira à luz da religião” relembra como
a contenda entre secularidade e laicidade é uma disputa linguística e internacional: do
lado do secularismo, estariam intelectuais predominantemente ingleses, já do lado da
laicidade, “franceses, espanhóis, portugueses e latino-americanos” (TANAKA, 2020, p.
173). Nesse sentido, como acabamos de acompanhar, o secularismo é um conceito mais

130
multidimensional, apresentando diversas camadas, mas também limites e contradições.
Por outro lado, apesar da laicidade ser apontada por alguns como uma noção com maior
precisão, teria menos acuidade analítica (TANAKA, 2020).

Ricardo Mariano, em um artigo sobre a laicidade à brasileira, nos resume bem


essas duas categorias. Sobre a laicidade, discorre:

A noção de laicidade, de modo sucinto, recobre especificamente à


regulação política, jurídica e institucional das relações entre religião e
política, igreja e Estado em contextos pluralistas. Refere-se, histórica
e normativamente, à emancipação do Estado e do ensino público dos
poderes eclesiásticos e de toda referência e legitimação religiosa,
à neutralidade confessional das instituições políticas e estatais, à
autonomia dos poderes político e religioso, à neutralidade do Estado
em matéria religiosa (ou a concessão de tratamento estatal isonômico
às diferentes agremiações religiosas), à tolerância religiosa e às
liberdades de consciência, de religião (incluindo a de escolher não ter
religião) e de culto (MARIANO, 2011, p. 244).

Portanto, a laicidade descreve um processo em que o Estado e a igreja é pluralista.


Ou seja, embora exista uma religião dominante, a laicidade insere o pluralismo religioso
na política de Estado. Isso implica que em áreas centrais para a nossa sociedade, como
a educação, por exemplo, a religião perde o seu protagonismo. E aqui a palavra descreve
muito bem a situação: a religião, ou melhor, as religiões, podem atuar em pontos centrais
para a sociedade, como o campo da saúde e da educação, mas com atuação secundária
e auxiliar. No caso da educação, o ensino religioso que era praticamente uma confissão
de uma única religião, passa a ser ocupado por profissionais das ciências da religião que
devem inserir as noções de diversidade religiosa como equivalente a diversidade cultural
(GIUMBELLI e CARNEIRO, 2006). Nesse sentido, é importante ressaltar que a laicidade
é um conceito que descreve e analisa, muito mais, a regulamentação do religioso no
mundo secular, com a importância da atuação política e jurídica nesse processo. As
religiões permanecem, mas são regulamentadas para que nenhuma delas determine e
domine as outras, nem tampouco que uma visão religiosa específica interfira na vida de
toda uma população diversa. Sabemos que na prática, não é exatamente dessa forma
que acontece, mas há uma diferença da laicidade como proposta e a laicidade em sua
complexidade prática.

Sobre o secularismo, Ricardo Mariano nos apresenta:

O conceito de secularização, por sua vez, recobre processos de


múltiplos níveis ou dimensões, referindo-se a distintos fenômenos
sociais e culturais e instituições jurídicas e políticas, nos quais se
verifica a redução da presença e influência das organizações, crenças
e práticas religiosas. A esse respeito, o sociólogo José Casanova
destaca que “o que usualmente passa por uma singular teoria da
secularização é composta realmente de três proposições diferentes,
irregulares e não integradas: secularização como diferenciação de
esferas seculares das instituições e normas religiosas, secularização
como declínio das crenças e práticas religiosas e secularização como
marginalização da religião para a esfera privada” (1994, p. 211). Propõe
que os sociólogos da religião examinem e testem “a validade de

131
cada uma das três proposições independentemente uma da outra”
(Ibidem, p. 211). A partir da avaliação de cada uma delas, Casanova
afirma que a secularização como diferenciação funcional constitui a
proposição mais plausível da tese da secularização. Mas, ressalta que
a diferenciação funcional entre esferas seculares e religiosas permite
a emergência de movimentos e de grupos de pressão religiosos – ou
de “religiões públicas” – para disputar espaço, poder e recursos com
grupos seculares na esfera pública. A seu ver, portanto, a diferenciação
funcional não implica necessariamente o confinamento das religiões
à esfera privada, o que impõe limites tanto à secularização societária
quanto à do Estado e da política (MARIANO, 2011, p. 244).

A respeito do secularismo, portanto, temos a percepção, como já acompanhamos,


de que os fenômenos religiosos estão cada vez mais reduzidos e perdendo a sua
importância pública. Conforme já acompanhamos, essas três possibilidades de
secularismo nos levam a reconhecer, que empiricamente, o que se sobressai é o
secularismo como um dispositivo que diferencia e separa as esferas mundanas
e seculares, das instituições religiosas. Aqui, não é apenas a dinâmica que separa o
sagrado do profano, que Durkheim definiu como umas das caracteriza e define a religião.

Antes de seguirmos e relembrarmos o papel de Weber para a teoria do


secularismo, podemos pensar em mais um contraponto a essa compreensão do religioso
sob uma ótica racionalista. Aprendemos com a antropologia simbólica e interpretativa
de Geertz (2008), por exemplo, que a experiência humana não está calcada apenas
na racionalidade, mas também em dimensões que escapam e complementam o
racional. Os rituais são, a um só tempo, conforme já aprendemos, simbólicos e políticos
(PEIRANO, 2003). O antropólogo Abner Cohen (1978) apresentou concepção parecida
para interpretar as sociedades contemporâneas, ressaltando que são indissociáveis, na
experiência humana, o político e o simbólico. Esse aspecto interpretativo e contextual
da antropologia contribui e acrescenta para a teoria do secularismo, muitas vezes
compreendida pela sociologia de uma maneira engessada.

IMPORTANTE
Para compreendermos as bases do secularismo, precisamos aprender sobre
a separação entre o sagrado e o profano. Uns dos elementos fundamentais
da religião, para Durkheim, é a caracterização do sagrado e a sua separação
do profano. Silas Guerriero, no artigo “A atualidade da teoria da religião
de Durkheim e sua aplicabilidade no estudo das novas espiritualidades”
(GUERRIERO, 2012). Assim, para Durkheim, o sagrado está no mundo do
extraordinário, escapa da vida cotidiana e corriqueira. Enquanto o profano
estaria mais ligado a esse mundo prático. Dessa maneira: “O ponto central
de sua análise recai no fato de que o sagrado está associado à sociedade.
As crenças religiosas são representações coletivas e os principais rituais
religiosos são praticados coletivamente” (GUERRIERO, 2012, p. 13).

132
A respeito do secularismo, ainda, Mariano (2011) nos relembra que o sociólogo
José Casanova, ao resguardar a dimensão da secularização como a separação funcional
entre o secular e o religioso, acaba aproximando o conceito do de laicidade. Além disso,
essa diferenciação está ancorada no pensamento do sociólogo alemão Max Weber:

Agora, podemos retornar para a influência de Weber na teoria da secularização.


O sociólogo alemão, segundo:

Antônio Flávio Pierucci (2000) examinou esse conceito [secularização]


focando a análise justamente no processo de secularização da ordem
jurídico-política (no sentido de racionalização, dessacralização e au-
tonomização do direito), processo a partir do qual emerge o Estado
moderno como domínio da lei formal, racional e revisável e que implica,
senão propriamente o disestablishment da religião, a autonomização
recíproca dos poderes temporal e religioso. Processo que, por sua vez,
incide diretamente sobre o problema (de natureza política) e a concei-
tuação da legitimidade da autoridade e da ordem política no Estado
moderno e, em especial, na democracia (MARIANO, 2011, p. 245).

Mais uma vez, o sentido de secularização, e nesse aspecto, o de laicidade


também, destaca-se justamente na sua característica de autonomia das esferas do
Estado e das demais instituições sociais do mundo religioso. Essa autonomia é, além
disso, recíproca, entre religião e sociedade, o que gera complexas tensões entre religião
e política. Portanto, se secularização e laicidade estão sob os mesmos fundamentos,
pelo menos, como já vimos em Casanova, em umas das dimensões da laicidade, por
que deveríamos distinguir os termos? Aqui, não vamos resolver esse dilema. Podemos
adiantar que a determinação de qual conceituação usar, estará justamente no problema
sociológico e antropológico analisado. Os dois conceitos operam em suas próprias
características e evidenciam, como estamos acompanhando, realidades específicas,
embora bastante semelhantes.

A defesa central para a necessidade de distinguir ambos os conceitos


recai sobre a maior precisão e operacionalidade do primeiro
[laicidade], em detrimento do caráter “pouco operatório, equívoco,
excessivamente multidimensional” do segundo, nos termos de
Baubérot [...] Contudo, vale observar que, até para uma renomada
defensora dessa distinção conceitual, como Micheline Milot (2009,
p. 11), “a laicidade corresponde a uma realidade pluridimensional,
ao mesmo tempo política, jurídica, cultural e social, que se inscreve
na história das nações ao fio das evoluções da própria democracia”.
Se se considera o conceito de secularização “excessivamente
pluridimensional”, cabe considerar que o de laicidade não é
necessariamente unívoco, embora seja, em geral, mais delimitado.
Cumpre observar ainda que, na literatura sociológica de língua inglesa,
os vocábulos secularism, secular State e secularist têm, em geral,
o mesmo sentido de laicização institucional (do Estado e do ensino
público), de Estado laico e de laicista, respectivamente. Isto é, tais
vocábulos (derivados das mesmas famílias dos termos secularização
e laicidade) contêm acepções análogas e intercambiáveis. E nenhum
deles é mais ou menos preciso que seu par (MARIANO, 2011, p. 245).

133
Portanto, acredita-se que a laicidade seja um conceito mais preciso, levando em
consideração que o de secularização apresenta, pelo menos, três dimensões segundo
Casanova. Entretanto, conforme acompanhamos na citação apresentada por Ricardo
Mariano, embora laicidade seja um conceito mais preciso, ele não é unidimensional
e está relacionado com a própria noção que temos de democracia. Como no trecho
da teórica da laicidade Micheline Milot, esse fenômeno incide em aspectos políticos,
jurídicos e socioculturais.

Importante nos atermos ao apontamento de Ricardo Mariano que na literatura


sociológica de língua inglesa, as noções de “secularismo”, “secular State” e “secularist”
são sinônimas ao conceito da laicidade institucional. Como sabemos, a vida social e
a sua relação com o religioso é sempre complexa e as definições conceituais, apesar
de suas bases epistemológicas, são atualizadas e reformuladas de acordo com as
preocupações empíricas de cada pesquisa. Também precisamos reconhecer que há,
de fato, uma disputa conceitual entre secularismo e laicidade e como nos aponta
Ricardo Mariano (2011), a questão não é escolher uma em detrimento da outra, pois
optar por essa saída fácil é ser contra a própria complexidade do fenômeno religioso.
Assim, Ricardo Mariano (2011) reconhece tanto a delimitação conceitual do conceito de
laicidade, que pode ser mais “precisa” e mais “restrita (MARIANO, 2011), quanto se faz
necessário admitir que o conceito de secularização, “quando referido especificamente
ao processo de secularização do Estado, do ensino, da política, da esfera jurídica, por
exemplo, nada perde em precisão em relação ao de laicidade” (MARIANO, 2011, p. 246).

Sobre o caso brasileiro, a cientista política Marcela Tanaka lembra que tanto
o sociólogo Ricardo Mariano, quanto o antropólogo Marcelo Camurça possuem uma
proposta de pensar uma laicidade à brasileira, levando em consideração a própria
tendência da literatura científico-social latino-americana de optar pelo conceito de
laicidade. Como já desenvolvemos o argumento que optar por um conceito em relação
ao outro não significa abandonar as contribuições da noção preterida, vejamos como
ambos propõem desenvolver a laicidade:

O argumento é que é necessário abandonar uma visão de laicidade que


inclua um modelo abstrato e normativo e pensar situações concretas
segundo o que os próprios agentes consideram sobre a laicidade.
Em outras palavras, ao invés de ser um conceito normativo, baseado
em paradigmas constitucionais, programáticos e legais, a laicidade
deve ser concebida com base em como os atores sociais em seus
contextos se apropriam da ideia de “regime secular” de acordo com
seus interesses e projetos (Camurça 2017:859). Ao abordar o caso
brasileiro, Camurça (2017) e Mariano (2011) propõem uma concepção
de “laicidade à brasileira”, tendo em vista que o processo histórico de
laicidade no Brasil atua de forma particular (TANAKA, 2020, p. 174).

Isso implica que devamos conhecer como os processos de secularização, por meio
da laicidade, foram operacionalizados no nosso país. Também se faz necessário, como já
apontamos, considerar o que os próprios atores sociais, religiosos e seculares, consideram
sobre a laicidade, a religião e outros processos sociais. Afinal, aprendemos que na
antropologia, as pesquisas são estabelecidas na base do diálogo e na troca de perspectivas.
134
4 SECULARISMOS E LAICIDADES NO BRASIL
Compreender que os processos de secularismo e laicidade são configurados
historicamente, com diferenças possíveis encontrada nos mais diversos países,
considerando suas realidades regionais e continentais, podemos dizer que não existe
apenas um processo de secularismo e laicidade. Mas isso você já sabe, pois aprendemos
que umas das tarefas da antropologia é mostrar como a experiência humana é plural,
contrariando a ideia que temos no senso comum da homogeneidade e da suposta
evolução linear da humanidade.

Marcelo Camurça, no artigo “A questão da laicidade no Brasil: mosaico de


configurações e arena de controvérsias” (2017), identifica quatro possíveis configurações
relacionadas com a laicidade em nosso país. Os itens “a” e “b” estão interligados:

a) ações religiosas no campo da moral inibindo iniciativas de defesa


de direitos de minorias e direitos humanos;
b) entronizações de símbolos religiosos em ambientes laicos e
públicos, onde ambas implicam em movimentos de expansão da
religião no espaço público; e as duas seguintes;
c) ações para retirada de símbolos religiosos na esfera pública;
d) ações jurídico-legais contra a intolerância e vilipêndio religioso,
que redundam em movimentos de contenção desta expansão
religiosa através de legislação e marcos legais. Acrescento ainda
que cada uma destas configurações do mosaico são, em si mesmas,
arenas que contém internamente embates e controvérsias entre
atores religiosos e laicos em disputa pelo formato final de cada
configuração. A resultante destes jogos de força pode ser tanto de
acordos quanto de imposições, relacionados com a correlação das
forças em jogo (CARMUÇA, 2017, p. 861-862).

O antropólogo Camurça considera desde a constituinte de 1988, setores


religiosos evangélicos, mas também parte da Igreja Evangélica, e às vezes, alas do
espiritismo kardecista, por exemplo, se mobilizam “contra iniciativas protagonizadas
por setores laicos no cenário jurídico-político que buscavam expandir uma agenda
em torno dos direitos humanos e cidadania” (CAMURÇA, 2017, p. 862). A agenda laica,
portanto, foi pautada por intelectuais, jornalistas, feministas, profissionais da educação
e outros atores sociais que pretendem construir uma pauta progressista dentro da
proposta de ampliação e garantia dos direitos humanos e salvaguarda de minorias. Por
outro lado, essa ação política religiosa, em contraproposta, esteve fundamentada em
aspectos que parte das lideranças e comunidade dessas religiões consideravam como
degradação da moral e dos bons costumes. Essa controvérsia, dentro da perspectiva
laica do Estado, gerou diversos embates, dentro os quais Marcelo Camurça destaca o
debate estabelecido dentro do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos de 2010:

Este debate se fez presente em projetos de lei e em medidas


governamentais como o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos de
2010, e versou sobre as seguintes questões: descriminalização do
aborto, união civil homossexual, criminalização da homofobia, adoção
de crianças por pais homossexuais, inclusão de direitos sexuais
reprodutivos no rol dos direitos humanos, políticas educacionais

135
de distribuição em escolas públicas de material informativo sobre a
sexualidade, como prevenção contra a homofobia, regulamentação
das funções de profissionais do sexo, ensino laico sem interferência
religiosa, pesquisas científicas com células-tronco (ORO; MARIANO,
2010, p 25,27; MARIANO, 2011, p. 251-253; MIRANDA, 2013, p. 71)
((CARMUÇA, 2017, p. 863).

Ao ler a seguinte citação e observarmos nossos debates políticos contemporâ-


neos, podemos, rapidamente, perceber o quão atuais permanecem as pautas debates,
assim como as suas controvérsias e o antagonismo que se estabelece entre setores
considerados laicos de nossa sociedade e os religiosos. Além disso, é importante que
façamos o uso do que aprendemos até aqui sobre antropologia da religião. Isso nos co-
loca em posição de compreender que não existem associações automáticas entre reli-
gião e política, nem da necessária afirmação de que determinada orientação religiosa de
algum agente político, mecanicamente, determine a sua posição no debate. Sabemos
que há diversos temas sensíveis para várias religiões. Por outro lado, já aprendemos
que a laicidade implica que o que é juridicamente determinado para todos, não pode
ser pautado na moralidade e cosmologia de uma única religião. Os agentes religiosos e
políticos, sabendo da laicidade do Estado, mobilizam argumentos de feições laicas para
defender seus posicionamentos religiosos.

Embora movidos por sua visão conservadora, contra o que


consideravam uma desagregação da moral e dos bons costumes na
sociedade brasileira, se esses projetos fossem aprovados as forças
religiosas capitaneadas por evangélicos pentecostais, mas também
pela Igreja Católica e em alguns casos por outras religiões neo-
cristãs, como o Espiritismo Kardecista, manteriam suas ações dentro
dos expedientes jurídico-políticos do arcabouço republicano para
fazer valer suas propostas de desarticular as iniciativas das forças
laicas. No caso do projeto de lei que visava criminalizar a homofobia,
a argumentação das forças religiosas no parlamento era que esse
projeto restringia a liberdade religiosa e a liberdade de opinião, direitos
inalienáveis da cidadania, pois através dele poder-se-ia incriminar
indivíduos apenas por possuírem concepções de fundo religioso
discordantes da homossexualidade (CAMURÇA, 2017, p. 863).

Nesse sentido, a laicidade funciona como um idioma falado pelos diversos


atores, sejam eles religiosos ou não. Sabemos que esse argumento utilizado por parte
de religiosos apresenta suas limitações, pois a liberdade de expressão não pode ser
utilizada como recurso para se cometer um crime. Entretanto, cabe reconhecer que
a laicidade é performada por agentes religiosos e isso, de alguma maneira, reforça a
laicidade como promotora do debate.

136
Figura 1 – Tirinha de André Dahmer

Fonte: Dahmer (2022).

Sobre o ponto “b” da citação que abriu esse tópico, “entronizações de símbolos
religiosos em ambientes laicos e públicos, onde ambas implicam em movimentos de
expansão da religião no espaço público”, Marcelo Camurça comenta a respeito da
naturalização histórica da presença de símbolos religiosos cristãos, sobretudo católicos,
nos nossos espaços públicos: escolas, universidades, tribunas, parlamentos e outros
“aparelhos estatais” (CAMURÇA, 2017, p. 865). Partindo dessa percepção, setores
evangélicos que acessaram o poder público via a política, utilizaram como argumento, e
acionando a laicidade, essa própria presença naturalizada, para construir pautas ligadas
aos evangélicos e a percepção de que existiria uma “cultura evangélica” (AGUIAR, 2020)
que uniria diversas vertentes religiosas desse setor. Assim, foram propostos diversos
monumentos para a Bíblia e o incentivo da presença da Bíblia nas escolas:

O início deste movimento foi uma emenda do deputado evangélico


Antonio de Jesus, de Goiás, aprovada na Assembleia Constituinte de
1988, para a exibição da Bíblia na Mesa diretora desta Assembleia,
expediente depois incorporado perenemente no Regimento Interno
da Câmara Federal (RANQUETAT JR, 2012, p. 7-71). A partir daí,
esta iniciativa espraiou-se para várias Assembleias Legislativas e
Câmara Municipais do país, inclusive fazendo parte, por dispositivo
regimental, a leitura de trechos da Bíblia no início das sessões
parlamentares, com a Câmara Federal não fugindo à regra, a partir de
1999 (RANQUETAT JR, 2012, p. 72). Além disto, por iniciativa pioneira
do mesmo deputado federal Antonio de Jesus em 1987, o governo de
Brasília destinou espaço para construção do 1º monumento à Bíblia,
e a esta construção seguiram-se outras por todo o país: Bahia, Santa
Catarina, Amapá, Rio Grande do Norte e São Paulo (CAMURÇA, 2017,
p. 865-866).

Os argumentos mobilizados para a execução desses projetos foram parecidos


com o da comunidade católica, ou seja, aciona-se a ideia de que os símbolos católicos
podem fazer parte do nosso espaço público porque o Brasil é um país majoritariamente
católico. Assim, os evangélicos, que possuem a sua atuação e crescimento bem definidos
há algumas décadas no Brasil, podem estabelecer o mesmo argumento, considerando
a sua representatividade numérica em censos religiosos, que também se traduz em
agentes políticos eleitos dentro do jogo da democracia.

137
Os demais pontos comentados por Camurça são de reforço da laicidade, no
sentido de tentar diminuir a presença majoritária do cristianismo no espaço público,
mas não somente, que é o ponto “c”: “ações para retirada de símbolos religiosos na
esfera pública”, também tentativas de combater a intolerância religiosa e promover
o pluralismo, que acompanharemos no ponto “d”, “ações jurídico-legais contra a
intolerância e vilipêndio religioso”.

Para exemplificar o seu argumento, Marcelo Camurça apresenta algumas


tentativas de neutralização da religião no espaço público. Assim, comenta que desde
os anos 2000, “por reflexo de uma interpretação da Constituição Federal de 1988,
particularmente do seu artigo 19, inciso I, assiste-se um conjunto de medidas judiciais
para a retirada de crucifixos de recintos públicos -Tribunais e Casas Legislativas”
(CAMURÇA, 2017, p. 872). Assim, o argumento para a retirada desses símbolos religiosos
são a de que manter esses símbolos é agredir a separação entre Igreja e Estado, princípio
laico, portanto, além de submeter a princípios que não são da administração pública, e
sim religiosos, os atores públicos (CAMURÇA, 2017, 872). O antropólogo apresenta várias
tentativas, tais como a promovida pela “Associação de Ateus e Agnósticos”, assim como
a uma cláusula no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNH 3).

A maioria dessas tentativas não lograram êxito, mantendo o argumento de que


“a manutenção dos símbolos foi a de que a imagem do Cristo martirizado é um símbolo
universal, para além de aspectos confessionais e particularistas” (CAMURÇA, 2017, p.
873). Ou seja, aquilo que já apontamos, dentro dessa arena de debate, prevalece o
apelo ao aspecto cultural e comunicativo dos símbolos religiosos cristãos. Aprendemos,
também, que não há símbolos naturais e que todos são construídos historicamente.
Portanto, do ponto de vista da antropologia, podemos reconhecer que de fato, por
razões históricas, econômicas, também fruto da colonização e catequese como projeto
de poder que formou o próprio Brasil, alguns símbolos comunicam a diversos grupos
e comunidades. Por outro lado, a antropologia confirma que esses símbolos existem
porque são históricos, fazendo parte da sociedade, portanto, podem mudar dentro da
dinâmica histórico-social.

Essas tentativas de retirada de símbolos católicos do espaço público criaram


uma aliança momentânea entre laicos e evangélicos, que como já apontamos, têm o
interesse de reduzir a presença católica, por um lado, assim como projeto de poder,
pretende difundir os seus símbolos no espaço público.

Interessante que esta conjunção de interesses (momentânea) entre


evangélicos e laicos contra indicadores de hegemonia católica no
aparato estatal vai se espraiar para outros domínios da vida pública
como foi o caso do Acordo firmado em 2008 pelo governo Lula e o
Vaticano [...] Este acordo ecoou no Congresso Nacional de forma
bombástica e produziu uma reação de parlamentares laicos e
evangélicos contra o que chamaram de atentado contra a laicidade
do Estado [...] De toda essa polêmica resultou a “Lei Geral das
Religiões” costurada pela força da bancada evangélica no Congresso
com o apoio dos demais setores (e aquiescência das forças católicas)

138
que estendia as mesmas cláusulas da concordata com a Igreja
Católica para todos os credos. Em tempo recorde foram votadas e
aprovadas pelo Legislativo nacional as duas leis com apenas o voto
contrário da bancada do PSOL, que considerou ambas as leis como
atentatórias ao regime de separação Igreja-Estado (RANQUETAT
JR, 2010, p. 179,181). A consequência de toda esta polêmica pública
foi a extensão do reconhecimento em termos de presença pública
conquistada pela religião católica às demais, leia-se aos evangélicos
–e não a supressão desta presença para toda e qualquer religião como
desejavam os setores laicos -fórmula que se alargará para outros
eventos. Nestes, cada vez mais a concepção de laicidade imperante
no país passa a ser de uma presença isonômica das religiões (mais
representativas, as cristãs, ou seja, católicos e evangélicos) no
domínio público (CAMURÇA, 2017, p. 873-874).

Aqui, cabe reconhecer como aquilo que hoje chamamos de bancada


evangélica consegue, por força política mesmo, de articulação e cooptação, consegue
traduzir pautas laicas em pautas que beneficiam a sua presença no espaço público.
Embora exista o espaço para outras confissões religiosas, a destinada para religiões
historicamente discriminadas e silenciadas, como as de matriz africana, é praticamente
nulo, justamente pela maneira como o poder público e o Estado funciona em um modelo
que não é acessível para essas religiões. Comentaremos mais a respeito dessa questão
no tópico sobre Intolerância e Pluralismo, onde concluiremos a reflexão sobre Camurça
nos pontos “c” e “d” aqui apresentados.

Portanto, podemos compreender como em nossa história política democrática


recente, os agentes políticos e religiosos, dentro do campo da laicidade, estabelecem
controvérsias, reformulam noções como a liberdade de culto, o pluralismo religioso,
assim como as fronteiras entre a religião e o espaço público estão sempre em tensão e
em reconstituição.

INDICA
Acompanhamos como são complexas as discussões que envolvem religião e política. Por
exemplo, embora existam projetos e posturas hegemônicas em cima de pautas que são
consideradas morais para alguns sujeitos religiosos, isso não implica que não existam
dissidências e vozes alternavas dentro desses grupos religiosos. Um bom exemplo é o
caso do aborto, que para grande parte da sociedade civil, sob a ótica da política
pública e da medicina, é uma pauta de saúde pública, não religiosa. O movimento
religioso “Católicas pelo Direito de Decidir” exemplifica esse argumento: o
grupo é uma ONG (Organização Não Governamental) formado por católicas,
distribuídas em mais de doze países, que questionam a influência eclesiástica
na proibição do aborto legal em diversos países. Uma outra voz alternante a
uma hegemonia evangélica no modo de pensar sobre pautas morais, é a do
pastor Fillipe Gibran, que tem forte presença em suas redes sociais, além de
atuar como pastor na igreja Comuna do Reino em Belo Horizonte.

139
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu:

• Que o conceito de secularismo e secularização foi fundamental para a construção


da sociologia e a sua análise dos fenômenos religiosos. Como disciplina parente
da antropologia, a sociologia também forneceu diversos conceitos, teorias e
formas de interpretar a religião. Entretanto, o foco da sociologia da religião está
na compreensão das sociedades modernas, sobretudo europeias e os Estados
Unidos da América. Assim, aprendemos que a maneira como determinadas escolas
sociológicas interpretam a relação entre religião e sociedade está fundamentada na
concepção positivista e evolucionista da humanidade de August Comte.

• Se o secularismo tem sua importância nas ciências sociais da religião, há o


reconhecimento de que ele é um conceito de pouca precisão por descrever
múltiplos aspectos da realidade que relaciona religião e sociedade. Por isso, há um
debate entre o uso de secularismo e o de laicidade. O secularismo é pensado em
pelo menos três dimensões, a secularização como diferenciação entre o secular e
as instituições e normas religiosas, a secularização como diminuição das práticas
religiosas no mundo e a secularização como condicionamento da religião à esfera
privada. Enquanto a laicidade descreve, diretamente, as relações entre religião
e estado, de pontos de vista político, jurídico e sociocultural, assim como trata
diretamente aos processos de regulamentação do religioso na vida pública.

• A história recente do Brasil redemocratizado e a constituição de 1988 nos apresenta


um avanço na política social, com pautas que consideram a importância dos direitos
humanos e fundamentais, além de ter como princípios a inclusão, a educação e a
cultura. A constituinte, entretanto, desagradou alguns setores religiosos que consi-
deravam as pautas dos direitos humanos como degradantes e destruidora dos bons
costumes. Junto a esse encontro, a laicidade no Brasil se apresenta na controvérsia
da maior presença e influência católica e evangélica no poder público e no espaço
público, assim como há a tentativa de promover a igualdade e a liberdade de culto.

140
AUTOATIVIDADE
1 A sociologia clássica escolheu a religião como uns de seus principais objetos de
estudo. Sobre a relação desse estudo clássico com o projeto de secularismo na
sociedade ocidental moderna, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Há uma relação entre o positivismo de Comte e o projeto secularista que considera


o declínio da presença da religião no espaço público.
b) ( ) Somente Durkheim e Weber tiveram interesse na religião enquanto fenômeno
sociológico, pois Marx descreveu a religião como alienação.
c) ( ) Não se pode afirmar que há uma perspectiva etapista da religião no pensamento
de Marx, no sentido em que a religião não seria superada na sociedade sem
classes.
d) ( ) Embora Marx, Durkheim e Weber tenham fundado a sociologia moderna, a
percepção que os três teceram sobre o religioso já não contribuem para a
compreensão do fenômeno no mundo contemporâneo.

2 Considerando o trecho a seguir, sobre o estudo sociológico da religião, analise as


sentenças a seguir.

Para Marx, a religião é para as massas um refúgio da dura realidade


da vida em sociedades divididas por classes. O motivo disso é que
a religião promete felicidade e recompensas na eternidade, mas
apregoa a aceitação resignada da exploração no mundo real. A teoria
marxista, portanto, vê dentro da religião um forte elemento ideológico
que legitima as brutais desigualdades associadas à riqueza e ao
poder. Os amplos estudos de Max Weber sobre as “religiões do mundo”
chegaram a uma conclusão diferente. Segundo ele, a religião pode
ser uma força conservadora, mas isso não é, de maneira alguma,
inevitável (GIDDENS; SUTTON, 2017, p. 58).

FONTE: GIDDENS, A.; SUTTON, P. W. Conceitos essenciais


da sociologia. 2 ed., Editora Unesp, São Paulo, 2017.

I- Em Marx, a sociologia descobre como analisar a religião, considerando-a como


fenômeno ideológico. Em Weber, a economia e a psicologia encontram a sua
abordagem fenomenológica.
II- A sociologia da religião apresenta diferentes possibilidades para compreensão,
análise e crítica do cenário religioso.
III- A sociologia da religião de Marx e Weber têm o reconhecimento da sociologia como
primeiras tentativas das ciências sociais para estudar o fenômeno religioso no
mundo moderno. Entretanto, a sociologia contemporânea já rompeu com esses
autores.

141
Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 As ciências sociais, ao estudar o fenômeno religioso contemporâneo, fazem um uso


crítico e dinâmico das noções conceituais de secularismo e laicidade. A respeito
sobre esses conceitos centrais para o estudo antropológico, sociológico e político da
religião, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) A laicidade é sobre regulação do religioso, enquanto que o secularismo trata do


declínio da importância da religião no espaço público.
( ) Apesar das diferenças entre laicidade e secularismo, pode-se fazer o uso dos
conceitos enquanto sinônimos sem nenhum risco de ambiguidade.
( ) José Casanova apresenta pelo menos três dimensões do secularismo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4
Nenhum dos fundadores da sociologia, apesar dos afastamentos e até
das contradições que suas teorias do social opõem, deixou de colocar
o tema da evolução da religião, e até de sua inevitável decomposição,
no centro de sua reflexão. Voltar regularmente aos trabalhos deles é
se recolocar diante do próprio projeto da sociologia, realimentar-se
nas fontes de uma reflexão, da qual é preciso reencontrar a dinâmica,
mas passando pela própria sob o crivo de sua própria ambição crítica
(LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 27)

Sobre o diálogo que a sociologia estabelece com seus clássicos, comente como
Marx, Durkheim e Weber compreenderam o fenômeno religioso, apontando a
complementariedade de suas teorias.

FONTE: LÉGER, D. H.; WILLAIME, J. P. Sociologia e Religião:


abordagens clássicas. Ideias e Letras, São Paulo, 2009.

5 Disserte sobre o conceito de secularização nas ciências sociais, apontando as suas


múltiplas possibilidades de interpretação de mundo e das relações entre religião e
sociedade, Igreja e Estado, religião e política.

142
UNIDADE 3 TÓPICO 2 -
ESPIRITUALIDADES

1 INTRODUÇÃO
Nas mais diversas sociedades, que de alguma maneira estão relacionadas com
o projeto de modernidade ocidental, houve uma série de contrapontos, contrapropostas
e alternativas aos discursos racionais, científicos e burocráticos da vida. Movimentos
de contracultura, hippies, orientalismos e novos movimentos religiosos tensionaram
elementos da modernidade e do próprio desencantamento de mundo.

Como tudo que estamos até aqui, esses aspectos não são simples, nem tratam
de oposições binárias entre razão e espiritualidade, encantamento e desencantamento
de mundo. A respeito dessas complexidades, tentaremos extrair alguns ensinamentos.

Em “A emergência das espiritualidades”, acompanharemos como os novos mo-


vimentos sociais e religiosos colocaram em xeque a institucionalização de religiões do-
minantes, assim como criticaram as ideologias da sociedade moderna ocidental. Na se-
quência, com “Estudos sobre espiritualidades no Brasil”, identificaremos o protagonismo
do Brasil na emergência dessas novas espiritualidades e movimentos religiosos. Já em
“Espiritualidades e Ciências Sociais”, aprenderemos que há uma relação epistemológica
entre a maneira como as novas espiritualidades criticam e embaralham noções pré-es-
tabelecidas, entre a própria antropologia e as ciências sociais.

2 A EMERGÊNCIA DAS ESPIRITUALIDADES


A espiritualidade tem sido estudada, enquanto categoria, tradicionalmente pela
filosofia e a teologia (TONIOL; GIUMBELLI, 2021). Entretanto, pensaremos essa categoria
a partir das ciências sociais e como, especialmente antropologia e sociologia, têm
mobilizado as espiritualidades para explicar a emergência de fenômenos que se não
possuem uma originalidade sem antecedentes, apresenta-se para quem o pretende
estudar, com novas roupagens. As espiritualidades, nesse sentido, fazem parte do
choque com as elaborações da sociologia moderna de racionalização, burocratização,
secularização e desencantamento de mundo, noções, conforme já acompanhamos,
desenvolvidas na sociologia de Max Weber (GIDDENS; SUTTON, 2017). Esses conceitos
descrevem sociedades modernas industrializadas, pautada na racionalização e no
tecnicismo, que estariam “desencantando-se”.

Em “Instituições tradicionais e movimentos emergentes”, a socióloga Cecília


Loreto Mariz descreve parte desses novos tensionamentos:

143
Nos finais dos anos 1960 e 1970, a sociedade ocidental se viu
diante do aparecimento de movimentos religiosos os mais diversos,
posteriormente categorizados como New Age ou Nova Era. O
movimento juvenil hippie e de contracultura fez surgir um tipo de
experiência e consciência religiosas que pretendiam romper com
alguns aspectos da moralidade cristã e da cosmologia ocidental. No
Brasil, esses movimentos chegaram somente a partir da década de
1970 (MARIZ, 2013, p. 308).

Esses movimentos sociais e religiosos buscavam, de alguma maneira, tensionar


os dualismos que sustentam a sociedade ocidental, tais como tradicional x moderno,
natureza x cultural, sociedade x indivíduo, emoção x razão e daí por diante. Já
aprendemos que as dicotomias e dualidades também são operadas conceitualmente
nas ciências sociais, com uma atenção especial para a antropologia, que por fezes
opera essa dualidade como um “grande divisor” entre “nós” e “eles” (GOLDMAN; LIMA,
1999). Dessa forma, esses movimentos já citados, cada um a seu modo, desconstruía
as ideias pré-estabelecidas sobre a sociedade moderna ocidental. O movimento hippie
exemplifica muito bem esse percurso, pois mobilizava em sua ideologia elementos
religiosos que se destacavam, posteriormente, como espiritualidades, com a tentativa
de transcender um campo religioso institucional, ao mesmo tempo que criticava a
moralidade cristã e ocidental enquanto ideologia dominante.

IMPORTANTE
O movimento hippie é uns dos predecessores dos novos movimentos religiosos, sociais e
espirituais. Esse movimento foi uma ação coletiva da juventude nas décadas de 1960 e 1970.
Apresentou uma irradiação geográfica considerável, embora tenha ficado mais famoso nos
Estados Unidos da América e em suas ações contrárias a Guerra no Vietnã (1955-1975). De
uma maneira geral, movimento hippie contesta os valores e as morais estabelecidas, modernas
e cristãs. Defendem a paz e o amor como princípio universal. O movimento também
ficou conhecido pelo seu contato com o esoterismo e o espiritualismo, que teve
bastante influência dos movimentos de popularização da cultura oriental, ou
ao menos aspectos dela, dentro do Ocidente. Por essa razão, está ligado com
os novos movimentos religiosos. O antropólogo Victor Turner, considera que os
hippies, assim como artistas, profetas etc., são sujeitos liminares, ou seja, que
apresentam na communitas: “uma forma de antiestrutura constituída pelos
vínculos entre indivíduos ou grupos sociais que compartilham uma condição
liminar em momentos especificamente ritualizados” (NOLETO e ALVES, 2015,
n.p). Nesse sentido, a liminariedade, ou os sujeitos em situação liminar,
questionam as estruturas sociais pré-estabelecidas.

É importante termos em destaque, portanto, que esses novos movimentos


sociais e religiosos são críticos da modernidade ocidental, incluindo-se, aí, as religiões
cristãs dominantes. Outro aspecto importante é a apropriação e ressignificação de
símbolos e religiões orientais, o que ocorreria, em grande medida, a partir daquilo que
o intelectual palestino-estadunidense Edward Said denominou de orientalismo (SAID,
1990). É a apropriação, e até mesmo a invenção, que o Ocidente faz do Oriente, a partir

144
de estereótipos, atravessado pela ideologia dominante, mesmo quando o intuito é fazer
uma contracultura, como nos casos citados. Voltemos para esses novos movimentos,
de uma maneira mais direta:

Muitos se constituíram numa reelaboração de religiões orientais as


mais diversas, tais como ocidentalizações de vertentes do Budismo
e do Hinduísmo (Hare Krishna, por exemplo). Campbell [...] chamou
esses movimentos de orientalizações do Ocidente, argumenta que
são parte de um processo mais amplo de uma autocrítica cultural por
parte do Ocidente, incluindo não apenas as instituições religiosas, mas
também outras instituições, inclusive a ciência moderna e acadêmica.
Observa-se uma vinculação desse novo tipo de religiosidade
desviante com um discurso autodefinido como científico, mas que
desvia bastante da ciência oficial academicamente legítima, sendo
considerado pela última como um tipo de religião ou pseudociência
(MARIZ, 2013, p. 308-309).

Nessa esteira, dentro desses novos movimentos, há os que são identificados


de uma maneira um tanto que ambígua e ampla, de Nova Era, que de uma maneira
resumida, são movimentos que trazem religiões, espiritualidades e culturas não-
ocidentais e/ou pagãs, dentro de uma roupagem dita mais contemporâneas. No Brasil,
esses movimentos de Nova Era foram bem estudados:

Estudando a Nova Era no Brasil, Dawson argumenta que esse país


seria um caso especial em razão do grau de frequência na criação
e reelaboração desse tipo de movimento em diferentes contextos
nacionais. Seu estudo foca especialmente movimentos surgidos no
Brasil, como aqueles que usam ayahuasca (Santo-Daime, Barquinha
e União do Vegetal), o Vale do Amanhecer e reelaborações nacionais
do gnosticismo. Esses movimentos estão institucionalizando-se em
graus distintos, mas mesmo assim ainda têm certos aspectos do que
sociologicamente se tem identificado como seita. Por outro lado, o
que se observa é que esses movimentos também agregam aqueles
que adotam o tipo de espiritualidade mística e deistintucionalizada,
que, segundo Troeltsch, não poderia ser identificado nem como seita
nem como igreja. Por isso, uma proporção significativa dos que ade-
rem a esse tipo de espiritualidade é identificada não como partici-
pando de uma seita, mas como parte de uma rede flexível ou de um
“circuito”, como diria José Guilherme Cantor Magnani, em sua análise
sobre Nova Era na cidade de São Paulo (MARIZ, 2013, p. 308-309).

Antes de avançarmos nesse argumento, cabe reforçar que seita, aqui, é um


conceito sociológico. Geralmente o termo, fora da sociologia e usado pelo senso
comum, mobiliza preconceitos e hierarquizações em relação às religiões dominantes.
Nesse sentido sociológico, geralmente: “A seita é uma fração mais radical dentro de uma
religião/Igreja instituída. Em sociedades onde há união, direta ou indiretamente, entre
poder político e eclesiástico, a Igreja é considerada como a única instituição religiosa
oficial” (RODRIGUES, 2008, p.22). De qualquer maneira, como argumenta Cecília Mariz,
os movimentos de Nova Era estão entre a religião e a seite, porque eles desafiam as
hierarquias institucionalizadas das religiões dominantes, ou pelo menos, de religiões
já mais estabelecidas historicamente. Nesse sentido, estariam mais próximos da seita,
por serem ruptura de uma instituição já estabelecida, mas por outro lado, como estão

145
se hierarquizando de alguma maneira, como por exemplo, O Vale do Amanhecer, que já
apresenta certa capilaridade e uma irradiação geográfica considerável, estariam mais
próximos da religião.

É importante nos atermos a isso: como esses novos movimentos são um


desafio para as categorias já estabelecidas para analisar a religião enquanto fenômeno
social, cultural e histórico. Assim, a Nova Era não é definida de uma maneira precisa nem
pela noção tradicional de religião, nem a de seita. Por isso Cecília Mariz cita o trabalho
do antropólogo que estuda o urbano, José Guilherme Cantor Magnani, que estudou o
fenômeno da Nova Era em São Paulo e cunhou a noção de “circuito” para descrever a
realidade social desse fenômeno na cidade.

IMPORTANTE
Segundo o cientista social Amurabi Oliveira (2011), que estudou o Vale do Amanhecer, o
termo Nova Era remete a astrologia, que insere a época após os anos 2000 como a Era de
Aquário: “marcada por uma série de transformações, e de superação de pólos historicamente
antagônicos, seria uma época de harmonização entre os binômios corpo/mente, natureza/
sociedade, masculino/feminino, dentre outros” (OLIVEIRA, 2011, p. 69). As bases da
Nova Era teriam aparecido ainda no século XIX, com o aumento da força de correntes
esotéricas e ocultistas na Europa, junto com a tradição transcendentalista norte-
americana. Portanto, essa dimensão esotérica e transcendental são as bases dos
movimentos da Nova Era. Amurabi Oliveira reforça, ainda, que “Toda a definição
do fenômeno Nova Era será parcial e limitada, até mesmo pela heterogeneidade
do mesmo, que abarca uma infinitude de práticas, religiosas ou não” (OLIVEIRA,
2011, p. 70). Portanto, o que prevalece nesse fenômeno é a sua plasticidade,
pluralidade e o seu foco nas experiências individuais.

Como são movimentos religiosos que tensionam as hierarquias e as instituições


religiosas estabelecidas historicamente, essas instituições reagem a esses novos mo-
vimentos religiosos, resumidamente, de duas maneiras. As instituições mais conserva-
doras, “tendem a acusar esse tipo de religiosidade sincrética e plural como enganadora
e demoníaca. Essa aversão generalizada por certas igrejas cristãs ou setores dessas
igrejas é reforçada pela crítica que a maioria desses movimentos faz à moralidade cristã
ocidental” (MARIZ, 2013, p. 309). A outra reação, é “por parte de setores mais intelectu-
alizados das instituições cristãs tradicionais é tentar estimular um diálogo inter-religioso
com esses movimentos, tentando entender as críticas feitas à espiritualidade cristã oci-
dental” (MARIZ, 2013, p. 309).

Resumindo, a noção de espiritualidade tem se reforçado no mundo, em especial


na América Latina, a partir da década de 1990, fazendo parte do “processo de crise
e desinstitucionalização religiosa que atingiu as ditas igrejas históricas gerando o
consequente surgimento de movimentos carismáticos e pentecostais no seu seio, de
um lado, e do outro o advento de movimentos alternativos, como o New Age, neo-
esoterismos” (CAMURÇA, 2016, p. 19).
146
Comentando a elaboração dos tipos de espiritualidades feitas por José Jorge
de Carvalho e outros autores, Marcelo Camurça compreende que podemos analisar os
novos tipos de espiritualidades a partir de uma multiplicidade que reconfigura diversos
tipos de religiosidades:

Então, se fizermos um exercício - ainda que de maneira improvisada


- de olhar possibilidades de conexões e combinações entre os
tipos espirituais das duas classificações elaboradas por Carvalho,
podemos reconhecer (e compreender) nestas intersecções, diversas
religiosidades realmente existentes no atual cenário religioso brasileiro
como: a Umbandaime, a Umbanda esotérica, os desenvolvimentos
“new age” que se operaram enquanto desdobramentos a partir do
kardecismo canônico, como a projeciologia/conscienciologia de Waldo
Vieira ou as performances de Luiz Gasparetto. Todas estas podem ser
pensadas como articulações dos tipos Esoterismo e Espiritismo das
tipologias de Carvalho. E ainda, no caso da “literatura de auto-ajuda”
do meio “new age”, estudada por Birman, que relativiza o substantivo
das crenças em prol de sua “eficácia simbólica”, podemos reconhecer
uma combinação entre os tipos “carvalhianos” do agnosticismo e da
“suspeita” com o tipo dos esoterismos (CAMURÇA, 2016, p. 28).

Nesse sentido, as novas espiritualidades e movimentos religiosos possuem a


plasticidade, a multiplicidade de crenças e cosmologias, apresentando diversas maneiras
de configurar os ritos, mitos e símbolos de religiões dominantes institucionalizadas.
Portanto, plasticidade, flexibilidade, espiritualismo, esoterismo, valorização da
experiência e subjetividade individual e uma tendência para questionar ou tensionar as
hierarquias religiosas já estabelecidas, embora esses novos movimentos religiosos já
apresentem algum tipo de institucionalidade.

3 ESTUDOS SOBRE ESPIRITUALIDADES NO BRASIL


Como acompanhamos, o Brasil é um exemplo de emergência das novas espiri-
tualidades e novos movimentos religiosos. Portanto, qualquer escolha para apresentar
e comentar pesquisas feitas no nosso país sobre esse tema, seria aleatório. É o que
faremos, portanto, assumir a aleatoriedade das escolhas na medida em que haverá o
incentivo para o aprofundamento e busca de outras pesquisas e possibilidades. Basi-
camente, comentaremos aqui a pesquisa de Glauber de Assis e Jacqueline Rodrigues
(2017) sobre os usos religiosos, espiritualistas e culturais da ayahuasca e a pesquisa de
Rodrigo Toniol (2017) sobre as espiritualidades no contexto da saúde.

Glauber de Assis e Jacqueline Rodrigues, no artigo “De quem é a ayahuasca?


Notas sobre a patrimonialização de uma ‘bebida sagrada’ amazônica”, apresentam essa
bebida e como ela tem múltiplos sentidos e usos atualmente:

A ayahuasca, nome genérico de origem Quéchua, língua franca de


parte da floresta amazônica (Mori 2011), que em uma tradução mais
literal significa “cipó de morto” (e também é traduzido mais livre e
poeticamente como “vinho das almas”), é uma bebida psicoativa
utilizada por diversos grupos humanos, incluindo, especialmente,

147
religiões e povos indígenas. Essa bebida é designada de diferentes
maneiras de acordo com o grupo e o contexto cultural em que é utili-
zada. A denominação que se tornou consagrada no meio acadêmico
é ayahuasca, mas ela também é conhecida como “yagé” pelos Siona,
“caapi” pelos Baniwa, “kamarampi” entre os Ashaninka, “kamalãpi”
junto aos Manchineri, “nixi pae” no meio Kaxinawa, “uni” entre o povo
Yawanawa, “vegetal” ou “hoasca” para os membros da União do Ve-
getal, e “daime”, junto aos adeptos do Santo Daime e da Barquinha,
entre outras designações. Seu uso e sua origem, entretanto, extra-
polam esse cenário (ASSIS; RODRIGUES, 2017, p. 46-47).

É importante ressaltar que a ayahuasca, enquanto psicoativo e elemento


cosmológico, em toda a sua tecnologia de uso, foi cultivada e desenvolvida por várias
nações indígenas na Amazônia: Siona, Baniwa, Ashaninka, Manchineri, Kawinawa,
Yaanawa e daí por diante. Esse uso, quando extrapola esse contexto indígena, atingindo
os novos movimentos religiosos e neoxamanismo, apesar de suas transformações, não
pode negar a originalidade e a ancestralidade indígena no modo em lidar com a bebida.

Em primeiro lugar, a ayahuasca não é encontrada in natura no meio


ambiente, sendo antes uma bebida preparada a partir de plantas
distintas. Em contextos diferentes, diversas plantas podem fazer
parte da beberagem. Porém, sua fórmula mais conhecida, impreteri-
velmente utilizada hoje no âmbito das religiões ayahuasqueiras, é a
cocção do cipó Banisteriopis caapi em conjunto com a folha Psycho-
tria viridis (ASSIS; RODRIGUES, 2017, p. 47).

A tecnologia de fabricação da ayahuasca, portanto, perpassa também, em sua


variedade, a própria condição múltipla dessa bebida e em sua relação com distintas
cosmologias e religiosidades. Estudar como o preparo é utilizada em distintos contextos,
é uma aposta dos pesquisadores citados:

Já com relação à sua utilização, a ayahuasca é consumida, enquanto


uma bebida e a cocção de plantas retiradas da natureza, por diferen-
tes povos e para diferentes razões. Além disso, hoje, com a expansão
da ayahuasca para os centros urbanos (Labate 2004), há o surgi-
mento de uma rede “neoayahuasqueira”, na qual a abrangência de
significados e usos da bebida adquire caráter jamais visto, de modo
que ela é consumida para fins terapêuticos, artísticos, religiosos e
lúdicos das mais diferentes maneiras. Assim, os usos da ayahuasca,
bem como suas interpretações filosóficas, religiosas, médicas, morais
e éticas, variam de contexto para contexto, e essa bebida só pode
ser compreendida mais profundamente em seus efeitos e desdobra-
mentos nos seres humanos se inserida nesses grupos sociais e sis-
temas simbólicos específicos (ASSIS; RODRIGUES, 2017, p. 47).

Nesse aspecto, os autores apresentam a dimensão socioantropológica do


estudo das religiões. Ou seja, mesmo partindo de um fenômeno que tem forte ligação
com o religioso, até mesmo sendo considerado enquanto religioso para muito dos
protagonistas dele, há o reconhecimento de que a realidade extravasa o religioso,
quando são acionadas as noções de espiritualidades, aspectos filosóficos, artísticos,
lúdicos e daí por diante. É nesse aspecto que os seus usos só podem ser compreendidos
a partir da análise do contexto da prática envolvida por cada grupo social.

148
Assis e Rodrigues comentam que apesar dos distintos usos da substância,
foi no Brasil que se institucionalizaram religiões que utilizam a bebida como elemento
central em sua ritualística, que são o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal.

O Santo Daime foi estruturado a partir da década de 1930 no


território do Acre, através da figura de Raimundo Irineu Serra, negro,
maranhense, neto de escravos, conhecido entre seus seguidores
como Mestre Irineu. Já a Barquinha foi estabelecida na cidade de Rio
Branco pelo também maranhense Daniel Pereira de Mattos, chamado
por seus seguidores de Mestre Daniel, amigo de Irineu Serra e que
chegou inclusive a seguir este último durante algum tempo. Por
sua vez, a União do Vegetal (UDV) iniciou suas atividades em Porto
Velho, atual Rondônia, na década de 1960, tendo como figura central
o baiano José Gabriel da Costa, ou Mestre Gabriel, para os adeptos da
UDV (ASSIS e RODRIGUES, 2017, p. 49).

Todas as três religiões se forjaram em território amazônico, além de serem todas,


como já mencionamos ao longo dessa Unidade, religiões recentes, ligadas a esses novos
movimentos religiosos. Em suas ritualísticas, além do uso da bebida, elas possuem em
comum a centralidade da música (ASSIS E RODRIGUES, 2017). Dessa forma, a ayahuasca,
como já pudemos aprender, é uma substância que tem sido mobilizada em diversos
contextos: “é utilizada por diversos grupos para variados fins. A questão da saúde e
o uso terapêutico da ayahuasca, por exemplo, têm grande força entre acadêmicos e
também dentro do circuito de religiosidade Nova Era” (ASSIS e RODRIGUES, 2017, p. 49).
Contudo, no Brasil, apesar de muitas discussões e controvérsias por parte da sociedade
e do Estado, tem um uso eminentemente religioso e tradicional:

Nesse sentido, ainda há muitas controvérsias sobre o uso da


ayahuasca no Brasil contemporâneo: quais seriam os usos legítimos,
quem pode administrá-la e consumi-la, como deve ser sua regulação,
se ela é o “patrimônio” de algum povo ou uma “ferramenta” a ser
utilizada livremente em pesquisa, etc. A questão da patrimonialização
da ayahuasca no Brasil apresenta-se, de alguma maneira, como
um desdobramento da sua normatização legal e envolve diversos
dos atores ligados àquele processo. Se atentarmos também aos
bastidores que envolvem esse processo, especialmente no que
tange às movimentações, relações e alianças estabelecidas pelos
grupos religiosos e à entrada dos povos indígenas nessa discussão,
podemos perceber que a patrimonialização é um excelente estudo
de caso para a compreensão da complexidade do uso da ayahuasca
no século XXI (ASSIS E RODRIGUES, p. 50).

O exemplo das religiões da ayahuasca em suas dinâmicas, discursos e práticas


ligados a um complexo espiritualístico e esotérico, encarna muito bem a discussão
dos novos movimentos religiosos. Como pudemos acompanhar, essas religiões tentam
romper as dicotomias e os grandes divisores que já comentamos, apostando em uma
prática tradicional, ligada ao natural e ao mesmo tempo espiritual, além de apostar em
um diálogo com as comunidades indígenas, embora nem sempre esse diálogo seja sem
conflito, pois em alguns contextos, especialmente naquilo que têm sido chamado de
neoxamanismo, há um apagamento das práticas tradicionais indígenas em prol de uma
ritualística sincrética e supostamente sem ligação étnica.

149
No artigo “O que faz a espiritualidade?”, Rodrigo Toniol apresenta as relações
entre espiritualidade e saúde, enfatizando os usos de práticas terapêuticas ligadas às
espiritualidades no Sistema Único de Saúde (SUS) em Porto Alegre, além de apontar que
a espiritualidade, ou a “dimensão espiritual”, foi reconhecida pela Organização Mundial
da Saúde (OMS), em 1983, como um tópico dos programas de estratégia de saúde dos
países participantes da OMS (TONIOL, 2017).

[...] é possível identificarmos pelo menos dois planos de conver-


gência entre os argumentos apresentados no debate sobre es-
piritualidade na OMS e aqueles expressos na Política Estadual de
Práticas Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul.
Primeiro, em ambas as instâncias, a necessidade de diferenciar
religião e espiritualidade é preeminente. Segundo, nos dois casos,
a diferença entre as categorias está fundada no mesmo princípio
de entendimento: a espiritualidade é parte da natureza da pessoa,
enquanto a religião é a expressão de escolhas individuais. Confor-
me já afirmei, no entanto, definir espiritualidade é um ato e, nesse
sentido, os marcos que a diferenciam da religião tampouco podem
ser encarados como absolutos ou como desinteressados. Assim,
se na PEPIC/RS, a diretriz dedicada ao reiki situa a religião fora do
campo da terapêutica e, ao mesmo tempo, afirma a pertinência da
atenção à espiritualidade, no cotidiano de oferta e de uso do reiki
no Hospital Conceição, a relação entre essas categorias assume
outras configurações (TONIOL, 2017, p. 156).

Nesse aspecto, Rodrigo Toniol mostra como a antropologia pode pesquisar


o fenômeno da espiritualidade, acompanhando as definições e diferenciações que
os envolvidos fazem, que por vez, diferenciam a religião da espiritualidade. Para a
antropologia, se faz importante compreender o porquê os agentes estão diferenciando
essas esferas, assim como é possível apontar os limites dessas diferenciações.

IMPORTANTE
O reiki é uma técnica japonesa terapêutica. O seu princípio é de que o
praticante terapeuta é capaz de canalizar e conduzir energias, utilizando
as mãos. Essas energias teriam efeito terapêutico, a partir da ativação dos
processos orgânicos e naturais do próprio paciente.

150
Figura 2 – SUS oferece atendimento de reike

Fonte: <https://globoplay.globo.com/v/8110539/>. Acesso em: 11 ago. 2022

No sentido que Toniol apresenta de espiritualidade, compreendemos o motivo


dessa categoria ser utilizada para definir elementos que consideramos religiosos,
mas que não se limitem a uma religião institucionalizada, de fato, havendo assim, o
reconhecimento de que a espiritualidade seria uma dimensão da experiência humana,
enquanto que a religião reflete e expressa caminhos particulares e individuais. Como
viemos acompanhando os debates sobre laicidade e secularismo, essa definição
da espiritualidade, colocando-a como distinta da religião, salvaguarda que práticas
terapêuticas como o reiki, sejam utilizadas como tratamento complementar no referido
Hospital Conceição, em Porto Alegre. No caso etnográfico apontado por Toniol, o hospital
optou pelo reiki por considerá-lo como uma prática espiritual que atenderá as demandas
espirituais dos pacientes, ao mesmo tempo que afasta os “perigos da religião”, no geral,
de interferirem no tratamento dos pacientes em estágio de câncer (TONIOL, 2017).

Para refletir sobre a opção do hospital pelo reiki, enquanto um serviço


de atenção à espiritualidade alternativo à “religião perigosa”, é preciso
levar em conta que, no mesmo hospital, pelo menos desde o início
da década de 2000, serviços de atendimento religioso estão dispo-
níveis aos pacientes e funcionários da instituição. Esses serviços são
gestionados pelo Fórum Inter-religioso, uma instância que reúne re-
presentantes de diversos grupos (católicos, pentecostais, espíritas,
afro-religiosos, etc.) dispostos a atender aqueles que os demandam.
Os atores envolvidos com as atividades do Fórum, embora identifi-
cados com religiões específicas, também lançam mão da categoria
espiritualidade e, em certa medida, parecem dialogar com o sentido a
ela atribuído nos debates sobre o tema na OMS (TONIOL, 2017, p. 160).

Assim, acompanhamos as mobilizações do uso da categoria de espiritualidades,


que ao mesmo tempo reúne diversas religiões, assim como faz com que essa dimensão
mais institucionalizada do religioso fique de fora. Como fenômeno de espiritualidade
reconhecido nos novos movimentos religiosos e de Nova Era, o que prevalece aqui
ainda é a experiência individual do sujeito. Nesse caso, de um paciente que está em
tratamento. Cabe relembrar que essa mobilização da categoria espiritualidade e das

151
práticas terapêuticas são um desdobramento das políticas públicas de saúde, na OMS
e no SUS, por exemplo. Cabe reforçar três aspectos do uso do terapêutico do reike, da
“imposição de mãos”, no contexto etnográfico de Toniol:

Até aqui destaquei duas modalidades de relação entre religião e


espiritualidade implicadas no uso do reiki como técnica terapêutica
na rotina do Hospital Conceição. A primeira, descrita a partir das
diretrizes dedicadas à terapia nas políticas de PICs [Práticas
Integrativas e Complementares em Saúde], afirma o caráter não
religioso do reiki empregado no SUS e, ao mesmo tempo, insiste
na capacidade singular da prática em atentar para a dimensão
espiritual da saúde humana. Já a segunda é relativa às justificativas
apresentadas pelo diretor do setor oncológico para a realização das
sessões de reiki nas salas de quimioterapia. Para o oncologista, a
oferta da terapia de imposição de mãos, como um modo de atender
à dimensão espiritual dos pacientes, poderia constituir-se como uma
alternativa, institucionalizada e segura aos riscos que as práticas
religiosas podem oferecer ao tratamento médico. Nesse caso, o
reiki seria um modo de atenção paralelo, mas não necessariamente
concorrente com aquele oferecido pelas religiões. A essas duas
configurações quero ainda acrescentar uma terceira, que não diz
respeito nem aos enunciados legais sobre o reiki e nem à posição
do diretor do setor acerca do uso da terapêutica, mas que se refere,
sobretudo, aos pacientes de quimioterapia que, por razões religiosas,
recusam a prática de imposição de mãos (TONIOL, 2017, p. 161-162).

O primeiro, portanto, reforça aquilo que já conhecemos sobre esses fenômenos:


a dimensão espiritual é singular, tem sua especificidade, além de estar ligada a uma
experiência subjetiva e individual, teria a sua parcela no campo da saúde humana como
um todo. Tudo isso é feito enfatizando o aspecto não religioso dessas práticas, ou seja,
apartando a espiritualidade da religião. A segunda, por outro lado, que Toniol encontra
encarnada em um médico oncologista do hospital estudado, apresenta, assim, a con-
cepção de que ao mesmo tempo que essas práticas terapêuticas são complementares
ao tratamento de saúde, portanto não são concorrentes, pois afastam os riscos que a
religião traria, caso ela fosse inserida na lógica do tratamento hospitalar. Assim, a inser-
ção de um aspecto espiritual, enquanto tratamento institucionalizado, afasta a possibi-
lidade de maiores interferências das religiões dominantes no campo da saúde pública.
Já na terceira possibilidade, Toniol apresenta casos em que as pessoas recusaram o
tratamento via reiki por conta das religiões que praticam. Nessas três possibilidades,
podemos reconhecer, mais uma vez, a complexidade da situação envolvendo as dimen-
sões espirituais, suas relações e rupturas com as instituições religiosas, e aqui nesse
ponto, em sua relação para com a saúde e a corporalidade.

4 ESPIRITUALIDADES E CIÊNCIAS SOCIAIS


Observamos que as espiritualidades e os novos movimentos religiosos apresen-
tam, senão desafios, contradiscursos da modernidade e as próprias dicotomias que a mo-
dernidade estabeleceu para descrever e analisar a sua realidade em contraste com os
mundos tradicionais e não-ocidentais. Nesse sentido, a antropologia e as espiritualidades,

152
se encontram, pois a antropologia, apesar de ser uma ciência ocidental e forjada na mo-
dernidade, sempre estabeleceu críticas ao etnocentrismo e o discurso da modernidade e
de um progressismo unilinear como única possibilidade e alternativa para a humanidade
(CARVALHO, 1998; VELHO, 1998). A maneira como a antropologia lida com a religião, a
espiritualidade, o esoterismo e outros fenômenos, é a partir das noções de diálogo e tra-
dução. Há o reconhecimento de que vivemos em múltiplas realidades e contextos, e que
a antropologia é fundamental para traduzir essas múltiplas possibilidades:

A experiência de trabalho com grupos religiosos pode ser um


mergulho profundo, sobretudo quando feito a partir do meio
secularizado já referido. Nesse sentido, creio que estudá-los pode
valer não só pelas razões substantivas de que nós, os especialistas,
já estamos convencidos, mas como laboratório nesse exercício de
permitir extinguir-se para renascer, que Lévi-Strauss (1966, citado
por Madan), considerava condição de sobrevivência da antropologia
num mundo em mudança. Sobretudo se concordarmos que, embora
a concepção de religião moderna sugira (e, em certa medida, instaure)
a sua predefinição como esfera particular, a própria experiência
antropológica e alguma autoconsciência nos sugerem, por sua vez,
questionarmos em que medida uma percepção mais holística - para
a qual, aliás, os antropólogos da Índia têm chamado nossa atenção -
não nos abre outras perspectivas (Velho, a sair) (VELHO, 1998, p. 14).

Cabe reforçar que essa perspectiva mais holística, ou seja, abrangente e que
pensa a realidade a partir do todo, tem alguma relação com a espiritualidade e a sua
relação com a religiosidade, seja para tencioná-la, seja para apontar continuidades
entre essas duas realidades. Nesse aspecto, como aponta o antropólogo Otávio Velho
em seu artigo “O que a religião pode fazer pelas ciências sociais?”, a religião, caso
seja estudada antropologicamente, apresenta os limites do discurso moderno e a
sua razão que considera, conforme já vimos, que a religião é um fenômeno de esfera
particular e privada, ao menos dentro do projeto secularista. Entretanto, com a pesquisa
antropológica e etnográfica, junto a grupos religiosos ou espiritualistas, a antropologia
complexifica a situação. E aqui, mais uma vez, não é uma defesa nem uma acusação
da religião, mas perguntar o que ela pode contribuir, nos ensinar, sobre a experiência
humana, e como em toda complexidade, a resposta não pode ser maniqueísta.

Gregory Bateson (1987) levantou a ideia de que a religião constituiria


um dos nichos (juntamente com a arte, os sonhos, as visões, etc.)
onde os seres humanos, especialmente em nossa sociedade, pro-
duziriam discursos próximos à comunicação biológica, em contraste
com os discursos mais usuais referidos ao mundo físico, caracteri-
zado pela ausência de comunicação. Essa distinção, que ele retira
dos gnósticos (Creatura x Pleroma), marcaria a afirmação do primado
das relações e dos padrões sobre as coisas e dos paradoxos e das
metáforas sobre a lógica. E, também, marcaria o primado da ênfase
holística, da não substancialização, da homologia, do não-dualismo.
Assim, esse reconhecimento poderia marcar um "fim", por sua vez
paradoxal, da religião, na medida em que ela se confundiria com ou-
tros domínios que, hoje, reforçariam a afirmação de uma epistemo-
logia alternativa. Muitos grupos e movimentos que um olhar exter-
no tenderia a identificar como religiosos, sintomaticamente não se
percebem como tal; mas o espaço do sagrado, institucionalizado ou

153
não, provavelmente se mantém como lócus privilegiado da produção
e expressão dessa epistemologia, sobretudo a partir de seus mo-
mentos místicos e através de suas linguagens, rituais, experiências e
narrativas. Mesmo esse privilégio, contudo, não deixa de sofrer con-
testações, com a religião, hoje, encontrando homólogos (e eventuais
competidores) nas linguagens prestigiosas da teoria da complexida-
de, da globalização, e até da própria Antropologia. Linguagens que,
no entanto, são mais limitadas e inexperientes do que a religião no
trato com os diversos estados de consciência, e menos competentes
em desenvolver e elaborar suas implicações existenciais de um modo
capaz de concretamente afetar (VELHO, 1998, p. 15).

Otávio Velho apresenta a interpretação do antropólogo Gregory Bateson (1904-


1980) sobre a religião e essa nova epistemologia, que poderíamos chamar de espiri-
tualista e holística. Bateson enfatizava que haveria uma forma de conhecer que não
se sustentava em dualismos. E aqui, é importante lembrarmos o que aprendemos até
aqui: vimos o quanto as ciências sociais mobilizam seus conceitos e descrições a partir
de dualismos: natureza x cultura, indivíduo x sociedade etc. Essa nova epistemologia
é próxima daquilo que descrevemos como espiritualidades porque também questiona
esses dualismos e as hierarquizações, afinal, os novos movimentos religiosos e as es-
piritualidades, ao criticarem as institucionalizações e hierarquias, também duvidam dos
limites estabelecidos entre público e privado, por exemplo, sagrado e profano. Nesse
aspecto, o que se considera como fazendo parte apenas do mundo religioso: as lingua-
gens rituais e mitológicas, por exemplo, extravasam e perpassam toda a realidade hu-
mana e social, por isso essa possiblidade do “fim” da religião, apresentada por Bateson
e comentada por Otávio Velho, pois esse espalhamento pulverizador do religioso, apesar
de fazer com que ele se encontre em todo o lugar, o enfraqueceria, ao menos enquanto
categoria bem definida, ou seja, enquanto religião. Ainda na citação de Otávio Velho,
temos a contribuição de Bateson e o contraponto do comentador da teoria: a religião
permanece como protagonista em criadora de linguagens para descrever esse momen-
to holístico e espiritualista.

Tudo isso revela que de fato a religião pode ter muito a nos oferecer,
instrumental e existencialmente. Não em função de uma essência
imutável, presente desde sempre, mas em face de um momento. Um
momento talvez caracterizável, de forma mais geral, como sendo
de mudança profunda de paradigma societário, como quer Colin
Campbell (1997). Paradigma (oriental) que iria em direção próxima
à da epistemologia do mundo da Creatura, conforme Bateson,
podendo-se acrescentar a esta, sem maiores perturbações, algumas
das intuições nietzschianas do amor fati e da transvaloração (Velho,
1995). O princípio da caridade de Davidson, por exemplo, num plano
estritamente epistemológico, sempre poderá ser questionado.
Mas na medida em que permita operar concretamente de modo a
reconhecer as diferenças sem exoticizá-las nem congelá-las ele se
mostrará atual, ajudando-nos a evitar os dois rochedos com que
este texto se iniciou. A aposta é que essa possibilidade possa, hoje,
ser explorada produtivamente de modo mais amplo no diálogo - ou
além-do-diálogo - com as religiões. Com ou sem aspas (VELHO,
1998, p. 16).

154
Para compreendermos o debate apresentado por Otávio Velho, precisamos
retomar o que aprendemos sobre o papel da antropologia no estudo da religião.
Lembremos que Evans-Pritchard argumentava que a antropologia herdou do
evolucionismo cultural de Taylor e Frazer, a percepção de que os fenômenos mágico-
religiosos tenderiam a desaparecer ao longo do desenvolvimento do espírito humano.
Ideia já apresentada e bem fundamentada no próprio Comte. Assim, Evans-Pritchard
comenta que a antropologia, por vezes, ao estudar a religião parecia mais denunciá-la
do que estudá-la de fato. Por outro lado, há também a realidade de que os antropólogos
passaram a estudar a religião em contexto de encontro colonial, portanto, era a religião
do outro, dos ditos selvagens e primitivos que estavam em estudo.

Não era incomum que nessa análise, passassem o etnocentrismo de seus


pesquisadores, que mesmo quando não eram pessoas consideravelmente religiosas,
consideravam as religiões dominantes, sobretudo cristãs, como superiores as demais
religiões, denominadas de tradicionais, da ancestralidade e oralidade, ou seja, religiões
que não seriam das “escrituras”. Essa história de relação entre ciências sociais e religião
criou, portanto, aquilo que Marcelo Camurça chamou “da boa e da má vontade para com
a religião (CAMURÇA, 2008). Ou seja, uma polaridade. O que Otávio Velho quer resgatar
é um caminho de experimentação, que perpasse para além da defesa e da denúncia,
portanto. Podemos nos ater ao que foi citado, que Otávio Velho não está se referindo a
um conceito de religião imutável e universal. Comenta, sim, um momento específico da
nossa história, de mudanças nos paradigmas e epistemologias vigentes. O orientalismo,
conforme já comentamos, não surge aqui, portanto, apenas como uma deformação que
o Ocidente faz do Oriente, mas em uma transformação, de fato, das subjetividades e da
maneira como se pode compreender aquilo que chamamos, até aqui, de modernidade
e sociedade ocidental. Esse movimento é ao só tempo de reflexão, desconstrução,
crítica e ampliação desses conceitos. A principal lição que Otávio Velho (1998) nos deixa,
nesse texto, é que poderíamos aprender com a religião se estivéssemos dispostos a
nos relacionar com a diferença sem “exotizá-la” nem “congelá-la”. Ou seja, a exotização,
conforme aprendemos na Unidade I, é um movimento de estereótipo, de deformação
da alteridade e do outro, que cria uma grande divisão entre nós, supostamente os
modernos, e os outros, os supostamente exóticos e selvagens. A antropologia, quando
estabelece um diálogo genuíno, pode encontrar na diferença um valor não extático,
sempre em movimento e redefinição. É assim que aprendemos a estudar a religião, as
espiritualidades, assim como a ciência e tudo aquilo que é humano.

155
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu:

• Que a emergência das espiritualidades e novos movimentos sociais e religiosos


colocaram em xeque a ideologia ocidental, por um lado, e as instituições religiosas,
por outro. A religião no singular, enquanto instituição, passou a ser questionada
em sua hierarquia e como instituição, a partir de novos movimentos religiosos
e espiritualistas. As tensões, aproximações e distanciamentos entre religião e
espiritualidade, configuram muitos dos fenômenos contemporâneos.

• O Brasil é protagonista nos novos movimentos religiosos, com as religiões do Vale


do Amanhecer, Santo Daime, Barquinha, União do Vegetal, Umbandaime e outras
religiões. Essa diversidade de novas espiritualidades e religiões, estão associadas
com religiões anteriores, como o espiritismo kardecista e as religiões afro-brasileiras.

• Além disso, no Brasil, as espiritualidades estão presentes nos debates sobre os usos
da ayahuasca, que é uma bebida psicoativa ancestral indígena, utilizada por várias
nações indígenas, assim como pelas novas religiões da ayahuasca. Também se
apresenta nas terapias alternativas/complementares oferecidas para os pacientes
do Sistema Único de Saúde.

156
AUTOATIVIDADE
1 Os novos movimentos religiosos surgiram no século XX, apresentando propostas
e reconfigurações do campo religioso, social e cultural. Sobre essa realidade, que
denominamos de emergência das espiritualidades, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Esses movimentos questionam a institucionalidade das Igrejas, não apresentam


nenhuma hierarquia, por isso são denominados de seitas.
b) ( ) O movimento hippie, apesar de questionar a ideologia de consumo da sociedade
ocidental, não pode ser considerado como espiritualista.
c) ( ) Os novos movimentos sociais surgiram entre a década de 1960 e 1970. Diversos
em suas ideologias e espiritualidades, tentaram romper com aspectos da
cosmologia ocidental.
d) ( ) A Nova Era ou New Age é uma antireligião, pois é combatida pelas religiões
mundiais estabelecidas.

2 A ayahuasca é uma bebida psicoativa que é utilizada por diversos grupos humanos.
De origem indígena, sendo fabricada e utilizada por diversas nações indígenas até
hoje, a bebida é central na ritualística e cosmologia de novas religiões brasileiras,
como o Santo Daime. A respeito da complexidade da ayahuasca e seus usos religiosos
e espiritualistas, analise as sentenças a seguir:

I- A ayahuasca é uma bebida de múltiplos usos e sentidos, que variam de acordo com
o grupo social e religioso em questão. O que é padrão é o revestimento cosmológico
e espiritualista de seu uso.
II- Por ser uma substância psicoativa, a ayahuasca invalida o argumento de que o
Santo Daime e xamanismo indígena são religiões.
III- Por ter um uso diversificado, a bebida da ayahuasca pode ter sentidos filosóficos,
artísticos, religiosos, morais, médicos, éticos etc.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 A emergência das espiritualidades também é o estabelecimento de um novo paradigma


que afeta não somente a religião, a filosofia, a arte, mas também a ciência. A respeito
dessa transformação de paradigma e como ela se relaciona com as ciências sociais,
classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

157
( ) A religiões, no plural, podem fornecer para as ciências sociais um trato com a
diferença, sem exotizá-la e congelá-la.
( ) A aproximação epistemológica entre um paradigma espiritualista e um paradigma
holista, enfraquece as ciências sociais enquanto ciência.
( ) O novo paradigma espiritualista reforça um sentido universal e permanente de
religião, pois apesar de ser múltiplo, acredita que a fé é o único aspecto imutável da
experiência humana.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 A espiritualidade tem se reforçado no mundo. Na América Latina, esse processo


acontece de uma maneira mais intensa, a partir da década de 1990. Identifique as
principais características dos novos movimentos espiritualistas e como as religiões
dominantes têm reagido a essa presença.

5 Em 1987, aconteceu 37ª Assembleia Mundial de Saúde. Nessa reunião, pela primeira
vez a dimensão espiritual foi reconhecida, pela OMS – Organização Mundial da
Saúde – como um aspecto da saúde humana. O reconhecimento aconteceu na
integração da dimensão espiritual ao programa estratégico de saúde dos Estados
membros da OMS. Comente a respeito desse acontecimento e o uso de terapias
complementares integradas ao Sistema Único de Saúde.

158
UNIDADE 3 TÓPICO 3 -
INTOLERÂNCIA E PLURALISMO RELIGIOSO

1 INTRODUÇÃO
Aprendemos em nossa caminhada pela Antropologia da Religião, que nesse
campo, embora não seja exclusividade do tema, há diferença e diversidade sob a capa
de uma suposta homogeneidade. Se observamos o mundo, ou até mesmo o nosso país,
conseguimos, rapidamente, descobrir uma hegemonia cristã. Mas o que isso significa?
A partir da antropologia, sabemos que a homogeneidade católica, de um lado, e o
crescimento evangélico, por outro, é resultado de processos históricos específicos.

No caso da América Latina, incluindo, obviamente, o Brasil, não conseguiremos


debater com responsabilidade o assunto se não reconhecermos que o nosso país é
resultado de invasão e colonização (SANTOS, 2015). Com a invasão e a colonização
do nosso país, que já era habitado por diversas populações e nações indígenas, com
as mais diversas culturas, sociedades e cosmologias religiosas, a religião cristã foi
imposta a partir da catequese e do poder de dominação e subjugação. Assim, falar de
religião no Brasil, é também discutir a respeito do encontro colonial que nos produziu
e a subjugação branca e cristã de indígenas e suas culturas e religiões, assim como a
exploração e escravização de sujeitos das mais diversas regiões do continente africano.

Portanto, no nosso contemporâneo, embora possamos reconhecer uma


hegemonia cristã no país, sabemos que no Brasil há diversas religiões de matriz africana
e indígena, que embora não tenham o mesmo contingente numérico das religiões
dominantes, influenciam na cultura e história brasileira de uma maneira muito profunda.
Nesse tópico, vamos abordar como essas religiões têm sido atacadas e reagido à
intolerância religiosa, na medida em que elas são exemplo de como é possível manter
um diálogo respeitoso e pluralista para com outras religiões, pois estatisticamente, e
em suas cosmologias, há evidências de que essas religiões são mais tolerantes para
com a diferença de crenças. É o que veremos nos subtópicos a seguir. Em “Intolerância
religiosa”, identificaremos as raízes da intolerância, relacionada com o etnocentrismo. Já
em “Racismo religioso”, acompanharemos como no caso das religiões de matriz africana,
a perseguição e violência que sofrem, está pautada no racismo religioso. Finalmente,
em “O pluralismo religioso”, seguiremos com o tema da laicidade e da democracia, e em
como o pluralismo religioso é fundamental para a criação e/ou manutenção de uma
sociedade democrática e diversa.

159
2 INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
É importante relembrarmos os dados apresentados por Sidnei Nogueira, doutor
em Semiótica e Linguística Geral e babalorixá, em Intolerância religiosa (2020). Nogueira
mostra que em 2018, os dados do Disque 100, canal de denúncia de violação de direitos
humanos, onde são noticiados os casos de intolerância religiosa, 30% das vítimas eram
da umbanda, candomblé ou outras religiões de matriz africana. Acontece que nos censos
religiosos levantados pelo IBGE, como no último realizado, em 2010, o percentual de pes-
soas que se autodeclaram de umbanda ou candomblé não é muito expressivo. Em 2010,
esse contingente foi de 0,3%. Ou seja, embora sejam religiões com expressivamente pou-
cas pessoas autodeclaradamente adeptas, essas são as religiões que mais sofrem com
a intolerância religiosa. Cabe mencionar que também o número de adeptos declarados
dificilmente condiz com a realidade, pois como vamos acompanhar, por conta do racismo
e da perseguição que essas religiões historicamente sofreram, não o incentivo para que
essas pessoas, geralmente, se identifiquem nos censos enquanto afrorreligiosas.

Com Sidnei Nogueira, aprendemos que a intolerância não é um fenômeno


recente, nem na história do mundo, nem do nosso país, embora ela se apresente de
maneiras distintas, a depender de cada contexto histórico, social e cultural. Embora
individualmente se possa ter ojeriza e preconceito sobre qualquer assunto, tema ou
pessoa, o ato de estigmatizar é um ato de poder. Portanto, são grupos minoritários que
estigmatizam e produzem intolerância sobre grupos coletivos e minoritários.

No cerne da noção de intolerância religiosa, está a necessidade


de estigmatizar para fazer oposição entre o que é normal, regular,
padrão, e o que é anormal, irregular, não padrão. Estigmatizar é
um exercício de poder sobre o outro. Estigmatiza-se para excluir,
segregar, apagar, silenciar e apartar do grupo considerado normal e
de prestígio (NOGUEIRA, 20020, 35).

Nesse aspecto, a intolerância religiosa se estende como uns dos principais


temas da antropologia, afinal, a relação entre “nós” e os “outros”, ou o “eu” e o “outro”,
junto aos embates etnocêntricos, estigmatizadores e conflituosos que se estabelecem
a partir daí, é uns dos principais temas da antropologia.

A verdade é que o Brasil, como uma sociedade ocidental, não nasceu


como uma democracia religiosa. Não é necessário que se vá muito
longe na história do nosso país para entender que a intolerância
religiosa e a farsa da laicidade têm como origem o colonialismo.
Desde a invasão pelos portugueses, a religião cristã foi usada como
forma de conquista, dominação e doutrinação, sendo a base dos
projetos políticos dos colonizadores (NOGUEIRA, 2020, p. 36).

Portanto, se quando estudamos a história da antropologia, acompanhamos


como o encontro colonial entre as sociedades europeias com as sociedades e grupos
ditos tradicionais, os povos originários e considerados como “selvagens” e “primitivos”
pelos ocidentais, ao estudarmos a intolerância religiosa no Brasil, se faz imprescindível
esse reconhecimento histórico da colonização como o motor da hegemonia cristã e

160
a estrutura de uma sociedade racista, posto que considera, na sua hierarquia social e
racial, que o branco estaria no topo, enquanto indígenas e negros seriam inferiores por
estarem distantes dos ideários e da materialidade branca e ocidental. Reconhecido isso:

A expressão “intolerância religiosa” tem sido utilizada para descrever


um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e
práticas religiosas consideradas não hegemônicas. Práticas estas
que, somadas à falta de habilidade ou à vontade em reconhecer e
respeitar diferentes crenças de terceiros, podem ser consideradas
crimes de ódio que ferem a liberdade e a dignidade humanas
(NOGUEIRA, 2020, p. 39).

Aqui, cabe ressaltar o argumento de Sidnei Nogueira. A intolerância religiosa é


uma realidade social e não acontece de qualquer jeito. Como fenômeno sociológico, só faz
sentido quando parte de ofensa e desrespeito em relação a práticas religiosas não domi-
nantes, afinal, as religiões dominantes, como seus nomes já expressam, criam condições
para que seus sujeitos, adeptos e instituições sejam reconhecidas pela sociedade em ge-
ral, além de acessar o poder, de alguma maneira, a partir de suas condições estabelecidas.
Além disso, como já vimos, a intolerância religiosa não é uma realidade recente, tampouco
restrita ao que adeptos das religiões de matriz africana e indígena sofrem.

Nesse contexto, a perseguição pode tomar vários rumos, desde


incitamento ao ódio até ações mais violentas como torturas e
espancamentos. A perseguição não é um problema atual: ocorre há
muitos séculos, quando os primeiros cristãos foram perseguidos por
judeus e romanos. E, na Idade Média, ao fim do Império Romano, os
judeus foram perseguidos, e as conversões forçadas eram comuns
em muitas regiões da Europa cristã. Ainda durante o século 20, a
perseguição religiosa atingiu proporções nunca vistas na História. A
eugenia, que visava atingir a raça pura, tornou oficial a perseguição
em massa dos povos judeus e de outros seres humanos considerados
fracos e imperfeitos pelos nazistas, até chegar à fase mais conhecida
– o Holocausto – que vitimou milhares de pessoas não apenas pela
raça, mas porque eram especificamente contrárias aos ideais de seus
perseguidores (NOGUEIRA, 2020, p. 40).

Nessa citação, podemos ter uma condensação histórica da intolerância e


do estigma, e o quão ela está relacionada com ideologias dominantes de opressão e
subjugação. Além disso, apesar da referência a longos períodos históricos, reconhecemos
que a intolerância, portanto, não é um fenômeno estático.

Quando o cristianismo surge na Palestina, região que vivia sob o


domínio romano desde 64 a.C, graças à sua mensagem redentora,
obteve enorme sucesso entre os excluídos da sociedade romana
e atraiu cada vez mais seguidores. Os convertidos passavam a
renegar as práticas religiosas públicas comuns à cultura romana,
como o sacrifício aos deuses. Tal atitude gerava incômodo ao poder
político-religioso instituído, sendo um dos motivos da perseguição
aos cristãos, visto que a Roma pré-cristã permitia o livre culto
doméstico e a liberdade de crença, desde que “não ameaçassem
os cultos públicos através de práticas e conhecimentos secretos, e
representassem uma alternativa de identidade religiosa” (MENDES;
OTERO, 2005, p. 2011). Muitas divindades das culturas colonizadas

161
por Roma eram agregadas, pois havia uma crença de que, ao
cultuar o ente sagrado da cultura subjugada, tal força divina era
apascentada. Para os romanos anteriores à ascensão do cristianismo,
as divindades dos estrangeiros eram tão vivas e verdadeiras quanto
as deles (NOGUEIRA, 2020, p. 48).

No relato histórico apresentado por Sidnei Nogueira, podemos acompanhar a


ascensão do cristianismo e na subsequente destituição de um mundo politeísta, mesmo
ocidental, para a instalação do monoteísmo, ou seja, na crença de um Deus único e uma
única religião enquanto verdadeira. Essa constatação é que dá base, como já vimos,
ao mundo moderno e ocidental, que embora apresente o secularismo e a laicidade,
por exemplo, estrutura-se a partir dessa cosmologia monoteísta cristã (SANTOS,
2015). Dessa maneira, “De vítima, o cristianismo passou a ocupar a posição de algoz.
Após desfrutar de posição hegemônica durante séculos, a Igreja Católica tornara-se
negligente e mundana em suas atividades. Reinava a simonia, isto é, o abuso do tráfico
de dignidades eclesiásticas” (NOGUEIRA, 2020, p. 48).

Com esse resumo histórico fundamental, pois sabemos que herdamos a


predominância cristã, podemos perceber como a intolerância e o racismo religiosos
são fruto de uma problemática também epistemológica, pois no caso do Brasil, há a
negação das contribuições de civilização de povos negros e indígenas.

As ações que dão corpo à intolerância religiosa no Brasil empreendem


uma luta contra os saberes de uma ancestralidade negra que vive
nos ritos, na fala, nos mitos, nas corporalidade e nas artes de sua
descendência. São tentativas organizadas e sistematizadas de
extinguir uma estrutura mítico-africana milenar que fala sobre modos
de ser, de resistir e de lutar. Quilombo epistemológico que se mantém
vivo nas comunidades de terreiro, apesar dos esforços centenários
de obliteração pela cristandade (NOGUEIRA, 2020, p 55).

A intolerância religiosa, portanto, faz parte de um processo de poder hegemônico,


que só será questionado se confrontado a partir da constatação histórica de que a
hegemonia de um grupo religioso foi produzida, portanto, não é natural. E que não se
deve exigir das minorias religiosas a aceitação de terem suas condições, existências e
religiões constantemente atacadas e postas de lado no campo do poder.

Assim, Sidnei Nogueira argumenta que o contrário da intolerância religiosa,


ou seja, o aspecto positivo, não deveria ser a tolerância, que vem do latim: “tolerare e
significa ‘suportar’ ou ‘aceitar’” (NOGUEIRA, 2020, p. 57).

“Tolerar” o que é diferente consiste, antes de qualquer coisa, em atri-


buir a ‘quem tolera’ um poder sobre ‘o que se tolera’. Como se este
dependesse do consentimento do tolerador para poder existir [...] É
preciso aceitar que esse tipo de discurso, no fundo, nega o direito
à existência autônoma do que é diferente dos padrões construídos
socialmente. Há uma linha entre o mais e o menos aceitável. A reali-
dade da tolerância funciona como um expediente do desejo de quem
se considera ao lado do mais aceitável para estigmatizar o diferente
e manter este às margens da cultura hegemônica, que, outra vez,
traça a tênue linha divisória entre o normal e o anormal. A ação de to-

162
lerar não deve ser celebrada e buscada nem como ideal político, nem
como virtude individual. Ainda que a argumento liberal enxergue, na
tolerância, uma manifestação legítima e até necessária da igualdade
moral básica entre os indivíduos, não é esse o sentimento recorrente
nos discursos da política (NOGUEIRA, 2020, p. 58-59).

Mais importante do que qualquer movimento de tolerância, seria o respeito. E


principalmente, o reconhecimento de que não se tem o poder sobre o outro, ou seja,
ele não precisa da minha e da sua “tolerância” para poder existir, afinal, esse poder
não é delegado para nós e já está presente na nossa própria constituição federal
de 1988. Entretanto, embora a laicidade do nosso Estado e a constituição garanta,
na lei, a liberdade religiosa, a realidade, para com as religiões de matriz e africana, é
completamente diferente.

Templos são invadidos e profanados. Em outros casos, há agressão


verbais, destruição de imagens sacras e até ataques incendiários
ou tentativas de homicídio. O cenário preocupa adeptos de diversas
religiões e, em pelo menos oito estados, o Ministério Público investiga
ocorrências recentes de intolerância. Entre janeiro de 2015 e o
primeiro semestre de 2019, o Brasil registrou uma denúncia a cada
15 horas, conforme dados do extinto Ministério dos Direitos Humanos
(BRASIL, 2019) (NOGUEIRA, 2020, p. 68).

Essa realidade não é exagerada. Conforme já comentamos, se buscarmos na


internet sobre intolerância religiosa e racismo religioso, chegaremos a vários casos,
que apesar de em sua base ser discutida por intelectuais, militantes, políticos, a
comunidade religiosa e civil, continua acontecendo. Embora não seja uma garantia,
cabe a antropologia da religião mostrar que nenhuma agressão e ofensa direcionada
a grupos religiosos e minoritários se justifica, afinal, como já aprendemos, não existem
religiões superiores e inferiores, nem religiões mais complexas do que as outras. Toda
religião tem uma realidade social, filosófica e cosmológica, mobilizando funções sociais.
Estão relacionadas com a organização social de grupos e sociedades. Entretanto, ainda
em relação às religiões de matriz africana, temos:

O livro Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro,


organizado pelas pesquisadoras Denise Pini Rosalem da Fonseca e
Sonia Maria Giacomini (2013), revela o dramático problema enfrentado
pelos fiéis das religiões afro-brasileiras: de 840 terreiros pesquisados,
430 (cerca de 51%) já passaram por alguma forma de agressão. Os
números do estudo realizado no Rio de Janeiro revelam que 430
casas sofreram alguma “discriminação religiosa”. É importante notar
também os locais das agressões – públicos (57%) e notadamente a
rua (67%) –, os tipos de agressão – verbal (70%) e física (21%) –, os
agressores – evangélicos (39%); vizinhos (27%) – e os tipos de alvo
– a pessoa (60%) e a casa (29%). A referida pesquisa demonstrou
que a qualificação “evangélico” corresponde a 32% da incidência dos
casos, o que representa o primeiro lugar entre agentes agressores e/
ou discriminadores. Já os “vizinhos” representam certa de 27%, e os
“vizinhos evangélicos” ocuparam a terceira posição dos agressores,
em torno de 7% (NOGUEIRA, 2020, p. 68-69).

163
Nesse aspecto, a agressão a adeptos das religiões de matriz africana é bastante
expressiva na comunidade evangélica. Isso não significa que católicos, por exemplo, não
tenham estigmatizado essas religiões. Os dados históricos nos confirmam o contrário.
Entretanto, essas agressões acontecem porque as religiões de matriz africana são
consideradas, ainda em muitas igrejas evangélicas, como um mal a ser combatido.
Embora existam exceções, como já indicamos nas seções complementares, esse é um
problema que a nossa sociedade terá que enfrentar, caso queira realmente estabelecer
uma democracia e se pautar no pluralismo religioso, por exemplo.

IMPORTANTE
As religiões afro-brasileiras são as religiões de matriz africana que foram recriadas no Brasil
no contexto da diáspora africana. Assim, as religiões afro-brasileiras são: “um conjunto algo
heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram
trazidas pelos escravos africanos e que [...] incorporaram em maior ou menor grau elementos
das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo
de origem europeia” (GOLDMAN, 2009, p. 106). Em sua “Enciclopédia Brasileira da diáspora
africana” (2011), Nei Lopes mostra que as religiões afro-brasileiras, apesar de sua diversidade
étnica, regional e cultural, são principalmente religiões que possuem como princípio o culto
aos orixás e ancestrais iorubás e voduns jejes e “o culto a ancestrais bantos e ameríndios; a
umbanda; e outras formas sincréticas” (LOPES, 2011, p. 1206). É nesse sentido que as religiões
de matriz africana, por vezes, se relacionam com as religiões indígenas, que por si,
também apresenta uma complexa e diversa cosmologia para cada coletivo étnico.
Portanto, a depender dos contextos históricos e regionais, as religiões afro-
brasileiras e afroindígenas se desenvolveram a partir de uma multiplicidade de
práticas e cosmologias, por vezes divididas entre “nações” e outros cortes étnico-
raciais. O candomblé e a umbanda são denominações que tiveram uma maior
difusão, embora geralmente o conhecimento que se tem sobre essas religiões
não passe do senso comum. Para exemplificar a diversidade de religiões e
formas de se autodenominarem adeptos e lideranças afrorreligiosas, trago
um quadro da Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades
Tradicionais de Terreiros segundo Região Metropolitana, publicada no livro
“Alimento: direito sagrado” (BRASIL, 2011).

164
Figura 3 – Manifestações religiosas afro-brasileiras e afro-indígenas

Fonte: (BRASIL, 2011).

3 RACISMO RELIGIOSO
No caso das religiões de matriz africana, indígenas e afroindígenas, o que
sustenta, ou está encoberto, por muitas vezes, na intolerância religiosa, é o próprio
racismo. Continuaremos dialogando com o livro do professor Sidnei Nogueira, que
revela a ligação entre intolerância e racismo, que em seu caso enfatiza esse processo e
encontro nas ações contra as religiões de matriz africana.

Quando se fala em intolerância religiosa, algumas vezes o foco da


perseguição não é apenas a origem étnica dos ou a origem da crença,
mas uma prática do sagrado alheio, que é considerada herética ou
demoníaca por outro grupo. No caso dos evangélicos em relação aos
católicos, a perseguição se dá por conta do que chamam de idolatria:
a relação secular do catolicismo com as representações figurativas
de seus entes sagrados (NOGUEIRA, 2020, p. 83).

Portanto, conforme já aprendemos, a intolerância religiosa pode surgir por


conta do etnocentrismo, do desentendimento, da confusão, ou mesmo da projeção das
crenças de um grupo a outro grupo ou indivíduo, o que é basicamente um estilo de
etnocentrismo. Contudo, Sidnei Nogueira, ao falar da intolerância religiosa sofrida pelas
religiões afro-brasileiras, acrescenta mais uma camada a esse fenômeno:

Entretanto, é inegável que a perseguição às religiões cristãs (católi-


cas, evangélicas e protestantes) está bem distante da estigmatiza-
ção e da demonização centenária sofrida pelas CTTro [Comunidades
Tradicionais de Terreiro]. A estratégia mais segura para se evitar a
perseguição é a negação da existência dessas tradições. Como mos-

165
trado anteriormente, os dados apontam que há uma violência endê-
mica direcionada aos membros de CTTro de todo o Brasil. Apesar dos
processos de invisibilidade e agressões sistémicas a essas comu-
nidades, muitas de suas lideranças possuem plena consciência da
estrutura social racista e dos agentes que promovem a manutenção
da intolerância religiosa (NOGUEIRA, 2020, p. 84).

Nesse sentido, a intolerância religiosa sofrida pelas religiões afro-brasileiras está


pautada na negação dessas próprias religiões enquanto religiões. Ao longo da história do
Brasil, essas religiões foram perseguidas pela Igreja e pelo Estado, e descrita pela mídia
impressa do século XIX e XX como “seitas” e seus tempos, lugares de desordem pública e
promiscuidade (LOPES, 2011), e posteriormente, com a transformação dos meios de co-
municação, essas acusações e imagens estereotipadas, permaneceram, apesar das ten-
tativas e resistências mobilizadas pela comunidade afro-brasileira e o movimento negro.

O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre


uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobe
pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens
da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e sobre os rituais.
Trata-se da alteridade condenada à não existência. Uma vez fora dos
padrões hegemônicos, um conjunto de práticas culturais, valores
civilizatórios e crenças não pode existir; ou pode, desde que a ideia
de oposição semântica a uma cultura eleita como padrão, regular e
normal seja reiteradamente fortalecida (NOGUEIRA, 2020, p. 89).

Como o racismo religioso persegue e condena as religiões de matriz africana, que


por consequência, é uma religião preta, conforme nos reforça Sidnei Nogueira, esse ra-
cismo incide sobre todas essas religiões e seus adeptos, independentemente da cor e/ou
raça de seus praticantes. Entretanto, quando são sujeitos pretos e pretas que professam
suas religiões de matriz africana, o racismo se incide de uma maneira mais violenta, pois
se interseccionam as identidades de raça, gênero e religião. Além disso, o termo intolerân-
cia religioso é mais aceito e mobilizado do que o de racismo religioso. Para Sidnei Noguei-
ra, provavelmente, essa aceitação se dá no fato de que a sociedade brasileira costuma
negar que é uma sociedade estruturada no racismo: “No Brasil tudo o que colocar o povo
brasileiro em uma posição cordial será mais aceito do que qualquer noção que confron-
tá-lo ou que pode colocá-lo na posição de extremista, excludente e violento” (NOGUEIRA,
2020, p. 89). Essa dificuldade de compreender que nossa sociedade é atravessada pela
violência, inclusive racial e religiosa, adia a resolução do problema, ou o mascara. Quan-
do formos falar do pluralismo, por exemplo, compreenderemos melhor essa situação: se
somos um povo que aceita a diferença e a mistura, por que teríamos que celebrar o plu-
ralismo religioso como pauta e necessidade? Para o professor Sidnei Nogueira, e parte do
movimento negro e afrorreligioso, devemos falar sobre a intolerância religiosa articulada
com o racismo religioso, pois é reconhecendo somente reconhecendo o problema em sua
existência é que podemos compreendê-lo e, se possível, superá-lo.

Para argumentar sobre o racismo na sociedade brasileira, e as limitações da


categoria intolerância religiosa para descrever o racismo religioso, Sidnei Nogueira
dialoga com a antropóloga Lélia Gonzalez, especialmente em seu texto “Racismo e
sexismo na cultura brasileira” de 1988.
166
Ainda de acordo com Gonzalez (1988), no processo de secularização e
laicização do Brasil, com o advento da República em 1889, fica patente
que toda a concepção de Estado recebe o legado do modelo social
escravista que se baseava na crença da inferioridade da população
negra e sua herança cultural religiosa. O racismo “estabelece uma
hierarquia racial e cultural que opõe a ‘superioridade’ branca ocidental
à ‘inferioridade’ negroafricana (1988, p. 77). A categoria “intolerância”
não nos instrumentaliza a perceber o racismo como central na
compreensão da perseguição às religiões de matrizes africanas
(NOGUEIRA, 2020, p. 90-91).

Na esteira dos argumentos de Lélia Gonzalez e Sidnei Nogueira, mesmo com


o estado brasileiro, desde o advento da República em 1889, estar pautado na laicidade
e secularização, esse estado herdou a ideologia dominante e branca, que inferioriza e
hierarquiza pessoas não-brancas, especialmente negras e indígenas. Assim, a laicidade
do nosso Estado não é, necessariamente, uma garantia de liberdade de culto, nem
de respeito às religiões afro-brasileiras. Pelo contrário, o racismo religioso persiste
em nossa estrutura social. Assim Sidnei Nogueira reforça o argumento da articulação
entre intolerância religiosa e racismo religioso, por um lado, ou pela escolha direta de
denominar esses fenômenos de racismo religioso diretamente:

Afinal, por que racismo em vez de intolerância religiosa? Porque,


nesse caso, o objeto do racismo já não é o homem particular, mas
certa forma de existir. Trata-se da negação de uma forma simbólica e
semântica de existir, de ser e estar no mundo. Neste caso, o racismo
atinge explícita ou implicitamente a dimensão mais importante de
uma pessoa e/ou de uma coletividade: sua própria humanidade.
O processo de demonização dos cultos de matrizes africanas, em
última análise, caracteriza a negação da humanidade desses fiéis
(NOGUEIRA, 2020, p. 91).

Portanto, como o ódio que fundamenta as agressões verbais, simbólicas e físicas


no caso do racismo religioso, está calcada muito mais nas condições de existências,
ou na própria existência da pessoa, do que em sua religião. Aliás, religião e identidade
étnico-racial seriam inseparáveis nesse caso. O racismo religioso, dessa forma, quer
negar a própria humanidade das pessoas adeptas dessas religiões, ao mesmo tempo
que ao demonizar – e aqui, mais um etnocentrismo, pois utiliza um símbolo de sua
própria religião para simbolizar seres e pessoas de outras religiões – as práticas afro-
brasileiras, desumaniza a um só tempo a pessoa e a sua religião.

Está posto que o racismo serve a um sistema e a um projeto de


poder; manter o poder de um grupo em detrimento de outro. Trata-
se mesmo de atribuir a um grupo, a suas origens e a suas crenças
um conjunto de rupturas e transgressões que permitem à sociedade
se considerar dentro de um padrão de comportamentos e escolhas
aceitáveis na medida em que outro grupo serve apenas como ponto
de comparação (NOGUEIRA, 2020, p. 92).

Nesse aspecto, o racismo é um mecanismo relacional que para funcionar,


evidentemente, deve hierarquizar grupos humanos, inferiorizando uns, para superiorizar
outros. A religião, no caso das religiões de matriz africana, entra como elemento que
reforça e racializa grupos minoritários. Esse esquema, portanto, insere, conforme
167
lemos, toda a existência, crenças e comportamentos desses grupos em uma ótica de
subjugação e inferioridade, que serve a um projeto de poder hegemônico e dominante.
É com esse argumento, que Sidnei Nogueira mostra que o racismo é efetivado e
institucionalizado quando lideranças políticas, que também são religiosas, se sentem
à vontade para expressar, publicamente, seus racismos. Comentando o caso de um
pastor e deputado, o autor questiona:

O comportamento do parlamentar não é exceção e, hoje, alguns


anos depois, nada mudou. Entre eufemismos, metáforas e sutilezas
discursivas, o discurso religioso se mimetiza ao político com vistas
à conversão de eleitores a uma plataforma de poder fantasiada
de cristandade. A questão aqui é: por que essas autoridades e
representantes, a um só tempo, de Cristo e do povo, sentem-se tão
à vontade para prática pública do racismo? (NOGUEIRA, 2020, p. 93).

A pergunta é retórica, tanto para o autor, quanto para quem estiver


acompanhando esse tópico. Afinal, até aqui, acompanhamos o caminho que tornou
possível esse tipo de configuração política e social que inferioriza as religiões de matriz
africana. Para enfatizar esse percurso, Sidnei Nogueira apresenta como uns dos
momentos essenciais da cosmologia das religiões de matriz africana, foi demonizado,
perseguido e considerado como uma prática bárbara e incivilizada. Estamos falando
da sacralização animal, praticada no candomblé e outras religiões de matriz africana,
que faz com que a comunidade religiosa se reproduza e fortaleça os seus laços de
sociabilidade, por um lado, e com a própria natureza, por outro, pois essas religiões
apresentam uma dinâmica muito mais harmônica com o mundo natural do que a própria
sociedade moderna. Assim, Sidnei Nogueira contrapõe as religiões de matriz africana
com outras religiões que possuem ritos parecidos, mas não recebem o mesmo tipo de
perseguição na sociedade brasileira:

Décadas se passaram e até hoje isso é vociferado [a acusação de


barbarismo] em igrejas e redes sociais, além de ganhar corpo em
tentativas jurídicas de proibir o abate religioso no candomblé.
Judeus e mulçumanos possuem abate religioso, mas não são
demonizados por isso, o que evidencia o conteúdo racista por trás
dessa perseguição à prática no candomblé. Uma informação básica
negada pela mídia é o fato de o abate religioso no candomblé ser
parte da alimentação tradicional das comunidades de terreiro, e não
um ato sádico de tortura aos animais (NOGUEIRA, 2020, p. 97).

Para continuarmos comentando esse aspecto da demonização da consagração


animal nas religiões de matriz africana, retornaremos o texto de Marcelo Camurça que
lemos para aprender mais sobre a laicidade e o secularismo no Brasil. Nesse artigo,
Camurça comenta quatro configurações e cenários da laicidade no país. Até aqui,
analisamos três delas, ficando de fora o cenário da “ações jurídico-legais contra a
intolerância e vilipêndio religioso” (CAMURÇA, 2017, p. 877). Trazendo o exemplo de
articulações contemporâneas ao tempo de publicação de seu artigo, entre as religiões
afro-brasileiras com uma atuação pública e política de resistência ao racismo religioso,
Camurça apresenta casos que ocorreram em alguns estados brasileiros:

168
No Rio de Janeiro, em resposta à ação de traficantes ligados a
neopentecostais que expulsaram casas de Candomblé e Umbanda
do Morro do Dendê, Ilha do Governador, houve manifestação diante
da ALERJ e em seguida a constituição da Comissão de Combate à
Intolerância Religiosa (CCIR), em 2008, por iniciativa de religiosos de
matriz afro-brasileira (MIRANDA, 2010, p. 131). No Rio Grande do Sul
foi criada em 2002, na XI Semana da Consciência Negra, a Comissão
de Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (CDRAB), comissão esta
composta por intelectuais e militantes do Movimento Negro e
presidida por Mãe Norinha de Oxalá (ORO, 2007, p. 59). A Comissão
do Rio de Janeiro já encaminhou demandas ao poder público como:
a criação de um Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa,
a aplicação da lei que introduz nos currículos escolares do ensino
público a disciplina “História e Cultura Afro-Brasileira”, a criação de
uma delegacia especializada em crimes étnicos e raciais (MIRANDA,
2010, p. 131-134) e foi uma das promotoras da “Caminhada em defesa
da Liberdade Religiosa” que se realiza anualmente na orla da praia de
Copacabana (MIRANDA, 2010, p. 132). A Comissão do Rio Grande do
Sul atua em palestras nas escolas, organiza Seminários, participa de
sessões públicas no parlamento, inclusive já tendo ido à Brasília na
Câmara (ORO, 2007, p. 59). Esta comissão buscou ainda articulações
mais amplas no terreno jurídico, da mídia e da política, nesta última
conseguindo estimular candidaturas à vereança (em partidos como
PT, PDT e PSB) de lideranças do meio religioso afro-brasileiro, no
entanto, sem sucesso eleitoral (ORO, 2007, p. 62-65). A Comissão do
Rio de Janeiro parece ter uma ação mais efetiva, pois, com o auxílio
de um delegado de política e um promotor do Ministério Público
Estadual, além dos seus membros efetivos, acolhe denúncias de
supostas vítimas, encaminha e acompanha a queixa para registros
de ocorrências em delegacias policiais, em seguida propondo,
conforme o caso, denúncias no Ministério Público e formação de
processos cíveis e ações por danos morais (MIRANDA, 2010, p. 132-
135) (CAMURÇA, 2017, p. 878-879).

A comunidade afrorreligiosa, portanto, embora tenha sido perseguido ao longo


da história do Brasil, e desfavorecida no campo do estado e do espaço público, buscou
e continua buscando, maneiras de se articular com o poder público e garantir que sua
existência seja respeitada, assim como mostra ser necessário criar mecanismos de
criminalização do vilipêndio e racismo religioso. Essas ações, conforme veremos adiante,
estão articuladas com a noção de pluralismo religioso também, pois demonstram que
as religiões de matriz africana e seus adeptos são um complexo histórico-religioso-
cultural que antes de qualquer situação, querem existir e manifestar suas práticas sem
o julgo da intolerância e do racismo religioso. Essa comunidade, por exemplo, não tem
um projeto de proselitismo religioso. Assim, suas presenças nos espaços públicos estão
pautadas em outras modalidades, que como pudemos aprender, atendem a aspectos
de uma cosmologia afro-brasileira que, geralmente, dialoga com outras realidades
religiosas sem nenhum tipo de imposição ou superioridade.

169
Figura 4 – Sobre rascismo religioso

Fonte: <https://latuffcartoons.files.wordpress.com/2013/04/sai-tolerancia.gif>. Acesso 22 ago. 2022.

INDICA
Até aqui, aprendemos muito com vários autores e autoras. O professor Dr. Sidnei Nogueira
em especial, nos ensinou sobre as relações entre racismo e a perseguição às
religiões afro-brasileiras. Em 4 de março de 2021, Sidnei Nogueira proferiu a
aula pública: Racismo Religioso: a luta antirracista e contra-colonial,, de maneira
remota e exibida online na plataforma Youtube. Participaram do evento a
professora Dra. Cibele Henriques e a aluna de doutorado Silvana Marinho.
A Revista Senso, que já citamos nesse livro, além de publicar artigos sobre
a experiência religiosa, possui um podcast para tratar sobre assuntos
pertinentes a esse universo. É o Senso Cast: religião e cultura.. Vale escutar
o episódio “Religião e racismo” para aprendermos um pouco mais
sobre o racismo religioso e como ele é praticado e combatido no Brasil
contemporâneo.

4 O PLURALISMO RELIGIOSO
Vimos alguns exemplos de intolerância e racismo religioso. No caso do
racismo religioso sofrido pelas religiões de matriz africana, muitos dos protagonistas
são neopentecostais. Isso não significa que essa seja uma característica essencial da
religião. Nem que os católicos, por exemplo, estão isentos nesse processo. A questão
é muito mais complexa e dinâmica, e tem a ver, como aprendemos ao longo de todo o
livro, com questões sociais, culturais, políticas, históricas e daí por diante. Não temos
uma única resposta, nem podemos dizer que existe uma definição conclusiva do que
seria a religião, de uma maneira universal, ou uma religião em particular.

170
É apostando nessa complexidade, no diálogo e na incontornável realidade
de que vivemos em um mundo diverso, que existe a proposta do pluralismo religioso.
Como o nome mesmo diz, vem da pluralidade de ideias e práticas religiosas, sem que
uma possa subsumir as demais. É uma ideia utópica, pois aprendemos que há religiões
dominantes e religiões em contextos minoritários, mas ainda assim, é uma ideia e
proposta possível. As religiões de matriz africana, também, conforme veremos, são
liderança nesse aspecto: no diálogo respeitoso entre as diferentes religiões.

No Brasil, o debate sobre o pluralismo religioso se acende, geralmente, após os


dados sobre o censo do IBGE, que apresenta as informações sobre a pertença religiosa
da população brasileira. Uma série de entrevistas com intelectuais da área dos estudos
da religião para o Cadernos IHU – Instituto Humanitas Unisinos – da UNISINOS, tivemos
manifestações expressivas sobre o pluralismo religioso a partir dos dados do Censo do
IBGE de 2010, o último que foi realizado até o momento.

O censo 2010, refletindo uma tendência das últimas pesquisas,


mostra como a esfera religiosa no Brasil vai se diversificando. Ou seja,
a diversidade religiosa passa a ser sinalizada estatisticamente. Eu, até,
diria que existe uma espécie de explosão da diversidade, como que
reagindo contra os constrangimentos uniformes que precederam, na
história brasileira, de quase quatro séculos de religião católica como
religião oficial. Mesmo que isso tenha que ser considerado como um
fato, é também de se observar que essa “identidade social” religiosa
católica colada à brasilidade, mesmo que tenha sido, muitas vezes,
constrangedora a outros empreendimentos institucionais religiosos,
acabou sendo também um suave manto acolhedor de processos
de identidade diversificados, na esfera religiosa, com camuflagem
católica. Parte da grande diversidade religiosa que hoje explode
e passa a ter afirmação pública própria, mesmo que ainda não se
manifeste totalmente nas estatísticas, tem a ver com esse processo
histórico. A outra parte tem a ver, sobretudo, com confrontos
explícitos na esfera religiosa, pela via da afirmação do segmento
evangélico pentecostal e neopentecostal (FOLLMAN, 2012, p. 17-18).

Como acompanhamos até aqui, essa diversificação do campo religioso no


Brasil é fruto de transformações das esferas públicas, sobretudo no campo da política
e dos meios de comunicação. Parte dessa mudança, tem a ver com o declínio da
hegemonia católica, que é melhor percebida com a ascensão do número de adeptos e
de influência, no campo do poder, de evangélicos, sobretudo do segmento pentecostais
e neopentecostais.

171
Figura 5 – Distribuição percentual da população brasileira, por grupos de religião

Fonte: IBGE (2012).

Com os dados, podemos verificar essa transformação do campo religioso.


Contudo, vale lembrar que os dados sobre as religiões afro-brasileiras, indígenas e
afroindígenas, devem ser contextualizados. Aprendemos que o racismo constitui a
sociedade brasileira, e que essas religiões constantemente são vilipendiadas, criando,
por vezes, um sentimento de medo para que adeptos e participantes da religião se
afirmem enquanto afrorreligiosos. Há movimentos de autoafirmação dessas religiões,
entretanto, a constância da violência e a pouca representatividade política dessas
religiões, faz com que a situação permaneça.

Assim, Pierre Sanchis responde sobre a definição de pluralismo religioso e como


o censo expressa esse fenômeno:

Também falei acima em pluralismo. Que diz mais do que pluralidade,


simples percepção da existência de uma dimensão plural. Um novo
estado do mapa religioso e de suas relações internas – e externas,
que implica uma atitude de abertura, de diálogo, de predisposição
a certa relativização em função do encontro do outro. Se for assim,
é evidente que as instituições, em maior ou menor grau, conforme
a sua autodefinição como mediadoras de Sagrado, terão dificuldade
em assimilar esta nova situação. Uma dialética tenderá a se instaurar
entre afirmações de estrutura identitária e reformulações do estatuto
da verdade em modernidade (SANCHIS, 2012, p. 38).

Se pensarmos no Brasil de hoje, talvez a afirmação de Sanchis não faça mais


tanto sentido. De qualquer maneira, ela expressa uma ideia antropológica: o mapa da
diversidade religiosa no Brasil mostra que o país não comporta verdades religiosas únicas
e universais. Dessa maneira, a população, para conviver em sua diversidade religiosa,
deveria praticar a abertura e o diálogo. Esse também é o papel de instituições e líderes
religiosos que busquem traçar boas relações nesse contexto de pluralidade. Por isso,

172
também, a laicidade é fundamental nesse processo, pois garantiria uma certa igualdade
no jogo, apesar de já termos aprendido que na prática, não é assim que acontece, sendo
a laicidade e o pluralismo um horizonte utópico, mas almejado.

Ainda na entrevista, Pierre Sanchis reflete sobre o sincretismo religioso, tema


que geralmente é acionado quando pensamos também no pluralismo.

São múltiplas as pesquisas que detectam o fenômeno de múltipla


pertença quando se trata de identidade religiosa declinada a partir
de uma instituição, muito além dos 15.379 casos de “declaração de
múltipla religiosidade” mencionados no censo. Estas “declarações”
terão sido espontâneas? Induzidas? A experiência parece provar que
uma pergunta explícita é necessária. Sem dúvida, várias perguntas
são possíveis e seriam reveladoras. Lembro-me de uma, que deu
sempre amplos resultados. Depois da pergunta clássica sobre “Qual é
a sua religião?”, vinha aquela outra: “Tem outra religião que você diria
sua também?” Afinal, um censo precioso, porque retrato de nossa
realidade e incitação a modular este retrato. Em várias dimensões
(SANCHIS, 2012, p. 39).

A possibilidade de uma múltipla pertença religiosa se intensificou, também,


com os novos movimentos religiosos, os movimentos de Nova Era e o contexto das
espiritualidades. É o caso das religiões que são consideradas sincréticas e que configuram
diversas outras religiões, como no caso do Vale do Amanhecer. O que é diferente do
contexto do sincretismo nas religiões afro-brasileiras, pois como já aprendemos, em
uma sociedade onde o cristianismo foi dominante e imperativo, não podemos dizer que
o que se denominou de sincretismo afro-católico (FERRETTI, 2013) foi uma experiência
totalmente espontânea. Por outro lado, as religiões de matriz africana são reconhecidas
como religiões pluralistas, no sentido que aprendem com outras religiosidades e não
têm dificuldade em dialogar com elas.

IMPORTANTE
A múltipla pertença religiosa tem relação com o diálogo interreligioso
e o fenômeno do sincretismo. O sincretismo descreve uma realidade
misturada, que agrega dois ou mais elementos. Podemos dizer que todas
as religiões são sincréticas, pois não existe nenhuma religião livre de
influências externas. Religiões que conhecemos hoje como estabelecidas,
são fruto de um longo processo de interação e transformação de rituais,
cosmologias e mitologias. Na sociedade brasileira, entretanto, o fenômeno
do sincretismo é mais acionado para falar da realidade das religiões
afro-brasileiras. Contudo, devemos recordar que, conforme ressaltou o
antropólogo Sérgio Ferretti, “Todas as religiões são sincréticas, são frutos
de contatos culturais múltiplos” (FERRETTI, 2007, p. 106).

173
Portanto, vale relembrar que o pluralismo religioso é não somente consequência
da democracia, como é fundamental para a sua existência.

Uma das exigências de sociedades democráticas é justamente a


convivência dialogal entre as várias visões de mundo. Os diversos
sujeitos, individuais ou coletivos, numa sociedade plural, são
convidados constantemente a dialogar sobre as grandes questões
que estão colocadas, e a reconhecer o direito à diferença como
legítimo. Obviamente, isso se aplica também às religiões. De um lado,
elas são convidadas a contribuir na solução dos grandes problemas
humanos e, de outro lado, são convidadas a reconhecer a necessidade
da convivência até mesmo como uma necessidade de sobrevivência.
Por isso, em sociedades caracterizadas pelo pluralismo religioso, a
questão do diálogo interreligioso coloca-se como um imperativo e
como um desafio. Essa exigência não é fundamental apenas para as
próprias religiões, mas também para o conjunto da sociedade. Com o
diálogo inter-religioso todos ganham: a sociedade em geral, aqueles
que têm adesão religiosa e aqueles que não têm nenhuma referência
religiosa. A inexistência do diálogo inter-religioso, em contrapartida,
pode trazer problemas para as próprias religiões e para o conjunto
da sociedade. Quanto à pauta, levanto quatro itens que, penso, são
muito atuais: justiça, paz, defesa do meio ambiente e construção da
tolerância (SANCHEZ, 2012, p. 81).

Como o nome já diz, o diálogo interreligioso é, justamente, a relação entre as


religiões, sem que suas diferenças sejam esquecidas, ou mesmo aniquiladas. Diálogo,
portanto, implica em troca, comunicação e em uma transformação, mesmo, dos ele-
mentos que se relacionam, mas essa transformação é positiva, no sentido que no diálo-
go, nenhuma parte sairia dominada. Entretanto, já vimos que a nossa sociedade privile-
gia umas religiões em detrimento de outras, e que as relações de poder impossibilitam
que o diálogo aconteça dentro desse cenário equitativo. De qualquer maneira, apesar
dos desafios que acompanhamos, a sociedade brasileira, e as sociedades que querem
existir em democracias, com a convivência entre diferentes em suas expressões, o diá-
logo interreligioso se faz necessário, junto com o pluralismo e a laicidade.

174
LEITURA
COMPLEMENTAR
Religião à brasileira: diversidade e intolerância no país das contradições

Rita Grassi

O tema da diversidade religiosa no Brasil toca diretamente na nossa formação


identitária como povo. Desde os povos originários e suas cosmologias, passando pelo
catolicismo dos invasores europeus, pelos rituais trazidos pelos pretos escravizados
vindos da África e por tantas outras tradições trazidas pelos diversos fluxos migratórios
que vivemos ao longo da história. Somos um reflexo do diálogo, das interações e,
também, dos conflitos dessa pluralidade cultural e religiosa que nos perpassa.

Torna-se impossível, portanto, para esta que escreve tratar da diversidade


religiosa no Brasil a partir somente de dados e números históricos, demográficos,
geográficos, embora os considere absolutamente necessários. Falar de diversidade
religiosa é falar de minha própria história e da história de todos nós. Então, peço licença
para um breve relato biográfico.

Nasci em Minas Gerais, no fim da década de 1970, em uma família branca de


classe média, com antepassados italianos, portugueses e, é claro, indígenas e africanos.
Meus avós maternos, do interior de Goiás, eram católicos praticantes e, com eles,
sempre fui à missa, aprendi a rezar o terço, a cantar canções da Igreja, participei de
novenas, etc. Muito por causa deles, fui batizada e fiz primeira comunhão. Minha avó
paterna nunca “se assumiu” publicamente, mas sempre flertou com o espiritismo dito
kardecista. Lia os livros clássicos psicografados por Chico Xavier e outros médiuns, às
vezes me levava para tomar um passe e foi a principal responsável por eu ter procurado
um centro espírita, quando me dei conta de que tinha uma mediunidade muito aflorada.
Frequentei e trabalhei como médium em um centro espírita por 5 anos.

Meus pais são artistas e nos mudamos para o Rio no início da vida. Lá, tive
contato com todo o tipo de gente e de culturas diversas. Minha mãe sempre foi uma
buscadora espiritual e, com ela, tive a oportunidade de frequentar e conhecer diversas
práticas e tradições: o Santo Daime, a Self-Realization Fellowship (instituição fundada
por Paramahansa Iogananda, onde se pratica técnicas de meditação e ioga), o Mahikari
(movimento religioso moderno japonês, baseado no budismo), o movimento Hare
Krishna, a astrologia, o tarô, o I Ching (oráculos milenares de diferentes tradições e
filosofias)… Meu pai se diz ateu, mas tinha sido coroinha da igreja católica na infância e,

175
já adulto, frequentava o candomblé. À nossa volta, as pessoas viviam suas experiências
espirituais de forma muito livre e, hoje, paro e percebo a beleza disso e, também, o
quanto tudo mudou nos últimos 40 anos, em especial, a partir dos anos 2000.

É claro que, naquela época, os episódios de intolerância religiosa aconteciam


e que esse paraíso da diversidade em que eu vivia, era um recorte sócio-econômico-
cultural envolto de muitos privilégios. No entanto, percebo claramente o quanto essa
liberdade espiritual que se tinha há tempos atrás de transitar entre as diversas tradições
que compõem nossa identidade, não existe mais ou, pelo menos, não é mais tão
evidente. Mas, por que será que isso aconteceu?

Segundo Cláudio Ribeiro (2019), a diversidade religiosa ou o pluralismo religioso,


no Brasil, estão diretamente associados ao “que se denomina usualmente como ‘dupla’
ou ‘múltipla pertença religiosa’, de difícil compreensão e análise”, pois trata-se de experi-
ências que “em geral são ocultadas e, por isso, muito pouco avaliadas”. (p.13). E isto se dá,
muitas vezes, pelo fato dos próprios sujeitos não se sentirem de fato inseridos nesta ca-
tegoria, que está diretamente relacionada a uma “simbiose” entre os diversos elementos
que compõem historicamente nossa formação cultural e religiosa. No campo acadêmico,
essa experiência foi classificada por alguns teóricos de “religião à la carte”. Expressão ina-
dequada a meu ver, pois denota um certo desprezo por tais experiências que podem ser
tão ricas e profundas, ou mais, do que a experiência de se ter uma só religião ao longo de
toda a vida. Além de demarcar um território importante da liberdade religiosa.

O fato é que essa fluidez religiosa começou a se enrijecer quando a religião


passou a ser cada vez mais orientada por uma lógica mercadológica que disputa
fiéis como quem disputa mercado consumidor. Essa lógica veio acompanhada, não
por acaso, por uma crescente aproximação entre instituições religiosas e partidos
políticos. No caso brasileiro, essa aproximação deu-se em grande parte entre igrejas
neopentecostais e partidos da direita e da extrema direita, o que culminou com a eleição
de Jair Bolsonaro à presidência da república, em 2018. 1 Ora, tal lógica não pode ser bem-
sucedida dentro de um cenário de múltiplas pertenças e de diversidade religiosa, pois
torna-se necessário um acirramento de posições, uma polaridade que possa demarcar
o território e, assim, eliminar o “concorrente”.

Essa lógica mercadológica, portanto, associada à relação com as esferas do poder


político, fomenta o fundamentalismo religioso e, com ele, a intolerância religiosa. No caso
brasileiro, os atos de intolerância têm ainda como pano de fundo o racismo estrutural que
permeia as relações sociais desde o período da escravidão. Por isso, as religiões de matriz
africana tem sido as mais atacadas e atingidas, mas não são as únicas. A intolerância e
o preconceito acontecem e aparecem de diversas formas e em várias direções. Assim,
como aqui na França (onde vivo) e nos países ditos “do norte” de forma geral, há uma
generalização do Islã como sendo uma religião de radicais fundamentalistas, o mesmo
acontece no Brasil com relação aos evangélicos. Há, também, o preconceito com relação
àqueles que se dizem ateus e ateias ou sem religião.

176
Mas, como podemos romper este ciclo e reestabelecer a pluralidade da nossa
riqueza identitária cultural e religiosa?

Quando fui buscar a pós-graduação em Ciências da Religião, não fazia a menor


ideia de que o “pluralismo religioso” e o “diálogo inter-religioso” eram conceitos, temas de
pesquisa, disciplinas do campo dos estudos da religião. Então, percebi ali uma forma de
compreender essas diversas vozes que sempre conversaram dentro de mim e ao meu
redor. Não por acaso, comecei a pesquisar a obra de Raimon Panikkar (1918-2010), um
autor que declara sua múltipla pertença e que pensa a interculturalidade como método
para as Ciências da Religião. Proposta esta que estou pesquisando, neste momento, no
meu doutorado.

Outra proposta interessante do autor catalão sobre o assunto é o que ele chama
de “atitude pluralista”. Trata-se do reconhecimento de que somos capazes de apreender,
apenas, uma parte do mistério que envolve a realidade, – que podemos chamar de Deus
ou de qualquer outro nome que faça sentido para nós -, e aceitar que outras pessoas
apreendem outros pedaços, outras nuances, sentem outras texturas e outros relevos
deste mesmo mistério. O problema está quando acreditamos ser os detentores do
conhecimento sobre esse “mistério”. Ao reconhecermos que a nossa perspectiva é uma
das possíveis visões daquilo que vai além do que a nossa visão alcança, talvez (mas, não
necessariamente), alcancemos um “espaço comum”, onde essas diferentes perspectivas
pudessem se encontrar. Assim, podemos “[…] ouvir e respeitar o discurso dos outros,
entrar em diálogo com eles”. (PANIKKAR, 1996, p. 247). Seria preciso reconhecer que o
próprio ser humano é pluralista e não tem como conhecer toda a verdade, mas enxergar,
respeitar e estar aberto ao pluralismo inerente ao outro também. Dessa forma, a atitude
pluralista nos auxiliaria, então, a descobrir nossa própria identidade, nossa própria
visão de mundo, seja ela religiosa, cultural, filosófica ou política, ao reconhecermos a
diversidade que existe dentro de nós, na nossa própria complexidade.

Consideramos esta uma abordagem pertinente, principalmente, para nossa


prática cotidiana, porque enxerga uma harmonia na diversidade. Não se trata de abrir
mão de suas próprias visões de mundo para aceitar a do outro, mas de reconhecer que
sua perspectiva não é a verdade absoluta e estar aberto ao relacionamento com quem
pensa diferente. Nos parece uma visão pertinente, também, para a situação atual na
política brasileira, para as questões de igualdade de gênero, de liberdade sexual, etc.

Destacamos, também, a abordagem, desenvolvida por Cláudio Ribeiro (2020),


o “princípio pluralista”, que se constitui em um método hermenêutico, ou seja, um
instrumento de análise e de interpretação que pode ser utilizado tanto pela Teologia
quanto pela Ciências da Religião e suas subdisciplinas. Trata-se de uma abordagem
com grande potencial de bons resultados, tanto no ensino quanto nos estudos da
religião, dentro de um ambiente de complexidade multicultural, como é o caso brasileiro
e latino-americano. Tal princípio tem como “pilares conceituais” a teologia da alteridade
ecumênica e a perspectiva decolonial e apresenta possibilidades de uma aplicabilidade
bastante concreta na prática de diálogos inter-religiosos e interculturais.

177
Assim como Panikkar, Ribeiro destaca a importância de se considerar “as
particularidades, as singularidades e a concretude das vivências”, mas amplia esta
concepção – a partir do pensamento de autores e autoras como Homi Bhabha,
Boaventura de Sousa Santos, Kwok Pui-Lan, entre outras e outros – ao reconhecer a
formação de “novas culturas híbridas”, que ocorrem nesses “entre-lugares”, o que inclui
as múltiplas pertenças mencionadas anteriormente. O que Ribeiro nomeia de “alteridade
ecumênica” evoca: “as possibilidades de aproximações inter-religiosas”, a superação dos
paradigmas, “a visão de que cada expressão religiosa tem sua proposta salvífica e de fé,
que devem ser aceitas, respeitadas, valorizadas e aprimoradas”. (RIBEIRO, 2020, p.22).

Os dois conceitos enriquecem-se mutuamente e, bem articulados, podem ser


um excelente instrumento de análise para os estudos das religiões, não só no contexto
latino-americano, mas também europeu e norte-americano e diria que uma chave
fundamental para a aplicabilidade em diálogos inter-religiosos e interculturais. Um
estudo mais aprofundado dessa articulação estará no livro que será lançado ainda neste
semestre, O Princípio Pluralista em Debate, também organizado por Cláudio Ribeiro.

Ao olhar para trás para a minha própria história, penso que tenha sido
fundamental para a minha formação como cientista da religião, mas ainda mais como
ser humano, a exposição a diversas tradições e culturas. Inclusive para que eu pudesse
fazer minha opção por uma prática espiritual não-religiosa, mas que com toda certeza
traz influências dessa experiência plural.

O que fica claro, a meu ver, com relação à diversidade religiosa no Brasil é a
necessidade de que a informação e a educação estejam em consonância com esta
diversidade. Ou seja, quanto mais consciência se tem das diversas nuances que
compõem nossa identidade cultural e religiosa, mais se tem instrumentos de combate
à intolerância e ao preconceito. Tais instrumentos não são armas, mas argumentos,
gestos, palavras e, principalmente, ações. Agir em defesa da diversidade religiosa e
contra a intolerância e o preconceito. Enxergar as teias que compõem as relações de
poder que nos aprisionam a atitudes engessadas no radicalismo e no fundamentalismo
são consequências deste processo de conhecimento. Pois, conhecer outras religiões e
outras visões de mundo é conhecer a nossa própria história, a nossa identidade plural,
ainda que tenhamos fincado raízes em uma só tradição.

FONTE: GRASSI, R. Religião à Brasileira: diversidade e intolerância no país das contradições.


Revista Senso, Belo Horizonte, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3rmBtIo. Acesso em: 14 ago.
2022.

178
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu:

• Que a intolerância religiosa tem uma raiz no etnocentrismo e no medo e ódio ao


outro e a alteridade. Como fenômeno humano, atravessou praticamente toda a
história da humanidade, com intensidades diferentes. A intolerância religiosa,
portanto, se reforça quando há espaço para o fundamentalismo religioso e a crença
de que exista uma única religião possível.

• No Brasil, as religiões que mais sofrem ataques de intolerância religiosa são as


religiões-afro-brasileiras. Esse ódio é fruto do racismo religioso que constitui a
nossa sociedade. Portanto, quando se trata de religiões afro-brasileiras, o conceito
de racismo religioso é mais preciso para descrever as violências que essas religiões
sofrem.

• O pluralismo religioso seria o contrário da intolerância e do racismo religioso.


Acredita-se que o pluralismo é uma característica de sociedades democráticas.
Entretanto, assim como a laicidade, aprendemos que o pluralismo é um movimento
constante, geralmente utópico, que preza pelo diálogo interreligioso e a convivência
relativamente pacífica entre as diversas religiões.

179
AUTOATIVIDADE
1 A intolerância religiosa é um fenômeno antigo e bastante presente em nossa
sociedade. A respeito dessa prática, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A intolerância religiosa se fundamenta no estigmatizar uma pessoa e/ou grupo


religioso, considerando suas práticas anormais, aberrações e incompreensíveis.
b) ( ) Estigmatizar uma religião a partir de outra não configura intolerância religiosa, pois
a liberdade de expressão e culto permite que preconceitos sejam verbalizados e
praticados.
c) ( ) Apesar da intolerância religiosa ser um ato de desprezo em relação a religião de
uma pessoa e/ou grupo, nesse ato não se considera a religião atacada como
anormal e fora do padrão.
d) ( ) Apenas as religiões não-ocidentais praticam a intolerância religiosa, pois o
ocidente preza sempre pela liberdade.

2 O racismo religioso é um tipo de intolerância religiosa. Entretanto, denominar o


ataque, o preconceito e o ódio praticado contra as religiões de matriz africana de
intolerância religiosa, se faz insuficiente. A respeito do racismo religioso, analise as
sentenças a seguir:

I- Embora o racismo religioso seja uma prática de ódio para com a origem étnico-racial
das religiões afro-brasileiras, ele pode ser utilizado para descrever o preconceito que
cristãos brancos sofrem no Brasil.
II- A intolerância e o racismo religioso, basicamente, é fruto do medo do outro. Ela é
sempre direcionada para pessoas praticantes do candomblé, pois a umbanda é uma
religião bem aceita em nossa sociedade.
III- O racismo religioso é um ato contra a existência de pessoas e religiões afro-
brasileiras.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.


b) ( ) Somente a sentença II está correta.
c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.
d) ( ) Somente a sentença III está correta.

3 O pluralismo religioso é um fenômeno de convivência entre várias religiões dentro de


uma mesma sociedade. De acordo com esse tipo de pluralismo, classifique V para as
sentenças verdadeiras e F para as falsas:

180
( ) O pluralismo é fruto da diversificação religiosa dentro de uma sociedade. Quanto
menos concentrado for o poder em uma única religião, maior a possibilidade de
pluralismo e diálogo interreligioso.
( ) O pluralismo religioso é um fenômeno secular, pois religiosamente, nenhuma
religião permitiria que outra fosse considerada legítima.
( ) A laicidade, como regulação do religioso e tentativa de garantia de equilíbrio
de direitos para grupos religiosos distintos, é fundamental para a existência do
pluralismo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.
b) ( ) V – F – V.
c) ( ) F – V – F.
d) ( ) F – F – V.

4 O pluralismo religioso, no Brasil, é fruto da diversificação religiosa. Embora tenha uma


hegemonia cristã, o país abriga adeptos de várias religiões. Para que a experiência
da liberdade religiosa exista e seja democrática, o pluralismo e a laicidade se fazem
essenciais. Nesse contexto, disserte sobre o pluralismo religioso e a intolerância
religiosa.

5 O contrário da intolerância religiosa poderia ser a tolerância religiosa. Entretanto,


lideranças afrorreligiosas e intelectuais questionam o sentido do tolerar. A respeito
dessa constatação, disserte sobre a diferença entre tolerar e respeitar.

181
REFERÊNCIAS
ASSIS, G. L.; RODRIGUES, J. A. De quem é a ayahuasca? Notas sobre a
patrimonialização de uma “bebida sagrada” amazônica. Religião & Sociedade, v. 37,
n. 3, p. 46-70, 2017.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Alimento: direito


sagrado - pesquisa socioeconômica e cultural de povos e comunidades tradicionais de
terreiros. Brasília: MDS-Sagi, 2011.

CAMURÇA, M. A questão da laicidade no Brasil: mosaico de configurações e arena de


controvérsias. Horizonte, v. 15, n. 47, p. 855-886, 2017.

CAMURÇA, M. Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmica e interlocuções.


São Paulo: Paulinas, 2008.

CAMURÇA, M. Estilos de espiritualidade como critério para tipologias e interpretações


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