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COLEÇÃO ENSAIOS CONTEMPORÂNEOS

COORDENAÇÃO: Eduardo Jardim


@Bazar do Tempo, 2020
@da tradução, Márcia Sá Cavalcante Schuback, 2020
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n. 9610 de 12.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
EDIÇÃO: Ana Cecilia Impellizieri Martins
ASSISTENTE EDITORIAL: Catarina Lins

TRADUÇÃO E NOTAS: Márcia Sá Cavalcante Schuback


REVISÃO: Elisabeth Lissovsky

PROJETO GRÁFICO: estúdio \o/ malabares - Julieta Sobral e Ana Dias


DIAGRAMAÇÃO E CONVERSÃO PARA EPUB: Cumbuca Studio

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

V257a Valéry, Paul, 1871-1945


A arte de pensar : ensaios filosóficos /
Paul Valéry ; tradução, notas e introdução Marcia Sá Cavalcante Schuback. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Bazar do Tempo, 2020.
300 p. ; 19 cm.
Tradução de: Essais philosophiques
e-ISBN 978-65-86719-48-2
1. Filosofia francesa. 2. Ensaios franceses. I. Schuback, Marcia Sá Cavalcante. II. Título.
20-67007
CDD 860.9
CDU: 1(44)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação 2019 Carlos


Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio
do Ministério da Europa e das Relações Exteriores.
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication 2019
Carlos Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au Brésil, bénéficie du
soutien du Ministère de l’Europe et des Affaires Étrangères.
BAZAR DO TEMPO
Produções e Empreendimentos Culturais Ltda.
Rua General Dionísio, 53 – Humaitá
22271-050 . Rio de Janeiro . RJ
contato@bazardotempo.com.br / www.bazardotempo.com.br
Sumário
Capa
Folha de Rosto
Créditos
INTRODUÇÃO
DUAS CARTAS EM TORNO DE
NIETZSCHE
SOBRE A EUREKA

NO COMEÇO ERA A FÁBULA


PEQUENA CARTA SOBRE OS MITOS
LEONARDO E OS FILÓSOFOS
FRAGMENTO DE UM DESCARTES
DESCARTES
UMA VISÃO DE DESCARTES
SEGUNDA VISÃO DE DESCARTES
O RETORNO DA HOLANDA
DISCURSO AOS CIRURGIÕES
REFLEXÕES SIMPLES SOBRE O CORPO
ESTUDOS E FRAGMENTOS SOBRE O
SONHO

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
BIBLIOGRAFIA DE PAUL VALÉRY
INTRODUÇÃO

Por um modo de pensar poético

Ce qu’a fait Valéry devrait être tenté.


O que fez Valéry deveria ser tentado.
Henri Bergson

Marcia Sá Cavalcante Schuback

D esde tempos remotos, a filosofia viu-se tentada pela poesia. Para


Platão, a tentação poética foi tão grande que ele se sentiu
obrigado a expulsar a poesia de sua República filosófica.
Aristóteles preferiu domá-la e adestrá-la na sua Poética. Entre a filosofia e a
poesia vem se travando, desde então, uma luta entre incontáveis oposições,
entre o conceito e a imagem, a prosa e o verso, a razão e a emoção, o
imperativo do universal e as atividades do singular, a certeza das verdades e
a verdade das incertezas e sondagens, a visão sem imagens e as imagens
visionárias. Contudo não ficaram ausentes as várias tentativas de reunir
filosofia e poesia, quer nos projetos românticos e modernistas de uma
filosofia poética ou de uma poética filosófica, em poéticas conceituais e
concepções poéticas. Por mais tentadoras que tenham sido e continuem a
ser essas investidas de reunião e síntese ou aquelas de fazer aparecer a força
criadora do hiato e da cesura entre ambas, mantém-se como premissa
incontestada que filosofia é a forma exemplar do pensamento, e poesia, a
expressão última do sentimento. Assim, reconhecer na poesia uma atividade
de pensamento seria reconhecer a sua parte filosófica, a sua filosofia e, no
reverso da relação, descobrir na filosofia uma emoção seria atribuir-lhe uma
parte poética, a sua poesia. No dilema das oposições, esquece-se, porém,
facilmente que o contrário da filosofia ainda não é poesia, mas não
filosofia. O mesmo se pode dizer com relação à poesia. O que mais
surpreende é como a longa história dessas oposições raras vezes chegou a
admitir que a filosofia é apenas uma forma de pensar e, assim, que a poesia
possa ser uma forma singular de pensar como a pintura, a música, o teatro, a
dança e as demais artes e suas misturas. É possível admitir que há não
apenas uma poética do pensar, mas um modo de pensar poético que se opõe
à filosofia de maneira bem mais enfática do que a forma poética e a poética
das formas.
Poucos poetas buscaram aclarar o modo de pensar poético como Paul
Valéry. Seus ensaios e miscelâneas, seus aforismas e croquis de ideias, seus
diários e cadernos de pensamento testemunham e expõem o que aqui
chamamos de modo de pensar poético. Esse modo de pensar é poético por
ser um modo atento ao ato de pensar. Aqui o termo poesia tanto reafirma o
sentido grego de seu étimo, que significa “fazer”, como o torna mais
preciso ao acentuar o modo próprio desse fazer. O modo de pensar poético é
o modo do pensar que se surpreende pensando, ou seja, na dinâmica própria
de seu gerúndio. Assim, nesse modo de pensar, o que está em questão não
são os pensamentos, os conceitos, as inferências e conclusões, os
encadeamentos e a coerência e ainda menos a correspondência entre formas
linguísticas e conteúdos da experiência ou entre a mente e a realidade. O
modo de pensar poético dedica-se a seguir atentamente os movimentos do
estar pensando e os caminhos inauditos do seu vir à linguagem. Sua
linguagem é poética não por escolher conteúdos e imagens tocantes e
emocionantes, mas por emergir na atenção ao ato de pensar tornando-se
linguagem. Num poema intitulado “Debruçado sobre os cadernos de Paul
Valéry”, podemos ler como João Cabral de Melo Neto descreve esse
pensamento que não se cansa de se pensar pensando:
Quem que poderia a coragem
de viver em frente da imagem
do que faz, enquanto se faz,
antes da forma, que a refaz?
Assistir nosso pensamento
a nossos olhos se fazendo,
assistir ao sujo e ao difuso
com que se faz, e é reto e é curvo.
Só sei de alguém que tenha tido
a coragem de se ter visto
nesse momento em que só poucos
são capazes de ver-se, loucos
de tudo o que pode a linguagem:
Valéry – que em sua obra, à margem,
revela os tortuosos caminhos
que, partindo do mais mesquinho,
vão dar em perfeito cristal
que ele executou sem rival.
Sem nenhum medo, deu-se ao luxo
De mostrar que o fazer é sujo.1
Como assistir o pensamento se fazendo aos nossos olhos, que “partindo
do mais mesquinho vai dar em perfeito cristal”? Como ver essas
movimentações do pensar, o em-se-pensando que escapa e excede tudo o
que se pensa, sempre esquecido em tudo o que lembra o pensamento?
Como ver o que não se deixa fixar em nenhuma forma e imagem, em
nenhum conceito ou palavra, resguardando-se num esquecimento
irreversível, um pensar em serpentina? Na atenção poética ao pensar se
pensando, Valéry formulou o que poderia ser considerado um método
lacunar, esse de “reencontrar a coisa esquecida, olhando para o
esquecimento”. Mas como olhar para o esquecimento? Valéry propõe ao
menos duas vias, sempre conjugadas. Primeiro, atentando para a distância
entre o que se fixou como memória, seja um pensamento, um conceito, uma
máxima, uma lei, um princípio ou uma formalização, e o eco do instante
fugidio de seu surgimento. Na impossibilidade tanto de guardar esse
instante como de esquecer as formas por ele fixadas, resta “um intervalo
indeterminado entre o embrião de uma ideia e a entidade intelectual em que
pode se tornar”,2 subsistem as linhas da distância entre a movimentação e
as formas, os riscos da tensão entre o movimento de pensar e a rigidez do
pensado. O olhar do esquecimento pelo qual se torna possível reencontrar a
coisa esquecida é um olhar “fotopoético”, para usar outra expressão de
Valéry, capaz de ver surgir na forma fixa o “negativo” das linhas e riscos do
“em se formando” de uma forma, os esboços vagos e efêmeros do surgir de
um pensamento no já pensado. A segunda via é acolher incondicionalmente
o convite do acaso em qualquer circunstância e, assim, reaprender a ver,
pensar, sentir e ser a partir do acaso, de tal modo que abrir os olhos e pousá-
lo num objeto é fazer um “lance de dados”, é “tornar puramente possível o
que existe e reduzir o que se vê ao puramente visível”.3 Surge aqui um
extraordinário ensinamento: olhar para o esquecimento é ver tudo pelas
lentes do acaso e, assim, seguir as linhas, riscos e esboços do estar vendo
em tudo o que se vê, do estar pensando em tudo o que se pensa. É aprender
a ver a invisibilidade do visível no objeto, “o elemento de desconhecido que
[lhe] concede o valor de infinito”4 e de enigma, na existência, a força
criadora da não existência e, no possível, a obra do impossível.
Esse acolhimento sem fim do acaso aparece de maneira enfática em seus
ensaios. Considerados por Valéry como “impromptus, surpresas da atenção,
germes; de modo algum produções elaboradas, retomadas, consolidadas,
colocadas por cálculo numa forma...”, os seus ensaios são movimentações
de um pensamento em movimento, de um olhar que, para ver, precisa antes
ver que vê. Desse modo, expõem como o estar sendo é o prisma de um
pensamento que, semelhante ao sonho, “não se distingue do viver e nem se
atrasa em relação a ele. Adere ao viver – adere inteiramente à simplicidade
do viver, à flutuação do ser sobre as fisionomias e as imagens do
conhecer”.5 Esses ensaios são lições de pensamento vivo.
Valéry escreveu ensaios sobre numerosos temas: literatura, poesia, arte,
política, educação, ciência e também filosofia. Os ensaios que compõem o
presente volume receberam na edição brasileira o título A arte de pensar –
ensaios filosóficos. O livro abre com duas cartas em torno de Nietzsche,
dirigidas aos escritores André Gide e Guy de Pourtalès, redigidas por
Valéry quando jovem; em seguida, os ensaios filosóficos são apresentados
em ordem cronológica e se estendem até pouco antes de sua morte. A
edição encerra com outro texto de juventude: “Estudos e fragmentos sobre o
sonho”. A escolha de finalizar o volume voltando a um texto do início de
seu percurso intelectual deve-se à natureza desse estudo denso e à
atualidade de enfrentar a obscuridade do sonho na vida humana. Expondo a
tensão entre o modo de pensar poético de Valéry e a filosofia propriamente
dita, esses textos são lições de ensaio de pensamento. As reflexões sobre o
sonho, a fábula e o mito mostram como, nesse modo poético de pensar,
cada objeto percebido pela alma do olhar ou pelo olhar da alma é visto,
descrito, ouvido, em suma, pensado em sua contínua variação, em suas
contradições e hesitações, em seus possíveis e impossíveis. Cada coisa
surge de dentro de um jogo de força das luzes e sombras que a
acompanham, das figuras abstratas desenhadas pelo espaço entre as coisas.
Cada ponto mostra a linha infinita de que é sinal. Tudo se expande pela
nitidez da imaginação. E, em qualquer temática, pode-se acompanhar o
pensamento pensando o seu próprio gesto como uma mão atenta às ações da
mão enquanto traça os seus traços, por ser essa a única via de acesso ao
coração das coisas, quando a coisa é acolhida como chegada inesperada e
movimento imprevisto.
Nas cartas a Gide e a Pourtalès em torno de Nietzsche,6 Valéry mostra
que lê esse filósofo mais como um escritor, discordando de como Nietzsche
quis fazer da violência uma filosofia ao se manter indiferente à questão da
indiferença. No ensaio sobre a Eureka, de Edgar Allan Poe, surpreende que
um pensador das linhas e riscos, que “prefere o acaso ao nada e o caos ao
vazio”, que dedicou ao sonho incontáveis estudos e fragmentos, possa
empenhar-se com tanto afinco por compreender as revoluções da ciência
moderna e acompanhar com paixão os experimentos científicos da virada
do século XIX para o XX e as novas teorias deles resultantes e confirmadas.
É de admirar como o seu modo poético de pensar descobre, na exatidão da
ciência, a “crise do espírito” que, deparando-se com o paradoxo de uma
certeza que gera o imprevisível, de um controle que produz o incontrolável,
confirma a necessidade de experimentar com o sentido do imprevisível, do
incontrolável e do desconhecido, na era do esvaziamento do espírito pelo
excesso e controle de uma racionalidade técnica e totalitária.
É também fascinante descobrir que Valéry elege Descartes como o “seu”
filósofo. Nada pode parecer mais avesso ao modo de pensar poético de
Valéry e da sua poética do vago e do acaso, do esboço e do imprevisto do
que a imagem consagrada da filosofia cartesiana, sustentada na
transformação do sentido de verdade em certeza, na busca de uma ciência
universal capaz de explicar tudo em termos de ordem e medida – o famoso
sonho de uma mathesis universalis – e na separação de corpo e alma. Ao
contrário de Sócrates, que tem um lugar na sua obra como inspirador de
seus diálogos poéticos, e de Nietzsche, que o fascinou por lhe ter feito
resistir à sua filosofia, Descartes é para Valéry o filósofo mais próximo do
seu modo poético de pensar.
Como Valéry encontra a si mesmo em Descartes? Nos vários ensaios
sobre Descartes, acompanhamos como Valéry leva o pai do racionalismo
moderno ao pé da letra, lendo e pesando todas suas palavras bem de perto.
Descartes é para ele o grande pensador escritor, que pensa “enquanto
escreve” e faz da escrita o método mais direto para a direção de seu espírito.
É seguindo as premissas de uma escrita que pensa enquanto e como escreve
que Valéry lê a filosofia cartesiana. Descartes é um homem das distâncias,
des écarts, como se diria em francês. Não das distâncias de um técnico que
se pretende mestre possuidor da natureza, mas das distâncias operantes na
escrita e na leitura. São distanciamentos que levam a uma aproximação
intensa de si mesmo. Se há dualismo em Descartes, seria aquele entre corpo
e escrita. Escrever e ler são exercícios de entrar no mundo saindo do que
nos circunda, de adentrar fundo em nós mesmos deixando por um tempo o
que somos. É o que Valéry identifica no cogito cartesiano e literalmente na
sua formulação tornada proverbial: eu penso logo existo. Dessa “frase
encantatória”, ele adota cada palavra como uma infusão de experiências da
escrita pensante.
Na sua escrita e leitura silenciosas, o “eu” cartesiano, o “egotismo” da
sua filosofia é lido como o hieróglifo de um mistério humano demasiado
humano, o mistério do mais singular ser e, ao mesmo tempo, o mais
universal. Escrita, a palavra “eu” pertence a qualquer um. Lida, o “eu” é
tomado como só meu. Ouvida, a palavra “eu” emerge como voz dizendo
“eu”, entreabrindo um “universo lírico incomparável”. Em sua leitura rente
ao dizer de Descartes, Valéry atenta igualmente para como o verbo pensar é
conjugado não apenas no presente – eu penso – mas sobretudo no gerúndio
– estou pensando, sou pensante. A consciência cartesiana deixa de ser vista
como um pensamento que coisifica o ser para dar acesso ao que só é no
modo que o estar pensando é. A expressão cartesiana res cogitans é
traduzida, nessa leitura literal, por ser e estar pensando, para o que se vê
existente nesse pensamento in actu, na forma verbal de um gerúndio.
“Existo” diz assim o que existe como um estar sendo, revelando um modo
de existência que excede toda existência, seja real ou ideal, espiritual ou
corpórea. Pois é o modo do que só existe enquanto está se fazendo, o modo
do ato da existência, ele mesmo inexistente, pois desconhece toda solidez
do que é isso ou aquilo, apresentando a determinação do puro
indeterminado, a consistência do hesitante. Por fim, o “logo”, no “penso
logo existo”, é entendido como “enquanto”. Devolvendo o sentido de
cogito (eu penso) ao cogitans (sou e estou pensando), Valéry traduz o moto
cartesiano para “eu estou pensando e esse enquanto me entreabre um outro
sentido de existência”, revelando Descartes como um pensante e não um
autor de pensamentos, a sua filosofia como uma experiência do pensamento
se fazendo e não como uma doutrina sobre as regras do pensamento correto.
Na leitura desse filósofo tão acusado de ter separado o corpo do homem
moderno de sua alma e de ter esquecido a sua união, Valéry faz duas
grandes descobertas. A primeira diz respeito ao presumido ceticismo de
Descartes. Longe de um olhar que se fecha ao mundo, Valéry descobre em
Descartes alguém que está olhando o olhar e não as coisas. O assombro da
dúvida sobre a existência do mundo e sobre o mundo da existência
transforma-se, assim, numa condição pictórico-poética. É que ao se voltar
para o olhar olhando, não importa muito o que se vê mas como se vê, a
própria dinâmica do olhar vendo e sendo visto. Não é, portanto, sem
importância que Descartes tenha feito questão de ilustrar a sua Dióptrica
com um homem vendo o olho ver.

Encontrando em Descartes uma consciência da necessidade de prestar


mais atenção ao ato da visão do que às coisas vistas, Valéry aproxima
Descartes dos pintores e particularmente de Leonardo da Vinci que, para
ele, é o grande exemplo da pintura enquanto forma de pensamento. As
imagens cartesianas de mundo são linhas, formas e volumes, e até mesmo
as cores são por ele descritas como figuras. Tomado pela obsessão de ver o
ver e não as coisas vistas, a distância cartesiana do mundo não se distingue
para Valéry daquela que guia a visão do pintor, que vê em tudo pintura,
relação entre linhas, formas, volumes e figuras. Ademais, escrever, traçar
linhas no papel, é desenhar, e desenhar é entender o se fazendo enquanto se
faz. Valéry mostra o inaudito parentesco entre o “eu estou pensando e esse
enquanto me entreabre um outro sentido de existência” e o estou vendo as
mãos traçarem as linhas do ver as coisas (e não o contorno das coisas
vistas). Assim, pensador e pintor descobrem um fundo comum: o fundo do
estar sendo como espaço e tempo da existência se vendo e pensando existir.
É o que também nos traz o ensaio “Leonardo e os filósofos”.
A segunda descoberta diz respeito ao enigma do corpo extenso.
Descartes foi louvado por muitos na Modernidade por ter propiciado as
bases racionais para uma observação científica do corpo e uma
representação objetiva das coisas. O corpo cartesiano se apresenta em
vários de seus escritos como um corpo morto, pronto para ser examinado e
dissecado, uma massa ou substância, que Descartes qualificou de extensão,
redutível a uma figura capaz de ser medida e ordenada num sistema de
coordenadas racionais. Longe de indignar-se com essa visão cartesiana do
corpo extenso, Valéry demonstra a semelhança entre o pensamento do corpo
em Descartes e os estudos pictóricos do corpo feitos por Leonardo da Vinci.
Indica como o olhar meticuloso do corpo e da máquina que guia os
desenhos de Leonardo ensinam mais sobre Descartes e seus sonhos de
reunir pensamento e ciência do que o contrário. Faz aparecer igualmente
um sentido pictórico da universalidade que desafia as práticas
unidimensionalizantes. Assim, o corpo extenso cartesiano pode mostrar-se
como uma “extensão da alma”,7 seguindo a leitura feita por Jean-Luc
Nancy décadas depois, e não como a sua exclusão.
Se o corpo é “extensão da alma”, então pode-se falar de uma alma do
corpo distinta, mas de modo algum separada da alma da alma. O corpo tem
uma vida própria, toda corpórea, impenetrável a olho nu, não por se
confundir com uma massa fundada e fundida nela mesma, tal uma
excrescência, como Santo Agostinho chegou a sugerir, e fechado nele
mesmo. Enquanto Nancy vai propor em suas leituras também
revolucionárias de Descartes8 que o corpo cartesiano é extenso por ser
aberto e exposto, um corpo que só possui um para fora, mas que Descartes
só consegue descrever com base numa mecânica simplificada, Valéry dá um
passo além em seu “Discurso aos cirurgiões” e em “Reflexões simples
sobre o corpo”. Nesses textos, Valéry formula a sua teoria do corpo.
Investiga a interioridade desse exterior. O corpo que é extenso por ser
exterior possui todo um mundo interior de órgãos e glândulas, veias e
artérias, canais e reflexos, que precisam se proteger da luz e do ar, furtando-
se à visão e à escuta, ao toque e ao cheiro. Valéry descobre pelas mãos do
cirurgião, uma carne viva dentro do corpo cartesiano, as tessituras e os
ligamentos de seus canais e fluxos de vida, sua proximidade das grutas
terrestres e profundezas marítimas, as “linhas de universo” abrigadas nesse
estranho esconderijo da vida sob a pele. Desse modo, ele propõe uma teoria
sobre a existência concomitante de quatro corpos: um primeiro corpo que é
o meu corpo, um corpo que só concede instantes; um segundo que é o corpo
visto pelos outros, que nos propicia visões; um terceiro que é o corpo
ocupado com as difíceis ações de unir o que separa e separar o que só existe
unido, que forma figuras indecifráveis; e um quarto corpo, corpo real por
ser imaginário, “uma maneira de encarnação”. O corpo encarnado de Valéry
é um corpo encarnado na alma. Com isso, não apenas libera Descartes do
cartesianismo e do dogmatismo filosófico, como nos libera um corpo aberto
para encontrar nos segredos de suas cavidades os fios que ligam a vida
humana à vida da natureza, animal e vegetal, cósmica e ancestral.
Uma tradução dos textos de Valéry sobre Descartes já existia em
português desde a década de 1950. A necessidade de retraduzi-los provém
do foco sobre o modo de pensar poético de Valéry enquanto um surpreender
incansável do pensamento se pensando, dos seus esboços de serpente, como
descreveu o próprio Valéry no poema “A serpente”, traduzido por Augusto
de Campos. A linguagem poético-teórica de Valéry apresenta
especificidades e correspondentes dificuldades. Tentei, portanto, simplificar
algumas frases excessivamente longas e por vezes “domesticá-las” para o
nosso português. Optei por traduzir a palavra “esprit”, que em francês
significa tanto espírito como mente, sempre por espírito, o que obriga o
leitor, espero, a ampliar a sua noção de “mente” e a liberá-la do biologismo
hoje tão dominante.
Esses ensaios foram escritos entre 1909 e 1943, anos de profundo abalo
dos valores humanistas que nortearam discursos filosóficos e estéticos
durante séculos. Valéry referiu-se a esses tempos como aqueles de uma
“crise do espírito”, pois são os tempos do surgimento dos grandes regimes
totalitários impensáveis sem o papel da ciência, da tecnologia, da
informação e da propaganda. Tempos da crise do espírito são tempos do
abalo da capacidade do pensamento transformar a vida humana para a sua
liberdade crítica, tempos em que as ideias reduzem-se a ideologias, tornam-
se cárceres da liberdade, exercidas na violência do sectarismo, dogmatismo,
fundamentalismo e fanatismo das injustiças, desigualdades e mecanismos
de segregação. Falecido em 20 de julho de 1945, Valéry viu o fim da
Segunda Guerra Mundial, mas dificilmente poderia imaginar que a
violência da história contemporânea haveria não somente de continuar, mas
de encontrar formas mutantes e desconhecidas. Esse é o momento que
estamos vivendo no mundo e também no Brasil. Enfrentamos a perda de
clareza dos pensamentos, a sua deturpação e manipulação através dos meios
de comunicação e das redes sociais e a mobilização de tudo contra a vida do
pensar. Através da velocidade de sua midiatização e “viralização”,
assistimos a uma guerra de palavras que, como cascos vazios, podem
receber qualquer sentido. Trata-se do fenômeno da ambiguização contínua
dos sentidos, de sentidos censurando a si mesmos. Tempos de crise do
espírito são tempos de crise da palavra. A palavra não consegue mais
manter a sua palavra. Daí a tremenda necessidade de se atentar para o vir à
palavra de um movimento de pensar, de uma atenção ao atentar, de olhar o
olhar, de existir para a possibilidade da própria existência. Em tempos da
manipulação global do pensamento e da palavra, torna-se premente a
atenção e o cuidado com o instante em que os pensamentos se tornam
palavra e as palavras nos dão a pensar. Em tempos do totalitarismo da
imagem, torna-se urgente aprender a olhar o olhar olhando para que seja
possível fazer a experiência do que seja não só entrever – saídas, soluções,
mas também um entreolhar-se e entreouvir-se. Urge “assistir ao pensamento
se fazendo aos nossos olhos”, à palavra se dizendo em nossa boca, e
inventar novas formas de pensar o dizer e dizer o pensar, de maneira a
aprender modos livres de existência com o acaso, o vago e o imprevisível.
Esse volume busca apresentar um pouco do que faz Valéry ao pensar
poeticamente a filosofia e motivar que “isso que fez Valéry deveria ser
tentado”, no momento em que o mundo é tentado pela destruição de toda
vida. A ser tentado é o modo de pensar poético enquanto o modo de uma
atenção ao se fazendo da vida, que, para Valéry, é “um transformar-se no
incompleto”.

1 João Cabral de Melo Neto, “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry”, in Obra completa.
Volume único, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 559-560.
2 Paul Valéry, ”Avant-Propos à Analecta”, in Oeuvres II, Paris: Pléiade, Gallimard, 1960, p. 701.
3 Paul Valéry, ”Meditation avant pensée”, in Poésie brute, Oeuvres I, Paris: Pléiade, 1957, p. 351.
4 Paul Valéry, “Amor” in Mélanges, op. Cit, Oeuvres I], p. 316.
5 Em francês, conhecer é connaître que, literalmente, significa co-naître, conascer, nascer junto.
(N.T.)
6 Essas cartas compõem um material sobre Nietzsche publicado somente em 2003 e que não faz parte
da edição La Pléiade de sua obra completa. Cf. “Paul Valéry: Lettres et notes sur Nietzsche”, Michel
Jarrety (ed.), in Bulletin des études valéryennes nº 93, ‘De l’Allemagne’ — v. II, p. 41, 43-90, mars
2003.
7 Cf. Jean-Luc Nancy, Corpo, fora, Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
8 Cf também Jean-Luc Nancy, Ego sum. La philosophie en effet, Paris: Flammarion, 1979.
DUAS CARTAS EM TORNO DE NIETZSCHE9

9 Valéry lê as primeiras traduções de Nietzsche em francês feitas por Henri-Albert Haug, que dirigia
a seção de “Literatura alemã” no Mercure de France e também a revista Le Centaure, onde Valéry
publicou vários poemas. Tem em mente escrever um estudo sobre Nietzsche e para isso redige várias
notas. Valéry não termina esse estudo. Além dessas notas preservadas e publicadas por Les Editions
de la Coopérative em 2017, há algumas breves cartas aqui traduzidas, em que Valéry expõe suas
impressões sobre Nietzsche, essa para André Gide, amigo de toda a vida, e outra para Guy de
Pourtalès, autor de várias biografias, dentre as quais uma das primeiras sobre Nietzsche. (N.T.)
A André Gide

Sexta-feira, 13 de janeiro de 1899


Meu caro André,

Quero pedir a você os 56 francos e 25 centavos… Dujardin deu certo.10

Seu
Valéry

P.S – Li minha cópia de Ermitage com devoção. O Prometeu é bom. Mas espero o final para fazer a
minha apreciação.
Quanto a Nietzsche, diabos! Tenho a impressão (se entendi, o que não é
seguro) que você se obriga demais a lhe atribuir uma unidade. Para mim ele
é antes de tudo Contraditório.11 Por exemplo, ele esgota A pelo método B e
depois demole B, conservando mesmo assim os dois esgotamentos.
No todo, há, porém, coisas admiráveis, ingênuas e inúteis; é preciso, no
entanto, escolher o que serve e retornar seja a Stendhal, seja a Descartes,
pois não há uma via intermediária possível. Na maior parte das vezes,
capítulos inteiros são, como diria o seu secretário,12 de uma gratuidade
tenebrosa.
Aos meus olhos, o grande erro dele é querer fazer da violência uma
filosofia. O resultado é Mauclair,13 claro!
Nele, o mais divertido é o ar arrogante e a preocupação ética – coisa que
sempre me faz rir – pois, no final das contas, é papo de botequim. Ele quer
trabalhar sobre a moral e não vê que o fundo moderno dessa questão é a
indiferença bem apresentada.
Além disso, você observou o maravilhoso truque do Super-homem? Com
isso, ele pode ser ao mesmo tempo otimista e pessimista, daí as páginas
diversificadas etc., romântico e clássico etc., ad libitum.
Estou bem interessado na sua moral do mestre e do escravo, mas quanto
jogo de palavras! Mas eu perdoo já que ele é “por um pouco mais de
consciência”,14 antiga mania minha. Foi uma espécie de moral ou de mania
que me fez ficar obstinado com a busca de formas de pensamento e
principalmente daquelas que ficaram desconhecidas para os surpreendentes
lógicos de outrora, os filósofos que lhes sucederam e sobretudo aqueles que
mais fazem uso delas, os artistas, os imaginadores etc.
Eis por que Nietzsche “não nos ensina muita coisa – diretamente”.15 A
novidade alcançada é, no meu entender, uma combinação do individual –
rico, múltiplo etc., com o simples ou geral.
Mas é um autor muito sugestivo, pois traz muitas coisas reunidas e bem
diferentes numa só página.

10 Quando Valéry volta a Valvin, em setembro de 1898, duas semanas após a morte de Mallarmé, ele
se dá conta de que não consegue pagar o aluguel do imóvel com sua esposa e filha. Ele sugere então
a Gide dividir com eles o aluguel. Édouard Dujardin e Francis Vielè-Griffin também se juntam a eles.
(N.T.)
11 Valéry critica Gide, que considera haver em Nietzsche um “sistema”, o que se pode ler nas
anotações que faz em Prétextes. Para Valéry, atribuir um sistema a Nietzsche seria atribuir-lhe um
valor dogmático. (N.T.)
12 Alusão ao personagem do Prometeu, de Gide, que vê na “ação gratuita” a principal diferença entre
o homem e o animal. (N.T.)
13 Camille Mauclair (1872-1945), escritor discípulo de Mallarmé que Valéry considerava
insuportável. (N.T.)
14 Valéry leu em Para além do bem e do mal, §98, que, “Quando se amestra a própria consciência,
esta acaricia ao mesmo tempo em que morde”. (N.T.)
15 Parece que Valéry faz aqui alusão ao começo da “Carta a Angèle”, na qual Gide observa que,
devido à precoce influência de Nietzsche, a sua obra “não mais surpreende, mas confirma” e “quase
não era mais indispensável”. (N.T.)
Seu
Valéry

1- Você diz que ele vangloriava o inconsciente.16 Não concordo. Há até


frases nitidamente contrárias a isso – é que o seu apreciado Super-homem
[Übermensch] deve à consciência com todas as vantagens da inconsciência.
Isso está claro – pois sem isso ele não seria um Super-homem, mas, num
sentido ou em outro, um mero aumento de um tipo qualquer, escolhido de
maneira inconsciente ou consciente. Seria um Vacher17 ou Poe
desmesurados.
Esse teria sido meu modo pessoal de proceder para compor um
personagem (“Teste”).
Mas Nietzsche, que é bem mais metafísico do que eu – pois acredito que
é um metafísico, por menos decente que isso seja – refez seu Deus, sua
Causa, sua Força, sua Vida etc. e seguiu o bom caminho tradicional, a
contradição.
Só que, no seu caso, ela não reside tanto nos termos, in terminis, mas nas
coisas. Aparentemente, não há nada de contraditório em definir um animal
como uma combinação de camelo e caracol. Mas é possível (ou provável?)
que, analisando ponto por ponto esse animal louco, chegássemos a uma
contradição particular que o exame da proposição geral acima não revela.
Enfim, observe que vangloriar a inconsciência, o correspondente a
Angèle 18– no fundo – afeta essa inconsciência mesmo sem querer. (Isso
constrange por bem escrever). Para um regime mitigado, bem
constitucional, é o entendimento cordial entre a Vida e o Papel – Você vai
dizer que não é verdade?
16 Passagem de Gide em Prétextes (p. 88): “Nietzsche queria saber e isso o levou até a loucura; sua
clarividência ficou cada vez mais aguçada, cruel, deliberada. À medida que via mais claramente, ele
vangloriava a inconsciência.” (N.T.)
17 Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), fundador da antropossociologia, disciplina racista e
eugenista. (N.T.)
18 Cf. Carta a Angèle de Gide, ver nota 15.
A Guy de Pourtalès,

Sábado, 16 de novembro de 1929

Meu caro Pourtalès,

Fiquei muito tocado pela dedicatória que abre o seu livro.19 Você me
oferece esse trabalho e eu aceito essa bela oferenda de todo coração. Você
também me honra associando meu nome a um nome muito ilustre e
singularmente significativo. O que me faz viver perigosamente! – Essa
honra perigosa me deu o que pensar. Levou-me a recordar dias passados e
as minhas primeiras impressões de Nietzsche. Nessa época, Albert traduzia
Zaratustra como podia; ele era também o diretor do Le Centaure – revista
onde publiquei A noite com o Senhor Teste. Esses dois seres não se
entendiam muito bem. Zaratustra é um poeta supremo. O Senhor Teste é o
contrário de todo poeta: é um ser inteiramente absorvente,– um Corpo
obscuro que não se torna nada.
Mas – diga-se o que quiser – não fui, não sou o Senhor Teste; – se não
for de manhã, antes do dia... O fato é que acabei por amar Nietzsche – por
meio, através, – apesar das traduções. Digo: amar Nietzsche, e não as suas
teses favoritas nem seus movimentos.
Para mim, ele encontrou um certo método, quase uma lógica; se é que se
pode chamar de lógica uma exploração intelectual dos modos da
sensibilidade central. Por que nunca se falou disso que é tão capital? – pois
o número de ideias por ele emitidas, o gênero particular de relações nele
engendradas – e a espécie de charme que elas instituem tem a ver com a
forma nervosa de sua inteligência. Sua metafísica e sua moral imoralista
não me tocam muito. São para mim apenas combinações formadas como
quaisquer outras. Acredito que estas só excitaram tanto os espíritos por
causa dessa força de ressonância que ele lhes comunicava e que
necessariamente não lhes pertence. Mas ele resolveu de maneira
maravilhosa o difícil problema que a existência da grande música coloca há
mais de um século a todos os escritores que pensam. Você viu isso muito
bem; e mesmo todo o seu livro está animado por isso. Eu o li como se
esposa a existência de uma Patética ou de uma Apassionata.20 Eis o que
está tão bem feito.
Quanto a Gênova. Essa cidade admirável possui estranhas virtudes. Ali
vivi verões fabulosos na infância. Em 1892 pensei que ali ficaria louco. Era
uma noite branca – branca de clarões que passei deitado na cama desejando
morrer fulminado (Parecia que eu não valia a pena). Era apenas alta
frequência – tanto na minha cabeça como no céu. Tratava-se de decompor
todas as minhas primeiras ideias ou Ídolos; e de romper com um eu que não
sabia poder o que queria e nem querer o que podia...
Obrigado, meu caro Pourtalès. Você me deu um enorme prazer. Não vou
repetir quanto aprecio e estimo a sua maneira de tratar a biografia. Você
escreve poemas e não romances, – quero dizer que você extrai o que tende a
se concentrar por si mesmo em lugar de confundir o que tende a se
dispersar...
Pronto para o Wagner! – À espera!
Paul Valéry

19 Guy de Pourtalès. Nietzsche en Italie, Paris: Grasset, 1929. Cf. o artigo de Agathe Rouart Valéry,
“Paul Valéry et Guy de Pourtalès: Propos sur Nietzsche et Wagner”, French Studies, v. XXXIX, nº 4,
p. 442–447, out. 1985.
20 Valéry refere-se às sonatas de Beethoven, Patética e Apassionata. (N.T.)
SOBRE A EUREKA21

21 Esse texto foi escrito originalmente como introdução à tradução feita por Charles Baudelaire do
poema Eureka, de Edgar Allan Poe, publicada em 1921. Para a tradução brasileira de Eureka, cf. a de
Marilene Felinto com introdução de Julio Cortázar (que o traduziu para o espanhol), publicado pela
editora Max Limonad em 1986. (N.T.)
Para Lucien Fabre

E u tinha vinte anos e acreditava na força do pensamento. Sofria


estranhamente de ser e de não ser. Por vezes, sentia forças infinitas
dentro de mim. Elas colapsavam diante dos problemas; e a
fraqueza de minhas forças positivas me desesperava. Eu era sombrio, leve,
aparentemente fácil, duro no fundo, extremo no desprezo, absoluto na
admiração, fácil de me impressionar, impossível de ser convencido. Tinha
fé em algumas ideias que tinham chegado a mim. Entendia a sua
conformidade com o meu ser que as havia gerado como a marca certa de
seu valor universal: o que aparecia com bastante nitidez para o meu espírito
lhe parecia invencível; o que o desejo engendra é sempre o que há de mais
claro.
Conservava essa sombra de ideias como meus segredos de Estado. Tinha
vergonha da sua estranheza; temia que fossem absurdas; sabia que eram,
mas que também não eram. Eram vãs em si mesmas, mas potentes pela
força que a confiança que nelas sentia propiciava. O zelo por esse mistério
de fraqueza me enchia de uma espécie de vigor.
Tinha parado de fazer versos e quase não lia mais. Os romances e
poemas me pareciam apenas aplicações particulares, impuras e semi-
inconscientes de algumas propriedades inerentes a esses famosos segredos
que eu esperava um dia descobrir, com base nessa única segurança sem
trégua de que eles tinham que necessariamente existir. Quanto aos filósofos,
que conhecia pouco, sentia uma irritação com esse pouco porque eles nunca
respondiam a nenhuma das dificuldades que me atormentavam. Eles só me
davam tédio; nunca o sentimento de comunicarem algum poder verificável.
E, ainda, me parecia inútil especular sobre abstrações sem as definirmos
inicialmente. Como fazer de outra maneira? A única esperança para uma
filosofia é tornar-se impessoal. É preciso esperar esse grande passo bem
antes do fim do Mundo.
Andei esmiuçando uns místicos. Deles é impossível falar mal, pois neles
só encontramos o que colocamos.
Estava nesse ponto quando Eureka surgiu em meu olhar.
Orientados por meus ternos e tristes mestres, os estudos me fizeram
acreditar que a ciência não era amor; que seus frutos podem ser úteis, mas a
sua folhagem é muito espinhosa e sua casca terrivelmente áspera.
Reservava a matemática para uma espécie de espíritos aborrecidamente
exatos, incomensuráveis com o meu.
A literatura, por outro lado, com frequência me escandalizava pela sua
falta de rigor, coerência e obstinação às ideias. No mais das vezes, o seu
objeto é mínimo. Nossa poesia ignora ou até duvida de toda a épica e a
patética22 do intelecto. E quando às vezes se arrisca em considerá-las,
mostra-se tépida e maçante. Nem Lucrécio nem Dante são franceses. Não
temos de modo algum poetas do conhecimento. Talvez nosso sentimento
tão acentuado pela distinção de gêneros literários, ou seja, pela
independência dos diversos movimentos do espírito, não nos deixe perceber
de forma alguma as obras que os combinam. Não sabemos fazer cantar o
que não precisa de canto. Mas de uns cem anos para cá, a nossa poesia
mostrou recursos tão ricos e uma força tão rara de renovação que o porvir
haverá de conceder, talvez rapidamente, a algumas dessas obras de grande
estilo e de uma nobre severidade que dominam o sensível e o inteligível.
Em poucos instantes, Eureka me ensinou a lei de Newton, o nome de
Laplace, a hipótese que ele propôs, a própria existência de pesquisas e
especulações sobre as quais não se falava para adolescentes, por medo,
imagino, que não mostrassem qualquer interesse, em vez de medir a
surpreendente extensão do momento com sonhos e bocejos. O que mais
estimulava o apetite da inteligência era então colocado entre os arcanos. Era
a época em que os grandes livros de física não sopravam uma só palavra
sobre a lei da gravidade, sobre a conservação de energia nem o princípio de
Carnot;23 preferiam as torneiras com três válvulas, os hemisférios de
Magdeburgo e os raciocínios laboriosos e frágeis que o problema do sifão
lhes inspirava.
Seria, no entanto, uma perda de tempo despertar nas jovens mentes as
origens, a alta destinação e a virtude viva desses cálculos e proposições bem
áridas, infligidas sem nenhuma ordem e não obstante com uma incoerência
bastante admirável?
Essas ciências ensinadas tão friamente foram fundadas e desenvolvidas
por homens que lhe dedicavam um interesse apaixonado. Eureka me fez
sentir algo dessa paixão.
Confesso que fiquei surpreendido e seduzido apenas em parte pelas
enormes pretensões e ambições do autor, pelo tom solene de seu preâmbulo
e pelo estranho discurso sobre o método que abre o livro. Essas primeiras
páginas enunciaram, porém, um pensamento guia, se bem que recoberto de
um mistério que sugeria tanto alguma impotência como uma reserva
deliberada, certa relutância da alma entusiasta em disseminar o que havia
encontrado de mais precioso... E nada disso podia me desgostar.
Para alcançar o que chama de verdade, Poe invoca o que chama de
consistência (consistency). Não é muito fácil definir com nitidez essa
consistência. O autor não o faz, mesmo tendo tudo o que seria preciso para
fazê-lo.
Segundo ele, a verdade que busca só pode ser apreendida por uma
adesão imediata a uma intuição tal, que torna presente e como que sensível
ao espírito a dependência recíproca entre as partes e as propriedades do
sistema em consideração. Essa dependência recíproca se estende às fases
sucessivas do sistema; aí a causalidade é simétrica. Para um olhar que
abraça a totalidade do universo, uma causa e seu efeito podem ser tomados
um pelo outro e ter seus papéis invertidos.
Duas observações nesse ponto. Farei apenas uma indicação sobre a
primeira, que haverá de nos levar bem longe, o leitor e eu. O finalismo tem
um lugar capital na construção de Poe. Essa doutrina não está mais na
moda; não tenho nem a força nem o desejo de defendê-la. Mas é preciso
admitir que as noções de causa e adaptação quase que inevitavelmente
conduzem a ela (sem falar das enormes dificuldades e, portanto, das
tentações provocadas por certos fatos como a existência dos instintos etc.).
O mais simples é dispensar o problema. Nossos únicos recursos para
resolvê-lo são os meios da pura imaginação. Que ela seja exercida em outro
lugar.
Façamos outra observação. No sistema de Poe, a consistência é ao
mesmo tempo o meio da descoberta e a própria descoberta. Essa é uma
concepção admirável: exemplo e exercício de apropriação recíproca. O
universo está construído sobre um plano cuja simetria profunda está de
algum modo presente na íntima estrutura de nosso espírito. O instinto
poético deve nos levar cegamente para a verdade.
Encontramos com bastante frequência ideias análogas a essas entre os
matemáticos. Eles costumam considerar as suas descobertas não como
“criações” de suas faculdades combinatórias, mas, sobretudo, como
capturas feitas pela sua atenção dentro de uma riqueza de formas
preexistentes e naturais, apenas acessível pela rara conjugação de rigor,
sensibilidade e desejo.
Todas as consequências desenvolvidas em Eureka não são sempre
deduzidas com exatidão nem desenvolvidas com a clareza que se poderia
desejar. Há muitas sombras e lacunas. Há intervenções bem pouco
explicadas. Há um Deus.
Para o amador de drama e comédia intelectuais, nada é mais interessante
do que a engenhosidade, a insistência, as escamoteações, a ansiedade de um
inventor ocupado com a sua própria invenção, cujos vícios ele conhece
admiravelmente, cuja beleza ele quer necessariamente mostrar, explorar as
vantagens, dissimular as misérias e, a todo preço, fazer dela uma imagem
do que deseja. O mercador enfeita a sua mercadoria. A mulher se ajeita
diante do seu espelho. O padre, o filósofo, o político e, em geral, todos
aqueles que se devotaram a nos propor coisas incertas são sempre uma
mistura de sinceridade e silêncios (no mais favorável dos casos). Não
querem que vejamos o que eles não gostam de considerar...
A ideia fundamental de Poe é, no entanto, uma ideia profunda e
soberana.
Não seria exagerar a sua dimensão reconhecer na teoria da consistência
uma tentativa bem precisa de definição do universo em termos de suas
propriedades intrínsecas. No oitavo capítulo da Eureka, encontramos a
proposição: Cada lei da natureza depende em todos os pontos de todas as
outras leis. Não é essa a fórmula ou ao menos a expressão de uma vontade
de relatividade generalizada?
O parentesco entre essa tendência e as concepções recentes se torna
evidente quando descobrimos no poema a afirmação sobre as relações
simétricas e recíprocas entre matéria, tempo, espaço, gravitação e luz.
Grifei a palavra simétrico: trata-se, com efeito, de uma simetria formal que
é a característica essencial da representação do universo segundo Einstein.
Ela constitui a sua beleza.
Mas Poe não se limita aos constituintes físicos dos fenômenos. No seu
propósito, ele insere a vida e a consciência. Quantas coisas não nos vêm
aqui ao pensamento! O tempo não mais se define com base na simples
distinção entre o material e o espiritual. Toda a argumentação repousava
num conhecimento acabado da “matéria” da qual se perde a posse, em
suma, na aparência!
A aparência da matéria é de uma substância morta, de uma potência que
só passa ao ato pela intervenção de algo exterior e inteiramente estranho à
sua natureza. Dessa definição, tiravam-se anteriormente consequências
inevitáveis. Mas a matéria mudou de fisionomia. A experiência fez
conceber o contrário do que a observação pura permitia ver. Criando uma
espécie de relés para os nossos sentidos, a física moderna nos persuadiu de
que a nossa antiga definição não tinha valor absoluto nem especulativo. Ela
nos mostra que a matéria é estranhamente diversa e indefinidamente
surpreendente; que é um conjunto de transformações que continuam até se
perder no mais pequeno e mesmo nos abismos desse pequeno; diz-se que
talvez se dê um movimento perpétuo. Há uma febre eterna nos corpos.
Atualmente não se sabe mais o que o fragmento de um corpo qualquer
pode ou não conter ou produzir, no instante ou depois. Por menos que se
queira, a própria ideia de matéria se distingue muito pouco daquela de
energia. Tudo se aprofunda em agitações, rotações, trocas e irradiações.
Nossos olhos, nossas mãos, nossos nervos são feitos disso; e as aparências
de morte ou sono que a matéria apresenta inicialmente, a sua passividade, o
seu abandono às ações exteriores são compostos em nossos sentidos como
as trevas obtidas por certa superposição de luzes.
Pode-se resumir tudo isso escrevendo que as propriedades da matéria
parecem depender apenas da ordem de grandeza na qual nos posicionamos
para observá-la. Mas, com isso, as suas qualidades clássicas, sua falta de
espontaneidade, sua diferença essencial em relação ao movimento, a
continuidade ou homogeneidade de sua textura não podem mais se opor
absolutamente aos conceitos de vida, sensibilidade e pensamento, uma vez
que essas características tão simples são puramente superficiais. Aquém da
ordem de grandeza em que são feitas observações grosseiras, todas as
antigas definições mostram-se incorretas. Sabemos que propriedades e
potências desconhecidas se exercem no infra-mundo, já que descobrimos
algumas que nossos sentidos não eram feitos para observar. Mas não
sabemos enumerar essas propriedades nem mesmo consignar um número
finito à pluralidade crescente dos capítulos da física. Nem mesmo sabemos
se a generalidade de nossos conceitos não é ilusória quando os
transportamos para esses campos que limitam e sustentam o nosso campo.
Falar de ferro ou hidrogênio é supor entidades – das quais nada pode nos
assegurar a existência e a permanência, a não ser uma experiência bem
restrita e bem pouco prolongada. Ademais, não há razão alguma para se
pensar que nosso espaço, nosso tempo, nossa causalidade preservem algum
sentido lá onde nosso corpo é impossível. Sem dúvida, o homem que tenta
representar a intimidade das coisas pode apenas adaptar a ela as categorias
usuais de seu espírito. No entanto, quanto mais ele desenvolve as suas
pesquisas e até aumenta os seus poderes registradores, mais ele se afasta do
que se poderia chamar de optimum do conhecimento. O determinismo se
perde em sistemas inextrincáveis, com milhares de variáveis nas quais o
olho do espírito não consegue mais seguir as leis e parar diante de alguma
coisa que se conserva. Quando a descontinuidade se torna a regra, a
imaginação, antes usada para alcançar a verdade que as percepções haviam
feito suspeitar e que os raciocínios haviam tecido numa unidade, deve
declarar-se impotente. Quando os objetos de nossos juízos são médias,
deixamos de considerar os próprios acontecimentos. Nosso saber tende ao
poder, afastando-se de uma contemplação coordenada das coisas; são
necessários prodígios de sutileza matemática para lhe devolver a unidade.
Não se fala mais de primeiros princípios; as leis não são mais instrumentos
sempre passíveis de aperfeiçoamento. Elas não governam mais o mundo,
sendo aparelhadas para a incapacidade de nossos espíritos; não podemos
mais repousar sobre a sua simplicidade: como uma ponta persistente, há
sempre algum decimal não satisfeito que nos lembra a inquietude e o
sentimento do inesgotável.
Por essas observações, pode-se ver que as intuições de Poe sobre a
constituição geral do universo físico, moral e metafísico não são nem
negadas nem confirmadas pelas numerosas e tão importantes descobertas
feitas depois de 1847. Algumas de suas visões podem muito bem ser
incorporadas, sem solicitações excessivas, em concepções bem recentes.
Quando Edgar Poe mede a duração do seu Cosmos pelo tempo necessário
para realizar todas as combinações possíveis dos elementos, pode-se pensar
nas ideias de Boltzmann24 e nos seus cálculos de probabilidade aplicados à
teoria cinética dos gases. Há em Eureka um pressentimento do princípio de
Carnot e da representação desse princípio pelo mecanismo da difusão; o
autor parece ter adiantado os espíritos audaciosos que salvam o universo de
sua morte fatal através de uma passagem infinitamente breve por um estado
infinitamente pouco provável.
Não tendo aqui a intenção de uma análise completa de Eureka, falarei
bem pouco do uso feito pelo autor da hipótese de Laplace. O objetivo de
Laplace era limitado. Ele se propunha apenas a reconstituir o
desenvolvimento do sistema solar. Imaginou uma massa gasosa em vias de
resfriamento que possuía um núcleo já fortemente condensado e animado
de uma rotação em torno de um eixo passando pelo seu centro de gravidade.
Ele supunha tanto a gravidade como a invariabilidade das leis da mecânica
e assumiu como a sua única tarefa explicar os sentidos de rotação dos
planetas e de seus satélites, a pouca excentricidade das órbitas, a fraqueza
das inclinações. Nessas condições, a matéria, submetida ao resfriamento e à
força centrífuga, escorre dos polos em direção ao equador da massa e se
dispõe numa zona que é o lugar dos pontos onde o peso e a aceleração
centrífuga se equilibram. Dessa maneira, forma-se um anel nebuloso que
deve se romper bem rapidamente; os fragmentos desse anel se aglomeram
enfim num planeta...
O leitor de Eureka verá como Edgar Poe expandiu a lei da gravitação e a
hipótese de Laplace. Sobre esses fundamentos matemáticos, construiu um
poema abstrato, que é um dos raros exemplares modernos de uma
explicação total da natureza material e espiritual, uma cosmogonia.
Cosmogonia é um gênero literário de persistência admirável e de
variedade surpreendente, um dos gêneros mais antigos.
Dir-se-ia que o mundo não é muito mais antigo do que a arte de fazer o
mundo. Com um pouco mais de conhecimentos e bem mais de espírito,
poderíamos deduzir de cada uma dessas gêneses, quer venha da Índia, da
China, da Caldeia, quer pertença à Grécia, a Moisés ou ao senhor Svante
Arrhenius,25 uma medida da simplicidade desses espíritos em cada época.
Encontraríamos sem dúvida que a ingenuidade da intenção é invariável;
mas seria preciso confessar que a arte é bem diferente.
Assim como a tragédia tem a ver com a história e a psicologia, o gênero
cosmogônico se aproxima das religiões, com as quais se confunde em
alguns pontos, e da ciência, da qual necessariamente se distingue pela
ausência de verificações. Ele compreende livros sagrados, poemas
admiráveis, narrativas excessivamente bizarras, cheias de belezas e
ridículos, de pesquisas físico-matemáticas de uma profundidade digna às
vezes de um objeto menos insignificante do que o universo. Mas pertence à
glória do homem poder despender suas forças no vazio; e isso não é apenas
a sua glória. As investigações insensatas são parentes de descobertas
imprevistas. O papel do inexistente existe; a função do imaginário é real; e
a lógica pura nos ensina que o falso implica o verdadeiro. Parece que a
história do espírito pode se resumir nos seguintes termos: é absurdo pelo
que busca, é grande pelo que encontra.
O problema da totalidade das coisas e aquele da proveniência desse todo
surgem da intenção mais ingênua. Desejamos ver o que teria precedido a
luz; ou então tentamos descobrir se uma combinação particular de nossos
conhecimentos não teria precedência sobre todos os demais e não poderia
engendrar o sistema que é a sua fonte e que é o mundo e o seu autor, que
somos nós mesmos.
Se acreditamos ouvir uma Voz infinitamente imperiosa romper de algum
modo a eternidade; seu grito primal propagar a extensão como uma
novidade sempre mais grávida de consequências quanto mais se pronuncia
até os limites da vontade criadora, e a Palavra abrir espaço para as
essências, para a vida, para a liberdade, para a disputa fatal das leis, das
inteligências e do acaso; – ou se (caso relutamos em nos lançar do puro
nada para qualquer estado imaginável) achamos um pouco menos duro
contemplar toda a primeira época do mundo na ideia obscura de uma
mistura de matéria e energia, compondo uma espécie de lama substancial,
só que neutra e impotente à espera indefinida do ato de um demiurgo; – ou,
enfim, se melhor equipados, mais profundos mas não menos alterados pelas
maravilhas, nos esforçássemos em reconstituir, por meio de todas as
ciências, a mais antiga figura possível do sistema que é o objeto da ciência
– todo o pensamento da origem das coisas não deixa de ser sempre apenas
um devaneio de sua disposição atual, uma espécie de degenerescência do
real, uma variação sobre o que é.
O que precisamos efetivamente para pensar nessa origem?
Se precisamos de uma ideia do nada, a ideia do nada é nada, ou melhor,
já é alguma coisa: é um fingimento do espírito que apresenta uma comédia
do silêncio e das trevas perfeitas nas quais bem sei que estou escondido e
pronto para criar, simplesmente relaxando a minha atenção; onde sinto que
sou, que sou presente, voluntário e indispensável a fim de conservar, por um
ato consciente, essa ausência tão frágil de toda imagem e essa aparente
nulidade... Mas é uma imagem e é um ato; por uma convenção
momentânea, eu me chamo Nada.
Se colocar na origem a ideia de uma desordem extrema, estendida até as
menores partes, perceberei facilmente que esse caos inconcebível está
ordenado pela minha intenção de conceber. Eu mesmo embaralhei as cartas
para poder desembaralhá-las. Ademais, seria uma obra-prima da arte e da
lógica definir uma desordem tão confusa que nela não mais se pudesse
descobrir nem o menor traço de ordem nem substituí-la por um caos mais
íntimo e mais avançado. Uma confusão verdadeiramente inicial deve ser
uma confusão infinita. Mas, nesse caso, não podemos derivar daí o mundo,
e a própria perfeição da mistura não nos deixa fazer dela nenhum uso.
Quanto à ideia de um começo – entendo aqui de um começo absoluto –
esta é necessariamente um mito. Todo começo é coincidência; seria preciso
conceber não sei que contato entre o tudo e o nada. Tentando pensar isso,
descobre-se que todo começo é uma consequência – todo começo completa
alguma coisa.
Mas precisamos sobretudo da ideia desse Todo que chamaremos
universo e que desejamos ver começar. Antes da questão da sua origem nos
inquietar, vejamos se essa noção, que parece se impor a nosso pensamento,
que lhe parece tão simples e tão inevitável, não se desintegra sob o nosso
olhar.
Pensamos obscuramente que o Todo é alguma coisa e imaginando
alguma coisa o chamamos de Todo. Acreditamos que esse Todo começou
como toda coisa começa e que esse começo do conjunto que deve ter sido
bem mais estranho e solene do que o das partes, deve ser infinitamente mais
importante de se conhecer. Formamos do todo um ídolo e um outro da sua
origem e não podemos concluir que exista um determinado corpo da
natureza cuja unidade, por corresponder à nossa própria natureza, nos dê
segurança.
Tal é a forma primitiva e como que infantil de nossa ideia de universo.
É preciso olhar mais de perto e se perguntar se essa noção muito natural,
ou seja, bem impura, pode figurar num raciocínio não ilusório.
Observarei em mim mesmo o que penso sob esse nome.
Uma primeira forma de universo me é oferecida pelo conjunto das coisas
que vejo. De um lugar a outro meus olhos estimulam minha visão e são
afetados por toda parte. Minha visão estimula a mobilidade de meus olhos
que continuamente a aumenta, alarga, perpassa. Não há nenhum movimento
desses olhos que encontre uma região de invisibilidade; não há nenhum
ponto que não gere efeitos coloridos; e, pelo conjunto desses movimentos
que se encadeiam uns nos outros, estou como que trancado na minha
propriedade de perceber. Toda a diversidade de minhas visões se integra na
unidade de minha consciência motriz.
Adquiro a impressão geral e constante de que uma esfera de
simultaneidade está ligada à minha presença. Ela se transporta junto comigo
e seu conteúdo é indefinidamente variável, embora conserve a sua
plenitude, apesar de todas as substituições que possa sofrer. Posso me
deslocar, e os corpos que me cercam podem se modificar, mas a unidade de
minha representação total, a propriedade que possui de me cercar não se
altera em nada. Posso fugir quanto quiser, agitar-me de todas as maneiras
possíveis e estarei sempre cercado por todos os movimentos-visionários do
meu corpo, que se transformam uns nos outros e me reconduzem
inevitavelmente para a mesma situação central.
Vejo portanto um todo. Digo que é um Todo, pois de certo modo esgota
minha capacidade de ver. Não posso ver nada a não ser nessa forma
compacta e nessa justaposição que me cerca. Todas as minhas outras
sensações referem-se a algum lugar desse círculo cujo centro pensa e fala.
Eis o meu primeiro Universo. Não sei se quem nasce cego poderia ter
uma noção tão nítida e imediata de uma soma de todas as coisas, pois me
parece que as propriedades particulares do conhecimento ocular são
essenciais para a formação por mim mesmo de um campo inteiro e
completo. A visão assume de algum modo a função da simultaneidade, ou
seja, da unidade como tal.
Mas essa unidade – que necessariamente compõe o que eu pude ver num
instante, esse conjunto de ligações recíprocas ou manchas das quais depois
eu decifro e atesto a profundidade, a matéria, o movimento e o
acontecimento, este conjunto onde vejo e descubro o que me atrai e o que
me inquieta – me comunica a primeira ideia, o modelo e como que o germe
do universo total, que acredito existir em torno de minha sensação, por ela
mascarados e revelados. Irresistivelmente imagino que um imenso sistema
velado suporta, penetra, alimenta e absorve cada elemento atual e sensível
de minha duração, forçando-o a existir e a se resolver; e assim que cada
momento é o nó de uma infinidade de raízes prolongando-se até uma
profundidade desconhecida numa extensão implícita – no passado – na
estrutura secreta de nossa máquina de sentir e de combinar, que se refaz
incessantemente no presente. Considerado como uma relação permanente
entre todas as mudanças que me tocam, o presente me faz sonhar com um
sólido ao qual minha vida sensitiva estaria ligada como uma anêmona do
mar ao seu seixo. Como construir sobre essa pedra um edifício fora do qual
nada poderia existir? Como passar do universo limitado e instantâneo ao
universo completo e absoluto?
A questão seria agora conceber e construir em torno de um germe real
uma figura que satisfaça a duas exigências essenciais: uma que é tudo
admitir, ser capaz de tudo e de nos propiciar uma representação de tudo; a
outra, poder servir nossa inteligência, prestar-se a raciocínios, instruir-nos
melhor sobre a nossa condição e nos tornar um pouco mais possuidores de
nós mesmos.
Mas basta precisar e aproximar uma dessas necessidades do
conhecimento da outra para que subitamente surjam as intransponíveis
dificuldades inerentes à menor tentativa de dar uma definição utilizável do
Universo.
Universo não passa, portanto, de uma expressão mitológica. Os
movimentos de nosso pensamento em torno desse nome são perfeitamente
irregulares, inteiramente independentes. Tão logo se deixa o instante, tão
logo tentamos aumentar e expandir nossa presença fora de si mesma,
esgotamo-nos em nossa liberdade. Toda a desordem de nossos
conhecimentos e potencialidades nos cerca. Somos sitiados pela lembrança,
pelo possível, pelo imaginável, pelo calculável, por todas as combinações
de nosso espírito, em todos os graus da probabilidade, em todos os estados
da precisão. Como formar o conceito do que não se opõe a nada, que não se
parece com nada? Assemelhando-se a alguma coisa, já não seria tudo. Se
não se assemelha a nada... E se essa totalidade possui a mesma força que o
nosso espírito, o nosso espírito não tem nenhum poder sobre ela. Todas as
objeções levantadas contra o infinito em ato, todas as dificuldades
encontradas ao se pretender ordenar uma multiplicidade, aqui se declaram.
Nenhuma proposição consegue dar conta desse assunto tão desordenado em
sua riqueza que todos os atributos lhe convêm. Assim como o universo
escapa à intuição, ele também transcende a lógica.
E quanto à sua origem – no começo era a fábula. E sempre será.

22 Valéry usa pathétique aqui como Immanuel Kant, no sentido do conjunto dos sentimentos (em
grego, pathémata), formando o termo de maneira análoga à estética. Provavelmente alude também à
sonata de Beethoven conhecida como Patética. Valéry sem dúvida pensa no caráter patético de
sentimentalismos intelectuais. (N.T.)
23 Nicolas Léonard Sadi Carnot (1796-1832) foi um engenheiro militar e físico francês cujo trabalho
contribuiu de forma essencial para a fundamentação da termodinâmica. É considerado o descobridor
da força motriz do fogo e autor de uma teoria por meio da qual foi possível inventar uma máquina
térmica para obter um rendimento máximo. Suas investigações serviram de base para a formulação
por Lord Kelvin da segunda lei da termodinâmica e pode ser considerado aquele que esboçou os
fundamentos para o conceito de entropia. (N.T.)
24 Ludwig Eduard Boltzmann (1844-1906) foi um físico austríaco que desenvolveu a mecânica
estatística pela qual foi possível explicar pela primeira vez como as propriedades dos átomos
determinam as propriedades físicas da matéria tais como viscosidade, condução térmica e difusão.
(N.T.)
25 Svante Arrhenius (1859-1927) foi um físico sueco que recebeu o prêmio Nobel em química em
1903 e foi o primeiro a usar princípios básicos da físico-química para calcular até onde as emissões
de dióxido de carbono, causadas pelo ser humano, aumentam a temperatura da terra. As suas
pesquisas pioneiras apresentam hoje grande atualidade no que diz respeito aos problemas do
aquecimento global. (N.T.)
NO COMEÇO ERA A FÁBULA
Necessariamente.

Pois o que foi é espírito e não há propriedades que não sejam do espírito.
Logo, se imaginas voltar ao “começo”, isso só é possível imaginar
despojando-se, um pouco mais, em cada recuo, do que sabes por
experiência ou ao menos por meio de testemunhos cada vez mais raros. E
para conceber esses quadros mais e mais distantes, és obrigado a completá-
los cada vez mais pela tua própria produção de personagens,
acontecimentos e teatros.
No limite, nada mais há além de ti. Tudo é um tu: fábula pura.
PEQUENA CARTA SOBRE OS MITOS26

26 Publicado pela primeira vez como introdução a Maurice de Guérin, Poèmes en prose, Paris:
Blaizot, 1928.
U ma dama, minha cara amiga, uma dama inteiramente
desconhecida, me escreve uma carta bem longa e até carinhosa,
interrogando-me a respeito de uma boa quantidade de temas
difíceis, que ela finge acreditar que eu possa liberar o seu espírito.
Ela se inquieta junto a mim sobre Deus e sobre o amor; se tenho fé tanto
em um como em outro; ela gostaria de saber se a poesia pura é mortal para
o sentimento e me pergunta se me exercito na análise de meus sonhos,
como se faz na Europa central, onde não há pessoas bem-nascidas que, a
cada manhã, deixem de extrair de seus próprios precipícios algumas
enormidades abissais, alguns polvos de forma obscena que se admiram de
ter nutrido.
Sem muito esforço, pude esclarecer e tranquilizá-la sobre tudo isto e
muitas outras dúvidas. Não sou de modo algum pessoa de grandes luzes,
mas para as grandes questões basta pouca luz. Além disso, o tom faz tudo:
uma graça acalma, certo rodeio estimula, certos ornamentos desviam no seu
prazer a alma terna que lê e que não pede respostas, – pois isso seria
terminar o jogo e retirar a vida sob algum pretexto – e privá-la de
questionamento.
Contudo, me senti bem confuso numa dificuldade precisa e particular,
daquelas de que sem bastante leitura e reflexões dificilmente se consegue
escapar.
A leitura me pesa; só a escrita inquieta um pouco mais a minha
paciência. Só sou bom de inventar aquilo de que preciso no momento. Sou
um Robinson miserável numa ilha de carne e espírito toda circundada de
ignorância, onde crio grosseiramente meus utensílios e minhas artes. Por
vezes, me aplaudo por ser tão pobre e tão incapaz dos tesouros do
conhecimento acumulado. Sou pobre, mas sou rei; e, sem dúvida, como
Robinson, reino apenas sobre meus macacos e papagaios interiores; mas
enfim, ainda é reinar... Creio, na verdade, que nossos pais leram demais e
que nossos cérebros são feitos de uma massa cinzenta de livros...
Volto à minha questionadora que, por um instante, deixei pendurada em
algum prego da duração. Essa mulher sem rosto, de quem só conheço o
perfume de seu papel (e esse perfume potente me dá uma ideia de náusea),
insiste de maneira surpreendente em me fazer explicar os mitos e a ciência
dos mitos, sobre os quais ela quer a qualquer preço que eu lhe diga alguma
coisa e sobre o que eu sei apenas aquilo que quero. Não imagino porque
isso lhe importa tanto.
Se tivesse vindo de você, minha sábia e simples amiga, e se a sua
curiosidade sobre essa questão tivesse tentado irritar a minha preguiça,
jamais você conseguiria tirar de minha cabeça outra coisa além de
brincadeiras, na maior parte impuras e de resto bem superficiais. Entre
pessoas que se conhecem por essência, como acontece entre você e eu, ai de
mim! – nada conta a não ser essa relação misteriosa dos próprios seres; as
palavras não contam, os atos não são nada...
Cara alma, já que acabei por responder a essa perfumada indeterminada,
– e Deus sabe porque eu lhe respondi, que esperanças obscuras, que
suspeitas de doces riscos me seduziram a lhe escrever, – eu darei a você a
substância do que imaginei para ela. Em questão estava fingir
conhecimentos que não possuo de maneira alguma e que não me provocam
nenhuma inveja daqueles que os possuem. Felizes quem os têm! Mas, por
mais sólidos que sejam, infelizes os que sobre eles repousam!
Confesso a você que, inicialmente, no momento de aplicar meus esforços
em conceber o mundo dos mitos, senti meu espírito indócil; eu o pressionei,
forcei o seu tédio e as suas resistências, e como sob minha pressão ele
retrocedia, voltando o seu olhar para o que ama, desejando aquilo que ele
faz de melhor e cujos atrativos ele pintava com vivacidade, eu o lancei
furiosamente no meio dos monstros, na confusão de todos os deuses,
demônios, heróis, espécies horríveis e de todas as criaturas dos homens
antigos, aqueles que puseram a sua filosofia para povoar o universo de
maneira tão ardente como nós mais tarde pusemos a nossa para esvaziá-lo
de toda vida. Em suas trevas, os nossos ancestrais se acasalaram com todo
enigma, nele gerando estranhas crianças.
Não sabia me orientar na minha desordem, em que me apoiar para ali
plantar o meu começo e desenvolver os pensamentos vagos que o tumulto
das imagens e das lembranças, o número de nomes, a mistura de hipóteses
despertavam e se arruinavam dentro de mim, diante do meu propósito.
Minha caneta fazia furos no papel, minha mão esquerda atormentava
meu rosto, meus olhos desenhavam com bastante nitidez um objeto bem
iluminado e eu sentia muito bem que não tinha a menor necessidade de
escrever. Depois, essa caneta que matava o tempo com seus pequenos
rabiscos começou por si mesma a esboçar formas barrocas, peixes
hediondos, polvos descabelados de rubricas bem fluidas e fáceis... Ela
engendrava mitos que surgiam de minha espera na duração, enquanto minha
alma, que quase não via o que a minha mão criava diante dela, errava como
uma sonâmbula entre os sinistros muros imaginários e os teatros
submarinos do aquário de Mônaco!
Quem sabe, eu pensava, se o real em suas formas inumeráveis não é tão
arbitrário, não se produz de forma tão gratuita como esses arabescos
animais? Quando sonho e invento sem volta, não sou... a natureza? Desde
que a caneta toque o papel, que ela lance a tinta, que eu me entedie, que eu
me esqueça – eu crio! Uma palavra vinda ao acaso se torna uma sorte
infinita, faz crescer os órgãos da frase, e a frase exige uma outra que tenha
existido antes dela; ela quer um passado que ela gera para nascer... depois
que ela já apareceu! E essas curvas, essas volutas, esses tentáculos, palpos,
patas e apêndices que faço correr sobre essa página, não é o que faz a seu
modo a natureza em seus jogos, quando dissipa, transforma, estraga,
esquece e reencontra tantas chances e figuras de vida no meio dos raios e
átomos onde abunda e se enreda todo possível e inconcebível?
O espirito se empenha mesmo assim. Só que ainda excede a natureza; ele
não somente cria como ela costuma fazer, mas acrescenta que faz ares de
criar. Ele compõe de verdade a mentira, e embora a vida ou a realidade se
limite a proliferar no instante, ele se forjou o mito dos mitos, o indefinido
do mito, – o Tempo.
Mas a mentira e o tempo não existiriam sem algum artifício. A palavra é
esse meio de se multiplicar no vazio.
E eis como chego enfim ao meu tema e como fiz uma teoria para a dama
invisível e terna:
Senhora, eu lhe disse, ó mito! Mito é o nome de tudo que não existe e
que só subsiste tendo por causa a palavra. Não há discurso tão obscuro,
rumor tão bizarro, propósito tão incoerente que não possa receber um
sentido. Há sempre uma suposição que dá sentido à linguagem mais
estranha.
Imaginem ainda várias narrativas sobre a mesma ocupação ou diversos
relatos sobre o mesmo acontecimento entregues a vocês por livros ou
testemunhas que, embora igualmente dignos de fé, não concordem entre si.
Dizer que eles estão em desacordo é dizer que a sua diversidade simultânea
compõe um monstro. A sua concorrência procria uma quimera... Mas um
monstro ou uma quimera que não são viáveis de fato estão bem à vontade
no vago dos espíritos. Uma combinação de mulher e peixe é uma sereia, e a
forma de uma sereia é facilmente aceitável. Mas é possível uma sereia viva?
– Eu não estou de jeito algum seguro de que já sejamos tão especialistas nas
ciências da vida a ponto de poder recusar a vida às sereias por qualquer
razão demonstrativa. Seria preciso bastante anatomia e fisiologia para lhes
opor outra coisa do que esse fato: os modernos nunca pescaram uma sereia!
Um mito é o que perece por um pouco mais de precisão. Sob o rigor do
olhar e sob os golpes multiplicados e convergentes das questões e
interrogações categóricas com as quais o espírito desperto se arma por todos
os lados, veem-se os mitos morrerem e a fauna das coisas vagas e das ideias
se empobrecerem indefinidamente... Os mitos se decompõem sob a luz que
constitui em nós a presença combinada de nosso corpo e de nosso sentido
do mais alto grau.
Veja como o pesadelo compõe um drama onipotente com a diversidade
de sensações independentes que trabalham em nós durante o sono. Uma
mão ficou presa sob o corpo; um pé que se descobriu e se liberou dos
lençóis esfria longe daquele que dorme; passantes matinais vociferam de
madrugada na rua; o estômago vazio se estira e as vísceras fermentam; o
vislumbre do grande sol levante inquieta vagamente a retina pelas pálpebras
abaixadas... Tantos dados separados e incoerentes; e ninguém ainda para
reduzi-los a si mesmos e ao mundo conhecido, para organizá-los, retendo
alguns, abolindo outros, para ordenar os seus valores e nos permitir ir além.
Juntos, porém, todos esses dados são como condições iguais a serem
igualmente satisfeitas. Daí resulta uma criação original, absurda,
incompatível com a sequência da vida, onipotente, inteiramente
assustadora, que não possui em si mesma nenhum princípio de fim,
nenhuma saída, nenhum limite... É assim no detalhe da véspera, embora
com menos unidade. Toda a história do pensamento não passa do jogo de
uma infinidade de pequenos pesadelos com grandes consequências, ao
passo que nos sonos observam-se grandes pesadelos com consequências
bastante breves e fracas.
Toda nossa linguagem se compõe de pequenos sonhos breves; e o que
isso tem de belo é algumas vezes formarmos com eles pensamentos
estranhamente justos e maravilhosamente razoáveis.
Na verdade, há em nós tantos mitos que nos são tão familiares a ponto de
ser praticamente impossível separar com nitidez alguma coisa em nosso
espírito que não seja mito. Nem sequer podemos falar sobre o mito sem
mitificar, afinal, não estou nesse instante fazendo o mito do mito para
responder ao capricho de um mito?
Sim, não sei o que fazer para sair do que não é, almas caras! A palavra
nos povoa tanto e povoa tudo a tal ponto que não se sabe o que fazer para se
abster das imaginações onde nada se passa...
Imagine que amanhã é um mito, que o universo é um mito; que o
número, o amor, que tanto o real como o infinito, que a justiça, o povo, a
poesia... a própria terra são mitos! E que até o polo é um mito, pois aqueles
que pretendem ter ido até lá só pensaram ali estar por razões inteiramente
indissociáveis da palavra...
Eu estava esquecendo todo o passado... Toda a história é feita apenas de
pensamentos aos quais acrescentamos esse valor essencialmente mítico de
que eles representam aquilo que foi. Cada instante cai a cada instante na
imaginação, e tão logo se morre, vemo-nos, com a velocidade da luz,
reunidos aos centauros e aos anjos... Mas o que digo! Tão logo viramos as
costas, tão logo saímos de vista, a opinião faz de nós o que pode!
Volto à história. Como ela se transforma insensivelmente em sonho à
medida que se distancia do presente! Bem perto de nós, são sempre ainda os
mitos temperados, constrangidos pelos textos não inacreditáveis, pelos
vestígios materiais que moderam um pouco nossa fantasia. Mas transpostos
para três ou quatro mil anos antes de nosso nascimento, estamos em plena
liberdade. Enfim, no vazio do mito do tempo puro e virgem de qualquer
coisa que se assemelhe ao que nos toca, o espírito – assegurado apenas por
ter havido alguma coisa, coagido pela necessidade essencial de supor um
antecedente, “causas”, suportes ao que é e ao que ele é, – dá luz a épocas,
Estados, acontecimentos, seres, princípios, imagens ou histórias mais e mais
ingênuas, as que fazem sonhar ou que se reduzem facilmente à cosmologia
tão sincera dos hindus que, para sustentar a terra no espaço, a colocam
sobre as costas de um elefante e esse animal sobre uma tartaruga, ela
mesma carregada por um mar que continha não sei que vaso...
O filósofo mais profundo, o físico mais bem equipado, o geômetra mais
provido desses meios que Laplace pomposamente chamou de “recursos da
mais sublime análise”, – não podem nem sabem fazer outra coisa.
É por isso que me veio a ideia de escrever certo dia: No começo era a
Fábula!
O que significa que toda origem, toda aurora das coisas tem a mesma
substância que as canções e os contos que rodeiam os berços...
É uma espécie de lei absoluta que, por toda parte, por todo período da
civilização, em toda crença, no meio de qualquer disciplina e sob todas as
relações, – o falso sustenta o verdadeiro; o verdadeiro se dá o falso como
ancestral, como causa, como autor, como origem e fim, sem exceção nem
remédio, – e o verdadeiro engendra o falso de onde ele mesmo exige ser
engendrado. Toda antiguidade, toda causalidade, todo princípio das coisas
são invenções fabulosas e obedecem a leis simples.
Que seríamos nós sem a presença do que não existe? Pouca coisa, e
nossos espíritos bem desocupados esmoreceriam se as fábulas, os enganos,
as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos
problemas da metafísica não povoassem nossas profundezas e nossas trevas
naturais com seres e imagens sem objetos.
Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores. Não podemos
agir senão nos movendo em direção a um fantasma. Não podemos amar
senão o que criamos.
Eis, minha cara, quase todo meu discurso para a mulher sem corpo de
quem acho e até gosto que você tenha ciúmes. Vou poupar você de algumas
frases de grande estilo com as quais achei necessário finalizar esses
propósitos.
Coloquei um pouco de poesia nos momentos finais da minha carta. Não
se pode deixar uma dama exposta a simples ideias, é preciso dourar o adeus.
Permiti-me então dizer à minha desconhecida que a aurora e a tardinha do
tempo, semelhantes àquelas que, num belo dia, estão encantadas e
iluminadas de prestígios pelo sol rente ao horizonte, se colorem e enchem
de milagres. Assim como a luz quase rasa gera para o olho humano prazeres
prodigiosos, o supre com magias, transmutações ideais, formas enormes
sustentadas e desenvolvidas nas alturas, figuras de outros mundos, estadias
ardentes nas rochas áureas, e nos lagos bem puros, tronos, grutas errantes,
infernos superiores, encantos; também esses elevados lugares
deslumbrantes, esses fantasmas, esses monstros e divindades aéreas se
analisam em vapores e raios decompostos – e assim todos os deuses e
nossos ídolos mesmo abstratos: o que foi, o que será, o que se forma longe
de nós. Pode bem ser que o espírito não retire ou sofra por si mesmo aquilo
que exige, as origens que reclama, a sequência e os desdobramentos de que
tem sede; separado da experiência, isolado das opressões que o contato
direto lhe impõe, o espírito engendra por si mesmo aquilo de que precisa.
Ele se retrata em si, ele emite o extraordinário. De seus mínimos
acidentes, faz jorrar criações sobrenaturais. Nesse estado, faz uso de tudo o
que é; um quiproquó, um mal-entendido, um trocadilho lhe fecundam.
Chama de ciência e artes a força que possui para conferir a essas
fantasmagorias precisão, duração e consistência, e isso a tal ponto de rigor
com o qual ele mesmo se surpreende e por vezes se abate!
Adeus, querida; eu ia retornar ao amor.
LEONARDO E OS FILÓSOFOS27

27 Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1928, em Commerce, nº XVIII, e depois como
prefácio à tradução francesa do livro de Leo Ferrero Leonardo da Vinci e a obra de arte, 1929.
1929
carta a Leo Ferrero28

Sob o nome e a invocação de Leonardo da Vinci, você situa no começo


de sua carreira uma preocupação e uma meditação sobre a estética pura. É
onde terminam (e mesmo perecem) muitos filósofos. Nada mais nobre e
mais ousado.
Com precisão e sutileza admiráveis, você examinou alguns dos pontos
mais delicados dessas eternas investigações cujo objeto é tornar o Belo
quase inteligível e nos fornecer razões para com ele sentirmos uma emoção
superior.
Mas é ser um pouco imprudente demais me pedir para apresentar ao
público a sua obra.
Não que, em certas ocasiões e pelos caminhos mais diversos, não tenha
me deparado com problemas dessa espécie e sobre eles refletido
longamente em meu espírito; mas as minhas reflexões ficam ecoando umas
nas outras e minhas luzes se perdem entre espelhos paralelos. Entre a
natureza e as obras, entre a volúpia de ver e a volúpia de poder, as trocas
são infinitas. A análise rapidamente aí se perde. A inteligência, que se
dedica e sem cessar retoma a tarefa de reorganizar o que existe e ordenar os
símbolos de todas as outras coisas em torno de seu lar desconhecido, se
esgota e desespera nesse campo em que as respostas precedem as questões
ou o capricho engendra as leis, em que se pode apreender o símbolo pela
coisa e a coisa pelo símbolo e desfrutar dessa liberdade para alcançar uma
espécie inexplicável de rigor.
Você deseja, no entanto, que, mesmo totalmente incerto, eu prepare os
espíritos para a sua dialética. Tudo que posso lhes oferecer é uma ideia
confusa sobre minhas especulações sobre o Belo.

É preciso confessar que a Estética é uma tentação grande e até mesmo


irresistível. Quase todos os seres que nutrem um sentimento vivo pelas artes
fazem um pouco mais do que senti-las; eles não conseguem escapar da
necessidade de aprofundar o seu prazer.
Como suportar o sentimento de sermos O filósofo é, em suma, um
misteriosamente seduzidos por certos aspectos do tipo de especialista do
universal; caraterística que se
mundo e por tais obras humanas, sem querer exprime numa forma de
explicar essa delícia fortuita ou elaborada que, por contradição.
um lado, parece independente da inteligência – que Além
disso, esse universal só
aparece de forma verbal.
talvez seja no entanto o seu princípio e guia velado Essas duas considerações
– e, por outro, tão distinta de nossas afeições levam facilmente a classificar
o filósofo entre os artistas;
ordinárias – cuja variedade e profundidade ela mas esse artista não quer
admitir que o é. Assim
resume e diviniza ?
começa o drama ou a
Os filósofos não podiam deixar de se inquietar comédia da filosofia.
com essa espécie singular de emoções. Eles tinham Enquanto os pintores e os
poetas só disputam a posição,
ademais uma razão menos ingênua e mais os filósofos disputam a
metódica para voltar-lhes a atenção e procurar as existência.
causas, o mecanismo, o significado e a essência.
Visto no próprio coração do filósofo, o vasto empreendimento da
filosofia consiste em última instância num ensaio de transmutação de tudo
o que sabemos no que gostaríamos de saber, e essa operação precisa ser
efetuada ou, ao menos, ser apresentável numa certa ordem.
A ordem de suas questões caracteriza as Será que o filósofo pensa que
filosofias, pois numa cabeça filosófica não há e uma Ética ou uma
Monadologia são coisas mais
não pode haver de modo algum questões sérias do que uma suíte em ré
inteiramente independentes e substancialmente menor?
isoladas. Nela encontramos, ao contrário, tal um Écolocadas
verdade que certas questões
pelo espírito são
baixo contínuo, o sentimento, o tom fundamental mais gerais e mais naturais
do que algumas produções da
de uma dependência latente, se bem que mais ou arte.
menos próxima, entre todos os pensamentos que Mas nada prova que essas
questões não sejam ingênuas.
contém ou poderia conter. A consciência dessa
ligação profunda sugere e impõe a ordem; e a ordem das questões conduz
necessariamente a uma questão-mãe, que é aquela do conhecimento.
Ora, tão logo o filósofo tenha proposto ou fundamentado, justificado ou
depreciado o conhecimento, seja por tê-lo exaltado e desenvolvido ultra
vires através de potentes combinações lógicas e intuitivas, ou por tê-lo
medido e como que reduzido a si mesmo pela crítica, ele se vê
invariavelmente movido a explicar, ou seja, a exprimir em seu sistema, que
é sua ordem pessoal de compreensão, a atividade humana em geral, cujo
conhecimento intelectual, embora sendo apenas uma das modalidades,
representa o todo.
Esse aqui é um ponto crítico de toda filosofia.
Um pensamento que chega a ser tão puro e tão central, que persegue, na
verdade (quaisquer que sejam o conteúdo e as conclusões), o ideal de uma
distribuição uniforme dos conceitos em torno de certa atitude ou atenção
característica e singular de quem pensa, deve agora tentar reencontrar a
diversidade, a irregularidade e o imprevisto dos outros pensamentos; e sua
ordem, ordenar-lhes a desordem aparente.
Este pensamento deve reconstruir a pluralidade e a autonomia dos
espíritos como consequência de sua unidade e soberania próprias. Deve
legitimar a existência do que convenceu ser um erro e assim o arruinou,
reconhecer a vitalidade do absurdo, a fecundidade do contraditório e, por
vezes, até sentir como, não obstante o seu entusiasmo com a universalidade
da qual acreditava proceder, ele mesmo se restringe ao estado de uma
produção particular ou de tendência individual de certa pessoa. Isso é ao
mesmo tempo o começo de uma sabedoria e o crepúsculo de uma filosofia.
que são invariavelmente os
pontos fracos de uma
Para o esplêndido egotismo de um pensador, a filosofia...
No meu entender, toda
existência dos outros é na verdade sempre Filosofia é uma questão de
inquietante. Ele não pode evitar enfrentar o grande forma. Ela é a forma mais
compreensível que
enigma que o arbitrário do outro lhe propõe. O determinado indivíduo pode
sentimento, o pensamento, o ato de um outro quase dar ao conjunto de suas
experiências internas ou
sempre nos parecem arbitrários. Fortificamos toda outras; e isso
a preferência que damos aos nossos, por uma independentemente dos
conhecimentos que esse
necessidade da qual acreditamos ser os agentes. homem possa possuir.
Mas, decerto, o outro existe, e o enigma nos Quanto mais, na busca dessa
forma, ele se aproxima de
pressiona. Ele atua sobre nós de duas formas: uma uma expressãomais individual
que consiste na diferença das condutas e dos e, para ele, mais conveniente,
mais lhe parecerão estranhos
caracteres, na diversidade das decisões e das o ato e a obra de alguém
atitudes em tudo que diz respeito à conservação do outro.
corpo e de suas posses; a outra, que se manifesta
pela variedade dos gostos, das expressões e criações da sensibilidade.
Nosso Filósofo não pode se decidir a não absorver na sua luz própria
todas essas realidades que ele bem gostaria de assimilar à ciência ou de
reduzir a possibilidades que lhe pertencessem. Ele quer compreender; quer
compreendê-las com toda a força da palavra. Vai então meditar sobre a
construção de uma ciência dos valores da ação e de uma ciência dos valores
da expressão ou da criação de emoções – uma ÉTICA e uma ESTÉTICA –
como se o palácio de seu pensamento lhe parecesse imperfeito sem essas
duas asas simétricas nas quais o seu Eu onipotente e abstrato pudesse
guardar cativas a paixão, a ação, a emoção e a invenção.
Após dar conta de Deus, do Si mesmo, do Tempo, do Espaço, da
Matéria, das Categorias e das Essências, todo filósofo se volta para os
homens e as suas obras.
Assim como inventou o Verdadeiro, o filósofo Leonardo é um dos
também inventou o Bem e o Belo; e como tinha fundadores da Europa como
algo distinto. Ele não se
inventado as regras para harmonizar o pensamento
isolado consigo mesmo, ele se ocupou de parece nem com os antigos
nem com os modernos.
prescrever as regras para adequar a ação e a
expressão a preceitos e modelos, deixando-as livres dos caprichos e das
dúvidas de cada um, ao considerar que um Princípio único e universal deve
ser definido e designado antes de mais nada e independentemente de toda
experiência particular.
Na história do espírito, há poucos acontecimentos mais admiráveis do
que essa introdução dos Ideais, onde se pode observar um fato europeu par
excellence. O enfraquecimento dos ideais nos espíritos coincide com o das
virtudes tipicamente europeias.
Contudo, da mesma forma que estamos bem É claro que o Bem e o Belo
ligados à ideia de uma ciência pura, desenvolvida saíram de moda.
Quanto ao Verdadeiro, a
com todo rigor a partir de evidências locais cujas fotografia mostrou a sua
propriedades poderiam se estender indefinidamente natureza e os seus limites: o
de identidade a identidade, também estamos em registro dos fenômenos pelos
seus próprios efeitos,
boa parte convencidos da existência de uma Moral exigindo o menos de Homem
e de uma Beleza independentes dos tempos, dos possível, esse é o “nosso
Verdadeiro”. Eis o que
lugares, das raças e das pessoas. constato.
Cada dia testemunha, no entanto, um pouco
mais a ruína dessa nobre arquitetura. Assistimos a esse fenômeno
extraordinário: o próprio desenvolvimento das ciências tende a diminuir a
noção de Saber. Quero dizer que essa parte da ciência que parecia
inquebrantável e que tinha em comum com a filosofia (ou seja, com a fé no
inteligível e a crença no valor próprio das aquisições do espírito), cede
pouco a pouco a um novo modo de conceber ou avaliar o papel do
conhecimento. O esforço do intelecto não pode mais ser visto como
convergindo para um limite espiritual, rumo ao Verdadeiro. Basta
interrogar-se para sentir dentro de si essa convicção moderna: que todo
saber a que não corresponde nenhum poder efetivo só possui uma
importância convencional ou arbitrária. Todo saber vale somente enquanto
descrição ou receita de um poder verificável. Desde então, toda metafísica e
mesmo uma teoria do conhecimento, quaisquer que sejam, veem-se
brutalmente separadas e distanciadas do que se considera, mais ou menos
conscientemente, por todos, como único saber real – resgatável em ouro.
Num mesmo lance, ética e estética se decompõem por si mesmas em
problemas de legislação, estatística, história ou fisiologia... e em ilusões
perdidas.
Aliás, em que ocasião caberia formar, precisar o Se a estética pudesse existir,
propósito de “criar uma Estética”? – Uma ciência as artes necessariamente
desapareceriam diante dela,
do Belo?... Os modernos ainda usam esse nome? ou seja, diante da sua
Não será que apenas o dizem de passagem? Ou essência.
então... eles sonham com o passado. A Beleza é
uma espécie de morte. A novidade, a intensidade, a estranheza, em suma,
todos os valores de choque a suplantaram. A excitação bruta é a senhora
soberana das almas recentes, e atualmente as obras têm por função nos
arrancar do estado contemplativo, da felicidade estacionária, cuja imagem
antes estava intimamente ligada à ideia geral do Belo. Elas estão cada vez
mais penetradas pelos modos mais instáveis e mais imediatos da vida
psíquica e sensível. O inconsciente, o irracional, o instantâneo, que são –
como dizem os seus nomes – privações ou negações das formas voluntárias
e sustentadas da ação mental, substituíram os modelos esperados pelo
espírito. Não se veem mais os produtos do desejo de “perfeição”.
Observemos de passagem que esse desejo antiquado deve ter se diluído com
a ideia fixa e a sede insaciável de originalidade.
A ambição de perfazer29 confunde-se com o É preciso confessar que uma
projeto de tornar uma obra independente de todas concepção positiva da vida
deve levar fatalmente à busca
as épocas; mas o anseio de ser novo quer fazer dos efeitos imediatos e ao
deste um acontecimento admirável pelo seu abandono do trabalho bem-
contraste com o próprio instante. A primeira feito. Assistimos ao
Crepúsculo da Posteridade.
admite e até exige a hereditariedade, a imitação ou
a tradição, que são graus na sua ascensão para o objeto absoluto que sonha
alcançar. O segundo as rejeita e as implica de maneira ainda mais rigorosa,
pois sua essência é diferir.
Em nosso tempo, uma “definição do Belo” só Nada de mais espantoso para
pode ser considerada um documento histórico ou o olho ingênuo do que certos
problemas colocados pelos
filosófico. Tomada na antiga plenitude de seu filósofos de primeira linha,
sentido, essa palavra ilustre vai se juntar, nas quando não a ausência de
gavetas dos numismatas da linguagem, a muitas outros problemas que o
mesmo espírito ingênuo
outras moedas verbais fora de circulação. considerou ter importância
fundamental.
No entanto, certos problemas subsistem e outros
podem ser propostos, os quais não se deixam classificar dentre as
disciplinas científicas bem definidas, não provêm de nenhuma técnica
particular e que, por outro lado, parecem ter sido ignorados ou
negligenciados pelos filósofos. Mesmo assim, todos eles sempre retornam
ou reincidem, embora enunciados de maneira vaga e estranha, nas
incertezas dos artistas.
Basta pensar, por exemplo, nos problemas gerais de composição (ou
seja, das relações de diversas ordens entre o todo e as partes), naqueles que
resultam da pluralidade das funções de cada elemento de uma obra;
naqueles do ornamento que tangenciam ao mesmo tempo a geometria, a
física, a morfologia, sem se fixarem em parte alguma, mas deixando
entrever não sei que parentesco entre as formas de equilíbrio dos corpos, as
figuras harmônicas, as decorações dos seres vivos e as produções
semiconscientes ou inteiramente conscientes da atividade humana quando
esta se desgasta ao preencher sistematicamente um espaço ou um tempo
livre, como que obedecendo a uma espécie de horror do vazio...
Questões dessa ordem não se impõem ao Quero dizer: tão logo um
pensamento puro. Elas nascem e adquirem força artista se proponha a produzir
uma obra tão complexa, tão
graças a um instinto criador que, desenvolvendo-se vasta ou tão nova para ele
para além da execução instantânea, espera de que os meios e o seu objetivo
soluções procuradas numa meditação não se determinem
imediatamente pelo seu
aparentemente especulativa e filosófica, alguma acordo recíproco, ele se vê
decisão para fixar a forma e a estrutura de uma levado a fazer uma teoria da
aparência geral, a extrair da
criação concreta. Acontece de o artista querer linguagem abstrata uma
recuar (seguindo por algum tempo o caminho de autoridade contra si mesmo
que facilite o seu
um filósofo) a princípios que possam justificar e empreendimento sob o
edificar as suas intenções e comunicá-las com uma pretexto de lhe impor
condições universais.
autoridade mais do que individual; mas isso não Basta se ter vivido ou
passa de uma filosofia comprometida com algum conversado um pouco com
artistas para se observar isso
interesse que, por meio de seus pensamentos, visa e ouvir preceitos....
consequências particulares para uma obra.
Enquanto o verdadeiro filósofo vê o que é como o limite a ser alcançado e o
objeto a ser reencontrado no extremo das excursões e operações de seu
espírito, o artista se propaga no possível e se faz agente do que será.
A diferença mais manifesta entre a estética filosófica e a reflexão do
artista é que a primeira procede de um pensamento que se acredita estranho
às artes e que sente possuir uma essência bem distinta do pensamento de um
poeta ou de um músico, no que ela se engana, como direi logo mais. Para a
estética filosófica, as obras de arte são acidentes, casos particulares, efeitos
de uma sensibilidade ativa e engenhosa que tende cegamente para um
princípio do qual ela, a Filosofia, deve possuir a visão ou noção imediata e
pura. Essa atividade não lhe parece necessária, já que seu objeto supremo
deve pertencer imediatamente ao pensamento filosófico e lhe ser
diretamente acessível por uma atenção aplicada ao conhecimento do
conhecimento ou a um sistema que conjugue o mundo sensível e o mundo
inteligível. O filósofo não sente a necessidade particular da atividade
artística; percebe com dificuldade a importância dos modos materiais, dos
meios e valores de execução, pois tende impreterivelmente a distingui-los
da ideia. Opõe-se a pensar numa troca íntima, perpétua e igualitária entre o
que se quer e o que se pode, entre o que julga acidente e o que julga
substância, entre a “forma” e o “fundo”, entre a consciência e o
automatismo, entre a circunstância e o objetivo, entre a “matéria” e o
“espírito”. Ora, é precisamente o grande hábito, a liberdade adquirida
nessas trocas, a existência no artista de uma espécie de medida comum,
escondida nos elementos de uma extrema diferença de natureza, a
colaboração inevitável e indivisível, a coordenação, a cada instante e em
cada um de seus atos, do arbitrário e do necessário, do esperado e do
inesperado, de seu corpo, de seus materiais, de suas vontades, até mesmo de
suas ausências, que permitem enfim acrescentar à natureza, considerada
como fonte praticamente infinita de questões, modelos, meios e pretextos,
algum objeto que não pode ser simplificado e reduzido a um pensamento
simples e abstrato, pois sua origem e efeito surgem de um sistema
inextrincável de condições independentes. Não se pode resumir um poema
como se resume.... um “universo”. Resumir uma tese é resguardar o
essencial. Resumir (ou substituir por um esquema) uma obra de arte é
perder o essencial. Pode-se ver como essa circunstância (desde que se
compreenda o alcance) torna ilusória a análise do esteta.
De fato, não se pode extrair de um objeto ou de Não é fácil para o filósofo
um dispositivo, seja natural ou artificial, certas conceber que o artista passe
quase que indiferentemente da
características estéticas que poderiam ser forma ao conteúdo e do
encontradas em algum outro lugar para em seguida conteúdo à forma; que um
reduzi-lo a uma fórmula geral das coisas belas. tipo de frase lhe sobrevenha e
que ele procure em seguida
Não que esse método não tenha sido aplicado; é completá-la e justificá-la com
que não nos damos conta de que a própria busca só um sentido; que a ideia de
uma forma tenha para ele o
se aplica sobre um “já encontrado” e que, além valor da ideia que reclama
disso, a coisa considerada não suporta ser reduzida uma forma Etc.
a quaisquer de seus traços sem perder a sua
intrínseca virtude emotiva.
O filósofo não entende facilmente que o artista passe indiferentemente
da forma ao conteúdo e do conteúdo à forma; que uma forma chegue a ele
antes do sentido que ele lhe dará, nem que a ideia de uma forma seja para
ele igual à ideia que exige uma forma.
Em suma, se a estética pudesse existir, as artes desapareceriam diante
dela, ou seja, diante da sua essência.
O que acabo de dizer não deve se estender aos estudos técnicos, que só
se ocupam dos meios e das soluções particulares, esses cujo objeto mais ou
menos direto é a produção ou classificação das obras, sem pretender, de
maneira alguma, reunir-se ao Belo por um caminho que não esteja situado
no seu próprio domínio.
Talvez só se conceba bem aquilo que se Para determinado tipo de
inventou. Pascal nos diz que ele não teria podido meditação, é bem fácil
mostrar novamente a
inventar a pintura. Ele não via a necessidade de veleidade de tudo. É uma
duplicar os objetos mais insignificantes com suas banalidade da carne a que
Pascal deu roupagem. Ela
imagens laboriosamente obtidas. E considerar que não passa de um desprezo de
esse grande artista da palavra tenha, por vezes, se origem fisiológica simples ou
dedicado a desenhar, a fazer o retrato falado de de um propósito de, com
poucos recursos, causar uma
seus pensamentos... É verdade que ele parece ter impressão bem forte sobre os
por fim incluído na mesma recusa todas as espíritos. Pode-se, sem
dificuldades, provocar o
vontades menos uma e considerar tudo, à exceção horror pela vida, a imagem de
da morte, como coisa pintada. sua fragilidade, de suas
misérias, de sua tolice, como
O que fez então Immanuel Kant ao fundar sua também se pode provocar as
Ética e sua Estética sobre o mito da universalidade, ideias eróticas e os apetites
sensuais. Basta mudar as
sobre a presença de um sentimento do universo palavras.
infalível e unânime, encontrado potencialmente na (Mas o primeiro gênero de
exercício é, com certeza, mais
alma de todo homem vindo a esse mundo? E o que nobre.)
fizeram todos os filósofos do Bem e do Belo? Acrescento (mas somente
para alguns) que a vontade de
Estes são criadores que se ignoram e acreditam em não se deixar manipular pelas
não fazer nada além de substituir uma ideia palavras não está isenta de
uma relação com o que
grosseira ou superficial por uma ideia mais exata chamei ou acreditei chamar:
ou mais completa do real, quando, ao contrário, Poesia pura.
eles inventam: uns por divisão sutil, outros por instinto de simetria, um e
outro por profundo amor ao que pode ser. Se não for criar, o que fazem
então quando acrescentam problemas aos problemas, entidades aos seres,
símbolos novos, formas e fórmulas de desenvolvimento ao tesouro dos
jogos do espírito e de suas construções arbitrárias?
O filósofo se mobilizou para absorver o artista, para explicar o que o
artista sente e faz; mas é o contrário que se produz e descobre. Longe de
incluir e assimilar sob a noção de Belo todo o campo da sensibilidade
criadora e se tornar mãe e senhora da estética, a filosofia é o que dela
procede e somente encontra a justificativa, a pacificação de sua consciência
e sua verdadeira profundeza na sua potência construtiva e na sua liberdade
de poesia abstrata. Por si só, uma interpretação estética pode proteger
veneráveis monumentos metafísicos da ruína de seus postulados mais ou
menos velados e dos efeitos destruidores da análise da linguagem e do
espírito.
Inicialmente, talvez pareça bem difícil pensar como artistas os
problemas que até agora pensamos enquanto investigadores da verdade, de
olhar como belas mentiras – como ficções em si, essas produções da
sinceridade mais íntima... Que situação, pode-se dizer, e que situação!
Filósofos, é preciso assegurar-se contra essa mudança que afinal não passa
de uma mudança de costumes. Eu a veria apenas como uma reforma exigida
pelo curso dos acontecimentos e para a qual encontro uma espécie de figura
na história antiga das artes plásticas. Houve um tempo em que o simulacro
de um homem ou de um animal, mesmo vendo-o sair das mãos de um
artesão e por mais imóvel e bruto que fosse, era considerado não apenas
igual ao vivo, mas dotado de forças sobrenaturais. Fabricavam-se deuses de
pedra e madeira que nem mesmo se pareciam com os homens;
alimentávamos e venerávamos essas imagens que estavam longe de ser
imagens; e veja o fato admirável: quanto mais informes, mais adoradas, o
que também se observa na comunicação da criança com suas bonecas e dos
amantes com os amados e que é um traço profundamente significativo.
(Talvez acreditemos receber de um objeto tanto mais vida quanto mais vida
somos obrigados a lhe conferir). Mas, pouco a pouco, quando essa vida
comunicada ia se enfraquecendo e se furtando a imagens tão grosseiras, o
ídolo se fez belo. Cerceada pela crítica, ela perde seus poderes imaginários
sobre os acontecimentos e os seres para adquirir um poder real sobre os
olhares. A estatuária se tornou livre, tornou-se ela mesma.
Sem chocar ou irritar cruelmente o sentimento Sim, todas essas abstrações
filosófico, seria possível comparar aos ídolos que da filosofia tradicional me
parecem obras de Primitivos.
mencionamos essas verdades tão adoradas, esses Se ouso dizer, existe uma
princípios, essas Ideias, esse Ser, essas Essências, certa ingenuidade nessas
noções e nos problemas que
essas Categorias, esses Númenos, esse Universo, exprimem. As noções de
todo esse povo de noções que pareceram realidade e causalidade..., em
sucessivamente necessárias? Poderíamos então nos particular, me parecem bem
rudimentares...
perguntar se a filosofia seria para a filosofia Introduzir palavras abstratas
tradicional aquilo que uma estátua do século quinto sem dar definições nítidas e
nitidamente convencionais,
é para as divindades sem rosto bem antigas? parece-me bem criticável.
Às vezes penso que, ao se tornar pouco a pouco
possível e admissível compor ideias e construir abstrações sem ilusões e
sem recurso à faculdade de hipóstase,30 esse tipo de filosofia desprendida
acabará se mostrando mais fecunda e verdadeira do que aquela ligada à
crença primitiva nas explicações, mais humana e mais sedutora do que a
comandada por uma atitude crítica rigorosa. Talvez ela nos permita retomar,
com um novo espírito, o trabalho superior antes realizado pela metafísica,
voltando-se para os fins bem enfraquecidos pela Ela encontrou no arbitrário
crítica. Há muito tempo, a matemática tornou-se mais solto e mais consciente o
meio de desenvolver da
independente de toda finalidade alheia ao seu maneira mais segura possível
próprio conceito e que havia encontrado pelo puro a sua arte do necessário.
desenvolvimento de sua técnica e pela consciência
que havia tomado do valor próprio desse desenvolvimento. Todo mundo
sabe como a liberdade dessa sua arte, que parecia dever conduzi-la para
bem longe do real, para um mundo de jogos, dificuldades e elegâncias
inúteis, a tornou maravilhosamente flexível, equipando-a para auxiliar o
trabalho do físico.
Uma arte das ideias, uma arte da ordem das ideias ou da pluralidade das
ideias – será isso uma concepção inteiramente vã? Acho admissível pensar
que nenhuma arquitetura é concreta, e nenhuma música, sonora. Certo
sentimento das ideias, de suas analogias, me parece poder agir e ser
cultivado como o sentimento do som ou da cor; e, se tivesse que propor
uma definição do filósofo, me inclinaria a baseá-la na predominância em
seu ser desse modo de sensibilidade.
Creio que se nasce filósofo como se nasce É porque, quando não
escultor ou músico; e que se esse dom de nascença, acompanhado de um ensino
da liberdade de cada espírito,
até agora, teve por pretexto ou tema a procura de não somente com relação às
certa verdade ou realidade, pode agora confiar em doutrinas, mas ainda com
si mesmo e, em vez de apenas buscar, criar. O relação aos próprios
problemas, o ensino da
filósofo usaria com liberdade as forças que filosofia é, aos meus olhos,
adquiriu sob coerção, e é de infinitas maneiras, antifilosófico.
Trata-se de criar a
numa infinidade de formas, que dispenderia o necessidade de uma volúpia
vigor e a faculdade que lhe são próprios – de dar de filosofar.
vida e movimento às coisas abstratas.
Eis o que permitira salvar os Númenos unicamente pelo gosto de suas
harmonias intrínsecas.
Digo por fim que existe uma excelente demonstração do que acabo de
propor em forma de dúvida. Não era mais do que uma possibilidade, mas
basta considerar o destino dos grandes sistemas para já vê-la realizada. Com
que olhos lemos os filósofos e quem os consulta com a esperança de ali
encontrar mais do que um prazer ou um exercício de seu espírito? Não os
lemos com o sentimento semelhante àquele com o qual nos submetemos
brevemente às regras de um belo jogo? O que seria dessas obras-primas de
uma disciplina inverificável sem essa convenção que aceitamos por amor a
um prazer severo? Refutando um Platão, um Espinosa, não sobraria nada
então de suas surpreendentes construções? Não restaria absolutamente nada,
se não restassem obras de arte.
No entanto, à distância da filosofia e em certos E ademais, o que podem
pontos estratégicos do âmbito da vontade de esperar os pensadores dessa
grandiosa espécie?
inteligência, apareceram certas existências
singulares das quais sabemos que seu pensamento abstrato, não obstante
bem exercitado e capaz das maiores sutilezas e profundidades, jamais
deixava de se preocupar com as criações figuradas, com as aplicações e
provas sensíveis de sua força atenta. Eles parecem ter possuído não sei que
ciência íntima das trocas contínuas entre o arbitrário e o necessário.
Leonardo da Vinci é o tipo supremo desses indivíduos superiores.
O que há de mais surpreendente do que a Montaigne também não
ausência do seu nome na lista dos filósofos aparece nessa lista. Um
homem que respondesse: eu
reconhecidos e agrupados como tais pela tradição? não sei a todas as questões de
Sem dúvida, a falta de textos finalizados e um formulário filosófico não
seria chamado de filósofo.
formalmente filosóficos é uma espécie de motivo No entanto...
para essa exclusão. Além disso, a quantidade de
notas deixadas por Leonardo se apresenta como um conjunto simultâneo
diante do qual ficamos incertos quanto à ordem das questões no seu
espírito. Ficamos hesitantes quanto a como subordinar as suas curiosidades
e intenções, já que ele mesmo parece ter gasto o seu ardor com os assuntos
mais variados, segundo o humor do dia e as circunstâncias; tem-se até a
impressão, que não detesto, de uma espécie de condottiere a serviço de
todas as Musas, ora uma, ora outra.
Mas, como disse mais acima, a existência visível de certa ordem de
ideias é caraterística do filósofo qualificado, admitido a figurar nas31
qualidades que lhe permitem entrar na História da Filosofia (história que só
pode ser feita por algumas convenções, de que a principal é uma definição
necessariamente arbitrária do filósofo e da filosofia).
Leonardo estaria assim excluído, por falta de Não devemos esquecer que a
uma construção explícita de seus pensamentos e, grande glória de um homem
exige que seu espírito possa
não devemos recear dizer, de uma exposição ser lembrado em poucas
facilmente resumida, a qual permitiria classificar, palavras.
problema por problema, comparando com outros
sistemas o essencial de suas concepções.
Gostaria de ir ainda mais longe e distingui-lo dos filósofos por razões
mais substanciais e por traços mais sensíveis do que essas condições
puramente negativas. Vejamos, ou imaginemos, em que seu ato intelectual
difere nitidamente do deles, mesmo que, por instantes, seja bem
semelhante.
Aos olhos de quem o observa, o filósofo tem como finalidade bem
simples: a expressão pelo discurso dos resultados de sua meditação. Ele
visa constituir um saber que possa ser inteiramente expresso e transmitido
pela linguagem.
Mas, para Leonardo, a linguagem não é tudo. Para ele, o saber não é
tudo; e talvez não passe de um meio. Leonardo desenha, calcula, constrói,
decora, usa todos os modos materiais que recebem e experimentam as
ideias e que oferecem oportunidades de viradas imprevistas contra as
coisas, opondo resistências estranhas e condições de um outro mundo que
nenhuma previsão, nenhum conhecimento prévio permitiria incluir de
antemão numa elaboração puramente mental. Para essa natureza numerosa
e voluntária, não basta saber. O que importa é poder. Ele não separa de
modo algum compreender de criar. Não gosta de distinguir teoria da prática,
especulação do aumento de força exterior, nem o verdadeiro do verificável
nem dessa variação do verificável que são as construções de obras e
máquinas.
No sentido moderno da
palavra, ciência consiste em
Desse modo, esse homem é um ancestral fazer depender o saber do
poder; e chega a subordinar a
autêntico e imediato da ciência bem moderna. inteligência ao verificável. A
Quem não vê que esta tende sempre mais a se confiança repousa
inteiramente sobre a certeza
confundir com a aquisição e a posse do poder? de reproduzir ou de rever
Ousaria defini-la, portanto, assim, pois essa certo fenômeno por meio de
certos atos bem definidos.
definição está em nós, por mais que a contestemos: Quanto à maneira de
a ciência é o conjunto de receitas e procedimentos descrever esse fenômeno, de
explicá-lo, esta é a parte
que sempre tem êxito e que vai se aproximando mutável, discutível,
progressivamente de uma tabela de aperfeiçoável, do crescimento
ou da exposição da ciência.
correspondências entre os nossos atos e os
fenômenos, tabela cada vez mais nítida e rica de tais correspondências,
anotadas nos sistemas de notação mais precisos e econômicos.
A infalibilidade na previsão é, com efeito, a única característica a que o
moderno atribui um valor não convencional. Ele se vê tentado a dizer: todo
o resto é Literatura e a incluir nesse resto todas as explicações e todas as
teorias. Não que não reconheça a sua utilidade e até mesmo a sua
necessidade; mas aprendeu a considerá-las como meios e instrumentos:
manobras intermediárias, formas de tatear, modos provisórios, que pelas
combinações de signos e imagens, por tentativas lógicas, preparam a
decisiva percepção final.
Em algumas dezenas de anos, ele viu reinar, sucessiva e mesmo
simultaneamente, teses contraditórias igualmente fecundas, doutrinas e
métodos cujos princípios e exigências teóricas se opunham e se anulavam,
embora seus resultados positivos se acrescentassem como poder adquirido.
Entendeu como assimilar as leis a convenções mais ou menos cômodas; e
sabe também que um grande número dessas mesmas leis perdeu o seu
caráter puro e essencial ao caírem no nível modesto de simples
probabilidades, ou seja, por serem válidas apenas na escala de nossas
observações. Ele conhece enfim as dificuldades crescentes, já quase
intransponíveis, de representar um mundo que suspeitamos impor-se aos
nossos espíritos, mas que, revelado pelo desvio de uma série de recursos e
consequências sensíveis indiretas, construído por uma análise cujos
resultados traduzidos em linguagem comum são desconcertantes, excluindo
toda imagem – já que deve ser a substância da sua substância –, fundindo de
algum modo as categorias, é um mundo que existe e não existe. Todo esse
saber terrivelmente variável, essas hipóteses inumanas, esse conhecimento
incompatível com quem conhece deixam, no entanto, atrás de si um capital
sempre acrescido e incorruptível de fatos e modos de produção de fatos, ou
seja, de poderes.
Assim, todo o trabalho do espírito não pode Esse é o fundamento do
mais ter como objetivo uma contemplação final, verdadeiro Saber. As
proposições desse verdadeiro
cuja ideia nem faz mais sentido (ou se aproximaria saber não devem passar de
cada vez mais de uma concepção teológica, fórmulas de atos: faça isso,
exigindo ter conosco um contemplador faça aquilo. É o poder, ou
seja, transformação exterior e
incomensurável); ao contrário, ele aparece para o certa, suspensa numa
espírito como atividade intermediária entre duas modificação
consciente.
interior

experiências ou dois estados da experiência cujo


primeiro está dado e o segundo, previsto.
Esta espécie de saber jamais se afasta dos atos e instrumentos de
execução e controle, longe dos quais, ademais,, ele não tem o menor
sentido, ao passo que, fundado sobre eles e a eles se referindo a todo
instante, ele deixa que se recuse todo sentido a qualquer outro saber, a todo
saber que não proceda unicamente do discurso e que não conduza
unicamente para as ideias.
O que acontece então com a filosofia, sitiada e Nossa época viu a metafísica
obcecada com descobertas cujo imprevisto surpreendida pelas variações
da ciência, da maneira mais
desperta as maiores dúvidas sobre as virtudes e os brusca e por vezes mais
valores das ideias e das deduções do espírito, cômica.
reduzido unicamente a si mesmo e a abarcar o Por isso me ocorreu pensar
que, se fosse filósofo, eu me
mundo. O que acontece com ela quando, dedicaria a tornar meu
pensamento filosófico
pressionada, atravessada e surpreendida a cada independente de todos os
conhecimentos que uma
instante pela atividade furiosa das ciências físicas, experiência nova pudesse
ela se vê, por outro lado, inquieta e ameaçada em arruinar.
seus hábitos mais antigos, mais tenazes (e talvez
menos lamentáveis), pelos trabalhos lentos e minuciosos dos filólogos e dos
linguistas? O que acontece com: Eu penso, e o que acontece com: Eu
existo? O que acontece e volta a acontecer com esse verbo nulo e
misterioso, o verbo SER que fez uma carreira tão grande no vazio? Artistas
muito sutis extraíram infinitas questões e respostas dessas sílabas humildes
cujo desvanecimento ou usura de seus primeiros sentidos permitiram uma
estranha sorte.
Se não levamos de nenhum modo em conta mas se dá por fim em si
nossos hábitos de pensamento e nos restringimos mesmo.
ao que mostra um olhar atual sobre o estado das
coisas do espírito, observa-se facilmente que a filosofia, definida por sua
obra enquanto obra escrita, é objetivamente um gênero literário particular,
caracterizado por certos temas e pela frequência de certos termos e formas.
Esse gênero tão particular de trabalho mental e de produção verbal pretende
de todo modo alcançar uma situação suprema pela generalidade de suas
visões e suas fórmulas; mas como é destituída de toda verificação exterior,
como não consegue instituir nenhum poder, e essa generalidade invocada
não pode nem deve ser considerada como transitória, como meio ou
expressão de resultados verificáveis, é preciso então que a classifiquemos
não muito longe da poesia...
Mas esses artistas a que me referia não se É preciso confessar que é
reconhecem e não querem ser artistas. Sem dúvida, próprio dos maiores filósofos
acrescentar os problemas de
sua arte não é como a dos poetas, a arte de abusar interpretação aos problemas
da ressonância das palavras; ela especula sobre imediatos que a observação
uma espécie de fé na existência de um valor pode colocar.
Cada um deles importa uma
absoluto que pode ser isolado de seus sentidos. O terminologia e, em alguns
casos, os termos que
que é a realidade? pergunta-se o filósofo; e o que é introduzem não são bem
definidos.
a liberdade? Ele se põe no estado de ignorar a
origem ao mesmo tempo metafórica, social, estatística desses nomes, cujo
deslize em direção a sentidos indefiníveis lhe permitirá produzir no espírito
as combinações mais profundas e mais delicadas. Para ele, a sua questão
não termina com a simples história de um vocábulo através dos tempos, o
detalhe dos equívocos, os empregos figurados, as locuções singulares,
graças ao número e às incoerências das quais uma pobre palavra se torna
tão complexa e misteriosa como um ser, incitando uma curiosidade quase
ansiosa, furtando-se a toda análise em termos cabais e, criatura fortuita de
necessidades simples, antigo expediente de comércios vulgares e trocas
imediatas, se elevando ao destino mais alto de provocar toda a força de
interrogação e todos os recursos de respostas de um espírito
extraordinariamente atento. Essa palavra, esse nada, esse meio de um
destino criado anonimamente, alterado por quem quer que seja, pela
meditação e dialética de alguns, tornou-se um fantástico instrumento
adequado a atormentar todo um conjunto dos conjuntos do pensamento,
uma espécie de chave capaz de expandir todos os recursos de uma mente
potente, abrir os abismos da espera ao desejo de tudo conceber.
Ora, toda operação de um artista é fazer do nada alguma coisa. E o que
pode ser mais verdadeiramente pessoal, mais significativo numa pessoa e
em sua distância individual do que esse trabalho do filósofo de inserir, na
expressão comum, mil dificuldades jamais suspeitadas por quem a
formulou, de criar dúvidas e perturbações, descobrir antinomias,
surpreender os costumes dos espíritos com todo um jogo de substituições
que desconcertam e se impõem... O que pode haver de mais pessoal sob as
aparências do universal?
A palavra, meio e finalidade do filósofo; a A ideia do animal-máquina
palavra, sua matéria vil em que respira e que ele expressa por Descartes e
elemento admirável de sua
atormenta em sua profundidade, não era para filosofia aparece de maneira
Leonardo apenas o menor de seus meios. Sabemos bem viva em Leonardo. Nele,
a encontramos de algum
que até a matemática, que não passa de um modo em ato. Não sei se antes
discurso com regras exatas, era para ele apenas um dele alguém havia sonhado
em considerar os vivos com
aparelho transitório. “A mecânica, ele dizia, é o um olho de mecânico. A
paraíso da ciência matemática.” (Pensamento já sustentação, a propulsão, a
respiração, tudo é para ele
totalmente cartesiano como era cartesiana a sua uma oportunidade mecânica.
preocupação constante com a física fisiológica.) Ele era mais anatomista e
mais engenheiro do que
Assim ele procedia pela via em que nossos Descartes. A ambição do
espíritos se veem agora engajados. autômato, do conhecimento
pela construção, era nele
Ele pertencia, contudo, a um tempo menos soberana.
interessado do que o nosso ou menos acostumado a
confundir o útil, o confortável ou o estimulante com o que provoca o estado
de ressonância e reciprocidade harmônica entre as sensações, os desejos,
os movimentos e os pensamentos. O que parecia mais desejável não era de
modo algum o que aumenta as satisfações do corpo e que lhe poupa o
tempo ou a fadiga e muito menos o que surpreende e irrita somente a alma
dos sentidos. Era sim o que multiplica o prazer sensual pelos artifícios e
cálculos da inteligência e que, pela introdução de certa espiritualidade
especiosa e deliciosa, acaba gerando uma volúpia muito rara. Entre os
faunos e os anjos, o Renascimento sabia muito bem fazer combinações bem
humanas.
É por onde chego no que para mim é difícil explicar e o mais duro de
fazer entender.
Eis então o que me pareceu mais extraordinário Pois sua pintura sempre lhe
em Leonardo e que o opõe e reúne aos filósofos de exige uma análise minuciosa
e prévia dos objetos que quer
maneira bem mais estranha e profunda do que tudo representar, análise que não
que havia alegado anteriormente sobre ele e os se limita de modo algum às
demais. Leonardo é pintor: digo que ele tem a características visuais, mas
que chega ao mais íntimo ou
pintura como filosofia. Na verdade, é ele mesmo orgânico, à física, à
quem o diz; e ele fala pintura como se fala fisiologia, até a psicologia,
para que no final seu olho se
filosofia: ou seja, fez dela a referência de todas as reserve, de alguma maneira, a
perceber os acidentes visíveis
coisas. Fez dessa arte (que parece tão particular do modelo que resultam de
para o olhar do pensamento e tão longe de poder sua estrutura velada.
satisfazer toda inteligência) uma ideia excessiva:
ele a olha como uma finalidade última do esforço de um espírito universal.
Assim também, em nossos dias, Mallarmé pensou, com singularidade, que
o mundo era feito para ser expresso, que todas as coisas acabariam por
exprimir-se segundo os meios da poesia.
Pintar, para Leonardo, é uma operação que Benvenuto Cellini nos ensinou
requer todos os conhecimentos e quase todas as que Leonardo foi o primeiro a
admirar as formas orgânicas
técnicas: geometria, dinâmica, geologia, fisiologia. adaptadas aos papéis
Figurar uma batalha supõe um estudo dos vórtices funcionais. Ele fez
e das nuvens levantadas de poeira. Ora, ele só quer compreender a espécie de
beleza de certos ossos (a
representá-los após tê-los observado com olhos omoplata) e articulações (o
cuja atenção é científica e inteiramente penetrada braço articulado com a mão).
pelo conhecimento de suas leis. Um personagem é
uma síntese das pesquisas que vão da dissecação à psicologia. Ele tanto
nota com precisão aguda as atitudes dos corpos segundo a idade e o sexo,
como analisa os atos profissionais. Diante de sua vontade de alcançar e
apreender as formas por suas causas, todas as coisas são para ele como que
iguais. Ele se movimenta, de algum modo, a partir das aparências dos
objetos; reduz ou tenta reduzir as características morfológicas a sistemas de
forças; pela execução do desenho ou do quadro, conclui ou, melhor, renova
o movimento desses sistemas conhecidos – sentidos – e raciocinados, onde
recolhe todo o fruto de sua fadiga. Recriou dessa forma um aspecto ou uma
projeção dos seres analisando em profundidade todas as suas propriedades.
– Mas, em tudo isso, de que lhe serve a Uma estética toda moderna
linguagem? – Assim como o número, apenas de só pode basear-se sobre esse
princípio de adaptação. Os
instrumento. É para ele apenas um auxiliar, um gregos sonharam apenas com
acessório de trabalho que, nas realizações de seu os efeitos óticos.
Eles não chegaram a isolar o
desejo, desempenha o mesmo papel que os croquis prazer intelectual extraído da
função virtual das formas. No
à margem na elaboração das expressões daqueles entanto, em todos os tempos,
que escrevem. criaram-se armas e utensílios
perfeitos.
Em suma, Leonardo encontra na obra pintada
todos os problemas que o objetivo de uma síntese da natureza pode propor
ao espírito, além de alguns outros.
Ele é então filósofo, ou não é filósofo?
Como se houvesse apenas uma dúvida quanto à Quando a circunstância me
palavra... mas se trata de uma coisa bem diferente fez considerar da Vinci, nele
vi um tipo desse trabalho bem
do que a escolha de uma apelação bem vaga. O que consciente onde arte e ciência
me faz hesitar em atribuir o belo título de filósofo a se imiscuem, o exemplar de
um nome ilustre por tantas obras não escritas é um sistema de arte baseado
na análise geral e, ao fazer
encontrar o problema das relações entre a atividade uma obra particular, sempre
total de um espírito com o modo de expressão que cuidando para não só a
compor com elementos
ele adota, ou seja: com o tipo de trabalho que verificáveis.
haverá de lhe conferir a sensação mais intensa de A análise de Leonardo o leva
a estender o desejo de pintar
sua força e com as resistências exteriores que ele à curiosidade de todos os
aceita. fenômenos, mesmo não
visuais, nenhum lhe
O caso particular de Leonardo da Vinci nos parecendo indiferente à arte
oferece uma dessas coincidências surpreendentes de pintar, como essa lhe
parecia preciosa para o
que exigem de nós um retorno aos nossos hábitos conhecimento em geral.
espirituais e como que um despertar de nossa Essa reciprocidade
surpreendente entre a
atenção no ambiente das ideias que nos foram fabricação e o saber, pela
transmitidas. qual a primeira é garantida
pelo segundo, é característica
Com uma segurança bastante grande, parece-me de Leonardo; opondo-se à
que dele se pode afirmar que o lugar ocupado pela ciência puramente verbal,
acabou dominando a era
filosofia na vida de um espírito, a exigência atual, em grande detrimento
profunda de que é testemunha, a curiosidade da filosofia, que aparece
como coisa incompleta.
generalizada que a acompanha, a necessidade da
quantidade de fatos que retém e assimila, a presença constante da sede das
causas, é exatamente o lugar que a permanência da preocupação com a
obra pintada ocupa em Leonardo.

Aqui está o que em nós fere distinções bem antigas e atormenta o modo
como a filosofia e a pintura foram figuradas e separadas em nossas ideias.
Em relação aos nossos hábitos, Leonardo parece uma espécie de
monstro, um centauro ou uma quimera, pela espécie ambígua que
representa para os espíritos bem exercitados em dividir a nossa natureza e
em considerar os filósofos como seres sem mãos e sem olhos e os artistas
com cabeças tão reduzidas a ponto de nada mais possuírem além de
instintos...
É preciso, no entanto, tentar tornar concebível essa estranha substituição
da filosofia pelo culto de uma arte plástica. Observemos inicialmente que
não pode ser questão de raciocinar sobre os estados ou fatos mais interiores,
pois, no íntimo ou no instante da vida psíquica, as diferenças entre o
filósofo e o artista são necessariamente indeterminadas quando não
inexistentes. Somos então obrigados a chegar ao que se vê, se distingue e se
opõe objetivamente e é aqui que reencontramos o que havíamos observado
há pouco: o problema essencial do papel da linguagem. Se a filosofia é
inseparável da expressão pela linguagem, se essa expressão é a finalidade
de todo filósofo, Leonardo, cuja finalidade é a pintura, não é filósofo
mesmo que comporte a maior parte de suas características. Só que assim
nos vemos então obrigados a aceitar todas as consequências desse
julgamento, que são rigorosas. Vou dar uma ideia.
O filósofo descreve o que pensou. Um sistema A lógica só possui virtudes
de filosofia se resume numa classificação de bem moderadas quando se
emprega a linguagem
palavras ou numa tabela de definições. A lógica ordinária, ou seja, a
não passa da permanência das propriedades dessa linguagem sem definições
tabela e a maneira como dela se serve. É a isso que absolutas.
estamos acostumados e o que explica concedermos
somente à linguagem articulada um lugar todo especial e central no regime
de nossos espíritos. Sem dúvida, trata-se de um lugar devido, e a
linguagem, não obstante feita de convenções inumeráveis, é quase nós
mesmos. Quase não podemos pensar sem ela, tampouco dirigir, conservar,
apoderar-se de nosso pensamento e, sobretudo... em alguma medida, prevê-
lo.
Mas olhemos um pouco mais de perto; É recolocar em questão os
consideremos o que se passa em nós. Tão logo valores primeiramente dados
de nosso pensamento, agindo
nosso pensamento tende a se aprofundar, ou seja, a sobre as durações da
se aproximar de seu objeto, tentando operar sobre existência consciente desses
as próprias coisas (desde que o seu ato se faça dados.
coisa) e não mais sobre signos quaisquer que
provocam as ideias superficiais das coisas, tão logo vivemos esse
pensamento, o sentimos separar-se de toda linguagem convencional. Por
mais intimamente que possa se tramar em nossa presença, por mais densa
que seja a distribuição de suas chances; por mais sensível que seja em nós
essa organização adquirida e pronta a intervir, podemos, mediante certo
esforço, separá-lo de nossa vida mental momentânea por uma espécie de
aumento ou pressão de duração. Sentimos que as palavras nos faltam e
sabemos que não há nenhuma razão para que alguma possa responder por
nós, ou seja, nos substituir, pois a força das palavras (de onde elas extraem
a sua utilidade) é de nos devolver para a vizinhança desses estados já
atestados, de regularizar ou instituir a repetição e assim esposar essa vida
mental que jamais se repete. Talvez seja isso pensar profundamente, o que
não significa dizer: pensar mais utilmente, mais exatamente, mais
completamente do que se costuma; isso nada mais é do que pensar longe,
pensar o mais longe possível do automatismo verbal. Fazemos assim a
experiência de que o vocabulário e a gramática são dons estranhos: res inter
alios actas.32 Percebemos diretamente que, por mais orgânica e
indispensável que seja, a linguagem não pode realizar nada no mundo do
pensamento, onde nada fixa a sua natureza transitiva. Nossa atenção a
distingue de nós. Tanto o nosso rigor como o nosso fervor a ela nos opõe.
Não obstante, os filósofos tentaram relacionar a Todo pensamento exige que se
sua linguagem à sua vida profunda, reclassificá-la tome uma coisa por outra: um
segundo por um ano.
e completá-la um pouco de acordo com as
necessidades de sua experiência solitária a fim de torná-la um meio mais
sutil, mais certo de conhecer e reconhecer o seu conhecimento. Pode-se
imaginar a filosofia como a atitude, a espera, a obrigação, pelas quais
qualquer um às vezes pensa a sua vida ou vive o seu pensamento, numa
espécie de equivalência ou estado reversível entre o ser e o conhecer,
tentando suspender toda expressão convencional enquanto pressente a
ordenação e o aclaramento de uma combinação bem mais preciosa do que
as demais, do real que ele sente oferecer e daquele que pode receber.
A natureza da linguagem é, no entanto, Não há um só problema em
inteiramente contrária ao feliz sucesso desse filosofia que não possa ser
enunciado de maneira que
grande esforço que todos os filósofos tentaram. Os não subsista nenhuma dúvida
mais potentes se consumiram na tentativa de fazer sobre a sua existência.
falar o seu pensamento. Em vão criaram ou
transfiguraram certas palavras, sem, porém, conseguir nos transmitir os seus
estados. Que se trate das Ideias, da Dynamis, do Ser, do Númeno, do Cogito
ou do Eu, todas elas não passam de cifras, determinadas unicamente por um
contexto, sendo assim, por uma espécie de criação pessoal, que o seu leitor,
tal como acontece com o leitor de poetas, imprime força de vida às obras
em que o discurso ordinário se desdobra para exprimir coisas que os
homens não podem trocar entre si e que não existem no ambiente onde soa
a palavra.
Pode-se ver que ao fundar toda uma filosofia sobre a expressão verbal,
recusando-lhe ao mesmo tempo todas as liberdades e mesmo... os
incômodos que convêm às artes, corre-se o risco de reduzi-la aos diversos
modos que alguns solitários admiráveis encontram para fazer uma oração.
Aliás, nunca se constatou e não se pode mesmo imaginar dois filósofos
compatíveis um com o outro tampouco uma doutrina cuja interpretação seja
única e constante.
Há ainda outra coisa a se observar sobre a relação entre a atividade
filosófica e a palavra: vou mencionar apenas um caso.
Olhemos simplesmente ao nosso redor onde Ainda é preciso observar que
vemos decrescer dia a dia a importância da esse ajustamento está muitas
vezes bem longe de ser
linguagem em todos os campos nos quais vemos satisfatório. Cf. Definições de
também se acentuar um crescimento da precisão. ponto, linha, relação etc.
Sem dúvida, a linguagem comum continuará a
servir de instrumento inicial e geral da vida para estabelecer relações entre a
vida exterior e interior; ela sempre ensinará as demais linguagens criadas
conscientemente e ajustará, nos espíritos ainda não especializados, esses
mecanismos potentes e límpidos. Pouco a pouco, porém, ela assume, por
contraste, o caráter de um meio de aproximação primeira e grosseira. O seu
papel vai diminuindo com o desenvolvimento de sistemas de notações mais
puros e adaptados cada um a um único uso. Mas mesmo assim, em cada
grau dessa contração, corresponde uma restrição do antigo horizonte da
filosofia... Tudo o que adquire precisão num mundo onde tudo tende a se
precisar escapa aos meios primitivos de expressão.
Em certos casos bem surpreendentes, acontece Não há filosofia que resista
hoje em dia de toda expressão feita por meio de (até agora) a um exame
preciso de suas definições.
signos discretos, arbitrariamente escolhidos, ser
substituída por traços das próprias coisas ou pelas transposições ou
inscrições derivadas diretamente delas. A grande invenção que consiste em
tornar as leis sensíveis para o olho e como que legíveis a olho nu foi
incorporada ao conhecimento; de alguma maneira, ela duplica o mundo da
experiência com um mundo visível de curvas, superfícies, diagramas que
transpõem as propriedades para figuras cujas inflexões nós seguimos com
nossos olhos, e experimentamos, pela consciência desse movimento, o
sentimento das vicissitudes de uma grandeza. O gráfico consegue transmitir
o contínuo de que a palavra é incapaz; ele a supera em evidência e precisão.
É ela sem dúvida que o obriga a existir, que lhe confere um sentido, que o
interpreta; mas não é mais por ela que o ato de posse mental é consumado.
Vê-se constituir pouco a pouco uma espécie de ideografia das relações
figuradas entre qualidades e quantidades, linguagem que tem por gramática
um conjunto de convenções preliminares (escalas, eixos, redes etc.); por
lógica, a dependência das figuras ou das porções de figuras, suas
propriedades de situação etc.
A arte musical nos oferece uma ordem e ademais, uma analógica.
inteiramente diferente de representação (se bem
que ligada aos gráficos por certas analogias). Sabemos como são profundos
os recursos do universo dos sons e que presença de toda vida afetiva, que
intuições de labirintos, de cruzamentos e superposições da lembrança, da
dúvida, dos ímpetos; que forças, que vidas e mortes fictícias nos são
comunicadas e impostas pelos artifícios do compositor. Por vezes, o
desenho e a modulação estão em tamanho acordo com as leis íntimas de
nossas mudanças de espírito que fazem sonhar que são fórmulas auditivas
exatas e que poderiam servir de modelos para um estudo objetivo dos
fenômenos subjetivos mais sutis. Nesse tipo de pesquisa, nenhuma
descrição verbal consegue se aproximar das imagens produzidas pelo
ouvido porque estas são transformações e restituições dos fatos vitais por
elas transmitidas, mesmo se apresentando, pois se trata de uma arte, como
criações arbitrárias de alguém.
Por esses exemplos pode-se ver como as figuras Haveria muito a dizer sobre o
e os encadeamentos de sensações auditivas arbitrário.
Tudo o que fazemos de
conseguem se ligar aos modos supostamente mais arbitrário (aos nossos
profundos, ou seja: aos que se acham mais próprios olhos), como
distantes da linguagem do pensamento filosófico. rabiscar casualmente numa
folha de papel, resulta da
Pode-se ver como o mais precioso que este pode atividade separada de um
órgão. Fecham-se os olhos
conter ou perceber e que só consegue comunicar, para extrair ao acaso uma
carta do chapéu. A tais atos
tão imperfeitamente, é, senão transmitido, ao (análogos a lapsos de
menos sugerido por vias nada tradicionais. atenção) opõem-se as nossas
atividades controladas.
A filosofia, porém, procurou constantemente, e Tudo isso se exprimiria de
sempre haverá de procurar, assegurar-se cada vez maneira bem simples caso se
observasse que o número das
mais contra o perigo de parecer perseguir um condições independentes
objetivo puramente verbal. A consciência de si que impostas a um ato mede o
grau de consciência.
é (sob diversos nomes) seu principal meio de
existência (como é também uma ocasião sempre próxima do ceticismo e da
perdição), por um lado, continua mostrando o seu vigor e a sua necessidade
interiores e, por outro, toda a fraqueza devida à sua dependência do
discurso. É por isso que quase todos os filósofos insistem, cada um segundo
a sua natureza, em distinguir o seu pensamento de todas as convenções;
alguns, particularmente sensíveis às produções e às transformações
contínuas de seu mundo interior, prestam atenção a uma região aquém da
linguagem, onde observam essa forma íntima nascente que pode ser
qualificada de intuições, pois nossa espontaneidade aparente ou real
compreende, dentre os seus bens, luzes imediatas, soluções instantâneas,
ímpetos e decisões inesperadas. Outros, porém, menos inclinados a
perceber a mudança do que atentos ao que se conserva, acreditam
consolidar na própria linguagem as posições de seu pensamento. Esses
depositam sua confiança nas leis formais, nelas descobrindo a estrutura
própria do inteligível ao qual eles estimam que toda linguagem empresta
sua descontinuidade e o tipo de suas proposições.
Os primeiros, quando desenvolvem a tendência Todavia, eles nunca o fizeram
que lhes caracteriza, são levados por um pendor (ao que eu saiba), a partir de
uma análise da linguagem
imperceptível em direção à arte do tempo e da que a reduza à sua natureza
escuta; são os filósofos musicistas. Os segundos, estatística e permita não
atribuir à essência das coisas
que atribuem à linguagem uma armadura de razão criações verbais (e,
e uma espécie de plano bem definido; que consequentemente,
problemas) que tenham por
contemplam, como se pode dizer, todas as origem a ingenuidade, o
sentimento poético, os
implicações como simultâneas e que tentam expedientes e sondagens de
reconstruir na surdina ou perfazer como obra de gerações.
O esquecimento desses
alguém essa obra que é de todo mundo e de modestos começos é sem
ninguém são bem comparáveis a arquitetos... dúvida a condição de uma
boa quantidade de problemas
Não vejo por que ambos os tipos de filósofos filosóficos.
não adotariam nosso Leonardo, para quem a Em particular, a existência de
noções discordantes, ou a
pintura ocupou o lugar da filosofia? coexistência acidental de
termos criados
independentemente uns dos
outros, dá lugar a antinomias
e a paradoxos bem favoráveis
a um rico desenvolvimento de
mal-entendidos e de sutilezas
bem filosóficas...

Desenho de Valéry intitulado “Hieróglifo da linguagem interior” e que se encontra em um de seus


Cahiers (Cadernos), o de número 24, datado de 1940. Na edição da Gallimard está na página 145. É
uma imagem da pluralidade dos eus (mois) quando eu diz eu, quando eu se enuncia eu e assim
dizendo eu se escuta outro e se escuta dizendo “eu”. No texto pode-se ler: “ego dico mihi, ou melhor,
ego dico é me …; os eus (mois) funcionais complementares, inseparáveis e dividindo o eu (moi) um.
Esses ‘eus’ (mois) sem imagem podem ser assimilados aos polos de um corte no percurso de um
estímulo”.

28 Leo Ferrero é um escritor e dramaturgo italiano nascido em Turim, em 1903, e morto em um


acidente automobilístico em 1933, em Santa Fé, nos Estados Unidos. Formou-se em Letras na
Universidade de Florença em 1927 com uma tese sobre Leonardo da Vinci e a obra de arte, cuja
tradução francesa teve o presente texto de Valéry como prefácio. (N.T.)
29 Nas línguas latinas, a palavra perfeição vem do verbo perfazer. Aqui deve-se ler per-fazer no
sentido de fazer com perfeição, ou seja, percorrendo todas as partes e dimensões. (N.T.)
30 Hipóstase (em grego antigo: – hypostasis) significa literalmente sub-stância. Durante as
disputas teológicas cristãs dos séculos III e IV, o termo foi usado para definir o teor de realidade do
pai, filho e espírito santo e se estabeleceu como sinônimo de pessoa ou realidade individual por
oposição à ousia, que significa essência universal. (N. T).
31 Valéry utiliza aqui uma antiga preposição “ès” que entra na língua francesa por volta do século X
e que é a forma contrata da preposição “en” mais o artigo plural “les”, significando tanto “nas” como
“nos”. (N.T.)
32 A expressão res inter alios acta significa “coisa feita ou acordada entre outros”; é uma expressão
jurídica usada no sentido de um acordo feito entre pessoas que não nos dizem respeito. (N.T.)
FRAGMENTO DE UM DESCARTES33

33 Publicado pela primeira vez em La Nouvelle Revue Française, nº 140, p. 834-840,de 1 maio de
1925. Esse fragmento deveria estender-se e servir de prefácio a uma edição do Discurso do método
em preparação pelos editores Helleu et Sergent. Foi reeditado como Avant-propos à Descartes,
Discours de la méthode, suivi de six lettres, de pensées et de fragments, Edition d’art Édouard
Pelletan, 1925. Reeditado depois também em Mâitres et Amis (1927), Variété II (1929), Oeuvres, v.
G, Variété, v. 10, 1937. Trinta anos antes, aos 25 de agosto de 1894, Valéry escreveu as seguintes
linhas para André Gide: ”Reli o Discurso do método que é sem dúvida o romance moderno como
podia ser feito então. Deve-se observar que a filosofia posterior rejeitou a parte autobiográfica.
Todavia, esse é o ponto a ser retomado e seria preciso escrever a vida de uma teoria como já muito se
escreveu sobre a vida de uma paixão (copulação). Mas isso é menos cômodo – pois, puritano como
sou, gostaria que a teoria fosse melhor que a truculência como em Luís Lambert…/ (Luís Lambert é
um romance de Honoré de Balzac que faz parte da seção dos Estudos filosóficos na sua obra-prima, A
comédia humana). (N.T.)
H á quinze anos, ainda se podia encontrar, numa rua bem próxima à
Place Royale, uma caserna de soldados onde os reservistas
vinham se registrar e carimbar os seus documentos militares.
O homem entrava e buscava se orientar num pátio nobre e familiar. Os
escritórios que ele procurava se encontravam à esquerda, numa das arcadas
em forma de alça e remanescentes de um claustro bem antigo. Sua
majestade arruinada se ajustava muito bem à doce vida, meio oficial, meio
íntima, ali estabelecida desde o Primeiro Império. Havia um ordenança,
espírito ausente; gaiolas de canarinhos penduradas nas pilastras; quepes e
potes de flores nas janelas; aqui e ali, umas calças compridas brancas
secando em cordas. Ano após ano, milhares de recrutas atravessavam
necessariamente esse pátio. Não sei se algum deles chegou a perceber que
estava sendo obrigado a fazer uma peregrinação. Mesmo as mais altas
autoridades que organizavam tudo isso desconheciam o verdadeiro objeto.
Acreditavam estar manobrando os reservistas para os seus próprios fins, só
que, sem saber, estavam nos obrigando a visitar um dos monumentos mais
respeitáveis da história do pensamento.
Essa caserna tinha substituído um convento, e os soldados, os frades da
ordem dos Mínimos.34 Foi lá que, no início do século XVII, o padre
Mersenne, homem bastante prestativo e altamente considerado no círculo
dos intelectuais, viveu e morreu. Era um religioso simples e muito curioso,
que propunha problemas, por vezes até mesmo enigmas, para uma Europa
intelectual, bem distinta da nossa. Agente de fermentação científica e de
intermediação entre estudiosos de credos religiosos diversos, foi amigo de
infância, amigo constante e extremado de Descartes, propagador de suas
doutrinas e um dos mais amáveis dentre esses seres secundários cujo papel
talvez seja essencial para o desenvolvimento dos grandes homens e o
desencadeamento de grandes eventos. A investigação sistemática da história
desses auxiliares, serviçais, confidentes ou intermediários, que sempre se
encontram na proximidade do gênio e entre as pequenas causas vivas dos
grandes acontecimentos, seria um estudo bastante seminal e, imagino,
muito frutífero.
Quando vinha a Paris, Descartes recebia pela manhã visitas no Convento
dos Mínimos da Place Royale, na casa desse padre tão inestimável. Foi lá
que recebeu o Sr. Mélian, no dia 11 de julho de 1644. Quando chegou de
Haia, em junho de 1647, ficou na casa do abade Picot,35 na rua Geoffroy-
Lasnier, onde redigiu o prefácio dos Princípios.36 Partiu para a Bretanha
onde tinha negócios para resolver, retornando por Poitou e La Tourraine e,
quando voltou a Paris, recebeu, no começo do mês de setembro, a boa
notícia de uma pensão de três mil francos de renda que o rei acabara de lhe
conceder, atendendo a proposta do Ministro Cardeal. Notícias desse tipo
eram raras.
Foi então que “Sr. Pascal o jovem, encontrando-se em Paris e mostrando
desejo de conhecê-lo, teve a satisfação de conversar com ele nos Mínimos,
onde soubera que poderia encontrá-lo. O Sr. Descartes teve o prazer de
ouvi-lo discorrer sobre as experiências do vazio que havia feito em Rouen e
cujo relato, em vias de ser impresso, ele enviou da Holanda, logo ao
regressar. A conversa que teve com o Sr. Pascal propiciou muito alegria ao
Sr. Descartes”.
Sinto-me muito ligado à glória deste último para conseguir transcrever a
sua continuação.
Um dia, passando por lá, aborreci-me ao ver que, no lugar da antiga
morada dos Mínimos, havia agora um bloco edificado em forma de cubo,
revestido de cal bem nova e bastante pura, repleto de balas de canhão com
plumas de fogo gravadas em pedras macias.37 Os policiais haviam sido
transferidos para esse bloco. Eu os preferia no antigo convento, pois mesmo
sendo uma espécie de ordem militar, ela não se opõe de modo algum ao
matrimônio de seus membros.
Há poucas nações na Europa onde uma casa consagrada por uma
presença tão grandiosa e que teria assistido a tais conversas pudesse
desaparecer de forma tão discreta como aqui entre nós. Não havia sequer
uma placa no muro dos Mínimos que o fizesse falar sobre o que viu.
Ninguém parecia saber do que acabo de contar e que encontrei em Baillet,38
já que nenhuma alma havia protestado contra a destruição desse prédio.
Tudo desapareceu na nuvem de pó levantada pelas empresas de demolição.
Aqui, Descartes não teve a menor sorte. Não há em Paris nenhuma
estátua desse homem admirável – remediar isso receberia meu inteiro
consentimento. A ele foi concedida apenas uma rua bem ruim, se bem que
animada pelos brilhos da Politécnica39 e um pouco obscurecida pela sombra
de Verlaine, que ali faleceu. Por fim, seus ossos foram recolhidos do lado de
Saint-Germain-des-Prés, mas nunca soube de alguém que quisesse levá-los
para as criptas do Panteão.
Sendo, no entanto, o homem prudente que era e o artista incomparável
no trabalho das matérias mais duras, soube construir para si mesmo um
túmulo, um desses bem invejáveis. Nele, depositou a estátua de seu espírito,
uma estátua tão nítida e verossímil que se pode jurar que ele vive, que
falamos com ele pessoalmente, que entre nós não existe de modo algum
trezentos anos e sim uma troca sempre possível, um intervalo que não é
maior do que aquele entre um espírito e outro espírito, ou entre um espírito
e si mesmo. Seu monumento é esse Discurso,40 quase incorruptível, como
tudo que se escreve com exatidão. Uma linguagem altiva e familiar, a que
não falta orgulho ou modéstia, nos transmite as suas vontades essenciais e
as atitudes comuns a todos os homens de reflexão de maneira tão sensível e
admirável que o resultado não é tanto uma obra-prima de semelhança e
verossimilhança, mas uma presença real, que até mesmo se alimenta da
nossa.
Não há dificuldades, imagens, aparências escolásticas, não há nada nesse
texto que não seja dito no tom interior mais simples e mais humano, só que
um pouco mais preciso do que a natureza. O autor que acreditamos ouvir
parece ter-se limitado a depurar e a retraçar de perto, por vezes, a articular
nitidamente, a voz imediata que guardava de suas lembranças e esperanças.
Ele assumiu essa voz que ensina, primeiramente, a nós mesmos todos os
nossos pensamentos e que se levanta em silêncio de nossa espera dirigida.
Uma palavra íntima tão sem efeitos ou estratagemas, que é nossa
propriedade mais próxima e a mais certa, não obstante nos pertencendo de
modo tão íntimo, não pode não ser universal.
Era um propósito de Descartes nos fazer ouvir a si mesmo, ou seja, nos
inspirar por esse seu monólogo necessário e nos fazer pronunciar os seus
próprios votos. Ele queria que encontrássemos em nós o que ele havia
encontrado em si.
Esta é a intenção original. Todo fundador de uma ordem do espírito deve
se preocupar com tornar-se irresistível. Uns nos envolvem com seus
charmes; outros nos rebaixam pelo rigor; Descartes nos comunica a sua
vida para que a sequência de suas impressões e de seus atos nos introduza
em pensamentos pelo mesmo caminho natural dos acontecimentos e
devaneios que ele percorreu desde a sua juventude e que, não obstante,
semelhantes a outros caminhos, nos levam a pontos de vista inteiramente
distintos.
Tornando-nos assim semelhantes a ele por meio de seus começos e
facilmente interessados pela sua carreira, ele nos seduz sem dificuldades
para as rebeliões de sua adolescência, pois nos fala da nossa, de nossas
resistências e de nossos julgamentos altivos. Completados os estudos,
depreciados e reconhecidos quase como vãos (e de fato os estudos são
quase vãos para aquele que não sabe se servir daquilo que ele mesmo não
inventou), ele roda aqui e ali pela Europa, lavando o espírito nas suas
viagens e nos movimentos da guerra em curso nesses tempos, a cuja
fantasia ele parece misturar-se. Ele dispensa os livros que nos exércitos só
atrapalham. Exercita-se na matemática, uma arte que nada mais exige do
que uma caneta, podendo ser desenvolvida em qualquer lugar, a qualquer
hora e enquanto estiver em nossas cabeças.
Que luxo de liberdade, que modo elegante e voluptuoso de ser si mesmo,
quando o homem pode se dissipar assim nas coisas sem deixar de se
confirmar nas ideias!...
O acidental, o superficial e suas vivas variações estimulam, iluminam o
que há de mais profundo e constante numa pessoa verdadeiramente feita
para os altos destinos do espírito. Na independência da alma, desfruta-se do
prazer de existir para ver com clareza. Tudo serve à consciência organizada.
Tudo a desprende, tudo a recompõe e ela nada recusa. Quanto mais absorve
ou sofre as relações, mais fica integrada consigo mesma e mais se
desprende e se solta. Um espírito inteiramente ligado seria bom, mas, nesse
extremo, um espírito infinitamente livre, já que a liberdade não passa de um
uso do possível e a essência do espírito é um desejo de coincidir com o seu
todo.
Descartes se fecha no todo de sua atenção; e usa do possível que nele se
encontra até mesmo para se pôr a duvidar de sua existência no meio da
narrativa de sua vida!... Aquele que corria o mundo e guerreava como
amador, de repente se volta para o âmbito de sua presença e de sua carne,
relativizando todo o sistema de suas referências e de nossas certezas
comuns; ele se faz outro, como aquele que dorme e por conta de um
movimento súbito sai de seu sonho, altera e transcende esse sonho,
transformando-o num sonho qualificado como tal. Ele opõe o ser ao
homem.
Mas sentir o ser no homem e distingui-los tão nitidamente e, mediante
uma espécie de procedimento extraordinário, buscar uma certeza de grau
superior, esses são os primeiros sinais de uma filosofia...
Talvez eu deva me deter nessa palavra, pois do contrário correria o risco
de não mais saber do que estou falando. Assim, ainda haveria tempo de não
me expor às dificuldades que não são mais as que escolhi e das quais as
mais duvidosas são as que para mim permanecem invisíveis. Não fico à
vontade na filosofia. Sabe-se muito bem que não se pode evitá-la e que dela
não se pode abrir mão sem pagar algum preço. Como dela nos proteger se
ela mesma não sabe o que é? É quase sem sentido dizer, como se faz com
frequência, que cada um é filósofo sem o saber, já que o homem que a ela
se entrega cientemente não sabe explicar exatamente o que faz.
Mas eu, eu me encontro na filosofia como um bárbaro em Atenas que se
sabe cercado de objetos bem preciosos e que tudo que vê é respeitável; mas
que no meio disso tudo fica perturbado, sente tédio, constrangimento e uma
vaga veneração mesclada de receio supersticioso, atravessado por desejos
brutais de romper com tudo ou de pôr fogo em tantas maravilhas
misteriosas que na alma ele não se sente de modo algum o modelo. Como
suportar que existam essas maravilhas, e ainda tão famosas, quando a sua
ideia nunca surgiu em nós? Comparo-me assim a esses desafortunados que,
não obstante terem bons ouvidos, capazes de perceber todos os sons, os
encadeamentos, as misturas de sons, as suas figuras e as suas criações,
sentem que os seus nós delicados e os seus infinitos, a sua música enfim
lhes escapa. A música dos filósofos é para mim quase insensível.
Se me aventuro, portanto, a falar de Descartes é sem dúvida porque o
separo dos filósofos.

34 N.T.: A Ordem dos Minimos, em latim Ordo Minimorum, isto é, “ordem dos menores” é uma
ordem de eremitas mendicantes, fundada em 1436 por São Francisco de Paula (1416-1507), oriundo
da Calábria. Valéry refere-se ao antigo Convento dessa ordem na Place Royale, transformado em
caserna. (N. T).
35 Claude Picot foi um grande amigo e colaborador de Descartes, tradutor para o francês dos
Princípios, considerado por Baillet, o célebre biógrafo de Descartes, a pessoa que desfrutava de
maior intimidade com o filósofo. Presume-se que seja Picot o inspirador de um dos personagens do
diálogo Recherche de la vérité par la lumière naturelle. (N.T.)
36 Princípios de filosofia pode ser considerada a obra em que Descartes apresenta a sua física e
metafísica. Escrita em latim, foi publicada em 1664 e dedicada à princesa Elisabeth da Boêmia, com
quem Descartes estabeleceu uma longa e importante correspondência filosófica. (N.T.)
37 Valéry descreve aqui a insígnia heráldica gravada nas pedras dessa construção. (N.T.)
38 Cf. Adrien Baillet, La vie de monsieur Descartes, 1691. Disponível em:
<https://fr.wikisource.org/wiki/Livre:Baillet_-_La_Vie_de_monsieur_Des-
Cartes,_premi%C3%A8re_partie.djvu>. (N.T.)
39 Referência à Escola Politécnica de Paris. (N.T.)
40 Valéry refere-se ao Discurso do método, de Descartes. (N.T.)
DESCARTES41

41 Discurso pronunciado na Sorbonne para a inauguração do nono Congresso Internacional de


Filosofia, em 31 de julho de 1937. Foi publicado primeiramente na Revue de Métaphysique et de
Morale, p.639-710, out. 1937, e republicado em Variété, nº IV, 1938. (N.T.)
Senhor presidente da República,
Senhor ministro,
Senhoras e senhores,

A Academia Francesa não podia deixar de aceitar o convite feito tão


gentilmente pelo comitê de organização do IX Congresso Internacional
de Filosofia e meu primeiro dever é agradecer ao comitê em seu nome. A
academia deveria, sem dúvida, estar aqui presente quando se trata de
celebrar Descartes, por ocasião do terceiro centenário da publicação do
Discurso do método.
A grande influência que Descartes parece ter exercido sobre nossas
letras, o evento de ser o autor da primeira produção em língua francesa de
uma obra filosófica, a glória universal que seus trabalhos trouxeram para a
nossa nação, são três circunstâncias que interessam de perto à academia e
que se apresentam como razões fortes e bem precisas para reunir hoje numa
homenagem todos aqueles que cultivam a memória de nosso grande
homem.
Mas quanto à honra que me foi concedida por nossa sociedade de
representá-la perante os senhores, não é preciso dizer que ela se deve à
ausência forçada do mais ilustre dos filósofos de nosso tempo. A condição
de sua saúde impede nosso colega, Sr. Henri Bergson, de ocupar aqui o
lugar onde todo mundo esperava vê-lo, ele que haveria de entreter os
senhores sobre Descartes com a autoridade encantadora, a profundidade
natural e a beleza de expressão que o caracterizam. Mas seu pensamento
está aqui conosco, e logo os senhores ouvirão a carta que ele escreveu para
nós.
Senhores membros das delegações estrangeiras,
O comitê de organização quer, em sua modéstia, que me caiba desejar
boas-vindas e exprimir o seu reconhecimento pela presença dos senhores, a
qual confere brilho e importância a esse congresso.
O título “Descartes” que lhe foi dado tem um significado especial. Os
senhores sabem a que ponto as caraterísticas mais puras e sensíveis do
espírito francês estão indicadas no pensamento desse grande homem. Por
isso, a celebração de sua glória assume para nós o valor solene de um ato
nacional, definida e realçada pela presença do Chefe de Estado.
Agradecemos aos senhores por associarem-se a essa homenagem e por
retribuírem a Descartes as visitas que ele fez a mais de uma nação. Não há
melhor europeu do que esse nosso herói intelectual, que vai e vem tão
facilmente. Ele pensa onde pode pensar: medita, inventa, calcula, um pouco
em todo lugar: num quarto bem aquecido na Alemanha, no cais de
Amsterdã e até na Suécia, onde a morte se abate sobre o viajante cuja
liberdade de espírito era o bem mais precioso que jamais deixou de
perseguir nessa liberdade de movimento.
Desejo que na França os senhores se sintam cercados da simpatia que
gostamos de testemunhar a todos os homens de pensamento e que, em sua
estadia filosófica, recebam a acolhida que Descartes recebeu nos diversos
lugares a que o seu capricho o levou.
Agora cabe-me discorrer um pouco sobre a questão que nos reúne aqui, e
tratar, como me for possível, de Descartes e da filosofia. Trata-se de
levantar temas imensos. Os filósofos, que são necessariamente pessoas
duras, sem dúvida me chamaram para essa tentativa como quem faz uma
experiência ao vivo ou então por terem decidido imolar uma vítima
inocente e propícia no altar da razão.
Na verdade, tão logo fui pego e agregado, e tendo percebido toda a
dificuldade e os riscos de uma tarefa para a qual nada me qualificava, tive
que considerar no espírito o obstáculo intransponível de uma quantidade
prodigiosa de escritos. O que dizer que certamente neles já não se encontra?
E mesmo, que erro inventar, que erro ainda seria virgem, e que abuso de
interpretação, ainda inédito?
Descartes... Há três séculos seu pensamento tem sido repensado por
tantos homens de primeira ordem, detalhado e comentado por tantos
exegetas diligentes, resumido por tantos mestres e acadêmicos, mas onde
está Descartes? Não ousarei dizer aos senhores que há uma infinidade de
Descartes possíveis, pois, melhor do que eu, os senhores sabem que há mais
de um, todos bem atestados, textos na mão, e curiosamente diferentes uns
dos outros. A pluralidade de Descartes plausíveis é um fato. Quer se trate
do Método ou dos desenvolvimentos metafísicos que lhe seguiram, a
divergência de opiniões existe e surpreende. E, no entanto, por definição,
Descartes é um autor claro.
Como se poderia esperar, os pontos mais disputados e mais dificilmente
explicados são aqueles mais sensíveis e, de algum modo, mais interiores
dessa filosofia.
Alguns, por exemplo, só descobrem em Descartes um Deus expediente,
que serve de fiador para a sua certeza especulativa e de primeiro motor.
Pascal, com a excessiva clarividência surgida da perfeita antipatia,
pronunciava essa opinião de todo coração.
Outros, ao contrário, com outra compreensão, nos ensinam um Descartes
sinceramente e mesmo substancialmente religioso. Nos próprios
fundamentos do Método e sob o edifício do conhecimento racional, eles
encontram uma cripta de onde resplandece, como dizem, uma clarão bem
diverso da luz natural.
Que maior glória pode haver, seja para um homem ou um texto, do que
provocar essas visões contraditórias? A marca da verdadeira morte é o
consentimento universal. Já o número de fisionomias diferentes e
incompatíveis que se possa atribuir razoavelmente a alguém manifesta, ao
contrário, a riqueza de sua composição. Quantos Napoleões não se
produziram? Quanto a mim, não acho que se possa realmente circunscrever
uma existência, trancá-la em suas ideias e em seus atos, reduzi-la ao que ela
parecia e sitiá-la, por assim dizer, em suas obras. Somos bem mais (e às
vezes bem menos) do que aquilo que fizemos. Sabemos bem que nossa
identidade e unidade são como que exteriores e quase estrangeiras para nós,
que elas residem bem mais no que conhecemos indiretamente de nós
mesmos do que em nossa consciência imediata. Um homem que nunca
tivesse se olhado num espelho, nunca poderia saber que esse rosto
desconhecido que vê na sua frente está conectado, pela relação mais
misteriosa do mundo, com o que ele sente e diz desse outro lado.
Cada um de nós pode assim construir o seu Descartes, pois mesmo
aqueles que se dedicam a estudá-lo de perto parecem se distanciar uns dos
outros quanto mais atentamente consideram o seu objeto. Como essa
observação me parece muito importante, repito aos senhores que esse
dissenso se nota sobretudo no mais íntimo do pensamento de Descartes.
Confesso, meus senhores, que muito me agrada essa divisão entre os
conhecedores e as autoridades em matéria cartesiana. Quando estes não
concordam entre si, o amador consegue respirar e sentir-se um pouco mais
disposto a escutar a si mesmo e a seguir as suas preferências.
É que nutro por essas questões somente uma curiosidade bem livre, que
se interessa mais pelo espírito do que pelas coisas que se apresentam, se
agitam e se determinam nesse mesmo espírito. Minha atenção mais natural
é provocada pelo desejo vão de apreender o trabalho próprio do
pensamento. O tema, o problema, o alcance desse pensamento me importam
somente quando faço um esforço. O que encanta o amador da vida própria
do espírito são as substituições e transmutações que imagino ali operantes,
as vicissitudes da lucidez e da vontade, as intervenções e interferências que
nele se produzem. Essa preocupação singular em querer observar o que
observa e imaginar o que imagina não é desprovida de certa ingenuidade; é
preciso pensar nessas antigas xilogravuras, como as que encontramos na
Dióptrica de Descartes e que explicam o fenômeno da visão por um
pequeno homem colocado atrás de um grande olho e ocupado em olhar a
imagem formada na retina.42
Esta é uma tentação irresistível, que não implica nenhuma filosofia,
nenhum partido e nenhuma conclusão, pois o espírito, por si mesmo, não
detém nenhum meio para concluir a sua atividade essencial e não há
pensamento algum que seja um pensamento final. A mecânica nos ensina a
impossibilidade de conferir a um corpo sólido uma forma tal que, ao ser
colocado sobre um plano horizontal, ele pudesse encontrar sua posição de
equilíbrio. Mas o espírito resolveu esse problema, do qual nos faz
demonstrações bem sofridas e cansativas ao longo de nossas horas de
inquietação e nossas noites de insônia. A única coisa que o amador do
espírito faz é fruir dessas combinações e flutuações do intelecto cujas
maravilhas ele muito admira. Nelas ele vê, por exemplo, a desordem
essencial engendrar uma ordem momentânea, uma necessidade nascer ou se
construir a partir de alguma disposição arbitrária, o incidente gerar a lei, o
acessório dissipar o principal. Vê também o orgulho pessoal forjar
obstáculos imaginários contra os quais pode dispensar ou medir as forças de
análise e atenção neles presentes.
Pode acontecer de pretender que não haja matéria poética no mundo
mais rica do que essa, que a vida da inteligência constitua um universo
lírico incomparável, um drama completo, onde não faltam aventura,
paixões, dor (que possui uma essência toda particular), comédia nem nada
de humano. Ele protesta e admite que existe um imenso âmbito de
sensibilidade intelectual, sob aparências às vezes tão desprovidas de
atrações usuais, que a maior parte das pessoas dele se distancia como se
fossem reservas de tédio ou promessas dificilmente cumpridas. Esse mundo
do pensamento onde se vislumbra o pensamento do pensamento e que se
estende do mistério central da consciência até a extensão luminosa onde se
excita a loucura da clareza é tão variado, tão emocionante, tão
surpreendente com seus momentos de teatro e de intervenção do acaso, tão
admirável em si mesmo, como o mundo da vida afetiva, governado
unicamente pelos instintos. O que pode ser mais especificamente humano e
mais reservado ao homem demasiado homem do que o esforço intelectual
desprendido de toda prática? E o que há de mais puro e mais audacioso do
que o seu desenvolvimento nessas vias abstratas que por vezes se afastam,
de maneira tão estranha, em direção às profundezas de nosso possível?
Talvez não seja inútil celebrar esses nobres exercícios espirituais numa
época como a nossa, quando não falta futilidade nem inquietação, facilidade
nem incoerência, todas entretidas e constantemente providas de novos
pretextos pelos potentes meios que os senhores bem conhecem.
Mas, até agora, a literatura pouco considerou, ao menos que eu saiba,
esse imenso tesouro de temas e situações. As razões dessa negligência são
evidentes. É preciso, porém, ressaltar uma delas e que os senhores
conhecem de maneira tão profunda. Ela consiste na extrema dificuldade que
a linguagem apresenta quando queremos obrigá-la a descrever os
fenômenos do espírito. Que fazer desses termos que só podemos precisar ao
recriá-los? Pensamento, o próprio espírito, razão, inteligência,
compreensão, intuição ou inspiração?... Cada um desses nomes é ora um
meio, ora um fim, ora um problema, ora uma solução, ora um estado, ora
uma ideia; e cada um deles, em cada um de nós, é suficiente ou insuficiente,
de acordo com a função que a circunstância lhe confere. Os senhores sabem
que nesse ponto o filósofo vira poeta e, em geral, um grande poeta: ele nos
empresta a metáfora e, pelas imagens magníficas que devemos invejar,
convoca toda a natureza para a expressão de seu pensamento profundo.
O poeta não é tão feliz assim quando tenta fazer a operação recíproca.
Não obstante, meus senhores, me descubro, de tempos em tempos,
imaginando, sob o modelo da Comédia humana, quando não da Divina
comédia, o que um grande escritor poderia cumprir na ordem da vida
puramente intelectual que pudesse ser comparada a essas grandes obras:
tanto a sede de compreender, criar e superar aquilo que outros fizeram e
igualar-se aos mais ilustres como também o contrário, a abnegação e a
renúncia à glória que se encontram em alguns. E também o detalhe dos
instantes da ação mental: a espera do dom de uma forma ou de uma ideia,
da palavra simples que transformaria o impossível em coisa feita, os desejos
e os sacrifícios, as vitórias e os desastres, as surpresas, o infinito da
paciência e a aurora de uma “verdade”, e aqueles momentos extraordinários
como, por exemplo, a súbita formação de uma espécie de solidão que,
mesmo no meio da multidão, de repente se declara e se abate sobre um
homem como um véu sob o qual vai se operar o mistério de uma evidência
imediata... Que sei? Tudo isso nos propõe uma poesia de recursos
inesgotáveis. Em suas formas mais ilustres e em suas produções mais raras,
a sensibilidade criadora também me parece tão capaz de determinada arte
como todo o patético e dramático da vida vivida cotidianamente.
Não posso, contudo, esconder dos senhores, filósofos (de quem, aliás,
dificilmente se pode esconder alguma coisa), que essa maneira de ver o
espírito acarreta naturalmente que se veja a própria filosofia como um
exercício de pensamento sobre si mesmo. Esse olhar que se interessa pelos
atos interiores se satisfaz com o espetáculo das transformações desse
pensamento e sente prazer em considerar as conclusões como simples
incidentes, breves repousos ou pausas. Mas é assim que, mesmo provido de
todas as ilusões necessárias, o sistema do mundo espiritual deve se
apresentar aos olhos do poeta. Aí não faltam nem as nebulosas verbais a
serem resolvidas nem os infinitos e as perspectivas pintadas por um espaço
que talvez seja um espaço curvo.
A grande vantagem desse ponto de vista é conferir a maior generalidade
possível ao tratamento de questões puramente intelectuais. Considere-se,
em particular, o interesse disso para a própria filosofia, a princípio tratada
com mais displicência do que deveria.
Imaginem o destino de todas as doutrinas que nos parecem refutadas, das
hipóteses e teses que o avanço da consciência, o aumento da precisão ou o
hábito das precisões, a descoberta de fatos inteiramente novos tornaram vãs.
Pensem em tantos escritos ilustres que colocam questões que hoje parecem
descabidas ou que respondem a questões que não podemos mais entender.
Será que devemos condená-los a essa espécie de morte constatada por uma
menção na história e uma inscrição nos currículos das escolas?
Não discutimos mais com essas múmias. Seus nomes estranhos não
passam de maus momentos na memória dos estudantes. Mas basta sonhar
com o ato vivo de seus criadores e com a forma desse ato, com a
necessidade que outrora lhes foi vital para os ver retomar, não tanto seu
inteiro vigor, mas com alguma coisa da virtude que fez com que fossem
produzidas. Descobre-se então que, embora a refutação, os erros
manifestados, o abandono – e mesmo a quantidade de comentários – podem
extenuar, arruinar, esgotar uma filosofia, torná-la inutilizável e até
ininteligível para a época posterior, eles deixam intactos seu valor de
estrutura e sua firmeza de obra de arte, se ela os chegou a possuir.
Eu me permitirei talvez daqui a pouco dizer por que se deveria propor –
ou melhor murmurar – essa consideração para um auditório filosófico.
Como tudo mais das coisas humanas nesse nosso tempo, a filosofia –
perdoem-me discutir minha ignorância – parece encontrar-se num estado
crítico de sua evolução pelo mesmo efeito dos extraordinários progressos
das ciências da natureza.
Não acreditem, senhores, que eu esteja agora muito longe de nosso
Descartes. É dele que não paro de falar. Ele é, com efeito, uns dos primeiros
e dos mais empreendedores autores deste estado das coisas humanas. Nessa
vasta Comédia do Espírito para a qual eu desejaria um Balzac, quando não
um Dante, Descartes ocuparia um lugar de primeira ordem. Mas, numa obra
dessa espécie, a morte não conclui de modo algum a aventura dos
personagens. Sua vida muitas vezes não passa de um prólogo para a sua
carreira indefinida, sendo como a exposição da tragédia de seu pensamento.
Descartes é um daqueles cujo destino póstumo é dos mais acidentados. Ele
é o grande homem sem túmulo dos tempos modernos. Seus ossos estão em
algum lugar: nada seguro com relação a eles. Seu presumido crânio
encontra-se no Museu de História Natural onde quiseram me mostrá-lo e
entregá-lo para que eu o segurasse por alguns instantes. Ele não tem
nenhuma estátua em Paris, nem Racine: não estou fazendo nenhuma
reclamação, mas não entendo como os escultores podem tolerar algo assim.
Quanto à sua obra, a aventura é bem diferente.
Todo mundo sabe que a parte puramente matemática dessa obra fez
muito mais do que sobreviver por si mesma: ela é tão cheia de vida, tão
carregada de porvir, tão luminosamente necessária – que parece menos
invenção do que descoberta. E isso a ponto de não se poder conceber como
a ciência, ou melhor, como o espírito humano não pôde forjar, bem antes de
Descartes, um meio cuja importância seria quase comparável àquela das
convenções mais preciosas, como o número ou a linguagem. Mas
evidentemente foi preciso que a própria álgebra se constituísse para se
imaginar um sistema de correspondência recíproca entre número e
grandeza. Nada é mais interessante do que as considerações de Descartes a
esse respeito e a maneira como expõe a psicologia de sua criação, que ele
conecta com a observação minuciosa que havia feito sobre os limites de
nossa atenção. Ademais, a intenção de diminuir o esforço feito a cada vez e
de substituir a obrigação de inventar uma solução especial para cada
problema por um tratamento uniforme (por vezes à maneira de um
automatismo) é fundamental em Descartes: é a essência do Método. Através
de sua geometria, ele obtém o êxito mais feliz que jamais obteve um
homem cuja genialidade se dedica a reduzir a necessidade de um gênio e a
realizar uma economia prodigiosa de pensamento. Buscar um método é
buscar um sistema de operações exteriorizáveis que realize o trabalho do
espírito melhor do que o próprio espírito, o que se aproxima do que se
poderia obter ou pensar que se possa obter por meio de mecanismos. Todas
as máquinas surpreendentes, que permitem calcular e integrar em grandes
velocidades, derivam diretamente da invenção e da intenção cartesianas.
Descartes viu-se tremendamente surpreendido pelo fato “de uma criança,
instruída em matemática e tendo feito uma soma segundo as suas regras,
poder assegurar-se, ao tocar a soma que examinava, de ter encontrado tudo
o que o espírito humano saberia encontrar”. E quando mostrou que,
trabalhando pelas regras da álgebra sobre as projeções de um ponto do
espaço, poderíamos encontrar, mediante fórmulas bem escritas, tudo o que
se desejaria saber sobre as figuras e as suas propriedades e, ainda, sobre um
grande número de analogias ou de relações que nenhuma intuição saberia
revelar, ele num só golpe enriqueceu essa criança feliz, tornada rapaz, de
conhecimentos que os maiores geômetras anteriores não teriam sido sequer
capazes de suspeitar.
Não é impossível que um acesso de ciúme muito amargo tenha
atormentado a alma de Pascal diante dessa espécie de criação da totalidade
do possível geométrico. Toda a arte profunda que detinha para resolver
questões particulares de geometria viu-se diminuída quanto aos resultados.
O próprio Descartes não podia imaginar os desenvolvimentos que seu
artificio inesgotável haveria de conhecer. Sobre esses eixos de coordenadas
ilustres abriram-se um conjunto inumerável de descobertas, um transfinito
de ideias para o estranho poder do espírito geométrico, que cresce
indefinidamente pela análise cada vez mais elaborada que faz de si mesmo,
descobrindo tesouros escondidos na aparente evidência de seus primeiros
axiomas e na estrutura de suas operações mais simples, e desmontando até o
mecanismo desses “conjuntos” que constituem o elemento mais primitivo e
mais abstrato de nossa intuição do espaço.
Mas nenhum dos prodígios saídos de seu gênio surpreenderia o orgulho
de nosso Descartes. E mesmo que, reconhecendo a sua geometria,
quiséssemos a ele nos opor apontando os seus erros na mecânica e na física,
não ficaria nada espantado de vê-lo encontrar, na segurança de seu
pensamento ambicioso, alguma resposta no estilo de um Corneille.
Ele nos responderia “Alguém tinha que se enganar, mas se enganar como
somente eu mesmo poderia fazer. Ninguém antes de mim chegou a
imaginar um universo todo representado pela matemática, um sistema de
mundo como um sistema de números. Não queria nada de obscuro, nada de
forças ocultas. Nenhuma ação à distância: um não sei o que é. Mas parece
que, no último estágio da ciência, uma geometria das mais sublimes, bisneta
da minha, libera enfim os senhores da gravitação. Isso está no espírito da
minha obra. Pessoas já zombaram demais de minhas opiniões e de minha
matéria sutil como se, um século e meio depois de minha morte, ainda se
explicassem os ímãs e o movimento da luz pela atividade de um meio todo
guarnecido de pequenos piões em rotação”.
Peço desculpas de fazer falar a grande Sombra com tanta liberdade.
Talvez ela continuasse falando sobre a famosa questão da quantidade de
movimento. Ou talvez tivesse preferido se calar e nos deixar o cuidado de
encontrar um modo de se defender. Não será esse o dever de uma
posteridade piedosa?
Sobre Descartes recai a honra insigne de ter sido o primeiro construtor
de um universo inteiramente métrico, por meio de concepções – digamos
imaginações – que permitiriam tratá-lo como um mecanismo desmesurado.
Pascal, novamente, não gostava de tal propósito, rejeitado tanto pelo seu
espírito, mais lógico do que intuitivo, como por seus sentimentos.
Considerava, em suma, que o projeto só poderia resultar em fracasso. É
verdade que os vórtices e o resto não tiveram uma longa carreira. Por outro
lado, a ideia de uma física universal não parou de crescer. Se o mundo de
Descartes não durou, quantos não se juntaram a esse destino! O universo
das ações à distância, os diversos conceitos de éter, o de Fresnel,43 de
Maxwell44 e de Lorde Kelvin,45 e há cinquenta anos todo o sistema baseado
na energia que os sucederam. Mas cada um desses vasos partidos, embora
não podendo conter o mundo, deixou um bonito resquício. Até mesmo esse
célebre indolente Maupertuis,46 por um retorno do destino que Voltaire não
pôde prever, encontrou aí um uso para a sua ‘menor ação’. Não diria que ele
não se surpreenderia com o novo sentido que hoje se lhe atribui.
Mas eis o que ainda gostaria de dizer, assumindo meus próprios riscos e
perigos, em favor de nosso Descartes. Físico do Universo que ele quer
submeter a uma representação matemática, ele se sente obrigado a impor-
lhe as condições expressas por equações. A forma matemática, somente ela,
lhe obriga então a descobrir alguma grandeza que permanece inalterada sob
as transformações dos fenômenos. Ele acredita apreendê-la no produto da
massa pela velocidade. Leibniz vai mostrar o erro. Mas uma ideia de capital
importância foi introduzida na ciência, a ideia de conservação, essa que, de
fato, substitui a noção confusa de causa por uma noção simples, que pode
parecer bem clara. Essa ideia já está sem dúvida difundida na geometria
pura, pois, para fundá-la, é preciso supor que os sólidos não se alteram em
seus deslocamentos. Sabemos que ela foi o destino da variação da ideia de
constância: pode-se dizer que, depois de Descartes, nada mais se fez do que
variar o que não varia: a conservação da quantidade de movimento, a
conservação da força viva, a conservação da massa e de energia. É preciso
convir que as transformações da ideia de conservação se deram com muita
rapidez. Mas eis que, há cerca de um século, a famosa descoberta de Carnot
obrigou a ciência a inscrever o signo fatal da desigualdade, que por um
tempo pareceu condenar o mundo à ruina inevitável, ao lado da igualdade,
que o sentido puramente matemático de Descartes havia pressentido sem
designá-lo com exatidão. Hoje não sei mais muito bem o que se conserva...
A essa defesa de Descartes, acho que se pode acrescentar a observação,
talvez ingênua, que, para escrever a sua fórmula conservadora, ele teria
composto os constituintes do movimento em forma de um produto. Ora,
essa forma, mal desenvolvida por ele, acabaria se tornando a forma, de
algum modo natural, de todas as expressões da energia.
Quanto à fisiologia, meus senhores, investigação a que ele mais se
dedicou no final de sua existência, ela testemunha a mesma vontade de
construção que domina toda a sua obra. Hoje é fácil ridicularizar esse
maquinismo e considerá-lo uma simplificação grosseira e ingenuamente
detalhada. Mas o que podia tentar um homem dessa época? Para nós é
incrível, e é quase uma vergonha para o espírito humano, quase uma
objeção contra a inteligência observadora do homem, que somente na época
de Descartes se tenha podido demonstrar o fato que nos parece tão evidente
e tão fácil de se descobrir, que é o fato da circulação do sangue. Ele não
podia deixar de se impressionar com esse fenômeno mecânico e de nele
encontrar um forte argumento para a sua ideia do autômato. Ademais, se
hoje sabemos bem mais sobre isso, o próprio crescimento desse saber nos
distancia, até agora, de uma representação suficiente dos fenômenos da
vida. Como tudo mais, a biologia caminha de surpresa em surpresa, pois,
como tudo mais, ela passa de novos meios a novos meios de investigação.
Parece que não podemos sonhar em parar um momento sequer sobre essa
vertigem fatal de descobertas para algum dia adquirir, por algum momento,
uma ideia bem estabelecida do ser vivo. Ninguém hoje pode se pôr a
trabalhar, fixado diante desse propósito. Mas, no tempo de Descartes, não
era absurdo conceber algo assim. Contra havia apenas razões metafísicas,
ou seja, aquelas com as quais não se pode fazer tábula rasa. Nós, porém,
temos contra nós a quantidade e o desconhecido das possibilidades
experimentais. Temos, portanto, que resolver problemas cujos dados e cujo
enunciado variam a cada instante de maneira imprevista. Supondo-se que o
projeto concebido se dê conta do funcionamento vital e supondo-se
igualmente que, com Descartes, haveríamos de rejeitar as forças ocultas e as
entidades (já amplamente usadas na medicina), logo descobrimos, ao
mesmo tempo, que era mesmo preciso emprestar à mecânica de então todo
o seu material de bombas e foles a fim de se afigurar um organismo capaz
das principais ou mais aparentes funções vitais.
Mas não se deveria estender essa consideração a toda nossa opinião de
Descartes: uma defesa de sua glória e um método para concebê-lo
dignamente? É preciso chegar a sentir as exigências e os meios à disposição
de seu pensamento de tal maneira e com tamanha proximidade que, por fim,
pensar em Descartes, seria, inevitavelmente, pensar em nós. Esta seria a
maior das homenagens.
Pergunto-me então o que nele mais me impressiona, pois é precisamente
isso que ainda pode e deve viver. O que, na sua obra, me devolve para mim
mesmo e para os meus problemas – isso comunica minha própria vida a
essa obra. O que penso assim reavivar não é de modo algum, confesso, a
sua metafísica, tampouco o seu Método, ao menos, aquele enunciado no seu
Discurso.
O que nele me encanta e que o torna vivo para mim é a consciência de si
mesmo, de seu ser inteiramente recolhido em sua atenção, consciência
penetrante das operações do pensamento, uma consciência tão voluntária e
tão precisa que foi preciso fazer de seu Eu (Moi)47 um instrumento cuja
infalibilidade só depende do grau de consciência que ele dela possui.
Vê-se logo que essa opinião, que exponho aos senhores sem defesa,
conduz a julgamentos bem particulares e a uma distribuição dos valores dos
trabalhos de Descartes que não é de modo algum usual.
Distinguiria, com efeito, os problemas que nascem dele mesmo e cujo
aguilhão e a necessidade pessoal ele sentiu em si mesmo e os problemas
que ele não inventou e que foram, de algum modo, necessidades artificiais
de seu espírito. Cedendo talvez à influência de sua educação, de seu meio,
da preocupação em parecer um filósofo tão completo como se espera,
aquele que deve ter resposta para tudo, a sua vontade seria, no meu
entender, empregada para satisfazer essas solicitações segundas, que
parecem bem exteriores ou estranhas à sua verdadeira natureza.
Observem, no entanto, que a toda questão que ele pode responder pelo
ato de seu Eu (Moi), ele triunfa. Seu Eu (Moi) é geômetra. Sem insistir
sobre esse pensamento, diria, com reservas, que a ideia mãe de sua
geometria é bem característica de toda sua personalidade. Poder-se-ia dizer
que, em todas as matérias, ele assumiu esse Eu (Moi), tão fortemente
sentido, como o ponto de origem dos eixos de seu pensamento.
Pode-se ver que estou negligenciando parte considerável de sua obra
consagrada a todos os assuntos cuja existência ou importância ele descobriu
pelos outros.
Estou certo, meus senhores, de que me engano. Tudo me convence disso,
e com relação a esse meu sentimento só encontro a impossibilidade de não
segui-lo.
Não posso não aceitar o que o personagem de meu herói me impõe.
Imagino que ele não se sinta confortável em certos assuntos. Sobre isso, ele
tece longos raciocínios, retraçando os seus passos e desfazendo-se como
pode das objeções: tenho a impressão de que ele se sente às vezes
distanciado de sua promessa, infiel a si mesmo e se acredita obrigado a
pensar contra o coração de seu espírito.
O que leio então no Discurso do método?
Não são os princípios que conseguem nos deter longamente. A partir da
encantadora narração de sua vida e das circunstâncias iniciais de sua busca,
o que atrai meu olhar é a sua própria presença nesse prelúdio de uma
filosofia. É, se quisermos, o emprego do Eu, tanto Je como Moi, numa obra
dessa espécie e o som da voz humana. E é isso talvez que mais nitidamente
se opõe à arquitetura escolástica. O Eu – Je e Moi – tendo que nos
introduzir a maneiras de pensar de uma inteira generalidade – esse é o meu
Descartes.
Tomando de empréstimo um palavra de Stendhal, que a introduziu em
nossa língua, e a deturpando um pouco para o uso que lhe quero conferir,
diria que o verdadeiro Método de Descartes deveria ser chamado
egotismo,48 o desenvolvimento da consciência para os fins do
conhecimento.
Sem dificuldades, acredito que o essencial do Discurso não passa da
pintura das condições e das consequências de um evento, de uma espécie de
golpe de Estado, que libera esse Eu (Moi) de todas as dificuldades e de
todas as obsessões ou noções que lhe são parasitas e nas quais ele se vê
lesado, sem tê-las desejado ou encontrado por si mesmo. A dúvida sobre a
sua própria existência lhe parece, no fundo, bem ridícula. Essa dúvida é um
estado de alma na moda naquele tempo. Isso acontecia entre Montaigne e
Hamlet. Mas tão logo o espírito queira exprimi-la com nitidez, ele descobre,
sem o menor esforço, que o pequeno verbo ser não possui nenhuma virtude
particular, que sua função é somente juntar e que dizer que não se é e dizer
que se é são a mesma coisa. Ninguém diz: “Eu sou”, a não ser quando adota
uma atitude bem instável e, em geral, forçada, e que ademais somente pode
ser dita com uma boa quantidade de mal-entendidos: tornando muitas vezes
imprescindível um longo comentário.
Descartes não inventou duvidar de sua existência, ele que não duvidava
de seu valor. Ele conhecia profundamente o valor de seu Eu (Moi) e quando
diz: “Eu penso”, entende muito bem que é Descartes quem pensa e não
qualquer um.
Não há nenhum silogismo no Cogito, não há nem mesmo qualquer
significação literal. Há um golpe de força, um ato reflexo do intelecto, um
vivente e um pensante que grita: Para mim basta! A vossa dúvida não tem
nenhuma raiz em mim mesmo. Eu construirei outra, que não serve para
nada, e a chamarei dúvida metódica. Os senhores terão de sofrer que eu a
inflija em suas proposições. Os seus problemas não me levam a lugar
nenhum; e que eu existo, segundo tal filosofia, e que eu não existo, de
acordo com outra, isso não muda nada, nem nas coisas, nem em mim, nem
em meus poderes, nem em minhas paixões...
Isso não é tudo que se poderia extrair imaginariamente desse famoso
Cogito, esse, que seria admirável se Descartes o tivesse encontrado em
algum sonho. O que apesar de tudo não é impossível!
Guardo uma impressão que pode ser acrescentada ao que acabo de dizer.
Stendhal, a quem retorno, nos conta, não sei bem onde, que, nos instantes
críticos de sua existência extraordinária, Napoleão dizia ou deve ter dito:
“Então, como então?!”. Era uma esporada que dava em si mesmo.
O Cogito gera em mim o efeito de um apelo de Descartes às suas forças
egotistas. Ele o repete e retoma em vários lugares da sua obra, como o tema
de seu Eu (Moi), o despertar que toca o orgulho e a coragem do espírito. É
nisso que consiste o charme49 – no sentido mágico desse termo – dessa
fórmula tão comentada, quando bastaria, eu acho, senti-la novamente. Ao
som dessas palavras, as entidades desvanecem, a vontade de poder invade
seu homem, reveste o herói, lembrando-lhe sua missão toda pessoal e sua
fatalidade toda própria. Pois é possível que um ser destinado à grandeza
deva tornar-se surdo, cego e insensível a tudo que atravessa seu ímpeto,
mesmo as verdades e mesmo as realidades, seu destino, sua via de
crescimento, sua luz, sua linha de universo.
E, por fim, se o sentimento do Eu (Moi) assume essa consciência e esse
controle central de nossas forças, se ele se torna deliberadamente sistema de
referência do mundo, lar das reformas criadoras que ele opõe tanto à
incoerência, à multiplicidade, à complexidade desse mundo quanto à
insuficiência das explicações recebidas, ele se sente alimentado por uma
sensação inexprimível, adiante da qual os meios da linguagem expiram, as
semelhanças não valem mais, a vontade de conhecer que para lá se dirige é
por ela absorvida e não mais retorna à sua origem, pois não há mais nenhum
objeto que possa refleti-la. Não é mais pensamento...
Em suma, meus senhores, o verdadeiro desejo de Descartes apenas
poderia ser o de conduzir ao ponto mais elevado o que ele encontrava em si
mesmo de mais forte e mais suscetível de generalização. Ele quer explorar
em todas as coisas o seu tesouro de desejo e de vigor intelectual e não pode
querer outra coisa. Esse é o princípio contra o qual até mesmos os textos
não prevalecem. É o ponto estratégico, a chave da posição cartesiana.
Esse grande capitão do espírito encontra em seu caminho obstáculos de
duas espécies. Alguns são os problemas naturais que se oferecem a todo
homem que vem a esse mundo: os fenômenos, o universo físico, os seres
vivos. Mas há outros problemas, estranhamente e como que arbitrariamente
emaranhados nos primeiros e que lhe vêm dos ensinamentos, dos livros, das
tradições recebidas. Enfim, há conveniências, considerações, impedimentos,
quando não perigos, de ordem prática e social.
Contra todos esses problemas e obstáculos, está o Eu (Moi) e, apoiando
esse Eu (Moi), certas faculdades. Uma delas fez as suas provas: pode-se
contar com ela, com os seus procedimentos, infalíveis quando sabemos usá-
los, com a imperiosa obrigação imposta de tudo esclarecer e rejeitar o que
não se resolva em operações bem separadas: é a matemática.
E, agora, pode-se acrescentar a ação. Um discurso, que é de um chefe, a
precede e anuncia. E a batalha se desenha.
De que se trata? Qual o objetivo?
Trata-se de mostrar ou demonstrar o que pode um Eu (Moi). Que vai
fazer esse Eu (Moi) de Descartes?
Como ele não sente de modo algum seus limites, ele vai querer fazer
tudo, ou tudo refazer. Mas, de início, tábula rasa. Tudo o que não vem do
Eu (Moi), ou não teria vindo de lá, tudo isso não passa de palavras. Tudo o
que só resulta em palavras, as quais, por sua vez, só resultam em opiniões,
dúvidas, controvérsias, ou em simples verossimilhanças, nada disso se
sustenta diante desse Eu (Moi) e não tem nenhuma força que com ele possa
ser comparado. Se necessário, só esse Eu (Moi) encontrará o seu Deus, ele
dará Deus para si mesmo e será um Deus tão límpido e tão bem
demonstrado como um Deus deve ser para que seja o Deus de Descartes.
Um Deus “necessário e suficiente”, um Deus que satisfaz Descartes, como
o seu satisfazia Bourdaloue: “Eu não sei se estais contente comigo, diz esse
ilustre religioso, mas para mim, meu Deus, devo confessar para a vossa
glória que estou contente convosco e que sinto isso perfeitamente. Pois
dizer que estou contente convosco é dizer que vós sois meu Deus, pois só há
um Deus que poderia me contentar”.50
Por outro lado, além dos problemas que chamei de naturais, ele
desenvolve, nesse combate por sua clareza, essa consciência impetuosa que
chama de Método e que conquistou de forma magnífica um império
geométrico ilimitado.
Ele quer estendê-lo aos fenômenos mais diversos: quer refazer toda a
natureza, e eis que, para torná-la racional, desenvolve uma surpreendente
fecundidade de imaginação. Trata-se com efeito de um Eu (Moi) cujo
pensamento não quer ceder à variação dos fenômenos, à diversidade mesma
dos meios e das formas de vida...
Que homem! Talvez tivesse sido melhor não confiar a um poeta o difícil
dever de celebrá-lo?...
Mas, já que é assim, vou continuar essa espécie de análise inventiva e
me perguntar o que seria de um Descartes nascido em nossa época. Uma
brincadeira.
Que tábula hoje poderia tornar-se rasa? E como ele se acomodaria a uma
ciência hoje impossível de se abraçar e que daqui por diante depende tão
intimamente de um material imenso e continuamente em crescimento, uma
ciência que se acha, de toda maneira, a cada instante, num equilíbrio móvel
com os meios de que dispõe?
Não há resposta. Mas me parece que essas questões têm o seu valor.
O indivíduo torna-se um problema do nosso tempo; a hierarquia do
espírito torna-se uma dificuldade do nosso tempo, que é uma espécie de
crepúsculo dos semideuses, isto é, desses homens disseminados na duração
e sobre a terra, aos quais devemos o essencial do que chamamos cultura,
conhecimento e civilização.
É por isso que insisti sobre a personalidade forte e temerária do grande
Descartes, cuja filosofia talvez tenha menos valor para nós do que a ideia
que ele nos apresenta de um magnífico e memorável Eu (Moi).
42 Valéry refere-se a uma das ilustrações do tratado de ótica de Descartes, a Dióptrica, cf.
<http://ifilosofia.up.pt/gfm/docs/Ramos_Traducao_Dioptrica_Descartes.pdf>. (N.T.)
43 Augustin Jean Fresnel (1788-1827) é considerado o pai da ótica moderna, ao propor uma
explicação de todos os fenômenos óticos à luz da teoria ondulatória da luz. Opõe-se à teoria
corpuscular da luz de Newton e desenvolve os fundamentos de uma teoria vibratória da luz. Seu
trabalho deve-se em grande parte à Dióptrica de Descartes. (N.T.)
44 James Clerk Maxwell (1831-1879) formulou a teoria clássica da radiação eletromagnética, tendo
reunido pela primeira vez os fenômenos de eletricidade, magnetismo e luz. (N.T.)
45 Lord Kelvin (1824-1907) foi um fisico matemático escocês que realizou um notório trabalho de
análise matemática da eletricidade, de formulação da primeira e segunda leis da termodinâmica, além
de ter alcançado grande celebridade como inventor do telégrafo elétrico. (N.T.)
46 Pierre Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), matemático, físico, astrônomo, filósofo e
naturalista francês, foi um dos grandes divulgadores e adeptos das teorias de Newton. Formulou pela
primeira vez o princípio da menor ação e hoje é considerado o precursor, em alguns aspectos, do
eletromagnetismo quântico. (N.T.)
47 Uma das grandes dificuldades de tradução na obra de Descartes e em toda a tradição filosófica,
literária e discursiva de língua francesa é a distinção entre Je e Moi, duas formas para dizer “eu”. Je é
o pronome pessoal da primeira pessoa do singular e Moi, que literalmente significa “mim”, é usado
também como pronome pessoal da primeira pessoa do singular, sobretudo quando se trata de reforçar
o pronome, como, por exemplo, na frase: “Eu, eu acho que....”, que se diz “Moi, je pense que....”. No
texto cartesiano, em que o “eu” se pronuncia e enuncia não só o sujeito da filosofia, mas a filosofia
do sujeito, é recorrente o uso alternativo e iterativo de Je e Moi, o que vai aparecer igualmente no
presente comentário de Valéry. Optei na tradução por usar Eu tanto para Je como para Moi,
colocando em parênteses a forma francesa utilizada no original. (N.T.)
48 Valéry cria o termo égotisme para distinguir de egoísmo. O egotismo de Descartes não é para ele o
mesmo que a subjetividade centrada no eu, o individualismo de um sujeito individualista. É o eu que
se apreende e flagra como eu no ato dessa apreensão (N.T.).
49 Valéry tem grande apreço pela palavra charme, que dá título a um de seus livros de poemas,
publicado em 1922 (Charmes). (N.T.)
50 Louis Bourdaloue (1632-1704), célebre pregador jesuíta, famoso por seus sermões. A passagem
citada por Valéry encontra-se em “Sur la paix chrétienne”, in Oeuvres, Paris: Lefevre, 1837, p.
476. (N.T.)
UMA VISÃO DE DESCARTES51

51 Publicado primeiramente em Pages immortelles de Descartes choisies et expliquées par Paul


Valéry, Paris: ed. Corrêa, 19 jun. 1941, p. 7-66. (N.T.)
R ené Descartes nasceu em La Haye, na Touraine, no último dia de
março de 1596. Sua estirpe era nobre e das mais antigas. A
família havia seguido o ofício das armas até seu pai, Joaquim, que
conseguiu o posto de conselheiro no Parlamento da Bretanha. Sua mãe
morreu poucos dias depois do seu nascimento, vítima sem dúvida de uma
tuberculose. Dela ele herdou “uma tosse seca e uma cor pálida que guardou
até a idade de vinte anos”. Os médicos o haviam condenado a morrer
cedo.52
Por essa fragilidade, ele permaneceu, durante muito tempo, em casa e
entregue ao cuidado das mulheres. Mas seu pai também olhava pelo
desenvolvimento de seu espírito, pois desde cedo havia pressentido o que
ele poderia vir a ser. Chamava de seu Filósofo essa pequena criança que
estava sempre a lhe fazer perguntas. Quando esse filósofo completou dez
anos, o excelente e clarividente Joaquim Descartes, cuja intenção era
oferecer ao filho a melhor educação possível, o colocou no Colégio La
Flèche, que Henrique IV acabara de fundar e entregar aos jesuítas
[localizado no departamento de Sarthe], a quem o rei havia confiado a
tarefa de formar a jovem nobreza da França. Em todo o seu percurso nas
humanidades, Descartes foi um aluno exemplar. Mas quando passou dos
estudos das letras aos da lógica, física e metafísica, viu-se perplexo tanto
diante da incerteza e da obscuridade das doutrinas que aprendia como da
surpreendente variedade das opiniões: ele observava que não havia nada
que fosse tão estranho e tão pouco digno de crença que não tivesse sido
ensinado por algum filósofo. Esse choque intelectual é um acontecimento
capital na vida de seu espírito. Ele faz essa experiência por volta dos
dezesseis anos, idade crítica em que o destino da liberdade e da
personalidade do pensamento muitas vezes se decide. Toda a sua carreira
pode ser considerada como a evolução dessa realização de si mesmo que
deveria se transformar numa reação poderosamente criadora sob o impacto
de um segundo acontecimento interior, que se deu sete anos depois e sobre
o qual falarei a seguir.
Ao mesmo tempo que se colocava em posição de defesa contra a
filosofia, dedicava-se com zelo e prazer extremos ao estudo da matemática:
espantava-se com o fato de, não obstante tão sólida e firme, ninguém ter
construído, com base nela, nada de mais relevante do que sua mera
aplicação nas diversas técnicas que a utilizavam. Assim, o conjunto de
conhecimentos que encontrava já formado e que lhe fora transmitido pelos
seus mestres lhe oferecia o contraste entre a importância universalmente
atribuída a uma filosofia cuja autoridade não compensa nem a fraqueza das
premissas nem a extravagância das deduções e uma ciência fundada sobre a
evidência e o rigor, mas que se via rebaixada a servir meramente às
necessidades da vida prática.
Descartes faz então o balanço das necessidades, dos desejos, dos
recursos próprios de seu espírito, em face de uma avaliação geral dos
valores intelectuais fornecidos pela sua época. Ele deve raciocinar assim:
“Desde a infância, fizeram-me acreditar que encontraria em meus estudos
tudo que era útil para se saber; esse saber seria, ademais, claro e certo. A ele
dediquei-me com ardor. Fui aluno dos melhores mestres da Europa, no
colégio mais célebre. Aprendi tudo que ali se ensinava, e li, dentre outros,
todos os livros de ciência que estavam ao meu alcance. Fui considerado
como não sendo inferior a nenhum de meus condiscípulos. Ora, matemática
à parte, constato que tudo ou é só divertimento ou não é absolutamente
nada”.
O que fazer? Ele deixa sem arrependimento o seu colégio, seus livros de
literatura, onde encontrou apenas verborragia e decepções. Dedica-se à
equitação e, sobretudo, à esgrima, pela qual se interessa a ponto de querer
escrever um tratado sobre essa arte. Seu pai, que o destinava à profissão
militar mas insistia para que antes visse o “grande mundo”, decide enviá-lo
a Paris. Ele chega ali como filho de boa família, com seu criado e lacaios,
frequenta não tanto o grande mundo, mas o mundo onde se entretém,
perdendo ou ganhando alguns meses nos divertimentos, nas partidas e,
sobretudo, no jogo.
Mas os prazeres ao gosto de todo mundo logo deixariam de lhe dar
prazer. Ele se desliga o mais possível de seus companheiros de vida fácil
para conquistar novos amigos e outros passatempos. Liga-se
particularmente ao senhor Mydorge,53 então celebrado como o primeiro
matemático da França e em quem encontrou um “não sei o que
extremamente agradável, seja pelo humor, seja pelo caráter de espírito”, e
retoma contato com um homem que havia conhecido bem jovem no
colégio, e que haveria de ocupar um lugar de primeira importância na sua
vida, Marin Mersenne. Quando saiu de La Flèche, Mersenne tornou-se
religioso, na ordem dos Mínimos. Ele foi para Descartes o amigo mais leal
e útil, o representante quase oficial de seu pensamento, tendo
desempenhado junto a ele o papel infinitamente precioso de confidente,
defensor, informador e correspondente. Esse gênero de personagem se
encontra com frequência na proximidade dos grandes homens. Mas o padre
Mersenne deve ser colocado, sem dúvida, no primeiro patamar desses
acólitos de um gênio.
Descartes tem 21 anos. Chega a hora de entrar na carreira militar. Sonha
primeiro em se reunir às tropas do rei, mas as circunstâncias o obrigam a se
instruir sobre as artes da guerra, sob a tutoria do príncipe Maurício de
Nassau. Sua campanha na Holanda parece não ter sido nem beligerante nem
dura. Distinguiu-se, sobretudo, como matemático e fascinou alguns eruditos
de Breda com soluções quase imediatas, oriundas de um método de sua
invenção para problemas que eles esperavam deixá-lo em apuros. Ele
escreve nessa época um tratado de música em latim. Depois, levando como
amador e curioso das coisas humanas uma vida militar livre de obrigações,
ele passa pela Alemanha, assiste a coroação do imperador Ferdinando e, na
qualidade de voluntário, junta-se a seguir ao exército bávaro que iria
combater o eleitor do Palatinado.
Passam-se vários meses antes de começar as campanhas de guerra. É
durante esse período de espera e negociações que nele se produz um
extraordinário trabalho de espírito que, em poucas semanas, transformou
esse jovem de espadas no autor da revolução intelectual mais audaciosa e
mais energicamente conduzida já vista. A segunda metade do ano de 1619 e
os primeiros meses de 1620 merecem ser considerados como eras no mundo
das ideias. Descartes encontrava-se então em Ulm, aquartelado durante o
inverno, e foi provavelmente ali (ou não longe dali) que se formou em seu
pensamento a decisão de tomar a si mesmo como fonte e árbitro de todo
valor em matéria de conhecimento. Ficamos tão acostumados com essa
atitude que não mais conseguimos imaginar o esforço e a unidade da força
de vontade necessários para concebê-la em toda a sua nitidez e adotá-la pela
primeira vez. A súbita abolição de todos os privilégios da autoridade, a
declaração de nulidade de todo ensino tradicional, a instituição do novo
poder interior fundado sobre a evidência, a dúvida, o “bom senso”, a
observação dos fatos, a construção rigorosa dos argumentos, essa limpeza
impiedosa da mesa de laboratório do espírito, foi lá, em 1619, que um rapaz
de 23 anos, forte e confiante em suas reflexões, seguro da sua virtude,
adotava e edificava um sistema de medidas extraordinárias, na sua solidão
hibernal, à qual ele dava e encontrava a mesma força que ao sentimento
mesmo de sua própria existência. Tão forte em si e tão seguro de si como
um tenente de 21 anos haveria de ser no seu quarto em Valência, 170 anos
mais tarde. Só que Descartes estava fazendo não só a sua Revolução, mas
também o seu Império.
Tudo isso pertence à ordem da ação, pois o pensamento é, por essência,
impotente para se retirar de suas próprias combinações. Um homem que
sonha é tomado pelo conjunto de transformações de seu sonho e dele só
consegue sair pela intervenção de um fato estranho e exterior ao mundo dos
sonhos. Descartes pode considerar o conjunto das doutrinas e teses da
filosofia antiga e escolástica e o caos de suas contradições, para as quais ele
vê as pessoas tornadas insensíveis e com as quais o ensinamento parece tão
bem acomodado, como um ser que, ao acordar, se dá conta do pesadelo cuja
desordem acaba de sofrer e que anula ao olhar para os objetos estáveis e
bem definidos ao seu redor, distintos de si mesmo e em acordo com seus
movimentos. Igualar a zero todo esse amontoado dogmático era, com efeito,
uma espécie de ato – quase um reflexo.
Essa reação tão enérgica, que é o segundo acontecimento acima referido,
teria sem dúvida permanecido um episódio pessoal sem maiores
consequências do que o primeiro, se não tivesse sido acompanhado (talvez
surdamente solicitado ou exigido) pela formação do projeto de uma ciência
admirável cuja ideia lhe apareceu aos 10 de novembro de 1619, sob
tamanha luz, que ele mal podia suportar o brilho.
Esse momento criador havia sido precedido de um estado de
concentração e agitação violentas. “Ele se extenuou de tal modo, diz Baillet,
que o fogo lhe subiu ao cérebro e ele caiu numa espécie de entusiasmo que
dispôs seu espírito já abatido para um estado capaz de receber as
impressões dos sonhos e das visões.” Depois de se deitar, Descartes teve
três sonhos dos quais nos deixou uma narrativa. Ele chega mesmo a contar
que o Gênio que o possuiu havia pressagiado esses sonhos e que o espírito
humano não tinha nenhuma parte nisso. Sentiu-se de tal forma arrebatado
por tudo isso que começou a rezar e fez a promessa de uma peregrinação
“para entregar esse acontecimento, que considerou o mais importante de
sua vida, à Virgem Maria”.
Visto como um todo, esse dia de 10 de novembro de 1619 e da noite
seguinte constitui um extraordinário drama intelectual. Suponho que
Descartes não tenha exagerado e que o relatório que nos fez é tão
verdadeiro como pode ser uma lembrança dos sonhos. Não temos razão
alguma para duvidar de sua sinceridade. Conheço vários outros exemplos
dessas iluminações de espírito sucedendo a longas lutas interiores, a
tormentos análogos às dores de um parto. De repente, a verdade de alguém
acontece e nele brilha. A comparação luminosa se impõe, pois nada oferece
uma imagem mais justa desse fenômeno íntimo do que a intervenção da luz
num ambiente obscuro onde antes só era possível se movimentar tateando.
Com a luz, aparece a caminhada em linha reta e a relação imediatamente
coordenada entre a marcha, o desejo e a meta. O movimento se torna uma
função de seu objeto. Nos casos a que me referi e também no de Descartes,
é toda uma vida que se ilumina e todos os atos passam então a se coadunar
com a obra que será a sua meta. A linha reta está traçada. Uma inteligência
descobriu ou projetou aquilo para que foi feita: ela formou, de uma vez por
todas, o modelo de toda a sua atividade futura.
Não se deve confundir, creio, esses coups d’état54 intelectuais com
conversões religiosas que, pelos tormentos iniciais e pela súbita declaração
do “novo homem” a elas se assemelham, de maneira aproximada. Encontro,
com efeito, uma diferença bem considerável entre esses modos de
transformação transcendente. Enquanto na ordem mística a modificação
pode se produzir em qualquer idade, parece que na ordem intelectual ela
acontece geralmente entre dezenove e 24 anos: foi assim, ao menos, com
algumas dessas “espécies” que conheci.
O caso de Descartes talvez seja, no entanto, mais estranho do que se
possa imaginar. Retornemos aos acontecimentos de 10 de novembro de
1619. Eles foram precedidos por um período de atenção e excitação
intensos, durante o qual a luz e a certeza se declaram e o projeto
maravilhoso (mirabilis scientiae fundamenta) fascina o seu autor. Inebriado
de cansaço e entusiasmo, ele se deita e tem três sonhos. Ele os atribui a um
gênio, “um Daimôn” nele operando. Recorre, por fim, a Deus e à Virgem
Maria, implorando a sua assistência para se assegurar do valor de sua
descoberta. Mas qual é essa descoberta? Isso é o mais surpreendente nesse
episódio. Ele pede ao Céu que confirme a sua ideia de um método para bem
conduzir a sua razão, e esse método implica uma crença e uma confiança
fundamentais em si mesmo, condições necessárias para destruir a confiança
e a crença na autoridade das doutrinas transmitidas. Não digo de forma
alguma que haja nisso alguma contradição. Mas há decerto um contraste
psicológico dos mais sensíveis entre esses estados tão próximos que se
sucedem. É esse contraste que torna a narrativa tão pungente, viva e
verossímil. Não consigo conceber nada de mais verdadeiramente poético do
que essa modulação extraordinária que, no espaço de algumas horas, faz
uma pessoa percorrer os graus desconhecidos de toda a sua potência
nervosa e espiritual, da tensão de suas faculdades de análise, crítica e
construção, até a embriaguez da vitória, a explosão do orgulho de ter
encontrado o que encontrou; depois, a dúvida, (pois o ganho é tão belo que
parece impossível retê-lo na mão). Enfim, após tanta fé em si mesmo, um
recurso à fé que se recebeu da Igreja e da graça.
Não sou absolutamente filósofo e sobre Descartes, que tem sido objeto
de tantos trabalhos, ouso apenas escrever as primeiras impressões. No
entanto, é isso também que, ao meditar sobre esses instantes tão preciosos e
dramáticos, me permite encontrar um interesse mais real e uma importância
atual, ou melhor, uma atualidade eterna, maior do que poderia encontrar se
examinasse e discutisse a metafísica cartesiana. Esta, como muitas outras,
tem e só pode ter um significado histórico, ou seja, somos obrigados a
conceder-lhe o que não mais possui, a fingir ignorar coisas que sabemos e
que foram adquiridas posteriormente e a ceder passageiramente um pouco
de nosso calor a disputas definitivamente esfriadas – numa palavra, somos
obrigados a fazer um esforço de simulação, sem esperança de nenhuma
verificação cabal, para reconstituir artificialmente as condições de produção
de certo sistema de fórmulas e de um raciocínio que, elaborados há
trezentos anos, num mundo prodigiosamente diferente do nosso, viu os
próprios efeitos desse mesmo sistema contribuírem enormemente para
torná-lo cada vez mais estranho a si mesmo.
Todo sistema é, porém, um empreendimento do espírito contra si
mesmo. Uma obra exprime não o ser de um autor, mas a sua vontade de
parecer, que escolhe, ordena, acorda, mascara, exagera. Ou seja, uma
intenção particular trata e trabalha o conjunto dos acidentes, dos jogos do
acaso mental, dos produtos da atenção e da duração consciente, que
compõem a real atividade do pensamento. Mas o pensamento não quer
parecer o que é; quer que essa desordem de incidentes e atos virtuais não
conte, que suas contradições e falhas, que suas diferenças de lucidez e de
sentimentos sejam resolvidos. Daí resulta que a representação de um ser
pensante, baseada unicamente no estudo de seus textos, leva à invenção de
monstros, tão mais privados de vida quanto mais o estudo for elaborado
com cuidado e rigor, a ponto de operar conciliações jamais ocorridas no
espírito do autor, explicar inerentes zonas obscuras e interpretar termos
cujas ressonâncias constituíam singularidades desse espírito, para ele
mesmo, impenetráveis. Em suma, o sistema de um Descartes é somente o
próprio Descartes enquanto o manifestar de sua ambição essencial e de seu
modo de satisfazê-la. Em si mesmo, é uma representação do mundo e do
conhecimento que tinham de envelhecer como um mapa geográfico
envelhece. Por outro lado, nem a paixão de compreender e de dominar, por
uma via toda nova, os mistérios da natureza, nem a estranha combinação do
orgulho intelectual mais decidido e convencido de sua autonomia com os
sentimentos da devoção mais sincera nem a aparente coexistência ou
sucessão imediata de um estado que só quer reconhecer a razão e de outro
que atribui a maior importância aos sonhos, nada disso jamais consegue
perder todo interesse que a própria vida mental provoca – quero dizer, que
essa flutuação que só tende a conservar o possível e, para que isso aconteça,
vale-se a cada instante de todos os meios.
Pode haver algo mais tocante do que ver o Proteu55 interior passar do
rigor ao delírio, implorar à prece a energia para perseverar na via das
construções racionais, aos personagens divinos para apoiá-lo no
empreendimento mais orgulhoso e querer, por fim, que sonhos
excessivamente obscuros lhe sejam testemunhas em favor de seu sistema
das ideias claras? Esse é o traço mais marcante da personalidade forte e
completa de Descartes e que o distingue da maior parte dos outros filósofos:
pois, em nenhum outro, o caráter, ou seja, a reação do homem inteiro,
participa tão energicamente na produção especulativa. Toda a sua filosofia –
eu ousaria quase dizer, toda a sua ciência, tanto a sua geometria como a sua
física – confesso, supõe explicitamente e faz uso do seu Eu (Moi). Voltarei a
isso. Mas como não observar desde agora que o texto fundamental, o
Discurso do método, é um monólogo em que as paixões, as noções, as
experiências da vida, as ambições, as considerações práticas do herói se
exprimem indistintamente com a mesma voz? Ao devolver esse texto
memorável para a atmosfera espiritual de sua época, não podemos deixar de
observar que essa época segue àquela de Montaigne, cujos monólogos não
foram ignorados pelo príncipe Hamlet, que a dúvida pairava no ar desses
tempos inteiramente remoídos de controvérsias e que, refletida numa certa
mente com tendências e hábitos matemáticos, essa dúvida tinha chances de
receber a forma de um sistema e, por fim, encontrar o seu limite na
constatação do próprio ato que a exprime. Eu duvido, logo, eu tenho essa
certeza, essa de que duvido.
Quanto ao resto da biografia de Descartes, peço ao leitor dirigir-se às
obras especialmente dedicadas à sua vida e às quais eu poderia recorrer. À
minha maneira, tento fazer um esboço de seu personagem intelectual. Se
tratei de seus primeiros anos foi porque o estado nascente do homem de
espírito, ou seja, a idade em que o adolescente se faz homem, é aquela em
que as ambições se fixam, as perspectivas se desenham. É a idade em que
se sente vivamente se desenvolver e utilizar o mais possível aquilo que
haverá de se tornar a qualidade mestra. Ora, em todas as matérias,
Descartes se sente geômetra na alma. Teve a geometria como modelo. É
também o que mais intimamente estimula o seu pensamento – e não
somente o pensamento, mas também a vontade de poder. Naqueles que são
geômetras natos e que se observa já na juventude, existe um orgulho
surpreendentemente simples, sincero e o menos escondido do mundo,
resultado natural da superioridade que experimentaram possuir na arte de
compreender e de resolver uma quantidade de questões, nas quais a maior
parte das pessoas exercita em vão os seus espíritos. O sentimento desse tipo
de superioridade foi a origem da decisão do jovem Descartes de se elevar
acima de tudo o que se pensava na sua época e ver, mais à frente do que
qualquer outro, o porvir do conhecimento. Ele mesmo diz: “O que tenho a
dar... com respeito à natureza e às propriedades das linhas curvas... está, me
parece, tão além da geometria ordinária como a retórica de Cícero
ultrapassa o ABC das crianças”.56 Ele concebe em muito boa hora a
possibilidade de uma invenção que tornará possível tratar sistematicamente
todos os problemas da geometria, reduzindo-os a problemas de álgebra,
coisa fácil de fazer quando se encontra o meio de fazer corresponder as
operações de geometria às operações de aritmética. Ele o encontra. Pela
correspondência recíproca que estabelece entre os números e as figuras, ele
libera a investigação da obrigação de segurar a imagem e de a ela se referir
enquanto o espírito procede pelo discurso lógico. Ele ensina a escrever as
relações geométricas numa linguagem homogênea, inteiramente composta
de relações entre grandezas que oferecem ao executante não apenas o
quadro mais preciso da questão proposta, mas ainda a perspectiva dos
desenvolvimentos que pode receber. Ele introduz a ideia admirável de
deduzir as soluções da suposição de que o problema já estava resolvido.
“Deve-se, diz ele, percorrer a dificuldade sem considerar nenhuma
diferença entre as linhas conhecidas e as desconhecidas” e fornece o
artifício bem simples que realiza essa ideia e, pela combinação
indistintamente formada de quantidades conhecidas e desconhecidas,
permite construir a máquina cujo funcionamento extrairá de sua própria
estrutura tudo que se pode saber de um sistema de dados.
Para o leitor moderno, a Geometria de Descartes tem, sem dúvida, um
aspecto bem diferente de um tratado de geometria analítica do nosso tempo.
Mas a via está aberta, o princípio estabelecido, e mesmo depois de três
séculos não deixa de “permitir a solução de um número ilimitado de
problemas” e de sugerir uma infinidade de outros com os quais jamais se
poderia sonhar. Além disso, a invenção cartesiana mostrou-se um estímulo
e um instrumento tão poderoso de pensamento que não podia permanecer
restrita ao uso no âmbito da matemática pura. Logo conquista a mecânica e
depois a física. E, numa íntima ligação com o cálculo infinitesimal, tornou-
se tão indispensável às nossas representações do mundo como é, por
exemplo, o sistema decimal. O que esse desenvolvimento extraordinário
pode oferecer ao espírito é realmente um espetáculo intelectual fantástico.
Vemos essas “algumas linhas retas” “movidas uma pela outra”, que
Descartes utiliza como órgão universal de relação métrica, tornar-se o
sistema de eixos de coordenadas onde se representa ora o próprio fenômeno
como trajetória de um corpo móvel, ora a lei do fenômeno. Depois, esse
sistema se enriquece pelo acréscimo de uma variável a mais, que é o tempo,
até sofrer, por fim, uma modificação prodigiosa que exige a teoria da
relatividade e a substituição das retas de Descartes pelo enúplo flexível das
coordenadas curvilíneas de Gauss, e o seu espaço de três dimensões pelo
contínuo não euclidiano.
E isso não é tudo. A representação cartesiana de todos os tipos de
variações mensuráveis adquire uma importância cada vez maior na prática.
Que se trate dos cursos da Bolsa, da temperatura numa doença febril, da
distribuição das observações estatísticas, das flutuações meteorológicas etc.,
a tradução das cifras observadas nas curvas de um gráfico, que permite
apreciar numa única olhada a taxa de uma transformação, tornou-se familiar
e quase indispensável para um estado de organização do mundo humano,
onde a extrema complicação do organismo social exige uma previsão
rápida. Descartes é, decerto, um dos maiores responsáveis pelo porte e
fisionomia da era moderna, particularmente caracterizada pelo que eu
chamaria de “quantificação da vida”. A substituição da figura pelo número,
o fato de todo conhecimento submeter-se a uma comparação de grandezas e
a depreciação que se seguiu de todas aquelas formas de conhecimento que
não pudessem ser traduzidas em relações aritméticas teve grandes
consequências em todos os campos. De um lado, tudo que é mensurável; de
outro, tudo o que escapa à métrica. Basta observar um dia de nossa
existência para conceber como ela está dividida, avaliada, comandada e
preordenada pelas indicações ou menções de algum aparelho de medida.
Então, nosso Descartes, encontrando-se com 23 anos, maravilhosamente
seguro de seu poder matemático e convencido da força do seu método pelos
seus grandes sucessos em geometria, “promete a si mesmo aplicar-se
utilmente às dificuldades das demais ciências como havia feito com aquelas
da álgebra”. Pela admirável ciência desse método que o embriaga, tudo no
conhecimento parece-lhe possível de ser elucidado, conquistado,
transformado em saber útil e sólido. Um método não é uma doutrina: é um
sistema de operações que realiza o trabalho do espírito melhor do que o
espírito entregue a si mesmo. Essas operações são necessariamente quase
materiais, ou seja, podem ser concebidas, quando não realizadas, por meio
de um mecanismo. Uma doutrina pode pretender nos ensinar alguma coisa
da qual não sabemos absolutamente nada, ao passo que um método só se
vangloria de operar transformações sobre o que já sabemos parcialmente a
fim de extrair ou compor tudo o que podemos saber. É o que Descartes
expressa ao escrever: “que uma criança, instruída em matemática, tendo
feito uma adição segundo as regras, pode assegurar-se de ter encontrado
tudo o que o espírito humano saberia encontrar, no tocante à soma que
examinava,”. Essa criança se tornou assim uma máquina de transformar
vários números num só, e o maior sábio do mundo não poderia fazer melhor
do que ela, já que, em princípio e por definição, uma máquina equivale a
qualquer outra de mesma estrutura. Os objetos da aritmética ou da
geometria são, contudo, simples perto de todos os outros que podemos nos
propor a examinar e mesmo os mais simples possíveis: o número, no ato de
contar; a linha, no ato de traçar.
Aqui aparece o momento metafísico de Descartes e a decisão de realizar
a sua grande aventura intelectual, já que ele não quer se reduzir a ser apenas
o primeiro geômetra de seu tempo.
Seu objetivo era nada menos que lançar um olhar sobre todas as coisas
para torná-las aptas a serem tratadas segundo o método e, assim, nos
permitir raciocinar também de maneira segura e intrépida como um
geômetra pode fazer tão logo as suas definições estejam bem determinadas,
seus axiomas e postulados bem separados e enunciados, tendo, dessa forma,
as vias de uma verdade, como que preestabelecidas e abertas diante de si.
Para viverem no espírito e se desenvolverem “ao infinito”, as entidades e
atos matemáticos nada mais necessitam do que de algumas convenções que
podem muito bem ser tomadas por arbitrárias e, desse modo, também por
inatacáveis, como as regras de um jogo. Aqui, o método cria o objeto e com
ele se confunde.
Mas e o conjunto das coisas e existências dadas, o universo da
percepção, o mundo físico, o mundo vivo, o homem, o mundo moral! Eis
uma matéria cuja diversidade e complexidade se opõem ao intelecto e à sua
vontade de representar e dominar por símbolos – o obstáculo invencível que
é o real: indivisível e indefinível. É dele que a ciência extrai os poderes da
ação que se volta contra ele. O espírito não pode, todavia, se furtar à relação
recíproca que sempre acaba por constatar entre o que pode conhecer e o que
é.
Toda a vida pensante de Descartes está inspirada pela ideia de criar e
impor a tudo o que pertence ao âmbito do conhecimento um tratamento
uniforme e metódico, capaz de fazer de toda questão uma espécie de figura
particular do espaço inteligível, como a invenção da correspondência entre
as linhas e os números que transforma toda curva numa propriedade
particular do espaço da geometria. Ele não é o único que sonhou em referir
tudo a um sistema de regras fixas “graças às quais todos aqueles que as
observarem com exatidão jamais haverão de tomar por verdadeiro algo
falso e, sem se cansar com esforços inúteis, chegarão ao conhecimento
verdadeiro de tudo o que podem alcançar” (Regulae).57 Aqui pode-se
pensar, por exemplo, em Lulo e em Leibniz. A própria Escolástica não
pretende nos oferecer menos facilidade e certeza e, ademais, não será toda
filosofia um empreendimento cujo fim é a realização do conhecimento
enquanto o que se pode reduzir às funções e combinações da linguagem?
Ei-lo então com 32 anos, diante do problema desmesurado de instituir
um método universal. Mesmo com toda segurança de si e uma
autoconfiança bem justificada por um sucesso muito brilhante na
matemática, uma tarefa de tamanha grandeza permanece uma aventura que
haverá de comprometer todo o seu porvir. O espírito que pretende arriscar
todas as suas forças nesse empreendimento essencial deve poder desligar-se
das obrigações do mundo, proteger-se das preocupações e aborrecimentos
que autoridades de vários tipos possam criar para os seres mais retraídos e
meditativos. Descartes elabora uma espécie de política da prudência, da
reserva e do retiro e até da desconfiança em relação aos homens. Em
relação a si mesmo, ele se exorta à renúncia; proíbe-se de desejar; quer se
convencer de que em seu poder estão somente os pensamentos; e toma
enfim a decisão de viver na Holanda, cuja língua ignora e onde só
estabelecerá as relações que desejou e criou, no meio de pessoas que se
ocupam do comércio e que “estão mais preocupadas com os seus próprios
negócios do que curiosos com os dos outros”. Ele se coloca mais uma vez
em estado de alerta contra tudo o que poderia desviá-lo de seu grande
objetivo; obedece às leis e respeita os costumes, a religião, a opinião e as
opiniões, reservando-se a mudar as suas segundo o seu humor ou segundo
as circunstâncias. Um probabilismo, que no jargão moderno equivale a:
conformismo e oportunismo. Constrói assim uma sabedoria que lhe
permitiu desenvolver a sua temeridade abstrata. Nem todo mundo está de
acordo sobre como um “homem de espírito” deve se comportar em relação
ao seu meio social, com suas tentações, perseguições e solicitações. A
vaidade ataca o seu orgulho. Os prazeres corrompem as suas delícias
internais.58 As necessidades materiais atravessam o seu pensamento com
suas preocupações, tomando-lhe as forças e o tempo. Não sabendo ver de
outro jeito as pessoas, o poder e os partidos políticos só podem vê-lo como
um ser ou perigoso, ou inútil, ou utilizável.
Em suma, o instinto de realizar uma obra longa e rigorosa do espírito é
necessariamente contrariado por tudo que faz com que o homem não seja só
um espírito e não possa alimentar-se apenas do espírito. Mas acontece
dessas contrariedades por vezes engendrarem, nesse mesmo espírito,
poderes ou intuições inesperados. O acidente exterior estimula algumas
vezes o acontecimento íntimo acidental que se mostrará como o assim
chamado “traço de gênio”, de modo que, por fim, deve-se concordar com
Leibniz e Pangloss de que, mesmo no pior dos mundos, tudo é para o
melhor.
Descartes acertou as suas contas com a filosofia – a dos outros. Definiu
ou determinou seu sistema de vida. Tem plena confiança em seu armamento
de modelos e ideais matemáticos e pode, agora, sem retorno a nenhum
passado, sem respeito a nenhuma tradição, empenhar-se na luta que será a
da sua vontade de clareza e organização do conhecimento contra o incerto,
o acidental, o confuso e o inconsequente, esses atributos mais prováveis da
maior parte de nossos pensamentos.
Afigura-se a ele uma primeira certeza; diz “que precisava rejeitar como
absolutamente falso tudo aquilo sobre o que pudesse imaginar a menor
dúvida, a fim de ver se depois disso não restaria em sua crença algo
inteiramente indubitável”. Fundamentando-se na experiência que temos dos
sonhos, alega que tudo, talvez, não seja mais do que sonho. Só essa famosa
proposição: Penso, logo existo, lhe parece constituir uma verdade
inabalável, que ele deve tomar como primeiro princípio e que lhe revela,
entre outras coisas, ser a substância cuja essência é pensar, inteiramente
independente do corpo, do lugar, de toda coisa material.
Essa posição é notável sob todos os pontos de vista. E o é também sob
certos aspectos que talvez não tenham sido observados. Ela deu origem a
uma infinidade de comentários e a um grande número de interpretações
bem diferentes. Cada uma consiste em tratar a fórmula: “Penso, logo
existo”59 como uma proposição cujo sentido é indiscutível e da qual só
restaria estabelecer a função lógica: nela alguns veem uma espécie de
postulado, outros, a conclusão de um silogismo.
Aqui, vou me arriscar bastante. Digo que ela pode ser vista com um
olhar inteiramente diferente e, assim, pretender que essa expressão breve e
forte da personalidade do autor não tem o menor sentido. Mas digo também
que ela possui um imenso valor, bem característico do próprio homem.
Digo que Cogito ergo sum não tem nenhum sentido pois essa palavrinha
Sum não tem sentido algum. Ninguém tem ou pode ter a necessidade de
dizer: “Eu sou”, a menos que tenha sido dado por morto e com ela protestar
dizendo que não se está morto; e, mesmo assim, se diria melhor: estou vivo.
Na verdade, bastaria dar um grito ou fazer um movimento irrisório. Não:
“Eu sou” não diz nada sobre ninguém e não responde a nenhuma questão
inteligível. Mas essa palavra responde aqui a outra coisa, que vou tentar
explicar. Além disso, que sentido atribuir a uma proposta cuja negativa
exprimiria o conteúdo tão bem como ela? Se o “Eu sou” diz o que quer que
seja, o “não sou” não nos diz nem mais nem menos.
O próprio Descartes, referindo-se a essas palavras, dez anos após tê-las
pronunciado e fixado no Discurso do método, as diz novamente com certo
constrangimento, nega que elas procedam de um silogismo e afirma que
enunciam uma coisa conhecida por si mesma “simplici mentis intuitu”
(Conversa com Burman).60 Ele toca, assim, no ponto em que a linguagem
se funde com aquilo que se passa, sem dúvida, aquém dela, provocando e
determinando uma emissão particular. Isso pode ser uma representação;
mas pode ser também uma sensação ou algum evento de sensibilidade
análoga. No último caso, a palavra, se produzindo como consequência
imediata, tem a insignificância e o valor de um reflexo, como na
exclamação, na interjeição, na jura, no grito de guerra, nas fórmulas votivas
ou imprecatórias. A elas o pensamento só pode retornar para constatar que
em si mesmas elas não significam nada, só estão desempenhando um papel
momentâneo na modificação brusca da expectativa ou da orientação íntima
de um sistema vivo. É isso que acredito ver no Cogito. Nem silogismo nem
mesmo significado ao pé da letra; mas um ato reflexo do homem, ou, mais
exatamente, o brilho explosivo de um ato, de um golpe de força. Num
pensador de tal força, há tanto uma política interior como exterior do
pensamento, e ele confere uma espécie de razão de Estado contra a qual
nada prevalece e que sempre acaba por liberar energicamente o Eu (Moi) de
todas as dificuldades ou noções parasitas que o sobrecarregam sem que ele
as tenha encontrado em si mesmo. Descartes jamais teria inventado duvidar
de sua existência, ele que não duvidava do seu valor. Se o Cogito aparece
tão frequentemente em sua obra, sendo encontrado e reencontrado no
Discurso, nas Meditações, nos Princípios, é por ser um apelo à sua essência
de egotismo. Ele o retoma como tema de seu Eu (Moi) lúcido, o despertar
que grita ao orgulho e aos recursos do seu ser. Até ele, nenhum filósofo
havia se exposto tão deliberadamente no teatro do seu pensamento,
arriscando a sua pessoa, ousando o Eu em páginas inteiras, sobretudo como
ele o faz, com um estilo admirável, ao redigir as suas Meditações,
esforçando-se por nos comunicar nos mínimos detalhes a sua discussão e
manobras interiores, por torná-las nossas, e nos tornar semelhantes a ele,
incertos e certos como ele, depois de o termos seguido e como que
esposado, dúvida após duvida, esse Eu (Moi) mais puro, menos pessoal, que
deve ser o mesmo em todos e o universal em cada um.
Como acabo de dizer: estilo admirável. Releiamos essa passagem:
Tomemos por exemplo esse pedaço de cera que acaba de ser tirado da
colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda
algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua
grandeza, são patentes; é duro, frio; tocamo-lo e, se nele batermos,
produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente
fazer conhecer um corpo encontram-se neste.
Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo....61
Essas linhas são perfeitas. Nenhuma solicitação alheia atormenta o que
elas devem dizer: nenhuma intenção de efeito altera a pureza de seu ritmo, e
a simplicidade sábia de seu movimento está resguardada. Não há uma só
palavra que não seja inevitável e que não pareça ter sido delicadamente
escolhida. Vejo aí um modelo de adaptação da palavra ao pensamento, no
qual se compõe a maneira exata e desprendida que pertence ao geômetra
que, com certa graça discretamente poética, ao tornar mais sensível o ritmo,
enuncia o número, a estrutura bem comedida desse pequeno fragmento.
Se tivéssemos coragem de julgar os filósofos pela sua linguagem, talvez
encontrássemos clarezas bem especiais sobre o seu pensamento e seus
modos de apresentá-lo em relação às suas expectativas, de se declarar, de se
fazer aceitar e amar a ponto de se fixar. Mas não quero insistir sobre essa
insinuação herética e esse paradoxo que fará compreender um pouco
melhor o que adiantei com relação ao Cogito e mesmo em geral. Esse
motivo me parece retornar em toda a obra de Descartes, a qual, na verdade,
é um monólogo em que a sua pessoa e quase o timbre de sua voz não param
de se fazer sentir como tema de uma certeza que nada lhe ensina e nada lhe
pode ensinar, mas que a cada vez lhe recorda e nele suscita a energia inicial
de seu grande propósito.
Seguro de existir, Descartes acredita ter de imaginar que não possui
nenhuma outra certeza. Mas tão logo para de meditar, descobre várias
outras. Inovador como é, julga, porém, ter de esposar a tradicional atitude
metafísica de uma dúvida universal, que pega emprestada quando entra no
quarto onde pensa e devolve na saída. É um ato profissional. Ei-lo então às
voltas com um problema venerável. Desde tempos imemoriais, a
experiência do sonho, os erros da percepção, as ilusões do tato e da visão,
as alucinações de diversos gêneros geraram essa questão teórica – tão
positivamente teórica que podemos ademais nos perguntar se não é
puramente verbal. Dá bastante trabalho tentar se convencer de que se sonha
quando não se sonha; trata-se, porém, de estender à totalidade de nosso
conhecimento a suspeita de que ele é tão vão e enganoso quanto as
fantasmagorias do sono e as demais produções aberrantes de nosso espírito.
Não devemos evitar concluir que vivemos num mundo de aparências e que
daí seguem deduções que, com efeito, não têm nenhuma consequência
positiva para nossa vida. Enganados, sonhando ou não, isso nada muda em
nossas sensações ou em nossos atos. Parece, no entanto, que essa posição é
essencial para a filosofia, pois permite ao filósofo decretar realidade ao que
lhe apraz e ao que a fantasia de sua reflexão lhe sugere. Mas esse nome
maravilhoso só tem sentido como um dos termos de um contraste. Reduzir
tudo a sonho seria abolir o contraste; a partir daí não é mais sonho, e a
reação contra o sonho que lhe oporia uma “realidade” imediatamente
desvaneceria.
É preciso, no entanto, reduzir essa dúvida artificial, resíduo da tradição,
a qual qualifico de artificial, porque ela tanto exige um ato da vontade como
requer a intermediação da linguagem. Ele supõe afinal que tenhamos a ideia
de uma operação ou transformação que, aplicada ao nosso conhecimento
das coisas, o substituiria por um real de segunda ordem, e o que
entendemos, praticamente, naturalmente e comumente por realidade se
modificaria em lembrança de sonho. A estatística a favor da realidade do
senso comum é massacrante. Sem dúvida, pode-se pensar que uma espécie
de despertar haveria de dissipar, como um sonho se dissipa, tudo o que os
nossos sentidos, nosso entendimento, nossa experiência nos dão por
ambiente, agente, meios, determinação de nossa ações e probabilidade de
realização de nossas previsões. Como, no entanto, esse hiperfenômeno
nunca foi observado, temo que todas as tentativas de imaginá-lo com
alguma precisão seriam em vão.
Descartes é levado então a fingir. Faz suposições bem estranhas. Finge
que haveria “não um verdadeiro Deus, mas certo gênio maligno, não menos
ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria
para enganar-me”.62 Para se proteger do engano, decide interromper seu
julgamento e “preparar tão bem o seu espírito a todos os ardis desse grande
enganador que, por mais poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-
me algo”.63
Sócrates tinha o seu Daimon. Para as necessidades de seu raciocínio,
Descartes se dá um Diabo. Formando todas as hipóteses concebíveis para
explicar que um mundo de aparências dá impressão de realidade, a
existência de um Demônio pode bem figurar como uma dentre elas, o que,
ademais, custa muito pouco. Observaria nesse momento, sem que daí se
possa tirar alguma consequência, que, na narrativa que ele nos deixou dos
sonhos da famosa noite de 10 de novembro de 1619, também figura um
Gênio “que antes dele se deitar prevê que terá esses sonhos” e um gênio
maligno a quem ele atribui uma dor que lhe desperta e o propósito de
seduzi-lo.
Como se desfazer de uma dúvida tão absoluta e inventiva? No que
concerne à sua própria existência, ele já a desfez e desafiou o Enganador
com a sua fórmula mágica de conjuração: Eu sou, eu existo. Mas trata-se
agora de fazer com que todo o resto, até o seu corpo e o mundo, sejam ou
possam ser reconhecidos como tão existentes quanto ele. Trata-se mesmo
de salvar as demonstrações da matemática, já que Deus teria podido querer
nos extraviar até mesmo por meio de nossos raciocínios de geometria.
Ele segue rumo à “verdade” por um desvio surpreendentemente sutil. Ele
só sente segurança em seu pensamento. Ele pode ser usado, sem fazer apelo
a nada a não ser a si mesmo e à sua própria análise: essa análise lhe
propiciará os elementos puros de uma síntese da certeza. Assevera de início
que “para ele, nada é mais fácil conhecer do que o seu próprio espírito”. Ele
examina as suas ideias, que divide em duas classes: as que provêm dos
sentidos e que sempre podemos ver como ilusórias, embora “enquanto não
se pense que haja alguma coisa exterior que seja semelhante às suas ideias”
se está “fora do perigo de equivocar-se”; e as outras, que estão na alma,
representam para ele as “substâncias”, termo escolástico, pelo qual designa
as coisas existentes por si mesmas: estas possuem uma “realidade objetiva”.
Com isso ele quer dizer que essas ideias substanciais não podem não
representar algo de real fora dele. Mas qual é o real por excelência e a única
realidade plena e absoluta?
Aqui se apresenta o célebre argumento que faz com que Deus apareça na
filosofia de Descartes. Pela dúvida, ele conheceu que seu ser não era
totalmente perfeito e “que conhecer é uma perfeição maior do que duvidar”.
Mas de onde pode provir essa ideia da maior perfeição? Não podendo
derivá-la nem das coisas nem de si mesmo, pois o mais perfeito não pode
provir do menos perfeito, ele deduz a existência de Deus da presença em
seu espírito dessa ideia de perfeição. Estou abreviando e mutilando
atrozmente essa dedução que ele refaz, corrige ou desenvolve na sucessão
de suas grandes obras e, às vezes, remaneja sob o aguilhão das críticas e
objeções inevitavelmente dirigidas a essa viga de sustentação de seu
sistema. Seria interessante perguntar o que aconteceria com tal
argumentação no nosso tempo e, em particular, interrogar se a noção capital
de perfeição haveria de subsistir com tal força e necessidade.
De um dos textos relativos à existência de Deus, ressalto uma
consideração quantitativa admirável. Ele classifica as substâncias segundo a
sua realidade objetiva, ou seja, segundo os graus de ser ou da perfeição
implicados pelas ideias que as representam, escala que vai do nada à ideia
de um “Deus soberano, eterno, infinito, onipotente, ciente e Criador
universal de todas as coisas fora dele”. Isso é progredir do zero ao infinito
positivo. Cada um dos termos dessa sequência ordenada recebe do termo
superior o que possui de realidade objetiva, cedendo-lhe qualquer parte de
sua perfeição como um corpo mais quente cede o seu calor ao menos quente
que o toca.
A partir daí, a certeza vê-se fundada na existência de um Perfeito que
não pode ser enganador. Além disso, a teoria da realidade objetiva oposta à
realidade atual demonstra que não podemos atribuir ao nosso corpo o poder
de pensar, pois tudo que é do corpo e das coisas ao seu redor se determina
como extensão, figura, situação e movimento local, e “em seu conceito
claro e distinto, decerto está contida alguma extensão, mas de modo algum
inteligência”.
O raciocínio se resume no seguinte: Meu pensamento é feito de ideias
que não provêm da experiência. Há ideias que surgem de outra fonte. Elas
se classificam segundo a sua riqueza. “Nossa luz natural nos mostra que
conhecemos melhor uma coisa ou uma substância quanto mais nela
observamos as propriedades”. Daí decorre a ideia de perfeição, do infinito
da perfeição e a necessidade da existência de um ser que a realize, já que a
existência é uma condição imposta pela ideia.
Essa dedução pode gerar várias dificuldades. Como toda metafísica, ela
tangencia o problema do valor dos resultados produzidos pelo uso da
linguagem ao se exercitar na expressão das coisas do pensamento, ou seja,
dessas coisas sobre as quais os diferentes espíritos não podem estar de
acordo, referindo-se aos objetos comuns e sensíveis e fazendo suas
convenções. Somos levados então a dar “definições” de termos já criados e
avaliados pelo uso corrente, o qual só precisa de uma moeda imediatamente
convertida em atos que, em troca, não exigiriam mais do que sinais
instantâneos. No entanto, essas tentativas de transformar palavras, que são
produtos incertos e instáveis de sondagens seculares, em instrumentos de
precisão e em recursos de conhecimentos a serem explorados até o extremo
de seu suposto conteúdo, não conseguem satisfazer os seus autores.
Descartes, por exemplo, define o conhecimento claro e distinto da seguinte
maneira: claro é o que está presente e manifesto a um espírito atento;
“Distinto, o que é tão preciso e diferente de tudo mais que só compreende o
que se manifesta para quem o considera como se deve”.
No uso que faz da palavra Dúvida, tão importante para ele, ele nem
sequer distingue entre a dúvida natural e espontânea, que nos advém
quando não sabemos que nome ou atributo dar a uma coisa
insuficientemente conhecida, e a dúvida artificial ou filosófica que, tal um
signo algébrico, pode ser lançada sobre o que se quiser – e, em particular,
sobre o que melhor se conhece...
Não obstante, o desenvolvimento dessa metafísica gerou efeitos bem
diversos daqueles obtidos pelas construções abstratas anteriores.
A noção de Método foi plenamente iluminada; por um lado, a distinção
capital entre mundo do espírito e aquele da extensão; com ela, a renúncia à
busca vã que tende a descobrir, por via da análise lógica, o que só a
experiência pode revelar, seguida de uma consideração inteiramente
mecânica do universo e dos seres vivos e o esboço de um sistema
totalmente matemático do mundo; por outro lado, a relação entre o Todo e o
Eu (Moi), o espírito de cada um, a sua “evidência” tomada como origem
dos eixos de seu conhecimento; numa palavra, uma espécie de divisão bem
fecunda entre o caos das observações e as deduções que lhe apresentavam o
estado do saber e dos meios de saber que havia encontrado ao nascer para a
vida reflexiva – tais são os frutos quase imediatos de seu deliberado ato
intelectual.
Essa filosofia se desenvolve por um conjunto de aplicações que ele
persegue paralelamente nos campos do espírito e da extensão: dióptrica,
mecânica, paixões da alma.
A partir de certa idade, porém, ele passa a dedicar o seu tempo e as suas
buscas ao estudo do ser vivo. A máquina da vida lhe interessa mais do que
qualquer outra coisa. Ele parece bem desapegado da geometria e da física e
sente prazer em imaginar (pois esse raciocionador é singularmente
inclinado a imaginar) o funcionamento do organismo. Não obstante ter
separado a Psyché do corpo e da extensão,64 ele ao menos se mostra
engenhoso em buscar para ela uma localização cerebral e em demonstrar
que essa situação lhe é indispensável para sentir. Ele observa que há no
cérebro uma pequena glândula que parece ser o lar da alma e a razão que
encontra para isso é que as outras partes do cérebro são todas duplas, como
são duplos os olhos, as orelhas, sendo assim necessário “haver algum lugar
onde as duas imagens que vêm pelos olhos possam se reunir antes de
chegarem à alma” e ele não vê nenhum outro lugar no corpo onde elas
pudessem se unir a não ser nessa glândula. Isso é bastante engenhoso.
Temos ideias bem diferentes sobre as funções da hipófise, que parece ser,
aliás, um órgão de controle de primeira importância; quanto à coordenação
das imagens, porém, creio que não sabemos muito mais do que isso. O
mesmo acontece com o funcionamento do sistema nervoso: Descartes nos
povoa “com um vento bem sutil” que chamou de “espíritos animais” e que
para ele explicam todas as energias da vida, da glândula pineal ao cérebro e
do cérebro a todos os pontos do corpo cujas modificações, ações ou reações
ele pretende elucidar. Nossos movimentos, nossas imagens e lembranças
resultam do poder da alma sobre a distribuição e o consumo dessa matéria
sutil que o sangue transporta para onde for preciso e que se movimenta
também sobre nossos condutores nervosos. Estamos sempre a ponto de nos
perguntar o que circula ao longo de nossos nervos, corrente elétrica,
propagação de natureza química? O problema permanece, e mesmo tendo
sido posto com bem mais precisão, ainda permanece. Quanto às relações do
organismo com os “fatos da consciência” ou a sensibilidade subjetiva, nada
de novo, desde 1650.
Ao conhecer a existência de um pensador e de sua obra, o que mais
surpreende e estimula o público é sempre e necessariamente alguma
fórmula ou afirmação fora do contexto, que tem a força de choque de um
paradoxo ou a força cômica de uma simplificação por absurdo. Para a
multidão dos espíritos que conheceu durante o ultimo terço do século
passado o nome de Darwin, todo o seu trabalho está baseado nas palavras: o
homem descende do macaco. No século XVII, Descartes faz as pessoas
sonharem com o “animal-máquina”. Muitos protestam, outros
ridicularizam, outros ainda discutem a esse respeito, muitos se sentem
seduzidos, enquanto alguns nem se privam nem demoram em passar da
besta ao homem. O século seguinte não hesita em colocar em circulação e à
disposição de todos uma concepção de homem-máquina.
Que valor tem hoje a análise e a conclusão de Descartes? Não saberia
dizer. Limito-me a algumas observações.
De início, quero observar que o sentido da palavra “máquina” se
modificou bastante, ao passo que a noção de “animal” se complicou
singularmente. Em nossas máquinas foram introduzidos dispositivos
comparáveis àqueles sugeridos pela produção de reflexos nos seres vivos; e
o número de formas de energia utilizadas simultaneamente numa mesma
máquina, quando não havia mais do que uma ou duas no tempo de
Descartes, elevou-se a ponto de tornar-se comparável ao que está
necessariamente em jogo no processo das transformações que constitui o
aspecto físico da vida. Em suma, Descartes poderia muito bem ter-se
pronunciado em favor de um maquinismo vital. De resto, só podemos
raciocinar sobre o animal quando o reduzimos a um sistema que se repete e
que retira de um meio alguma coisa cuja transformação é essencial para
essa retomada. Isso se assemelha muito a uma máquina. Ademais, só
podemos estudar as coisas da vida animal pelos mesmos métodos, pelos
mesmos meios físicos ou intelectuais dos que nos servem para compreender
ou inventar as máquinas. Mesmo quando o nosso estudo é sobre o
comportamento dos animais, nós o submetemos a experimentos e a
reativos, tentamos perturbar os instintos ou criar hábitos, ou seja, atrapalhar
certa repetição que deveria se produzir ou introduzir o que antes não existia.
Mas tudo isso não passa de uma especulação experimental sobre a ideia de
máquina (a qual, aliás – não devemos esquecer – deriva de uma espécie de
imitação da ação dos seres vivos e dos órgãos dessa ação). Enfim, só
podemos pensar em nós mesmos à medida que pensamos em nos repetir.
Nossa própria identidade é uma probabilidade de recorrência. Por exemplo,
não podemos fazer um projeto a não ser que esse projeto suponha a
realização de uma quantidade de ciclos de ação que acreditamos poder
cumprir porque já a cumprimos anteriormente. Esse projeto não se reduz,
porém, apenas à sua execução. Aqui aparecem dificuldades intransponíveis.
Até agora ainda não surgiu a máquina que fizesse um projeto. Sem dúvida
acredito que o animal ferido sofre e não se limita simplesmente a mimetizar
tudo para nos fazer pensar que ele sofre. Um chute no pé age sem dúvida
em dois mundos: por um lado, dói; por outro, faz gritar ou fugir. Mas na
verdade não sei nada, e ninguém sabe.
Direi agora algumas palavras sobre a concepção física de Descartes com
a intenção de mostrar rapidamente a importância de duas ideias muito novas
e fecundas que ele introduziu no meio de uma série de imaginações, hoje, e
já de há muito, descartadas e esquecidas. Essas ideias e erros procedem do
mesmo pensamento e da mesma vontade de construir um modelo de
explicação do mundo somente pela matemática. Se tudo que diz respeito
aos corpos se reduz à figura e ao movimento, figura e movimento se
traduzem em grandezas e relações de medidas. Pelo seu método
geométrico, as grandezas de figuras são, por sua vez, traduzíveis em
equações. Para a álgebra, o mundo é uma de suas possibilidades. Esse é um
passo enorme na via da representação do universo mensurável. Ninguém
ainda havia conseguido imaginar que um sistema de referência permitisse
exprimir todos os fenômenos materiais numa linguagem homogênea, ou
melhor, restrita à diversidade fundamental: Comprimento, Tempo, Massa.
Foi uma renúncia radical à profusão de qualidades que constituía a física
escolástica. Ao longo de quase três séculos, a ciência não parou de
perseguir a obra sonhada e grosseiramente esboçada por Descartes. Os
progressos da análise permitiram realizar sucessivamente a representação
cartesiana dos progressos da mecânica e da física, incluindo até a teoria da
relatividade, que é, em suma, um desenvolvimento quase monstruoso da
submissão dos fenômenos à geometria do contínuo. Parece, no entanto, que
o método encontrou recentemente o seu limite quando fatos inteiramente
inéditos e imprevistos, revelados pelos novos meios de pesquisa, tornaram
possível pensar ou ao menos conceber que o contínuo expira no limiar do
excessivamente pequeno. A física atômica tenta ver, como por um buraco
de agulha, o que se passa num mundo que não mais se parece com o nosso
mundo de experiência imemorial. Eu me engano: não se trata de ver: ver
não faz mais sentido; o espaço e o tempo, a noção de corpo e de situação
única numa época dada, desvanecem quando se torna impossível separar a
coisa observada da influência que sobre ela exerce o meio de observação.
O destino do universo cartesiano foi aquele de todas as imagens do
mundo ou de sua constituição íntima. São meios momentâneos de conceber
mais ou menos de acordo com os meios de observar e comprovar que uma
época ou instante da ciência possui. O éter juntou-se aos turbilhões; e, no
nosso tempo, os modelos dos átomos não duram na média mais do que dez
anos. Mas as imaginações de Descartes não deixam de permanecer o
primeiro ensaio de uma síntese físico-mecânica submetida a condições
matemáticas, agindo sobre o conjunto de um sistema. Dizer que são
condições matemáticas é dizer que se exprimem por equações e impõem ao
espírito a pesquisa do “que se conserva” durante a evolução do sistema que
se pretende considerar. Descartes acreditou encontrar na “quantidade do
movimento” a constante universal que permanece inalterada sob as
transformações dos fenômenos. Leibniz mostrou o erro. Uma ideia capital
foi, no entanto, introduzida na ciência, essa ideia de conservação que de
fato substitui a noção confusa de causa por uma noção simples e
quantitativa.
(...)65

52 Adrien Baillet, op. cit.. Livro excelente onde pude encontrar, como todo mundo, a maior parte dos
fatos biográficos aqui mencionados.
53 Valéry refere-se a Claude Mydorge (1585-1647), matemático e físico francês, autor de Usage de
l’un et l’autre astrolabe particulier et universel, escrito em francês, e de Prodromi catoptricorum et
dioptricorum sive Conicorum operis ad abdita radii reflexi et refracti mysteria praevij et facem
praeferentis, 1639. (N.T.).
54 Literalmente golpes de estado. (N.T.)
55 Proteu era uma divindade grega, filho dos Titãs Oceano e Tétis, o deus da contínua mutação. Ao
falar do Proteu interior, Valéry refere-se à contínua metamorfose interior. (N.T.)
56 Essa passagem encontra-se numa carta de Descartes a Mersenne, escrita no fim de dezembro de
1637. (N.T.)
57 René Descartes, Regulae ad Directionem Ingenii, em português, Regras para a direção do
espírito, trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1989. (N.T.)
58 Valéry cria uma nova expressão, “internelle”, que traduzimos, também por um neologismo, como
”internal”. Em francês, internelle remete sonoramente a éternelle, eterno, mas vem de interne,
interna, interior. Em português, o ouvido nos leva para infernal, trazendo outras ressonâncias
semânticas.(N.T.)
59 Essa célebre frase cartesiana foi formulada primeiramente em francês no Discurso do método, “Je
pense donc je suis” e significa, literalmente, “penso, logo sou”. Foi depois traduzida para o latim
como “Ego cogito ergo sum”. Anos depois, nas réplicas ao segundo conjunto de objeções às
Meditações de filosofia primeira, Descartes escreve “ego cogito,ergo sum sive existo”, “penso logo
sou ou existo” (cf. René Descartes, Oeuvres, Adam-Tannery (Ed.), v. VII, p. 140, linha 21). Para
Descartes, ser e existir se equivalem. (N.T.)
60 A expressão simplici mentis intuitu encontra-se, dentre outros lugares, nas mesmas réplicas
citadas na nota anterior. A passagem diz: “E quando alguém diz: eu penso, logo eu sou, ou eu existo,
a sua existência não se conclui pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si;
ele a vê por uma simples inspeção do espírito (simplici mentis intuitu). cf. René Descartes, Oeuvres,
Adam-Tannery (Ed.), v. VII, p. 140, linha 21.(N.T.)
61 René Descartes, As meditações, Coleção Os Pensadores. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior,
São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 104.
62 Ibid., p. 96.
63 Ibid., p. 97.
64 Descartes define corpo como extensão; Valéry distigue o corpo da extensão e acha que Descartes
separa a alma de ambos. (N.T.)
65 Retiramos a última parte de ”Uma visão de Descartes” por repetir literalmente a parte do texto de
”Fragmento de um Descartes” que começa na frase “Mas uma ideia capital foi introduzida na ciência,
a ideia de conservação” e segue até concluir com “a ideia que ele nos apresenta de um magnífico e
memorável Eu (Moi)”. (N.T.)
SEGUNDA VISÃO DE DESCARTES66

66 Publicado primeiro em “Croquis d’un Descartes”, in Domaine français, Messages, Genebra: De


Trois Collines, textos reunidos por Jean Lescure, diretor da revista Messages, em Paris, 1943, p. 275-
277. Republicado em Variété, nº V, mar. 1944, com o título atual, e em La Nef, nº 2, ago. 1944,
Algéria.
D escartes e sua grandeza se resumem para mim a dois pontos.
Ele tratou como um caso pessoal o que, até ele, havia sido
tratado de forma dogmática, dominada pela tradição. Decidiu que
nenhuma autoridade poderia prevalecer contra o sentimento de vacuidade
provocado pelos seus ensinamentos: Descartes não quer nada exceto a
evidência ou a observação cuidadosamente verificada. Tratava-se de uma
recusa de atribuir à linguagem um valor que só provinha das pessoas ou dos
livros. Ele pesa o seu próprio ser num dos pratos da balança que tem, no
outro, a carga de toda a filosofia até ele produzida. Considera que o seu Eu
(Moi) o conduz. Sente-se forte de estar só, mas podendo responder a tudo o
que ele mesmo pensa, observou, deduziu ou definiu, por oposição a essa
quantidade de doutrinas, fórmulas, desenvolvimentos puramente verbais,
surgidos unicamente de disputas entre as escolas, e que, século após século,
foram transmitidas como uma moeda fiduciária que nunca se poderia
converter em ouro.
Descartes é antes de tudo uma vontade. Esse ser quer explorar sobretudo
o tesouro do desejo e do vigor intelectual que encontra dentro de si, e ele
não pode querer outra coisa. Esse é o ponto central, a chave da posição
cartesiana. É inútil buscar outro princípio para a sua filosofia.
De onde ele recebe essa confiança espantosa na força de seu espírito, que
aparece em seu estilo e em seus desprezos e que ele foi demasiado lúcido e
prudente para só fundá-la em suas esperanças, numa fé quimérica no seu
valor?
Desde a experiência que fez de seus talentos de geômetra, Descartes
acredita no poder de seu pensamento. Dele extrai a embriaguez de sua
superioridade. Nesse tipo de estudos, ele se reconhece inventor de um
método que lhe parece “tão além da geometria habitual como a retórica de
Cícero está além do ABC das crianças”. Essa criação de sua juventude
dominou toda a sua vida intelectual. Ele não tem a menor dúvida sobre a
conquista que fez e considera que o mesmo homem e a mesma aplicação do
intelecto, que tiveram um êxito tão feliz e considerável na análise abstrata
do espaço, devem se lançar no mundo físico e também nos problemas da
vida e que não falhariam em alcançar resultados de igual importância.
Inventa então um Universo e um Animal ao imaginar que os explica.
Quaisquer que sejam as suas ilusões nessa via, seus esforços tiveram
grandes consequências. Esse é meu segundo ponto. Se o universo cartesiano
teve o destino de todos os universos concebidos e concebíveis, o mundo em
que vive a nossa “civilização” traz ainda a marca da sua vontade e maneira
de pensar.
Esse mundo está permeado pelas aplicações de medida. Nossa vida está
cada vez mais ordenada segundo as determinações numéricas, e tudo o que
escapa à medida é depreciado. Cada vez mais se recusa o nome de “ciência”
a todo saber que não possa ser traduzido em cifras.
E eis aqui a observação singular que deverá concluir essa reflexão: o
caráter eminente dessa modificação da vida, que consiste em organizar tudo
segundo o número e a grandeza, é a objetividade, a impessoalidade tão pura
quanto possível, a ponto de, para os modernos, o verdadeiro, ligado
exatamente a seu poder de ação sobre a natureza, parece se opor mais e
mais ao que a nossa imaginação e os nossos sentimentos queriam que fosse
verdadeiro. Mas, como dissemos, na origem dessa prodigiosa
transformação do mundo humano encontra-se um Eu (Moi), a pessoa forte e
temerária de Descartes cuja filosofia, talvez, tenha menos valor para nós do
que a ideia que ele nos dá de um magnífico e memorável Ele (Lui).
O RETORNO DA HOLANDA67

67 Publicado primeiro na Revue de France, 1 mar. 1926 e depois sob o título Retour de Hollande,
Descartes et Rembrandt, pela editora Stols, Maestricht, em 1926, e mais uma vez em 1933 com
gravuras de Pierre Guastalla. Em 1946 foi republicado junto com “Fragmento de um Descartes” com
gravuras de J. E. Bersier.
U ma viagem é uma operação que faz corresponder cidades às horas.
Mas, para mim, o mais bonito da viagem e o mais filosófico está
nos intervalos e nas pausas.
Não sei se existem sinceros amantes da estrada de ferro, adeptos do trem
pelo trem, e só vejo as crianças saberem desfrutar como convém da
algazarra e da força, da eternidade e das surpresas da rota. As crianças são
de fato os grandes mestres do prazer absoluto. Quanto a mim, tão logo o
bloco de vagões começa a sacudir, eu me embalo numa metafísica ingênua
e misturada de mitos.
Deixo a Holanda... De repente, tenho a impressão de que o tempo
começa; o tempo se treina;68 o trem se faz modelo do tempo, do qual ele
toma o rigor e assume os poderes. Ele devora todas as coisas visíveis, agita
todas as coisas mentais, com sua massa, ataca brutalmente a figura do
mundo, envia ao diabo matos, casas, províncias; abate as árvores, rompe os
arcos, gasta os postes, corta rudemente todas as linhas que atravessa, canais,
sulcos, caminhos; muda as pontes em tempestades, as vacas em projéteis e a
estrutura pedregosa de sua via em tapete de trajetórias...
Mesmo as ideias, sempre surpresas, treinadas e esticadas pela torrente de
visões modificam-se à maneira de um som cuja origem voa e se afasta.
Acontece facilmente de eu não me sentir mais em parte alguma e de me
ver como que reduzido ao ser abstrato capaz de dizer que pensa, raciocina,
dispõe, funciona e ordena identicamente em todos os lugares; que vive, e
nada de essencial se alterou; que, portanto, não muda absolutamente de
lugar. Para ter o sentimento de movimento, não deveria esse puro lógico
que nos habita observar então as modificações mais extraordinárias, as
desordens mais inconcebíveis e, sem dúvida, incompatíveis com a razão ou
com a vida?
É um grande milagre que dentro de nós existam tantos mecanismos
delicados, praticamente insensíveis para o transporte.
Mas o ser total, a alma real do viajante, para quem a ausência vai acabar,
já que cada volta das rodas o aproxima de sua casa e uma argola de sua vida
vai se fechar é, ao contrário, a presa dos estranhos efeitos de sua transição.
O que ela abandona, o que experiencia no instante, o que prevê e diz
antecipadamente trava dentro dela um combate, propondo e trocando
lugares dentro de si. Essa alma oscila entre as suas épocas e etapas que a
precisão da partida bem marcada e a exatidão provável da chegada separam
tão nitidamente; ela é casualmente acometida de arrependimento, de
esperança e de temores, perdendo-os e reencontrando-os em suas sensações.
Seu passado, seu presente e seu futuro próximo soam como três sinos bem
distintos cujas combinações possíveis curiosamente se realizam, respondem
uns aos outros, se misturam e se compõem. Tocando e retomando sem fim
todos os temas da existência, um carrilhão de eventos – concluídos,
esperados, atuais, – acompanha o corpo viajante, habita uma cabeça que se
abandona, o diverte, o inquieta, empresta os ritmos da rota, orquestra os
sonhos, desaloja, adormece, desperta o seu homem...
A noite cai. Fogos terrestres nascem e morrem – postes repentinos, sinais
agudos, brilhos súbitos de vias desconhecidas tocadas de leve... Entre dois
clarões, meus olhos incertos na escuridão que embaça os vidros cessam,
pouco a pouco, de ver um campo já morto e simplificado pela noite,
esvaindo-se indefinidamente rumo a lugares e dias passados.
Ao final, fiquei com a impressão de nada mais perceber a não ser a água
em todos os estados: água neve, água gelo, água viva, água poça, olhando a
água nuvem densa, água vapor, cujas volutas liberadas se destorcem,
deslocam, retardam e dissipam atrás de nós. A água multiforme compõe
praticamente só para si mesma, a substância de um lugar turvo e variável
cuja claridade suprema do crepúsculo ainda interpreta a precipitação de
seus brancos e cinza pálidos.
As lâmpadas se acendem, e de repente, sobre o vidro, pinta-se um
fragmento de rosto. Uma máscara se interpõe, retrato de homem que
permanece luminoso e constante na superfície dessa fuga de praias
sombrias e nevadas.
Apareço para mim mesmo imóvel e colorido com matizes quentes sob o
vidro; e ao me aproximar um pouco desse eu (moi), fragmento de sombras
me olhando, eu o eclipso, me anulo e me torno caos noturno.
Filósofos de todas as épocas saborearam essas mínimas experiências.
Um prestígio fortuito, algum efeito simples e admirável de dióptrica ou
acústica, um incidente singular de suas percepções os induzem a devaneios
por eles livremente organizados numa meditação teórica. Da iluminação de
uma gruta e das silhuetas que engendra, Platão tirou sem muito esforço
consequências admiráveis e talvez funestas. Sua câmara escura natural teve
para nós o valor de uma das mais célebres transmutações de valores.
Mas eu, um não filósofo, não soube desenvolver ao excesso – pois
excesso é preciso – todos os pensamentos que essa estação de minha face
iluminada sobre a noite em movimento e interrompida por bruscos
fantasmas poderia sugerir.
Venho assim de Amsterdam onde Descartes e Rembrandt coexistiram.
As suas casas podem ser vistas.69 É difícil não imaginá-los como num
sonho. Colocamo-nos assim ingenuamente em seus personagens, à beira
dos canais, sobre as passarelas do rio Amstel, ou sobre qualquer ponte
animada sobre esse labirinto de águas todo recoberto de barcas, regatas,
embarcações rasas sobrecarregadas, de tamancos envernizados com bojos
inchados, com popas bochechudas, trazendo junco, móvel e tonel. As horas
soam com bastante tristeza no ar do céu pálido. Os homens fazem comércio
entre os rios, sobre as pontes estreitas. O observador olha o viver e vive.
Descartes tinha uma grande predileção por essa cidade “onde não havia
ninguém a não ser ele que não trabalhasse no comércio e onde ele poderia
passar toda a sua vida sem que ninguém o visse e passear todos os dias no
meio da confusão de muita gente”.
Não sei se ele entendia a língua dessa gente. Espero até que não. O que
pode haver de mais favorável ao recuo pensativo para dentro de si mesmo,
para a delimitação bem nítida de um mundo exterior, determinado e
separado do outro com exatidão, o que pode ser um melhor isolante do que
a ignorância das convenções que reinam e coordenam o espetáculo da vida
ao nosso redor? Na profissão de filósofo, é essencial não compreender. É
preciso que eles sejam como quem vem de algum astro, que se façam
eternos estranhos. Eles devem se exercer em espantar-se com as coisas mais
comuns. Penetrem no templo de uma religião desconhecida, considerem um
texto etrusco, sentem-se perto de jogadores de um jogo que jamais
aprenderam e deleitem-se com as hipóteses de vocês. Por toda parte, o
filósofo é um pouco assim.
Mas não possuir de jeito algum a chave, não conhecer as regras, os
signos, as correspondências, não poder adivinhar o que se vê não é reduzir o
que se vê ao que se vê, à figura e ao movimento? – Nada de mais
cartesiano, eu penso? – Sobretudo, essa incompreensão não seria uma
grande oportunidade para nada negligenciar, para nada omitir, já que nem
mesmo se sabe o que negligenciar, o que reter, e que tudo o que se observa
tem valor; que se deve portanto ou bem tudo noticiar ou tudo rejeitar?
Assim, no meio do trânsito e dos holandeses em ação, Descartes isolado
e não insensível, contemplava o seu comércio e a sua vida como o faria com
qualquer máquina inteiramente desconhecida. Descartes ausente e presente,
Descartes abstraído de seus discursos, de seus interesses, de seus gostos, de
suas paixões e de seus costumes, seguro de com eles não misturar nada de
seu, localizava-se na massa viva da sua nação estrangeira como um
instrumento de medida fincado em algum meio e, de vez em quando, alçado
para se ler o que está marcando. Alma bem dividida, gênio mesmo da
distinção e da ordem, a sequência de seus pensamentos podia se cumprir
facilmente, independente da agitação dos vivos ao seu redor. Dizia que,
para ele, toda a azáfama não passava do ruído de um regato. Ele não era
mesmo um homem das multidões...
O homem das multidões é poeta, narrador ou qualquer um desses
embriagados de espírito.
Ele se afoga na quantidade de almas ambulantes; embriaga-se de
absorver um número inesgotável de fisionomias e olhares, e de sentir, no fio
da rua fluida, a vertigem de uma infinidade de indivíduos passando... Ele
sente e confunde os milhões de passos e ritmos da caminhada; seus olhos
encontram e perdem milhares de olhos e ele sobe o rio das visões, das
direções e das vontades separadas.
Em certas horas, o movimento das grandes cidades gera o maravilhoso
mal-estar da multiplicação dos sozinhos. Com uma espécie de horror e
sentimento de pânico, constata-se ingenuamente que os singulares são
inumeráveis. Tantas pessoas particulares; cada uma de capital importância
para si, nula ou negligenciável ao olhar de quase todas as outras e todas
juntas dando a cada uma a vaga impressão de um cemitério em marcha ou
de um desfile de fantasmas, pois o fluxo das fisionomias, a sensação geral
do barulho dos propósitos e dos passos, o escoamento indiferente das
próprias dessemelhanças nos impõem a ideia de uma soma indistinta de
muitos destinos distintos, inspirando-nos o mesmo sentimento de
desprendimento, às vezes tépido, alegre outras vezes, que nos acomete no
meio de um povo de túmulos.
Nada tira da vida seu ar de vida, mas nada retira da morte seu prestígio
de morte, como o poderoso sentimento da quantidade de vivos ou de
mortos. O efeito do número e da repetição nos faz sentir a lei e a máquina e
quase o seu ridículo; ora massacram o espírito, ora lhe fazem inventar para
a sua defesa aquilo de que precisa para se acreditar único e mestre de si.
Poder-se-ia dizer enfim que, no homem das multidões, o pensamento se
compõe com o movimento e a multidão de imagens treina, de alguma
maneira, a própria faculdade que as percebe.
Completamente diferente é um Descartes.
Sonhando mil coisas sobre ele, eu me divertia vendo da minha janela os
passantes trotarem na neve toda fresca, os marinheiros bem encapotados
fazerem manobras sobre a água branca e negra, metade congelada, metade
derretida, deslocarem com incrível destreza as suas barcas pesadas e longas,
tão pressionadas e enganchadas umas nas outras que era preciso agir como
num jogo de damas, operando por substituições refletidas para criar diante
de si o lugar onde as colocar e encontrar um espaço para o casco que
desalojavam e então esperar, forçar, governar para conseguir, por fim, entrar
em algum túnel estreito e sombrio onde desaparecem ao barulho surdo do
motor, o homem no leme abaixando a cabeça no momento preciso que vai
colidir com o topo de uma arcada. As inúmeras gaivotas dissipavam a
minha atenção, alegrando-a e renovando-a no espaço. Seus corpos lisos e
puros, bem dispostos contra o vento, deslizavam, fugiam por descidas
invisíveis, tocavam de leve o terraço, viravam, interrompiam o voo e se
abatiam sobre grandes blocos de gelo, onde bichos brancos pousados
disputavam os lixos trêmulos e os horríveis restos de peixe jogados na água.
Entre dois pássaros momentâneos, eu voltava ao meu primeiro
pensamento. Retomando distraidamente um devaneio quase cartesiano,
imaginava ao meu modo as sensações desse grande homem. À vontade,
arranjava e concordava o que via com uma vaga ideia de sua filosofia...
Espero que a sombra ilustre não tenha se irritado! Não sei amar ninguém
sem torná-lo presente ao espírito a ponto de ele se tornar bem diferente de si
mesmo.
Sem dúvida, espero também que o pensamento de Descartes em vida não
fosse de jeito algum parecido com aquele que colocou nos seus livros. Os
livros sempre nos enganam, às vezes mais, às vezes menos. O que eles
calam acerca do escritor, o que eles lhe acrescentam, confere bastante
liberdade a quem quiser imaginar como o seu autor pode ter sido.
Olhava o que me dava prazer em pensar que meu Descartes teria olhado
em Amsterdam e, dentre tantos objetos e coisas sobre os quais o seu olhar
provavelmente deve ter se fixado, não via nada mais propício para descolá-
lo o mais rapidamente para o seu sistema usual de pensamentos do que todo
o aparato de comércio que recobria as ribanceiras e os cais com seus tonéis,
caixotes, amontoados, engenhos.
Redes de pesca, roldanas, máquinas simples e todas essas manobras de
manutenção necessárias para transportar a matéria das trocas da margem às
rampas e das rampas à margem, são objetos de contemplação encantadores
para tal amante de mecânica e de coisas quantitativas. Nessas margens
industriosas, ele estava totalmente cercado de oportunidades matemáticas e
solicitado a todo instante por uma multidão de pequenos problemas que,
numa mente assim tão bem feita, corriam o risco de virar grandes. Basta
pouca coisa – um tonel que se sacode, um monte de grãos acumulados, um
cabo partido batendo na sua presilha e até uma maçã que cai – para lançar
um homem de espírito na dinâmica universal. O homem para, mas o
espírito continua a sua rota singular rumo a não sei que ponto de onde ele
deve retornar a si por silogismos...
Não há lugar mais favorável, meio mais nutriente para a meditação do
grande propósito de nosso Richelieu intelectual do que esse teatro dos
negócios no qual a medida reina soberana. Num porto, tudo é
manifestamente, aberta e brutalmente métrico. Quase toda atividade aí
observada vive de contar, pesar, arranjar, arrimar; o número e a ordem
comandam visivelmente todos os atos e nada se passa sem que seja avaliado
em toneladas, libras, alqueires e nas mais diversas medidas...
O Método não seria, afinal de contas, o Mapa de um império do Número
onde vemos atualizadas todas as ambições e também todo o poder? O
mensurável conquistou quase toda a ciência, descreditando todas as partes
em que não consegue se introduzir. Quase toda a prática vê-se a ele
submetida. A vida, já pela metade posta a serviço, circunscrita, alinhada ou
submetida, dificilmente consegue se defender contra os horários, as
estatísticas, as medições e as precisões quantitativas, cujo desenvolvimento
reduz cada vez mais a diversidade, diminuindo a incerteza, melhorando o
funcionamento do todo e tornando o curso mais seguro, mais longo, mais
maquinal.
Lá perguntei se alguém sabia sobre as circunstâncias em que Hals e
Descartes se encontraram. Mas parece que não existe nenhum documento
sobre esse encontro tão precioso. Seria bom saber quem levou o pintor ao
filósofo ou o filósofo ao pintor, quantos encontros e quanto tempo, se
Descartes posava bem e que discussões tiveram e, mesmo, se o modelo
considerava a pintura uma veleidade... Ignoro também se esses dois homens
puderam se entender sem um intérprete.
Naquela época havia em Amsterdã um pintor de pequenos filósofos dos
quais dois ou três admiráveis exemplares encontram-se no Louvre. Eles
fazem pensar mais em Espinosa do que em Descartes. Eles não estão de
maneira alguma se divertindo ou perambulando no Amstel ou no Dam, com
seu espírito às vezes intus, às vezes extra, passando de um mundo a outro e
de um sistema do universo a um incidente na rua ou no canal.
Esses pequenos filósofos de Rembrandt são filósofos enclausurados.
Eles ainda estão amadurecendo na alcova aquecida.70 Um raio de sol
trancado junto com eles ilumina a sua câmara de pedra ou, mais
exatamente, cria uma concha de claridade na grandeza obscura de uma
câmara. A hélice de uma escada em espiral descendo pelas trevas e a
perspectiva de uma galeria deserta introduzem ou aumentam, sem sentir, a
impressão de considerar o interior de uma estranha concha habitada pelo
pequeno animal intelectual que secretou a substância luminosa. A ideia de
retrair-se em si mesmo, a ideia de profundidade, de um ser formando por si
mesmo a sua esfera de conhecimento, são sugeridas por essa disposição que
engendra de maneira vaga, mas irresistível, as analogias espirituais. A
distribuição desigual da luz, a forma da região iluminada, o domínio
limitado desse sol aprisionado por uma cela onde ele define e situa alguns
objetos, deixando outros confusamente misteriosos, fazem pressentir que a
atenção e a expectativa da ideia são os verdadeiros temas da composição. A
própria figura do pequeno ser pensante está admiravelmente situada em
relação à figura da luz.
Outra vez, sonhei longamente com essa arte sutil de dispor de um
elemento bem arbitrário para agir insidiosamente sobre o espectador
enquanto o seu olhar é atraído e fixado por objetos nitidamente definidos e
reconhecíveis. Enquanto a consciência reencontra e nomeia as coisas bem
definidas, os dados significativos do quadro, recebemos a ação surda e
como que lateral das manchas e zonas do claro-escuro. Para o intelecto,
essa geografia de sombra e luz é insignificante. Ela lhe parece informe
como são informes as imagens dos continentes e mares num mapa. Mas o
olho percebe o que o espírito não sabe definir, e o artista que se encontra no
segredo dessa percepção incompleta pode especular sobre ela, conferir ao
conjunto de luzes e sombras alguma figura que serve a algum propósito, em
suma, uma função escondida no efeito da obra. O mesmo quadro
comportaria assim duas composições simultâneas, uma dos corpos e objetos
representados e outra dos lugares da luz. Quando admirava anteriormente
certas telas de Rembrandt como modelos dessa ação indireta (que suas
pesquisas de água-fortista lhe fizeram, no meu entender, apreender e
analisar), eu não parava de imaginar os efeitos laterais que as harmonias
divididas de uma orquestra podem produzir... Wagner, como Rembrandt,
sabia ligar a alma do paciente a alguma parte brilhante e principal e,
enquanto a encadeava e exercitava nesse desenvolvimento todo-poderoso,
fazia nascer na sombra da escuta, nas regiões distraídas e indefesas da alma
sensitiva, acontecimentos longínquos e preparatórios – pressentimentos,
esperas, questões, enigmas, começos indefiníveis...
Isso é construir uma arte de múltiplas dimensões ou organizar de algum
modo os arredores e as profundezas das coisas explicitamente ditas.
Lembro-me de um tempo bem distante quando me inquietava sobre a
possibilidade de investigar de forma razoável efeitos análogos a esses na
literatura. Eu não me exercitava... Mas podia, sim, me permitir hipóteses.
Não é o momento de explicar por que via e meios eu pensava que a
experiência deveria ser tentada. Diria somente a sua condição essencial: o
artifício deve escapar ao leitor não prevenido e o efeito não deve revelar a
sua causa.
Eu assumia, talvez de maneira fácil demais (mas, na verdade, continuo
agora assumindo), que a arte de escrever contém grandes recursos virtuais,
riquezas de combinações e de composição pouco suspeitadas ou até
desconhecidas... Elas se escondem de nós pela noção que ainda temos do
mecanismo literário, noção curiosamente vaga e grosseira no meio da
precipitação generalizada. Descartes não passou de jeito nenhum perto
disso. Os antigos foram mais sutis e mais “científicos” do que somos nesses
assuntos. Ainda estamos na mitologia.
Costuma-se explicar, aliás muito bem, que uma arte cujo meio – a
palavra –está sempre em nossos lábios e nos serve continuamente para nos
comunicar conosco mesmos e com os outros, confunde-se tão fácil e
intimamente com a própria vida, mesmo lhe sendo difícil e até impossível
alcançar o desenvolvimento formal de suas forças. Acrescento que, na
deliciosa idade em que esses problemas imaginários me vinham visitar o
espírito, tinha a impressão de tais tentativas exigirem um imenso trabalho
prévio de análise e um esforço cruel de coordenação para executá-las. Nos
tempos em que os tempos não contavam, podia-se ver como simples
sonetos exigiam de seus autores muitos anos de empenho, de maturação
(com seus fervores, desesperos, retomadas e quase reconciliações), que
faziam das relações entre o poeta e os seus quatorze versos uma longa e
dramática história de amor. Creio que esses tempos já passaram e que
estamos na idade de ouro. Nunca vimos tantos frutos e não sei quantas
colheitas por ano.
Duvido, em suma, que a literatura consiga algum dia o seu Nicolas
Rameau71 e o seu Sebastian Bach... Se algum dia eles aparecerem, não
sintam inveja de seu destino. Eles terão vida dura.
O trem freia e para perto de Paris. Ele retoma docemente para o finale...
O trajeto é uma obra bem semelhante a qualquer sinfonia. A analogia
prossegue até na impaciência das pessoas ao colocarem os agasalhos, se
ajeitarem, se levantarem e ganharem os corredores.

68 Em francês a palavra train possui uma rica complexidade semântica. A palavra vem do provençal
trahi, do antigo traire que, por sua vez, deriva do latim trahere, no sentido de tirar, retirar, extrair. É
usado em várias locuções dentre as quais “en train de...” + o verbo no infinitivo, que exprime uma
forma de gerúndio, literalmente, “estar em vias de...” (dizer, andar etc.). Com a frase, “le temps se
met en train”, Valéry brinca com a equivalência entre o sentido de estar em vias de (être en train
de...) e o trem (train). Em francês há ainda o verbo s’entrainer, que significa treinar, exercitar-se.
Optei por traduzir o tempo se treina para deixar ecoar o “trem”. O sentido é sobretudo de que, no
trem, o tempo está em vias de ser tempo, treina para ser mais tempo ainda. (N.T.)
69 A casa de Descartes foi identificada graças aos trabalhos do Sr. Gustave Cohen, cujas pesquisas
enriqueceram e precisaram singularmente nosso conhecimento da história literária na França. (N.T.:
A essa nota de Valéry pode-se ainda acrescentar que Gustav Cohen foi professor de literatura
medieval na Sorbonne desde 1925, titular das cadeiras de literatura medieval e francesa em
Estrasburgo e em Amsterdam, onde, em 1933, funda a Casa Descartes, que se tornou mais tarde a
sede do ”Instituto Francês dos Países Baixos”.)
70 É notório que Descartes gostava de pensar no seu quarto e, mais especificamente, deitado na
cama. As narrativas não falam de chambre (quarto) nem de boudoir (camarim), como em relação ao
marquês de Sade, mas de poêle, que traduzi por alcova, lembrando que a poêle era sempre aquecida.
Poêle também significa frigideira. (N.T.)
71 Rameau, o compositor francês nascido em 1683 e falecido em 1764 chama-se na verdade Jean-
Philippe. (N.T.)
DISCURSO AOS CIRURGIÕES72

72 Publicado primeiro na Nouvelle Revue Française de 1938 e republicado em Variété nº V, em


1944, com a seguinte nota: “Esse discurso foi pronunciado na segunda-feira dia 17 de outubro de
1938 no anfiteatro da Faculdade de Medicina de Paris, na sessão inaugural do Congresso de Cirurgia,
tendo como presidente Paul Valéry, presidente de honra, assistido pelo professor Léon Imbert, decano
honorário da Faculdade de Medicina de Marselha, presidente do congresso, e pelo professor Henri
Mondor, secretário geral”.
Senhores,

É pela amizade de alguns dos senhores e pela indulgência de todos os


demais que me encontro aqui nesse lugar tão eminente. Sinto não
apenas a estranheza de estar aqui, mas também a emoção e todo o
constrangimento em ter que discursar para os senhores.
Para começar, é claro que só encontro alguns deveres muito fáceis de
cumprir. Eles são evidentes e agradáveis. Meu começo não me inquieta.
Os senhores bem imaginam que, antes de qualquer coisa, é para mim
importante agradecer a honra que me foi concedida; não obstante o caráter
ritual desse agradecimento, ele não deixa de provir de uma fonte autêntica.
O que pode ser mais sensível para um homem cuja ocupação é
completamente intelectual, cujas produções, não estando sujeitas a
nenhuma verificação ou sanção pelos fatos e, assim, valendo só o que se
lhes queira atribuir, do que receber este testemunho de estima e simpatia da
parte dos senhores, que sabem alguma coisa de certo e seguro, que podem
realizar algo de positivo, que pensam e agem sob o perpétuo controle das
consequências de seus atos? A profissão dos senhores é uma das mais
completas: exige a existência e a entrega do Homem completo. A minha –
se for uma – me especializa na busca de algumas sombras.
Os senhores ficariam agora bastante surpresos se eu falhasse no segundo
de meus deveres essenciais, que é o de assegurar aos senhores a minha
completa incompetência em matéria da cirurgia – como se os senhores não
fossem mais seguros e melhor formados nessa matéria do que eu. O que o
ignorante em algum campo mais ignora é necessariamente sua própria
ignorância, por não ter os meios para medir sua extensão e sondar a sua
profundidade.
Por fim, tendo expresso aos senhores a minha gratidão e declarado a
minha insuficiência, gostaria ainda de celebrar o poder cada vez maior da
sua arte, os méritos insignes dos artistas que os senhores são, os talentos, as
virtudes, os benefícios que distribuem, benefícios que deveriam ser
justamente também chamados de prodígios. As obras-primas oriundas das
mãos dos senhores são as únicas, ao que eu saiba, que possuem o duplo
aspecto de, por um lado, serem admiradas por conhecedores e, por outro,
abençoadas por muitos outros.
Embora tudo isto, meus senhores, constitua a parte fácil de minha tarefa,
acreditem que falo aos senhores de todo coração e que tenho todas as razões
do mundo para senti-lo com força ainda maior do que agora exprimo.
Tendo manifestado meu reconhecimento, minha incompetência, minha
admiração, vejo-me agora diante do silêncio dessa assembleia, hesitando no
limiar do meu próprio silêncio.
O que dizer aos cirurgiões, uma vez pronunciadas as palavras de estilo?
O que lhes dizer que toque a cirurgia, já que são cirurgiões, e que não a
toque, já que não sou cirurgião? Eis aqui um problema preciso.
Cirurgiões são pessoas acostumadas a todo tipo de confissões, mas que,
não contentes com isso, vão procurar o verdadeiro onde ele se acha. São
pessoas que colocam seus olhos e mãos na substância palpitante de nosso
ser. Elucidar a miséria dos corpos, encontrar a pobre carne ferida sob as
aparências sociais mais brilhantes, reconhecer o verme que corrói a beleza,
é a sua tarefa. De que adiantaria dissimular para eles alguma coisa? Por que
não simplesmente lhes confessar as ideias que me chegam e que pertencem
necessariamente aos pensamentos desordenados dos quais tentamos nos
desvencilhar quando podemos, para finalmente construir um discurso de
estilo puro, com linhas claras, que dá a feliz impressão de perfeição
intelectual e formal?
Confesso que comecei então a me perguntar por que os senhores
adotaram o costume bem notável de chamar um não cirurgião para a tribuna
de um Congresso de Cirurgia? Talvez para verem um experimento ao vivo?
Mas talvez os senhores estimem que possa às vezes ser útil e quase sempre
interessante, para especialistas em algum campo a que dedicaram a sua
existência, cujas potencialidades, possibilidades limites e expectativas eles
conhecem muito bem, trazer uma pessoa de boa fé, que sobre as suas
atividades conhece apenas o que todo mundo imagina, e perguntar a ela que
ideia tem de sua ciência e de sua arte e daqueles que as praticam?
As respostas dessa pessoa profana, por definição, não devem possuir
nenhuma importância. Mas não tenho tanta certeza de que as suas
observações, mesmo que ingênuas, não possam ter algum efeito sobre as
mentes instruídas que as escutam. Quando se avança nas delicadezas e na
estrutura sutil de um conhecimento buscado e aprofundado de maneira
apaixonada, acontece, quase necessariamente, que se percam de vista certas
dificuldades elementares e certas convenções iniciais, que a ingenuidade de
alguém que passa por elas pode de repente reavivar.
Os senhores interpelam este passante, que suponho se parecer comigo o
suficiente para eu falar por ele, e o convocam para explicar o que lhe dizem
essas palavras Cirurgia, Cirurgiões.
Ah ! diz ele, dependendo do momento, estas palavras soam aos ouvidos
de forma bastante diferente... Para o espírito, às vezes significam uma
ciência, uma arte, uma profissão. Mas às vezes elas se conectam, sobretudo,
a uma forma de pathos. Os senhores são os ministros mais empreendedores
da vontade de viver. Mas os senhores também fazem tremer. Diariamente
são lançados para os senhores olhares ansiosos, que desejam mas temem ler
o seu pensamento. É uma estranheza da condição dos senhores espalhar
medo e trazer salvação. Sem dúvida, a evocação da cirurgia não é mais tão
aterrorizante como antes: há cem anos, o ato cirúrgico era um espantalho,
um último recurso quando devia atacar as vísceras e não se limitar às
amputações de membros ou aos cuidados básicos de feridas. Nesses
momentos, era a extrema urgência e quase o desespero que tomavam a
iniciativa das operações. Mas como, desde esse tempo, o poder, a ousadia,
os meios e os resultados da cirurgia cresceram quase que
desmesuradamente, também a frequência e a segurança da sua intervenção
mudaram, na mesma proporção, o sentimento público em relação a ela. A
opinião seguiu os seus surpreendentes progressos. Se a história se
preocupasse um pouco mais com as coisas da vida cotidiana, ela observaria
essa notável evolução das mentes. Além disso, esses mesmos progressos da
sua arte podem ter efeitos consideráveis até sobre a existência dos
principais atores do drama histórico: o famoso grão de areia colocado no
ureter de Cromwell seria hoje imediatamente extraído, e quanto ao nariz de
Cleópatra, este seria um caso de cirurgia estética bastante banal. Teríamos
enfeado um pouco esta beleza perniciosa, e a face do mundo poderia ter
ganhado com isso.
Mas uma reflexão ingênua nunca deixa de lançar um olhar ingênuo para
o que acredita conceber no passado como raiz, germe, e primeiro termo de
tudo que existe. Meditando sobre a arte dos senhores, cuja origem é
imemorial, esta reflexão se pergunta se ela, por mais científica que tenha se
tornado, não resultou do desenvolvimento de uma espécie de instinto; se
essa arte não procede desse movimento natural de querer colocar nossas
mãos no mal que sentimos, de utilizar em nós mesmos os mesmos atos e
meios que usamos contra as coisas, de modificar o lugar de sofrimento de
nosso corpo, tratando-o como um inimigo exterior. É provável que, se não
sentisse dor, o homem se mutilaria com frequência. Pois é uma defesa
instintiva que se realiza e alcança a perfeição de automatismo em certos
seres vivos, cujo membro ferido ou prisioneiro se amputa e cai por si
mesmo.
Os senhores alcançaram o ponto extremo de precisão e audácia desse
impulso de agir diretamente sobre o mal e combatê-lo com uma mão
armada. É uma coisa estranha de se pensar – a ação aplicada ao ser vivo.
Quem sabe se a primeira noção de biologia que o homem foi capaz de
formar não foi a seguinte: é possível dar a morte. Primeira definição da
vida: a vida é uma propriedade que pode ser abolida por certos atos. Além
disso, ela normalmente só se conserva devorando a si mesma numa forma
vegetal ou animal. Toda a torrente de uma vida está sendo perpetuamente
engolida no abismo de outra vida.
Mas se é uma ação bem natural que destrói a vida e que pode se tornar
criminosa ao se tornar consciente e organizada, felizmente o gênio do
homem concebeu e criou uma ação completamente diferente e inteiramente
oposta. Ele aprendeu a combater essa mesma morte que ele pode produzir e
espalhar de forma tão poderosa e ampla; e, em contrapartida à chaga que
causa a morte, ele ousou praticar e aprofundar a chaga que salva a vida. É
de fato o mais ousado dos empreendimentos humanos – uma penetração e
uma modificação diretas dos tecidos de nosso corpo – que não se negam a
tocar os mais nobres dentre eles, os mais suscetíveis – que não temem se
aproximar a ferro nem do cérebro, nem do coração, nem da aorta; isto é, dos
órgãos cujo tempo é tão precioso que uma fração de minuto perdida pode
causar a perda abrupta de todo o ser.
Assim, pelas mãos dos senhores e no intuito de preservar a vida, um tipo
de ação e da arte humanas desenvolveu-se por oposição àquele tão diferente
e quase inconcebível das formações da natureza. Por atos distintos, nossa
ação se exerce sobre uma matéria exterior de acordo com alguma ideia ou
modelo muito variável; e, em muitos casos, esses atos sucessivos podem
estar separados por alguns intervalos de tempo, sem que isso altere o
resultado. O que chamamos de Natureza, ao contrário, só produz mediante
um desenvolvimento contínuo e uma diferenciação progressiva. Nela,
matéria, forma, maneira, são inseparáveis; um sistema vivo não se refere a
variáveis distintas, e nossa concepção analítica, que discerne e compõe o
que chamamos tempo, espaço, matéria, energia, parece incapaz de
representar exatamente fenômenos dessa ordem. Essa natureza viva nunca
pode, por exemplo, conferir às partes de um ser o grau de liberdade que
podemos conceder àquelas de nossos mecanismos. A Natureza não conhece
a roda: todo animal forma um todo que se sustenta. Tampouco criou um
animal desmontável. Essa inferioridade da fabricação natural teve
evidentemente grandes consequências: a ela devemos grande parte do
progresso da Cirurgia. Foi aí que os senhores tiveram de usar a sua
inteligência, o engenho, as faculdades inventivas da espécie humana para
reparar as partes vivas do indivíduo. Esta é, sem dúvida, uma ação contra a
natureza, mas para a qual a natureza oferece a chance de um final feliz, que
torna possível o trabalho dos senhores. Ela consente em mudar alguns
tecidos; ela cicatriza; ela refaz o osso. Quanto ao resto, somos menos
afortunados do que o pepino-do-mar, que, num só lance, pode se livrar de
suas vísceras, recompondo-as num novo jogo, tudo ao seu bel-prazer.
Mas de todas as ações que possam ser concebidas, a dos senhores talvez
seja a que abraça o maior número de condições independentes entre si a
serem satisfeitas, já que deve combinar os seus modos e meios mecânicos
com as oscilações e as suscetibilidades da substância viva, compor o fazer e
o deixar fazer, se sustentar sob a superfície dos equilíbrios que separa a
vida e a morte, e também respeitar a sensibilidade e a emotividade das
pessoas. A temeridade dos senhores, bem razoável e frequentemente bem
sucedida, exige que num mesmo homem possam se reunir e coordenar as
virtudes mais diversas e mais raramente associadas. Imagino muitas vezes
todas as virtualidades que o dia de trabalho dos senhores deve manter
disponíveis, prestes a passar da potência ao ato, do problema inesperado à
decisão, da decisão à execução e isso sob a pressão do tempo, sob pressão
moral, e, por vezes, social e também sentimental. Depois a própria ação:
sob os seus olhos, pelas suas mãos, o caso particular sendo substituído pelo
manual didático: e a realidade se revelando, confirmando ou refutando mais
ou menos a ideia que dela se fez pelo diagnóstico e os vários exames.
Então, o imprevisto; as descobertas mais ou menos desagradáveis; as novas
decisões a improvisar, seguidas do ato imediato.
Tudo isso pede um conjunto tão rico de faculdades, uma memória tão
alerta e plena, uma ciência tão segura, um caráter tão forte, uma presença de
espírito tão viva, uma resistência física, uma acuidade sensorial, uma
precisão de gestos tão pouco comuns, que a coincidência de tantos recursos
distintos num só indivíduo faz do cirurgião um caso bem pouco provável de
se poder observar e em cuja existência seria prudente não se apostar.
E, no entanto, os senhores existem...
Mas os senhores bem imaginam que a pessoa que sabe o que todo
mundo sabe sobre os senhores não consegue não pensar no modo como os
senhores exercem as suas dramáticas funções que, hoje, se cumprem com
uma solenidade quase religiosa, numa espécie de luxo de metal polido e
lençóis brancos, que banha a luz sem sombras emitida por um sol de cristal.
Um antigo que tivesse retornado dos infernos e visse os senhores em sua
tarefa grave, vestidos e mascarados de branco, uma lâmpada maravilhosa
fixada na testa, cercados de acólitos atentos, agindo como num ritual
minucioso sobre um ser imerso num sono mágico, entreaberto sob as suas
mãos enluvadas, acreditaria assistir a não sei que sacrifício como aquele
que se celebrava entre iniciados, nos mistérios de seitas antigas. E não é, na
verdade, o sacrifício do mal e da morte o que os senhores celebram nessa
cerimônia estranha e tão doutamente ordenada?
Gostaria de observar, de passagem, que essa aparência de liturgia, ou
seja, de uma operação mística ou simbólica, decomposta em atos ou fases,
organizada como um espetáculo, foi criada naturalmente ao redor da real
operação dos senhores sobre a vida, pelo cuidado extremamente rigoroso
que a assepsia exige. Ela é uma divindade ciumenta, que os gregos e
romanos não deixaram de personificar e a quem erigiram altares e
devotaram cultos. Assepsia é o afastamento de toda mancha, a realização e
preservação de certa Pureza; é difícil não pensar aqui no imenso papel que a
ideia de Pureza desempenhou nas religiões de todos os tempos e também
nos seus desenvolvimentos, por uma espécie de paralelismo admirável,
entre a limpeza do corpo e aquela da alma. Pasteur lhe conferiu um novo
sentido...
Essa consideração pode nos ajudar a conceber certos ritos cujo valor
prático desapareceu, embora a sua realização tenha se conservado até nós.
Mas, como lhes disse, meus senhores, eu mesmo nunca vi os senhores
oficiando e duvido que possa suportar tal visão – fraqueza bem comum. Sei
que mais de um dentre os alunos de medicina se sentem afetados pelo
espetáculo operatório a ponto de sentir o desmaio próximo e ter que deixar
a sala. Esse reflexo de desmaio é bem misterioso. Lembro-me de ter visto
uma criança de três anos desmaiar diante de umas gotas de sangue
escapadas de um corte insignificante sofrido por uma pessoa perto de quem
ela brincava. Essa criança não tinha a menor ideia do significado trágico do
sangue; e a pessoa machucada mostrava apenas o aborrecimento por ter
manchado o vestido... Nunca consegui explicar esse pequeno efeito. É
verdade que talvez não se deva mesmo buscar explicações para esses
assuntos. Sem dúvida, é sempre possível interpretar verbalmente esses
fenômenos de sensibilidade em termos ilusórios; mas considero inútil
esbanjar ilusões e abusar dos meios numerosos e sutis que possuímos para
acreditar compreender...73
Por definição, esse tipo de choque não afeta os senhores, que vivem no
meio do sangue, e não somente do sangue, mas numa permanente relação
com a ansiedade, a dor, a morte, esses mais enérgicos estimulantes de
nossas ressonâncias afetivas. Os estados críticos, as expressões extremas
das outras vidas ocupam diariamente a vida dos senhores e organizam, sob
as rubricas, nos quadros e estatísticas dos seus espíritos, o acontecimento
excepcional e o acento emocionante que constituem a existência das
pessoas. Enfim, a cada instante e nas circunstâncias mais opressoras e mais
delicadas, os senhores assumem as responsabilidades mais pesadas.
No olhar ingênuo da testemunha que tentei definir anteriormente, tudo
isso faz dos senhores seres à parte e extraordinários, que admiramos mais
do que podemos conceber.
Gostaria, contudo, de me permitir ir um pouco mais longe na análise dos
espantos que os senhores devem exercer. É possível que vá um pouco longe
demais.
Sim, se o ser do cirurgião me inspira a admiração que acabo de exprimir,
ao me concentrar em algumas das qualidades indispensáveis ao exercício de
sua arte, há ainda uma coisa que me maravilha nos senhores, uma condição
inteiramente distinta que talvez se possa observar de maneira menos
genérica do que todas as particularidades que pude salientar. Quando penso
na natureza humana nada mais do que humana dos senhores, ou seja, na sua
vida não cirúrgica, descubro no espírito um enigma relativo à sua disciplina.
Será que me atrevo a declarar esse pensamento? Terei coragem de tentar
abrir o cirurgião? Mas já que os mantenho aqui será que conseguirei resistir
à tentação de fazer tal biópsia? Mas não irei muito longe nas vias de minha
curiosidade: abro e fecho de novo.
Os senhores portam e suportam maravilhosamente tudo o que disse sobre
as coisas severas, pungentes, terríveis, carregadas de perplexidade e
emoções; mas os senhores carregam igualmente o seu saber. Os senhores
têm posse constante de um conhecimento sempre mais preciso das formas
profundas, da estrutura e das forças do ser humano. Mas nada é menos
humano...
Para os senhores, esse ser não pode mais ser o que é para nós, que não
temos esse saber. Para os senhores, ele não é mais esse objeto fechado,
sagrado, arcano, no qual o mistério da conservação da vida e o da
preparação de seus poderes de ação exterior são secretamente elaborados.
Vivemos sem a obrigação de saber que a vida exige coração, vísceras, todo
um labirinto de tubos e fios, todo um material vivo de retortas e filtros,
graças ao qual se dá em nós uma troca perpétua entre todas as ordens da
grandeza da matéria e todas as formas de energia, do átomo à célula, e da
célula até as massas visíveis e tangíveis de nosso corpo. Toda essa
aparelhagem empacotada só se deixa suspeitar quando se engendram aqui e
ali perturbações e dores, que se impõem à consciência e a despertam em tal
ou tal ponto, interrompendo assim o curso natural de nossa ignorância
funcional de nós mesmos...
Funcional – digo funcional, falando para nós mesmos, simples mortais,
de nossa ignorância de nosso corpo. Peço desculpas por ter tomado
emprestado (com felicidade maior ou menor) esse termo imponente do
vocabulário a que não tenho nenhum direito. Mas me parece que ele cabe
bem aqui – e que essa aliança de palavras é reveladora. Ela diz, acho, que a
nossa ignorância de nossa economia tem um papel positivo no cumprimento
de algumas de nossas funções, que não são ou que são pouco compatíveis
com uma consciência clara de seu jogo; que não admitem a partilha entre
ser e conhecer, que não respondem pelo ato ao estímulo, a não ser quando a
atenção intelectual é nula ou quase nula. Acontece às vezes de uma pessoa
particularmente consciente ser obrigada a distrair o seu espírito para
conseguir realizar um ato que deve ser reflexo ou que não pode sê-lo.
Vemos então produzir-se uma circunstância bem curiosa: a consciência e a
vontade tomam o partido do reflexo, contra a tendência do conhecimento de
observar o fenômeno e, assim, paralisá-lo no seu curso eminentemente
natural.
Em suma, há funcionamentos que preferem a sombra à luz; ou, ao
menos, a penumbra – ou seja, o mínimo necessário e suficiente de presença
do espírito para preparar esses atos com vistas à sua realização ou para
estimulá-los. Para não esvanecer ou cessar, eles exigem que o ciclo de
sensibilidade e de força motora seja percorrido da origem até o limite
fisiológico do ato, sem observações nem interrupção. Esse ciúme, essa
espécie de pudor de nossos automatismos é bem admirável; dele se poderia
extrair toda uma filosofia que eu resumiria assim: às vezes eu penso e às
vezes eu sou.74
O espírito não deve se misturar em nada – mesmo tendo descoberto essa
sua vocação. Poder-se-ia dizer que é feito apenas para ser usado em nossos
empreendimentos exteriores. Quanto ao resto, às nossas atividades de base,
uma espécie de razão de Estado as encobre. O segredo lhes é essencial, e
essa consideração talvez permita medir a importância vital de nossos
diversos funcionamentos pela sua intolerância com relação à consciência
atenta. Sejamos distraídos para viver...
Mas como sê-lo, como se distrair do mecanismo da vida quando nada
mais se faz do que observá-lo, do que ajeitar as partes, do que se figurar as
rodagens, de pensar em seu jogo e em suas alterações? Como, meus
senhores, me perguntei certa vez, como o conhecimento tão preciso que os
senhores têm do organismo, as imagens que possuem dessas regiões tão
profundas, o contato habitual, a familiaridade, diria, com suas partes mais
recônditas e, por destino, mais emocionantes, não contraria nos senhores o
seu ser natural, aquele em que se deve produzir algumas vezes uma
perturbação e a ignorância, ou melhor, em que a inocência funcional deve
permitir à alma vegetativa seguir pelo caminho mais curto os seus destinos
– sua linha de universo, como se poderia dizer, emprestando uma palavra à
física teórica?
Mas minha questão é também toda teórica. O fato bem a responde. Sei –
e todo mundo sabe – que, nos senhores, a ciência e a natureza se acomodam
muito bem uma à outra. A sua inumanidade intelectual e técnica se concilia
muito bem, e mesmo felizmente, com a sua humanidade, que é das mais
cheias de compaixão e, por vezes, das mais ternas. Sem esforço, a
observação descobre na existência dos senhores um acordo bem perfeito
entre o saber, o poder e o sentir, entre viver e conhecer, entre a posse lúcida
de si mesmo e o abandono eventual dessa inocência que qualifiquei, mais
ou menos corretamente, de funcional.
Logo, o problema não existe. Mas a maravilha existe, e não a única que
o exame do cirurgião nos oferece para admirarmos.
Dentro dos senhores existe necessariamente um artista. Não falo
daqueles que exercem a arte com um lápis, uma pena ou uma goiva: decerto
haveria o que dizer sobre eles; e sem dúvida o que investigar sobre a
vantagem de um comércio recíproco entre atividades que estão bem longe
de se excluírem.
Falo agora, porém, da arte própria dos senhores, dessa arte cuja matéria é
a carne viva e que constitui o caso mais nítido e direto dessa coisa imensa e
apaixonante: a ação do homem sobre o homem.
O que é um artista? Antes de tudo, um agente da execução de seu
pensamento, quando esse pensamento pode se realizar de várias maneiras;
e, assim, quando a personalidade intervém, não mais no estado puramente
psíquico em que se forma e dispõe a ideia, mas no próprio ato. A ideia não
é nada e não custa nada. Se o cirurgião deve ser qualificado de artista é
porque sua obra não se reduz à execução uniforme de um programa
impessoal de atos. Um manual operatório não faz um cirurgião. Mas acho
que há mais de uma maneira de cortar e costurar e que cada um tem a sua.
Isso significa dizer que há mais de um estilo cirúrgico. Sem dúvida, não sei
nada sobre isso, – mas... estou certo disso.
Nenhuma ciência do mundo pode fazer um cirurgião. É o Fazer que o
consagra.
O nome da profissão dos senhores coloca o fazer em evidência, pois
Fazer é o próprio da mão. A dos senhores, especialista em cortes e suturas,
não é menos hábil e instruída para ler, da polpa de suas palmas e dos seus
dedos, os textos tegumentários que lhes são transparentes; ou retirar das
cavidades por ela exploradas para desenhar o que tocou ou apalpou em sua
excursão tenebrosa.
Cirurgia, manuopera, manobra, obra da mão.75
Todo homem se serve das mãos. Mas não parece significativo que,
depois do século XII, esse termo Obra da mão tenha se especializado a
ponto de nada mais designar a não ser o trabalho de uma mão que se aplica
a curar?
Mas o que faz a mão? Ao pensar um pouco sobre a cirurgia com vistas a
esta apresentação, surpreendi-me imaginando longamente esse órgão
extraordinário no qual reside quase todo nosso poder de humanidade e que
se opõe curiosamente à natureza, da qual, no entanto, provém. É preciso de
mãos para se contrariar aqui e ali o curso das coisas, para modificar os
corpos, para obrigá-los a se conformar a nossas intenções mais arbitrárias. É
preciso de mãos não apenas para realizar, mas para conceber intuitivamente
a invenção mais simples. Imaginem que, em toda série animal, talvez não
haja outro ser além do homem capaz de fazer mecanicamente um nó num
fio e observem, por outro lado, que esse ato, por mais banal e fácil que seja,
oferece tamanha dificuldade para a análise intelectual que os recursos da
geometria mais refinada devem ser empregados para resolver de maneira
bem imperfeita os problemas que pode sugerir.
É preciso também de mãos para instituir uma linguagem, para mostrar
com o dedo o objeto do qual emitimos o nome, para mimetizar o ato que
será verbo, para pontuar e enriquecer o discurso.
Mas avanço ainda mais um pouco. Chegaria mesmo ao ponto de dizer
que uma relação recíproca das mais importantes deve existir entre nosso
pensamento e essa maravilhosa associação de propriedades sempre
presentes que nossa mão nos anexa. O escravo enriquece o seu senhor e não
se limita a obedecê-lo. Para demonstrar essa reciprocidade de serviços,
basta considerar que nosso vocabulário mais abstrato está povoado de
termos indispensáveis à inteligência, mas que só lhe puderam ser fornecidos
pelos atos ou funções mais simples da mão. Colocar; – prender –
apreender; – sustentar; – pôr, e, eis então: síntese, tese, hipótese, suposição,
compreensão... Adição se refere a dar, e multiplicação e complexidade, a
dobrar.
E não é tudo. Essa mão é filósofa. Ela é mesmo e antes de tudo São
Tomé o incrédulo, um filósofo cético. O que ela toca é real. O real não
possui de modo algum nem pode possuir outra definição. Nenhuma outra
sensação gera em nós essa segurança singular que comunica ao espírito a
resistência de um sólido. O punho que esmurra a mesa parece querer impor
silêncio à metafísica como impõe ao espírito a ideia da vontade de poder.
Certa vez me surpreendi que não existisse um “Tratado da mão”, um
estudo aprofundado das inumeráveis virtualidades dessa máquina
prodigiosa que reúne a sensibilidade mais cheia de nuança às forças mais
soltas. Mas esse seria um estudo sem limites. A mão vincula os nossos
instintos, satisfaz nossas necessidades, oferece para as nossas ideias uma
imensa coleção de instrumentos e de meios incontáveis. Como encontrar
uma fórmula para descrever esse aparelho que tanto golpeia como abençoa,
tanto recebe como dá, que alimenta, presta juramento, bate o compasso, lê
pelo cego, fala pelo mudo, se volta para o amigo, se arma contra o
adversário, e que se faz martelo, tenaz, alfabeto?... E que mais? Essa
desordem quase lírica é suficiente. Sucessivamente instrumental, simbólica,
oratória, calculadora, – agente universal, não se poderia qualificá-la, em
parte, de órgão do possível, – e, em outra, de órgão da certeza positiva?
Mas dentre todas as noções que derivam da generalidade pela qual essa
mão se distingue dos órgãos que não sabem fazer mais do que uma única
coisa, há uma noção estreitamente associada à da cirurgia.
A cirurgia é a arte de fazer operações. O que é uma operação? É a
transformação obtida por atos bem distintos uns dos outros e que se seguem
em certa ordem, rumo a um objetivo bem determinado. O cirurgião
transforma o estado de um organismo. Quer dizer que ele toca na vida;
escorrega entre a vida e a vida, mas com um sistema de atos, uma precisão
de manobras, um rigor em sua sequência e sua execução que conferem à
sua intervenção certo caráter abstrato. Como a mão distingue o homem dos
outros seres vivos, assim as vias abstratas distinguem o procedimento da
inteligência dos modos de transformação da natureza.
Aqui, meus senhores, me seja permitido imaginar... O poeta tem licença
de aparecer.
Imagino o extremo espanto, a estupefação do organismo que os senhores
violam quando expõem os tesouros palpitantes, deixando chegar às
profundezas mais recônditas, o ar, a luz, as forças e o ferro, produzindo
sobre essa inconcebível substância viva que nos é tão estranha e que nos
constitui, o choque do mundo exterior... Que golpe! Que encontro!...
Mas não é também, ao mesmo tempo, um caso particular e uma imagem
do que se passa em todas as partes do mundo atual? Tudo mostra os efeitos
abaladores da ação dos meios criados pelo homem sobre o homem. Que
choque! E o que acontecerá com todo esse organismo de relações,
convenções, noções que se formou e desenvolveu tão lentamente através
das eras e que, há algumas décadas, foi colocado, ou melhor, ele mesmo se
colocou à prova de forças sobre-humanas e inumanas que acabou
aprendendo a invocar? Nosso eminente e caro presidente acabou de nos
esclarecer rapidamente sobre as vicissitudes da terapêutica e só pôde fazê-lo
expondo primeiramente o significativo estado particular da ciência física
em geral. Parece-me que esse estado pode se resumir assim: adquirimos um
conhecimento indireto que procede através de um relé,76 comunicando-nos,
como por sinais, o que se passa em ordens de grandeza tão distantes desses
que possuem alguma relação com os sentidos, que todas as espécies de
noções, segundo as quais pensamos o mundo, não têm mais como se
sustentar. A falência da imaginação científica foi declarada. Em tal escala,
as noções de corpo, posição, duração, matéria e energia tornam-se
intercambiáveis; a palavra fenômeno não tem mais significado, e talvez a
própria linguagem, qualquer uma que se adote, só pode trazer, com seus
substantivos e verbos, erros para o nosso espírito. Quanto ao número, é a
sua precisão que o condena. Ele receberá o novo uso de substituir uma
pluralidade determinada e identificável por uma probabilidade.
Em suma, nossa representação imediata das coisas se viu penetrada e
perturbada pelas informações bem indiretas que nos vêm das profundezas
do pequeno, e graças às quais sabemos e podemos sem dúvida bem mais;
mas ao mesmo tempo compreendemos bem menos e talvez cada vez menos.
Esse é bem o efeito dos relés. Por um relé uma criança pode, com o ato
insensível de seu dedinho, provocar uma explosão ou um incêndio
inteiramente desproporcional ao seu esforço; dispondo de meios modernos,
um estudioso pode provocar, por um relé, efeitos sensíveis, que traduzirá
dizendo que fissionou um átomo; não obstante, terá de confessar que isso
não passa de uma maneira provisória de falar e reconhecer que o nome
elétron, por exemplo, não pode significar em termos positivos outra coisa a
não ser o conjunto de todos os aparelhos e atos necessários para produzir
em nossos sentidos tais fenômenos observáveis.
Nossa ciência não pode mais pretender, como antes, construir um
edifício de leis e conhecimentos convergentes. Pensávamos que algumas
fórmulas deveriam resumir toda nossa experiência, e um quadro final de
relações de equilíbrio e transformações, análogo ou idêntico àquele que
formam as equações da dinâmica, deveria ser o objetivo e o fim do trabalho
da inteligência científica.
Mas o crescimento dos meios multiplicou os fatos recentes de tal forma
que a ciência se viu alterada pela ação que o seu objeto exerce sobre ela
mesma. Quase a cada instante, ela se vê forçada a alterar as suas
concepções teóricas para se manter em equilíbrio móvel com os fatos
inéditos que, com os seus meios, crescem em número e em diversidade.
Uma soma ordenada de conhecimentos, antes objeto essencial, ponto
preciso da pesquisa, não é mais concebível; o saber teórico se decompõe em
teorias parciais, instrumentos indispensáveis e muitas vezes admiráveis, –
mas instrumentos, que se tomam, se abandonam, que só valem pela
comodidade e fecundidade mais ou menos provisórias de seu uso. Daí
resulta que as contradições entre si possivelmente apresentadas por essas
teorias não possuem mais o caráter de vícios inibitórios.
Essa é uma mudança imensa nas ideias e nos valores. O saber vê-se
assim dominado pelo poder de ação.
Desculpo-me perante os senhores de ter abusado tão longamente da sua
escuta tão cortês. Constato que os senhores são tão bons pacientes como são
cirurgiões. Acredito ter ultrapassado todos os limites; não só o da duração
permitida, como também o limite que um homem de letras jamais deve
ultrapassar quando fala para homens de ciência. Acreditamos saber alguma
coisa, nós que só sabemos nos movimentar no universo da palavra. Todo
mundo não é como o seu dedicado secretário geral, que possui um bisturi,
uma pena e um lápis e a maneira mais elegante de se servir desses
instrumentos bem pontiagudos. Os senhores viram que enxerto de
qualidades diversas ele acaba de praticar no presidente de honra...
Deveria ter me limitado a dizer aos senhores que vejo na cirurgia
moderna um dos aspectos mais nobres e mais apaixonantes dessa
extraordinária aventura da espécie humana que tem se acelerado e, parece,
se exasperado nas últimas décadas. Se, por um lado, devemos constatar em
nossos seres e eventos os sintomas mais graves; não sei que delírios, que
manifestações de tétano, que alternativas rápidas de estímulo e depressão, e
se com frequência nos sentimos testemunha dos últimos momentos de uma
civilização que parece querer acabar no maior luxo dos meios de destruição
e autodestruição, seria bom nos voltarmos para os homens que só detêm as
descobertas, os métodos e os progressos técnicos no intuito de usá-los para
o reconforto e a salvação de seus semelhantes.

73 Depois desse discurso estar escrito, o acaso de uma leitura me fez encontrar a seguinte passagem
em Restif de la Bretonne: “a visão do sangue me fazia cair num desmaio, antes mesmo que o uso da
razão me propiciasse uma inteligência perfeita sobre o que dizíamos”. Restif de la Bretonne,
Monsieur Nicolas, v. XI, p. 194, Paris: Éditions Lisieux, 1883.
74 A formulação de Valéry é “tantôt je pense et tantôt je suis”. O advérbio tantôt, que aparece na
língua francesa no século XII, na forma aussitôt, significa “tão logo”. Com o tempo, recebeu também
o sentido de por vezes, às vezes, ora. Em A vida do espírito, Hannah Arendt discute essa fórmula de
Valéry, considerando-a tanto uma reformulação da dúvida cartesiana sobre a realidade do mundo
como expressão da solidão do filósofo, que Merleau-Ponty igualmente considera, ao dizer que
“apenas estamos realmente sós quando não o sabemos, é essa ignorância mesma que é o nosso estar-
só [o do filósofo]”. Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991, p.
149. A frase de Valéry poderia ser lida, porém, de outro modo, caso se entendesse o advérbio no
sentido de “tão logo”, dizendo, então: tão logo penso, tão logo sou. Guardamos, não obstante, a
forma convencional da expressão de Valéry, usada igualmente na tradução brasileira do referido texto
de Arendt. (N.T.)
75 As palavras cirurgia e cirurgião vêm do grego kheir, que significa “mão”, e de ergo, “obra”, daí
Valéry dizer literalmente man-obra, obra da mão. (N. T.).
76 Relé é a tradução do francês relais. Significa aqui um dispositivo que permite a uma energia
relativamente fraca desencadear uma energia mais forte. É um interruptor eletromecânico usado para
ampliar e retransmitir um sinal rádio-elétrico. É um termo originalmente de caça, que designa cães
colocados em certos pontos de um percurso para substituir os cães extenuados. (N.T.).
REFLEXÕES SIMPLES SOBRE O CORPO77

77 Publicado primeiro num número consagrado à medicina e literatura da revista Formes et


Couleurs, Lausanne, ano V, nº 3, 168 páginas sem numeração, 1943.
O sangue e nós
1. Como reduzir a nada o ser vivo dando-lhe de graça (e de melhor
qualidade) o que o seu organismo e os seus atos no seu meio ambiente lhe
propiciam?

2. Considerando algo como vivo, o que vejo e inicialmente logo ocupa a


minha visão é essa massa compacta, que se move, se curva, salta, voa ou
nada; que urra, fala, canta e multiplica seus atos e suas aparências, suas
destruições, seus trabalhos e a si mesmo num ambiente que o admite e do
qual não é possível distraí-lo.
Essa coisa, com sua atividade descontínua, sua espontaneidade nascida
subitamente de um estado imóvel e para onde sempre retorna são
curiosamente maquinadas: pode-se observar como esses aparelhos visíveis
de propulsão, pernas, patas, asas, formam uma parte bem considerável da
massa total do seu ser e depois se descobre que o resto de seu volume está
ocupado por órgãos do trabalho íntimo, dos quais já vimos alguns efeitos
exteriores. Parece que toda a duração desse ser é efeito desse trabalho e que
toda a produção, visível ou não, é gasta para alimentar um insaciável
consumidor de matéria que é esse próprio ser.

3. Mas também sei que aquilo que o sistema de meios quase inteiramente
animal continuamente busca ou elabora poderia ser fornecido por outros
meios diferentes dos seus próprios. Se o seu sangue recebesse já totalmente
preparadas as substâncias cuja elaboração exige a coordenação de tantos
mecanismos e um tal aparelho diretor, seria possível imaginar que mesmo
se esse material e seu funcionamento se tornassem inúteis e fossem
eliminados, ainda assim, a vida se sustentaria e isso de modo ainda mais
exato e seguro do que quando se sustenta pelos mecanismos naturais. Em
primeiro lugar, esse modo de conservação artificial economizaria todos os
órgãos de relação: os sentidos, os músculos, os instintos, a “psique”; e
também tudo que exige moedores, amolecedores, transportadores, filtros,
tubos, incineradores e radiadores, o trabalho em cadeia que se estimula tão
logo os sinais dos sentidos ordenem o seu movimento.

4. Todo organismo não tem outro uso a não ser a renovação de seu
sangue, – todo, exceto, talvez, a manutenção e o serviço do aparelho da
reprodução, função bem especial e como que lateral, muitas vezes abolida
sem dano vital.
Mas o sangue não tem outro uso a não ser transportar o que é necessário
para o seu funcionamento de volta para o aparelho que o regenera. O corpo
faz o sangue que faz o corpo que faz o sangue... Ademais, todos os atos
desse corpo são cíclicos com relação ao próprio corpo, já que todos se
decompõem em idas e vindas, em contrações e distensões, enquanto o
próprio sangue cumpre esses percursos cíclicos e faz continuamente a volta
ao seu mundo da carne, que constitui a vida.

5. Há algo de absurdo nessa organização monótona da conservação


recíproca. Isso choca o espírito, que abomina a repetição e até para de
compreender e prestar atenção tão logo apreenda aquilo que chama de “lei”;
para ele, uma lei é a exterminação dos “retornos eternos”...

6. Podem ser observadas, no entanto, duas escapadas do ciclo da


existência do corpo: por um lado, em tudo o que se faça, o corpo se usa; e
por outro, o corpo se reproduz.

7. Volto a esse ponto. Supondo-se que o sangue se regenerasse


diretamente e que o ser se conservasse num líquido e temperatura
apropriados, como se faz hoje em dia com fragmentos dos tecidos, o animal
se reduziria a nada, ou talvez a uma “célula” única, dotada de não sei que
vida elementar. Necessariamente abolidos o que chamamos de sensibilidade
e ação, o espírito deveria então desaparecer com aquilo que lhe dá
oportunidade e obrigação de aparecer, pois o seu único uso indispensável à
vida é preparar a variedade, a incerteza e o inesperado das circunstâncias.
Ele compõe as ações que respondem ao informe e ao multiforme. Mas em
todos os casos em que as operações inconscientes ou as respostas reflexos
(ou seja, uniformes) são suficientes, o espírito é supérfluo. O máximo que
pode fazer é perturbar ou comprometer o correto funcionamento do
organismo. Ele não faz falta, mas encontra célebres razões de orgulho.

8. Pelo que acabo de explicar, todo o valor de prodígio que atribuímos a


esses produtos da vida como a memória, o pensamento, o sentimento, a
invenção etc., devem se rebaixar ao nível de acessórios dessa vida. Todas as
nossas paixões do espírito, todas as nossas ações de luxo, nossa vontade de
conhecer ou criar, nos oferecem, contudo, desenvolvimentos incalculáveis a
priori de um funcionamento que tendia apenas a compensar a insuficiência
ou a ambiguidade das percepções imediatas e a elevar a indeterminação
dela resultante.
A grande variedade das espécies, a espantosa diversidade das figuras e
dos meios que manifesta, os recursos de cada uma, a quantidade de
soluções do problema de viver, sugerem que a sensibilidade e a consciência
pensante poderiam ter sido substituídas por propriedades inteiramente
distintas, mas capazes de prestar os mesmos serviços.
O que tal espécie obtém por tentativas sucessivas e como que por via
estatística, outra espécie consegue pela intervenção de um sentido que a
precedente não possui; ou bem, (...) por qualquer elaboração interior do tipo
“raciocínio”.
9. Observo que nossos sentidos nos proporcionam somente um mínimo
de indicações que transpõem para a nossa sensibilidade uma parte
infinitamente pequena da variedade e das variações prováveis de um
“mundo” que, para nós, é inconcebível e inimaginável.

10. Resumindo o que acabo de dizer: ao despojar o que chamamos nossa


vida de tudo o que considerávamos possível de ser suplementado – órgãos,
formas, funções que passam a ser substituídos por um artificio e relegados
assim ao nível de acessórios tornados inúteis (o que nos faz pensar nessas
atrofias produzidas ao longo da evolução) –, essa vida se reduziria a nada
ou a quase nada; e, consequentemente, sensações, sentimentos, pensamento,
não lhe seriam essenciais. Eles seriam apenas... per accidens.
Ora, para isso não faltam exemplos: essa vida reduzida à vida é a do
embrião, tão pouca coisa no começo de sua carreira e tão pouca coisa saída
desse quase nada: um germe.
11. Enfim, uma última reflexão que se enuncia como problema: em que,
nas circunstâncias que permite ao ser a possibilidade de agir, a atividade
própria do espírito é absolutamente indispensável à conservação da vida?
Acho que seria interessante precisar isso. Seríamos então levados a definir o
espírito como um “poder de transformação” de suas representações que,
aplicado a uma situação que não se deixa resolver por automatismos ou
reflexos simples e que estimula o exercício desse poder, tenta lhe fazer
corresponder a ideia e os ímpetos de ação por meio dos quais o sistema vivo
será finalmente devolvido a um estado de disponibilidade de seus recursos –
estado que poderia se chamar de “liberdade”. Quaisquer que sejam as
combinações, as criações, as modificações interiores ocorridas – todo esse
processo sempre acabaria por restituir o sistema a um estado de igual
possibilidade.

Problema dos três corpos


Em seu uso comum, o nome corpo responde a necessidades de expressão
bem diferentes. Poderíamos dizer que, no seu pensamento, a cada um de
nós correspondem Três corpos – ao menos.
O que vou explicar.
O primeiro é o objeto privilegiado que encontramos a cada instante, não
obstante o conhecimento que dele possuímos possa ser bastante variável e
sujeito a ilusões – como tudo o que é inseparável do instante. Cada um de
nós chama esse objeto Meu-corpo; mas em nós mesmos, ou seja, nele, nós
não lhe atribuímos nenhum nome. Falamos sobre ele a terceiros como de
uma coisa que nos pertence, mas, para nós, ele não é de modo algum uma
coisa, pertencendo a nós um pouco menos do que nós pertencemos a ele...
Em essência, ele é para cada um de nós o objeto mais importante do
mundo que se opõe ao mundo, do qual ele sabe depender inteiramente.
Podemos dizer que o mundo repousa sobre ele e que esse mundo a ele se
refere ou então, com igual evidência, mas alterando simplesmente a
regulagem da nossa visão intelectual, que ele não passa de uma espécie de
acontecimento infinitamente negligenciável e instável desse mundo.
Mas nem a palavra “objeto”, que acabo de usar, nem a palavra
“acontecimento” seriam aqui convenientes. Não há nome para designar o
sentimento que possuímos de uma substância de nossa presença, de nossas
ações e afeições, não apenas atuais, mas em estado iminente, adiado ou
puramente possível – alguma coisa mais remota e, não obstante, menos
íntima do que nossas segundas intenções: encontramos uma capacidade de
modificações quase tão variadas como as circunstâncias que nos cercam.
Isso obedece ou desobedece, favorece ou entrava nossos propósitos; sobre
nós abatem-se forças e fraquezas surpreendentes, associadas a essa massa
mais ou menos sensível, no todo ou em partes, que ora se vê subitamente
carregada de energias impulsivas que lhe fazem “agir” em virtude de não
sei que mistério interior; ora parece tornar-se em si mesma o peso mais
avassalador e mais imutável...
Essa coisa mesma é informe: de vista, só conhecemos algumas partes
imóveis que podem se mostrar na região visível do espaço desse Meu-
corpo, espaço estranho, assimétrico, e no qual as distâncias são relações
excepcionais. Não faço a menor ideia das relações espaciais entre “minha
testa” e “meu pé”, entre “meu joelho” e “minhas costas”... Daí resultam
estranhas descobertas. Em geral, minha mão direita ignora a minha mão
esquerda. Pôr uma sobre a outra é segurar um objeto não-eu (non-moi).
Essas estranhezas devem desempenhar um papel no sono e, se o sonho
existe, deve ordená-lo e oferecer-lhe infinitas combinações.
Essa coisa tão minha e, não obstante, tão misteriosamente, às vezes e por
fim, sempre nossa antagonista mais temível, é a coisa mais próxima,
constante e também mais variável que há; pois a ela pertencem toda
constância e toda variação. Nada se mexe diante de nós a não ser por uma
espécie de alteração correspondente que ela esboça e que segue ou limita
esse movimento percebido; e nada se imobiliza se ela não a fixar em
alguma parte.
Ela não possui nenhum passado. Para ela, essa palavra não faz o menor
sentido, pois ela é o próprio presente, com seus acontecimentos e
iminências. Por vezes, algumas de suas partes ou regiões se manifestam, se
iluminam e assumem uma importância perante a qual tudo não é mais nada
e que impõem ao instante a sua doçura ou o seu rigor incomparável.
Nosso Segundo Corpo é aquele que os outros veem em nós e que se nos
oferece mais ou menos pelo espelho e os retratos. É aquele que tem uma
forma e que as artes apreendem; aquele ao qual os materiais, os adornos, as
armaduras se ajustam. É aquele que o Amor vê ou quer ver, ansioso por
tocá-lo. Ele ignora a dor para a qual só faz uma careta.
É esse mesmo corpo que foi tão caro a Narciso, mas que desespera
muitas pessoas, que as entristece e as torna quase todas sombrias, quando
chega o tempo, obrigando-nos a consentir que, no espelho, esse velho ser
tem relações terrivelmente íntimas, embora incompreensíveis, com aquele
que o olha e não o aceita. Não consentimos ser essa ruína.
Mas o conhecimento de nosso Segundo Corpo não vai absolutamente
mais longe do que a visão de uma superfície. É possível viver sem jamais
ser visto, sem conhecer a cor de sua pele; é a sorte dos cegos. Mas toda
pessoa vive sem que a vida lhe imponha a necessidade de saber o que
reveste essa pele tão unida de nosso Segundo Corpo. É surpreendente como
o ser vivo, esse que pensa e age, nada tenha a ver com a sua organização
interior. Ele não está qualificado para conhecê-la. Nada lhe faz suspeitar
que possui um fígado, um cérebro, rins e o resto: essas informações lhe
seriam ademais totalmente inúteis já que, no estado natural das coisas, ele
não possui nenhum meio de ação sobre esses órgãos. Todas as faculdades
de ação estão voltadas para o “mundo exterior” e isso de tal forma que
poderíamos chamar de “mundo exterior” aquilo sobre o que nossos meios
de agir têm algum poder: por exemplo, pelo meu movimento, tudo o que eu
vejo pode se transformar; eu ajo sobre os meus arredores, mas não sei por
quais máquinas.
Há, portanto, um Terceiro Corpo. Mas esse só possui unidade em nosso
pensamento, já que só o reconhecemos por tê-lo dividido e desmembrado.
Conhecê-lo é tê-lo reduzido a pedaços e farrapos. Dele escorrem líquidos
escarlates, macilentos ou hialinos, por vezes bastante viscosos. Dele
extraímos massas de diversas grossuras, modeladas por um encaixe bem
exato: são as esponjas, os vasos, os tubos, os fibras, as barras articuladas...
Reduzido a fatias bem finas ou a pequenas gotas, tudo isso mostra, sob o
microscópio, figuras de corpúsculos que não se assemelham a nada.
Tentamos decifrar esses criptogramas histológicos. Perguntamos como essa
fibra produzia a força motora? E que relação esses pequenos asterismos
com radículas finas poderiam ter com a sensação e o pensamento? Mas que
faria um Descartes, um Newton, ignorantes como eram de nosso
eletromagnetismo, da indução e de tudo o que se descobriu depois deles, se
submetêssemos ao seu exame, sem nenhuma explicação, um dínamo,
contando-lhes apenas os seus efeitos? Eles fariam aquilo que fazemos com
um cérebro: desmontariam o aparelho, desenrolariam as bobinas, notariam
que aqui encontram cobre, lá, carvões, lá, aço e se confessariam por fim
vencidos, incapazes de adivinhar o funcionamento dessa máquina sobre a
qual lhes foi ensinado que realiza as transformações que conhecemos.
Entre esses Três Corpos que acabo de nos conceder existe
necessariamente um grande número de relações que seria bem interessante,
embora muito trabalhoso, tentar trazer à luz. Prefiro chegar agora a uma
fantasia.
Digo que há ainda para cada de um de nós um Quarto Corpo que posso
chamar indiferentemente de Corpo Real ou então de Corpo Imaginário.
Este é considerado indivisível do meio desconhecido e incognoscível
que os físicos nos fazem suspeitar quando atormentam o mundo sensível e,
pelo desvio de um relé dentro de outro, fazem aparecer os fenômenos cuja
origem situam bem além ou aquém de nossos sentidos, de nossa imaginação
e, finalmente, de nossa própria intelecção.
Desse meio inconcebível, meu Quarto Corpo não se distingue nem mais
nem menos que um turbilhão se distingue do líquido onde se forma. (De
fato, tenho o direito de dispor como quiser do inconcebível).
Ele não é nenhum dos Três outros Corpos já que ele não é o Meu-corpo,
nem o Terceiro, aquele dos cientistas, pois é feito daquilo que eles
ignoram... E acrescento que o conhecimento pelo espírito é uma produção
daquilo que esse Quarto Corpo não é. Tudo o que é, para nós, disfarça
necessariamente e irrevogavelmente qualquer coisa que seja...
Mas por que introduzir essa noção tão perfeitamente vã? É que uma
ideia, por mais absurda, nunca é desprovida de valor; e uma expressão, um
signo vazio, nunca deixa de provocar o espírito. De onde me veio essa
palavra Quarto Corpo?
Enquanto pensava na noção de corpo em geral e nos meus Três Corpos
de há pouco, os ilustres problemas provocados por esses temas se
pronunciaram vagamente na penumbra de meu pensamento. Confesso que
costumo afastá-los até o ponto mais sensível e mais próximo de minha
atenção. Não me pergunto de modo algum qual a origem da vida e das
espécies; se a morte é uma simples mudança de clima, de costume ou de
hábitos, se o espírito é ou não um subproduto do organismo; se nossos atos
podem às vezes ser isso que se chama de livres (sem que nenhuma pessoa
tenha jamais podido dizer o que se entende justamente por isso) etc.
É sobre esse fundo de dificuldades extenuadas que se desenhou essa
minha ideia absurda e luminosa: “Chamo de Quarto Corpo, digo a mim
mesmo, o objeto incognoscível cujo conhecimento resolveria de uma vez
todos esses problemas, pois eles o implicam.”
E como um protesto surgia dentro de mim, a Voz do Absurdo
acrescentou: “Mas pensa bem: de onde você quer extrair algumas respostas
para essas questões filosóficas? As suas imagens, as suas abstrações
derivam apenas das propriedades e experiências dos seus Três Corpos. Mas
o primeiro só oferece a você instantes: o segundo, algumas visões; e o
terceiro, ao preço de atos horríveis e preparações complicadas, uma
quantidade de figuras mais indecifráveis do que textos etruscos. Com a sua
linguagem, o seu espírito tritura, compõe e dispõe de tudo isso; quero bem
que ele resolva, pelo abuso de seu questionário habitual, esses famosos
problemas; mas ele só pode oferecer uma sombra de sentido quando supõe,
sem confessá-lo, alguma coisa Inexistente, da qual meu Quarto Corpo é um
modo de encarnação.”
ESTUDOS E FRAGMENTOS SOBRE O SONHO78

78 Publicado pela primeira vez com o título ”Études” na Nouvelle Revue Française, nº 1, p. 354-361,
1 dez. 1909. Sobre a questão do sonho, cf. também, dentre outros textos de Valéry, “ABC três letras
extraídas de um alfabeto”, publicado em 1925 em Commerce e “Notes sur le rêve”, nos Cahiers de la
Pléiade, primavera de 1949, extraídos de um caderno intitulado Somnia.
A quém da vontade está o sonho, e a partir da soleira do sono nada
pode ser obtido. Todas as facilidades, todos os impedimentos
mudaram de lugar: as portas estão muradas e os muros são de
gaze. Há nomes conhecidos para pessoas desconhecidas. O que constituiria
o absurdo de tais coisas dorme. É absurdo caminhar com as mãos; mas é o
que se deve fazer, quando não se tem mais pernas e um deslocamento se
impõe.
Aqui, mistura íntima de verdadeiro e falso. É verdade que sufoco; é falso
que um leão me persiga. Algo de falso (que fiz uma ópera) recorda alguma
coisa de verdadeiro (não sei música). Mas não todo o verdadeiro.
Constrangimento. É o inextrincável ou o indivisível dessa mistura que
caracteriza o sonho.
No sonho, ajo sem querer; quero sem poder; sei sem jamais ter visto,
antes de ter visto; vejo sem prever.
O estranho não é que as funções estejam confusas, mas que entrem em
jogo nesse estado.
O falso ou arbitrário é função natural apenas do pensamento. A noção de
verdadeiro, de real, implica uma reduplicação. Para pensar com alguma
utilidade, é preciso, ao mesmo tempo, confundir a imagem com seu objeto
e, no entanto, estar sempre pronto (vigilare) para reconhecer que essa
identidade aparente entre coisas bem dessemelhantes não passa de um meio
provisório, de um uso do inacabado. É por confundi-las que posso pensar
em agir, mas é também por não confundi-las que posso agir. O real é aquilo
de onde não se pode despertar, de onde nenhum movimento pode me retirar,
mas que todo movimento reforça, reproduz, regenera. O não real, ao
contrário, nasce proporcionalmente à imobilização parcial. (Observe que a
atenção e o sono não estão muito distantes um do outro). O fixo engendra o
falso. Não falta atenção quando ela excede determinado ponto.
No sonho, tudo me é igualmente imposto. Na vigília, distingo os graus
de necessidade e estabilidade.
Sonho com um frasco de perfume numa embalagem violeta: não sei
quem começou. Foi a palavra violeta ou o colorido? Há simetria desses
membros que se substituem. Um não é mais real do que o outro. Se olho
(acordado) para esse papel de parede com flores, não vejo apenas um
conjunto de diagonais paralelas no lugar de uma sementeira isótropa de
rosas, mas literalmente desperto dessa figura escolhida, observando, com
ajuda dos mesmos elementos, que há no campo outras figuras igualmente
possíveis.
Cada uma dessas figuras é comparável a um sonho; cada uma é um
sistema completo e fechado, suficiente para recobrir inteiramente ou
mascarar a multiplicidade real. A visão de um desses sistemas exclui a dos
outros.
Num meio tensionado, os movimentos ondulatórios se cruzam sem se
misturar. No homem acordado, de algum modo elevado ao tom do real, há,
igualmente, independência e não composição de excitações coexistentes.
No sonho, há uma composição automática de tudo, nenhuma reserva. Se
penso alguma coisa de A, esse julgamento persegue A como se fosse algo
estranho para A. Um julgamento não segue a impressão para compatibilizá-
la com um sistema límpido e uniforme que assegura e define a minha
realidade, a minha ordem. Esse julgamento sucede, no entanto, a minha
impressão, anulando-a inteiramente ou bem a modificando, em vez de
consolidá-la. Pensamos como nos debatemos.
Sem sentir, esquecer o que se olha. E, ao pensar nele [no que se olha],
esquecê-lo por uma transformação natural, contínua, invisível, em plena
luz, imóvel, local, imperceptível... como um pedaço de gelo escapole da
mão de quem o segura.
E inversamente:
Reencontrar a coisa esquecida olhando o esquecimento.
Comigo acontece muitas vezes de, ao esquecer alguma coisa precisa,
colocar-me em observação a fim de apreender este estado e esta lacuna.
Quero me ver esquecendo, sabendo que esqueci, e buscando.
Seria talvez um método opor a toda falta mental seu estudo imediato pela
consciência?
Assim (ou ao contrário?), por instantes, a própria dor empalidece quando
a olhamos face a face, caso seja possível.
Esqueço que deveria sair essa noite. Sonho com minhas pantufas. O
começo dessa ação me faz pensar no bem-estar que vai se seguir, e esse
gosto prévio me leva à satisfação com minha noite íntima. Lá, nesse lugar
espiritual de um tempo futuro, já se encontra alguma coisa: o lugar para
onde eu deveria ir desperta com seus signos obrigatórios, e o lugar mantido
recusa receber minha noite tranquila. Lembro-me da injunção como
consequência de tê-la esquecido, por tê-la esquecido com demasiada
precisão.
Vou adormecer, mas um fio ainda me prende a essa força límpida pela
qual eu poderia reciprocamente prendê-la: um fio, uma sensação
sustentando-se ainda no meu todo e que pode se tornar um caminho tanto
para a vigília como para o sono.
Uma vez adormecido, não posso mais despertar voluntariamente, não
posso mais ver o despertar como uma meta. Perdi o vigor de olhar qualquer
coisa como um sonho.
É preciso esperar a fissura do dia, o respiradouro que abrirá todo o meu
espaço, a haste condutora que sustenta o estado onde os esforços encontram
as coisas, onde a sensação determina um ponto comum entre duas visões.
Ela é um ponto duplo que pertence tanto a um objeto como ao meu corpo; a
uma coisa, mas também ao nó de minhas funções.
No sonho, as operações não se amontoam, não são percebidas como
fatores independentes. Há sequências, não consequências. Não há metas,
apenas o sentimento de uma meta. Nenhum objeto de pensamento se forma
pela reunião manifesta de dados independentes, de maneira que sua
existência se deve a uma diferença de “realidade”, a uma máquina finita. Na
vigília, reconhecer A é um fenômeno que depende de A, embora no sonho
eu muitas vezes reconheça A no objeto B. O reconhecimento não resulta
mais de um choque atual, mas é a continuação mesma do sonho, a título de
um objeto qualquer nele compreendido.
O espírito do sonhador assemelha-se a um sistema sobre o qual as forças
exteriores se anulam ou não agem e cujos movimentos interiores não podem
acarretar um deslocamento do centro nem uma rotação.
Não seria possível avançar se a resistência do solo e a fricção sobre ele
chegassem a anular a força que tende a manter imóvel o centro de
gravidade, quando a primeira perna se afasta do corpo. Mas, quando a perna
de trás fica dormente, a pressão sobre o solo não desperta a rigidez ou
tensão dos músculos e a força não se anula, porque a tensão não é
provocada pelo sentimento de contato. Sente-se o solo como que à
distância, como num sonho, sem poder responder.
E quando todo o ser adormece, isso ocorre porque a mudança ou a
modificação impressas não conseguem aguentar uma mudança ou
deslocamento relativos, não por faltarem forças exteriores, mas porque o
instrumento de sua aplicação se vê momentaneamente abolido.
O sonhador reage com visões e movimentos que não podem mudar a
causa da impressão. Não podendo parar a impressão com uma imagem
parcial fixa, nem opor tal imagem (verdadeira) a outra (falsa), nem a
memória à atual etc., ele é como alguém que desliza por uma superfície
polida sem poder isolar uma perna fixando-a no exterior.
Mas o sonhador não sabe disso. Ele apreende sua própria impotência
como efeito de uma força exterior; nunca consegue considerar finita a causa
de suas impressões, pois a procura nas visões provocadas pela impressão e a
encontra de forma indefinida, forjando o que poderia produzi-la, em lugar
de reproduzir o que a produziu. Acredita ver como acredita deslocar-se.
Mas sentimentos, emoções, espetáculos, causas aparentes, simulacros de
coisas separadas alteram-se reciprocamente e constituem um mesmo
sistema, análogo a um sistema de forças “interiores”. O esforço que deveria
produzir uma mudança definida permanece sempre em vão porque, em
consequência do próprio esforço, uma mudança inversa, uma espécie de
recuo, me desloca para o estado inicial.
Acordo de um sonho e o objeto que eu seria, um cordame, vira meu
outro braço num outro mundo. Permanecendo a sensação de estricção, a
corda que eu seria se anima. Girei em torno de um ponto fixo. A mesma
sensação é como que aclarada ao se dividir em várias. A mesma pedra
adentra duas construções sucessivas. O mesmo pássaro caminha até a beira
de um telhado e de lá inicia o voo.
Subitamente, dou-me conta de que é preciso traduzir essa sensação de
maneira inteiramente diversa: é o momento quando ela não pode mais
pertencer a tal sistema de acontecimentos, a tal mundo, que então vira
sonho e passado desordenado.
O sonho nunca realiza esse finito admirável que a percepção alcança na
vigília e na luz.
Em tal sonho, há um personagem. No entanto, não o vejo claramente.
Pois, se o visse com nitidez, tudo logo se modificaria e, em consequência,
ele também. Há uma conversa, mas difusa. Sei muito bem sobre o que
falamos, escuto certas palavras e, no entanto, a sequência me escapa,
nenhum detalhe, e essas palavras não fazem sentido: (O Mellus do
Melluss??). Mas nada está faltando. Tudo se passa como se a conversa fosse
real. A sua inconsistência não a interrompe. Não é nela que está o motor.
No sonho, o pensamento não se distingue do viver nem se atrasa em
relação a ele. Adere ao viver – adere inteiramente à simplicidade do viver, à
flutuação do ser sobre as fisionomias e as imagens do conhecer.79

79 Em francês conhecer é connaître que, literalmente, significa co-naître, conascer, nascer junto.
(N.T.)
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
P aul Valéry, poeta, ensaísta, crítico de arte, pensador, nasceu em
Sète, na França, em 1871, e morreu em 20 de julho de 1945, em
Paris. Fez seus estudos em Montpellier, onde se formou em Direito.
Instalou-se em Paris em 1894, onde viveu um longo período de silêncio
poético até que, em 1917, sob influência de André Gide, volta a escrever e
publica o poema “A jovem parca”, que o tornou imediatamente célebre. A
este logo seguiram “O cemitério marinho” (1920) e “Charmes” (1922), que
o consagraram como um dos grandes poetas franceses. Profundamente
marcado por Stéphane Mallarmé, assume a reflexão sobre a linguagem, a
forma, o sentido e a inspiração poéticas como meio de conhecimento do
mundo. Sua obra está nitidamente marcada pela elaboração de uma poética
do pensamento, que pode ser acompanhada ao longo de seus Cadernos
[Cahiers], escritos entre 1894 e a sua morte em 1945. Depois da Primeira
Guerra Mundial, já muito célebre, Valéry faz inúmeras viagens e assume
diferentes funções dentre as quais a de membro da Academia Francesa em
1925 e professor de poética no Collège de France. Paul Valéry influenciou
várias gerações de artistas, poetas e filósofos, como Rainer Maria Rilke, T.
S. Eliot e James Joyce. Suas reflexões sobre o mundo contemporâneo, a
crise do espírito e a relação entre filosofia, ciência e técnica marcaram
vários pensadores contemporâneos como Jacques Derrida. Seus escritos
sobre a relação entre arte e pensamento foram decisivos para Maurice
Merleau-Ponty e para a elaboração de inúmeras propostas dos ciclos
Artepensamento organizados no Brasil pelo filósofo Adauto Novaes.
Bibliografia de Paul Valéry
Em francês
Alphabet. Paris: Le Livre de Poche- Classique, 1999.
Cahiers, I-XXIX, fac-símile. Paris: CNRS, 1957-1961.
Cartesius redivivus, em Cahier Paul Valéry, nº 4. Paris: Gallimard, 1986.
Correspondance avec Fourment, 1877-1933. Paris: Gallimard, 1957.
Correspondance avec Gide, 1840-1942. Paris: Gallimard, 1955.
Oeuvres I e II. Paris: Bibliothèque de la Pléiade; Gallimard, 1957, 1960.
Les Principes d’an-archie pure et apliquée. Paris: Gallimard, 1984.
Sur Nietzsche. Lettres et notes. Paris: La Coopérative, 2017.
Vues. Paris: La Table Ronde, 1948.

Em português
O pensamento vivo de Descartes, trad. Maria de Lourdes Teixeira. São
Paulo: Martins Fontes, 1952.
Cemitério marinho, trad. Jorge Wanderley. São Paulo: Max Limonad, 1984.
O senhor Teste, trad. Anibal Fernandes. Lisboa: Relógio d’Água, 1985.
A alma e a dança – E outros diálogos, trad. Marcelo Coelho. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Eupalinos – Ou o arquiteto, trad. Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34,
1996.
Introdução ao Método de Leonardo da Vinci, trad. Geraldo Gérson de
Souza. São Paulo: Editora 34, 1998.
Variedades, antologia, org. João Alexandre Barbosa, trad. Maiza Martins de
Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999.
Degas, dança, desenho, trad. Christina Murachco e Célia Euvaldo. São
Paulo: Cosac & Naif, 2003.
Fragmentos do Narciso e outros poemas, trad. Júlio Castañon Guimarães.
São Paulo: Ateliê, 2013.
Maus pensamentos & outros, trad. Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte;
Veneza: Editora Âyiné, 2016.
O homem e a concha. trad. Augusto Rodrigues da Silva Jr. e Eclair Antonio
Almeida Filho, São Paulo: Martins Fontes, 2018.
Lições de poética, trad. Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte; Veneza:
Editora Âyiné, 2018.

Sobre Valéry e a filosofia


Theodor W. Adorno. “Museu Valéry Proust”, in Prismas – Critica Cultural
e Sociedade, trad. Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São
Paulo: Ática, 1984.
Walter Benjamin. “Paul Valéry. Zu seinem 60. Gebrutstag”, in Gesammelte
Schriften, v. 4.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977.
Maurice Blanchot. “Valéry e Fausto”, in A parte do fogo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
Maurice Blanchot. “Une vue de Descartes”, in Chroniques littéraires du
Journal des Débats: Avril 1941-Aôut 1944. Paris: Gallimard, 2007.
Augusto de Campos. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo:
Brasiliense, 1984 (Coleção Ficções).
Michel Deguy. “O fim do mundo “finito”, in Adauto Novaes (org.). Poetas
que pensaram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Jacques Derrida. “O qual, a qual: as fontes de Valéry”, in Margens da
filosofia. São Paulo: Papirus, 1991.
André Maurois. Introdução ao método de Paul Valéry. São Paulo: Pontes
Editores, 1990.
Maurice Merleau-Ponty. Recherches sur l’usage littéraire du langage,
Cours au Collége de France, Notes, 1953. Paris: Metispress, 2013.
Brutus Abel Fratuce Pimentel. Paul Valéry. Estudos filosóficos. Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Para uma releitura de Descartes que desenvolve visões centrais de Valéry
sobre Descartes, leia-se:
Jean-Luc Nancy. Ego sum. La philosophie en effet. Paris: Flammarion,
1979.
Jean-Luc Nancy. Corpo, fora. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.
SOBRE A ORGANIZADORA E
TRADUTORA

M arcia Sá Cavalcante Schuback é professora titular de filosofia


na Universidade de Södertörn (Suécia). Entre 1994 e 2000 foi
professora adjunta do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora, entre outros,
de Olho a olho: ensaios de longe (2011) e o mais recente Time in Exile: in
conversation with Heidegger, Blanchot and Clarice Lispector (2020).
Algumas de suas traduções são Ser e tempo e A caminho da linguagem, de
Martin Heidegger; Hipérion, de Hölderlin; Mares do leste, de Tomas
Tandströmer; e, para o sueco, as Primeiras estórias, de Guimarães Rosa.
SOBRE A COLEÇÃO

A presença do ensaio como gênero distinto na literatura moderna indica que


o espírito crítico é uma das marcas da Modernidade. Este espírito anima a
coleção Ensaios Contemporâneos, que pretende opor a serenidade e o rigor
da reflexão à urgência de encontrar respostas. Alguns critérios nortearam a
organização da coleção. Foram escolhidos ensaios de autores de grande
relevância no cenário intelectual contemporâneo e deu-se preferência a
textos ainda não traduzidos para o português. Os temas propostos cobrem
um amplo leque – literatura, filosofia, arte, política e história
contemporânea. Os organizadores de cada livro são estudiosos destacados
dos vários assuntos e são responsáveis pela apresentação de cada volume, a
preparação de notas e a bibliografia para o público brasileiro. Espera-se que
os ensaios reunidos nesta coleção possam contribuir para um debate de
ideias – uma iniciativa imprescindível para o enfrentamento dos impasses
no nosso tempo.
Arruaças
Simas, Luiz Antonio
9786586719345
200 páginas

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A filosofia popular brasileira está nas ruas, nas experiências cotidianas e


ancestrais, nos conhecimentos herdados e aprendidos nas encruzilhadas, nos
terreiros e nos feitiços, na ginga dos malandros, nas veredas dos vaqueiros,
nas saias das pombagiras. Saberes que vão tomando o seu espaço,
desafiando os conceitos de uma história única e linear e se impondo frente a
um conhecimento hegemônico e limitador. Trata-se, portanto, de uma ativa
proposta contra a colonização dos pensamentos e das ideias o que esses três
pensadores e professores brasileiros – Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino e
Rafael Haddock-Lobo – apresentam em Arruaças, um livro povoado de
histórias, aprendizagens e encantamentos. "Arruaça é também uma guerra
em que os modos populares têm, como tática, artimanhas não
convencionais. O Brasil das sinhás, sinhôs e de toda carga imantada por eles
é aquele que precisa ser rasurado pela brasilidade dos viventes que para
aqui se bandearam. Seja nas matas, praias, esquinas, rodas, improvisos,
várzeas e recantos onde tocam-se tambores, há inúmeras formas de ir ao
campo de batalha. Riscando pólvora na rua, botando o corpo na praça ou se
emaranhando nos buracos desse chão, existe um infinito repertório de
fazeres que nutrem a existência da brasilidade." Apresentação de
Wanderson Flor do Nascimento Texto de orelhas de Janaína Damasceno
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Interseccionalidades: pioneiras do
feminismo negro brasileiro
de Hollanda, Heloisa Buarque
9786586719062
52 páginas

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Compilação de textos organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e


dedicada às pioneiras dos debates sobre a especificidade das relações entre
gênero e raça: Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, até
hoje grandes referências desses estudos entre nós. A partir dos anos 1980,
não foi possível silenciar vozes que se impunham demandas específicas,
sobretudo as das mulheres negras, momento em que se destacam algumas
das intelectuais mais singulares desse contexto, que fizeram da
interseccionalidade um tema definitivo no debate feminista brasileiro. No
contexto atual em que os estudos feministas e também o ativismo ganham
espaço no país, é fundamental que os nomes dessas importantes pensadoras
brasileiras afirmem seu lugar para as novas gerações, a partir do
conhecimento e reconhecimento de uma atuação que entende os estudos
feministas como um campo de contínua expansão, afirmação e resistência.
"Movida por este momento de redescoberta do feminismo e querendo
contar esta história para jovens feministas, reuni textos de nossas veteranas
brasileiras – produzidos numa hora re repressão e ditadura militar – que
tiveram que enfrentar compromissos políticos nem sempre desejáveis,
preconceitos machistas dos intelectuais e dificuldades em sua inserção
acadêmica. Enfim, mesmo assim o pensamento feminista conseguiu emergir
e se consolidar como área legítima de conhecimento" Heloisa Buarque de
Hollanda. Parte do livro "Pensamento feminista brasileiro: formação e
contexto".

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Pensamento feminista hoje: perspectivas
decoloniais
Varejão, Adriana
9788569924791
384 páginas

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A perspectiva decolonial é uma das mais atuais e contestadoras linhas do


pensamento feminista contemporâneo, reivindicando a desconstrução de
leituras hegemônicas sobre a mulher e o discurso de feministas oriundas dos
países historicamente dominantes. Como reação ao processo de colonização
– histórico e intelectual – o pensamento decolonial irrompe o cenário do
feminismo com novas teorias e novos questionamentos sobre o problema do
gênero, raça, classe e da própria epistemologia. Para apresentar um
panorama do pensamento decolonial feminista, o livro reúne trabalhos de
22 autoras que dimensionam essa fundamental contribuição para o debate
atual, apresentando pensadoras pioneiras, como a argentina María Lugones;
a nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí, que questiona os conceitos ocidentais de
gênero a partir da experiência iorubá; a dominicana Yuderkys Espinosa
Miñoso, que investiga a experiência histórica feminina na América Latina;
a boliviana Julieta Paredes, que conjuga ideias e ativismo em defesa do
feminismo comunitário; e as brasileiras Luiza Bairros, que enfatiza a
expressão do feminismo negro, e Maria da Graça Costa, que aponta para
novas propostas, como o ecofeminismo. As artes plásticas também são
tomadas aqui com um discurso. E nesse campo, destacam-se os trabalhos
decoloniais das brasilerias Adriana Varejão, Rosana Paulino e Marcela
Cantuária. Na soma dessas contribuições emerge um repertório contestador,
múltiplo e renovador que questiona, enriquece e mobiliza novas posturas,
reflexões e ações do feminismo contemporâneo. "Categorias e questões
consolidadas pela comunidade acadêmica feminista tornam-se arenas de
disputa e invenção. Como construir um feminismo sem levar em conta as
epistemologias originárias? Sem absorver as gramáticas das lutas e dos
levantes emancipatórios que acompanham nossas histórias? Como podemos
reconsiderar as fontes e conceitos do feminismo ocidental? Uma nova
história, novas solidariedades, novos territórios epistêmicos impõem
urgência em ser sonhados", aponta a organizadora Heloisa Buarque de
Hollanda. As autoras reunidas são: Adriana Varejão, Alba Margarita
Aguinaga Barragán, Alejandra Santillana, Angela Figueiredo, Claudia de
Lima Costa, Dunia Mokrani Chávez, Julieta Paredes, Lélia Gonzalez, Luiza
Bairros, Marcela Cantuária, Maria da Graça Costa, María Elvira Díaz-
Benítez, María Lugones, Marnia Lazreg, Miriam Lang, Ochy Curiel,
Oyèrónké Oyěwùmí, Rosana Paulino, Suely Aldir Messeder, Susana de
Castro, Thula Rafaela de Oliveira Pires, Yuderkys Espinosa Miñoso. O livro
conta com um caderno de imagens em cor de obras das artistas brasileiras
Adriana Varejão, Rosana Paulino e Marcela Cantuária.

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Pensamento Feminista: Conceitos
fundamentais
Lorde, Audre
9788569924517
438 páginas

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Se hoje ideias como lugar de fala, teoria queer e decolonialismo ganham


espaço nas reivindicações feministas contemporâneas, elas tiveram sua
origem em pesquisas e teorias desenvolvidas ao longo das últimas décadas
por estudiosas e ativistas como Teresa de Lauretis, Donna Haraway, Maria
Lugones, Nancy Fraser, Sandra Harding, Judith Butler, Gloria Andalzúa,
além de brasileiras como Lélia Gonzales e Sueli Carneiro. É nesse eco de
construções e indagações, dos anos 1980 até os dias de hoje, que
acompanhamos a consolidação de um importante campo de saber. A missão
deste livro é, portanto, a de facilitar o estudo das tendências teóricas e o
avanço dos trabalhos acadêmicos e políticos em torno da questão de gênero,
tema tão amplo quanto polêmico e fundamental no contexto atual.
Organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, ela mesma referência no
campo dos estudos feministas no Brasil, tendo sido responsável pela edição
no país de obras importantes como Tendências e Impasses, o feminismo
como crítica da cultura (1994), em que apresentava alguns desses textos e
autoras de forma pioneira, a presente coletânea reúne dezenove ensaios,
tendo seu ponto de partida nos anos 1980, momento em que a própria ideia
de gênero se consolida em suas abordagens mais relacionais e culturais, de
que são exemplo trabalhos como os de Joan Scott, Nancy Fraser, Sandra
Harding e Monique Wittig. Em um segundo momento, ainda na década de
1980, as reinvindicações específicas ganham espaço e a interseccionalidade,
atualmente tão presente nas pautas feministas, se destaca nas vozes
contestatórias de Audre Lorde, Patricia Collins, Gayatri Spivak, Lélia
Gonzales e Sueli Carneiro. Já no século XXI, em uma frente mais radical,
se enunciam os conceitos contemporâneos de contrassexualidade, queer,
sexopolítica, em que Judith Butler e Paul Beatriz Preciado se destacam
como tendência revolucionária, atravessando os campos da teoria e da
política. Como a organizadora explica em seu texto introdutório, se essa
seleção teve como mote a vontade de compartilhar uma experiência
intelectual pessoal, pensando no tempo presente e nas novas gerações que
se formam e se articulam, ela revela também, na própria escolha e
articulação dos artigos, a necessidade de fazer um alerta: "que o feminismo
do século XXI coloque na agenda a urgência do questionamento das tão
perigosas quanto dissimuladas tecnologias de produção das sexualidades e a
responsabilidade de recusar qualquer hierarquia ou prioridade na luta contra
a opressão de todas as mulheres, em suas mais diversas características de
gênero, raça, etnia ou religião."

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Liberdade para ser livre
Arendt, Hannah
9788569924531
76 páginas

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É bem conhecida a sentença de Hannah Arendt segundo a qual a liberdade é


a razão de ser da política. Raras vezes, no entanto, ela falou de forma tão
sintética e penetrante a esse respeito quanto na palestra "Liberdade para ser
livre", redigida em meados dos anos 1960 e publicada postumamente. Aqui,
mais uma vez, a experiência das revoluções é tomada como ponto de
partida da análise da pensadora alemã. Mesmo que as revoluções tenham
deixado de ser frequentes entre nós, a reflexão de Hannah Arendt sobre elas
é permeada de comentários que não envelheceram. Deve-se notar sua
condenação das intervenções militares, que, até quando bem-sucedidas, em
casos isolados, teriam sido incapazes de preencher o vácuo de poder, uma
vez que nem mesmo a vitória substituiria o caos pela estabilidade, a
corrupção pela honestidade, a decadência pela autoridade ou a
desintegração pela confiança no governo. Nada legitima o poder, a não ser a
política. Contudo, até na ausência da política, homens e mulheres podem,
pela simples presença no mundo, encarnar seu significado. Tempos
sombrios contam com algumas iluminações, como aquelas vindas dos
pensadores Waldemar Gurian e Karl Jaspers. Os textos sobre eles incluídos
neste volume dão testemunho dessa visão. Ambos inéditos no Brasil, assim
como a atualíssima análise sobre a liberdade. Uma reflexão essencial para
momento em que buscamos entender os sentidos da política.
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