Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
BIBLIOGRAFIA DE PAUL VALÉRY
INTRODUÇÃO
1 João Cabral de Melo Neto, “Debruçado sobre os cadernos de Paul Valéry”, in Obra completa.
Volume único, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 559-560.
2 Paul Valéry, ”Avant-Propos à Analecta”, in Oeuvres II, Paris: Pléiade, Gallimard, 1960, p. 701.
3 Paul Valéry, ”Meditation avant pensée”, in Poésie brute, Oeuvres I, Paris: Pléiade, 1957, p. 351.
4 Paul Valéry, “Amor” in Mélanges, op. Cit, Oeuvres I], p. 316.
5 Em francês, conhecer é connaître que, literalmente, significa co-naître, conascer, nascer junto.
(N.T.)
6 Essas cartas compõem um material sobre Nietzsche publicado somente em 2003 e que não faz parte
da edição La Pléiade de sua obra completa. Cf. “Paul Valéry: Lettres et notes sur Nietzsche”, Michel
Jarrety (ed.), in Bulletin des études valéryennes nº 93, ‘De l’Allemagne’ — v. II, p. 41, 43-90, mars
2003.
7 Cf. Jean-Luc Nancy, Corpo, fora, Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
8 Cf também Jean-Luc Nancy, Ego sum. La philosophie en effet, Paris: Flammarion, 1979.
DUAS CARTAS EM TORNO DE NIETZSCHE9
9 Valéry lê as primeiras traduções de Nietzsche em francês feitas por Henri-Albert Haug, que dirigia
a seção de “Literatura alemã” no Mercure de France e também a revista Le Centaure, onde Valéry
publicou vários poemas. Tem em mente escrever um estudo sobre Nietzsche e para isso redige várias
notas. Valéry não termina esse estudo. Além dessas notas preservadas e publicadas por Les Editions
de la Coopérative em 2017, há algumas breves cartas aqui traduzidas, em que Valéry expõe suas
impressões sobre Nietzsche, essa para André Gide, amigo de toda a vida, e outra para Guy de
Pourtalès, autor de várias biografias, dentre as quais uma das primeiras sobre Nietzsche. (N.T.)
A André Gide
Seu
Valéry
P.S – Li minha cópia de Ermitage com devoção. O Prometeu é bom. Mas espero o final para fazer a
minha apreciação.
Quanto a Nietzsche, diabos! Tenho a impressão (se entendi, o que não é
seguro) que você se obriga demais a lhe atribuir uma unidade. Para mim ele
é antes de tudo Contraditório.11 Por exemplo, ele esgota A pelo método B e
depois demole B, conservando mesmo assim os dois esgotamentos.
No todo, há, porém, coisas admiráveis, ingênuas e inúteis; é preciso, no
entanto, escolher o que serve e retornar seja a Stendhal, seja a Descartes,
pois não há uma via intermediária possível. Na maior parte das vezes,
capítulos inteiros são, como diria o seu secretário,12 de uma gratuidade
tenebrosa.
Aos meus olhos, o grande erro dele é querer fazer da violência uma
filosofia. O resultado é Mauclair,13 claro!
Nele, o mais divertido é o ar arrogante e a preocupação ética – coisa que
sempre me faz rir – pois, no final das contas, é papo de botequim. Ele quer
trabalhar sobre a moral e não vê que o fundo moderno dessa questão é a
indiferença bem apresentada.
Além disso, você observou o maravilhoso truque do Super-homem? Com
isso, ele pode ser ao mesmo tempo otimista e pessimista, daí as páginas
diversificadas etc., romântico e clássico etc., ad libitum.
Estou bem interessado na sua moral do mestre e do escravo, mas quanto
jogo de palavras! Mas eu perdoo já que ele é “por um pouco mais de
consciência”,14 antiga mania minha. Foi uma espécie de moral ou de mania
que me fez ficar obstinado com a busca de formas de pensamento e
principalmente daquelas que ficaram desconhecidas para os surpreendentes
lógicos de outrora, os filósofos que lhes sucederam e sobretudo aqueles que
mais fazem uso delas, os artistas, os imaginadores etc.
Eis por que Nietzsche “não nos ensina muita coisa – diretamente”.15 A
novidade alcançada é, no meu entender, uma combinação do individual –
rico, múltiplo etc., com o simples ou geral.
Mas é um autor muito sugestivo, pois traz muitas coisas reunidas e bem
diferentes numa só página.
10 Quando Valéry volta a Valvin, em setembro de 1898, duas semanas após a morte de Mallarmé, ele
se dá conta de que não consegue pagar o aluguel do imóvel com sua esposa e filha. Ele sugere então
a Gide dividir com eles o aluguel. Édouard Dujardin e Francis Vielè-Griffin também se juntam a eles.
(N.T.)
11 Valéry critica Gide, que considera haver em Nietzsche um “sistema”, o que se pode ler nas
anotações que faz em Prétextes. Para Valéry, atribuir um sistema a Nietzsche seria atribuir-lhe um
valor dogmático. (N.T.)
12 Alusão ao personagem do Prometeu, de Gide, que vê na “ação gratuita” a principal diferença entre
o homem e o animal. (N.T.)
13 Camille Mauclair (1872-1945), escritor discípulo de Mallarmé que Valéry considerava
insuportável. (N.T.)
14 Valéry leu em Para além do bem e do mal, §98, que, “Quando se amestra a própria consciência,
esta acaricia ao mesmo tempo em que morde”. (N.T.)
15 Parece que Valéry faz aqui alusão ao começo da “Carta a Angèle”, na qual Gide observa que,
devido à precoce influência de Nietzsche, a sua obra “não mais surpreende, mas confirma” e “quase
não era mais indispensável”. (N.T.)
Seu
Valéry
Fiquei muito tocado pela dedicatória que abre o seu livro.19 Você me
oferece esse trabalho e eu aceito essa bela oferenda de todo coração. Você
também me honra associando meu nome a um nome muito ilustre e
singularmente significativo. O que me faz viver perigosamente! – Essa
honra perigosa me deu o que pensar. Levou-me a recordar dias passados e
as minhas primeiras impressões de Nietzsche. Nessa época, Albert traduzia
Zaratustra como podia; ele era também o diretor do Le Centaure – revista
onde publiquei A noite com o Senhor Teste. Esses dois seres não se
entendiam muito bem. Zaratustra é um poeta supremo. O Senhor Teste é o
contrário de todo poeta: é um ser inteiramente absorvente,– um Corpo
obscuro que não se torna nada.
Mas – diga-se o que quiser – não fui, não sou o Senhor Teste; – se não
for de manhã, antes do dia... O fato é que acabei por amar Nietzsche – por
meio, através, – apesar das traduções. Digo: amar Nietzsche, e não as suas
teses favoritas nem seus movimentos.
Para mim, ele encontrou um certo método, quase uma lógica; se é que se
pode chamar de lógica uma exploração intelectual dos modos da
sensibilidade central. Por que nunca se falou disso que é tão capital? – pois
o número de ideias por ele emitidas, o gênero particular de relações nele
engendradas – e a espécie de charme que elas instituem tem a ver com a
forma nervosa de sua inteligência. Sua metafísica e sua moral imoralista
não me tocam muito. São para mim apenas combinações formadas como
quaisquer outras. Acredito que estas só excitaram tanto os espíritos por
causa dessa força de ressonância que ele lhes comunicava e que
necessariamente não lhes pertence. Mas ele resolveu de maneira
maravilhosa o difícil problema que a existência da grande música coloca há
mais de um século a todos os escritores que pensam. Você viu isso muito
bem; e mesmo todo o seu livro está animado por isso. Eu o li como se
esposa a existência de uma Patética ou de uma Apassionata.20 Eis o que
está tão bem feito.
Quanto a Gênova. Essa cidade admirável possui estranhas virtudes. Ali
vivi verões fabulosos na infância. Em 1892 pensei que ali ficaria louco. Era
uma noite branca – branca de clarões que passei deitado na cama desejando
morrer fulminado (Parecia que eu não valia a pena). Era apenas alta
frequência – tanto na minha cabeça como no céu. Tratava-se de decompor
todas as minhas primeiras ideias ou Ídolos; e de romper com um eu que não
sabia poder o que queria e nem querer o que podia...
Obrigado, meu caro Pourtalès. Você me deu um enorme prazer. Não vou
repetir quanto aprecio e estimo a sua maneira de tratar a biografia. Você
escreve poemas e não romances, – quero dizer que você extrai o que tende a
se concentrar por si mesmo em lugar de confundir o que tende a se
dispersar...
Pronto para o Wagner! – À espera!
Paul Valéry
19 Guy de Pourtalès. Nietzsche en Italie, Paris: Grasset, 1929. Cf. o artigo de Agathe Rouart Valéry,
“Paul Valéry et Guy de Pourtalès: Propos sur Nietzsche et Wagner”, French Studies, v. XXXIX, nº 4,
p. 442–447, out. 1985.
20 Valéry refere-se às sonatas de Beethoven, Patética e Apassionata. (N.T.)
SOBRE A EUREKA21
21 Esse texto foi escrito originalmente como introdução à tradução feita por Charles Baudelaire do
poema Eureka, de Edgar Allan Poe, publicada em 1921. Para a tradução brasileira de Eureka, cf. a de
Marilene Felinto com introdução de Julio Cortázar (que o traduziu para o espanhol), publicado pela
editora Max Limonad em 1986. (N.T.)
Para Lucien Fabre
22 Valéry usa pathétique aqui como Immanuel Kant, no sentido do conjunto dos sentimentos (em
grego, pathémata), formando o termo de maneira análoga à estética. Provavelmente alude também à
sonata de Beethoven conhecida como Patética. Valéry sem dúvida pensa no caráter patético de
sentimentalismos intelectuais. (N.T.)
23 Nicolas Léonard Sadi Carnot (1796-1832) foi um engenheiro militar e físico francês cujo trabalho
contribuiu de forma essencial para a fundamentação da termodinâmica. É considerado o descobridor
da força motriz do fogo e autor de uma teoria por meio da qual foi possível inventar uma máquina
térmica para obter um rendimento máximo. Suas investigações serviram de base para a formulação
por Lord Kelvin da segunda lei da termodinâmica e pode ser considerado aquele que esboçou os
fundamentos para o conceito de entropia. (N.T.)
24 Ludwig Eduard Boltzmann (1844-1906) foi um físico austríaco que desenvolveu a mecânica
estatística pela qual foi possível explicar pela primeira vez como as propriedades dos átomos
determinam as propriedades físicas da matéria tais como viscosidade, condução térmica e difusão.
(N.T.)
25 Svante Arrhenius (1859-1927) foi um físico sueco que recebeu o prêmio Nobel em química em
1903 e foi o primeiro a usar princípios básicos da físico-química para calcular até onde as emissões
de dióxido de carbono, causadas pelo ser humano, aumentam a temperatura da terra. As suas
pesquisas pioneiras apresentam hoje grande atualidade no que diz respeito aos problemas do
aquecimento global. (N.T.)
NO COMEÇO ERA A FÁBULA
Necessariamente.
Pois o que foi é espírito e não há propriedades que não sejam do espírito.
Logo, se imaginas voltar ao “começo”, isso só é possível imaginar
despojando-se, um pouco mais, em cada recuo, do que sabes por
experiência ou ao menos por meio de testemunhos cada vez mais raros. E
para conceber esses quadros mais e mais distantes, és obrigado a completá-
los cada vez mais pela tua própria produção de personagens,
acontecimentos e teatros.
No limite, nada mais há além de ti. Tudo é um tu: fábula pura.
PEQUENA CARTA SOBRE OS MITOS26
26 Publicado pela primeira vez como introdução a Maurice de Guérin, Poèmes en prose, Paris:
Blaizot, 1928.
U ma dama, minha cara amiga, uma dama inteiramente
desconhecida, me escreve uma carta bem longa e até carinhosa,
interrogando-me a respeito de uma boa quantidade de temas
difíceis, que ela finge acreditar que eu possa liberar o seu espírito.
Ela se inquieta junto a mim sobre Deus e sobre o amor; se tenho fé tanto
em um como em outro; ela gostaria de saber se a poesia pura é mortal para
o sentimento e me pergunta se me exercito na análise de meus sonhos,
como se faz na Europa central, onde não há pessoas bem-nascidas que, a
cada manhã, deixem de extrair de seus próprios precipícios algumas
enormidades abissais, alguns polvos de forma obscena que se admiram de
ter nutrido.
Sem muito esforço, pude esclarecer e tranquilizá-la sobre tudo isto e
muitas outras dúvidas. Não sou de modo algum pessoa de grandes luzes,
mas para as grandes questões basta pouca luz. Além disso, o tom faz tudo:
uma graça acalma, certo rodeio estimula, certos ornamentos desviam no seu
prazer a alma terna que lê e que não pede respostas, – pois isso seria
terminar o jogo e retirar a vida sob algum pretexto – e privá-la de
questionamento.
Contudo, me senti bem confuso numa dificuldade precisa e particular,
daquelas de que sem bastante leitura e reflexões dificilmente se consegue
escapar.
A leitura me pesa; só a escrita inquieta um pouco mais a minha
paciência. Só sou bom de inventar aquilo de que preciso no momento. Sou
um Robinson miserável numa ilha de carne e espírito toda circundada de
ignorância, onde crio grosseiramente meus utensílios e minhas artes. Por
vezes, me aplaudo por ser tão pobre e tão incapaz dos tesouros do
conhecimento acumulado. Sou pobre, mas sou rei; e, sem dúvida, como
Robinson, reino apenas sobre meus macacos e papagaios interiores; mas
enfim, ainda é reinar... Creio, na verdade, que nossos pais leram demais e
que nossos cérebros são feitos de uma massa cinzenta de livros...
Volto à minha questionadora que, por um instante, deixei pendurada em
algum prego da duração. Essa mulher sem rosto, de quem só conheço o
perfume de seu papel (e esse perfume potente me dá uma ideia de náusea),
insiste de maneira surpreendente em me fazer explicar os mitos e a ciência
dos mitos, sobre os quais ela quer a qualquer preço que eu lhe diga alguma
coisa e sobre o que eu sei apenas aquilo que quero. Não imagino porque
isso lhe importa tanto.
Se tivesse vindo de você, minha sábia e simples amiga, e se a sua
curiosidade sobre essa questão tivesse tentado irritar a minha preguiça,
jamais você conseguiria tirar de minha cabeça outra coisa além de
brincadeiras, na maior parte impuras e de resto bem superficiais. Entre
pessoas que se conhecem por essência, como acontece entre você e eu, ai de
mim! – nada conta a não ser essa relação misteriosa dos próprios seres; as
palavras não contam, os atos não são nada...
Cara alma, já que acabei por responder a essa perfumada indeterminada,
– e Deus sabe porque eu lhe respondi, que esperanças obscuras, que
suspeitas de doces riscos me seduziram a lhe escrever, – eu darei a você a
substância do que imaginei para ela. Em questão estava fingir
conhecimentos que não possuo de maneira alguma e que não me provocam
nenhuma inveja daqueles que os possuem. Felizes quem os têm! Mas, por
mais sólidos que sejam, infelizes os que sobre eles repousam!
Confesso a você que, inicialmente, no momento de aplicar meus esforços
em conceber o mundo dos mitos, senti meu espírito indócil; eu o pressionei,
forcei o seu tédio e as suas resistências, e como sob minha pressão ele
retrocedia, voltando o seu olhar para o que ama, desejando aquilo que ele
faz de melhor e cujos atrativos ele pintava com vivacidade, eu o lancei
furiosamente no meio dos monstros, na confusão de todos os deuses,
demônios, heróis, espécies horríveis e de todas as criaturas dos homens
antigos, aqueles que puseram a sua filosofia para povoar o universo de
maneira tão ardente como nós mais tarde pusemos a nossa para esvaziá-lo
de toda vida. Em suas trevas, os nossos ancestrais se acasalaram com todo
enigma, nele gerando estranhas crianças.
Não sabia me orientar na minha desordem, em que me apoiar para ali
plantar o meu começo e desenvolver os pensamentos vagos que o tumulto
das imagens e das lembranças, o número de nomes, a mistura de hipóteses
despertavam e se arruinavam dentro de mim, diante do meu propósito.
Minha caneta fazia furos no papel, minha mão esquerda atormentava
meu rosto, meus olhos desenhavam com bastante nitidez um objeto bem
iluminado e eu sentia muito bem que não tinha a menor necessidade de
escrever. Depois, essa caneta que matava o tempo com seus pequenos
rabiscos começou por si mesma a esboçar formas barrocas, peixes
hediondos, polvos descabelados de rubricas bem fluidas e fáceis... Ela
engendrava mitos que surgiam de minha espera na duração, enquanto minha
alma, que quase não via o que a minha mão criava diante dela, errava como
uma sonâmbula entre os sinistros muros imaginários e os teatros
submarinos do aquário de Mônaco!
Quem sabe, eu pensava, se o real em suas formas inumeráveis não é tão
arbitrário, não se produz de forma tão gratuita como esses arabescos
animais? Quando sonho e invento sem volta, não sou... a natureza? Desde
que a caneta toque o papel, que ela lance a tinta, que eu me entedie, que eu
me esqueça – eu crio! Uma palavra vinda ao acaso se torna uma sorte
infinita, faz crescer os órgãos da frase, e a frase exige uma outra que tenha
existido antes dela; ela quer um passado que ela gera para nascer... depois
que ela já apareceu! E essas curvas, essas volutas, esses tentáculos, palpos,
patas e apêndices que faço correr sobre essa página, não é o que faz a seu
modo a natureza em seus jogos, quando dissipa, transforma, estraga,
esquece e reencontra tantas chances e figuras de vida no meio dos raios e
átomos onde abunda e se enreda todo possível e inconcebível?
O espirito se empenha mesmo assim. Só que ainda excede a natureza; ele
não somente cria como ela costuma fazer, mas acrescenta que faz ares de
criar. Ele compõe de verdade a mentira, e embora a vida ou a realidade se
limite a proliferar no instante, ele se forjou o mito dos mitos, o indefinido
do mito, – o Tempo.
Mas a mentira e o tempo não existiriam sem algum artifício. A palavra é
esse meio de se multiplicar no vazio.
E eis como chego enfim ao meu tema e como fiz uma teoria para a dama
invisível e terna:
Senhora, eu lhe disse, ó mito! Mito é o nome de tudo que não existe e
que só subsiste tendo por causa a palavra. Não há discurso tão obscuro,
rumor tão bizarro, propósito tão incoerente que não possa receber um
sentido. Há sempre uma suposição que dá sentido à linguagem mais
estranha.
Imaginem ainda várias narrativas sobre a mesma ocupação ou diversos
relatos sobre o mesmo acontecimento entregues a vocês por livros ou
testemunhas que, embora igualmente dignos de fé, não concordem entre si.
Dizer que eles estão em desacordo é dizer que a sua diversidade simultânea
compõe um monstro. A sua concorrência procria uma quimera... Mas um
monstro ou uma quimera que não são viáveis de fato estão bem à vontade
no vago dos espíritos. Uma combinação de mulher e peixe é uma sereia, e a
forma de uma sereia é facilmente aceitável. Mas é possível uma sereia viva?
– Eu não estou de jeito algum seguro de que já sejamos tão especialistas nas
ciências da vida a ponto de poder recusar a vida às sereias por qualquer
razão demonstrativa. Seria preciso bastante anatomia e fisiologia para lhes
opor outra coisa do que esse fato: os modernos nunca pescaram uma sereia!
Um mito é o que perece por um pouco mais de precisão. Sob o rigor do
olhar e sob os golpes multiplicados e convergentes das questões e
interrogações categóricas com as quais o espírito desperto se arma por todos
os lados, veem-se os mitos morrerem e a fauna das coisas vagas e das ideias
se empobrecerem indefinidamente... Os mitos se decompõem sob a luz que
constitui em nós a presença combinada de nosso corpo e de nosso sentido
do mais alto grau.
Veja como o pesadelo compõe um drama onipotente com a diversidade
de sensações independentes que trabalham em nós durante o sono. Uma
mão ficou presa sob o corpo; um pé que se descobriu e se liberou dos
lençóis esfria longe daquele que dorme; passantes matinais vociferam de
madrugada na rua; o estômago vazio se estira e as vísceras fermentam; o
vislumbre do grande sol levante inquieta vagamente a retina pelas pálpebras
abaixadas... Tantos dados separados e incoerentes; e ninguém ainda para
reduzi-los a si mesmos e ao mundo conhecido, para organizá-los, retendo
alguns, abolindo outros, para ordenar os seus valores e nos permitir ir além.
Juntos, porém, todos esses dados são como condições iguais a serem
igualmente satisfeitas. Daí resulta uma criação original, absurda,
incompatível com a sequência da vida, onipotente, inteiramente
assustadora, que não possui em si mesma nenhum princípio de fim,
nenhuma saída, nenhum limite... É assim no detalhe da véspera, embora
com menos unidade. Toda a história do pensamento não passa do jogo de
uma infinidade de pequenos pesadelos com grandes consequências, ao
passo que nos sonos observam-se grandes pesadelos com consequências
bastante breves e fracas.
Toda nossa linguagem se compõe de pequenos sonhos breves; e o que
isso tem de belo é algumas vezes formarmos com eles pensamentos
estranhamente justos e maravilhosamente razoáveis.
Na verdade, há em nós tantos mitos que nos são tão familiares a ponto de
ser praticamente impossível separar com nitidez alguma coisa em nosso
espírito que não seja mito. Nem sequer podemos falar sobre o mito sem
mitificar, afinal, não estou nesse instante fazendo o mito do mito para
responder ao capricho de um mito?
Sim, não sei o que fazer para sair do que não é, almas caras! A palavra
nos povoa tanto e povoa tudo a tal ponto que não se sabe o que fazer para se
abster das imaginações onde nada se passa...
Imagine que amanhã é um mito, que o universo é um mito; que o
número, o amor, que tanto o real como o infinito, que a justiça, o povo, a
poesia... a própria terra são mitos! E que até o polo é um mito, pois aqueles
que pretendem ter ido até lá só pensaram ali estar por razões inteiramente
indissociáveis da palavra...
Eu estava esquecendo todo o passado... Toda a história é feita apenas de
pensamentos aos quais acrescentamos esse valor essencialmente mítico de
que eles representam aquilo que foi. Cada instante cai a cada instante na
imaginação, e tão logo se morre, vemo-nos, com a velocidade da luz,
reunidos aos centauros e aos anjos... Mas o que digo! Tão logo viramos as
costas, tão logo saímos de vista, a opinião faz de nós o que pode!
Volto à história. Como ela se transforma insensivelmente em sonho à
medida que se distancia do presente! Bem perto de nós, são sempre ainda os
mitos temperados, constrangidos pelos textos não inacreditáveis, pelos
vestígios materiais que moderam um pouco nossa fantasia. Mas transpostos
para três ou quatro mil anos antes de nosso nascimento, estamos em plena
liberdade. Enfim, no vazio do mito do tempo puro e virgem de qualquer
coisa que se assemelhe ao que nos toca, o espírito – assegurado apenas por
ter havido alguma coisa, coagido pela necessidade essencial de supor um
antecedente, “causas”, suportes ao que é e ao que ele é, – dá luz a épocas,
Estados, acontecimentos, seres, princípios, imagens ou histórias mais e mais
ingênuas, as que fazem sonhar ou que se reduzem facilmente à cosmologia
tão sincera dos hindus que, para sustentar a terra no espaço, a colocam
sobre as costas de um elefante e esse animal sobre uma tartaruga, ela
mesma carregada por um mar que continha não sei que vaso...
O filósofo mais profundo, o físico mais bem equipado, o geômetra mais
provido desses meios que Laplace pomposamente chamou de “recursos da
mais sublime análise”, – não podem nem sabem fazer outra coisa.
É por isso que me veio a ideia de escrever certo dia: No começo era a
Fábula!
O que significa que toda origem, toda aurora das coisas tem a mesma
substância que as canções e os contos que rodeiam os berços...
É uma espécie de lei absoluta que, por toda parte, por todo período da
civilização, em toda crença, no meio de qualquer disciplina e sob todas as
relações, – o falso sustenta o verdadeiro; o verdadeiro se dá o falso como
ancestral, como causa, como autor, como origem e fim, sem exceção nem
remédio, – e o verdadeiro engendra o falso de onde ele mesmo exige ser
engendrado. Toda antiguidade, toda causalidade, todo princípio das coisas
são invenções fabulosas e obedecem a leis simples.
Que seríamos nós sem a presença do que não existe? Pouca coisa, e
nossos espíritos bem desocupados esmoreceriam se as fábulas, os enganos,
as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos
problemas da metafísica não povoassem nossas profundezas e nossas trevas
naturais com seres e imagens sem objetos.
Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos amores. Não podemos
agir senão nos movendo em direção a um fantasma. Não podemos amar
senão o que criamos.
Eis, minha cara, quase todo meu discurso para a mulher sem corpo de
quem acho e até gosto que você tenha ciúmes. Vou poupar você de algumas
frases de grande estilo com as quais achei necessário finalizar esses
propósitos.
Coloquei um pouco de poesia nos momentos finais da minha carta. Não
se pode deixar uma dama exposta a simples ideias, é preciso dourar o adeus.
Permiti-me então dizer à minha desconhecida que a aurora e a tardinha do
tempo, semelhantes àquelas que, num belo dia, estão encantadas e
iluminadas de prestígios pelo sol rente ao horizonte, se colorem e enchem
de milagres. Assim como a luz quase rasa gera para o olho humano prazeres
prodigiosos, o supre com magias, transmutações ideais, formas enormes
sustentadas e desenvolvidas nas alturas, figuras de outros mundos, estadias
ardentes nas rochas áureas, e nos lagos bem puros, tronos, grutas errantes,
infernos superiores, encantos; também esses elevados lugares
deslumbrantes, esses fantasmas, esses monstros e divindades aéreas se
analisam em vapores e raios decompostos – e assim todos os deuses e
nossos ídolos mesmo abstratos: o que foi, o que será, o que se forma longe
de nós. Pode bem ser que o espírito não retire ou sofra por si mesmo aquilo
que exige, as origens que reclama, a sequência e os desdobramentos de que
tem sede; separado da experiência, isolado das opressões que o contato
direto lhe impõe, o espírito engendra por si mesmo aquilo de que precisa.
Ele se retrata em si, ele emite o extraordinário. De seus mínimos
acidentes, faz jorrar criações sobrenaturais. Nesse estado, faz uso de tudo o
que é; um quiproquó, um mal-entendido, um trocadilho lhe fecundam.
Chama de ciência e artes a força que possui para conferir a essas
fantasmagorias precisão, duração e consistência, e isso a tal ponto de rigor
com o qual ele mesmo se surpreende e por vezes se abate!
Adeus, querida; eu ia retornar ao amor.
LEONARDO E OS FILÓSOFOS27
27 Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1928, em Commerce, nº XVIII, e depois como
prefácio à tradução francesa do livro de Leo Ferrero Leonardo da Vinci e a obra de arte, 1929.
1929
carta a Leo Ferrero28
Aqui está o que em nós fere distinções bem antigas e atormenta o modo
como a filosofia e a pintura foram figuradas e separadas em nossas ideias.
Em relação aos nossos hábitos, Leonardo parece uma espécie de
monstro, um centauro ou uma quimera, pela espécie ambígua que
representa para os espíritos bem exercitados em dividir a nossa natureza e
em considerar os filósofos como seres sem mãos e sem olhos e os artistas
com cabeças tão reduzidas a ponto de nada mais possuírem além de
instintos...
É preciso, no entanto, tentar tornar concebível essa estranha substituição
da filosofia pelo culto de uma arte plástica. Observemos inicialmente que
não pode ser questão de raciocinar sobre os estados ou fatos mais interiores,
pois, no íntimo ou no instante da vida psíquica, as diferenças entre o
filósofo e o artista são necessariamente indeterminadas quando não
inexistentes. Somos então obrigados a chegar ao que se vê, se distingue e se
opõe objetivamente e é aqui que reencontramos o que havíamos observado
há pouco: o problema essencial do papel da linguagem. Se a filosofia é
inseparável da expressão pela linguagem, se essa expressão é a finalidade
de todo filósofo, Leonardo, cuja finalidade é a pintura, não é filósofo
mesmo que comporte a maior parte de suas características. Só que assim
nos vemos então obrigados a aceitar todas as consequências desse
julgamento, que são rigorosas. Vou dar uma ideia.
O filósofo descreve o que pensou. Um sistema A lógica só possui virtudes
de filosofia se resume numa classificação de bem moderadas quando se
emprega a linguagem
palavras ou numa tabela de definições. A lógica ordinária, ou seja, a
não passa da permanência das propriedades dessa linguagem sem definições
tabela e a maneira como dela se serve. É a isso que absolutas.
estamos acostumados e o que explica concedermos
somente à linguagem articulada um lugar todo especial e central no regime
de nossos espíritos. Sem dúvida, trata-se de um lugar devido, e a
linguagem, não obstante feita de convenções inumeráveis, é quase nós
mesmos. Quase não podemos pensar sem ela, tampouco dirigir, conservar,
apoderar-se de nosso pensamento e, sobretudo... em alguma medida, prevê-
lo.
Mas olhemos um pouco mais de perto; É recolocar em questão os
consideremos o que se passa em nós. Tão logo valores primeiramente dados
de nosso pensamento, agindo
nosso pensamento tende a se aprofundar, ou seja, a sobre as durações da
se aproximar de seu objeto, tentando operar sobre existência consciente desses
as próprias coisas (desde que o seu ato se faça dados.
coisa) e não mais sobre signos quaisquer que
provocam as ideias superficiais das coisas, tão logo vivemos esse
pensamento, o sentimos separar-se de toda linguagem convencional. Por
mais intimamente que possa se tramar em nossa presença, por mais densa
que seja a distribuição de suas chances; por mais sensível que seja em nós
essa organização adquirida e pronta a intervir, podemos, mediante certo
esforço, separá-lo de nossa vida mental momentânea por uma espécie de
aumento ou pressão de duração. Sentimos que as palavras nos faltam e
sabemos que não há nenhuma razão para que alguma possa responder por
nós, ou seja, nos substituir, pois a força das palavras (de onde elas extraem
a sua utilidade) é de nos devolver para a vizinhança desses estados já
atestados, de regularizar ou instituir a repetição e assim esposar essa vida
mental que jamais se repete. Talvez seja isso pensar profundamente, o que
não significa dizer: pensar mais utilmente, mais exatamente, mais
completamente do que se costuma; isso nada mais é do que pensar longe,
pensar o mais longe possível do automatismo verbal. Fazemos assim a
experiência de que o vocabulário e a gramática são dons estranhos: res inter
alios actas.32 Percebemos diretamente que, por mais orgânica e
indispensável que seja, a linguagem não pode realizar nada no mundo do
pensamento, onde nada fixa a sua natureza transitiva. Nossa atenção a
distingue de nós. Tanto o nosso rigor como o nosso fervor a ela nos opõe.
Não obstante, os filósofos tentaram relacionar a Todo pensamento exige que se
sua linguagem à sua vida profunda, reclassificá-la tome uma coisa por outra: um
segundo por um ano.
e completá-la um pouco de acordo com as
necessidades de sua experiência solitária a fim de torná-la um meio mais
sutil, mais certo de conhecer e reconhecer o seu conhecimento. Pode-se
imaginar a filosofia como a atitude, a espera, a obrigação, pelas quais
qualquer um às vezes pensa a sua vida ou vive o seu pensamento, numa
espécie de equivalência ou estado reversível entre o ser e o conhecer,
tentando suspender toda expressão convencional enquanto pressente a
ordenação e o aclaramento de uma combinação bem mais preciosa do que
as demais, do real que ele sente oferecer e daquele que pode receber.
A natureza da linguagem é, no entanto, Não há um só problema em
inteiramente contrária ao feliz sucesso desse filosofia que não possa ser
enunciado de maneira que
grande esforço que todos os filósofos tentaram. Os não subsista nenhuma dúvida
mais potentes se consumiram na tentativa de fazer sobre a sua existência.
falar o seu pensamento. Em vão criaram ou
transfiguraram certas palavras, sem, porém, conseguir nos transmitir os seus
estados. Que se trate das Ideias, da Dynamis, do Ser, do Númeno, do Cogito
ou do Eu, todas elas não passam de cifras, determinadas unicamente por um
contexto, sendo assim, por uma espécie de criação pessoal, que o seu leitor,
tal como acontece com o leitor de poetas, imprime força de vida às obras
em que o discurso ordinário se desdobra para exprimir coisas que os
homens não podem trocar entre si e que não existem no ambiente onde soa
a palavra.
Pode-se ver que ao fundar toda uma filosofia sobre a expressão verbal,
recusando-lhe ao mesmo tempo todas as liberdades e mesmo... os
incômodos que convêm às artes, corre-se o risco de reduzi-la aos diversos
modos que alguns solitários admiráveis encontram para fazer uma oração.
Aliás, nunca se constatou e não se pode mesmo imaginar dois filósofos
compatíveis um com o outro tampouco uma doutrina cuja interpretação seja
única e constante.
Há ainda outra coisa a se observar sobre a relação entre a atividade
filosófica e a palavra: vou mencionar apenas um caso.
Olhemos simplesmente ao nosso redor onde Ainda é preciso observar que
vemos decrescer dia a dia a importância da esse ajustamento está muitas
vezes bem longe de ser
linguagem em todos os campos nos quais vemos satisfatório. Cf. Definições de
também se acentuar um crescimento da precisão. ponto, linha, relação etc.
Sem dúvida, a linguagem comum continuará a
servir de instrumento inicial e geral da vida para estabelecer relações entre a
vida exterior e interior; ela sempre ensinará as demais linguagens criadas
conscientemente e ajustará, nos espíritos ainda não especializados, esses
mecanismos potentes e límpidos. Pouco a pouco, porém, ela assume, por
contraste, o caráter de um meio de aproximação primeira e grosseira. O seu
papel vai diminuindo com o desenvolvimento de sistemas de notações mais
puros e adaptados cada um a um único uso. Mas mesmo assim, em cada
grau dessa contração, corresponde uma restrição do antigo horizonte da
filosofia... Tudo o que adquire precisão num mundo onde tudo tende a se
precisar escapa aos meios primitivos de expressão.
Em certos casos bem surpreendentes, acontece Não há filosofia que resista
hoje em dia de toda expressão feita por meio de (até agora) a um exame
preciso de suas definições.
signos discretos, arbitrariamente escolhidos, ser
substituída por traços das próprias coisas ou pelas transposições ou
inscrições derivadas diretamente delas. A grande invenção que consiste em
tornar as leis sensíveis para o olho e como que legíveis a olho nu foi
incorporada ao conhecimento; de alguma maneira, ela duplica o mundo da
experiência com um mundo visível de curvas, superfícies, diagramas que
transpõem as propriedades para figuras cujas inflexões nós seguimos com
nossos olhos, e experimentamos, pela consciência desse movimento, o
sentimento das vicissitudes de uma grandeza. O gráfico consegue transmitir
o contínuo de que a palavra é incapaz; ele a supera em evidência e precisão.
É ela sem dúvida que o obriga a existir, que lhe confere um sentido, que o
interpreta; mas não é mais por ela que o ato de posse mental é consumado.
Vê-se constituir pouco a pouco uma espécie de ideografia das relações
figuradas entre qualidades e quantidades, linguagem que tem por gramática
um conjunto de convenções preliminares (escalas, eixos, redes etc.); por
lógica, a dependência das figuras ou das porções de figuras, suas
propriedades de situação etc.
A arte musical nos oferece uma ordem e ademais, uma analógica.
inteiramente diferente de representação (se bem
que ligada aos gráficos por certas analogias). Sabemos como são profundos
os recursos do universo dos sons e que presença de toda vida afetiva, que
intuições de labirintos, de cruzamentos e superposições da lembrança, da
dúvida, dos ímpetos; que forças, que vidas e mortes fictícias nos são
comunicadas e impostas pelos artifícios do compositor. Por vezes, o
desenho e a modulação estão em tamanho acordo com as leis íntimas de
nossas mudanças de espírito que fazem sonhar que são fórmulas auditivas
exatas e que poderiam servir de modelos para um estudo objetivo dos
fenômenos subjetivos mais sutis. Nesse tipo de pesquisa, nenhuma
descrição verbal consegue se aproximar das imagens produzidas pelo
ouvido porque estas são transformações e restituições dos fatos vitais por
elas transmitidas, mesmo se apresentando, pois se trata de uma arte, como
criações arbitrárias de alguém.
Por esses exemplos pode-se ver como as figuras Haveria muito a dizer sobre o
e os encadeamentos de sensações auditivas arbitrário.
Tudo o que fazemos de
conseguem se ligar aos modos supostamente mais arbitrário (aos nossos
profundos, ou seja: aos que se acham mais próprios olhos), como
distantes da linguagem do pensamento filosófico. rabiscar casualmente numa
folha de papel, resulta da
Pode-se ver como o mais precioso que este pode atividade separada de um
órgão. Fecham-se os olhos
conter ou perceber e que só consegue comunicar, para extrair ao acaso uma
carta do chapéu. A tais atos
tão imperfeitamente, é, senão transmitido, ao (análogos a lapsos de
menos sugerido por vias nada tradicionais. atenção) opõem-se as nossas
atividades controladas.
A filosofia, porém, procurou constantemente, e Tudo isso se exprimiria de
sempre haverá de procurar, assegurar-se cada vez maneira bem simples caso se
observasse que o número das
mais contra o perigo de parecer perseguir um condições independentes
objetivo puramente verbal. A consciência de si que impostas a um ato mede o
grau de consciência.
é (sob diversos nomes) seu principal meio de
existência (como é também uma ocasião sempre próxima do ceticismo e da
perdição), por um lado, continua mostrando o seu vigor e a sua necessidade
interiores e, por outro, toda a fraqueza devida à sua dependência do
discurso. É por isso que quase todos os filósofos insistem, cada um segundo
a sua natureza, em distinguir o seu pensamento de todas as convenções;
alguns, particularmente sensíveis às produções e às transformações
contínuas de seu mundo interior, prestam atenção a uma região aquém da
linguagem, onde observam essa forma íntima nascente que pode ser
qualificada de intuições, pois nossa espontaneidade aparente ou real
compreende, dentre os seus bens, luzes imediatas, soluções instantâneas,
ímpetos e decisões inesperadas. Outros, porém, menos inclinados a
perceber a mudança do que atentos ao que se conserva, acreditam
consolidar na própria linguagem as posições de seu pensamento. Esses
depositam sua confiança nas leis formais, nelas descobrindo a estrutura
própria do inteligível ao qual eles estimam que toda linguagem empresta
sua descontinuidade e o tipo de suas proposições.
Os primeiros, quando desenvolvem a tendência Todavia, eles nunca o fizeram
que lhes caracteriza, são levados por um pendor (ao que eu saiba), a partir de
uma análise da linguagem
imperceptível em direção à arte do tempo e da que a reduza à sua natureza
escuta; são os filósofos musicistas. Os segundos, estatística e permita não
atribuir à essência das coisas
que atribuem à linguagem uma armadura de razão criações verbais (e,
e uma espécie de plano bem definido; que consequentemente,
problemas) que tenham por
contemplam, como se pode dizer, todas as origem a ingenuidade, o
sentimento poético, os
implicações como simultâneas e que tentam expedientes e sondagens de
reconstruir na surdina ou perfazer como obra de gerações.
O esquecimento desses
alguém essa obra que é de todo mundo e de modestos começos é sem
ninguém são bem comparáveis a arquitetos... dúvida a condição de uma
boa quantidade de problemas
Não vejo por que ambos os tipos de filósofos filosóficos.
não adotariam nosso Leonardo, para quem a Em particular, a existência de
noções discordantes, ou a
pintura ocupou o lugar da filosofia? coexistência acidental de
termos criados
independentemente uns dos
outros, dá lugar a antinomias
e a paradoxos bem favoráveis
a um rico desenvolvimento de
mal-entendidos e de sutilezas
bem filosóficas...
33 Publicado pela primeira vez em La Nouvelle Revue Française, nº 140, p. 834-840,de 1 maio de
1925. Esse fragmento deveria estender-se e servir de prefácio a uma edição do Discurso do método
em preparação pelos editores Helleu et Sergent. Foi reeditado como Avant-propos à Descartes,
Discours de la méthode, suivi de six lettres, de pensées et de fragments, Edition d’art Édouard
Pelletan, 1925. Reeditado depois também em Mâitres et Amis (1927), Variété II (1929), Oeuvres, v.
G, Variété, v. 10, 1937. Trinta anos antes, aos 25 de agosto de 1894, Valéry escreveu as seguintes
linhas para André Gide: ”Reli o Discurso do método que é sem dúvida o romance moderno como
podia ser feito então. Deve-se observar que a filosofia posterior rejeitou a parte autobiográfica.
Todavia, esse é o ponto a ser retomado e seria preciso escrever a vida de uma teoria como já muito se
escreveu sobre a vida de uma paixão (copulação). Mas isso é menos cômodo – pois, puritano como
sou, gostaria que a teoria fosse melhor que a truculência como em Luís Lambert…/ (Luís Lambert é
um romance de Honoré de Balzac que faz parte da seção dos Estudos filosóficos na sua obra-prima, A
comédia humana). (N.T.)
H á quinze anos, ainda se podia encontrar, numa rua bem próxima à
Place Royale, uma caserna de soldados onde os reservistas
vinham se registrar e carimbar os seus documentos militares.
O homem entrava e buscava se orientar num pátio nobre e familiar. Os
escritórios que ele procurava se encontravam à esquerda, numa das arcadas
em forma de alça e remanescentes de um claustro bem antigo. Sua
majestade arruinada se ajustava muito bem à doce vida, meio oficial, meio
íntima, ali estabelecida desde o Primeiro Império. Havia um ordenança,
espírito ausente; gaiolas de canarinhos penduradas nas pilastras; quepes e
potes de flores nas janelas; aqui e ali, umas calças compridas brancas
secando em cordas. Ano após ano, milhares de recrutas atravessavam
necessariamente esse pátio. Não sei se algum deles chegou a perceber que
estava sendo obrigado a fazer uma peregrinação. Mesmo as mais altas
autoridades que organizavam tudo isso desconheciam o verdadeiro objeto.
Acreditavam estar manobrando os reservistas para os seus próprios fins, só
que, sem saber, estavam nos obrigando a visitar um dos monumentos mais
respeitáveis da história do pensamento.
Essa caserna tinha substituído um convento, e os soldados, os frades da
ordem dos Mínimos.34 Foi lá que, no início do século XVII, o padre
Mersenne, homem bastante prestativo e altamente considerado no círculo
dos intelectuais, viveu e morreu. Era um religioso simples e muito curioso,
que propunha problemas, por vezes até mesmo enigmas, para uma Europa
intelectual, bem distinta da nossa. Agente de fermentação científica e de
intermediação entre estudiosos de credos religiosos diversos, foi amigo de
infância, amigo constante e extremado de Descartes, propagador de suas
doutrinas e um dos mais amáveis dentre esses seres secundários cujo papel
talvez seja essencial para o desenvolvimento dos grandes homens e o
desencadeamento de grandes eventos. A investigação sistemática da história
desses auxiliares, serviçais, confidentes ou intermediários, que sempre se
encontram na proximidade do gênio e entre as pequenas causas vivas dos
grandes acontecimentos, seria um estudo bastante seminal e, imagino,
muito frutífero.
Quando vinha a Paris, Descartes recebia pela manhã visitas no Convento
dos Mínimos da Place Royale, na casa desse padre tão inestimável. Foi lá
que recebeu o Sr. Mélian, no dia 11 de julho de 1644. Quando chegou de
Haia, em junho de 1647, ficou na casa do abade Picot,35 na rua Geoffroy-
Lasnier, onde redigiu o prefácio dos Princípios.36 Partiu para a Bretanha
onde tinha negócios para resolver, retornando por Poitou e La Tourraine e,
quando voltou a Paris, recebeu, no começo do mês de setembro, a boa
notícia de uma pensão de três mil francos de renda que o rei acabara de lhe
conceder, atendendo a proposta do Ministro Cardeal. Notícias desse tipo
eram raras.
Foi então que “Sr. Pascal o jovem, encontrando-se em Paris e mostrando
desejo de conhecê-lo, teve a satisfação de conversar com ele nos Mínimos,
onde soubera que poderia encontrá-lo. O Sr. Descartes teve o prazer de
ouvi-lo discorrer sobre as experiências do vazio que havia feito em Rouen e
cujo relato, em vias de ser impresso, ele enviou da Holanda, logo ao
regressar. A conversa que teve com o Sr. Pascal propiciou muito alegria ao
Sr. Descartes”.
Sinto-me muito ligado à glória deste último para conseguir transcrever a
sua continuação.
Um dia, passando por lá, aborreci-me ao ver que, no lugar da antiga
morada dos Mínimos, havia agora um bloco edificado em forma de cubo,
revestido de cal bem nova e bastante pura, repleto de balas de canhão com
plumas de fogo gravadas em pedras macias.37 Os policiais haviam sido
transferidos para esse bloco. Eu os preferia no antigo convento, pois mesmo
sendo uma espécie de ordem militar, ela não se opõe de modo algum ao
matrimônio de seus membros.
Há poucas nações na Europa onde uma casa consagrada por uma
presença tão grandiosa e que teria assistido a tais conversas pudesse
desaparecer de forma tão discreta como aqui entre nós. Não havia sequer
uma placa no muro dos Mínimos que o fizesse falar sobre o que viu.
Ninguém parecia saber do que acabo de contar e que encontrei em Baillet,38
já que nenhuma alma havia protestado contra a destruição desse prédio.
Tudo desapareceu na nuvem de pó levantada pelas empresas de demolição.
Aqui, Descartes não teve a menor sorte. Não há em Paris nenhuma
estátua desse homem admirável – remediar isso receberia meu inteiro
consentimento. A ele foi concedida apenas uma rua bem ruim, se bem que
animada pelos brilhos da Politécnica39 e um pouco obscurecida pela sombra
de Verlaine, que ali faleceu. Por fim, seus ossos foram recolhidos do lado de
Saint-Germain-des-Prés, mas nunca soube de alguém que quisesse levá-los
para as criptas do Panteão.
Sendo, no entanto, o homem prudente que era e o artista incomparável
no trabalho das matérias mais duras, soube construir para si mesmo um
túmulo, um desses bem invejáveis. Nele, depositou a estátua de seu espírito,
uma estátua tão nítida e verossímil que se pode jurar que ele vive, que
falamos com ele pessoalmente, que entre nós não existe de modo algum
trezentos anos e sim uma troca sempre possível, um intervalo que não é
maior do que aquele entre um espírito e outro espírito, ou entre um espírito
e si mesmo. Seu monumento é esse Discurso,40 quase incorruptível, como
tudo que se escreve com exatidão. Uma linguagem altiva e familiar, a que
não falta orgulho ou modéstia, nos transmite as suas vontades essenciais e
as atitudes comuns a todos os homens de reflexão de maneira tão sensível e
admirável que o resultado não é tanto uma obra-prima de semelhança e
verossimilhança, mas uma presença real, que até mesmo se alimenta da
nossa.
Não há dificuldades, imagens, aparências escolásticas, não há nada nesse
texto que não seja dito no tom interior mais simples e mais humano, só que
um pouco mais preciso do que a natureza. O autor que acreditamos ouvir
parece ter-se limitado a depurar e a retraçar de perto, por vezes, a articular
nitidamente, a voz imediata que guardava de suas lembranças e esperanças.
Ele assumiu essa voz que ensina, primeiramente, a nós mesmos todos os
nossos pensamentos e que se levanta em silêncio de nossa espera dirigida.
Uma palavra íntima tão sem efeitos ou estratagemas, que é nossa
propriedade mais próxima e a mais certa, não obstante nos pertencendo de
modo tão íntimo, não pode não ser universal.
Era um propósito de Descartes nos fazer ouvir a si mesmo, ou seja, nos
inspirar por esse seu monólogo necessário e nos fazer pronunciar os seus
próprios votos. Ele queria que encontrássemos em nós o que ele havia
encontrado em si.
Esta é a intenção original. Todo fundador de uma ordem do espírito deve
se preocupar com tornar-se irresistível. Uns nos envolvem com seus
charmes; outros nos rebaixam pelo rigor; Descartes nos comunica a sua
vida para que a sequência de suas impressões e de seus atos nos introduza
em pensamentos pelo mesmo caminho natural dos acontecimentos e
devaneios que ele percorreu desde a sua juventude e que, não obstante,
semelhantes a outros caminhos, nos levam a pontos de vista inteiramente
distintos.
Tornando-nos assim semelhantes a ele por meio de seus começos e
facilmente interessados pela sua carreira, ele nos seduz sem dificuldades
para as rebeliões de sua adolescência, pois nos fala da nossa, de nossas
resistências e de nossos julgamentos altivos. Completados os estudos,
depreciados e reconhecidos quase como vãos (e de fato os estudos são
quase vãos para aquele que não sabe se servir daquilo que ele mesmo não
inventou), ele roda aqui e ali pela Europa, lavando o espírito nas suas
viagens e nos movimentos da guerra em curso nesses tempos, a cuja
fantasia ele parece misturar-se. Ele dispensa os livros que nos exércitos só
atrapalham. Exercita-se na matemática, uma arte que nada mais exige do
que uma caneta, podendo ser desenvolvida em qualquer lugar, a qualquer
hora e enquanto estiver em nossas cabeças.
Que luxo de liberdade, que modo elegante e voluptuoso de ser si mesmo,
quando o homem pode se dissipar assim nas coisas sem deixar de se
confirmar nas ideias!...
O acidental, o superficial e suas vivas variações estimulam, iluminam o
que há de mais profundo e constante numa pessoa verdadeiramente feita
para os altos destinos do espírito. Na independência da alma, desfruta-se do
prazer de existir para ver com clareza. Tudo serve à consciência organizada.
Tudo a desprende, tudo a recompõe e ela nada recusa. Quanto mais absorve
ou sofre as relações, mais fica integrada consigo mesma e mais se
desprende e se solta. Um espírito inteiramente ligado seria bom, mas, nesse
extremo, um espírito infinitamente livre, já que a liberdade não passa de um
uso do possível e a essência do espírito é um desejo de coincidir com o seu
todo.
Descartes se fecha no todo de sua atenção; e usa do possível que nele se
encontra até mesmo para se pôr a duvidar de sua existência no meio da
narrativa de sua vida!... Aquele que corria o mundo e guerreava como
amador, de repente se volta para o âmbito de sua presença e de sua carne,
relativizando todo o sistema de suas referências e de nossas certezas
comuns; ele se faz outro, como aquele que dorme e por conta de um
movimento súbito sai de seu sonho, altera e transcende esse sonho,
transformando-o num sonho qualificado como tal. Ele opõe o ser ao
homem.
Mas sentir o ser no homem e distingui-los tão nitidamente e, mediante
uma espécie de procedimento extraordinário, buscar uma certeza de grau
superior, esses são os primeiros sinais de uma filosofia...
Talvez eu deva me deter nessa palavra, pois do contrário correria o risco
de não mais saber do que estou falando. Assim, ainda haveria tempo de não
me expor às dificuldades que não são mais as que escolhi e das quais as
mais duvidosas são as que para mim permanecem invisíveis. Não fico à
vontade na filosofia. Sabe-se muito bem que não se pode evitá-la e que dela
não se pode abrir mão sem pagar algum preço. Como dela nos proteger se
ela mesma não sabe o que é? É quase sem sentido dizer, como se faz com
frequência, que cada um é filósofo sem o saber, já que o homem que a ela
se entrega cientemente não sabe explicar exatamente o que faz.
Mas eu, eu me encontro na filosofia como um bárbaro em Atenas que se
sabe cercado de objetos bem preciosos e que tudo que vê é respeitável; mas
que no meio disso tudo fica perturbado, sente tédio, constrangimento e uma
vaga veneração mesclada de receio supersticioso, atravessado por desejos
brutais de romper com tudo ou de pôr fogo em tantas maravilhas
misteriosas que na alma ele não se sente de modo algum o modelo. Como
suportar que existam essas maravilhas, e ainda tão famosas, quando a sua
ideia nunca surgiu em nós? Comparo-me assim a esses desafortunados que,
não obstante terem bons ouvidos, capazes de perceber todos os sons, os
encadeamentos, as misturas de sons, as suas figuras e as suas criações,
sentem que os seus nós delicados e os seus infinitos, a sua música enfim
lhes escapa. A música dos filósofos é para mim quase insensível.
Se me aventuro, portanto, a falar de Descartes é sem dúvida porque o
separo dos filósofos.
34 N.T.: A Ordem dos Minimos, em latim Ordo Minimorum, isto é, “ordem dos menores” é uma
ordem de eremitas mendicantes, fundada em 1436 por São Francisco de Paula (1416-1507), oriundo
da Calábria. Valéry refere-se ao antigo Convento dessa ordem na Place Royale, transformado em
caserna. (N. T).
35 Claude Picot foi um grande amigo e colaborador de Descartes, tradutor para o francês dos
Princípios, considerado por Baillet, o célebre biógrafo de Descartes, a pessoa que desfrutava de
maior intimidade com o filósofo. Presume-se que seja Picot o inspirador de um dos personagens do
diálogo Recherche de la vérité par la lumière naturelle. (N.T.)
36 Princípios de filosofia pode ser considerada a obra em que Descartes apresenta a sua física e
metafísica. Escrita em latim, foi publicada em 1664 e dedicada à princesa Elisabeth da Boêmia, com
quem Descartes estabeleceu uma longa e importante correspondência filosófica. (N.T.)
37 Valéry descreve aqui a insígnia heráldica gravada nas pedras dessa construção. (N.T.)
38 Cf. Adrien Baillet, La vie de monsieur Descartes, 1691. Disponível em:
<https://fr.wikisource.org/wiki/Livre:Baillet_-_La_Vie_de_monsieur_Des-
Cartes,_premi%C3%A8re_partie.djvu>. (N.T.)
39 Referência à Escola Politécnica de Paris. (N.T.)
40 Valéry refere-se ao Discurso do método, de Descartes. (N.T.)
DESCARTES41
52 Adrien Baillet, op. cit.. Livro excelente onde pude encontrar, como todo mundo, a maior parte dos
fatos biográficos aqui mencionados.
53 Valéry refere-se a Claude Mydorge (1585-1647), matemático e físico francês, autor de Usage de
l’un et l’autre astrolabe particulier et universel, escrito em francês, e de Prodromi catoptricorum et
dioptricorum sive Conicorum operis ad abdita radii reflexi et refracti mysteria praevij et facem
praeferentis, 1639. (N.T.).
54 Literalmente golpes de estado. (N.T.)
55 Proteu era uma divindade grega, filho dos Titãs Oceano e Tétis, o deus da contínua mutação. Ao
falar do Proteu interior, Valéry refere-se à contínua metamorfose interior. (N.T.)
56 Essa passagem encontra-se numa carta de Descartes a Mersenne, escrita no fim de dezembro de
1637. (N.T.)
57 René Descartes, Regulae ad Directionem Ingenii, em português, Regras para a direção do
espírito, trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1989. (N.T.)
58 Valéry cria uma nova expressão, “internelle”, que traduzimos, também por um neologismo, como
”internal”. Em francês, internelle remete sonoramente a éternelle, eterno, mas vem de interne,
interna, interior. Em português, o ouvido nos leva para infernal, trazendo outras ressonâncias
semânticas.(N.T.)
59 Essa célebre frase cartesiana foi formulada primeiramente em francês no Discurso do método, “Je
pense donc je suis” e significa, literalmente, “penso, logo sou”. Foi depois traduzida para o latim
como “Ego cogito ergo sum”. Anos depois, nas réplicas ao segundo conjunto de objeções às
Meditações de filosofia primeira, Descartes escreve “ego cogito,ergo sum sive existo”, “penso logo
sou ou existo” (cf. René Descartes, Oeuvres, Adam-Tannery (Ed.), v. VII, p. 140, linha 21). Para
Descartes, ser e existir se equivalem. (N.T.)
60 A expressão simplici mentis intuitu encontra-se, dentre outros lugares, nas mesmas réplicas
citadas na nota anterior. A passagem diz: “E quando alguém diz: eu penso, logo eu sou, ou eu existo,
a sua existência não se conclui pela força de algum silogismo, mas como uma coisa conhecida por si;
ele a vê por uma simples inspeção do espírito (simplici mentis intuitu). cf. René Descartes, Oeuvres,
Adam-Tannery (Ed.), v. VII, p. 140, linha 21.(N.T.)
61 René Descartes, As meditações, Coleção Os Pensadores. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior,
São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 104.
62 Ibid., p. 96.
63 Ibid., p. 97.
64 Descartes define corpo como extensão; Valéry distigue o corpo da extensão e acha que Descartes
separa a alma de ambos. (N.T.)
65 Retiramos a última parte de ”Uma visão de Descartes” por repetir literalmente a parte do texto de
”Fragmento de um Descartes” que começa na frase “Mas uma ideia capital foi introduzida na ciência,
a ideia de conservação” e segue até concluir com “a ideia que ele nos apresenta de um magnífico e
memorável Eu (Moi)”. (N.T.)
SEGUNDA VISÃO DE DESCARTES66
67 Publicado primeiro na Revue de France, 1 mar. 1926 e depois sob o título Retour de Hollande,
Descartes et Rembrandt, pela editora Stols, Maestricht, em 1926, e mais uma vez em 1933 com
gravuras de Pierre Guastalla. Em 1946 foi republicado junto com “Fragmento de um Descartes” com
gravuras de J. E. Bersier.
U ma viagem é uma operação que faz corresponder cidades às horas.
Mas, para mim, o mais bonito da viagem e o mais filosófico está
nos intervalos e nas pausas.
Não sei se existem sinceros amantes da estrada de ferro, adeptos do trem
pelo trem, e só vejo as crianças saberem desfrutar como convém da
algazarra e da força, da eternidade e das surpresas da rota. As crianças são
de fato os grandes mestres do prazer absoluto. Quanto a mim, tão logo o
bloco de vagões começa a sacudir, eu me embalo numa metafísica ingênua
e misturada de mitos.
Deixo a Holanda... De repente, tenho a impressão de que o tempo
começa; o tempo se treina;68 o trem se faz modelo do tempo, do qual ele
toma o rigor e assume os poderes. Ele devora todas as coisas visíveis, agita
todas as coisas mentais, com sua massa, ataca brutalmente a figura do
mundo, envia ao diabo matos, casas, províncias; abate as árvores, rompe os
arcos, gasta os postes, corta rudemente todas as linhas que atravessa, canais,
sulcos, caminhos; muda as pontes em tempestades, as vacas em projéteis e a
estrutura pedregosa de sua via em tapete de trajetórias...
Mesmo as ideias, sempre surpresas, treinadas e esticadas pela torrente de
visões modificam-se à maneira de um som cuja origem voa e se afasta.
Acontece facilmente de eu não me sentir mais em parte alguma e de me
ver como que reduzido ao ser abstrato capaz de dizer que pensa, raciocina,
dispõe, funciona e ordena identicamente em todos os lugares; que vive, e
nada de essencial se alterou; que, portanto, não muda absolutamente de
lugar. Para ter o sentimento de movimento, não deveria esse puro lógico
que nos habita observar então as modificações mais extraordinárias, as
desordens mais inconcebíveis e, sem dúvida, incompatíveis com a razão ou
com a vida?
É um grande milagre que dentro de nós existam tantos mecanismos
delicados, praticamente insensíveis para o transporte.
Mas o ser total, a alma real do viajante, para quem a ausência vai acabar,
já que cada volta das rodas o aproxima de sua casa e uma argola de sua vida
vai se fechar é, ao contrário, a presa dos estranhos efeitos de sua transição.
O que ela abandona, o que experiencia no instante, o que prevê e diz
antecipadamente trava dentro dela um combate, propondo e trocando
lugares dentro de si. Essa alma oscila entre as suas épocas e etapas que a
precisão da partida bem marcada e a exatidão provável da chegada separam
tão nitidamente; ela é casualmente acometida de arrependimento, de
esperança e de temores, perdendo-os e reencontrando-os em suas sensações.
Seu passado, seu presente e seu futuro próximo soam como três sinos bem
distintos cujas combinações possíveis curiosamente se realizam, respondem
uns aos outros, se misturam e se compõem. Tocando e retomando sem fim
todos os temas da existência, um carrilhão de eventos – concluídos,
esperados, atuais, – acompanha o corpo viajante, habita uma cabeça que se
abandona, o diverte, o inquieta, empresta os ritmos da rota, orquestra os
sonhos, desaloja, adormece, desperta o seu homem...
A noite cai. Fogos terrestres nascem e morrem – postes repentinos, sinais
agudos, brilhos súbitos de vias desconhecidas tocadas de leve... Entre dois
clarões, meus olhos incertos na escuridão que embaça os vidros cessam,
pouco a pouco, de ver um campo já morto e simplificado pela noite,
esvaindo-se indefinidamente rumo a lugares e dias passados.
Ao final, fiquei com a impressão de nada mais perceber a não ser a água
em todos os estados: água neve, água gelo, água viva, água poça, olhando a
água nuvem densa, água vapor, cujas volutas liberadas se destorcem,
deslocam, retardam e dissipam atrás de nós. A água multiforme compõe
praticamente só para si mesma, a substância de um lugar turvo e variável
cuja claridade suprema do crepúsculo ainda interpreta a precipitação de
seus brancos e cinza pálidos.
As lâmpadas se acendem, e de repente, sobre o vidro, pinta-se um
fragmento de rosto. Uma máscara se interpõe, retrato de homem que
permanece luminoso e constante na superfície dessa fuga de praias
sombrias e nevadas.
Apareço para mim mesmo imóvel e colorido com matizes quentes sob o
vidro; e ao me aproximar um pouco desse eu (moi), fragmento de sombras
me olhando, eu o eclipso, me anulo e me torno caos noturno.
Filósofos de todas as épocas saborearam essas mínimas experiências.
Um prestígio fortuito, algum efeito simples e admirável de dióptrica ou
acústica, um incidente singular de suas percepções os induzem a devaneios
por eles livremente organizados numa meditação teórica. Da iluminação de
uma gruta e das silhuetas que engendra, Platão tirou sem muito esforço
consequências admiráveis e talvez funestas. Sua câmara escura natural teve
para nós o valor de uma das mais célebres transmutações de valores.
Mas eu, um não filósofo, não soube desenvolver ao excesso – pois
excesso é preciso – todos os pensamentos que essa estação de minha face
iluminada sobre a noite em movimento e interrompida por bruscos
fantasmas poderia sugerir.
Venho assim de Amsterdam onde Descartes e Rembrandt coexistiram.
As suas casas podem ser vistas.69 É difícil não imaginá-los como num
sonho. Colocamo-nos assim ingenuamente em seus personagens, à beira
dos canais, sobre as passarelas do rio Amstel, ou sobre qualquer ponte
animada sobre esse labirinto de águas todo recoberto de barcas, regatas,
embarcações rasas sobrecarregadas, de tamancos envernizados com bojos
inchados, com popas bochechudas, trazendo junco, móvel e tonel. As horas
soam com bastante tristeza no ar do céu pálido. Os homens fazem comércio
entre os rios, sobre as pontes estreitas. O observador olha o viver e vive.
Descartes tinha uma grande predileção por essa cidade “onde não havia
ninguém a não ser ele que não trabalhasse no comércio e onde ele poderia
passar toda a sua vida sem que ninguém o visse e passear todos os dias no
meio da confusão de muita gente”.
Não sei se ele entendia a língua dessa gente. Espero até que não. O que
pode haver de mais favorável ao recuo pensativo para dentro de si mesmo,
para a delimitação bem nítida de um mundo exterior, determinado e
separado do outro com exatidão, o que pode ser um melhor isolante do que
a ignorância das convenções que reinam e coordenam o espetáculo da vida
ao nosso redor? Na profissão de filósofo, é essencial não compreender. É
preciso que eles sejam como quem vem de algum astro, que se façam
eternos estranhos. Eles devem se exercer em espantar-se com as coisas mais
comuns. Penetrem no templo de uma religião desconhecida, considerem um
texto etrusco, sentem-se perto de jogadores de um jogo que jamais
aprenderam e deleitem-se com as hipóteses de vocês. Por toda parte, o
filósofo é um pouco assim.
Mas não possuir de jeito algum a chave, não conhecer as regras, os
signos, as correspondências, não poder adivinhar o que se vê não é reduzir o
que se vê ao que se vê, à figura e ao movimento? – Nada de mais
cartesiano, eu penso? – Sobretudo, essa incompreensão não seria uma
grande oportunidade para nada negligenciar, para nada omitir, já que nem
mesmo se sabe o que negligenciar, o que reter, e que tudo o que se observa
tem valor; que se deve portanto ou bem tudo noticiar ou tudo rejeitar?
Assim, no meio do trânsito e dos holandeses em ação, Descartes isolado
e não insensível, contemplava o seu comércio e a sua vida como o faria com
qualquer máquina inteiramente desconhecida. Descartes ausente e presente,
Descartes abstraído de seus discursos, de seus interesses, de seus gostos, de
suas paixões e de seus costumes, seguro de com eles não misturar nada de
seu, localizava-se na massa viva da sua nação estrangeira como um
instrumento de medida fincado em algum meio e, de vez em quando, alçado
para se ler o que está marcando. Alma bem dividida, gênio mesmo da
distinção e da ordem, a sequência de seus pensamentos podia se cumprir
facilmente, independente da agitação dos vivos ao seu redor. Dizia que,
para ele, toda a azáfama não passava do ruído de um regato. Ele não era
mesmo um homem das multidões...
O homem das multidões é poeta, narrador ou qualquer um desses
embriagados de espírito.
Ele se afoga na quantidade de almas ambulantes; embriaga-se de
absorver um número inesgotável de fisionomias e olhares, e de sentir, no fio
da rua fluida, a vertigem de uma infinidade de indivíduos passando... Ele
sente e confunde os milhões de passos e ritmos da caminhada; seus olhos
encontram e perdem milhares de olhos e ele sobe o rio das visões, das
direções e das vontades separadas.
Em certas horas, o movimento das grandes cidades gera o maravilhoso
mal-estar da multiplicação dos sozinhos. Com uma espécie de horror e
sentimento de pânico, constata-se ingenuamente que os singulares são
inumeráveis. Tantas pessoas particulares; cada uma de capital importância
para si, nula ou negligenciável ao olhar de quase todas as outras e todas
juntas dando a cada uma a vaga impressão de um cemitério em marcha ou
de um desfile de fantasmas, pois o fluxo das fisionomias, a sensação geral
do barulho dos propósitos e dos passos, o escoamento indiferente das
próprias dessemelhanças nos impõem a ideia de uma soma indistinta de
muitos destinos distintos, inspirando-nos o mesmo sentimento de
desprendimento, às vezes tépido, alegre outras vezes, que nos acomete no
meio de um povo de túmulos.
Nada tira da vida seu ar de vida, mas nada retira da morte seu prestígio
de morte, como o poderoso sentimento da quantidade de vivos ou de
mortos. O efeito do número e da repetição nos faz sentir a lei e a máquina e
quase o seu ridículo; ora massacram o espírito, ora lhe fazem inventar para
a sua defesa aquilo de que precisa para se acreditar único e mestre de si.
Poder-se-ia dizer enfim que, no homem das multidões, o pensamento se
compõe com o movimento e a multidão de imagens treina, de alguma
maneira, a própria faculdade que as percebe.
Completamente diferente é um Descartes.
Sonhando mil coisas sobre ele, eu me divertia vendo da minha janela os
passantes trotarem na neve toda fresca, os marinheiros bem encapotados
fazerem manobras sobre a água branca e negra, metade congelada, metade
derretida, deslocarem com incrível destreza as suas barcas pesadas e longas,
tão pressionadas e enganchadas umas nas outras que era preciso agir como
num jogo de damas, operando por substituições refletidas para criar diante
de si o lugar onde as colocar e encontrar um espaço para o casco que
desalojavam e então esperar, forçar, governar para conseguir, por fim, entrar
em algum túnel estreito e sombrio onde desaparecem ao barulho surdo do
motor, o homem no leme abaixando a cabeça no momento preciso que vai
colidir com o topo de uma arcada. As inúmeras gaivotas dissipavam a
minha atenção, alegrando-a e renovando-a no espaço. Seus corpos lisos e
puros, bem dispostos contra o vento, deslizavam, fugiam por descidas
invisíveis, tocavam de leve o terraço, viravam, interrompiam o voo e se
abatiam sobre grandes blocos de gelo, onde bichos brancos pousados
disputavam os lixos trêmulos e os horríveis restos de peixe jogados na água.
Entre dois pássaros momentâneos, eu voltava ao meu primeiro
pensamento. Retomando distraidamente um devaneio quase cartesiano,
imaginava ao meu modo as sensações desse grande homem. À vontade,
arranjava e concordava o que via com uma vaga ideia de sua filosofia...
Espero que a sombra ilustre não tenha se irritado! Não sei amar ninguém
sem torná-lo presente ao espírito a ponto de ele se tornar bem diferente de si
mesmo.
Sem dúvida, espero também que o pensamento de Descartes em vida não
fosse de jeito algum parecido com aquele que colocou nos seus livros. Os
livros sempre nos enganam, às vezes mais, às vezes menos. O que eles
calam acerca do escritor, o que eles lhe acrescentam, confere bastante
liberdade a quem quiser imaginar como o seu autor pode ter sido.
Olhava o que me dava prazer em pensar que meu Descartes teria olhado
em Amsterdam e, dentre tantos objetos e coisas sobre os quais o seu olhar
provavelmente deve ter se fixado, não via nada mais propício para descolá-
lo o mais rapidamente para o seu sistema usual de pensamentos do que todo
o aparato de comércio que recobria as ribanceiras e os cais com seus tonéis,
caixotes, amontoados, engenhos.
Redes de pesca, roldanas, máquinas simples e todas essas manobras de
manutenção necessárias para transportar a matéria das trocas da margem às
rampas e das rampas à margem, são objetos de contemplação encantadores
para tal amante de mecânica e de coisas quantitativas. Nessas margens
industriosas, ele estava totalmente cercado de oportunidades matemáticas e
solicitado a todo instante por uma multidão de pequenos problemas que,
numa mente assim tão bem feita, corriam o risco de virar grandes. Basta
pouca coisa – um tonel que se sacode, um monte de grãos acumulados, um
cabo partido batendo na sua presilha e até uma maçã que cai – para lançar
um homem de espírito na dinâmica universal. O homem para, mas o
espírito continua a sua rota singular rumo a não sei que ponto de onde ele
deve retornar a si por silogismos...
Não há lugar mais favorável, meio mais nutriente para a meditação do
grande propósito de nosso Richelieu intelectual do que esse teatro dos
negócios no qual a medida reina soberana. Num porto, tudo é
manifestamente, aberta e brutalmente métrico. Quase toda atividade aí
observada vive de contar, pesar, arranjar, arrimar; o número e a ordem
comandam visivelmente todos os atos e nada se passa sem que seja avaliado
em toneladas, libras, alqueires e nas mais diversas medidas...
O Método não seria, afinal de contas, o Mapa de um império do Número
onde vemos atualizadas todas as ambições e também todo o poder? O
mensurável conquistou quase toda a ciência, descreditando todas as partes
em que não consegue se introduzir. Quase toda a prática vê-se a ele
submetida. A vida, já pela metade posta a serviço, circunscrita, alinhada ou
submetida, dificilmente consegue se defender contra os horários, as
estatísticas, as medições e as precisões quantitativas, cujo desenvolvimento
reduz cada vez mais a diversidade, diminuindo a incerteza, melhorando o
funcionamento do todo e tornando o curso mais seguro, mais longo, mais
maquinal.
Lá perguntei se alguém sabia sobre as circunstâncias em que Hals e
Descartes se encontraram. Mas parece que não existe nenhum documento
sobre esse encontro tão precioso. Seria bom saber quem levou o pintor ao
filósofo ou o filósofo ao pintor, quantos encontros e quanto tempo, se
Descartes posava bem e que discussões tiveram e, mesmo, se o modelo
considerava a pintura uma veleidade... Ignoro também se esses dois homens
puderam se entender sem um intérprete.
Naquela época havia em Amsterdã um pintor de pequenos filósofos dos
quais dois ou três admiráveis exemplares encontram-se no Louvre. Eles
fazem pensar mais em Espinosa do que em Descartes. Eles não estão de
maneira alguma se divertindo ou perambulando no Amstel ou no Dam, com
seu espírito às vezes intus, às vezes extra, passando de um mundo a outro e
de um sistema do universo a um incidente na rua ou no canal.
Esses pequenos filósofos de Rembrandt são filósofos enclausurados.
Eles ainda estão amadurecendo na alcova aquecida.70 Um raio de sol
trancado junto com eles ilumina a sua câmara de pedra ou, mais
exatamente, cria uma concha de claridade na grandeza obscura de uma
câmara. A hélice de uma escada em espiral descendo pelas trevas e a
perspectiva de uma galeria deserta introduzem ou aumentam, sem sentir, a
impressão de considerar o interior de uma estranha concha habitada pelo
pequeno animal intelectual que secretou a substância luminosa. A ideia de
retrair-se em si mesmo, a ideia de profundidade, de um ser formando por si
mesmo a sua esfera de conhecimento, são sugeridas por essa disposição que
engendra de maneira vaga, mas irresistível, as analogias espirituais. A
distribuição desigual da luz, a forma da região iluminada, o domínio
limitado desse sol aprisionado por uma cela onde ele define e situa alguns
objetos, deixando outros confusamente misteriosos, fazem pressentir que a
atenção e a expectativa da ideia são os verdadeiros temas da composição. A
própria figura do pequeno ser pensante está admiravelmente situada em
relação à figura da luz.
Outra vez, sonhei longamente com essa arte sutil de dispor de um
elemento bem arbitrário para agir insidiosamente sobre o espectador
enquanto o seu olhar é atraído e fixado por objetos nitidamente definidos e
reconhecíveis. Enquanto a consciência reencontra e nomeia as coisas bem
definidas, os dados significativos do quadro, recebemos a ação surda e
como que lateral das manchas e zonas do claro-escuro. Para o intelecto,
essa geografia de sombra e luz é insignificante. Ela lhe parece informe
como são informes as imagens dos continentes e mares num mapa. Mas o
olho percebe o que o espírito não sabe definir, e o artista que se encontra no
segredo dessa percepção incompleta pode especular sobre ela, conferir ao
conjunto de luzes e sombras alguma figura que serve a algum propósito, em
suma, uma função escondida no efeito da obra. O mesmo quadro
comportaria assim duas composições simultâneas, uma dos corpos e objetos
representados e outra dos lugares da luz. Quando admirava anteriormente
certas telas de Rembrandt como modelos dessa ação indireta (que suas
pesquisas de água-fortista lhe fizeram, no meu entender, apreender e
analisar), eu não parava de imaginar os efeitos laterais que as harmonias
divididas de uma orquestra podem produzir... Wagner, como Rembrandt,
sabia ligar a alma do paciente a alguma parte brilhante e principal e,
enquanto a encadeava e exercitava nesse desenvolvimento todo-poderoso,
fazia nascer na sombra da escuta, nas regiões distraídas e indefesas da alma
sensitiva, acontecimentos longínquos e preparatórios – pressentimentos,
esperas, questões, enigmas, começos indefiníveis...
Isso é construir uma arte de múltiplas dimensões ou organizar de algum
modo os arredores e as profundezas das coisas explicitamente ditas.
Lembro-me de um tempo bem distante quando me inquietava sobre a
possibilidade de investigar de forma razoável efeitos análogos a esses na
literatura. Eu não me exercitava... Mas podia, sim, me permitir hipóteses.
Não é o momento de explicar por que via e meios eu pensava que a
experiência deveria ser tentada. Diria somente a sua condição essencial: o
artifício deve escapar ao leitor não prevenido e o efeito não deve revelar a
sua causa.
Eu assumia, talvez de maneira fácil demais (mas, na verdade, continuo
agora assumindo), que a arte de escrever contém grandes recursos virtuais,
riquezas de combinações e de composição pouco suspeitadas ou até
desconhecidas... Elas se escondem de nós pela noção que ainda temos do
mecanismo literário, noção curiosamente vaga e grosseira no meio da
precipitação generalizada. Descartes não passou de jeito nenhum perto
disso. Os antigos foram mais sutis e mais “científicos” do que somos nesses
assuntos. Ainda estamos na mitologia.
Costuma-se explicar, aliás muito bem, que uma arte cujo meio – a
palavra –está sempre em nossos lábios e nos serve continuamente para nos
comunicar conosco mesmos e com os outros, confunde-se tão fácil e
intimamente com a própria vida, mesmo lhe sendo difícil e até impossível
alcançar o desenvolvimento formal de suas forças. Acrescento que, na
deliciosa idade em que esses problemas imaginários me vinham visitar o
espírito, tinha a impressão de tais tentativas exigirem um imenso trabalho
prévio de análise e um esforço cruel de coordenação para executá-las. Nos
tempos em que os tempos não contavam, podia-se ver como simples
sonetos exigiam de seus autores muitos anos de empenho, de maturação
(com seus fervores, desesperos, retomadas e quase reconciliações), que
faziam das relações entre o poeta e os seus quatorze versos uma longa e
dramática história de amor. Creio que esses tempos já passaram e que
estamos na idade de ouro. Nunca vimos tantos frutos e não sei quantas
colheitas por ano.
Duvido, em suma, que a literatura consiga algum dia o seu Nicolas
Rameau71 e o seu Sebastian Bach... Se algum dia eles aparecerem, não
sintam inveja de seu destino. Eles terão vida dura.
O trem freia e para perto de Paris. Ele retoma docemente para o finale...
O trajeto é uma obra bem semelhante a qualquer sinfonia. A analogia
prossegue até na impaciência das pessoas ao colocarem os agasalhos, se
ajeitarem, se levantarem e ganharem os corredores.
68 Em francês a palavra train possui uma rica complexidade semântica. A palavra vem do provençal
trahi, do antigo traire que, por sua vez, deriva do latim trahere, no sentido de tirar, retirar, extrair. É
usado em várias locuções dentre as quais “en train de...” + o verbo no infinitivo, que exprime uma
forma de gerúndio, literalmente, “estar em vias de...” (dizer, andar etc.). Com a frase, “le temps se
met en train”, Valéry brinca com a equivalência entre o sentido de estar em vias de (être en train
de...) e o trem (train). Em francês há ainda o verbo s’entrainer, que significa treinar, exercitar-se.
Optei por traduzir o tempo se treina para deixar ecoar o “trem”. O sentido é sobretudo de que, no
trem, o tempo está em vias de ser tempo, treina para ser mais tempo ainda. (N.T.)
69 A casa de Descartes foi identificada graças aos trabalhos do Sr. Gustave Cohen, cujas pesquisas
enriqueceram e precisaram singularmente nosso conhecimento da história literária na França. (N.T.:
A essa nota de Valéry pode-se ainda acrescentar que Gustav Cohen foi professor de literatura
medieval na Sorbonne desde 1925, titular das cadeiras de literatura medieval e francesa em
Estrasburgo e em Amsterdam, onde, em 1933, funda a Casa Descartes, que se tornou mais tarde a
sede do ”Instituto Francês dos Países Baixos”.)
70 É notório que Descartes gostava de pensar no seu quarto e, mais especificamente, deitado na
cama. As narrativas não falam de chambre (quarto) nem de boudoir (camarim), como em relação ao
marquês de Sade, mas de poêle, que traduzi por alcova, lembrando que a poêle era sempre aquecida.
Poêle também significa frigideira. (N.T.)
71 Rameau, o compositor francês nascido em 1683 e falecido em 1764 chama-se na verdade Jean-
Philippe. (N.T.)
DISCURSO AOS CIRURGIÕES72
73 Depois desse discurso estar escrito, o acaso de uma leitura me fez encontrar a seguinte passagem
em Restif de la Bretonne: “a visão do sangue me fazia cair num desmaio, antes mesmo que o uso da
razão me propiciasse uma inteligência perfeita sobre o que dizíamos”. Restif de la Bretonne,
Monsieur Nicolas, v. XI, p. 194, Paris: Éditions Lisieux, 1883.
74 A formulação de Valéry é “tantôt je pense et tantôt je suis”. O advérbio tantôt, que aparece na
língua francesa no século XII, na forma aussitôt, significa “tão logo”. Com o tempo, recebeu também
o sentido de por vezes, às vezes, ora. Em A vida do espírito, Hannah Arendt discute essa fórmula de
Valéry, considerando-a tanto uma reformulação da dúvida cartesiana sobre a realidade do mundo
como expressão da solidão do filósofo, que Merleau-Ponty igualmente considera, ao dizer que
“apenas estamos realmente sós quando não o sabemos, é essa ignorância mesma que é o nosso estar-
só [o do filósofo]”. Hannah Arendt, A vida do espírito, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991, p.
149. A frase de Valéry poderia ser lida, porém, de outro modo, caso se entendesse o advérbio no
sentido de “tão logo”, dizendo, então: tão logo penso, tão logo sou. Guardamos, não obstante, a
forma convencional da expressão de Valéry, usada igualmente na tradução brasileira do referido texto
de Arendt. (N.T.)
75 As palavras cirurgia e cirurgião vêm do grego kheir, que significa “mão”, e de ergo, “obra”, daí
Valéry dizer literalmente man-obra, obra da mão. (N. T.).
76 Relé é a tradução do francês relais. Significa aqui um dispositivo que permite a uma energia
relativamente fraca desencadear uma energia mais forte. É um interruptor eletromecânico usado para
ampliar e retransmitir um sinal rádio-elétrico. É um termo originalmente de caça, que designa cães
colocados em certos pontos de um percurso para substituir os cães extenuados. (N.T.).
REFLEXÕES SIMPLES SOBRE O CORPO77
3. Mas também sei que aquilo que o sistema de meios quase inteiramente
animal continuamente busca ou elabora poderia ser fornecido por outros
meios diferentes dos seus próprios. Se o seu sangue recebesse já totalmente
preparadas as substâncias cuja elaboração exige a coordenação de tantos
mecanismos e um tal aparelho diretor, seria possível imaginar que mesmo
se esse material e seu funcionamento se tornassem inúteis e fossem
eliminados, ainda assim, a vida se sustentaria e isso de modo ainda mais
exato e seguro do que quando se sustenta pelos mecanismos naturais. Em
primeiro lugar, esse modo de conservação artificial economizaria todos os
órgãos de relação: os sentidos, os músculos, os instintos, a “psique”; e
também tudo que exige moedores, amolecedores, transportadores, filtros,
tubos, incineradores e radiadores, o trabalho em cadeia que se estimula tão
logo os sinais dos sentidos ordenem o seu movimento.
4. Todo organismo não tem outro uso a não ser a renovação de seu
sangue, – todo, exceto, talvez, a manutenção e o serviço do aparelho da
reprodução, função bem especial e como que lateral, muitas vezes abolida
sem dano vital.
Mas o sangue não tem outro uso a não ser transportar o que é necessário
para o seu funcionamento de volta para o aparelho que o regenera. O corpo
faz o sangue que faz o corpo que faz o sangue... Ademais, todos os atos
desse corpo são cíclicos com relação ao próprio corpo, já que todos se
decompõem em idas e vindas, em contrações e distensões, enquanto o
próprio sangue cumpre esses percursos cíclicos e faz continuamente a volta
ao seu mundo da carne, que constitui a vida.
78 Publicado pela primeira vez com o título ”Études” na Nouvelle Revue Française, nº 1, p. 354-361,
1 dez. 1909. Sobre a questão do sonho, cf. também, dentre outros textos de Valéry, “ABC três letras
extraídas de um alfabeto”, publicado em 1925 em Commerce e “Notes sur le rêve”, nos Cahiers de la
Pléiade, primavera de 1949, extraídos de um caderno intitulado Somnia.
A quém da vontade está o sonho, e a partir da soleira do sono nada
pode ser obtido. Todas as facilidades, todos os impedimentos
mudaram de lugar: as portas estão muradas e os muros são de
gaze. Há nomes conhecidos para pessoas desconhecidas. O que constituiria
o absurdo de tais coisas dorme. É absurdo caminhar com as mãos; mas é o
que se deve fazer, quando não se tem mais pernas e um deslocamento se
impõe.
Aqui, mistura íntima de verdadeiro e falso. É verdade que sufoco; é falso
que um leão me persiga. Algo de falso (que fiz uma ópera) recorda alguma
coisa de verdadeiro (não sei música). Mas não todo o verdadeiro.
Constrangimento. É o inextrincável ou o indivisível dessa mistura que
caracteriza o sonho.
No sonho, ajo sem querer; quero sem poder; sei sem jamais ter visto,
antes de ter visto; vejo sem prever.
O estranho não é que as funções estejam confusas, mas que entrem em
jogo nesse estado.
O falso ou arbitrário é função natural apenas do pensamento. A noção de
verdadeiro, de real, implica uma reduplicação. Para pensar com alguma
utilidade, é preciso, ao mesmo tempo, confundir a imagem com seu objeto
e, no entanto, estar sempre pronto (vigilare) para reconhecer que essa
identidade aparente entre coisas bem dessemelhantes não passa de um meio
provisório, de um uso do inacabado. É por confundi-las que posso pensar
em agir, mas é também por não confundi-las que posso agir. O real é aquilo
de onde não se pode despertar, de onde nenhum movimento pode me retirar,
mas que todo movimento reforça, reproduz, regenera. O não real, ao
contrário, nasce proporcionalmente à imobilização parcial. (Observe que a
atenção e o sono não estão muito distantes um do outro). O fixo engendra o
falso. Não falta atenção quando ela excede determinado ponto.
No sonho, tudo me é igualmente imposto. Na vigília, distingo os graus
de necessidade e estabilidade.
Sonho com um frasco de perfume numa embalagem violeta: não sei
quem começou. Foi a palavra violeta ou o colorido? Há simetria desses
membros que se substituem. Um não é mais real do que o outro. Se olho
(acordado) para esse papel de parede com flores, não vejo apenas um
conjunto de diagonais paralelas no lugar de uma sementeira isótropa de
rosas, mas literalmente desperto dessa figura escolhida, observando, com
ajuda dos mesmos elementos, que há no campo outras figuras igualmente
possíveis.
Cada uma dessas figuras é comparável a um sonho; cada uma é um
sistema completo e fechado, suficiente para recobrir inteiramente ou
mascarar a multiplicidade real. A visão de um desses sistemas exclui a dos
outros.
Num meio tensionado, os movimentos ondulatórios se cruzam sem se
misturar. No homem acordado, de algum modo elevado ao tom do real, há,
igualmente, independência e não composição de excitações coexistentes.
No sonho, há uma composição automática de tudo, nenhuma reserva. Se
penso alguma coisa de A, esse julgamento persegue A como se fosse algo
estranho para A. Um julgamento não segue a impressão para compatibilizá-
la com um sistema límpido e uniforme que assegura e define a minha
realidade, a minha ordem. Esse julgamento sucede, no entanto, a minha
impressão, anulando-a inteiramente ou bem a modificando, em vez de
consolidá-la. Pensamos como nos debatemos.
Sem sentir, esquecer o que se olha. E, ao pensar nele [no que se olha],
esquecê-lo por uma transformação natural, contínua, invisível, em plena
luz, imóvel, local, imperceptível... como um pedaço de gelo escapole da
mão de quem o segura.
E inversamente:
Reencontrar a coisa esquecida olhando o esquecimento.
Comigo acontece muitas vezes de, ao esquecer alguma coisa precisa,
colocar-me em observação a fim de apreender este estado e esta lacuna.
Quero me ver esquecendo, sabendo que esqueci, e buscando.
Seria talvez um método opor a toda falta mental seu estudo imediato pela
consciência?
Assim (ou ao contrário?), por instantes, a própria dor empalidece quando
a olhamos face a face, caso seja possível.
Esqueço que deveria sair essa noite. Sonho com minhas pantufas. O
começo dessa ação me faz pensar no bem-estar que vai se seguir, e esse
gosto prévio me leva à satisfação com minha noite íntima. Lá, nesse lugar
espiritual de um tempo futuro, já se encontra alguma coisa: o lugar para
onde eu deveria ir desperta com seus signos obrigatórios, e o lugar mantido
recusa receber minha noite tranquila. Lembro-me da injunção como
consequência de tê-la esquecido, por tê-la esquecido com demasiada
precisão.
Vou adormecer, mas um fio ainda me prende a essa força límpida pela
qual eu poderia reciprocamente prendê-la: um fio, uma sensação
sustentando-se ainda no meu todo e que pode se tornar um caminho tanto
para a vigília como para o sono.
Uma vez adormecido, não posso mais despertar voluntariamente, não
posso mais ver o despertar como uma meta. Perdi o vigor de olhar qualquer
coisa como um sonho.
É preciso esperar a fissura do dia, o respiradouro que abrirá todo o meu
espaço, a haste condutora que sustenta o estado onde os esforços encontram
as coisas, onde a sensação determina um ponto comum entre duas visões.
Ela é um ponto duplo que pertence tanto a um objeto como ao meu corpo; a
uma coisa, mas também ao nó de minhas funções.
No sonho, as operações não se amontoam, não são percebidas como
fatores independentes. Há sequências, não consequências. Não há metas,
apenas o sentimento de uma meta. Nenhum objeto de pensamento se forma
pela reunião manifesta de dados independentes, de maneira que sua
existência se deve a uma diferença de “realidade”, a uma máquina finita. Na
vigília, reconhecer A é um fenômeno que depende de A, embora no sonho
eu muitas vezes reconheça A no objeto B. O reconhecimento não resulta
mais de um choque atual, mas é a continuação mesma do sonho, a título de
um objeto qualquer nele compreendido.
O espírito do sonhador assemelha-se a um sistema sobre o qual as forças
exteriores se anulam ou não agem e cujos movimentos interiores não podem
acarretar um deslocamento do centro nem uma rotação.
Não seria possível avançar se a resistência do solo e a fricção sobre ele
chegassem a anular a força que tende a manter imóvel o centro de
gravidade, quando a primeira perna se afasta do corpo. Mas, quando a perna
de trás fica dormente, a pressão sobre o solo não desperta a rigidez ou
tensão dos músculos e a força não se anula, porque a tensão não é
provocada pelo sentimento de contato. Sente-se o solo como que à
distância, como num sonho, sem poder responder.
E quando todo o ser adormece, isso ocorre porque a mudança ou a
modificação impressas não conseguem aguentar uma mudança ou
deslocamento relativos, não por faltarem forças exteriores, mas porque o
instrumento de sua aplicação se vê momentaneamente abolido.
O sonhador reage com visões e movimentos que não podem mudar a
causa da impressão. Não podendo parar a impressão com uma imagem
parcial fixa, nem opor tal imagem (verdadeira) a outra (falsa), nem a
memória à atual etc., ele é como alguém que desliza por uma superfície
polida sem poder isolar uma perna fixando-a no exterior.
Mas o sonhador não sabe disso. Ele apreende sua própria impotência
como efeito de uma força exterior; nunca consegue considerar finita a causa
de suas impressões, pois a procura nas visões provocadas pela impressão e a
encontra de forma indefinida, forjando o que poderia produzi-la, em lugar
de reproduzir o que a produziu. Acredita ver como acredita deslocar-se.
Mas sentimentos, emoções, espetáculos, causas aparentes, simulacros de
coisas separadas alteram-se reciprocamente e constituem um mesmo
sistema, análogo a um sistema de forças “interiores”. O esforço que deveria
produzir uma mudança definida permanece sempre em vão porque, em
consequência do próprio esforço, uma mudança inversa, uma espécie de
recuo, me desloca para o estado inicial.
Acordo de um sonho e o objeto que eu seria, um cordame, vira meu
outro braço num outro mundo. Permanecendo a sensação de estricção, a
corda que eu seria se anima. Girei em torno de um ponto fixo. A mesma
sensação é como que aclarada ao se dividir em várias. A mesma pedra
adentra duas construções sucessivas. O mesmo pássaro caminha até a beira
de um telhado e de lá inicia o voo.
Subitamente, dou-me conta de que é preciso traduzir essa sensação de
maneira inteiramente diversa: é o momento quando ela não pode mais
pertencer a tal sistema de acontecimentos, a tal mundo, que então vira
sonho e passado desordenado.
O sonho nunca realiza esse finito admirável que a percepção alcança na
vigília e na luz.
Em tal sonho, há um personagem. No entanto, não o vejo claramente.
Pois, se o visse com nitidez, tudo logo se modificaria e, em consequência,
ele também. Há uma conversa, mas difusa. Sei muito bem sobre o que
falamos, escuto certas palavras e, no entanto, a sequência me escapa,
nenhum detalhe, e essas palavras não fazem sentido: (O Mellus do
Melluss??). Mas nada está faltando. Tudo se passa como se a conversa fosse
real. A sua inconsistência não a interrompe. Não é nela que está o motor.
No sonho, o pensamento não se distingue do viver nem se atrasa em
relação a ele. Adere ao viver – adere inteiramente à simplicidade do viver, à
flutuação do ser sobre as fisionomias e as imagens do conhecer.79
79 Em francês conhecer é connaître que, literalmente, significa co-naître, conascer, nascer junto.
(N.T.)
NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA
P aul Valéry, poeta, ensaísta, crítico de arte, pensador, nasceu em
Sète, na França, em 1871, e morreu em 20 de julho de 1945, em
Paris. Fez seus estudos em Montpellier, onde se formou em Direito.
Instalou-se em Paris em 1894, onde viveu um longo período de silêncio
poético até que, em 1917, sob influência de André Gide, volta a escrever e
publica o poema “A jovem parca”, que o tornou imediatamente célebre. A
este logo seguiram “O cemitério marinho” (1920) e “Charmes” (1922), que
o consagraram como um dos grandes poetas franceses. Profundamente
marcado por Stéphane Mallarmé, assume a reflexão sobre a linguagem, a
forma, o sentido e a inspiração poéticas como meio de conhecimento do
mundo. Sua obra está nitidamente marcada pela elaboração de uma poética
do pensamento, que pode ser acompanhada ao longo de seus Cadernos
[Cahiers], escritos entre 1894 e a sua morte em 1945. Depois da Primeira
Guerra Mundial, já muito célebre, Valéry faz inúmeras viagens e assume
diferentes funções dentre as quais a de membro da Academia Francesa em
1925 e professor de poética no Collège de France. Paul Valéry influenciou
várias gerações de artistas, poetas e filósofos, como Rainer Maria Rilke, T.
S. Eliot e James Joyce. Suas reflexões sobre o mundo contemporâneo, a
crise do espírito e a relação entre filosofia, ciência e técnica marcaram
vários pensadores contemporâneos como Jacques Derrida. Seus escritos
sobre a relação entre arte e pensamento foram decisivos para Maurice
Merleau-Ponty e para a elaboração de inúmeras propostas dos ciclos
Artepensamento organizados no Brasil pelo filósofo Adauto Novaes.
Bibliografia de Paul Valéry
Em francês
Alphabet. Paris: Le Livre de Poche- Classique, 1999.
Cahiers, I-XXIX, fac-símile. Paris: CNRS, 1957-1961.
Cartesius redivivus, em Cahier Paul Valéry, nº 4. Paris: Gallimard, 1986.
Correspondance avec Fourment, 1877-1933. Paris: Gallimard, 1957.
Correspondance avec Gide, 1840-1942. Paris: Gallimard, 1955.
Oeuvres I e II. Paris: Bibliothèque de la Pléiade; Gallimard, 1957, 1960.
Les Principes d’an-archie pure et apliquée. Paris: Gallimard, 1984.
Sur Nietzsche. Lettres et notes. Paris: La Coopérative, 2017.
Vues. Paris: La Table Ronde, 1948.
Em português
O pensamento vivo de Descartes, trad. Maria de Lourdes Teixeira. São
Paulo: Martins Fontes, 1952.
Cemitério marinho, trad. Jorge Wanderley. São Paulo: Max Limonad, 1984.
O senhor Teste, trad. Anibal Fernandes. Lisboa: Relógio d’Água, 1985.
A alma e a dança – E outros diálogos, trad. Marcelo Coelho. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
Eupalinos – Ou o arquiteto, trad. Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34,
1996.
Introdução ao Método de Leonardo da Vinci, trad. Geraldo Gérson de
Souza. São Paulo: Editora 34, 1998.
Variedades, antologia, org. João Alexandre Barbosa, trad. Maiza Martins de
Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1999.
Degas, dança, desenho, trad. Christina Murachco e Célia Euvaldo. São
Paulo: Cosac & Naif, 2003.
Fragmentos do Narciso e outros poemas, trad. Júlio Castañon Guimarães.
São Paulo: Ateliê, 2013.
Maus pensamentos & outros, trad. Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte;
Veneza: Editora Âyiné, 2016.
O homem e a concha. trad. Augusto Rodrigues da Silva Jr. e Eclair Antonio
Almeida Filho, São Paulo: Martins Fontes, 2018.
Lições de poética, trad. Pedro Sette-Câmara. Belo Horizonte; Veneza:
Editora Âyiné, 2018.