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A TOPOLOGIA POÉTICA DE EMMANUEL HOCQUARD

por

Marília Garcia Santos

Orientadora: Paula Glenadel Leal


A TOPOLOGIA POÉTICA DE EMMANUEL HOCQUARD

por

Marília Garcia Santos

Orientadora: Paula Glenadel Leal

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Letras, da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obtenção do título de
doutorado em Estudos Literários. Área de
concentração: Estudos Literários. Subárea:
Literatura Comparada.

Niterói, setembro de 2010.


Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S237 Santos, Marília Garcia.


A topologia poética de Emmanuel Hocquard / Marília Garcia
Santos. – 2010.
162 f.
Orientador: Paula Glenadel Leal.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2010.
Bibliografia: f. 157-162.

1. Hocquard, Emmanuel, 1940- ; crítica e interpretação. 2. Poesia


francesa. 3. Poesia lírica. 4. Paisagem. I. Leal, Paula Glenadel.
II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.

CDD 841.009

1. 371.010981
BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Profa Dra Paula Glenadel Leal / Universidade Federal Fluminense

_______________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Antonio Siscar / Universidade Estadual de Campinas

_______________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes / Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________________________
Profa Dra Maria José Cardoso Lemos / Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_______________________________________________________
Profa Dra Ida Maria Santos Ferreira Alves / Universidade Federal Fluminense

_______________________________________________________
Profa Dra Eurídice Figueiredo / Universidade Federal Fluminense, Suplente

_______________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Medeiros de Carvalho / Unincor, Suplente
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Paula Glenadel, minha orientadora,


pela companhia, pelo diálogo, pelo afeto.

ao Emmanuel Hocquard e Juliette Valéry pela acolhida nos Midi-Pirinées;


depois de uns dias em uma casa em Mérilheu, Viviane é Viviane.

aos professores que participaram da banca, pela generosidade e precisão de leitura


Marcos Siscar, Marcelo Jacques de Moraes, Masé Lemos e Ida Alves.

a Will, pela alegria irrefreável, pelo encontro de caminhos neste momento.

a Thereza Cristina, pela generosidade.

ao meu irmão André, pela proximidade.

aos meus pais e seus companheiros, Lia e Gerson, João e Ana, meus irmãos Eduardo
e Daniel, e minha avó Luizita.

a Rosa, Nelson e João, pelo carinho e pelos dias ensolarados em Itaipava.

a Jorge Viveiros de Castro, pela presença de todas as únicas maneiras.

aos interlocutores e amigos, pelo diálogo, Ricardo Domeneck, Masé Lemos, Luciana
di Leone, Manoel Ricardo de Lima, Dimitri Rebello, Silvia Rebello, Inês Cardoso,
Rodrigo Alvarez, Walter Gam, Debora Fleck, Daniel Chomsky, Valeska de Aguirre,
Isadora Travassos.

a CAPES, pela bolsa PDEE.

à acolhida de Michel Collot na Sorbonne Nouvelle.

e às companhias francesas, que me ajudaram nesta percepção topológica


Carla, Gaspar e Cristina; Gerard, Françoise e Lisa.
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo mapear alguns dos deslocamento operados na obra do
poeta francês Emmanuel Hocquard, a partir de elementos presentes na construção de
seus textos e do modo como o autor incorpora a temática ligada ao espaço: viagens,
deslocamentos espaciais e temporais, paisagem, espaço da escrita.
Para tal estudo, tratou-se de mostrar que o deslocamento se configura, basicamente,
em duas direções: uma via de perto para longe e outra de longe para perto. Na
primeira direção, observa-se a tentativa de resistir a um tipo de escrita congelada e
fabricar uma distância, tanto em relação ao subjetivo e privado, quanto em relação aos
clichês de linguagem. Nesse sentido, foram abordados alguns conceitos presentes no
debate sobre a poesia contemporânea, tais como a literalidade e o duplo lírico-anti-
lírico, bem como os preciosos apontamentos teóricos do autor. Tratou-se de analisar,
também, o uso feito por ele das “etiquetas líricas”, isso é, formas e recursos presentes
na lírica ocidental, bem como do procedimento da colagem.
Na segunda via do movimento, de longe para perto, verifica-se a maneira como
Hocquard procura se aproximar do passado, do privado e dos restos da memória, em
busca de elementos para a escrita que possam ser repensados e atualizados. Nesta
direção, insere-se a volta in loco a Tânger, cidade em que o autor passou sua infância.
Também neste movimento podem ser encontradas as operações feitas com a tradução,
que consiste em trazer a outra língua para perto, e com os jogos de escrita ligados à
gramática. Os deslocamentos destacados contribuem para o caráter móvel e
descartável de seus textos.
Considerando, ainda, a importância da tradução na obra do autor, a segunda parte
deste estudo é composta, exclusivamente, de traduções dos textos citados e
analisados.

Palavras-chave: Emmanuel Hocquard; poesia francesa contemporânea; literalidade;


lirismo; paisagem.
ABSTRACT

The objectives of this research were to map out some of the displacements found on
the work of the French poet Emmanuel Hocquard, based on aspects belonging to his
texts construction and also on the way the author deals with space related subjects:
travels, spacial and temporal displacements, landscapes, the space of writing.
To manage that, it was shown that the displacement is configured, basically, in two
directions: one of them being a close-to-far way and the other a far-to-close way. On
the first way there is an opposition to a frozen language and the endeavour to create
distance, be it concerning the relationship between the private and subjective spheres
or concerning the language commonplaces.
These questions were focused following some recurring concepts on the discussion
about contemporary poetry, such as literality and the double lyricism-antilyricism, as
well as the author’s precious theoretical appointments. Moreover, his use of the “lyric
labels”, or in another words, of ocidental lyric forms and practices and the thecnique
of collage, was also analyzed
On the second way, Hocquard’s attempts to recollect the past, his private life and his
reminiscences are seen while he searches for writing topics that can be rethought and
updated. On this direction, there is his in loco return to Tanger, the city where the
author spent his childhood years.
Beyond that, Hocquard’s workings with translation, the act of bringing the (far)
language close, and his grammar writing experiments can be found on this movement.
The aforementioned displacements contributes to the disposable and everchangin
aspects of his textes.
Given the importance of translation in the author’s work, the second part of this
research is exclusively composed of translations of the quoted and studied texts.

Keywords: Emmanuel Hocquard; contemporary french poetry; literality: lyricism;


landscape.
SUMÁRIO

Introdução 9

Capítulo 1. Fabricando a distância, de perto para longe 25


1.1 Máquina de guerra contra a metáfora 26
1.2 A mecânica lírica e o literal 40

Capítulo 2. Um detetive em Tânger, de longe para perto 53


2.1 Matéria marroquina 55
2.2 Dois andares com terraço e vista para o estreito 66
2.3 Uma gramática de Tânger 74

Capítulo 3. Um teste de solidão: um teste de poesia 80

Buscar a saída 92

Traduções
I. Minha vida privada 95
II. A forma-poesia vai, pode, deve desaparecer? 105
III. Ode não-triunfal a Vila Nova de Foz Côa 107
IV. Dois andares com terraço e vista para o estreito 113
V. Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu 131
VI. Os bostonianos de domingo 133
VII. Um teste de solidão 134
VIII. Teoria das mesas 143
IX. Mal estar gramatical (posfácio a Teoria das mesas) 150
X. Terraço na kasbah 153

Bibliografia 157
Não exatamente uma marca, não exatamente um traço.
Mais como um trecho de uma fita gravada.

[…]

Todos os relógios são nuvens.


Partes são maiores que o todo.
Um filósofo faminto num hotel, enquanto chove lá fora.
Ele observa o self apenas como um outro signo.
Rosas de inverno são invisíveis.
Gelo tardio às vezes hino.

A e não-A são iguais.


Meu cachorro não me conhece.
Violinos, como sonhos, são suspeitos.
Venho do Kolophon, ou talvez de uma ilha minúscula.
O estreito gelou, pessoas andando, poucas patinando, sobre ele.
Na praia larga, um cervo afogado.

Mulher com uma só mão, coxas ao redor de sua nuca.


O mundo é tudo o que está deslocado.

MICHAEL PALMER (2001: pp. 52, 68)


INTRODUÇÃO

– Há algo mais que você quer saber?


– Sim.
– O que é?
– Não sei por onde começar.
– Talvez pelo meio.

Começar pelo meio, pelo entre, movimento em deslocamento, inserção em


uma onda pré-existente. “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço”.
(CAMPOS, 2004) “Porque o começo é certamente / o fim – visto que nada sabemos,
pura / e simplesmente, para além de nossas complexidades.” (WILLIAMS, 1998)
Deparar com Janus, deus das portas, de todos os começos, e seus dois rostos
apontando cada um para uma direção. Interregno. Definir o ponto de partida no
movimento. Trafegar é preciso.
Tomar distância da língua para produzir uma voz. “Voz não-vocal” (ALFERI,
1991: p. 66). Gênero: Poesia. “Eu sou um ditado, profere a poesia, decore-me,
recopie-me”. (DERRIDA, 2001: p. 113) A poesia precisa fabricar uma distância da
língua, se afastar, criar espaço, disjunção. Distanciar-se para produzir uma voz. De
longe. Uma voz não-vocal. Uma voz mecânica, construída. A poesia diz o que ela diz
dizendo-o, na distância do próximo. Na proximidade da distância. Estar tão longe em
um quarto com dois quadros. E uma janela para o estreito. Passagem. Deslocamento.
Tomar distância e produzir uma voz que seja forma-poesia. Gênero: Lírico. Autor:
Emmanuel Hocquard. Produzir uma voz na distância que se torna proximidade com
rapidez. Quando voz entra em órbita, precisa de nova distância, então se toma a
distância para produzir voz, voz que seja eco, idioma literário, que se produza na
repetição que instaura, emite, produz. Tão longe, tão perto.
Esse o espaço da escrita, topologia poética, fábrica da distância: ir até onde a
vista alcança, ir além. Voltar com rapidez ao alcance da mão. Repetir uma voz e
tornar a repetir e tornar a repetir e tornar a repetir. “Toda a poesia é isso: de repente
vemos alguma coisa.” (L. Zukofsky apud HOCQUARD, 2001: p. 16)) Estar tão perto
de alcançar a distância. Alcançar a distância no perto e tornar o perto longe. Estar em
um quarto com dois quadros e uma janela para o pátio. No meio do pátio uma
macieira parada.

9
Para Pierre Alferi, “a tarefa da literatura não consiste em produzir efeitos de
estilo de acordo com os capricho do autor, mas imitar uma voz que ela encontra,
pouco a pouco, à distância, em eco, na língua.” (ALFERI, 1991: p. 74)
A precisa definição de Pierre Alferi do que seria a tarefa literária indica muitos
caminhos a serem desdobrados e acena para o tipo de poesia que busco mapear, ao
mesmo tempo em que expõe as tensões e reversibilidades que ela contém. Alferi
propõe um tipo de “voz” que seria uma voz não vocal ou uma voz destimbrada (Idem:
p. 66), isso é, uma voz que seria responsável, mais do que a sintaxe ou discurso, por
dar a coesão ao texto e determinar sua forma. Para o autor, essa voz se encontra na
língua, à distância, em eco, e é ela que o poema busca emitir.
Seu pequeno tratado Chercher une phrase, cuja proposta está baseada em uma
tentativa de iluminar uma ideia intuitiva da prática literária, me incita a estabelecer
dois focos para se pensar na voz: o primeiro diz respeito ao procedimento que busquei
neste trabalho e o segundo – simétrico ao primeiro, mas em eco, repetição, cópia, em
disjunção – o segundo foco acena para a tentativa de definir o que seria a voz lírica,
que resultará em uma melhor compreensão da poesia em questão.
No que diz respeito ao procedimento, Pierre Alferi preparou este ensaio
durante a escrita de Les Allures naturelles, seu primeiro livro de poemas, publicado
em 1991, o que é interessante à medida que busca pensar a escrita inscrevendo-se em
um lugar de tensão, um lugar que seria como um how to read/write: ao mesmo tempo
em que este é um texto crítico, que se insere em um ponto de vista crítico, o autor
parte de sua experiência como poeta, da experiência no momento da escrita e, por
isso, o material que utiliza para o ensaio é empírico. Se a crítica busca ler o que está
além da poesia e depois da poesia, será que Alferi, ao se inscrever neste lugar de onde
parte seu Chercher une phrase, consegue escrever a partir da poesia, isto é, do ponto
de vista de quem escreve? Como alcançar esta voz com dupla inscrição, que seja uma
voz crítica, lendo depois da experiência do poema, mas que possa ao mesmo tempo
falar a partir desta experiência?
Foi esta indagação que me acompanhou no percurso de leitura da obra de
Emmanuel Hocquard e foi neste entrelugar que tentei me instalar para acompanhar
seus movimentos e construir uma voz para este trabalho. Pensando nos trajetos de
idas-e-vindas realizados pela própria escrita do autor, que coaduna em vários textos os
dois pontos de vista citados, me pareceu adequado perceber e tentar buscar este lugar
limítrofe. Se por um lado tento mapear e entender os movimentos que o autor propõe

10
em sua prática literária, busco, por outro, ler a partir da poesia, mantendo para isso o
exercício de tradução de textos do autor e de seus contemporâneos que acompanhou
minha leitura desde o início e possibilitou estar em contato com o procedimento, com
as escolhas e com esta voz não vocal do poema. Além disso, tentei manter uma visão
de quem também escreve poesia e busca ler os mecanismos e as escolhas de gestação,
tentando entender que o conceito e a experiência poética se fazem no percurso, no
lugar, durante e entre.
Penso aqui na figura do deus latino Janus, cuja efígie aparece na abertura do
livro de Hocquard Esta história é a minha, pequeno dicionário autobiográfico da
elegia (HOCQUARD, 2001). Deus das passagens, portas, começos e términos, ele
desenha um limite e se insere em um ponto que constitui tanto a partida quanto a
chegada. Ele possui dois rostos, cada um olhando para um lado, em sentidos
diametralmente opostos. Na obra de Hocquard, há essa dupla inscrição também, um
olhar a partir da poesia mas que a todo momento procura pensar em termos críticos
para estabelecer um conceito, um pensamento sobre a escrita. Tal trabalho reflexivo,
de conceituação, no caso de Hocquard, distingue Gilles Tiberghien, é feito durante o
processo de escrita, e não a posteriori, como em diversos outros poetas que buscaram
teorizar e definir uma teoria da poesia para suas práticas.1 (TIBERGHIEN, 2006: pp.
11-2) A distinção de Tiberghien é interessante porque aponta para uma prática de
escrita enlaçada com a teoria, que utiliza ferramentas conceituais para a prática mas
que trata de descartá-las depois, uma vez pronto o poema. Para ele, a relação de
Hocquard com a teoria

é, se posso chamar assim, puramente instrumental: uma teoria vale um


certo tempo para lhe ajudar a alcançar um objetivo dado. Se, para chegar
ali, ele encontra outra mais satisfatória, que lhe permita prosseguir sua
reflexão mais adiante, ele abandona a teoria precedente. É o princípio da
“teoria descartável” (Idem: p. 12)

Fazendo eco à máxima de Haroldo de Campos segundo a qual “escrever sobre


o escrever é o futuro do escrever” (CAMPOS, 2004), os escritos de Emmanuel
Hocquard são bastante híbridos e trazem múltiplas reflexões sobre o ato de escrever,
espalhadas por essas teorias em movimento, descartáveis, ferramentas que servem
1
Gilles Tiberghien cita, em seu excelente livro sobre Hocquard, os poetas Octavio Paz, T.S. Eliot, Paul
Valéry, Wallace Stevens, que procuraram estabelecer uma teoria poética para suas práticas a posteriori
(TIBERGHIEN, 2006: pp. 11-2).

11
para uma situação específica – mesmo que não derivem depois em um sistema
fechado e que sejam descartadas e inutilizadas, dando espaço para uma nova busca,
um novo livro, uma nova tentativa de movimento. A forma dos textos de Hocquard
também é muito interessante nesse sentido e mostra que a reflexão sobre poesia está
presente em toda sua escrita, seja em textos mais ensaísticos,2 como posfácios e
artigos, seja dentro do próprio poema. Os livros Um detetive em Tânger e minha sebe
– Um detetive em Tânger II possuem uma forma híbrida e são bastante emblemáticos
desta sua preocupação, reunindo poemas, traduções, artigos, textos em prosa,
hebdomadários, etc. Ao ser perguntado acerca da função desta alternância entre
“textos poéticos e textos mais reflexivos” neste último livro, Hocquard responde
muito precisamente: “A alternância existe, de fato, [...] mas eu não tenho o sentimento
de que os textos que você chama de poéticos sejam menos reflexivos que os outros.
Muito pelo contrário.” (HOCQUARD, 2002b: p. 8). O trabalho reflexivo, para ele,
está presente no percurso de escrita poética e as formas híbridas que seus textos
assumem são testemunhas disso.
De volta ao ensaio de Pierre Alferi, interessa-me também a evocação que ele
faz do lirismo, e sua relação com a voz literária: “Imitar uma voz: podemos chamar
esta a tarefa lírica da literatura.” (ALFERI, 1991: p. 75) Para Alferi, a lírica
remontada à sua origem, ao seu ponto de partida, se encontra despojada de qualquer
pathos expressivo, com o qual o lirismo tem sido constantemente identificado. Mais
do que “regressão a uma voz interior, pessoal, de um timbre infra-linguístico”,
observa Alferi, “o lirismo é então a imitação de uma voz anônima, inaudível.” (Idem)
Há algo desta voz anônima que sob a palavra gasta ainda persiste na coisa lírica. Há
algo de lira, de canto, recitativo, canto anônimo, de um sujeito construído, permanente
neste lirismo. O trabalho deste lirismo seria pensar na palavra gasta, resgatar o
conceito, remontar à origem e atualizá-la. Pois como lembra Jean-Michel Espitallier:
“Em um mundo que decanta, o canto não pode mais se conceber como um hino
ascensional.” (ESPITALLIER, 2009: p. 29).

O lirismo continua a se reinventar no plano de uma evolução tesa e


contrariada, seja, quando mal compreendido, produzindo o pior do pathos

2
Dentre os mais ensaísticos, cito os que mais me interessaram para este trabalho: “Minha vida privada”
(cf. anexo I), “A forma-poesia pode, deve, vai desaparecer?” (cf. anexo II), “Esta história é a minha,
pequena autobiografia da Elegia”, “Nota sobre a ninfa Eco” e “A biblioteca de Trieste”. Com exceção
do segundo, publicado na revista Action Poétique, os outros textos podem ser lidos no livro minha sebe
(HOCQUARD, 2001)

12
na expressão de uma pseudo-autencidade, seja, como um “novo lirismo”
(Jean-Michel Maulpoix), repensando-se e questionando a si próprio, seja
enfim maquinando-se como a mecânica lírica, como a formularam nos
anos 80 Pierre Alferi e Olivier Cadiot, bricolage e fabricação da língua
visando desinchar os falsos semblantes de uma pseudo-autenticidade...
lírica! (Idem)

A polaridade em questão nas discussões acerca do lirismo que ocuparam o


centro da cena na França nas últimas décadas orbita em torno do que Espitallier
denomina a “expressão de uma pseudo-autenticidade” e da crise resultante daí. O
anúncio de um “retorno ao lirismo”, tema de diversas publicações que tentam mapear
o fenômeno,3 pode se identificar, nas palavras de Hocquard, com o “retorno aos
estados de alma narcisistas, à pequena memória e ao pranto individual que um sujeito
sofrendo, cheio de nostalgia [...], coloca diante de si4” (HOCQUARD, 2001: p. 60).
O texto “Nota sobre a ninfa Eco”, publicado em 1988 na revista Action
Poétique, no qual Hocquard faz a observação acima, dá a ver uma das facetas de sua
relação com este tipo de lirismo. Ali ele aponta o retorno ao lirismo como retorno ao
clichê e nomeia esta poética como uma poesia subjetiva, de um sujeito narcisista.
Definição que ecoa a de Michel Deguy, de um “autobionarcisismo” (GAVRONSKY,
1994: p. 18). A proposta de Hocquard no texto citado é deixar de lado Propércio,
Ovídio e companhia com seu mundo, sua língua, suas escolhas, sua prosódia e tentar
seguir as pistas de nosso tempo. Para ele, uma dessas pistas, que pode ser identificada
com seu modo literal de escrita, está em recolher discursos ou nacos de discursos,
“cujo objetivo inicial não tem nada de poético, e citá-los [...] sem outra intervenção
além de lhe dar uma forma diferente daquela que eles tinham inicialmente5”
(HOCQUARD, 2001: p. 61). O autor completa para sintetizar: “Trata-se então de
fazer eco. Calar-se, escutar. Escolher, recolher. Restituir o eco. A reverberação lógica.
A reflexão. Recitar6” (Idem). Recitar: isso é, dizer de memória um texto, ler em voz
alta, contar as palavras de alguém. Em outras palavras, repetir. Ou deslocar.

3
Dentre outros, está o Du Lyrisme, de Jean Michel Maulpoix (2000), livro que busca complementar o
anterior sobre o mesmo assunto, La voix d’Orphée, de 1989. No livro de 2000, Maulpoix cita alguns
outros estudos que buscam pensar o fenômeno: Habiter en poète, de Jean-Claude Pinson (1995),
Figures du sujet lyrique, organizado por Dominique Rabatté (1996), L’amour du nom, de Martine
Broda (1997).
4
“Retour aux états d’âme narcissiques, à la petite mémoire et à la plainte individuelles qu’un sujet
souffrant, plein de nostalgie [...] pousse devant lui.”
5
“Dont la destination première n’a rien de poétique, et à les citer [...] sans intervenir autrement qu’en
leur donnant une forme différente de celle qu’ils avaient au départ.”
6
“Il s’agit donc de faire écho. Se taire, écouter. Choisir. Recueillir. Restituer l’écho. La réverbération
logique. La réflecion. Réciter.”

13
Na figura da ninfa Eco evocada por ele, condenada a ficar repetindo uma voz,
se condensam as propostas relacionadas à sua poesia, uma poesia ligada à repetição, à
passagem, ao literal, mas que não deixa de trabalhar com um tipo de voz lírica, voz
construída que admite a existência de um sujeito. Mesmo que muitas vezes seu
discurso reforce a negação do eu e se lance para longe de uma intimidade, existe
ainda assim esta voz, voz não vocal, como quer Alferi: “uma voz literária não é em si
mesma nem branca, nem doce, nem rugosa: é uma voz não vocal” (ALFERI, 1991: p.
75). Ou seja, é uma voz que existe como eco, que é construída e consciente do tipo de
eu possível, um eu ficcional ou um sujeito gramatical, como sugere Hocquard no
livro Condições de luz:

Nunca se fala de si mesmo Nunca


existiu o sujeito da enunciação Só
existe o sujeito gramatical Não
existe começo Não existe uma
formulação primeira Só existe o
recolher7
(HOCQUARD, 2007: p. 182)

Assim, seja como sujeito gramatical como quer Hocquard, isso é, um sujeito
construído na linguagem, seja como construção de um sujeito fictício, esta poesia faz
ressoar um eco lírico, considerando o lirismo como uma interiorização via eco ou
como um lugar onde pode ecoar esta voz-não vocal, um lugar interno de passagem, de
eco. Na obra de Hocquard, este lugar de passagem se constrói durante um processo de
resistência ou de negação, durante um mal-estar: ao negar o sujeito – como na citação
acima, “nunca se fala de si mesmo”, ou “nunca existiu o sujeito da enunciação” –, a
voz se constrói e, paradoxalmente, se atualiza, recolhe, se abre. Na escuta aberta, é
possível esta mecânica lírica. Como descreve com tanta precisão o dramaturgo Valère
Novarina ao estar diante da palavra:
Nós sabemos todos muito bem, no fundo, que o interior é o lugar não do
meu, não do eu, mas de uma passagem, de uma fresta por onde um sopro
estrangeiro nos pega. No interior de nós, no mais profundo de nós, há uma
via escancarada; somos por assim dizer furados, à luz do dia, a céu aberto.
(NOVARINA, 2009: pp. 13-4)

A questão ligada ao lirismo e ao sujeito da enunciação se problematiza ao


7
“On ne parle jamais de soi Il n’y a / jamais eu de sujet d’énonciation / Il n’y a de sujet que
grammatical Il / n’y a pas de commencement Il n’y / a pas de formulation première Il / n’y a que
recueillir.”

14
longo da poesia de Emmanuel Hocquard desde os três primeiros textos produzidos
pelo autor: Spurius Maellius, poema feito a partir da tradução de uma passagem do
historiador latino Títo-Livio acerca de um crime cometido em Roma 4 séculos a.C.;
As pasta8, de 1973, e 3 cartas, de 1974, ambos copiados literalmente de um material
preexistente e versificados.
No contexto que tento descrever, cabe destacar nestes três textos o mecanismo
de cópia operado pelo autor: ele recolhe o material de um contexto e o traz para outro,
ele copia, traduz, escolhe e recolhe, escuta, re-cita. Deste modo, pensando na ninfa
Eco supracitada, a característica que o autor deseja tomar dela não está na evocação
de um personagem presente na poesia grega, uma ninfa, que poderia ecoar um clichê
poético, e sim na repetição que ela evoca, aproximando-a de um gesto literal, como
nesses primeiros textos citados ou como no gesto do norte-americano Charles
Reznikoff em seu livro Testemunho, que será paradigmático para a escrita de
Emmanuel Hocquard.
Relevante também tratar das tensões ligadas ao lirismo nesta leitura porque
embora haja uma condenação de certo tipo de lirismo por Hocquard e sua geração
(este lirismo nomeado por Hocquard, que poderia estar relacionado a uma poesia
romântica, da inspiração e expressão de um eu íntimo), o autor incorpora em sua
escrita diversas etiquetas líricas (FETZLER, 2004: p. 115). Glenn Fetzler, que
dedicou um dos estudos mais extensos sobre a obra do autor,9 denomina de etiquetas
líricas algumas normas e rótulos presentes no campo semântico de uma poesia lírica
que serão resgatados e trabalhados por Hocquard. Dentre as de maior destaque estão
as elegias e os sonetos produzidos pelo autor e tematizados em livros e ensaios,
formas que serão nomeadas, compreendidas e passarão por um processo de
reformulação, de acordo com as necessidades do texto.10 Este procedimento que tento

8
Cabe explicar aqui a tradução dada ao título de seu primeiro livro, já que se trata de um título que traz
um desvio gramatical no original15161616: “Le portefeuil” em vez de “Le portefeuille”. Optei por
traduzir como As pasta, mantendo o jogo de concordância, mas trazendo para a concordância de
número em vez de gênero como ocorre no francês, já que é mais comum no português.
9
Emmanuel Hocquard and the poetics of negative modernity (FETZLER: 2004). Além deste livro, há
o livro de Gilles Tiberghien Emmanuel Hocquard (2006) e o livro em miniatura Je sors faire quelques
courses ou je préférerais ne pas écrire sur la poésie d’Emmanuel Hocquard, de Xavier Person (2000),
mais poético que ensaístico, mas cuja forma dialoga com o livro analisado, Um teste de solidão. Além
dos textos citados, tive acesso a ensaios e textos avulsos publicados em revistas e coletâneas sobre
poesia contemporânea. Dentre os mais expressivos, destaco os de Dominique Rabaté (2006) e Stéphane
Baquey (2002).
10
Hocquard publicou, em 1990, o livro Elegias, em que reúne algumas das elegias que havia produzido
até então. Além deste, os textos de Condições de luz também são denominados elegias. O livro Um
teste de solidão é composto de sonetos, alcunha que aparece na folha de rosto do livro. Dentro de suas

15
descrever ocorre também em relação à ninfa Eco; o autor utiliza uma figura
mitológica e resgata nela um tipo de mecanismo que lhe interessa, descartando o que
não interessa, com um humor muito peculiar.
Um dos textos de Hocquard mais bem humorados acerca do assunto é o Esta
história é a minha: pequeno dicionário autobiográfico da Elegia, de 1994. O
espirituoso título não poderia ser mais preciso em suas voltas, questões e torneios: o
livro constitui um dicionário com verbetes acerca da elegia, porém não são verbetes
apenas ligados à elegia clássica e sim relacionados ao que o autor chama de “elegia
inversa” e constituem desde expressões como Ah-Hélas até Literalidade. Portanto,
são verbetes que marcam bem a voz de seu autor e mostram uma escolha semântica
bem precisa. O curioso é que é um dicionário autobiográfico, e o próprio título
aparece em primeira pessoa, definindo o que poderia parecer uma certa intimidade ou
pessoalidade daquela história. Além disso, o texto foi produzido sob encomenda para
um número especial da revista Modernités, dedicado ao lirismo, cujo título era O
sujeito lírico em questão. Por isso, a marca da primeira pessoa é ainda mais relevante.
Neste texto, Hocquard define dois tipos de poetas elegíacos, o elegíaco clássico
e, por contraste, o elegíaco inverso, se inserindo nesta última categoria criada por ele.
A diferença entre os dois está no tipo de relação estabelecida com o passado, com a
memória e com o privado. O poeta diferencia:
o elegíaco clássico rumina seu passado. O inverso o refaz [...] Para o
elegíaco clássico, a anedota representa uma lembrança a ser salva do
esquecimento. Para o elegíaco inverso, a anedota é um índice, ínfimo, que
pode inseri-lo em uma nova pista. Uma pista no presente, em extensão11.
(HOCQUARD, 2001: pp. 462-3)

A elegia inversa, deste modo, trata de atualizar os restos de passado sobre uma
nova pista, ou seja, ela é inversa porque ela projeta, ela fabrica esta história, mesmo
que seja a partir de anedotas privadas e passadas, porém não se trata de lamentar o

etiquetas líricas, há também a presença do poema longo “Ode não-triunfal a Vila Nova de Foz Côa”
(cf. anexo III), poema que narra, de modo bem pouco vitorioso ou entusiástico, como deveria ser uma
ode, uma viagem para participar de um festival de poesia na cidade portuguesa citada no título.
“Forma-mãe do lirismo”, nas palavras de Jean-Michel Maulpoix, “a Ode, cuja palavra vem do grego
canto, toma como pretexto um evento singular para passar para o plano de uma grande verdade moral”
(MAULPOIX, 2009: p. 151). O poema refere-se também a “Ode triunfal” pessoana de Álvaro de
Campos, porém com uma negatividade que não se encontra no texto citado.
11
“L’élégiaque classique rumine son passé. L’élégiaque inverse le refait. [...] Chez l’élégiaque
classique, l’anedocte represente un souvenir à sauver de l’oubli. Pour l’élégiaque inverse, l’anedocte
est un indice, infime, qui peut le mettre sur une nouvelle piste. Une piste au présent, en extension”.

16
passado, e sim de projetar seus indícios e pedaços sobre uma mesa e tentar recriar as
relações. Como neste trecho em que o autor explica tal processo convocando uma
figura bastante recorrente em seus livros, que é a figura do inspetor, ou detetive
particular:

Quando eu digo, Inspetor [...], que esta vida é a minha, eu quero


simplesmente dizer que eu a fabrico. [...] eu sou o organizador de um
diário íntimo anônimo feito a partir de uma lista de anedotas. Esta vida é
a minha significa: esta é minha lista [...].
Em uma lista surgem coisas inexplicáveis, enigmáticas para os outros mas
também para mim. Segredos [...]. As anedotas puras permanecem como
segredos. Ou o que é muito misterioso, diz Pierre Alferi, é que podemos
também compartilhá-los. Ou a autobiografia de todo mundo. O homem
refeito é sem identidade.12 (HOCQUARD, 2001: p. 480)

O homem refeito, isso é, o elegíaco inverso que fabrica sua história a partir de
indícios do passado, é sem identidade. Ele não expressa sua intimidade, dor ou
lamento, como o elegíaco clássico; em vez disso, ele trata de criar uma autobiografia
de todo mundo, para citar Gertrude Stein que aparece no subtexto de seu comentário.
Ele usa a solidão, um dos lugares-comuns da elegia clássica, porém sua solidão é uma
solidão que procura distanciamento em vez de lamento. Ao refazer o passado
fabricando esta história, o homem que daí resulta é sem identidade.
A negatividade contida na expressão de Alferi “voz não vocal” caracteriza este
tipo de voz construída que fala a poesia de Emmanuel Hocquard, voz que não deseja
expor a intimidade ou a gênese de um sujeito, como faz certo lirismo expressivo, mas
busca “estar no espaço intersticial de uma falha subjetiva, o ponto cego de onde se
destacam os enunciados” (BAQUEY, 2007: p. 1). Tomo esta ideia de voz não vocal
para pensar na poesia contemporânea: uma voz mecânica,13 mais do que vocal, que
contudo não se exime de manter uma visada lírica, ou seja, que se mantém consciente
no processo de construção deste espaço, um espaço que problematiza o eu e busca
rarefazer as fronteiras entre interno e externo, mundo e sujeito. Ou melhor, um espaço

12
“Quand je dis, Inspecteur [...], que cette vie est la mienne, je veux simplement dire que j ela fabrique.
Comme l’auteur de Je me souviens, je suis l’organisateur d’un journal intime anonyme fait d’une liste
d’anedocter. Cette vie est la mienne signifie: ceci est ma liste [...]. // Dans la liste surgissent parfois des
choses inexplicables, énigmatiques pour les autres mais aussi pour moi. Des secrets [...]. Les purês
anectotes restent des secrets. Or ce quie est três mystérieux, dit Pierre Alferi, c’est qu’on peut aussi
partager cela. Ou l’autobiographie de tout le monde. L’homme refait est sans identité.”
13
Termo usado pelo poeta Ricardo Domeneck no ensaio “Concretude de correnteza e densidade de
redemoinho”. Ali, Domeneck trabalha com o conceito “lírica analítica”, que produziria este tipo de voz
que me interessa, uma voz não-vocal.

17
que busca torná-las um circuito reversível e atualizável, de um modo topológico.
Polêmica com muitos precedentes, no contexto francês com a roupagem
lirismo-literalidade, ela não é estranha à poesia brasileira, que de meados do século
para cá usa os termos objetividade e construtivismo como sinônimos de uma poesia
antisubjetiva ou antilírica. A querela e polaridade ligada à poesia concreta e ao
“desaparecimento elocutório do poeta” (MALLARMÉ, 2008: p. 158), ecoando o
Mallarmé de Crise do verso, e também a “crise de versos” vivida neste período
(SISCAR, 2008), é bastante evidente devido ao radicalismo das propostas concretas,
porém vale mencionar também a análise presente no emblemático Lira Antilira, de
Luiz Costa Lima (1995), cuja leitura da poesia brasileira do século passado está
baseada nesta dualidade e mostra em linhas gerais um percurso entre uma poesia mais
lírica e pessoal e outra mais construtiva.
Para Costa Lima, a unidade deste percurso poético que vai de Manuel
Bandeira até João Cabral de Melo Neto, resulta “do que chamamos de desestruturação
de uma linguagem e estruturação doutra” (COSTA LIMA, 1995: p. 18). A ideia de
passagem de uma para outra, como polos opostos, ilustra bem o caminho em direção a
uma poesia mais construtiva e cabralina, um dos adjetivos mais gastos usados para
designar a objetividade pretendida. Para o crítico, a emocionalidade definiria a poesia
de Bandeira, cuja composição estaria guiada pelos “sentimentos individuais”. Em
Drummond, atuaria o principio de corrosão, ou lirismo irônico (Idem: p. 197), e neste
poeta haveria a tentativa de buscar as palavras em estado de dicionário em vez de
privilegiar os sentimentos. Ou seja, neste poeta a polaridade estaria menos definida ou
estaria mais problematizada. Trabalhando também com outros modernistas, Costa
Lima concluirá seu percurso chegando na poesia cabralina, que constituiria a antilira
por excelência, uma configuração poemática concreto-solar (Idem: p. 208). Enfatizo,
aqui, os termos característicos deste dualismo, porém, como observa o próprio Costa
Lima, bem como outros críticos comentaram depois dele, João Cabral apresenta
também em alguns momentos uma poesia bastante discursiva, com muitas memórias
e descrições ligadas à infância, e uma configuração poemática de tipo noturna.
Por outro lado, mesmo entre os concretos há momentos em que o sujeito
poético e o discursivo acabam por romper a primazia do signo e do verso ascético,
enriquecendo a linguagem com a exposição de suas tensões e contradições, como fica
bastante evidente nas experiências de Haroldo de Campos em seu magma galáctico,
que aponta para uma problematização dos caminhos traçados na fase radical do

18
concretismo, ou em Augusto de Campos, onde pode-se ler, como mostra um recente
ensaio de Eduardo Sterzi, que adentra sua obra pelo viés do sujeito lírico, a inserção
do poeta entre os trovadores que traduziu em busca da sobrevivência de um sujeito
poético em seu trabalho (cf. STERZI, 2004). Para terminar esta breve passagem pela
poesia brasileira, lembro de um trecho de Galáxias, muito preciso para descrever as
questões já mencionadas:

poeta sem lira ó deslirado tua fórminx de fórmica vibra em ganidos


metálicos desta vida ninguém sai vivo companheiro
(CAMPOS, 2004: fragmento 29)

19
***

O primeiro contato que tive com a poesia de Emmanuel Hocquard foi através
do texto Dois andares com terraço e vista para o estreito (cf. anexo IV), primeiro e
único livro publicado na coleção echo & co., em 1989, editada pelo próprio autor.
Além da mancha na página formada pelo poema, com algumas linhas recuadas,
alguns versos bem longos e outros curtos, mancha que saltava aos olhos à primeira
vista, o texto não era pontuado e trazia um elemento narrativo que me interessou
bastante. O poema longo narra, em um tom às vezes irônico, às vezes negativo, uma
viagem de ida e volta à Tânger, cidade em que o autor passou sua infância e
juventude, e trata-se de um livro repleto de deslocamentos, passagens e idas-e-vindas:
a visita à casa com terraço e vista para o estreito ainda em Tarifa no sul da Espanha, a
travessia pelo estreito de Gibraltar, o percurso de táxi e depois o percurso a pé pelas
ruas de Tânger, até chegar ao terreno onde ficava a casa da infância de Hocquard,
percurso feito pelo espaço mas também pelo tempo, através das lembranças do autor
que são compaginadas no texto.
Uma espécie de poema-percurso, para usar expressão de Flora Sussekind
(2008: p. 65) que condensa bem a ideia presente também em um outro texto de
Hocquard, “Ode não-triunfal a Vila Nova de Foz Côa” (cf. anexo III), poema que
narra outra viagem, ao modo stalkeriano, para citar expressão que aparece no texto,
referência ao filme Stalker de Tarkovsky: “sobretudo nunca ir diretamente de um
lugar a outro” (HOCQUARD, 2001: p. 505) Os percursos indiretos de um ponto a
outro, em Tânger ou em Vila Nova, são plasmados nos poemas e se cria na travessia
um movimento muito peculiar.
Tânger tornou-se o lugar de uma mitologia hocquardiana, com elementos que
ressurgem a cada livro, como a figura do estreito, a Senhora Sakaze, o número 33 da
rua Shakespeare, as sepulturas fenícias cavadas nas rochas a céu aberto, e Dois
andares com terraço e vista para o estreito converte-se em alguns momentos em um
mapeamento dos lugares onde se passam algumas das cenas de seus livros.
O deslocamento na obra de Hocquard se manifesta em diversas instâncias, sejam
instâncias temáticas concentradas em assuntos correntes como as viagens, passagens,
travessias etc., até instâncias ligadas à construção de sua linguagem, presentes
concretamente na colagem de enunciados, memórias e restos saídos de outros

20
contextos e levados para seus textos, de um lado, e, de outro, no constante trabalho de
tradução e abertura para outra língua e outras formas.
Pode-se ver aí uma topologia poética, pensando nas diversas acepções do termo
topologia, que permitem uma leitura bem ampla do que faz o autor. Partindo da
linguagem, a topologia sintática volta-se para o estudo da colocação ou disposição na
frase de certas categorias de palavras. Ela trataria da ordenação de elementos na frase,
aproximando-se da etimologia da palavra, estudo dos lugares: topos, logia. Esses
lugares, que podem ser lugares da tradição, pensando nas reflexões que o autor traz,
ou então lugares sintáticos, pensando em sua pesquisa gramatical, se relacionam
também ao lugar visto como espaço: paisagem, memória, relação entre objetos.
Proximidade com outros sentidos de topologia neste caso, como a topologia
dentro da matemática: categoria bastante abrangente, que atua em vários ramos da
matemática e que estuda os elementos ligados ao espaço e aos objetos colocados neste
espaço. Aqui estão os objetos topológicos e as superfícies elásticas. Parece importante
destacar que a topologia aqui trata os objetos pelas relações que têm entre si,
independente de suas dimensões.
Em psicanálise, Freud e Lacan buscaram encontrar equivalências entre o espaço
psíquico e espaço estudado pela matemática, seja o espaço euclidiano, no caso de
Freud, ou o não-euclidiano, no caso de Lacan, que ampliou a pesquisa para a
topologia das superficies, trabalhando com as estruturas de objetos topológicos, como
a banda de Moebius ou o toro, por exemplo, buscando compreender os mecanismos
psíquicos.
Quanto às questões espaciais, a topologia designa também um ramo da
topografia, ligada diretamente à descrição de um lugar, da situação de uma cidade,
dos relevos e do solo, aproximando-se também, por esta via, aos exercícios
topográficos que encontramos nos textos de Hocquard. O estudo dos espaços constitui
uma das questões mais recorrentes em sua obra. Tomando as palavras de Jean-Marie
Gleize ao se referir à sua geração, chamada por ele de Orange Export Ltd., sua escrita
“é pensada como experiência do espaço, no espaço” (GLEIZE apud BOULANGER,
1998: p. 100; grifos meus). A dimensão espacial pode ser percebida desde as
incontáveis cidades ou lugares que ocupam os livros – dentre outras, Tânger, Harris,
Manhattan, Trieste, Cabo da Boa Esperança, Saint-Michel, Reykjavik, Vila Nova de

21
Foz Côa, Malakoff, Bordeaux, Califórnia14 etc. –, passando pelos acidentes
topográficos que percorrem vários de seus textos, num ir-e-vir incessante de
perspectivas – estreito, ilha, florestas, rio, os jardins e sebes, cercas vivas, os mares e
oceanos, canais –, chegando ao espaço entre, espaço de passagem – que pode ser visto
na recorrência das viagens, passagens, poemas-percurso – e, finalmente, ao espaço “à
parte”, espaço entendido como espaçamento, desvio, distanciamento – ou écart, para
usar expressão de Dominique Rabaté que define a poesia de Emmanuel Hocquard
como sendo uma “fábrica da distância” (RABATÉ, 2006). Fábrica da distância ou
escrita topológica que eu gostaria de pensar em duas direções: em primeiro lugar,
como um movimento de perto para longe. Em seguida, de longe para perto.
Pensando na via perto-longe, penso na tentativa do autor de resistência à ideia de
eu, resistência a uma poesia congelada, aos clichês da linguagem (tais como lirismo
ou metáforas gastas, os sonetos e elegias). Para usar um verso de Stein que precisa
bem essa ideia: “Eu sou porque meu cachorrinho me reconhece”. Este reconhecer,
que pode ser visto como uma poesia congelada, ou como um conceito definido de
how to write, não interessa a essa poesia que procura resistir aos processos de fixação;
assim, ele deve ser mandado para longe, à distância, seja com o uso da literalidade,
por exemplo, em que se copia os enunciados tentando apagar o sujeito, seja nomeando
as etiquetas líricas que o autor tenta refazer, seja criando espaços, distâncias da
língua, distância da sua própria escrita na tentativa de se desautomatizar, ou “se
desfazer daquilo que aprendemos” (HOCQUARD, 1987: p. 92). A fábrica da
distância envia para longe. Contudo, ao chegar neste longe, percebe-se uma topologia
em movimento constante, ao modo desta escrita: o longe se converte em perto
rapidamente. A criação da solidão, por exemplo, traz a individualidade, traz um
espaço para passagem do eu.
No movimento de longe para perto, penso nas tentativas de definir os lugares e
paisagens, no retorno a Tânger, lugar que o constitui, a volta ao lugar, a tentativa de
buscar a infância, as lembranças, os restos de passado, ou em outras palavras, o
pessoal, a experiência privada para poder, não recompor o passado, mas refazer o
presente. Aqui também posso pensar na tradução, tentativa de trazer para a língua
materna uma outra língua. Também neste jogo, o perto é frustrado: o lugar do

14
Dentre os textos em que aparecem essas cidades, estão Um detetive em Tânger, minha sebe - Um
detetive em Tânger II, “A biblioteca de Trieste”, “Ode não-triunfal a Vila Nova de Foz Côa”, Aérea
sobre as florestas de Manhattan, A viagem a Reykjavik.

22
acontecimento escapa, a paisagem é opaca, o detetive não consegue recompor as
peças e remontar a cena ou o modelo, Hocquard não chega a ver a Tânger da infância
e a tradução aponta para o intraduzível; cria-se, neste jogo, um novo lugar.
Para finalizar, o terceiro capítulo procura mostrar de que maneira os mecanismos
de deslocamento acima descritos terminam por criar uma escrita sem centro, em
constante movimento, que se produz na falta, na resistência e no processo de descarte.
Vejo de que maneira o espaço é sobreposto à linguagem no livro Um teste de solidão,
de modo a evidenciar os vazios, espaços em branco, a distância criada, a consolidação
de uma solidão.

***

Cabe assinalar ainda que, devido aos diversos deslocamentos operados na obra
de Hocquard, que ocorrem de maneiras tão singulares, e à dificuldade na ordenação,
citação e padronização de sua bibliografia, segui alguns critérios que devem ser
esclarecidos. minha sebe é um livro híbrido que reúne diversos textos já publicados e
outros inéditos, textos em prosa, poemas, ensaios, cartas, prefácios a antologias
anteriormente publicadas, conferências, reflexões e até uma fotonovela. Mesmo que a
maior parte dos textos citados deste livro tenham sido publicados anteriormente, seja
como livro, caso de Dois andares com terraço e vista para o estreito, seja como texto
individual em revistas literárias, como o “Minha vida privada”, optei por deixar a
referência que aparece do minha sebe. Apenas no caso do poema Dois andares com
terraço e vista para o estreito optei por referir a ele sempre em itálico acenando para
seu formato em livro, já que constitui um dado importante sua publicação anterior,
mesmo que ele se desloque depois e apareça como poema dentro do minha sebe.
Esclareço ainda que optei por traduzir no corpo do texto todas as citações que
aparecem em outras línguas e que não tinham tradução em português. No caso dos
poemas de Hocquard que aparecem citados e traduzidos ao longo do texto, inseri os
originais no pé de página, de modo a dar a ver o percurso de leitura feito entre as
línguas.
A segunda metade do trabalho está composta de traduções de alguns dos
textos de Emmanuel Hocquard mencionados neste trabalho. Considerando a
importância do lugar da tradução em sua obra poética, como um tipo de deslocamento

23
que cria uma nova língua dentro da língua, ou que “alarga as bordas carcomidas de
determinada língua” para citar a tarefa do tradutor vista por Walter Benjamin,
podemos dizer que aliar o trabalho de tradução à leitura foi uma das maneiras mais
coerentes de lidar com seu pensamento. Além disso, sendo um autor inédito em livro
no Brasil, espera-se que tais traduções possam colaborar para novos deslocamentos
em nossa língua. Os textos que apresento aqui traduzidos são Dois andares com
terraço e vista para o estreito (tradução integral publicada na revista Inimigo Rumor
19), dois poemas do livro Um detetive em Tânger (“Eu não sei se Fernando Pessoa
realmente existiu” e “Os bostonianos de domingo”, ambos publicados na revista
Modo de usar & co., franquia eletrônica), “Minha vida privada” (tradução integral
inédita em português), “A forma-poesia vai, pode, deve desaparecer?”(tradução
integral publicada na revista Modo de usar & co. 2), e excertos dos livros Ode não-
triunfal a Vila Nova de Foz Côa, Teoria das mesas, Um teste de solidão e Terraço na
kasbah (todos inéditos em português).

24
CAPÍTULO 1. FABRICANDO A DISTÂNCIA, DE PERTO PARA LONGE

Emmanuel Hocquard trabalha sobre a linguagem para dar a ver


outra coisa, isto é, sobre a produção de um espaçamento que faça
nascer novos enunciados. [...] Seu princípio consiste em dar a ver
enunciados, mas sem produzir no entanto imagens ou uma imagem
da linguagem. Trata-se mais de fabricar a defasagem, de operar a
transformação da frase em um enunciado entonativo, de
movimentar os códigos de um modo diferente.
(RABATÉ, 2006: pp. 101-2)

No ensaio em que define a escrita de Emmanuel Hocquard como uma “fábrica


da distância”, une fabrique de l’écart, Dominique Rabaté sublinha o movimento de
afastamento, defasagem, de criação de uma distância, da produção de uma solidão. O
campo semântico da palavra écart é bem amplo e ajuda a definir o tipo de
espaçamento em jogo. Além de distância, écart pode designar um afastamento,
desvio, espaçamento, campo que é não apenas espacial mas também inclui o
movimento de afastar-se ou de estar à parte, de pôr-se, manter-se afastado, isolado, (à
l’écart), sempre em relação a alguma outra coisa. Assim, tal linguagem, sob o signo
de uma fábrica da distância, busca operar um isolamento que se presentifica em
muitas formas em seus livros: o aluno parvo ilhado no canto da sala de aula de Um
detetive em Tânger (1987: pp. 22-35), a cabana criada no livro Um teste de solidão
(1998; cf. anexo VII), a ilha perdida de Robinson Crusoé citada em “Minha vida
privada” (2001; cf. anexo I), ou a mesa de sua Teoria das mesas (1996; cf. anexo
VIII) constituem um espaço à parte, constituem um afastamento para a criação desta
sua língua poética.
Neste capítulo, tento mapear algumas das diferentes tentativas de fabricar a
distância na poesia de Hocquard, seja a partir do uso de etiquetas líricas (FETZLER,
2004: p. 115), que afinam os mecanismos de sua linguagem, seja criando dispositivos
para operar e manejar o privado, o anedótico e pessoal. Começarei tentando entender
a relação conflituosa do autor com a figura da metáfora.

25
1.1 Máquina de guerra contra a metáfora, ou a metáfora literal

Em uma das elegias hocquardianas, presente no livro Elegias, ouve-se a


seguinte voz levantando uma pergunta acerca da metáfora:

me diga
mas por que os franceses não gostam das metáforas
enquanto que nós
nós a adoramos?1
(HOCQUARD, 1990: p. 102)

Formulada pelo poeta norte-americano Peter Gizzi,2 a questão parece


duplamente relevante: por um lado, ela diagnostica a recusa da metáfora, e por outro,
a localiza no âmbito da literatura francesa. Sua colocação é pertinente uma vez que
esta recusa marca fortemente o discurso de uma poesia da segunda metade do século
XX, que se volta contra o excesso imagético presente na escrita poética ou, para usar
um termo poundiano,3 que se volta contra a fanopeia, que dominou a poesia desde o
surgimento das vanguardas do começo do século e determinou a metáfora como um
dos eixos centrais ligados à produção imagética do século passado. O discurso crítico,
em geral, também se refere a esta geração como uma “máquina de guerra contra a
metáfora” (RABATÉ, 2006: pp. 104-105). Máquina de guerra, recusa, combate à
metáfora, esses e outros termos que aparecem em tal discurso, tirados de um campo
semântico “bélico”, levam a pensar no tipo de negativa que será estabelecido. Cabe
acentuar que, nesta negativa, importa mais a resistência que o combate, pois é ela que
permite o movimento presente no uso da metáfora. O combate negaria a metáfora,
enquanto que a resistência permite fabricar a distância, avaliar e utilizar a figura.

1
“dites-moi / mais pour quoi les Français n’aiment-ils pas les métaphores / alors que nous / nous les
aimons?”
2
Embora o poeta norte-americano Peter Gizzi não apareça nomeado no poema, Hocquard esclareceu
em uma conversa que a voz no poema é a dele.
3
Segundo Pound, haveria três modalidades de poesia, a melopeia, em que as palavras estariam
impregnadas de uma propriedade musical; a fanopeia, “um lance de imagens sobre a imaginação
visual” e a logopeia, “a dança do intelecto sobre as palavras.” (POUND, 1970: p. 11) Gonzalo Aguilar
observa em seu estudo sobre a poesia concreta, que teria havido com a chegada das vanguardas uma
passagem da melopeia para a fanopeia, que então dominaria a poesia no século XX, passando pelos
imagistas norte-americanos, pelos surrealistas franceses, até os latino-americanos. No caso da poesia
concreta, é a própria palavra que adquire um caráter imagético icônico, material. (AGUILAR, 2005: p.
209)

26
Por outro lado, há uma distinção importante aqui, entre o uso da metáfora
propriamente dita e o uso de uma linguagem congelada, automatizada, poética. No
livro Dez lições de gramática, Hocquard observa:

O tédio com as metáforas se deve ao fato de elas serem clichês (e todos os


clichês se parecem). Em vez de tornar as coisas claras, elas as diluem em
aproximações surpreendentes. Quando você compara seus sentimentos
pela sua amada àqueles que lhe inspiram uma gazela ou uma palmeira,
você está falando de um animal ou de uma árvore e não de sua amada.4
(HOCQUARD, 2002: pp. 9-10).

Assim, ele afirma, existe um tédio com a figura da metáfora, porém percebe-se
que metáfora, nesta citação, serve de metáfora para uma linguagem automatizada ou
para um tipo de transporte específico, que pode ser visto na linguagem dos poemas de
amor, em que a amada é aproximada a outros seres. É curioso perceber essa relação,
justamente em um momento em que o discurso se volta contra a metáfora: em outras
palavras, a metáfora está sempre no centro da linguagem, de transposição em
transposição, de analogia em analogia, o mundo vai sendo construído, mesmo que sob
certa resistência. Para citar Nietzsche, autor que aparece em alguns momentos na
reflexão de Hocquard sobre a metáfora, “o homem é um animal metafórico” e está
sempre criando transportes para suas representações. (Cf. KOFMAN, 1983: p. 44)
Portanto, na tentativa de se afastar do clichê e da metáfora gasta, Hocquard propõe
uma atualização da metáfora, seja pelo humor, seja pela identificação de seus
mecanismos com o objetivo de usá-los ao seu modo, em seu contexto. Pode-se
depreender desta maneira de lidar com a metáfora um modo de funcionamento
interessante, em que se nega o pathos expressivo, a voz lírica, um tipo de escrita
automatizado, através das próprias ferramentas, deslocando-as e dando-lhes outras
funções.
No livro Um detetive em Tânger, Hocquard conta, de forma espirituosa, em
entrevista a Henry Deluy, que um dia estava em Symi, ilha grega, e viu “descer a
metáfora”. Ele narra o acontecimento da seguinte maneira:

4
“L’ennui avec les métaphores, c’est que ce sont des clichês (et tous les clichês se ressemblent). Au
lieu de clarifier les choses eles les diluent dans d’ahurissantes approximations. Quand vous comparez
vos sentiments pour votre amie à ceux que vous inspirent une gazelle ou un palmier, c’est d’un animal
ou d’un arbre que vous parlez, pas de votre amie.”

27
Estávamos à beira da água e ao longo da estrada em construção descia o
único veículo motorizado da ilha, que servia precisamente para construir a
estrada. [...] E sobre o flanco deste caminhão estava pintado em caractere
grego a palavra metáfora, isso é, literalmente, “transportes”. E ali nos
voltamos sobre as palavras que comem a si próprias em relação ao sentido
porque tínhamos diante de nós, ao pé da letra, uma metáfora. Ora, uma
metáfora ao pé da letra não é mais uma metáfora.5 (HOCQUARD, 1987:
p. 160)

A metáfora que se literaliza, que “desce” e se materializa presente nesta


anedota evoca um modo de pensar o uso da metáfora e torna a dar a ela a dinâmica
que possui, a dinâmica presente no transporte que lhe caracteriza. O humor em jogo
nesta metáfora transformada em caminhão de transporte, que poderia ser chamada de
uma metáfora literal, reside justamente no fato de ser e não ser uma metáfora, ou seja,
de a “palavra comer a si própria” no momento em que passa a ser literal.
Ao desenvolver a questão da arbitrariedade dos signos linguísticos, Nietzsche
utiliza a metáfora como sendo a figura central de ligação entre o mundo e a
linguagem. (NIETZSCHE, 2004). Em seu O livro do filósofo, ele explora a ideia de
uma transposição da “coisa em si”, totalmente inapreensível para o homem, para a
linguagem. Esta transposição, para ele, se daria como uma metáfora:

A “coisa em si”, mesmo para aquele que elabora e aperfeiçoa a língua, é


completamente inapreensível e não vale os esforços que exigiria. Designa
somente as relações das coisas com os homens e vale-se, para sua
expressão, das mais ousadas metáforas. Transpor primeiro uma excitação
nervosa para uma imagem! Primeira metáfora. A imagem transformada
de novo em um som articulado! Segunda metáfora. E a cada vez um salto
completo de uma esfera a outra esfera totalmente diferente e nova.
(NIETZSCHE, 2004: p. 67)

Para Sarah Kofman, o modo de descrevermos e pensarmos as metáforas


também seria metafórico: “transposição”, “transporte”, “esfera”, “coisa em si” seriam
metáforas, e “todas essas noções implicam, de fato, no espaço, esquema metafórico
fundamental: a noção de metáfora é uma metáfora”. (KOFMAN, 1983: p. 65). Em
sentido estrito, não haveria linguagem sem este transporte metafórico, uma vez que
toda palavra deriva de alguma metáfora, e em algum grau poderá se tornar uma

5
“Nous étions au bord de l’eau et le long de cette route en construction descendait l’unique vêhicule
motorisé de l’île, qui servait précisement à construir ela route. [...] Et sur le flanc de de cette espèce de
camion il y avait, peint en grands caracteres grecs, le mot “metaphores”, c’est à dire, littéralement,
“transports”. Et là on en revient aux mots qui se mangent eux-mêmes quant au sens, parce qu’on avait
devant nous, à la lettre, une métaphore. Or une métaphore ‘à la lettre’ ce n’est plus une métaphore.”

28
metáfora lexicalizada, isso é, uma metáfora que foi incorporada com o uso e não é
mais sentida (Idem: p. 179). A metáfora lexicalizada seria, em certo sentido, uma
metáfora morta, porém, já observou John Searle, “as metáforas mortas são
especialmente interessantes [...] pois, oximoricamente falando, metáforas mortas são
as que sobreviveram” (apud GUERIZOLI-KEMPINSKA, 2009: p. 208). Assim, de
transporte em transporte, a metáfora vai se metamorfoseando.
Pode-se dizer que a metáfora está no princípio da linguagem e o uso lhe
proporcionará os movimentos, desvios e derivas que lhe são próprios, como por
exemplo, a deriva que Nietszche observa de metáfora para conceito. Em O livro do
Filósofo, o autor mostra que qualquer palavra adquire a dimensão de conceito,
ferramenta usada por qualquer forma de pensamento racional, quando abandona e
desconsidera as diferenças singulares entras coisas e acontecimentos do mundo. Para
ele, “todo conceito nasce da identificação do não-idêntico”. A folha é um conceito
porque não corresponde a cada uma das folhas com suas particularidades, todas elas
tecidas pelas mãos inábeis que nunca correspondem ao original. O conceito, segundo
Sarah Kofman, seria um terceiro grau do transporte da metáfora, passando do análogo
para o idêntico.
No texto “Minha vida privada”, Hocquard trabalha com essa transformação da
metáfora em conceito:

Pincel é uma metáfora. O baú de brinquedos está cheio de objetos


privados, de anedotas que, expostas à luz do dia, tornam-se metáfora,
figura de estilo, lembrança individual, autobiografia. É preciso
rapidamente intervir e transformar essas metáforas em conceitos, que
colocamos então na caixa de ferramentas. Pincel tornou-se um conceito6.
(HOCQUARD, 2001: p. 269)

A transposição neste caso, para usar uma linguagem hocquardiana, deve ser
feita entre um baú de brinquedos, onde se encontra o autobiográfico, para uma caixa
de ferramentas. Trata-se de um deslocamento, de um afastamento: retirar o privado
do baú e transformá-lo em conceito, em teoria descartável, na caixa de ferramentas.
Na sequência do texto citado acima, Hocquard exemplifica:

6
“Blaireau est une metaphore. Le coffre à jouets est plein d’objets prives, d’anecdotes qui, exposés à la
lumière du jour, virent à la metaphore, à la figure de style, au souvenir individuel, à l’autobiographie. Il
faut três vite intervenir et transformer ces métaphores en concepts, qu’on range alors dans la boîte à
outils. Blaireau est devenu un concept.”

29
Se me falta uma ferramenta para operar uma conexão, eu tiro, no baú de
brinquedos, um objeto privado com o qual fabricarei o conceito que eu
preciso. As mesas de Montalban, por exemplo, ou o estreito de Gibraltar,
o cão de Madame Sakaze, o duque de Gloucester ou ainda a barragem
sobre o rio K. Eu nunca inventei uma anedota. Elas estão à minha
disposição, quando eu preciso delas.7 (Idem: pp. 269-70)

Nesse sentido, o índice denominado “baú de brinquedos” que aparece, dentre


outros, no final do livro minha sebe adquire relevância em sua obra, já que enumera
algumas dessas figuras usadas em contextos diferentes, ou seja, transformadas em
conceitos diferentes, cada um de acordo com determinada circunstância.
Em entrevista a Serge Gavronsky, Hocquard lembra das transposições
metafóricas ao analisar as expressões idiomáticas. Geralmente de uso oral e não
escrito, percebe-se que todas essas expressões eram antigas metáforas que foram
desmetaforizadas pelo uso, um pouco como uma velha moeda desmonetarizada de
que fala Nietzsche: quando a efígie original é apagada, as peças de moeda passam a
ser vistas como metal e não mais como peças monetárias. (KOFMAN, 1983: p. 42)
Neste caso, cabe pensar que esta é uma metáfora de segundo grau, que acabou
perdendo seu sentido literal e se transformando.
Na expressão “puxar o diabo pelo rabo [Tirer le diable par la queue]” – que
em português teria como equivalente “matar cachorro a grito” –, Hocquard aponta que
ninguém hoje em dia pensa sobre o rabo do diabo ou sobre o próprio diabo:
Você simplesmente pensa que significa não ter dinheiro nenhum (...) e tal
aspecto demonstra que a linguagem tem um grau de vivacidade, de vigor.
Ela vive sua vingança e encontra um jeito de pôr fim às metáforas, as
metáforas que são, geralmente, de um tipo literário. O uso remove esta
pátina literária para transformá-la em algo fluido, algo que hoje pode ser
reintroduzido em um poema, assim como o poema tem uma forma que
pode tolerar isso.8 (GAVRONSKY, 1994: p. 231)

Há alguns usos de metáfora na obra de Hocquard que valem ser lembrados e


citados dentro desses movimentos. Em primeiro lugar, menciono o poema Dois
andares com terraço e vista para o estreito (cf. anexo IV), cujo ponto de partida é
uma metáfora que poderia pertencer a um campo semântico dos mais gastos, uma

7
“Si un outil me manque pour opérer une connexion, je vais puiser, dans le coffre à jouets, un objet
privé avec lequel je fabriquerai le concept dont j’ai besoin. Les tables de Montalban, par exemple, ou le
detroit de Gibraltar, le chien de Madame Sakaze, le duc de Gloucester ou encore le barrage sur la
rivière K. Je n’ai jamais inventé une anecdote. Elles sont toutes là, à ma disposition, quand j’en ai
besoin.”
8
Original desta citação está em inglês, por isso optei por não inseri-lo.

30
metáfora de amor:
(1.a)

nunca a andaluzia esteve tão verde quanto neste ano


nunca os corretores tiveram os dentes tão afiados
trinta e seis milhões de pesetas por uma casa em Tarifa
dois andares com terraço e vista para o estreito
mais caro por metro quadrado do que em pleno centro de Marbella9
(HOCQUARD, 2001: p. 104)

Adiante, no mesmo poema, seu primeiro verso é repetido (com uma ligeira
alteração), mas aqui ele está nomeado, aparece como uma citação de si mesmo:

(1.b)

a andaluzia nunca esteve tão verde


é uma boa metáfora para começar um poema de amor
mas eu não tenho vontade de escrever um poema de amor
e não gosto de metáforas
oh minha camela branca10
(Idem: p. 108)

O poema havia começado, efetivamente, identificando a Andaluzia com um


locus amoenus perfeito para um poema de amor: “nunca a andaluzia esteve tão verde
quanto neste ano”. Mas se o texto afirma que não gosta de metáforas e que não quer
escrever um poema de amor, como entender seu primeiro verso, indo além da ironia
inevitável que ele traz?
Contrapondo-se a esta metáfora – boa metáfora para começar um poema de
amor – aparece a do segundo verso (“nunca os corretores tiveram os dentes tão
afiados”), que possui a mesma estrutura da primeira e funciona como metáfora, mas
que traz um conteúdo que se contrapõe à ideia de poema de amor, aventada mais
adiante. De fato, se pensarmos que Raquel Lévy, artista plástica, a quem o poema é
dedicado, foi casada com o poeta ao longo de duas décadas, e que o texto, em linhas

9
“jamais l’Andalousie n’a été aussi verte que cette année / jamais les promoteurs n’ont eu les dents
plus aiguisées / trente-six millions de pesetas pour une maison à Tarifa / deux étages avec terrasse et
vue sur le détroit /plus chère au mètre carré qu’en plein centre de Marbella.”
10
“l’Andalousie n’a jamais été aussi verte / c’est une bonne metaphore pour le début d’un poème
d’amour / mais je n’ai pas envie d’écrire de poème d’amour / et je n’aime pas les méthaphores. / ô ma
chamelle blanche.”

31
gerais, narra uma viagem feita a Tânger em companhia de R.,11 podemos pensar que
este poderia, de fato, ser um poema de amor para ela. Porém, se de um lado o poema
traz a possibilidade de ser um poema de amor, começando com a viagem do casal à
Andaluzia, que nunca estivera tão verde quanto naquele ano, a realidade do lugar é
muito afiada como na metáfora seguinte que logo mostra seus dentes e desbanca a
ilusão do primeiro verso, e o que poderia ser um “poema de amor” ganha outros
sentidos, mais negativos e obtusos, deixando este apenas como sugestão: a casa com
dois andares com terraço e vista para o estreito – que poderia ser objeto de compra do
casal – não tem garagem, é demasiadamente cara e não vale o investimento, a cidade
é velha e os personagens que começam a aparecer e desfilar para o casal condizem
muito com a atmosfera daquele lugar abandonado, à espera de um boom imobiliário,
ambientação que prepara o terreno para a sequência do poema e para o tipo de
frustração que o narrador terá com a viagem.
Deste modo, a metáfora existe no poema, mas é imediatamente deslocada ou
ressignificada. Adiante quando ela aparece outra vez (1b), já é com o objetivo de se
prestar ao comentário e à reflexão, também à auto-ironia. Então, nesta segunda
entrada em cena da “metáfora da Andaluzia”, podemos dizer que ela se torna, como
quer Hocquard, uma metáfora fora de contexto, já que não se trata de um poema de
amor dentro dos moldes de poema de amor e já que a metáfora está ironicamente
nomeada ali e, de certa forma, é a metáfora substituída pela palavra metáfora – para
usar uma citação que Hocquard faz de Claude Royet-Journoud ao problematizar o uso
das imagens e metáforas: “substituir a imagem pela palavra imagem, propõe Claude
Royet-Journoud”. (HOCQUARD, 2001: p. 238) A literalidade da palavra vem em
contraposição à literariedade que ela poderia conter se estivesse dentro de um
convencional poema de amor. Ela poderia ser neste caso uma metáfora literal.
Depois de afirmar que não deseja escrever um poema de amor, embora possua
a metáfora que julga adequada para isso e embora esteja com sua amada – e em uma
viagem de encontro a outro objeto de desejo, Tânger, a cidade em que passara sua
infância e juventude, o que poderia levar a pensar em um poema de amor à cidade de
Tânger –, ele acrescenta uma clássica metáfora de amor: “oh minha camela branca”,
comparando a amada a um belo e doce animal, ao modo do mais antigo e tradicional

11
Em minha sebe, na seção intitulada “Sinopse”, que constrói uma nota biobliográfica e cronológica,
há uma entrada em 1986 que relaciona tal viagem ao livro: “1986: Abril, viagem a Andaluzia e Tânger
com Raquel. Dois andares com terraço e vista para o estreito.” (HOCQUARD, 2001: p. 549)

32
poema de amor de todos, o Cântico dos cânticos do Antigo Testamento. O uso da
camela como metáfora para a mulher é bastante simbólico neste caso, sobretudo
pensando que o poema narra uma viagem para o norte do Marrocos. Além de sua
função mais imediata de companhia e transporte para as tribos nômades, o camelo é o
animal emblemático dos tuaregues e está ligado às tribos de forma extremamente
simbólica (BERNUS, 1999, 410). Segundo o Dictionnaire du Père de Foucauld,
dedicado ao idioma tuaregue, podem ser encontrados, nesta língua, cinquenta e quatro
termos que se referem ao camelo, o que poderia comprovar o inegável interesse deste
povo pelo animal (Idem). Em tal contexto, a importância da camela supera a do
camelo macho porque além de companhia e transporte, “as fêmeas de rebanhos,
camelas, cabras e ovelhas são verdadeiras fontes nutritivas” (MESLIN, 2010) e no
mundo tuaregue, “sua produção leiteira é a mais importante de todos os animais
domésticos” (BERNUS, 1999: p. 410.). Dentro do simbolismo ligado ao leite, a
comparação do animal com a mulher é inevitavelmente uma comparação com a mãe
nutritiva, que resulta no símbolo da vida. (MESLIN, 2010).
É possível encontrar a mesma metáfora usada por Hocquard em poemas líricos
tuaregues, onde a mulher, segundo Bernus, “é mais bela que uma camela branca que
se repousou / durante seis meses” (BERNUS, 1999: p. 413) ou então, nomeando a
amada: “Kouka é a miragem dos vales / [...] / ela é mais bela que a multidão de
peregrinos peregrinando até Meca / ela é mais bela que uma camela branca filhote que
mama o leite de duas camelas” (Idem).
De volta ao primeiro verso do poema, que poderia caracterizar a Andaluzia
como um locus amoenus, há ainda um outro elemento que pode contribuir nesta
leitura que consiste na cor usada na metáfora: a cor verde que colore a Andaluzia é
usada em uma metáfora que surge no poema em um ponto mais avançado, quando o
narrador retorna de Tânger a Tarifa e lhe perguntam o que achou da viagem. Neste
trecho há duas metáforas com cores:

no dia seguinte tomamos o barco


estava contente de voltar à Tarifa
o dono sorriu para mim
não pensava revê-lo tão cedo
eu encontrei seu boné

33
(2) Hemingway disse não confia nele é um vermelho
comprou seu boné em Moscou
então como estava Tânger
(3) nojento eles pintaram todos os cachorros de verde12
(HOCQUARD, 2001: p. 131)

O verde neste trecho (3) se refere à cor da bandeira islâmica, querendo dizer
que a cidade foi toda convertida ao islamismo, foi inteira pintada de verde e nem os
cachorros escaparam. Da mesma maneira, o verde está presente em Casablanca: na
hora em que o irmão de R., chamado pelo narrador de Hemingway, conta do choque
que teve ao rever a villa em Casablanca, ele diz: “parecia que eles a tinham
transformado em uma clínica / você não imagina a cor verde horrível que usaram nas
paredes da entrada e na escadaria enorme” (Idem, p. 112). Enquanto que no caso dos
cachorros o verde é metáfora para islamismo, aqui ele é literal, as paredes da clínica
estão verdes. Pode-se dizer que ocorre neste trecho mais uma metáfora literal. Quanto
à primeira metáfora citada no trecho acima (2), refere-se ao fato de o narrador ser
comunista, porém é a menos trabalhada das três citadas.
Claude Royet-Journoud faz uma colocação interessante acerca das metáforas
surrealistas que ajuda a compreender melhor esse movimento da metáfora na poesia
de Hocquard:
A dificuldade está na literalidade (e não na metáfora). Está na possibilidade de
medir a língua em suas unidades de sentido ‘mínimas’. Para mim, o verso de
Éluard, A terra é azul como uma laranja se esgota, isso é, se anula por seu
excesso de sentido, enquanto que, por exemplo, A parede do fundo é uma
parede de cal de Marcelin Pleynet permanece e permanecerá, eu acredito,
graças à sua própria exatidão e em seu contexto claro, paradoxalmente
infixável quanto ao sentido, e então portador de uma ficção constante para
cada um. (ROYET-JOURNOUD, 2007: p. 71)

O verso de Éluard seria uma trouvaille poétique que traz um efeito inesperado,
surpresa – ao dizer que a terra é azul em vez de redonda, por exemplo. Já a frase de
Pleynet, segundo Hocquard, “não faz sair nenhum coelho da cartola, é um enunciado
descritivo, simples, quase banal, que pode ser dito por qualquer um e por isso
inesgotável.” (HOCQUARD, 2001: p. 72)

12
“le lendemain nous avons repris le bateau / j’étais content de retourner à Tarifa / le patron m’a souri /
je ne pensais pas vous revoir de sitôt / j’ai retrouvé votre casquette / Hemingway a dit mefiez-vous de
luis c’est un rouge / il a acheté sa casquete à Moscou / alors c’était comment Tanger / dégueulasse ils
ont peint tous les chiens de vert.”

34
Cabe lembrar também que Éluard foi um dos pilares do surrealismo francês e
Pleynet, um dos fundadores da Tel Quel – cujo primeiro número, nos anos 60, trazia a
seguinte epígrafe de Nietzsche: “eu quero o mundo e eu o quero tal e qual”. (cf.
COLLOT, 2005: p. 140). Embora Pleynet trouxesse ainda algumas ligações com o
surrealismo – como por exemplo a crítica a ideais românticos como inspiração ou
autoridade do eu poético, tentando privilegiar a obra (GAVRONSKY, 1994: p. 14) –,
o discurso da Tel Quel e de sua geração era repleto de restrições à volta do
surrealismo no pós-guerra e isso fica bem evidenciado nos dois exemplos citados.
Também no livro Teoria das mesas (1992), de Emmanuel Hocquard, pode ser
encontrada uma metáfora para a escrita que é interessante dentro das questões
trabalhadas, além do livro apresentar diversas metáforas. No posfácio do livro (cf.
anexo IX), Hocquard evoca o arqueólogo Montalban, personagem presente em outros
textos seus, usando-o como descrição para o método que pretende usar neste livro: o
trabalho de Montalban consistia em reunir, no litoral atlântico da costa africana,
vestígios de uma antiga loja romana que havia ali, na tentativa de reconstituir, mesmo
que parcialmente, um mural que ficava exposto no estabelecimento. Com este intuito,
o arqueólogo juntava os fragmentos coloridos de antigos afrescos e os depositava
sobre uma mesa, tentando montar o quebra-cabeças e encontrar a disposição original
dos pedaços. Porém, os cacos se revelavam inaptos à tal reconstituição e, pouco a
pouco, ele percebia que não era possível remontar a origem. Ao evocar esta
lembrança, Hocquard a transporta para sua Teoria das mesas, mostrando que seu
trabalho é como o de Montalban:
Eu trabalho sobre uma mesa. Eu espalho nela uma coleção aleatória de objetos
de memória, que precisam ser formulados. À medida que vão se elaborando as
formulações, as relações lógicas (não-causais) podem aparecer. [...] É ali que
de repente vemos alguma coisa, que um outro sentido surge, mesmo a
propósito de coisas antigas. Neste momento, um enunciado torna-se possível.13
(HOCQUARD, 1992: posfácio)

A mesa de seu livro não contém apenas objetos de memória, como ele
descreve, mas também estilhaços, cacos, restos, como aqueles encontrados por
Montalban e livro está repleto de um vocabulário ligado a um campo semântico
estilhaçado, arqueológico: estilhaço, caco, seixo, fragmento, pedaço, peça. Porém,

13
“Je travaille sur une table. J’y jette, à plat, une collection aleatoire d’“objets de mémoires”, qui
restent à formuler. Au fur e à mesure que s’élaborent les formulations, des relations logiques (non
causales) peuvent apparaître. [...] C’est là que “soudain”, on voit quelque chose”, qu’un autre sens
surgit, même à propôs d’anciennes choses. A ce moment-là, un énoncé devient possible.”

35
embora no posfácio Hocquard compare seu trabalho ao de Montalban, ao longo do
poema pode-se perceber uma negatividade quanto ao método: ele utiliza perguntas e
imperativos negativos, indicando o que não deve ser feito. Cito o primeiro fragmento,
onde pode-se perceber bem o uso da comparação.

Marrons, verdes e pretos

Não diga os estilhaços de vidro são as palavras


ou são como as palavras do poema

Querida B., esqueça as palavras


não conte os anos

Não pense que você tem na mão


os pedaços do poema, o tempo

Não escreva a cor contém a história

Esses seixos não dizem Mar Egeu


sobre os envelopes

Esses cacos não são as sílabas


esses envelopes não contém as letras

Não sonhe que você sufoca a cada noite14


(HOCQUARD, 1992: poema 1)

O poema tem início nomeando os cacos, marrons, verdes e pretos, porém, já


no segundo verso, ele nega a metáfora da escrita: “não diga os estilhaços de vidro são
as palavras do poema” e em seguida: “não pense que você tem na mão os pedaços do
poema”. Vê-se aqui a tentativa de resistir à equivalência entre os objetos da mesa e a
linguagem e com ela a problematização da comparação entre eles, possibilitando a
inserção de outros elementos. No entanto, cabe observar que mesmo com a
resistência, a comparação ocorre. No posfácio do livro, o autor afirma que as
negações funcionam neste poema como uma sobreafirmação.

14
“Bruns, verts & noir // Ne dis pas les éclts de verre sont les mots / ou sont comme les mots du poème
// Chère B., oublie les mots / ne compte pas les années / Ne pense pas tu tiens dans ta main / les
morceaux du poème, le temps // N’écris pas la couleur contient l’histoire / Ces cailloux ne disent pas
mer Egée / sur les enveloppes // Ces tesson ne sont pas les syllabes / ces enveloppes ne contiennent pas
de lettres // Ne revê pas que tu étouffes chaque nuit.”

36
Giorgio Agamben busca fazer uma genealogia interessante do conceito de
dispositivo, que pode me ajudar a pensar nas teorias descartáveis e na relação de
Hocquard com sua linguagem poética. Agamben aborda o alcance do conceito de
dispositivo dentro do pensamento foucaultiano e depois estabelece, sob seu ponto de
vista, certos limites e usos. Ele menciona ainda o uso traçado por Martin Heidegger,
seja em seus textos mais voltados à questão da técnica seja em um texto dedicado ao
dispositivo (HEIDEGGER, 2006). Agamben mostra que, para Foucault, o termo
dispositivo é mais um de seus universais, categoria bastante ampla e difícil de ser
definida, mas que, em termos gerais, relaciona-se à rede estabelecida entre elementos
bastante heterogêneos entre si, tais como discursos, instituições, leis, medidas
administrativas, enunciados filosóficos etc. (AGAMBEN, 2006: p. 25) Lendo
simultaneamente a acepção para dispositivo presente no dicionário e o uso feito por
Foucault, Agamben resume o termo da seguinte maneira:

O termo parece remeter a um conjunto de práticas e de mecanismos (ao


mesmo tempo linguísticos e não-linguísticos, jurídicos e não jurídicos,
técnicos e militares) que tem por objetivo responder a uma urgência para
obter um efeito mais ou menos imediato. (Idem: p. 28)

Seria possível dizer que a ideia de conceitos descartáveis tal como usada por
Hocquard na construção de seus poemas se aproxima da noção de dispositivo, se
pensada sob esta definição: são mecanismos estabelecidos para responder a alguma
situação específica. Contudo, seguindo a conceituação de Agamben, pode-se
desenvolver melhor tais relações. Ele mostrará outros aspectos deste conceito
tomando a noção de oikonomia divina: oikonomia, do grego, quer dizer administração
da casa (oikos) e, com mais frequência, gestão. Nos primeiros séculos da história da
Igreja, tal termo teve uma função decisiva em relação à questão da Trindade e
resolveu um problema delicado criando uma cisão que sobrevém até hoje em dia.
Citando Agamben:
Quando, ao longo do século segundo, se puseram a debater em torno de
uma trindade da figura cristã, o pai, o filho, o espírito santo, houve, como
se podia esperar, uma grande resistência no interior da igreja por parte das
pessoas de maior razão que pensavam com horror que se arriscava
daquela maneira reintroduzir o politeísmo e o paganismo na fé cristã. Para
convencer seus adversários [...] os teólogos não encontraram solução
melhor que introduzir o termo oikonomia divina: Deus, em relação à sua
substância é certamente um; mas quanto à oikonomia, isto é, à maneira

37
como ele organiza sua casa, sua vida e o mundo que ele criou, ele é trino.
(Idem: p. 28)

Deste modo estabeleceu-se uma fratura entre ação e ser, e a oikonomia tornou-
se o dispositivo pelo qual o “dogma trinitário e a ideia de um governo divino
providencial do mundo foram introduzidos na fé cristã”. (Idem, ibidem.) O termo
latino usado para designar a oikonomia divina foi o dispositio, do qual deriva o nosso
dispositivo e que, para Agamben, traz necessariamente a ideia de fratura da oikonomia
divina, entre ser e práxis, natureza e gestão.
Depois de uma ampla genealogia, Agamben propõe o estabelecimento de dois
grandes conjuntos em que estariam as coisas do mundo: de um lado, os seres vivos e,
de outro, os dispositivos. Assim, diz ele, “chamarei dispositivo a tudo aquilo que, de
uma maneira ou de outra, tem a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, condutas, opiniões e discursos
dos seres humanos.” (Idem: p. 29) Neste categoria, estariam objetos, disciplinas,
ciências etc., tudo o que não fosse ser humano mas que pudesse interagir com ele:
canetas, a escrita, a filosofia, a agricultura, o cigarro, o celular, a linguagem e não
apenas as instituições reguladoras. Em cada relação entre os seres humanos e
dispositivos, que deveria ser feita como um processo de subjetivação, acaba
ocorrendo o contrário: os processos de subjetivação convertem-se em processos de
dessubjetivação pois a relação com os dispositivos contribui para manter a cisão que a
oikonomia havia introduzido entre ser e ação. Para resolver este problema Agamben
propõe a inserção de outro conceito, muito utilizado por ele: a profanação.
Segundo Agamben, a profanação seria como um “contra-dispositivo que
restituiria ao uso comum aquilo que o sacrifício separou e dividiu” (Idem: p. 31).
Deste modo, se as teorias descartáveis podem ser caracterizadas como dispositivos,
então o deslocamento corresponderia a uma espécie de “profanação”, já que permite o
movimento e fuga daquilo que se tornou estático, congelado, a teoria. Com o auxílio
do deslocamento, as teorias hocquardianas podem se descartar, ter movimento e
produzir sua poesia.
Através da compreensão das relações e de uma reordenação dos objetos, feita
com o deslocamento operado em várias instâncias, cria-se uma maneira diversa de ver
os materiais, sem, no entanto, remover deles seu aspecto mais contingente, aquilo que
os define. Seria como “ver no mesmo outra coisa” ou, em outras palavras, transpor os

38
elementos de um uso antigo para outro uso. Cito um poema extremamente importante
presente no livro Um detetive em Tanger, “Eu não sei se Fernando Pessoa realmente
existiu” (cf. anexo V), em que Hocquard analisa a maneira de Pessoa compor:

A voraz banalidade das coisas cotidianas


é seu ponto de partida e seu ponto de chegada.
Ele não pega uma coisa qualquer da realidade de todos os dias
para destacá-la e lhe dar um sentido
mais alto, nem outro sentido qualquer que esteja fora dela mesma.
Ele pega uma coisa banal que ele expõe por um momento
à luz enganosa da metafísica
para recolocá-la, inalterada – ou quase –
na banalidade voraz das coisas cotidianas.15
(HOCQUARD, 1987: p. 92)

Ao enumerar aspectos da poética de Pessoa, mesmo de forma incerta e


buscando desaprender aquilo que foi aprendido, Hocquard aponta também para o seu
próprio método de composição. O gesto de tomar uma “coisa” da realidade cotidiana
e deslocá-la, do banal e para o banal, não para lhe dar um uso diferente mas para lhe
dar o mesmo uso, é um dos objetivos da escrita hocquardiana. O deslocamento
funciona, deste modo, como uma maneira de se desacostumar, se desfazer daquilo que
aprendemos, ou criar novas relações entre o objeto deslocado e o contexto. A própria
incerteza que enuncia o poema ajuda a comprovar que o estranhamento foi alcançado
e que já se trabalha num outro plano da linguagem, onde as montanhas são as
montanhas e as águas são as águas. Incorporando uma tradução do americano Louis
Zukovsky em um poema do mesmo livro, Hocquard afirma: “LZ diz de repente
vemos outra coisa. Evidência nova sobre temas antigos. LZ diz ainda a única coisa é
se desacostumar.”

15
“La dévorante banalité des choses quotidiennes / est son point de départ et son point d’arrivée. / Il ne
prend pas une chose quelconque de la réalité de tous les jours / pour la monter en épingle et lui donner
un sens / plus haut, ni aucun autre sens en dehors d’elle-même. / Il prend une chose banale qu’il expose
un moment / à la lumière trompeuse de la métaphysique / pour la reposer, inchangée – ou presque – /
dans la banalité dévorante des choses quotidiennes.”

39
1.2 A mecânica lírica e o literal

Eu tomo a palavra literalmente literalmente, isso é, ao pé da letra. A


literalidade só pode concernir àquilo que se copia, ao pé da letra, da
linguagem (oral ou escrita), excluindo-se as proposições tais como
Édouard era literalmente louco ou então Isso se passou literalmente assim,
em que o literalmente significa algo como verdadeiramente16.
(HOCQUARD, 2001: p. 483)

Conceito que polarizou o debate contemporâneo na França desde os anos


1980, o literal está longe de ter uma definição clara ou de ter um uso unânime. Usado
geralmente em oposição ao lirismo, enquanto que poderia formar uma dupla de
oposição mais facilmente com o figural, como observa Stephane Baquey (2002: p.
309), o literal constitui um dos pontos nodais na obra de Emmanuel Hocquard.
Tentando entender os limites e tensões desta polaridade entre literal e lirismo,
Stephane Baquey sugere partir das acepções de literal encontradas no dicionário Petit
Robert para daí problematizar a relação entre os termos. Tomarei sua sugestão para
desdobrar esta leitura. Temos assim as seguintes definições de literal:

1) Que utiliza letras;


2) Que reproduz um texto letra por letra;
3) Que é tomado ao pé da letra, no sentido próprio
(BAQUEY, 2002: p. 310).

A ideia da primeira acepção é a de uma poesia que utiliza o alfabeto como seu
material elementar. A ênfase sobre a letra, sobre o significante, se oporia assim ao
lirismo da mesma maneira que um construtivismo estaria em oposição a um
expressionismo calcado em uma unidade de voz. Neste caso, não estaríamos diante do
literal pretendido por Hocquard e nem mesmo do literal contextualizado
historicamente e sim de uma “prática artística que faz da língua comum o material de
sua plasticidade” (Idem) Posso, assim, prescindir da primeira acepção.
Pulando para a terceira acepção, seria possível opor o figural ao literal e o
lirismo pode ser interpretado neste caso como uma escrita que faz uso de figuras

16
“Je prends le mot littéralement littéralement, c’est à dire à la lettre. La littéralité ne peut concerner
que ce qui releve, à la lettre, du langage (oral ou écrit), à l’exclusion de propositions telles que
Édouard était littéralement fou ou bien Cela s’est littéralement passe ainsi, où liittéralement signifie
quelque chose comme vraiment.”

40
ligadas à imaginação, “um uso simbólico da linguagem especificamente lírica se
oporia a um outro, denotativo” (Idem). Em relação ao literal, pode-se entender que
não é a acepção que interessa a Hocquard, pois ela significa algo de acordo com a
verdade. Como na epígrafe deste item, em que o autor exclui o uso “Ele é literalmente
louco”. Tal acepção não lhe interessa porque ela exige uma verdade.
Voltando para o segundo caso, que se aproxima da prática literal tal como
definida por Hocquard, o trabalho do poeta é visto como um trabalho de copista.
Baquey faz uma distinção importante neste ponto ao levantar a dúvida com ironia:
“Mas em que isso se oporia ao lirismo: uma elegia de Propércio perderia seu lirismo
pelo fato de nos ter sido transmitida por gerações de copistas?” (BAQUEY, 2002: p.
310) A motivação da oposição, segundo o autor, deveria passar pelo segundo
elemento da dupla: “Se, de fato, associamos o lirismo a um ato de uma enunciação, a
duplicação literal apagaria a dimensão enunciativa por deixar subsistir apenas o
enunciado.” Sua leitura do literal me interessa neste trabalho porque ela evoca a
enunciação e não apenas a duplicação do enunciado.
O conceito de literalidade é bastante trabalhado em outro texto de Hocquard,
“Minha vida privada” (cf anexo I), que poderia também ser uma espécie de arte
poética, publicado em 1995, no primeiro número da Revue de Littérature Générale,
editada por Olivier Cadiot e Pierre Alferi. Ali, Hocquard se detém sobre os
procedimentos de escrita e desenvolve um pouco sua intenção ao pensar na
literalidade. Em certo momento, ele explica que, ao falar de literalidade, é preciso que
ela se apóie sobre uma proposição já formulada, oralmente ou por escrito. A
literalidade, diz ele, só está em questão “quando há repetição da proposição, em um
contexto de surdez, de interrogação ou de incerteza.” Eis seu exemplo para o que seria
isso:

Exemplo. Olivier diz a Emmanuel: o vestido de Pascalle é vermelho.


Emmanuel, que não entendeu, ou que não tem certeza de ter
compreendido bem o que Olivier disse ou que se surpreende porque ele
viu que o vestido de Pascalle é verde, se vira para Pierre que lhe repete o
que lhe disse Olivier: o vestido de Pascalle é vermelho.
Estamos aqui diante de um tipo particular de representação. Não a
representação de uma observação primeira relativa à cor real do vestido de
Pascalle mas a re(a)presentação do enunciado da observação em questão.
Pouco importa que o vestido de Pascalle (da primeira proposição: o
vestido de Pascalle é vermelho) seja realmente vermelho. O que conta é
que a segunda proposição: o vestido de Pascalle é vermelho seja,

41
literalmente, a mesma que a primeira. É este tipo de tautologia que produz
a literalidade. E como = é impossível, o vestido de Pascalle é vermelho
diz outra coisa que o vestido de Pascalle é vermelho.17 (HOCQUARD,
2001: pp. 263-64)

Deste modo, o literal consistiria na repetição de certo enunciado de um


contexto para outro, independentemente da verdade contida nele. O que deve ser
levado em conta, neste procedimento, é o deslocamento, a transição de um contexto
para outro. O deslocamento transformaria um enunciado repetido em algo diferente
dele, com a condição de ser, ainda assim, o mesmo enunciado.
Um texto interessante, dos primeiros em que aborda a questão do literal em
sua obra, é “A biblioteca de Trieste” (HOCQUARD, 2001), transcrição de uma
palestra feita na Califórnia em 1986, que consiste em um balanço da sua produção e
de seu percurso até aquele momento, onde reflete sobre seu lugar dentro daquilo que
denominou de modernidade negativa. Tendência surgida na França nos anos 1960,
primeiro em torno do poeta e editor Claude Royet-Journoud e, nas décadas seguintes,
em torno de Hocquard e da Orange Export Ltd., editora que ele funda e dirige junto
com Raquel Lévy, a modernidade negativa designa o grupo de escritores que, em
contraste com os poetas que eles denominavam como líricos, buscava uma escrita que
fosse “sem sotaque poético, tão seca quanto um torrada sem manteiga”
(HOCQUARD, 2001: p. 26). Os modernistas negativos se alinhavam com
algumas características do modernismo, mas seu denominador comum era
principalmente a oposição a uma certa modernidade, a modernidade triunfante de
antes da guerra, aquela que apostava na militância estética das vanguardas ou em
uma crença no progresso e na história. A vertente negativa do modernismo não
podia mais aderir ao seu mito revolucionário inicial e consistia num modernismo
apofático, que vivia uma crise de valores e questionava sua própria condição
(Idem: p. 25). Deste modo, o “negativo” que designa o termo não significa a negação

17
“Exemple. Olivier dit à Emmanuel: la robe de Pascalle est rouge. Emmanuel, qui n’a pas entendu, ou
qui n’est pas certain d’avoir bien sais ice qu’Olivier a dit ou qui s’étonne parce que qu’il a vu que la
robe de Pascalle est verte, se tourne vers Pierre qui luis réptète ce qu’a dit Olivier: la robe de Pascalle
est rouge. // Nous sommes ici devant un type particulier de représentation. Non la représentation d’une
observation première portant sur la couleur réele de la robe de Pascalle, mais la re-présentation de
l’énoncé de l’observation en question. Peu importe que la robe de Pascalle (de la première proposition:
la robe de Pascalle est rouge) soit réellement rouge. Ce qui compte est que la seconde proposition: la
robe de Pascalle est rouge, soit, littéralement, la même que la première. C’est cette sorte de tautologie
que produit la littéralité. Et comme = est impossible, la robe de Pascalle est rouge dit autre chose que la
robe de Pascalle est rouge.”

42
do modernismo para ser seu oposto e, sim, a ausência de algumas de suas
características positivas ou identificadoras (FETZLER, 2004: p. 2). Gilles Tiberghien
observa que o termo negativo é usado mais como uma alternativa à noção imprecisa e
cheia de conotações que possui o “pós-modernismo” do que uma opção por uma
negatividade radical (TIBERGHIEN, 2006: p. 85).
Sob a rubrica deste negativo, que traz em si uma vigilância crítica,
encontravam-se diversos modos de expressão e não apenas a expressão poética e
nesse sentido a Orange Export Ltd. foi decisiva para eles, uma vez que encomendava
os textos e possibilitava o trabalho com imagens e tiragens pequenas, sem
preocupações mercadológicas.
“A biblioteca de Trieste” consiste em um texto militante em que Hocquard
busca, a partir de sua própria prática, definir esta “poética”, suas opções e caminhos,
mas, além disso, tem o intuito de expor o esgotamento que estava atravessando e de
mostrar que estavam perdendo sua crítica e transformando sua produção em um tipo
de narcisismo literário. Neste texto, Hocquard observa que aquela poesia menor (no
sentido deleuziano do termo), sem acento poético e sem modo de usar (2001: p. 26),
acabaria, com o tempo, se tornando escola para muitos poetas e que teria perdido sua
vigilância crítica, caindo no risco de “engendrar um sistema de valores legitimantes”
como havia sido a própria modernidade triunfante criticada por eles (Idem: p. 27).
Certamente este também era um risco dentro do seu próprio percurso poético e tal
texto é a afirmação de um momento em que tenta buscar uma solução para o seu
trabalho e em que encena, claramente, o procedimento de deslocamento adotado por
ele para a escrita. A máquina de guerra aqui, pode-se conjeturar, será contra a
consolidação de um sistema, seja um sistema envolvendo produção, publicação,
circulação – que havia sido estabelecido em torno da Orange Export e de seu papel
dentro da vida literária parisiense –, seja um sistema dentro de sua própria obra que
poderia constituir um “modelo” poético, uma “fórmula” sedimentada, uma teoria
poética fechada. Seu primeiro livro, As pasta, publicado pela Orange Export é de
1973 e “A biblioteca de Trieste” é um balanço de sua escrita treze anos depois, é um
texto que avalia sua produção e que volta os olhos para a sua geração,
contextualizando-a.
Esse ano de 1986 é também o ano em que Hocquard se muda para Roma e
deixa o círculo parisiense, onde havia sido editor e responsável pela programação de
leituras no l’Arc, no Museu d’Art Moderne de la Ville de Paris, para onde levou

43
centenas de poetas para encontros poéticos, dentre os quais muitos norte-
americanos.18 Raquel Levy conta que o ambiente em torno da Orange Export Ltd.
também havia se institucionalizado, mesmo que mantendo uma estrutura artesanal: a
relação com a imprensa, com o ambiente literário, com os novos poetas que
começavam a ver o coletivo como uma fórmula. A saída para esse momento poético
de esgotamento vivido por ele poderá ser encontrada na reflexão desenvolvida acerca
do procedimento empregado pelo norte-americano objetivista Charles Reznikoff na
composição do livro Testemunho, procedimento que será a seus olhos decisivo como
método de escrita (na ótica explícita de um apagamento do sujeito).
Para tratar deste livro, designado por Jacques Roubaud como paradigmático de
uma “tentativa objetivista (radical)” (ROUBAUD, 1996: s36), cito o próprio Roubaud
acerca de tal procedimento:
A primeira operação é a da extração, da montanha documentária em que
estão depositadas as falas, segundo critérios estritos: controle de precisão.
[...] A segunda operação, sem a qual a primeira não funcionaria, é a da
disposição em versos. Pelo corte, eles se tornam versos; [...] poemas. Em
seguida, sequência de poemas, série discreta (descontínua), sabiamente
construída, que ele chama de um recitativo. (ROUBAUD, 1996: seção 36)

Recitativo: gênero de canto declamatório. Próprio para ser recitado, como as


epopeias. Testemunho, de Charles Reznikoff, recitativo composto de quatro livros, é
feito a partir de textos tirados de depoimentos de testemunhas (no sentido legal do
termo) de fait divers ocorridos nos Estados Unidos entre 1885 e 1915. O material foi
todo selecionado pelo autor em tribunais norte-americanos, copiado literalmente e,
depois, classificado e versificado. Recitado. Como pode ser lido na ficha técnica do
livro:
Tudo o que se segue foi baseado em relatórios legais de diversos estados
americanos. Os nomes das pessoas são fictícios e também os nomes das
vilas e cidades foram mudados. (REZNIKOFF, 1979: p. 9).

18
Na apresentação do livro 49+1 poetas, Hocquard comenta que foi responsável de 1977 a 1991 pela
programação de leituras de poesia no Arc, no Musée d’Art moderne de la Ville de Paris, para onde ele
levava, sempre que possível, poetas americanos, conhecidos ou não na França, para lerem seus textos.
Dentre os quais o autor lista os seguintes: Harry Matheus, Kenneth Koch, David Antin, Rosmarie
Waldrop, Keith Waldrop, Robert Duncan, Robert Creeley, Rae Armantrout, Clark Coolidge, Michael
Palmer, Mei-Mei Berssenbrugge, Gustaf Sobin, Joseph Simas, Robert Kelly, Tom Mandel, Barret
Watten, Carl Rakosi, Michael Davidson, Lyn Hejinian, Charles Bernstein, David Bromige, Stephen
Rodefer, Michael Gizzi, Norma Cole, John Taggart, Peter Gizzi, Fanny Howe, Connel McGrath, Ray
Ragosta, Marjorie Welish. Tais leituras sempre foram associadas às leituras das traduções dos poemas
feitas pelos tradutores franceses. (HOCQUARD, 2001: p. 140)

44
Apenas dois dos quatro livros foram publicados enquanto seu autor ainda
vivia, em 1965 e 68, respectivamente, e trazem como título: Testemunho, Estados
Unidos 1885-1890, recitativo e o segundo Testemunho, Estados Unidos 1891-1900,
recitativo. Os dois outros volumes são póstumos mas seguem o mesmo princípio e a
organização dos dois primeiros, divididos em três partes: “sul”, “norte” e “oeste” .
Cada uma dessas grandes partes é subdivida em seções onde os poemas entram
numerados. Algumas dessas seções trazem títulos que delimitam o campo semântico
dos textos ali apresentados, mostrando um trabalho de classificação e ordenação por
parte do autor; há, por exemplo, seções denominadas Vida social, Meninos e meninas,
Negros, Vidas domésticas, Propriedade, Era das máquinas, Mexicanos etc.
Antes de mais nada, o que está em jogo neste livro é o deslocamento:
Reznikoff desloca os depoimentos das testemunhas de um contexto jurídico para um
contexto literário e versifica os textos. Assim, destacam-se, neste procedimento, dois
aspectos fundamentais: de um lado o contexto de onde foram tirados os textos; de
outro, a ordenação em versos do material recolhido. De onde partem e como chegam.
Quanto ao contexto, interessa o aspecto jurídico dos depoimentos: “utilizando
um material de base perfeitamente ‘prosaica’” (MANNO, 1999: p. 81), esses são
textos descritivos, que narram situações que derivam em crimes diversos e muitas
vezes em mortes. As testemunhas falam ali uma língua americana completamente
isenta de qualquer conclusão ou subjetividade, uma língua que descreve bem ao modo
objetivista: “Descreva. Não explique”. O julgamento acerca desses crimes é feito
posteriormente e deixado para o leitor. Como observa Jacques Roubaud acerca dessas
vozes:

[tudo isso] se passou nos Estados Unidos ao longo dos últimos anos do
século XIX. Foi desse jeito, dizem as testemunhas, que eles morreram: o
menino de treze anos em uma mina, o negro em meio à rua empoeirada
em uma pequena vila ao Sul, o guarda-freios que cai de cima de um trem
coberto de neve. A forte particularidade dessas falas consiste no fato de
terem sido pronunciadas para orelhas legais, isso é, legitimadas pelo
direito desta nação terrificante e fascinante: o juiz, o júri, o público do
tribunal; e em seguida transcritas e enterradas nos arquivos. (ROUBAUD,
1996: seção 36)

Ainda segundo Roubaud, o que permitiria a Reznikoff escapar às armadilhas


do sentimentalismo, da propaganda e do moralismo seria o fato de ele trabalhar com
fragmentos de língua preexistentes, compostos de acordo com critérios estritos: os

45
relatórios de testemunhas legais, “a língua das testemunhas se expressando diante da
lei.” (Idem). Além disso, ao intervir no material ao modo de um taxonomista,
recortando e remontando em versos as passagens escolhidas e reordenando-os
segundo uma determinada classificação, Reznikoff exclui a expressão pessoal criando
uma matéria descritiva que compõe, em sua fragmentação, um tom único, falado nesta
língua norte-americana. Uma massa heterogênea de vozes que constitui uma ampla
galáxia reznikoffiana. O autor, filho de imigrantes russos que chegaram nos Estados
Unidos no final do século XIX, também publicou outro livro seguindo o mesmo
dispositivo de Testemunho: Holocausto, baseado desta vez nos 36 volumes tirados
dos arquivos dos julgamentos de Nuremberg e Eichmann – Holocausto traz
implicações diversas e diferentes do Testemunho, que não tratarei aqui, mas cabe
destacar o procedimento operado, que é o mesmo nos dois livros.
Em entrevista ao crítico Eric Audinet, Hocquard faz uma distinção importante
em relação ao Testemunho:

Na verdade, trata-se menos de uma mudança de forma que de formato (ou


de contexto). E prefiro falar em deslocamento em vez de desvio. Quando
Reznikoff monta / mostra as minutas de processo como poemas, ele vai
buscar estes textos em seu formato judiciário inicial e os transforma em
um formato de literatura. Que ele lhes dê a forma de poema não me parece
necessariamente o mais importante. O importante é a iluminação diferente
e as novas entonações que traz a mudança de formato.19 (HOCQUARD,
2001b: p.8)

Formato em vez de forma e deslocamento em vez de desvio: com esta


distinção Hocquard anuncia uma das questões polêmicas discutidas em um encontro
dedicado ao estudo dos objetivistas americanos organizado por ele em 1989 no Centro
da Fondation Royaumont. No encontro, Yves di Manno, que havia sido colaborador
de Hocquard em algumas traduções, pergunta-se acerca da importância do
procedimento de Reznikoff para os franceses e questiona a ênfase dada ao
procedimento: para ele, em se tratando apenas do procedimento de reprodução, é
preciso lembrar de um trabalho idêntico feito na França em 1924: Kodak, de Blaise
Cendrars, tornado Documentaires, inteiramente composto segundo o mesmo método

19
“À vrai dire, il s’agit moins d’un changement de forme que de format (ou de contexte). Et je
préférais parler de déplacement que de détournement. Quand Reznikoff mont(r)e des minutes de procès
comme des poèmes, il va chercher ces textes dans leurs ‘format judiciaire’ initial et les fait passer dans
celui de la ‘littérature’. Qu’il leur donne la forme de poèmes ne me paraît pas forcément le plus
important. L’important est l’éclairage différent et les intonations nouvelles qu’apporte le changement
de format.”

46
(MANNO, 1999: 80-1); além deste, dentro da ampla tradição francesa de colagem, há
ainda outros trabalhos que seguem o mesmo método e também outros exemplos na
poesia do século XX de movimentação e experimentação em torno da prosódia.
Assim, para ele, não se trata apenas de uma preocupação de ordem técnica que teria
levado Hocquard a ler tão de perto Reznikoff.
Di Manno levantará, assim, a hipótese de que o interesse de certa poesia
francesa pela norte-americana reside não em uma busca por novas formas ou
desenvolvimento do verso; o interesse francês pela poesia norte-americana, e mais
especificamente, pelos objetivistas, residiria no sentido de coletividade presente em
certa poesia americana do século XX e de sua relação com a história. Ou seja, daquilo
que Pound denominou “the tale of the tribe” ao se referir aos Cantos, da valorização
de uma escrita épica, no sentido amplo e vago da palavra. Sob esse termo, afirma Di
Manno,
eu entendo não apenas aquilo que se pode ler como “poema mais
extenso”, mas o conjunto de obras buscando redefinir a possibilidade de
um canto comum, dando destaque aos laços que ligam o poeta à sua
coletividade, à custa de substituir uma trajetória estritamente individual.
(MANNO, 1999: p. 84)

A lista de poemas dentro da tradição norte-americana de poemas longos citada


por Di Manno será extensa e inclui de Cantos, de Pound à Pologne de Rothenberg,
passando pelo Paterson de William Carlos Williams, o Pont de Crane, Maximus
Poems de Charles Olson e A de Louis Zukofsky. Nesta série, é preciso incluir o
Testemunho, de Reznikoff em lugar de honra.

Apesar da diversidade, todos esses livros sublinham a passagem


incompleta em nós de um canto e de um registro individual a uma palavra
plural – que me desperta o ímpeto de nomear como uma polifonia, onde a
coletividade como sujeito assume o passo sobre o material estritamente
“biográfico” (emotivo, sentimental) do poeta. (MANNO, 1999: p. 85)

Assim, haveria no material formado por esses depoimentos a latência coletiva


reinvindicada por Di Manno, mas cabe dizer que é no deslocamento, como afirma
Charles Bernstein, que o testemunho passivo das testemunhas oculares da época
assume o valor de testemunho ativo em Reznikoff. “O testemunho Reznikoff, ao
testemunhar essas testemunhas, torna-se o pioneiro de uma outra consciência da
América, em constituição” (cf. HOCQUARD, 2001: p. 290). O que possibilita a

47
mudança de tom dos depoimentos, ou o que possibilita relacioná-los a tal coletividade
solicitada por Di Manno é, ainda, o procedimento de deslocamento que extrai um
material de determinado contexto para outro, ou que retira determinado uso da língua
e aplica outro. Desta forma, a argumentação entre Hocquard e Di Manno20 parece no
fim derivar para o mesmo – não é apenas o deslocamento que interessa, porém ele é
que permite o resultado apontado por Di Manno.
Há também quatro textos produzidos por Hocquard que trazem um
procedimento semelhante ao de Reznikoff e cujos contextos apresentam uma
alternância entre coletivo e individual, ou entre público e privado (para usar termos de
Stéphane Baquey, 2007), que apontam nesta mesma direção: seus dois primeiros
poemas publicados, curiosamente quando o poeta ainda não conhecia o Testemunho,
As pasta, de 1973 (HOCQUARD, 1986), e 3 cartas, de 1974 (Idem), o poema “Elegia
6” (HOCQUARD, 1990), copiado e versificado do texto Pequeno monumento a E.H.,
de Olivier Cadiot (cf. HOCQUARD, 1987b), e “Spurius Maelius” (2001: pp. 40-48),
poema que teve sua gênese em uma tradução feita pelo autor de um texto latino acerca
de um crime histórico.
As pasta consiste nas folhas de viagem copiadas e versificadas, ou recolhidas,
aparentemente encontradas na carteira de Alphonse Beisser, “feito prisioneiro de
guerra após 9 meses de cerco dos prussianos em 1871”, durante a Comuna de Paris.
(HOCQUARD, 1986: p. 27) Tais notas são compostas de listas e descrições que vão
de preços de alimentos aos caminhos e percursos tomados e às estratégias seguidas
pelo regimento deste senhor nos campos de batalha. A linguagem utilizada é
denotativa e descritiva, mas traz vários traços individuais, como erros tipográficos,21 e
observações de atos cotidianos (mesmo um cotidiano excepcional como o de um
exército em guerra), que marcam um tom pessoal apesar de toda a objetividade de

20
Hocquard responde ao texto de Di Manno em entrevista publicada em minha sebe, dizendo que não
entende a confusão feita pelo crítico, já que “Kodak” era um poema curto feito a partir cut-ups
“constituído de golpes de tesoura de uma obra de ficção em prosa, O misterioso doutor Cornélio de
Gustave Lerouge, a quem Cendrars gostaria de fazer admitir que ele também (Lerouge) era poeta.”
(HOCQUARD, 2001: p. 289); já o Testemunho constitui uma epopeia de 4 livros: “Ver em Testemunho
apenas um ‘procedimento de escrita’, é apagar a dimensão essencialmente política da obra” (Idem).
21
Tais erros tipográficos remontam à questão da distância que há no francês entre a língua falada e a
língua escrita. Há inúmeros exemplos ao longo do texto, como “manièrs” que deveria ser “manières”,
as terminações dos verbos no particípio passado que deveriam ser -é ocorrem com –ér. Eis uma frase:
“le verglas sur /les chemins et la route était / accumulér en tas de 25 d’épais / seur que nous étions
forcér de fair / le Service a pied” (HOCQUARD, 1986: p. 31). Como já mencionado, acredito que o
título do livro também se explique por este procedimento: “Le portefeuil” em vez de “Le portefeuille”,
que optei por traduzir como As pasta, mantendo o jogo de concordância, mas trazendo para a
concordância de número em vez de gênero como ocorre no francês, já que é mais comum no português.

48
suas descrições.
3 cartas (Idem) é composto de três cartas e vem acompanhado de uma nota do
autor que explica que a correspondencia, datada de 1787 a 1791, foi escrita por uma
mãe que vivia no interior e enviada a seu filho que lutava em Paris durante a
Revolução Francesa. Na nota de Hocquard que acompanha a edição, ele trata da
insignificância do relato desta mãe que, no momento da Revolução, aborda apenas
questões banais e cotidianas, gerando uma espécie de impessoalidade ao ser lida em
um novo contexto.4949
“Elegia 6” (HOCQUARD, 1990), publicado em Elegias, foi composto a partir
de cópia e versificação do texto Um pequeno Monumento a E. H. (cf. HOCQUARD,
1987b), poema de Olivier Cadiot definido por ele como uma biografia de Emmanuel
Hocquard. Olivier Cadiot, segundo o biografado, passou uma noite inteira recortando
com estilete um guia de viagens de Roma que era do amigo. Depois, ele dispôs
inúmeros fragmentos levados para Um pequeno monumento a E.H. em quatro colunas
“para os quatro lados de um obelisco de escrita” (HOCQUARD, 2001: p. 270). Em
seguida, Hocquard copiou literalmente este pequeno monumento, contentando-se em
redistribuir as linhas em versos, resultando em sua “Elegia VI”. Hocquard comenta
em seu “Minha vida privada”, as etapas de escrita do poema:

39. O que permitiu a “passagem” para o poema não foi a vontade de


transformar a prosa em verso; foi a natureza do material utilizado para esta
prosa: do já escrito em um contexto preciso (um guia para turistas). Eu
compreendo o processo da seguinte maneira:
Primeira operação:
a) fonte: E.H. bebeu bastante na fonte da história romana; além disso, ele vive
atualmente em Roma. Um guia histórico de Roma deve poder servir de ponto
de partida.
b) tratamento: extrair, desta prova anônima, não-literária (o guia não comporta
nenhuma menção ao autor), fragmentos descontínuos cujas entonações
poderão evocar E.H. (jogo do retrato chinês) Dispor esses fragmentos em um
continuum diferente, um outro contexto, literário desta vez;
c) destinatário: E.H. (e não os turistas)
Segunda operação:
Eu me aproprio da prosa monumental para fabricar o poema. Do já escrito ao
segundo grau. Segunda lavagem de fragmentos de fresco. Não restou mais
graxa individual. Cada fragmento possui seu brilho próprio. Essas unidades
duas vezes descontextualizadas, duas vezes sem autor, eu as chamo
enunciados.

49
Elegia VI, que eu assinei, eu não sou o autor. Eu sou apenas o copiador
bastante escrupuloso.22 (HOCQUARD, 2001: pp. 270-71)

Em uma análise detalhada do poema “Elegia VI”, Lucie Bourassa observa


que, ao descontextualizar as frases do guia, Cadiot constrói uma falsa biografia do
amigo, uma construção biográfica de um “falso Hocquard” (BOURASSA, 2009).
Para isso, ele utiliza vários métodos, como por exemplo, copiar diversas frases que
possuem como sujeito “ele”, mas que se referem a diferentes sujeitos, ou seja, são
frases tiradas de pontos distintos do texto: em um caso, “ele” se refere ao Imperador
Cláudio, em outro, a Calígula, em outro, a Nero etc. Cito um pequeno trecho que
Boussara utilizou de exemplo em sua conferência: “Après un premier transport au
cerveau / il ne comprit plus / les choses / que très lentement / ‘En voyant ses
funérailles, il sut qu’il était mort’ / Quel artiste périt avec moi! // Il meurt égorgé par
les tueurs à gage des triumvirs” Os três primeiros Ils referem-se ao Imperador
Cláudio, o moi e o quarto Il referem-se a Nero. A crítica segue a análise do trecho
mostrando que há ainda pronomes que se referem a Santo Alessio e a um cardeal do
século XVII, Antonio Barberini, todos personagens constituintes da história romana.
No poema de Cadiot, ele faz uma junção e uniformização de vários “eles”, como se
fossem pronomes que se referissem todos ao monumentável amigo e, assim, constrói
seu louvável obelisco.
A diferença deste poema para os dois primeiros é que neste ocorre um
processo de colagem muito maior, isso é, o processo de deslocamento sofre mais
etapas e mais interferência dos autores. Porém, nos três casos o contexto de onde vêm
os textos é fundamental para o efeito causado. Em conferência acerca da literalidade
de Hocquard e de Reznikoff, Lucie Bourassa mostra que haveria uma diferença
importante no procedimento usado por Hocquard em seus dois primeiros livros (As
pasta e 3 cartas) e por Reznikoff: em Hocquard, há uma preocupação no

22
“Ce qui a permit le ‘passage’ au poème ce n’était pas la volonté de transformer de la prose en vers;
c’était la nature du materiau utilisé pour cette prose: du déjà écrit dans un contexte précis (un guide
pour touristes). Le processus, je le comprends ainsi: // Première opération: / a) source: E.H. a beaucoup
puisé dans l’histoire romaine; de plus il vit aujourd’hui à Rome. Un guide historique de Rome doit
pouvoir servir de point de départ. / b) traitement: prélever, dans cette prose anonyme, non littéraire (le
guide ne comporte pas de mention d’auteur) des fragments en discontinu dont les intonations
pourraient évoquer E.H. (jeu du portrait chinois). Agencer ces fragments en un continuum différent, un
autre contexte, littéraire cette fois-ci; / c) destinataire: E.H. (pas les touristes). // Seconde opération: je
m’empare de la prose monumentale pour fabriquer le poème. Du déjà écrit au second degré. Second
lavage des morceaux de fresque. In ne reste plus de graisse individuelle. Chaque fragment a son éclat
propre. Ces unités deux fois décontextualisées, deux fois sans auteur, je les appelle des énoncés. /
Élégie VI, que j’ai signée, je n’en suis pas l’auteur. JE n’en suis que le très scrupuleux copieur.”

50
deslocamento literal do material, ou seja, em não alterar nada do material, mantendo
até os erros tipográficos e grafia do francês da época. Em Testemunho, Reznikoff
mexe bem mais no material, não apenas versificando, mas trabalhando sobre o texto,
mudando palavras, acrescentando e cortando, imprimindo uma dicção mais precisa ao
material.
Segue a análise de Lucie Boussara, mostrando as alterações feitas em um texto
de Testemunho em comparação com o depoimento original. A primeira versão é a
versão de Reznikoff, já versificada. A segunda é o original de onde foi tirado. E as
marcações da análise da autora seguem o seguinte sistema: Passagens copiadas:
sublinhado; Partes transformadas: negrito; Acréscimos feitos ao poema: VERSALETE;

Partes suprimidas do original: tachado

1 “É mentira!” ela gritou. Ele a golpeou no rosto com o jornal


2 e DEPOIS com o chapéu de palha;
3 E ela o golpeou DE VOLTA com um peixe que acabara de comprar
4 e depois com a bolsa que ela AINDA trazia na mão.
5 O fecho de aço arranhou o rosto dele que começou a sangrar.

6 ENQUANTO ela saía da loja,


7 ele dizia aos gritos que ela não deveria voltar
8 E QUE AS PORTAS DE SUA CASA LHE ESTARIAM FECHADAS PARA SEMPRE!
9 ELE SUBIU PARA O QUARTO ONDE MORAVAM
10 E JUNTOU toda a roupa dela QUE ELE PODE ACHAR
11 e recortou e talhou com faca e tesoura.

1. A queixosa negou a acusação, e acusou seu marido de estar


mentindo. Ele a golpeou no rosto com seu chapéu de palha 2. e com um
jornal. 3. Ela o golpeou, primeiro com um peixe que ela tinha acabado de
comprar para o café da manhã, 4. e depois com uma bolsa que ela
segurava na mão, 5. e cujo fecho de aço arranhou o rosto dele e o fez
sangrar. As partes estavam separadas. 6. A queixosa deixou a casa, e o 7.
acusado gritava com ela, e mandou um recado pelo filho que ela não
deveria voltar. Ela foi para a casa de seu pai. Três dias depois o marido
disse ao filho, que estava trabalhando para ele em sua loja, que ele tinha
que escolher se ele ia com a sua mãe ou se ficaria com ele. O filho decidiu
ir com a mãe e partiu. O marido então mandou um recado para a mulher
levar embora suas roupas, mas antes de entregar a ela, 11. ele mutilou 10.
cada uma de suas peças 11. usando uma faca ou tesouras, ou outro
instrumento cortante, assim um grande numero de caras vestimentas
femininas de todos os tipos estavam totalmente destruídas, e nesta
condição foram enviadas para a mulher.
(BOURASSA, 2009)

51
Diante da distinção feita por Hocquard, que aponta para a importância do
formato em vez da forma e do contexto em vez do desvio, pode-se pensar que o que
está em questão em toda colagem, ou montagem, assemblage ou qualquer dos
procedimentos realizados pelas vanguardas do começo do século XX, é justamente o
deslocamento de um contexto para outro, o formato em que se encaixa o material
deslocado. Franck Leibovici observa em relação ao ready made e às reflexões dali
derivadas, muitos anos depois, que o crítico Nelson Goodman teria transformado a
pergunta essencialista: “o que é / o que não é arte?” em “quando é arte?”, questão
pragmática que aponta necessariamente para o contexto. (LEIBOVICI, 2008: p. 29)
Também Leibovici trabalha sobre um conceito interessante, os documentos
poéticos, onde ele insere a experiência de Reznikoff. Para ele, o documento poético
opera para dar uma nova visibilidade a um objeto que já existe e sua diferença para
com “as colagens surrealistas é a finalidade estética. Você pode usar meios estéticos
sem transportar uma finalidade estética.” (2008: p. 45) Deste modo, o critério
principal diferenciador destes documentos seria a eficácia.
É possível enumerar diversos artistas contemporâneos que realizam
procedimentos bastante semelhantes ao citado, como o caso da artista visual Lenka
Clayton, para citar um dos mais paradigmáticos, com seu “Qaeda Quality Question
Quickly Quickly Quiet” (CLAYTON, 2008), vídeo feito a partir do discurso de
George W. Bush de 2002 sobre o terrorismo nos Estados Unidos, em que a artista
reordena alfabeticamente sua fala, resultando em uma colagem de letras e palavras
muito reveladora e aterradora quanto ao vocabulário usado pelo presidente, que repete
incontáveis vezes, por exemplo, palavras como America (e americans), Al qaeda,
Afganistan, apenas na letra A. Outro caso recente de ordenação alfabética de um
material pré-existente está no livro do poeta argentino Pablo Katchadjian, O martín
ferro ordenado alfabeticamente (2006), que lista em ordem alfabética os versos do
mais famoso e representativo poema épico argentino. Ou mesmo o L’art poétic’
(1988), de Olivier Cadiot, copiado de exemplos de usos da língua francesa de
gramáticas do francês, manobra comentada por Hocquard: “ele recolhe enunciados
em uma reserva de faits divers, todos registrados nos arquivos dos tribunais da língua
que são as gramáticas”(HOCQUARD, 1987: p. 209). O que define o objetivismo
radical presente nesses textos é o contexto de onde foram tirados, ou seja, a questão
do enquadramento, da disponibilidade. Como se desviássemos da questão do
objetivismo para uma disponibilidade.

52
CAPÍTULO 2. UM DETETIVE EM TÂNGER, DE LONGE PARA PERTO

o que acontece tem lugar. o importante desta frase é o lugar./ [...]


entre o que foi esquecido e o que foi instaurado está o ter lugar.
o importante desta frase é que há.
(SISCAR, 2010: p. 92)

Ter lugar: a expressão é surpreendente.


O lugar faz parte integrante do acontecimento.
Daí a utilidade de retornar in loco.1
(HOCQUARD, 2007b: p. 2)

Ter lugar: segundo o dicionário de expressões e locuções Le Robert acerca do


verbete “avoir lieu”, a expressão dá a lugar um valor espaço-temporal que permite
marcar um fenômeno. Assim, o espaço é tomado pelo acontecimento, como nota
Hocquard na epígrafe citada, ganhando uma dimensão temporal. Ainda o Le Robert:

Curiosamente é o valor temporal que domina, ligado a um emprego dos


tempos do verbo; tal coisa teve lugar (pertence ao passado), terá lugar,
etc., enquanto que o valor espacial está implícito e demanda um
complemento para ser explicitado (ter lugar em tal lugar). (Le Robert,
1997: 545; grifos meus)

A primazia do valor temporal nesta expressão ajuda a pensar no movimento


deste capítulo: a tentativa de retornar in loco, como sugere Hocquard no livro
Terraço na kasbah, escrito em um de seus retornos a Tânger, deve-se ao
acontecimento que teve lugar no lugar. O lugar – que, com frequência, em sua obra,
será o espaço da infância, relacionado ao momento de construção de sua língua e de
sua relação com mundo – faz parte integrante do acontecimento e busca-se uma
aproximação dele, um retorno, um reinício, uma busca do privado, uma tentativa de
chegar perto destes restos do passado. No Terraço na kasbah ele fala mais sobre o
assunto:

Então, voltando a Tânger para esta temporada bastante longa, eu me


impus o objetivo de encontrar in loco aquilo que tinha escapado então.

1
“Avoir lieu: l’expression est étonnante. Le lieu fait partie integrante de l’événement. D’où l’utilité de
revenir sur place.”

53
Você vai compreender que eu não podia fazer isso à distância, rodeado de
vacas e ovelhas nos pastos verdes de Mérilheu (nos Altos Pirineus). Eu
tinha até um começo de pista secreta [...] A luz aqui [...] está relacionada
às experiências precisas mas fugitivas de então que eu tive aqui. Trata-se
de momentos de intensa alegria, comparáveis àquelas experimentadas por
Nathalie Sarraute em Infância, a propósito de treliças em flor ao longo da
pequena parede de tijolo rosa.2 (HOCQUARD, 2007b: p. 2)

A questão temporal também aponta claramente para a relação com o espaço da


paisagem: em primeiro lugar, o espaço a ser pensado se relaciona com um sujeito e
com a existência de um ponto de vista determinado, em um determinado contexto e
com uma marca temporal. A paisagem aqui é um espaço percebido e concebido, e por
isso, subjetivo. (COLLOT, 1999: p. 13). Desde o surgimento do termo, no século XV,
no contexto da pintura paisagista, a paisagem se relaciona com o ponto de vista do
sujeito, e seu sentido, que designava a pintura propriamente dita, logo passou a ter a
acepção que hoje é dada a ele: “Extensão de país que a vista pode abarcar em seu
conjunto” (Idem: p. 12). Assim, a paisagem é a paisagem do ponto de vista do sujeito.
Lembrando Anne Cauquelin, “um lugar é sempre um lugar dito” (CAUQUELIN,
2007: p. 52).
Para pensar nesses lugares e acontecimentos, gostaria de adentrar no percurso
biográfico do autor e nos livros que trazem para perto sua vida privada, costurando os
diversos deslocamentos, as figuras geográficas e as questões espaciais.

2
“Donc, en revenant à Tanger pour ce séjour assez long, je m’étais fixe pour objectif de trouver sur
place ce qui m’avait échappé alors. Tu vas compreendre que je ne pouvais pas le faire à distance,
entouré par les vaches et les brebis des verts pâturages de Mérilheu (Hautes Pyrénées). J’avais même
un début de piste secrete qui – comme tout ce qui est vraiment secret [...] La lumière ici [...] est liée à
des expériences três precises mais fugitives d’alors, que j’avais faites ici. Il s’agit de moments de joie
intense, comparables à celui qu’evoque Nathalie Sarraute dans l’enfance, à propôs des espaliers en
fleur le long du petit mur de briques roses.”

54
2.1 Matéria marroquina

Emmanuel Hocquard nasceu em Cannes, em 1940, e, com poucos meses de


vida, foi viver em Tânger, no Marrocos, onde ficou até os 17 anos. Ele conta no livro
Um detetive em Tânger (1987) que as janelas de sua casa, na rua Dante, davam para o
Estreito de Gibraltar e dali ele podia ver à distância a costa espanhola (1987: pp. 41-
2). Seus primeiros anos de vida nessa casa coincidem com os últimos anos da segunda
guerra e há nessa abertura para o estreito vestígios do conflito que chegam para os
olhos do menino, como o grande incêndio que ele presencia a partir de longe, da outra
margem do mediterrâneo (Idem).
O Estreito de Gibraltar é uma figura interessante para pensar em sua obra pois
ela pode representar, por um lado, o espaçamento, passagem, deslocamento, e por
outro, a abertura para a outra margem. Nas palavras de Michel Bernard, o estreito está
entre os “laços transicionais” privilegiados pelo autor (1993: p. 5), conceito
interessante se o movimento desta imagem é levado em conta. O estreito é a figura
que lhe possibilita ver o mundo em perspectiva: a paisagem não é vista dali como algo
opaco, mas com a perspectiva de um outro mundo à distância que lhe dá a
“capacidade de ver as coisas em relação [...]” (FETZLER, 2004: p. 69). Glenn Fetzler
afirma, ao analisar a fascinação do poeta com a perspectiva, que, em alguns de seus
textos, Hocquard demonstra a “convicção de que o foco e a direção artísticos residem
na ordenação de elementos básicos” (Idem). Pode-se dizer que a figura do estreito
representa bem tal questão: ela pode ser pensada, em termos de elementos básicos,
como uma língua d’água e duas margens; dependendo da configuração e do ponto de
vista escolhido para “ordenar” os três elementos, a representação do conjunto será
muito distinta.3
Muito recorrente em sua obra, o estreito presentifica também, em seu aspecto
geográfico, uma passagem, um transporte para o outro lado: de uma língua para a
outra, de uma cultura para a outra, da costa africana do mediterrâneo para a costa
europeia, da margem para o centro, para colocar em termos derridianos. A proposta
de Jacques Derrida, em O monolinguismo do outro – a prótese da origem (1996),

3
Fetzler enumera ao menos quatro obras do autor onde o estreito aparece como um dos personagens
centrais e, já nos títulos dos livros, os poucos elementos que serão trabalhos podem ser percebidos: Um
dia no estreito, “Um dia, o estreito”, Dois andares com terraço e vista para o estreito, A viagem a
Reykjavik (livro) e A viagem a Reykjavik (filme).

55
acerca de sua relação com a língua materna permite pensar nesse lugar ao qual me
refiro. Partindo da situação dos maghrebinos em relação à língua e à cultura francesas,
e de sua situação de judeu sefardita em particular, para desenvolver uma reflexão em
torno das ligações de cada falante com a língua materna, Derrida problematiza as
questões ligadas à origem e à alteridade ao condensar duas formulações entre si
paradoxais – “Tenho apenas uma língua, e não é a minha” (1996: p.13).
A situação de Hocquard em relação à língua não deixa de ser também a de
alguém sem língua em um país sem língua, um monolíngue, aquele com apenas uma
língua que não é sua língua, é um fora, como ele narra em Um detetive em Tânger,
contando que o francês aprendido na escola não era a mesma língua aprendida em
casa:
Regida por leis escritas e abstratas, ela tirava sua pertinência e autoridade
dos livros. Destinada às trocas entre pessoas que não se conheciam, ela
tratava de coisas distantes, segundo o princípio da generalidade. Eu
aprendi o francês nas salas de aulas como uma língua estrangeira ou uma
língua morta. Nos livros de francês, como dizíamos os livros de latim, de
inglês ou de matemática. Uma matéria do programa. Um objeto de estudo.
Um fora.4 (HOCQUARD, 1987: p. 81)

A língua vista como um fora condiz bastante com esta situação extrema de um
falante desprovido de sua língua materna, um falante a quem a língua materna é
tratada como um distante, um estrangeiro. Na Tânger de sua infância, o francês era a
terceira língua, depois do árabe e do espanhol, e portanto era tratada como uma língua
estrangeira (HOCQUARD, 2007c: 7-8). Além disso, a cidade teve, entre 1923 e 1956,
um estatuto internacional e não estava mais sob o domínio francês ou espanhol, sem
contudo ter sua independência declarada, o que apenas aconteceu em 1956. Este fato
levou muitos estrangeiros a viverem ali e, sobretudo depois da segunda guerra
mundial, a investirem capital em diversos setores, como o imobiliário por exemplo.
Hocquard conta, em Um detetive em Tânger, que o crescimento imobiliário dessa
cidade teria coincidido com o seu crescimento. (HOCQUARD, 1987: pp. 72-3). A
presença de estrangeiros na cidade, buscando se comunicar numa segunda língua,
reforça este afastamento da língua francesa e a problematização da posse da língua
materna. De volta ao aprendizado do francês, ele conta que

4
“Régie par des lois écrites et abstraites, celle-ci tirait son autorité et sa pertinence des livres. Destinée
aux échanges entre des personnes qui ne se connaissaient pas, elle tirait de choses éloignées, selon le
príncipe de generalité. J’appris le français dans lees salles de classe comme une langue étrangere ou
une langue morte. Dans les livres de français, comme on disait les livres de latin, d’anglais ou de
mathématiques. Une matière du programme. Un objet d’étude. Un dehors.”

56
quando a pequena língua do começo [aprendida em casa] desapareceu
completamente de minha vida, da mesma forma que o pequeno menino da
fotografia, eu me encontrei bastante tempo sem língua. Entre duas
línguas. A extinta e a emprestada. Com o enigma das coisas e esta língua
geral como uma coisa também, como um enigma.5 (1987: p. 82)

Tal relação enigmática com a língua será decisiva para a escrita do autor e para
sua relação com a construção poética. Pensando em outro tipo de deslocamento
relacionado à língua, cito sua relação com a tradução, extremamente importante nesse
contexto: o que ele considera seu primeiro exercício de poema foi justamente uma
tradução de uma das passagens do historiador latino Tito-Lívio, acerca de um crime
cometido em Roma 4 séculos a.C., denominado “Spurius Maellius”. O autor comenta
o poema:

Eis uma proposição: ver o poema “Spurius Maelius” não mais como um
poema (policial) mas como uma tradução do texto latino de Tito-Lívio.
Ver o poema como uma tradução e não como um poema me parece
legítimo na medida em que toda tradução é antes de tudo uma
investigação. Uma investigação ao longo da qual somos levados a nos
colocar diversos tipos de questões.6 (HOCQUARD, 2001: p. 34)

Partindo de sua colocação, pode-se entender a tradução como uma tentativa de


ir até o outro investigá-lo, aproximá-lo, de tentar trazê-lo para perto da língua materna
a partir das questões levantadas. O resultado de tal tentativa será, em certa medida,
sempre malogrado, uma vez que ao trazer para perto percebe-se que se perdeu o
original e não se alcançou a proximidade; porém, neste movimento, pode-se chegar a
um espaço que antes era inexistente e, assim, “alargar as bordas carcomidas de
determinada língua”, para citar a tarefa do tradutor de Walter Benjamin7 (1994: 29).

5
“Quand la petite langue du début a eu complètement disparu de ma vie de même que le petit garçon
de la photographie, je me suis retrouvée longtemps sans langue. Entre deux langues. L’éteinte et
l’emprunté. Avec l’enigme de choses et cette langue génerale aussi comme une chose, comme un
énigme”.
6
“Voici une proposition: regarder le poème Spurius Maelius non plus comme un poème (policier) mais
comme une traduction du texte latin de Tite-Live. Regarder le poème comme une traduction et non pas
comme un poème, me paraît legitime dans la mesure où toute traduction est d’abord une enquête. Une
enquête au cours de laquelle on est amené à poser plusieurs types de questions.”
7
O texto de Walter Benjamin consultado traz como titulo “tarefa do tradutor” porém Susana Kampf
Lages refere-se a ele como “A tarefa-renúncia do tradutor” (Die Aufgabe des Übersetzers)

57
Ao analisar o papel da tradução dentro do pensamento derridiano, Paula Glenadel
mostra que, como exemplo de aporia – figura que moveria tal pensamento – a
tradução estaria no horizonte de escrita de Jacques Derrida e poderia ser tomada em
sua figura de dupla injunção, como aquilo que “compele o pensamento a manter
juntas duas coisas que de ordinário não podem ser pensadas juntas, a tomá-las ao
mesmo tempo, como sua própria condição de possibilidade” (GLENADEL, 1996: 58)
Como exemplo de tal aporia, Glenadel aponta uma formulação de Derrida presente no
livro O monolinguismo do outro que refletiria tal raciocínio: “Nada é intraduzível
num sentido, mas em outro sentido tudo é intraduzível.” (1996:103) A tradução
evidencia-se como um transporte necessário que encena constantemente a questão da
origem e do outro.
No texto “Vale a pena ver um urso branco?” (HOCQUARD, 2001), que serve de
introdução a uma das duas antologias de poesia norte-americana organizadas por
Hocquard, denominada 49 + 1 novos poetas norte-americanos, o autor realiza uma
cronologia de sua vida, remontando seu percurso até a infância em Tânger e
apontando, neste trajeto, suas lembranças e deslocamentos:

1969, em Nice. [...].


1970, ainda em Nice
1971, exílio em Provins [...]
1972, exílio em Peillon [...]
1973, exílio (provisoriamente definitivo) em Paris
(2001: p. 137).

Nesta cronologia, é interessante o autor chamar seus deslocamentos de exílios:


não se trata de uma passagem ou temporada ou visita, mas de uma espécie de
degredo, de isolamento, de afastamento, ou de solidão, para usar uma palavra
constante em sua obra. Como no livro Um teste de solidão, em que para pensar o
mundo e criar uma linguagem que lhe permita entender esse mundo, o autor necessita
se afastar, se posicionar à parte, se fechar como o ouriço do qual fala Jacques Derrida
lançado no perigo da travessia, mas fechado em si, à espera do acidente, do
acontecimento, da escrita:
o animal que se lança na estrada, absoluto, solitário, enrolado em bola
junto de si. Ele pode vir a ser esmagado, justamente, por isso mesmo o

evidenciando com este duplo vocábulo em português a amplitude que a palavra traz em alemão: o
substantivo Aufgabe significa tarefa e o verbo aufgeben, renúncia.

58
ouriço, istrice. [...] Ele se cega. Enrolado em bolsa, eriçado de espinhos,
vulnerável e perigoso, calculista e inadaptado (pondo-se em bolsa,
sentindo o perigo na estrada, ele expõe-se ao acidente). (DERRIDA, 2001,
pp. 113; 115.)

Em relação às cidades, o uso da palavra exílio denota para o estrangeiro uma


maneira de olhar muito diferente da maneira como olha o habitante natural daquele
espaço. É a maneira daquele que está à parte, não integrado ao ambiente; daquele que
se distanciou.
Ao pensar sobre as incontáveis visões de cidades, Nelson Brissac Peixoto
observa que a “descrição está substituindo a paisagem” e que a visão que se tem de
determinada cidade nasce muitas vezes a partir daquilo que seus próprios habitantes
repetem sobre ela, transformando seus contornos e nuances em figuras que significam
outras coisas: “aqui tudo é linguagem”, diz ele, “tudo se presta de imediato à
descrição, ao mapeamento” (1996: p. 23). E sugere uma outra maneira de falar de
uma cidade: “a partir das primeiras impressões que se tem ao chegar, das pedras e
cinzas que restam dela” ou então, a partir dos olhos do estrangeiro:
o estrangeiro, incapaz de reconhecer o que essas estátuas significam, pode
ter acesso ao rosto interior das cidades, não estampado nos mapas nem
esculpidos nos monumentos. Sensível aos acenos sutis – luzes, nomes,
barulhos – que as cidades fazem para nós, ele pode desvendar os seus
segredos, o seu mistério (Idem: p. 26)

Deste modo, o olhar que não está acostumado e que ainda é sensível aos
detalhes que já não são sentidos pelo habitante da cidade é um olhar privilegiado
porque possui um distanciamento, um afastamento que lhe possibilita ver a cidade. Na
distância, está a proximidade. No texto “As laranjas de Saint-Michel”, em que
Hocquard discorre sobre os diversos métodos existentes de abordar uma nova cidade,
o autor mostra também que quanto mais se conhece uma cidade, menos se pode vê-la
e que, por isso, deve-se “retardar ao máximo o momento de se acostumar a um lugar.”
(HOCQUARD, 2001: p. 378)
A partir de 1973, então, Hocquard passa a viver em Paris de modo
“provisoriamente definitivo” até 1986, com pequenas ausências, como os seis meses
passados nos Estados Unidos ou uma estada em Trieste. Nestes anos parisienses,
Hocquard organizará centenas de leituras de poesia no Musée d’art moderne de la
ville de Paris e fundará a associação Um escritório sobre o atlântico, dedicada não
apenas ao estudo e discussão como também à tradução da poesia norte-americana

59
contemporânea (desde os poetas objetivistas), preocupando-se com a criação de
ateliês de tradução que levavam os poetas até a França para trabalharem com os
tradutores. Além de tais atividades, nestes anos Hocquard também fundou e co-dirigiu
a Orange Export Ltd., em parceria com Raquel Lévy. O projeto da editora, que nasce
de um encontro entre Raquel, Hocquard e o escritor peruano Antonio Cisneros, em
1969 (DELUY,1989: p. 396) consistia em editar livros de poesia encomendados pelos
próprios editores aos autores. Emmanuel Hocquard compra uma prensa e ele próprio
se encarrega de montar e imprimir os livros. A Orange Export publicou, durante quase
vinte anos (1969-1986), uma cinquentena de escritores em tiragens pequenas (de 1 a
250 exemplares, ficando normalmente em torno de 50 cópias) e, em geral, em
formatos pequenos. Os livros eram impressos no ateliê de Raquel em Malakoff (na
periferia parisiense) em uma prensa manual pelo próprio Hocquard e podem ser
chamados de livros-em-diálogo, uma vez que traziam sempre um trabalho visual em
serigrafia dialogando com os textos (a maior parte dos trabalhos era de Raquel, bem
como os projetos gráficos dos livros). Quase em 100% dos casos, os textos eram
encomendados pelos editores, o que distinguia a Orange Export Ltd. das editoras que
publicam um trabalho que chega pronto.
Dentre os autores franceses publicados na Orange Export Ltd. estão André du
Bouchet, Edmond Jabès, Denis Roche e Jacques Roubaud, para citar apenas alguns
poucos, além de diversas traduções de autores norte-americanos contemporâneos
(BAQUEY, 2008).
É possível depreender desta lista uma pluralidade de vozes e muitos exemplos
da poesia contemporânea mas que aparecem ali, para citar Henry Deluy, “em suas
metamorfoses múltiplas, em suas diferenças, suas oposições, suas gerações”
(DELUY, 1989: p. 397) Ou seja, pode-se dizer que há nessas edições, mais do que um
núcleo de escritas afins, uma pluralidade experimental. Contudo, para Deluy, mais do
que um catálogo que sirva como amostra da poesia contemporânea, como se pode
pensar a propósito de uma antologia, estes livros dão a ver o caminho de interesses
poéticos percorrido por Hocquard, eles o ajudam em sua formação como escritor ao
servirem de diálogo (uma vez que os livros eram encomendados, por exemplo) e de
interlocução. Nas palavras de Deluy: “Verei ali mais a emergência de um poeta ou de
um escritor, Emmanuel Hocquard, no percurso da escrita plural, aquela dos seus
amigos e dos poetas de que ele gosta (pois todos os textos foram solicitados pelos
editores).” (Idem)

60
Considerando esses aspectos, o fechamento da Orange Export Ltd. em 1986
pode ser visto como parte do puzzle que permite compreender um pouco seu caminho
poético. Neste ano, Hocquard muda-se para Roma e deixa o círculo parisiense depois
de quase vinte anos nesta cidade. É deste ano também o texto “A biblioteca de
Trieste”, que faz um balanço da Orange Export Ldt. e de sua produção poética até
então. A editora Flammarion edita, logo após a Orange Export Ltd. ter fechado suas
portas, um volume com todos os textos publicados ao longo dos anos de atividade
desta editora (Cf. HOCQUARD, 1986).
Stéphane Baquey sugere, em um denso ensaio sobre a obra de Hocquard, que
seu trabalho poderia ser divido em duas fases: a primeira, repleta de um conteúdo mais
autobiográfico, seria a da constituição de uma “matéria marroquina” (2002: p. 314) e a
segunda seria a da “transposição literal da anedota privada” (Idem: p. 315), ou seja,
Hocquard transporia os enunciados de sua própria obra, descontextualizando-os e
buscando novas conexões. Os textos da primeira fase trariam uma temática dos anos
passados em Tânger e estariam presentes, sobretudo, nos livros Um detetive em
Tânger e Dois andares com terraço e vista para o estreito.
Baquey observa que tal passagem de uma fase a outra corresponderia a um
movimento importante em sua poesia entre a figura do “parvo” e a do “detetive”. O
parvo está presentificado, sobretudo, nas anedotas de Hocquard sobre sua infância, a
maior parte publicada no livro Um detetive em Tânger: a figura do parvo pode ser lida
no aluno que fica no canto da sala, que tem dificuldades em interagir com o real e
com os códigos sociais, que, quando aprende a ler, não entende o sistema e suas
relações. De certa maneira, a tentativa de desautomatização do clichê e do banal
presente em seu processo de escrita teria um correspondente neste aluno
desconectado. Ele personifica uma tentativa de se desligar da funcionalidade dos
objetos. Já no momento seguinte, do detetive, haveria uma tentativa de reordenar os
objetos e as pistas existentes para criar uma nova ficção e dar outro uso a eles.
O detetive em ação vai fazer uso das teorias descartáveis para ordenar seu
espaço e os obstáculos ali presentes e criar uma solução para cada um dos seus casos
– mesmo que não seja uma resposta, apenas uma ordenação que crie um uso plausível
para as pistas. A respeito disso, Hocquard declara que seu método é aquele de um
detetive de romance noir: ao contrário do detetive de romance policial, “eu não busco
dar a ver a verdade sobre uma tábua rasa; eu me contento em tentar deslocar as

61
mentiras ao pensar na linguagem tal como ela é.” (AUDINET, 2001: p. 7)
Um detetive em Tânger, publicado em 1987, é um livro composto de uma
matéria bastante heterogênea para o que se denomina “livro de poemas”. Alguns dos
textos ali reunidos já haviam sido publicados anteriormente em jornais e revistas;
outros são inéditos. Um ponto de partida para pensar neste livro pode estar em uma
das palavras presentes em seu título: privé, palavra muito usada pelo poeta e que
possui uma dupla entrada semântica em sua obra: seja como substantivo, na figura do
detetive privado8, seja como adjetivo, designando um espaço privado, reservado,
como em “Minha vida privada” (HOCQUARD, 2001: p. 257). Também com o
sentido de “reservado”, íntimo, está o substantivo privé, que poderia trazer ao título
Un privé à Tânger a ideia de uma “vida privada em Tânger”. Contudo Um detetive em
Tânger designa algo além do privado e pessoal, ele aponta também para o campo
semântico detetivesco, aproximando-se de uma espécie de investigação, e é assim que
o livro tem início: a epígrafe, tirada de um romance de Raymond Chandler, é a voz de
um detetive particular refletindo sobre alguma investigação na qual ele se vê
envolvido. Ele diz: “Passo a meditar sobre as razões que me levaram a voltar a
Esmeralda” (1987: p. 9) e segue pensando nos percalços da profissão de detetive
particular. Na investigação deste livro, a pergunta que o autor se faz desde o início é
sobre as razões que o levaram a esta “volta” a Tânger, razões que, vê-se ao longo dos
textos, baseiam-se em uma investigação da construção de sua linguagem e de sua
língua, de seu modo de interpretar o mundo. Ecoando Gertrude Stein, este livro
poderia ser lido “como uma história de detetive sobre como escrever.” (STEIN, 1998:
p. 409)
Eric Audinet, muito propriamente, nomeia Hocquard de Sam Spade da
literatura francesa contemporânea (2001: p. 6), ao pensar nos acessórios e
ferramentas com os quais Hocquard se mune para as investigações em que se lança.
Audinet observa ainda que para tal investigação, Hocquard recusará qualquer distinção
entre escrita e teoria, “fazendo da poesia precisamente um procedimento de reflexão,
análise, investigação sobre seu próprio trabalho” (2001: p. 5). Assim, este livro é
composto de anedotas de sua infância, reflexões diversas sobre assuntos ligados à sua
escrita ou à formação de sua linguagem, resenhas de livros que o influenciaram – ou

8
Usamos mais em português o termo “detetive particular”, porém, para manter a ideia que a expressão
traz em francês, traduzi aqui como “privado”.

62
que, em suas palavras, exerceram um efeito considerável sobre ele –, poemas que
também dialogam com tais questões etc. Além disso, ele traz estampado logo na
abertura do livro uma foto em preto e branco de uma turma de jovens colegiais com
uniformes que lembram os anos 50. Ali já começa a investigação: o que faz esta foto
ali? Quem deve ser encontrado na foto? O próprio autor? E no primeiro texto do livro,
Hocquard fala um pouco de seu procedimento:
Sentado em minha grande mesa, diante do pequeno bosque de árvores
mortas [...] eu ouço o estalar dos cubos de gelo em meu copo que eu
levantarei daqui a pouco [...]. Depois do quê, seguindo o exemplo do meu
saudoso e muito sábio amigo Montalban, continuarei pacientemente a
reunir os pedaços convexos da minha história fragmentada.9
(HOCQUARD, 1987: p. 11)

Figura recorrente em seus livros, que também se ocupa de investigar o passado,


o arqueólogo Montalban é bastante representativo deste método investigativo em cima
dos pedaços convexos do passado. Jean-Marie Gleize se refere, no livro Altitude Zero,
a uma fase em que Hocquard desenvolveria uma “teoria dos fragmentos” e poderia ser
chamado de “poeta-arqueólogo” (GLEIZE, 1997: p. 15) Assim como o detetive busca
restos, indícios, pistas, fragmentos de coisas perdidas, o arqueólogo também se
encarrega dos restos e afrescos para montar uma forma.
Outro dado que cabe destacar no final do livro Um detetive em Tânger é o
índice de nomes próprios, onde aparecem citados os amigos, escritores, personagens,
conhecidos e lugares que aparecem no livro, tais como ruas, ilhas, cidades,
possibilitando um tipo de leitura diferente da leitura linear e permitindo o “encaixe” de
algumas peças dos poemas. Tal método de indexação será repetido por Hocquard no
livro publicado 14 anos depois e que traz este mesmo título Um detetive em Tânger
como subtítulo: minha sebe – Um detetive em Tânger II. Porém, os índices neste livro
atingem uma escala que o transforma em uma conversa infinita, se multiplicando e
fazendo com que surjam incontáveis possíveis leituras, dependendo da maneira como
ele será lido a partir dos índices presentes no final do livro: índice de animais, de

9
“Assis à ma longue table, face au petit bois d’arbres morts [...] j’écoute craquer les cubes de flace
dans mon verre que je lèverai tout à l’heure [...] Après quoi, suivant l’éxemple de mon três savant et
regretté ami Montalban, je continuerai patiemment à reunir les éclats convexes de mon histoire en
morceaux”.

63
destinatários, de instituições, grupos, editoras, revistas, de brinquedos,10 de nomes
próprios, títulos (de filmes, livros, etc), de cidades, além das notas e sinopses e do
sumário com numero de páginas (indicando uma leitura no formato livro). Frédéric
Léal, no texto “Cada um com sua sebe!” (LÉAL, 2001) propõe uma ordem de leitura
de minha sebe a partir do cruzamento de dados dos índices e sugere que esta é a “sua
sebe”, seu modo de ler.11
O crítico norte-americano Glenn Fetzler sugere que um dos pontos-chave para
a compreensão da linguagem de Hocquard está na questão do movimento de sua
linguagem, que pode ser percebida sobretudo em textos em movimento como minha
sebe, ou em suas reflexões presentes em Dez lições de gramática, em que ele
desenvolve uma reflexão em torno da questão do movimento e da origem tal como
pensada por Deleuze:
A filosofia acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se
tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes: o que se passa
“entre”? E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos. Os
movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito
tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há
um ponto de apoio, ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar
um peso, etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma
alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa-delta – são do
tipo: inserção numa onda pré-existente. Já não é uma origem enquanto
ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O
fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga,
de uma coluna de ar ascendente, “chegar entre”, em vez de ser origem de
um esforço. (DELEUZE, 1992: pp.151-2)

O espaço deste livro, em órbita, que possibilita tantas combinações, é um


espaço em movimento perpétuo, apontando sempre para fora, montado de ações e
objetos intercambiáveis. Como define Dominique Rabaté, minha sebe introduz o
princípio do et caetera, “em que a descrição não será jamais totalizadora”. (2006: p.
108) Dentro da lógica investigativa, tais índices e elementos estão à disposição para

10
Esta entrada se chama literalmente “índice de brinquedos”. Hocquard denomina “brinquedos” certos
dispositivos recorrentes em sua obra que assumem diversos usos dependendo da situação e que
constituem lugares ou objetos “pessoais” ou extraídos de anedotas privadas que ao entrarem no espaço
do poema tornam-se conceitos, ferramentas. Citamos rapidamente alguns desses brinquedos: sebe,
cabana, lista, mesa, anedota, canal, etc.
11
A primeira sugestão do texto de Frédéric Léal que exemplifica o que estamos tratando é começar o
livro pelo Últimas notícias da cabana número 1. O primeiro texto de minha sebe é o Últimas notícias
da cabana n. 22.

64
que sejam estabelecidas relações, ou inventadas conexões. Cito uma anotação de
Hocquard feita em minha sebe a este respeito:
Há cinquenta e cinco anos que eu trabalho para inventar conexões
diferentes daquelas que me ensinaram, e eis que diante de uma pilha de
laranjas e uma etiqueta eu tenho a experiência vertiginosa de uma não-
relação, [...] algo como a intuição de um mundo no qual Kipling pudesse
dizer “Uma laranja é uma laranja, uma etiqueta é uma etiqueta. Elas nunca
se encontrarão”.12 (2001: p. 398)

Buscando tal estado de desautomatização (ou de idiotia) Hocquard procura na


infância e nos processos de aprendizagem, sobretudo da língua, o momento em que as
conexões a serem aprendidas ainda não foram concretizadas ou banalizadas.
Outro texto que aponta para essa questão, presente em Um detetive em Tânger, é
o “A linha clara”, em que o autor analisa um relato inacabado de Valéry Larbaud. Ali,
Hocquard utiliza o conceito de linha clara, tomado emprestado da terminologia dos
quadrinhos, para “designar o traço nítido dos contornos do desenho e a ausência de
efeitos psicológicos ou dramáticos obtidos por sombras e tracejado” (1987: p. 132). O
quadrinho que serve de referência para este tipo de representação é o Tintin, cujo
desenho é bem simples e feito com um traço bem marcado, sem detalhes ou
sombreados, remetendo aos desenhos infantis. Hocquard introduz este conceito para
pensar na escrita e num paralelo a esta ideia que poderia estar, segundo ele, na
descrição presente nos textos de manuais escolares e nos modelos de redação da escola.
“A linha clara tem sempre alguma coisa a ver com a infância ou o aprendizado da
língua neste estado elementar em que ela está ainda associada à imagem e à ilustração.”
(1987: p. 134)
A busca dos elementos do passado e do aprendizado da língua se dá não como
afirmação e encontro de uma origem, mas como uma atualização dos restos do
passado no presente. “As lembranças são as palavras, frases, enunciados. Não o
passado ou pedaços do passado mas a linguagem e os pedaços de linguagem no
presente”. (apud TIBERGHIEN, 2006: p. 19)

12
“Depuis cinquent-cinq ans que je travaille à inventer des connexions autres que celles qu’on m’avait
appris à faire, voilà que devant un tas d’oranges et une étiquette je fais l’expérience vertigineuse d’une
non-relation [...] Quelque chose comme l’intuition d’un monde dont Kipling aurait pu dire: Les
oranges sont les oranges, les étiquettes sont les étiquettes. Jamais elles ne se rencontreront.”

65
2.2 Dois andares com terraço e vista para o estreito

O homem é na verdade uma cidade,


e para o poeta as ideias apenas existem nas coisas.
(WILLIAMS, 1998: p. 12)

Primeiro e único livro publicado na coleção echo & co.,13 em 1989, Dois
andares com terraço e vista para o estreito dialoga bastante com o livro Um detetive
em Tânger. Além de enunciados, personagens e referências da matéria marroquina
que são reproduzidos em Dois andares, neste livro ocorre também um deslocamento a
Tânger, a “sua volta” a Esmeralda parafraseando Chandler: o poema narra uma
viagem entre Tarifa, no sul da Espanha, e Tânger. O deslocamento a esta cidade nos
dois livros também é um deslocamento em direção ao passado. O “narrador” do
poema que vai cruzar o estreito de Gibraltar para chegar a Tânger não visita a cidade
há trinta anos, como ele observa ao chegar lá:
eu disse é estranho em trinta anos
não mudou muito
menos do que eu esperava14
(HOCQUARD, 2001: p.118)

Seria possível pensar com a leitura desses versos que o poema traz uma
experiência oposta à do célebre verso de Baudelaire, do poema “Cisne”, onde diz que
“a forma de uma cidade muda mais rápido que o coração de um mortal” – ecoando
também Jacques Roubaud no livro com esse mesmo título. No entanto, embora o
personagem afirme no início do poema que a cidade não mudou tanto quanto ele
esperava, pouco a pouco ele percebe algo muito diferente e de tão diferente quase
indefinível; também o leitor vai aos poucos entendendo o tipo de mudança operado
ali, uma mudança espaço-temporal mais do que simplesmente espacial. Uma mudança
em sua relação com o passado. À medida em que o narrador vai entrando na cidade,
listando suas lembranças e ordenando os elementos que encontra, de modo bem mais
fragmentado que o modo dos textos que compõe Um detetive em Tânger,15 uma

13
Nome da coleção é um anagrama com as iniciais dos nomes dos dois organizadores da coleção
Emmanuel Hocquard e Olivier Cadiot.
14
“j’ai dit c’est drôle en trente ans / ça n’a pas tellement changé / moins que je l’aurais cru”
15
A diferença não se deve apenas ao fato de o primeiro ser um poema longo e o segundo constituir um
livro, o que por si só já marca bem uma decalagem, porém principalmente pelo tipo de construção do

66
camada de experiências começa a ser sobreposta ao espaço visto. Mais para o final do
poema, há uma passagem em que ele compara a experiência de reencontrar Tânger
depois de tantos anos com a experiência de reencontrar uma moça que conhecera em
sua juventude:
tinha uma jovem
que morava na rua Quevedo
de frente para uma quadra de ginástica
nos a víamos na varanda
uma jovem de nossa idade
muito linda
eu acho que ela ajudava seus pais em sua loja
[...]
eu nunca esquecerei seu rosto seus olhos sua voz
há dois anos em Paris
me encontrei com
alguns antigos colegas da escola
para jantar em um restaurante
alguém disse ela também virá
depois do jantar na hora de nos despedirmos
eu disse acho que ela não deve mais vir
ela estava aqui meu velho
você chegou a falar com ela na mesa
eu não a reconheci
sem dúvida ela mudou muito
não nada disso ela não mudou tanto assim
bom isso que eu vi aqui
deve ser parecido16
(2001: pp. 130-1)

Deste modo, pode-se pensar, do lado do narrador, que a moça mudou tanto
que ele sequer a reconhece; de outro lado, porém, do ponto de vista dos outros, ela
não mudou, o que levaria a crer que a mudança está nele apenas, já que foi o único a
não perceber a presença da jovem. Contudo, tal confusão introduz outro dado
importante no poema que o relaciona ao movimento e à falta em sua obra. O poema
narra uma viagem feita com R. a Tânger, a partir de Tarifa. A casa com terraço e vista
para o estreito, que aparece no título, está em Tarifa, porém, logo no início do poema,

poema, com a sintaxe cortada, as enumerações e listas diversas compaginadas com vários focos
narrativos e descritivos.
16
“Il ya avait une jeune fille / qui habitait rue Quevedo en face du terrain de gym / on la voyait sur son
balcon / une jeune fille de notre age / très jolie / je crois qu’elle aidait ses parents dans leur magasin /
[...] je n’oublierai jamais son visage ses yeux sa voix / il y a deux ans à Paris / nous nous étions
retrouvés quelsques anciens du lycée / pour dîner dans un restaurant / quelqu’un a dit elle viendra aussi
/ après le dîner au moment de nous séparer / j’ai dit est-ce qu’elle ne devait pas venir / elle était là mon
vieux / tu lui as même parlé à table / je ne l’ai pas reconnue / sans doute a-t-elle beaucoup changé /
mais non mon vieux elle n’a pas tellement changé / eh bien ce que j’ai vu ici / ça doit être pareil”

67
quando o narrador e R. vão até a casa, eles não conseguem ir ao terraço para ver a
vista para o estreito, como ele deseja:
eu estava curioso para ver o último andar
aquele com terraço e vista para o estreito
sobretudo a vista para o estreito17
(2001: p. 105)

Considerando o lugar de destaque que Tânger ocupa na obra de Hocquard e


também considerando que a viagem narrada no poema é uma viagem de volta ao
espaço da infância, ao lugar onde havia crescido, onde construiu sua língua e suas
memórias, o fato de ele não poder ver a vista do estreito a partir da costa europeia é
um dado que ganha relevância. A vista para o estreito a partir da costa europeia, não
apenas imponente e presente no titulo do livro como também absolutamente visual, é
frustrada desde o início e o poeta precisa ir até lá, cruzar o estreito para ver a cidade,
para ter lugar, para tentar “encontrar in loco [sur place] aquilo que havia [me]
escapado então” (2007b: p. 1), como ele comenta acerca de seu retorno a Tânger no
livro Terraço na kasbah.
Deste modo, embora exista um movimento deliberado em direção a Tânger,
que nada mais é que uma tentativa de aproximação do biográfico, de compreensão
deste lugar construído por ele, ao chegar lá, ele tem dificuldades para ver a cidade, e
nos momentos em que ele a vê (ao percorrer seus muitos caminhos) ele não a
identifica com algo esperado ou figurado durante tantos anos, ele a vê de uma outra
maneira. Nesse sentido, Michel Collot, em Poésie et paysage observa que a vista para
o estreito só é anunciada neste poema para que nossa “espera” pela paisagem seja
frustrada:
Circule: não há nada para ser visto, nem nada que possa emocioná-lo. A
evocação da costa espanhola dá prioridade a considerações sobre o clima,
o turismo e a especulação imobiliária, excluindo qualquer imagem que
pudesse introduzir aqui um naco de poesia e de subjetividade. (COLLOT,
2005: p. 160).

A leitura de Collot espera uma revelação do subjetivo pela paisagem, que


poderá emocionar o leitor. Contudo, não é o que ocorre: sua paisagem traz muito da
resistência a essa reconstituição do modelo de representação. Ela frustra a
perspectiva: per-scapere: passagem através: “A perspectiva – que é passagem através,

17
“j’étais curieux de voir le dernier étage / celui avec terrasse et vue sur le detroit / la vue sur le détroit
surtout.”

68
abertura (per-scapere) – alcança o infinito, um além que sua linha evoca.”
(CAUQUELIN, 2007: p. 36). Sua paisagem é opaca, não deixa ver além, é vista a
partir de. Embora neste a partir de, ela possa sobrepor tempos e compaginar o
acontecimento, ao modo de um espaço topológico, elástico, muito mais do que
geométrico.
Aparentemente, a espera pela jovem da rua Quevedo também é frustrada,
porém a memória ou, para usar um termo caro a Hocquard, a anedota, aparece no
poema, está ali, como memória, como acontecimento. A jovem que aparece é a jovem
lembrada, não a atual, porque esta não pode ser vista. Como a atenção está posta no
presente, mal se nota a jovem lembrada, porém ela passa e pode ser vista na varanda.
Também a cidade buscada pelo narrador se mostra apenas nas lembranças
listadas umas após as outras e sobrepostas no espaço do texto, já que a busca atual é
uma impossibilidade, à qual pode-se acrescentar algumas outras que se repetem ao
longo do poema. Por exemplo, quando estão a caminho de Tânger, no barco, depois
de não terem conseguido ver o estreito da casa com terraço, outra vez se espreita e
deseja uma relação com a paisagem que será frustrada:

em breve avistaremos o cabo de Malabata


você vai ver
a chegada pelo mar na baía de Tânger
é a mais bela do mundo
como você sabe que é a mais bela
você nem conhece todas as baías do mundo
não claro que não
foi um diplomata que me disse isso certa vez
é preciso confiar neles
esse também conhecia o mar da China
não estava pré-julgando
avistei o farol de Malabata quando estávamos
exatamente debaixo
distinguíamos a colina de Charf
seus ciprestes ao fundo da baía ao centro
mas o cabo Spartel ainda não
deu errado eu disse
a baía de Tânger estava submersa na chuva
não pude localizar a Villa Harris18

18
“bientôt on devrait voir le cap Malabata / tu veras / l’arrivée par mer dans la baie de Tanger / est la
plus belle du monde / comment sais-tu que c’est la plus belle / tu ne connais pas toutes les baies du
monde / non non bien sûr / c’est un diplomate qui me l’a dit autrefois / il faut leur faire confiance /
celui-là connaissait aussi la mer de Chine / il n’était pas de parti pris / j’aperçu le phare de Malabata
quand on a été / juste dessus / on distinguait aussi la colline du Charf / ses cyprès au fond de la baie au

69
(HOCQUARD, 2001: p. 115)

Aqui outra vez a tentativa de ver a paisagem é frustrada, já que a cidade estava
submersa na chuva. Há uma sequência de negativas no poema que contribuem para
isso que chamo de frustração. Desde a dificuldade em achar o melhor meio para
cruzar o estreito – R. diz que não vai tomar o iate Bora-Bora para fazer a travessia em
menos tempo e sim a barca; porém, durante alguns versos em Tarifa não se sabe se a
barca sairá ou não devido à chuva e ao mau tempo – passando pela sequência em que
o dono da pousada dormia na hora de fechar a conta e não queria servir o café, ou os
pescadores não sabiam nada do mar ou do vento, a graxa incolor em falta para os
sapatos verdes, até o desembarque lento. Tais negativas colaboram para a resistência a
esse espaço projetado, resistência ao próprio narrador que busca ali o perto de sua
biografia; o espaço a que se tem acesso é outro, não mais o que teve lugar, que traz
um mundo além; o espaço ali é opaco, é o que terá lugar. O imperativo colocado por
Michel Collot em sua observação acerca deste poema é bem sugestivo neste sentido:
circulez, ele diz, ou seja, não existe ali o que se espera, disperse daí. Esse trecho
também mostra bem a dúvida que se estabelece em determinado ponto em relação ao
que ele havia ido buscar ali:

a noite caía os muros tinham cores bonitas


as menininhas voltavam da escola
elas eram despreocupadas alegres
é preciso que elas sejam assim pensei
é sobre elas que repousa o futuro desta cidade ferrada
era isso o que
você tinha vindo buscar
isso
que eu vi
embora não saiba exatamente o que eu vi
não mesmo19
(HOCQUARD, 2001: 130)

milieu / mais pas encore le cap Spartel / c’est raté ai-je dit / la baie de Tanger était noyée sous la pluir /
je n’ai pas pu réperer la villa Harris”
19
“la nuit tombait les murs avaient de jolies couleurs / des fillettes rentraient de l’école / elles étaient
incouciantes gaies / il faut qu’elles le soient ai-je pensé / c’est sur elles que repose l’avenir de cette
foutue ville / c’était quoi / que tu étais venu chercher / c’était ça / ce que j’ai vu / bien que je ne sache
pas exactement ce que j’ai vu / même pas.”

70
Também a questão espacial atravessa todo o poema e pode-se dizer que ocorre
uma alternância entre um exercício topográfico e topológico. Embora o sentido atual
das duas palavras se confunda na acepção corrente encontrada nos dicionários, gostaria
de fazer uma distinção etimológica. A designação de topografia, de acordo com o
dicionário etimológico, é a seguinte: “descrição de um lugar, da situação de uma cidade,
dos relevos do solo. Do grego: Topos, lugar e grafia”. (1967: p. 4002). Já a topologia
designa, entre outras coisas,
recurso da mnemônica para recordar-se alguém de alguma cousa, vendo
sinais que despertam tal lembrança. Assim, muitas pessoas têm o costume
de traçar riscos, figuras, à margem dos livros ou simplesmente de sublinhar
com lápis vermelho certas passagens mais características de uma página e
depois, basta lembrar-se destes traços para recordar-se da dita passagem.
Em gramática é a parte em que se estuda a colocação das palavras na frase,
especialmente a colocação dos pronomes átonos. Toda a sintaxe de
colocação se reduz a uma topologia sintática. (1967: p. 4002)

Deste modo, o poema em destaque refere-se, primeiramente ao solo, relevo,


lugar, à posição geográfica, quando estão atravessando a baía de Tânger, por exemplo
ou caminhando pela cidade, como se fosse a construção de um mapa. Em seguida, tais
lugares fazem o narrador lembrar-se de acontecimentos e lembrar-se também de como
era aquele lugar. São como marcas, traços que lhe remetem a acontecimentos e
lembranças.
É possível dizer que a delineação dos lugares é feita através de diversos
deslocamentos, desde a passagem através do estreito entre Tarifa e Tânger até
diversos micro-deslocamentos, como o do sujeito que é dono da pousada e do
supermercado e vai de um lado para o outro o tempo todo:

R. disse além da pousada


ele é dono do supermercado do outro lado da rua
como é que você sabe
pois eu o vejo fazer sem parar o vai-e-vem entre os dois
com um ar de proprietário20
(HOCQUARD, 2001: 110)

ou então o passeio através da cidade que atravessa todo o poema e vai mapeando as
ruas. Também há outros deslocamentos e as ações parecem acontecer sempre neste

20
“R. a dit en plus de la fonda / il possède le supermercado de l’autre côté de la rue / comment le sais-
tu / parce que je le vois faire sans arrêt / le va-et-vient entre les deux / avec un air de proprietaire.”

71
movimento de ir-e-vir: o conde de Paris que ia tomar chá na confeitaria (Idem: p.
119), o menino passando perto da escola corânica carregando um aquário na cabeça e
levando pedradas dos alunos (Idem: p. 124), o milionário que foi morar em Charf com
o filho e um estradivarius (Idem: p. 126) ou o caranguejo, o centollo, que passa pelo
carro no final do poema enquanto eles se protegem da tempestade (Idem: p. 134) .
Tal ir-e-vir é também uma ação temporal neste texto e mescla não apenas o
presente com o passado, num exercício de memória, como às vezes aparecem
projeções do futuro, fundindo topograficamente o espaço, como por exemplo logo no
início do poema com a visita em Tarifa a uma casa que está à venda: é uma casa com
dois andares com terraço e vista para o estreito e custa trinta e seis milhões de
pesetas, uma soma muito acima do esperado. O poema incorpora a discussão com o
corretor e os pensamentos do personagem, numa sobreposição de informações. Para
defender o valor da casa, o corretor passa alguns versos sobrepondo ao presente um
crescimento da cidade que pudesse justificar o investimento imobiliário:

mas
com o futuro centro internacional de windsurf
é um ótimo investimento disse enrique
daqui para frente só pode valorizar
em menos de cinco anos
você recupera o investimento
[...]
pode acreditar que é um negócio da China
sobretudo
com o centro internacional de windsurf
já até falaram disso
nas revistas americanas
[...]
sim isso não impede que
em pouco tempo tudo comece a ferver
e já começou
[...]
veja essas colinas daqui a alguns anos
tudo será construído21
(HOCQUARD, 2001: pp. 104; 107; 108)

21
“mais / avec le futur centre internacional de windsurf / c’est un très bon investissement tu sais a dit
Enrique / ça ne peut que prendre de la valeur / en moins de cinq ans / tu double ta mise. [...] c’est
croyez / moi un placement en or / surtout / avec le centre internacional de windsurf / ils en parlent déjà
/ dans les magazines américains vous savez [...] oui n’empêche que / ça va flamber d’ici peu / et ça a
déjà commencé [...] ça ne fait que commencer tu entendes / regarde ces collines dans quelques années
/ tout será construit.”

72
A projeção das colinas construídas é um plano topográfico que se sobrepõe
aos planos do passado e presente: o passado vivido em Tânger há trinta anos e o
presente que salta aos olhos do narrador.
Além de referências árabes que aparecem no poema – como a Surata, primeiro
capítulo do Corão, que deve ser decorada pelos meninos na escola corânica – e de
referências a aspectos especificamente marroquinos, como os rifenhos, procedentes de
uma região montanhosa que ficou sob o domínio francês, o Rif, cabe assinalar a
surpresa deste “narrador” diante de certas mudanças operadas naquela cidade, como a
urbanização anárquica, e outros aspectos mais invisíveis numa primeira leitura, mas
que pairam nas camadas narrativas do poema e que vão, aos poucos, sendo sentidos
ali: o Marrocos tornou-se independente em 1957 e pouco tempo depois quem assumiu
o poder foi o rei Hassan II, que permaneceu rei até sua morte em 1999 e que aparece
no poema sub-repticiamente na foto colorida que substitui uma estátua romana no hall
do hotel, “a fotografia colorida de Hassan II / tinha substituído a estátua romana / no
hall do hotel Minza” (HOCQUARD, 2001: p. 122). Emmanuel Hocquard deixou a
cidade de Tânger em 1956 e esteve fora durante muitos anos sem acompanhar o regime
ditatorial vivido no país e muito menos suas consequências concretas. É possível
pensar nesses aspectos para ler de um modo diferente algumas referências ao
islamismo – que se fortalecerá nos anos seguintes à independência – presentes no
poema, como os muros em Casablanca ou os cachorros em Tânger, pintados de verde,
a cor da bandeira islâmica.

73
2.3 Uma gramática de Tânger

Quando você está na escola e aprende gramática a gramática é


muito animada. Eu acho que não conheço coisa alguma que seja
mais animado do que fazer diagramas de frases. [...] e isso tem
sido para mim desde então a única coisa que tem sido
completamente animado e completamente completamente. Eu
gosto da sensação da infinita sensação das frases enquanto se
transformam em diagramas.
(STEIN, 1957: p. 88)

A declaração acima, de Gertrude Stein, do texto “Poesia e Gramática”,


introduz um dos pontos que a aproximam de Emmanuel Hocquard: a forte relação
com a gramática e mais especificamente com a gramática aprendida na escola. Ela
seria o ponto de partida para Stein pensar em sua escrita e criar seus jogos com os
diversos materiais de construção da linguagem. Jacques Roubaud observa que Stein
não possui um ponto de vista definido acerca da linguagem que utilizará para um
texto ou outro; ela parte da gramática e cria, no movimento da sintaxe, sua própria
escrita e sua própria visão: poesia, prosa, romance, teatro, romance policial, retratos,
autobiografia, etc. Stein experimenta e reexperimenta em diversos gêneros, passando
de um para outro e reinventando cada função e cada especificidade do gênero, no que
seria, para Roubaud, uma tentativa de reformular os gêneros literários a partir de seus
experimentos gramaticais. (ROUBAUD, 2009).
Um dos casos mais conhecidos desta experimentação e reformulação steiniana
é o livro de poemas Tender Buttons, de 1914, primeiro contato de Stein com a poesia,
que ela conta ter surgido de sua especulação em cima do substantivo:

Então comecei a fazer coisas bem curtas e fazendo coisas bem curtas dei-
me resolutamente conta dos substantivos e decidi não passar ao largo
deles e sim ir ao encontro deles, manejar em suma recusá-los mediante
seu uso e desse modo minha verdadeira relação com a poesia começou.
(STEIN, 1957: p. 97; grifos meus)

Assim, tomando o substantivo como base, que é, para ela, o que caracteriza a
poesia, Stein resolve “recusá-lo mediante seu uso”, isso é, partir do que considera
específico da poesia e criar em cima disso, recusando e usando ao mesmo tempo,
nomeando, ou nomeando sem nomear, tentando “substituir o nome da coisa pela
coisa”, descrevendo-a com outros substantivos, resistindo e fazendo sair dali algo

74
diferente ao que se está acostumado. O resultado desse processo é o livro Tender
Buttons.22 Em outras palavras, Stein busca testar as regras estabelecidas pela
gramática e ampliar seus limites a partir de seus usos. No livro A escada de
Wittgenstein, em que dedica um ensaio a Stein, Marjorie Perloff busca definir a noção
de gramática que aparece em sua escrita e analisar, a partir disso, o modo como Stein
trabalha com o esqueleto da linguagem. Para ela, ao descrever o uso dos signos, a
gramática traça limites e fronteiras entre o que “pode ser dito” ou que faz sentido e o
que não pode ser dito; porém, ela não explica certos usos e nem se abre para eles. A
escrita de Stein é constituída, para Perloff, de jogos para testar e ampliar tais limites
da linguagem a partir do uso.
Emmanuel Hocquard também, muitas vezes, põe em xeque a validade da
forma que utilizará, escrevendo e produzindo um manancial de textos e “formas-
poesia” (cf. anexo II): poemas com versos longos e curtos, poemas em prosa, textos
copiados, sonetos e elegias, romances, ensaios, textos em fragmentos, jornais
hebdomadários, a fotonovela Alô, Freddy?, com os diálogos copiados da literatura
noir norte-americana, em parceria com Juliette Valéry (HOCQUARD, 2001: pp. 295-
349), o dicionário Esta história é a minha: pequeno dicionário autobiográfico da
elegia (2001: pp.295-350), composto de verbetes, e até um vídeo, feito em
colaboração com artista plástico Alexandre Delay, A Viagem a Reykjavique: uma
crônica. Nesta gama de gêneros, Hocquard seleciona e enfatiza as especificidades de
cada forma para construir a partir de pequenos detalhes.23
Herdeira de Stein neste método de composição baseado na sintaxe, como
observa Jacques Roubaud (2009), a linguagem na poesia hocquardiana também será

22
Copio dois textos de Tender Buttons com traduções de Augusto de Campos, onde pode-se ver um
pouco deste procedimento. Um selo vermelho: Se lírios são brancos como lírio se eles exaurem
barulho e distância e mesmo pó, se eles poentos sujam uma superfície que não tem grande graça, se
eles fazem isso não é necessário não é de todo necessário se eles fazem isso precisam de um catálogo. /
Uma garrafa, isto é um vidro cego: Uma espécie de vidro e um primo, um espetáculo e nada estranho
uma única dor ferida e um arranjo em um sistema para apontar. Tudo isso e não ordinário, não
desordenado em não parecer. A diferença está se espalhando.” Observa-se a tentativa de descrever os
objetos nomeados no título a partir de características de outros objetivos.
23
Lembro aqui do texto Alameda de pimenteiras na Califórnia, poema longo e narrativo situado no
limite da prosa (GAVRONSKY, 1994: p. 226) encomendado ao autor pela “revista” diária de Claude
Royet-Journoud L’In plano (ROYET-JOURNOUD, 2002), que consistia em uma folha em formato A4.
Hocquard conta que este limite espacial foi o que determinou a escolha pelas linhas longas indo até
quase o final da página. E que, com linhas tão longas, ele deveria contar uma história. Além deste
aspecto, tratava-se de uma revista diária, então o poema era publicado em partes, como um folhetim, e
o enredo, como bom folhetim que se preze, tratava de prender o leitor, aproximando o poema de um
texto bastante prosaico. Neste caso também alguns limites, como o formato, determinaram
características do texto, porém aqui não se trata tanto de especificidades do gênero literário escolhido.
É interessante, contudo, observar o diálogo do conteúdo produzido com o suporte.

75
criada a partir da gramática da infância, como ele conta em Uma gramática de
Tânger:
Ao intitular essa narrativa Uma gramática de Tânger, não pretendo dizer
que exista uma gramática especificamente tangeriana. Eu quero dizer
que naquilo que me concerne, o aprendizado da gramática foi feito em
Tânger [...] consequentemente, é sempre a partir de experiências
escolares ou extra escolares, vividas em Tânger que eu conduzi um lento
trabalho de investigação critica da gramática. Poderia intitular este texto
de Personagem descendo um caminho escarpado. 24
(HOCQUARD, 2007c: p. 7).

O personagem descendo o caminho escarpado que poderia dar nome à


gramática tangeriana de Hocquard encena em sua obra não somente uma forte relação
com a gramática como também uma aproximação à língua da infância, àquela língua
aprendida na escola como um fora, como uma língua estrangeira. No livro Dez Lições
de gramática, ele afirma que,
por gramática, não devemos compreender apenas o conjunto de regras
fixas que regem nossa linguagem (conjugação, ortografia, sintaxe) mas
todas as regras de uso das palavras, dentre as quais as que estabelecem seu
sentido. (HOCQUARD, 2002)

Em outras palavras, a gramática que lhe interessa é uma gramática em uso,


para citar expressão de Marjorie Perloff. Não se deve entender a gramática apenas
como um conjunto de regras como as que estabelecem a gramática normativa, mas de
enfocar o contexto e tentar explorar as contradições, generalizações e exceções da
língua, buscando como quis Stein, ampliar os limites de uso. Um dos casos enfocados
por Emmanuel Hocquard e Marjorie Perloff é o do verbo “Ter”: Na frase “ter pena”,
o verbo não está marcando uma ideia de possessão, como em “ter dinheiro” (verbete o
gramático, 2007); ou ainda, “eu tenho dor” e “eu tenho um livro” trazem ideias
muitas diferentes, mas cabem todas elas em um único verbo. Outro exemplo que
aponta para as contradições da gramática é o uso do pronome pessoal em relação a
três verbos: andar, respirar e dormir. Hocquard mostra que “Eu” serve de sujeito para
os três verbos, mas por exemplo não se diz “eu durmo” como “eu ando”, uma vez que
se está dormindo, a não ser que tenha um sentido figurado. Por outro lado, já em

24
“En intitulant ce récit Une grammaire de Tanger, je ne prétends pas qu’il existe une grammaire
spécifiquement tangeroise. Je veux simplement dire que ’en ce qui me concerne l’apprentissage de la
grammaire s’est fait à Tanger [...] par la suite, c’est toujours à partir des expériences scolaires, ou extra
scolaires, vécues à Tanger que j’ai mené un lent travail d’investigation critique de la grammaire.
J’aurais bien pu intituler ce qui suit Personnage en train de redescendre un chemin escarpé.”

76
relação aos verbos, pode-se pensar que respirar não é uma atividade deliberada como
andar. Ao dizer “eu respiro” não se tem controle sobre o gesto. E dormir, que é
definido como verbo de ação, poderia ser entendido, se pensado por exemplo ao lado
do verbo andar, este sim uma ação, como um verbo de estado.
Assim como Gertrude Stein, que se autodenominava uma “gramática” – dentre
vários de seus textos, há o emblemático I’m a grammar –, Hocquard reinvindica esta
alcunha, no texto A biblioteca de Trieste, a si próprio e aos escritores contemporâneos
com quem ele dialoga: eles seriam os “poetas-gramáticos” (HOCQUARD, 2001: p.
30). Stein aprendeu o inglês quando criança como uma segunda língua e seu exílio na
França durante quase meio século lhe possibilitou manter o inglês como uma língua
para seu próprio uso e experimentação, enquanto que o francês era a língua que usava
para comunicar-se no dia a dia. Para Hocquard, embora o francês fosse sua língua
materna, ela era tratada em sua infância como um fora, uma língua à parte, distante
(HOCQUARD, 1987: p. 81); a gramática de Tânger que ele busca descrever e que ele
busca nos manuais de quando era criança constitui um espaço para essa língua
própria, com o uso específico que ele lhe aplicará.
Em 1995, Hocquard edita a antologia de poesia contemporânea Todo mundo
se parece, que incluía poetas franceses e também traduções de poetas contemporâneos
para a língua francesa. O autor explica o título da antologia em uma entrevista
concedida a Henri Deluy:
Todo mundo se parece, isso não quer dizer que todo mundo escreve ou lê
da mesma maneira [...] isso quer dizer que todo mundo está confrontado
com a mesma linguagem, com a mesma gramática e como alguns
conseguem, apesar de tudo, alguma coisa diferente com (ou contra) isso.25
(2001: p. 447).

Diante dos mesmos instrumentos e das mesmas ferramentas de linguagem que


estão à disposição de todos, é preciso criar uma gramática própria; a singularidade de
cada voz se determinará a partir do uso feito por cada indivíduo desta mesma língua;
o uso ou a intenção e a entonação utilizados por cada um ao se apropriar, não do
vernáculo, cristalizado, mas da língua em constante mudança serão determinante para
a gramática pessoal. Na introdução à sua antologia, Hocquard cria também um
verbete dedicado à gramática, em que acena para o tipo de uso da gramática que ele

25
“Tout le monde se ressemble, ça ne veut pas dire que tout le monde écrive ou lise de la même
manière [...] ça veut dire que tout le monde est confronte au même langage, à la même grammaire et
comment certains font malgré tout quelque chose de différent avec (ou contre) ça.”

77
pretende fazer: um uso que seja como o gaguejar de Deleuze, um uso menor,
singular, que aponte para o que Deleuze designa como sendo a tarefa da literatura no
texto “Gaguejou...”, a saber, fazer tremer a língua, tensioná-la ao seu limite para criar
uma gagueira da linguagem (em vez de uma gagueira da fala apenas) (DELEUZE,
1997:122-123).
Há aspectos da linguagem comum, do dia-a-dia e da língua que não podem ser
explicados pelas leis gramaticais sem serem considerados outros fatores, tais como
contexto, intenção, entonação, musicalidade da língua etc. e este é, justamente, o
ponto a que o poeta pretende chegar. No verbete intenção, ele torna clara sua intenção
diante da gramática e da relação poética com a língua: ele busca um uso que dê
destaque à linguagem, ao seu funcionamento, às suas funções e relações, e este uso
será feito pelos “gramáticos”, que não são linguistas ou filólogos. A seguir, ele
conclui o que pretende: “abrir a noção de gramática a outra coisa além de um simples
código de regras fixas e autoritárias que regem nossa linguagem e assim nosso
pensamento.” (HOCQUARD, 2001: p. 231)
Deste modo, sua antologia de poesia contemporânea é composta de poetas-
gramáticos: Anne-Marie Albiach, Pierre Alferi, Olivier Cadiot, Danielle Collobert,
Jean Daive, Roger Giroux, Benjamin Hollander, Pascale Monnier, Michael Palmer,
Georges Pérec, Claude Royet-Journoud e Keith Waldrop. A antologia inclui também
autores americanos contemporâneos, apontando para um critério de escolha diferente
do mais óbvio, aquele que reúne autores de mesma nacionalidade ou de uma mesma
língua. O critério aqui, o antologista torna claro, é a relação desses poetas com a
linguagem e Hocquard considera que os poemas traduzidos publicados em francês
contribuem, do mesmo modo, para formar uma língua poética contemporânea.
Além de trabalhar com o conceito de gramática e com os elementos que a
constituem, o poeta ministrou oficinas de escrita que ele chamava de aulas de
“gramática”, em Bordeaux, para alunos de artes plásticas. Ele conta em entrevista
concedida a Stéphane Baquey (HOCQUARD, 2001: pp. 277-280) que fora convidado
pelo artista plástico Alexandre Delay para dar oficinas de escrita para os alunos da
Belas Artes e, por estar vivendo um momento de resistência e questionamento de seu
percurso literário, decidiu que suas aulas seriam de “gramática”: ele não iria ensinar
os alunos a escrever (já que eles já sabiam ler e escrever) mas poderia analisar suas
“práticas de linguagem. Não teoricamente, mas concretamente, no cotidiano, em
ligação ou não com as suas questões estéticas” (Idem, p. 278).

78
Em outras palavras, Hocquard sugere que a gramática seja compreendida não
como uma força coercitiva, mas como um sistema cujas regras devem ser adaptadas
para cada situação, dependendo do problema específico apresentado no uso. Nessa
oficina que ministrou em Bordeaux, desenvolveu um trabalho que inicialmente
propunha um estudo da descrição, baseado no mote dos objetivistas norte-americanos
que dizia “Descreva, não explique” (Idem, ibidem), e depois em questões que
organizam o discurso, tais como o modo de construção da narrativa, o descontínuo, o
fragmento, e, por último, as conexões entre os elementos constitutivos da linguagem.
Nesse procedimento, o poeta sempre chegava com seus alunos a um algum problema
de gramática que não podia ser resolvido sem que fossem criadas novas ferramentas,
já que a gramática é “imprecisa e insuficiente” (Idem, p. 279) e eles precisavam usar
algum “conceito descartável” para resolver aquele problema específico da linguagem.
Há diversos exemplos que ele usa para explicar esses “problemas específicos”, como
o dos pronomes: como seria possível fazer uma gramática do “eu”, pergunta o autor,
sem realizar um levantamento de todas as entonações e usos26? Entonação e intenção
são exemplos de ferramentas utilizadas por Hocquard para compreender as relações
entre certas partes da língua.

26
Outro exemplo que Hocquard explora, também pronominal, é o caso de “minha”: ao dizer minha
vida, o minha não tem o mesmo sentido que ao dizer minha sandália pois não é dito com a mesma
entonação. “se eu digo perdi minha sandália”, sandália é um objeto perdido. Mas vida não pode ser
visto como um objeto” (cf. anexo I, item 17) (2001: p. 262)

79
CAPÍTULO 3. UM TESTE DE SOLIDÃO: UM TESTE DE POESIA

Faça como se fosse inútil existir um centro.


(STEIN, 1990: p. 196)

Assim, eis o que eu penso: todo ato de criação, em seu


princípio é uma “mancha branca”. Uma produção de
espaço, a consolidação de uma solidão.1
(HOCQUARD, 2001: p. 419)

Gostaria de começar esse capítulo lembrando da anedota que Hocquard conta


ao dar início à palestra que gerou o ensaio A biblioteca de Trieste:

Um dia, um poeta francês bastante conhecido, que tinha se dado o


trabalho de me ler, disse a respeito de meus livros: “São muito bons, mas
eu tenho o sentimento de que você gira ao redor de alguma coisa que você
ainda não abordou realmente.2 (HOCQUARD, 2001: p. 16)

Mesmo que de forma irônica, ele admite que havia, nesta observação do poeta,
um tipo de encorajamento para seguir adiante em seu trabalho, para buscar aquilo que
deveria ser abordado. Em outras palavras, havia um estímulo para continuar a busca
pelo centro em torno do qual ele estava girando. Na mesma palestra, depois de traçar
seu percurso biográfico em direção à poesia, Hocquard observa, ao modo do poeta
citado no início do texto que, aparentemente, ele estaria girando ao redor do assunto
que deveria tratar na apresentação, a poesia francesa contemporânea. Até ali, ele havia
contado histórias de sua infância e juventude, coletado personagens interessantes que
passaram por sua vida e falado acerca de sua primeira tradução e exercício de escrita,
Spurius Maellius. E onde estava a poesia contemporânea francesa em todo seu
discurso?, esta é a pergunta que fica no ar, este deveria ser o centro, se houvesse um.
A anedota é muito precisa quanto à impressão que se tem ao ler a poesia de
Emmanuel Hocquard, à impressão que tive ao tentar encontrar um ponto de partida,
ao tentar mapear e ler sua escrita. Impressão de estar girando ao redor de algo: é esta a

1
“Ainsi, ce que je crois: tout ‘acte de création’, dans son príncipe, est une ‘tâche blanche’. Une
production d’espace, la consolidation d’une solitude.”
2
“Un jour, un poète français honorablement connu qui avait pris la peine de me lire, m’a dit à propos
de mes livres: ‘C’est três bien, mais j’ai le sentiment que vous tournez autour de quelque chose que
vous n’avez pas encore vraiment abordé’”.

80
poesia que falta, que está sempre escapando, recomeçando, se descartando, mas que,
contudo, se faz poesia no trajeto, no percurso, no espaço; ela se constitui na
resistência e na falta. O dinamismo atribuído a esta poesia, observa Glenn Fetzler,
“resulta da consciência de algo que falta, uma aporia, um impasse intransponível”.
(FETZLER, 2004: p. 118). Para usar um termo cunhado pelo artista plástico Robert
Smithson, esta poderia ser chamada uma poesia da deslocação, conceito que aponta
para um deslocamento, mas também para um descentramento.3
Penso aqui na “prosa minada” das Galáxias, de Haroldo de Campos, uma
escrita sem centro, em constante movimento, onde o dentro e o fora se plasmam e se
alternam em movimento contínuo e fragmentado, onde o longe e o perto estão na
mesma pista, avançando e se alternando, fluxo interrompido, movimento que faz e
desfaz, se refaz, recomeça, recita, ecoa e emite. Penso também no livro Um teste de
solidão, de Emmanuel Hocquard, que apresenta com muita precisão esta
reversibilidade e descentramento que tento mapear na linguagem do autor, livro que
aponta para uma disponibilidade.
Publicado em 1998, Um teste de solidão intensifica não apenas a relação de
investigação com o mundo, como também sua reflexão em torno dos limites e
espaços de sua linguagem. Ali, o autor busca cartografar os espaços entre as coisas,
sejam elas obstáculos, circunstâncias, memórias, palavras, pessoas ou sons,
aproximando e distanciando o que encontra no campo de visão e de escrita,
nomeando, separando e reunindo, como diz um dos sonetos do livro: “Diríamos que
nomeamos as coisas para / mostrar aquilo que as separa. / O gesto de fraseá-las
mostra como reuni-las”4 (HOCQUARD, 1998: soneto XVIII, livro 2).
Para mostrar aquilo que as separa, é preciso cartografar e descrever os objetos
e, nesse sentido, Um teste de solidão poderia ser descrito como um exercício de
alternância topológica entre a sintaxe, o espaço e o tempo. Primeiramente são postos
em cena os elementos sintáticos: substantivos, verbos e pronomes. Em seguida, os
objetos no espaço ao redor. E, aos poucos, pode-se perceber também uma dimensão
temporal mesclada neste vai-e-vem espacial, dimensão que complementa as
experiências verbais do texto. Em certa medida, há uma tentativa de buscar
3
A ação no conceito usado por Smithson refere-se ao deslocamento da obra para dentro do museu. Já o
descentramento refere-se ao “crescimento massivo dos subúrbios e zonas industriais americanos para
se referir a uma mudança drástica das relações com as noções de linearidade e centralidade, de
ausência, no mundo contemporâneo, do senso de território”. (cf. MORAES, 2010)
4
“Nous disions que nous nommions les choses pour / montrer ce qui les sépare. / Phraser montre
comment les réunir”.

81
correspondências entre mundo e linguagem ou entre o espaço ao redor e o espaço da
linguagem, como ele afirma neste trecho:

O que separa duas palavras é como o que


separa dois pães ou duas vespas.
Região de limites flutuantes.
Viviane com seus pães no espaço cortado
da padaria como eu com minhas palavras
diante da tela.5
(HOCQUARD, 1998: soneto VII, livro 2).

Tanto sintática, quanto espacialmente, nota-se uma atenção constante ao


espaço entre, que separa e delimita, um espaço, como ele afirma, com limites
flutuantes, que pode ser visto como espaçamento. O substantivo solidão presente no
título também remete para este espaçamento. Como observa Glenn Fetzler, ele sugere
não apenas a situação de alguém que está sozinho ou que se distanciou, mas também
o ato de separação do outro e, consequentemente, o ato ou estado de ser outro, e de
ser outro a partir da interrupção ou vazio:

Em outras palavras, podemos dizer que ao denotar a separação, a solidão


sugere objetivação. Assim, testar a solidão é praticar a experiência de um
objeto. Em outras palavras, um teste de solidão é a prática da objetivação.
(FETZLER, 2004: p. 119)

Neste sentido, seu teste em muitos momentos poderia ser interpretado como
um estudo: com um tom reflexivo e analítico, o livro trata de separar e reunir,
distanciar e aproximar, objetivando o espaço ao redor e remetendo à continuidade
entre dentro e fora, perto e longe, interno e externo etc. Seu teste aponta também para
o sentido de verificação ou exame: testar a solidão é criar distância e, ao mesmo
tempo, poder afrontar o perigo do vazio, da falta, da ausência.
O subtítulo do livro define os poemas apresentados como sonetos. Contudo, ao
folhear o livro, que é composto de duas partes e um total de 58 poemas, percebe-se
que a forma dos poemas não se adequa exatamente aos limites da definição
apresentada na folha de rosto. Para seu leitor, consciente da preocupação explícita do

5
“Ce qui sépare deux mots est comme ce qui sépare / deux pains ou deux guêpes. / Régions aux limites
fluctuantes. / Viviane avec ses pains dans l’espace brisé de la / boulangerie comme moi avec mês mots
face à l’écran.”

82
autor com a passagem constante de uma forma híbrida para outra, a referência, na
folha de rosto, ao soneto repõe em cena o debate em torno do lirismo e das etiquetas
líricas. No hebdomadário As últimas notícias da cabana (HOCQUARD, 2001),
escrito por Hocquard em forma de carta, ele explica que não escreve o tipo de soneto
produzido por aqueles que estão apaixonados, mas “escreve sonetos do tipo de 14
linhas”:
Ora, você diria que todos os sonetos possuem 14 linhas. Mas não é tão
simples assim. Claro que não sou, como Jacques Roubaud um expert
juramentado do soneto. Confesso não saber grande coisa de sua história.
[...] Mas não se trata só disso. Por exemplo, num soneto cortado em
quatro estrofes, o que fazer com as três linhas em branco? É preciso
contá-las como linhas ou como não-linhas? Perguntarei isso um dia a
Jacques Roubaud. Mas, enquanto espero este dia, escrevo sonetos de 14
linhas que se seguem. Evito, assim, o problema levantado pelas estrofes
ou linhas em branco que as separam. Note bem que as separam levanta
um outro debate. Podemos dizer que as estrofes são separadas umas das
outras por uma linha em branco? Não, é claro, não podemos logicamente
sustentar tal coisa. Eis uma razão suplementar que me fez adotar o soneto
de 14 linhas que se seguem sem interrupção.6 (HOCQUARD, 2001: pp.
427-8)

Assim, os sonetos de seu teste alcançam a décima-quarta linha do poema (e


ele não usa o termo verso) através de uma grande variedade formal, alternando o
modo de ocupar o espaço da página com poemas que ora se comportam como poemas
em prosa, com linhas seguidas e sem enjambement, ora como poemas centralizados
ou com uma palavra por linha, ora são textos com linhas cortadas (sem enjambement
e sem linhas seguidas, perdendo o sentido final na cesura do verso) ora se apresentam
como poemas com estrofes separadas por linhas em branco etc., todos eles
relacionando-se semanticamente mas de modo não-contínuo, formando alguns planos
de reflexão que ajudam a constituir sua solidão e seu espaçamento. E embora os
poemas quase não discutam nomeadamente sua opção pelo “soneto” – o substantivo

6
“Tous les sonnets ont, direz-vous, quatorze lignes. Ce n’est pas si simple que ça. Bien sûr, je ne suis
pas, comme Jacques Roubaud, un expert assermenté su sonnet. J’avoue ne pas savoir grand-chose de
son histoire. En regardant la télévision, j’ai cependant appris que le sonnet avait été inventé dans les
Landes. [ ] Ce n’ est donc pas si simple que ça. Par exemple dans un sonnet découpé e quatre strophes,
que faire des trois lignes blanches? Faut-il les compter comme lignes ou les compter comme non-
lignes? Je poserai un jour la question à Jacques Roubaud. En attendant ce jour, j’écris des sonnets de
quatorze lignes qui se suivent. J’évite ainsi le problème pose par les strophes et les lignes blanches qui
les séparent. Notez bien que les séparent soulève un autre débat. Peut-on dire que les strophes sont
séparées les unes des autres par une ligne blanche? Non, bien sûr, on ne peut logiquement pas soutenir
une chose pareille. Voilà une raison supplémentaire qui m’a fait adopter le sonnet de quatorze lignes
qui se succèdent sans interruption.”

83
aparece na folha de rosto e depois, ao longo dos textos, apenas na referência ao que
seria o livro: “os sonetos de Viviane” –, eles se referem constantemente aos elementos
que o constituem, tais como a linha, o verso, a frase, a sintaxe, a tautologia, os
espaços entre as palavras, os substantivos, os verbos e pronomes, e também elucidam
a maneira como tais elementos podem ocupar sua linguagem.
A nomeação do soneto neste livro também acena para outro aspecto
relacionado ao lirismo. Os sonetos são endereçados e dedicados a “Viviane”. Se o
livro é feito de sonetos dedicados a Viviane, seria possível depreender daí que é ela a
musa de seus sonetos de amor. Porém, pensando no modo como o autor se apropria
das etiquetas líricas, problematizando algumas das características que as definem,
talvez seja mais produtivo pensar nesses sonetos como “sonetos de 14 linhas que se
seguem” contendo características amorosas em vez de pensar em tradicionais sonetos
de amor. Hocquard conta, em outro número do hebdomadário As últimas notícias da
cabana, que há uma padaria em Fargues que se chama “Bom-dia, Viviane
Vendedora”. E acrescenta: “É um nome bem bonito. Estou cada vez mais apaixonado
por ela”. (2001: p. 417) Sua musa é um nome, é a padaria ou a possível padeira da
padaria onde ele vai em Fargues. Deste modo, a Viviane Vendedora termina por se
converter, ao longo do livro, em linguagem, já que de padeira (ou padaria) em
Fargues se transformará nos elementos da tautologia que perpassa todo seu teste:
Viviane é Viviane. Ao descrever Viviane diversas vezes de modo tautológico, pode-se
dizer que o poema sinaliza para a ameaça de sentido e reforça sua busca pelo
espaçamento. Lembrando Gertrude Stein: A poesia avança se traindo.
Retomo uma distinção importante feita por Stéphane Baquey acerca da
passagem que ocorre na obra de Hocquard entre a figura do parvo e a do detetive. O
parvo representaria o momento de aprendizado poético, figurado no aluno parvo
sentado no canto da sala de aula, aprendendo com dificuldade a língua e suas regras,
personagem presente no livro Um detetive em Tânger. Já o detetive é aquele que vai
in loco para recolher pistas e reconstituir o acontecimento, aquele que busca elucidar
e construir uma linguagem. Segundo Baquey, depois desta passagem, haveria um
retorno à idiotia em seus poemas que estaria representado, de forma mais coerente,
nesta tautologia: Viviane é Viviane. Para ele, a tautologia se apresentaria, neste livro,
como a consequência final da literalidade, a língua inteira tornada idiota (BAQUEY,
2002: p. 324). O poema alterna entre tornar a língua idiota, para usar expressão de
Baquey, fazendo uso da tautologia, e jogar com o sentido através da linguagem, como

84
neste soneto XX:

Viviane é Viviane. Só, evidente.


Quem fala?
A frase é sem autor. A frase é sem sujeito. A
frase é sem verbo.
Na frase, é não é um verbo cuja primeira
Viviane seria o sujeito e a segunda
o atributo.
Existe só uma Viviane. Só, evidente.
Quais verbos Viviane envolve?
Erguer os olhos, sorrir, dizer “Bom dia”, se
virar, se abaixar, pegar o pão, se voltar,
pesar, entregar o pão, dizer “Até logo”...
Eu passo meu pensamento do canale ao cepo
queimado. É um jardim em movimento.7
(HOCQUARD, 1998: soneto XX, livro 1)

Nota-se, de um lado, a ameaça da sentido com o uso da tautologia: Viviane é


Viviane – frase sem autor, sem sujeito, sem verbo, a língua tornada idiota com a perda
de suas funções. De outro lado, o uso da linguagem denotativa, que busca listar os
verbos que possam descrever Viviane e suas ações. Vê-se, claramente, a tentativa de
criar um distanciamento com a repetição do nome – como em “Sacred Emily”, de
Gertrude Stein, e seu célebre “A rose is a rose is a rose is a rose” –, de acenar para a
idiotia, mas de voltar pra perto ao identificar os verbos que podem descrevê-la.
Ao longo do poema, multiplica-se a presença de dois elementos alinhados e
comparados, seja espacialmente, seja quanto às suas características. Os duplos são
formados de elementos iguais – como no caso do substantivo Viviane –, ou iguais até
certo ponto – duas canetas iguais, mas de cores diferentes – ou diferentes mas
emparelhados pelo autor na tentativa de compreensão de cada um deles e dos espaços
entre os dois. Dentre esses duplos, há duas canetas (uma verde e uma vermelha), o
filme A viagem a Reykjavique e um livro com o mesmo nome: A viagem a
Reykjavique, dois invernos, as duas partes de um mesmo filme, uma receita de
amêijoas para dois, as duas partes que compõe o próprio livro, Viviane e Viviane (que
são, no fim das contas, a mesma Viviane) etc. Em todos esses duplos existe um

7
“Viviane est Viviane. Évidente, seule. / Qui parle? / La phrase est sans auteur. La phrase est sans /
sujet. La phrase est sans verbe. / Dans la phrase, est n’est pas un verbe dont la / première Viviane serait
le sujet et la seconde l’attribut. / Il n’y a qu’une seule Viviane. Seule, évidente. Quels verbes Viviane
enveloppe-t-elle? / Lever les yeux, sourire, dire ‘Bonjour’, se tourner, se pencher, prendre le pain, se
retourner, / peser, tendre le pain, dire ‘Au revoir’... / Je promène ma pensee du canale à la souche /
brûlée. C’est un jardin qui marche.”

85
terceiro elemento, que poderia ser o espaço entre, responsável pela separação, pela
diferença, ou, no caso da tautologia, o verbo ser, centro vazio da tautologia.

Ser é a palavra que contém todas as palavras.


E que contém a palavra que falta.
É o Curinga.
O centro vazio da tautologia.8
(Idem: XVII, livro 1)

Este terceiro elemento também pode ser entendido como aquilo que falta, ou a
palavra que falta. Outro duplo recorrente no livro: um duplo com elementos
diferentes. A relação entre o “canale” e o “cepo queimado”. Embora alternem no
tempo e espaço (às vezes estão inseridos em seu cotidiano, às vezes estão em tempos
diferentes, um na memória e outro à vista) tais elementos funcionam como
ferramentas à disposição do poeta e ele tenta estabelecer uma ligação entre os dois:

Viviane, havia o canale e o cepo


queimado.
Entre os dois, há trinta passos, dezessete carpinos
e oito estações passadas.
Qual operação matemática ou lógica pode
Contar de uma só vez em metros, em árvores e em
anos?9
(Idem: VIII, livro 1)

Um dos questionamentos incessantes ao longo do livro consiste em tentar


descobrir como relacionar e medir o canale com o cepo queimado: como passar de
um para o outro? E à medida que tenta relacionar os dois objetos, um terceiro
elemento vai surgindo, a palavra que falta: “No terreno, alguma coisa falta entre o /
cepo queimado e o canale. Falta uma palavra.”10 (Idem: X, livro 1). Ou então: “Essa
crônica contém todas as palavras / que balizam o percurso entre a cabana e / o cepo
queimado, menos uma. / Aquela que falta.”11 (Idem: XIV, livro 1) E ele diz ainda:

8
“Être est le mot qui contient tous les mots / Et qui contient le mot manquant. / C’est le Joker. / Le
centre vide de la tautologie.”
9
“Viviane, il y a eu le canale e til y a la souche / brûlée. / Entre les deux, il y a trente pas, dix-sept
charmes / et huit saisons écoulées. / Quelle opération, mathématique ou logique, peut / compter, à la
fois, en metres, en arbres et en / années?”
10
“Sur le terrain, quelque chose manque entre la / souche brûlée et le canale. Il manque une mot.”
11
Cette chronique contient tous les mots qui / jalonnent le parcours allant de la cabane à la / souche
brûlée, sauf un. / Celui qui manque”

86
“De nenhum ponto do canale pode-se ver / o cepo queimado. Não é por causa das
árvores. / É porque falta uma palavra”.12 (Idem: XI, livro 1)
E no mesmo soneto, algumas linhas mais abaixo, está nomeado um possível
terceiro elemento: a cabana, o espaço para a solidão.

Eu ainda não lhe falei da palavra cabana, mas eu


reparo essa omissão
Eu vou lhe falar da palavra cabana.13
(Idem)

Em alguns momentos, a cabana ocupa o espaço entre o canale e o cepo


queimado, assumindo, neste caso, a posição de um terceiro elemento. No soneto
seguinte, Hocquard fala mais explicitamente da cabana:

Cabana é uma palavra da infância. Construir uma


cabana na floresta, sobre as árvores, etc.
Cabana é também uma lembrança de Wittgenstein.
Ele construiu uma cabana na Noruega, onde se
retirou repetidas vezes para refletir e escrever
quando já não ensinava mais lógica em Cambridge.
No último verão, eu construí uma cabana em
Bouliac, no antigo ateliê de Alexandre.
Eu vou ali com frequência para refletir e escrever.
Quando acaba o pão, eu saio para comprar em
Fargues, com Alexandre, que me acompanha.14
(Idem: XII, livro 1)

A nomeação de Wittgenstein aqui acena primeiramente para o espaço de


solidão descrito por ele: assim como Wittgenstein, que se isolou na Noruega para
escrever, neste livro Hocquard conta que se isola em sua cabana em Bouliac e, deste
modo, a cabana pode ser vista como o espaçamento, o terceiro elemento. É possível
dizer que aqui seu “teste de solidão” se converte no que pode ser chamado de um
“teste de poesia”, para lembrar o título de dois livros com os quais Hocquard dialoga:

12
“D’aucun point du canale il n’est possible de voir / la souche brûlée. Pas à cause de la charmille. /
Parce qu’il manque un mot.”
13
“Je ne vous ai pas encore parlé de la cabane, mais je / repare cet oubli. / Je vais vous parler du mot
cabane.”
14
“Cabane est un mot de l’enfance. Construire une / cabane en forêt, dans les arbres, etc. / Cabane est
aussi un souvenir de Wittgenstein. Il / s’était construit une cabane en Norvège, où il se / retira à
plusieurs reprises pour réfléchir et écrire / quand il n’enseignait pas la logique à Cambridge. / L’été
dernier, je me suis construit une cabane à Bouliac, dans l’ancien atelier d’Alexandre. / J’y viens
souvent pour réfléchir et pour écrire. / Quand je manque de pain, je vais en acheter à / Fargues, avec
Alexandre qui m’accompagne.”

87
Um teste de poesia, de Louis Zukofsky, e Um teste de poesia, de Charles Bernstein,
livros que adotam o procedimento literal da cópia.
O primeiro teste, publicado no final dos anos 1940, apresenta textos para
serem comparados: diversas traduções da mesma passagem de Homero, por exemplo,
ou de uma elegia de Ovídio, ou um poema do século XV sobre galos e um poema
contemporâneo sobre galinhas brancas, todos colocados lado a lado para comparação.
O texto de Charles Bernstein, cuja tradução francesa contou com a participação de
Hocquard, é feito a partir da cópia de uma carta de um chinês que traduzia um texto
seu para o chinês e lhe enviou perguntas acerca dos usos e sentidos das palavras do
poema.15 Pensando nesses dois livros, cujos títulos ecoam em seu Um teste de
solidão, pode-se dizer que ocorre também em Hocquard a tentativa de testar o poema,
de criar ferramentas comparativas que permitam espaçamento; ao ocupar o espaço
entre, a cabana denota a ferramenta precisa para este teste.
A referência a Wittgenstein em sua cabana ultrapassa o gesto de construir para
si uma solidão ao se isolar para refletir e escrever. Seu “teste de poesia” aproxima-se
bastante da tentativa, também presente no Tractatus Logico-Philosophicus, de
percepção dos limites da linguagem e de compreensão do mundo a partir do
funcionamento desta linguagem. A tentativa de descrição dos elementos, do cepo, do
canale, dos espaços entre, seria um modo de compreensão de sua própria gramática.
Basta lembrar da paráfrase que Hocquard faz de uma das proposições do filósofo
austríaco: “uma obra poética consiste essencialmente de elucidações”
(WITTGENSTEIN, 2002). Seu teste de solidão busca esta tentativa dupla de
elucidação: de um lado, a compreensão das circunstâncias; de outro, a tentativa de
elucidar o trabalho poético e seu modus operandi. “O poema querendo ser poema,
simulacro de procedimentos.” (MATTONI, 2003: p. 199)
15
Em conversa com Hocquard, ele contou o procedimento de Charles Bernstein na composição de seu
Um teste de poesia: “Então, um dia, Charles Bernstein recebeu uma carta da China, de um chinês que
havia fundado um movimento L=A=N=G=U=A=G=E na China. E este chinês estava traduzindo um
poema de Charles e, por isso, ele lhe fazia algumas perguntas. Como traduzir, o que querem dizer essas
palavras, e o que você quis dizer foi isso ou aquilo? Enfim, ele fez uma série de perguntas e a leitura da
carta é bem divertida porque percebe-se que o chinês se revolta cada vez mais... E então ele termina
chegando a uma espécie de delírio. Quando Charles recebeu a carta, ele a achou magnífica. Eu imagino
que ele tenha respondido às perguntas, mas além disso, ele publicou, em sequência, todas as perguntas
do chinês com o título Um teste de poesia, e isso resultou num poema incrível e incrivelmente
L=A=N=G=U=A=G=E. Este é um outro caso de literalidade, é irrefutável e resultou em um texto
surpreendente e também muito engraçado. O que é formidável é realmente o golpe de literalidade.
Quando você começa a ler o texto, você não o lê mais como perguntas, você o lê como um texto, como
uma ficção, é quase uma narrativa. Há esta espécie de deslocamento completamente surpreendente do
mesmo; e é o deslocamento do mesmo que cria o movimento. Esta é a história de um teste de poesia.”

88
Na sequência do raciocínio, poderia dizer este “teste de poesia” torna-se uma
espécie de “teste de gramática”, já que para descrever os elementos constituintes de
sua linguagem poética, ele se encarrega de discutir suas relações, as possibilidades de
agrupamento e de interpretação, criando sua própria gramática, como no caso da
conversão do verbo ver em um verbo de mudança de estado, conforme soneto XV
abaixo, em que cita o cão de Giacometti:

A regra diz que ver é um verbo de ação.


Eu mudo a regra e digo que ver é um verbo
de estado (ou de mudança de estado).
O que é evidente quando pensamos nisso.
Eu vejo uma folha. Eu pego uma folha.
As duas frases não são equivalentes.
Eu desenho uma folha é ainda outra coisa.
Giacometti vê um cão. Este cão que ele vê
naquele dia.
Ele diz: “Eu sou este cão”.
Ele faz a escultura deste cão. Auto-retrato.
Eu vejo Viviane.
Viviane é Viviane.
Eu escrevo os sonetos de Viviane.16
(HOCQUARD, 1998: XV)

O procedimento descrito por ele no soneto XV evidencia de modo muito


explícito a passagem da observação do mundo até chegar ao gesto da escrita. Tal
passagem é demonstrada em três casos (no exemplo da folha, no processo criativo de
Giacometti e nos sonetos de Viviane, escritos por Hocquard) e ela é constituída de
três gestos.
O primeiro é o gesto de ver: ver a folha, no primeiro caso, ver o cão, no
segundo caso, e ver Viviane, no caso do livro. O segundo gesto é o mesmo em
intenção, é o gesto da compreensão: pegar a folha é um modo de aproximar-se dela,
Giacometti também se aproxima do cão e o compreende ao se sentir identificado com
ele: “Eu sou este cão”. Já o gesto de compreensão do poeta em relação ao livro é
expresso por ele num modelo que se multiplicará no livro, através da tautologia:
Viviane é Viviane. A tautologia aqui representa o gesto da compreensão, ela é

16
“La règle dit que voir est un verbe d’action. / Je change la règle et je dis que voir est un verbe / d’état
(ou de changement d’état). / Ce qui est évident quando n y réflechit. / Je vois une feuille. Je ramasse
une feuille. / Les deux phrases ne sont pas equivalentes. / Je dessine une feuille est encore autre chose. /
Giacometti voit un chien. Ce chien qu’il voit ce / jour-là. / Il dit: “Je suis ce chien.” / Il fait la sculpture
de ce chien. Autoportrait. / Je vois Viviane. / Viviane est Viviane. / J’écris les sonnets de Viviane.”

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autoliteral e se explica, porém simultaneamente traz a ameaça de sentido. Como nos
outros casos em que ocorre uma aproximação entre o sujeito (Eu / Giacometti) e o
objeto (folha / cão), na tautologia também ocorre um tipo de aproximação: o sujeito
se converte em objeto (Viviane / Viviane), que por sua vez é sujeito outra vez,
tornando a frase circular.
Já o terceiro gesto, que conclui a mudança de estado, é o gesto da escrita, que
“é ainda outra coisa”, diz o texto. Assim, ele se desvia do tautológico e aponta para a
produção. É o desenho da folha, a escultura do cão e os sonetos de Viviane. Tal gesto
pode ser compreendido como a confirmação de um espaço de passagem, uma
passagem que ocupa um novo lugar, já que a escrita do livro é o momento de
concretização dos elementos, do “fraseado” e da reflexão em torno da linguagem.
No livro O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman aponta para uma cisão
fundamental presente no ato de ver. Tal cisão se constituiria, de um lado, por uma
visão tautológica e literal do mundo e, de outro, por uma visão de crença. O jogo de
palavras presente no título do livro, que remete claramente para a declaração do
artista norte-americano Frank Stella a propósito de suas minimalistas Black paintings:
“o que você vê é o que você vê”, mostra de forma clara o que pretende o crítico: . Tal
afirmação buscava apagar qualquer traço subjetivo ou temporal que pudesse aparecer
em seus trabalhos, uma vez que a tautologia fixa os termos. Pensando no poema de
Hocquard, a princípio pode-se pensar que esta seria a escrita de uma visão tautológica
também: Viviane é Viviane.
Do outro lado da cisão, estaria o que Didi-Huberman chama de uma visão de
crença, que busca pensar sempre em algo que está além do objeto visto ou a partir
dele, e que seria justamente “aquilo que nos olha”. Um dos exemplos usados pelo
crítico para tornar mais clara a visão da crença seria o da arte religiosa que trata
sempre de um mundo que nos olha, que não considera a evidência do que está diante
dos olhos, e sim algo além.
Diante desta divisão, a proposta do crítico seria justamente a de manter o
dilema para compreender o ato de ver, em suas palavras:
os pensamentos do dilema são incapazes de perceber seja o que for da
economia visual como tal. Não há que escolher entre o que vemos (com
sua consequência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a tautologia)
e o que nos olha (com seu embargo exclusivo no discurso que o fixa, a
saber: a crença.) Há apenas que se inquietar com o entre. (DIDI-
HUBERMAN, 1992: p. 77)

90
Manter o dilema e a inquietação com o entre, como sugere Didi-Huberman,
pode ser uma boa via para pensar na tensão hocquardiana, que habita entre uma
escrita literal e outra com uma visada lírica.

91
BUSCAR A SAÍDA

A entonação da recitação é neutra Sua velocidade


constante Formou-se um intervalo ou um espaço
de saída Pois nunca se tratou de entrar Falando
ou escrevendo ou lendo ou traduzindo buscamos a
saída Sair de algum lugar
Escrever é esta abertura1
(HOCQUARD, 2007a: p. 183-4)

Buscar a saída: deslocar para ter lugar. Trata-se de produzir uma abertura,
uma mancha branca, um espaço. Depois do uso, descartar a teoria, desmontar a
armação conceitual. Kafka diz que o ato de escrever é pôr uma distância em relação
ao mundo habitual, a distância de um pulo. Emmanuel Hocquard trabalha com a ideia
de fazer eco, recolher e re-citar, deslocar para ver alguma coisa, criar distância,
espaçar. Na tentativa de reverberar seu espaçamento, busquei mostrar, ao longo deste
trabalho, dois movimentos fundamentais constituintes de sua escrita: um movimento
de perto para longe, e outro de longe para perto.
Na primeira via, foi visto que o poema precisa “fabricar a distância” e impor
resistência aos clichês da linguagem, aos vícios poéticos que estabelecem um modelo
de escrita, congelando-a. Ele busca criar um espaço em relação à voz pessoal e
subjetiva, identificada com o pathos expressivo, de modo que possa instaurar uma voz
não vocal e refazer sua linguagem, estabelecendo outros modos de usar. Contudo, ao
chegar neste longe, percebe-se que ele se converte em proximidade rapidamente. O
texto “A biblioteca de Trieste”, de Hocquard, mostra de maneira bastante clara este
movimento, expondo, em seu percurso poético, o momento em que a escrita dos
poetas ligados à Orange Export Ltd. passa a ser vista como escola para muitos poetas,
impondo a necessidade de criar uma nova distância.
Nesse sentido, busquei repensar o lirismo, conceito que polarizou os debates
em torno da poesia nos últimos anos na França e que aparece, com frequência, como
alvo de recusa no discurso de Hocquard e de poetas de sua geração. Tal recusa se
estende também a outros mecanismos poéticos, denominados por Glenn Fetzler de

1
“L’intonation de la récitation est neutre Sa vitesse constante S’est mis en place un intervalle ou une
espace de sortie Car il n’est jamais agi d’entrer En parlant ou écrivant ou lisant ou traduisant on
cherche la sortie À s’en sortir / Écrire est cette ouverture”

92
etiquetas líricas, tais como o soneto, a elegia, a ode e, até mesmo, a figura da
metáfora. Analisando cada um desses instrumentos, pôde-se perceber que, na
resistência, o autor toma partido de algumas dessas etiquetas líricas
recontextualizando-as e lhes dando outras funções.
Tomando o conceito de lirismo tal como desdobrado por Pierre Alferi, que
sugere a lírica como imitação de uma voz anônima, vi que a voz presente nesta poesia
é uma voz mecânica, voz não vocal, que busca dar lugar ao canto anônimo, de um
sujeito construído. Como sugere Silvio Mattoni, “um perpétuo escutar é a origem de
sua própria voz.” (MATTONI, 2003: p. 199)
Outra maneira de fabricar a distância vista neste trabalho foi através do
conceito da poesia literal, representado de modo mais emblemático pela experiência
do livro Testemunho, do norte-americano Charles Reznikoff, livro feito todo a partir
da cópia de depoimentos de testemunhas, no sentido legal do termo. O deslocamento
operado por este procedimento aponta claramente para o contexto e traz implicações
relacionadas a esta fábrica da distância.
No movimento de longe para perto, tratou-se das tentativas de trazer para
perto, seja no retorno a Tânger, lugar da infância e que o constitui, seja a partir da
figura do detetive que busca pistas, lembranças, restos de passado. Nessa tentativa de
chegar ao perto ou à experiência privada, percebe-se que não é possível recompor a
origem ou o passado, apenas refazer o presente, construir o poema. Pensei nos livros
Dois andares com terraço e vista para o estreito, Um detetive em Tânger e Terraço
na kasbah, textos que apontam para a relação com o espaço e com a paisagem. Neste
movimento, mostrei que o autor busca criar uma gramática própria e trazer a língua
para perto, a língua que é Lei e regra para todos, convertendo-a em uma língua
própria em sua escrita. Também a tradução, na escrita de Hocquard, pode ser vista
dentro do movimento de longe para perto: tentativa de trazer para a língua materna
uma outra língua.
Para traçar esses deslocamentos, enfoquei, principalmente, suas ferramentas
instrumentais e métodos de escrita, que se desdobram, se repetem e se
metamorfoseiam por sua obra, rarefazendo os limites formais entre os textos
considerados críticos e reflexivos e os poemas propriamente ditos. Seus livros
assumem formas híbridas e abarcam toda sorte de escrita, mantendo sempre o
princípio da teoria descartável: o poema busca ferramentas conceituais para
determinada questão da linguagem; porém, ao resolver a questão, ou terminar o

93
poema, deve-se descartar a teoria. Tal princípio de descarte mostra que o autor busca
estabelecer um pensamento crítico acerca do poema partindo do próprio poema e da
experiência no percurso da escrita.
Por fim, procurei apontar de que maneira suas estratégias de deslocamento
possibilitam a criação de uma poesia sem centro, que está sempre escapando,
recomeçando, se descartando, uma poesia que falta, mas que contudo se faz poesia no
trajeto, na travessia, no ir e vir de sua resistência. Nas palavras de Gertrude Stein, a
poesia avança se traindo. Analisei no livro Um teste de solidão a presença desta
reversibilidade, livro que sobrepõe espaços, linguagem e tempo e mostra muito
claramente em sua linguagem os movimentos topológicos mencionados.
Buscar uma saída: também neste trabalho gostaria de descartar a teoria,
desmontar a armação conceitual depois da leitura para não congelar o poema, para
permitir que o movimento da escrita seja refeito. Como a escada de Wittgenstein que
deve ser jogada fora após se ter subido por ela. Como os conceitos descartáveis de
Hocquard, em movimento ininterrupto de deslocamento. Modo de usar: manter a
reversibilidade da escrita com a qual se trabalha. Entrar em ressonância, ouvir o eco
do poema e imitar sua voz. “Imitar uma voz é simplesmente emiti-la.” (ALFERI,
1991: p. 75)
Ele diz pular fora, pular para outro lugar.

94
TRADUÇÕES

I. MINHA VIDA PRIVADA

1. Há uma história disparatada sobre um artista chinês a quem o imperador havia


encomendado uma paisagem para um dos aposentos de seu palácio. Quando a pintura
fica pronta, convidam o imperador para ir analisar a obra. Encantado pelo que descobre,
ele se vira em direção ao pintor para lhe felicitar. Mas o pintor desapareceu da sala. Ele
entrou em sua paisagem. Há, nessa história, alguma coisa esquisita. Eu sempre parti
dessa constatação: há, nesta história, alguma coisa esquisita.

2. Há aqui, igualmente, alguma coisa esquisita. Meu sexto sentido me adverte de que
isso é uma armadilha. Será preciso andar na ponta dos pés. Ou dar uma de caranguejo
no mundo da literatura organizada.

3. Entrando em um bar, Op vê um cartaz:

servimos apenas autênticos


whiskies britânicos
ou americanos de antes da guerra

Ele reage observando: “Eu tentei contar quantas mentiras podemos encontrar nesta
declaração e encontrei quatro só para começar.” (Hammet citado por Steven Marcus.)

4. Você diz Literatura? Ontem à noite, 31 de dezembro de 1994, respondendo à questão


“O que há para ver esta noite na televisão?”, Alexandre disse: “Televisão, em todos os
canais.” Boa resposta! À questão “O que há para ler em todos esses livros de
literatura?” diríamos: “A literatura em todos os seus ângulos”.

5. Anedota I. Passeio, no fim da tarde, ao redor do estádio. A luz declina sob os


eucaliptos. Voltar para casa. Comprar um tubo de balas vermelhas em formato de anel.
Um gosto espantosamente farmacêutico de balas. Todas comidas. A noite cai. Enjoo.

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Náusea. Forte sentimento de culpa. Neste dia, minha vida mudou. O tédio e a
desconfiança tinham acabado de entrar em mim junto com aquelas balas vermelhas.

6. Ontem, no TGV Paris-Bordeaux, uma menina lia em voz alta: “A galinha produz
ovos, o carneiro produz lã, a vaca produz leite”. Estou perplexo com o absurdo
completo do que acabo de ouvir. E o poeta, produz o quê? É assim que nos
transformamos em um mentiroso. Repetindo absurdos em voz alta nos trens.

7. Vamos supor, apenas por um instante, que uma galinha pudesse falar. E que ela
dissesse: eu produzo ovos. Podemos imaginar, mesmo por um instante, que produzir
ovos tem o mesmo sentido em sua boca e na de uma menina no TGV? Evidentemente
não. O sentido não pode ser o mesmo já que a entonação não será a mesma. Nesta
questão, tomarei o partido da galinha.

8. Supondo que você encontre as minhas cartas e termine lendo-as, aquilo que eu
escrevo à minha companheira não é o que você lê. Porque você não é minha
companheira. Acerca deste assunto, poderíamos dizer algo como: você nos vê de perfil
enquanto que nós nos vemos de frente.

9. Anedota II. A noite cai. Ao longe, atrás da casa da rue Village, o contorno sombrio da
velha montanha. Paul e dois amigos se preparam para ir passar a noite ali, sob a tenda.
Eles me chamam para ir junto com eles. Eu gostaria de ir mas ao mesmo tempo tenho
muito medo. Eu não ouso dizer que não vou e termino me escondendo em um tapete de
pervincas, de onde eu os observo partir sem mim depois de terem me chamado e
procurado durante um bom tempo. As luzes pestanejam sobre a velha montanha cujo
contorno agora desapareceu na noite.

10. Nunca é demais insistir sobre o destinatário. Tudo está lá. No meu fim está meu
começo, caro Thomas Stearns. Cara Senhora Lynx. E o outro maluco que lia
Kierkegaard para suas galinhas. Lobo cortejando para comer, caro Ezra. Minha intenção
é meu destinatário.

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11. Eu nunca tive um cartão de visita. Mas houve um tempo em que eu dizia que se eu
viesse a ter um, faria figurar, sob meu nome, a menção telespectador. Assim como a
televisão não se endereça às pessoas mas aos telespectadores, a máquina literária se
endereça a seus leitores. O leitor é uma peça da máquina. Uma máquina que gira sobre
ela mesma e para ela mesma. A galinha produz ovos e a literatura produz leitores.
Quando eu escrevo à minha companheira, eu não escrevo a uma leitora.

12. Ao produzir leitores, a máquina literária produz autores. A vaca produz leite e a
literatura produz autores. Hoje em dia, eles aparecem até na televisão. E aí reside a
superioridade da televisão sobre a literatura: ela vai mais longe no mesmo sentido: a
obscenidade. Quando escrevo à minha companheira, eu me contento em assinar a minha
carta; não sou o autor da minha carta.

13. Eu não censuro a televisão por ser o que ela é. Ela faz muito bem o que ela faz e se
ela não existisse seria preciso inventá-la. A televisão dá a ver não as coisas como elas
são (cf. Battman, em Le commanditaire), mas, sim, a televisão como ela é quando ela
pretende mostrar as coisas como elas são. Parece-me que é preciso uma dose sagrada de
hipocrisia ou de inconsciência para imaginar que a literatura pudesse ser mais pura, no
sentido mallarmaico do termo. A literatura também é um meio de corrupção, mas de
uma corrupção que leva a máscara da honradez. É esta máscara que me interessa.

14. A literatura é uma máquina de produzir literatura, e não pensamento, ou reflexão.


Para estudar, para refletir, não preciso da literatura. E nem da filosofia. Na verdade, para
refletir ninguém precisa dela. Eu não preciso da literatura para refletir, mas eu preciso
refletir sobre a literatura já que eu cometi a imprudência de cair dentro dela. Refletir
sobre a literatura não é produzi-la. É desviar, apagar, desfazer. E por isso mesmo, me
desviar dela, me desfazer dela, apagar meus erros até criar um buraco. Estou do lado da
galinha e da vaca mas eu reflito sobre o que a menina lê e sobre o que há de esquisito
naquilo que ela lê.

15. No entanto, me dirão, você escreve. E você publica aquilo que escreve. Eu escrevo.
Eu escrevo porque sinto a necessidade de escrever para refletir. Eu sou assim. Eu sinto a
necessidade de refletir para escrever. E para mim. Eu sou meu destinatário e não meu
leitor. Olivier disse – e ele tinha razão – “o leitor é alguém que arruína os livros.” Que

97
faz com eles algo a mais, em vez de fazer a menos. Eu tento escrever livros que sejam
algo a menos. Porque, para mim, refletir por escrito é tentar transformar.

16. O detetive se engaja para resolver ou elucidar questões tenebrosas, e não para fazê-
las proliferar.

17. Mas a literatura, que é na verdade um negócio tenebroso, é apenas uma gota d’água
comparada ao pacífico de trevas que é minha vida. E quando eu digo minha vida,
também é bastante tenebroso. Eu sei que há algo de esquisito quando eu digo minha
vida. No entanto, eu mantenho a palavra vida como conceito suspeito, sob alta
vigilância. Meu sexto sentido me adverte de que é uma grande palavra. Uma dessas
grandes palavras sobre as quais se constroem barragens que desabam sobre o rio K. O
que me leva a dizer que minha vida me parece esquisito? O fato de que minha em
minha vida não tem o mesmo sentido que o minha em minha sandália, por exemplo.
Não é a mesma entonação. Se eu escrevo: perdi minha sandália, a sandália é o objeto
que eu perdi. Se eu escrevo, eu perdi minha vida, eu não posso simplesmente pensar em
minha vida como um objeto. Quem nunca doou sua vida por testamento?

18. Quando eu era criança eu recopiava livros inteiros ou passagens inteiras de livros
que eu enviava à minha namorada. Eu poderia ter lhe enviado os livros, mas eu lhe
enviava as cópias, escritas de meu punho, de livros que eu amava. Se eu tivesse lhe
enviado livros, eu teria lhe enviado literatura. Esta não devia ser minha intenção. Minha
intenção deveria ser de lhe dizer que eu a amava lhe enviando, copiados de meu punho,
livros, passagens de livros que eu amava. Ao lhe endereçar cópias eu lhe endereçava a
literalidade.

19. A literalidade aos meus olhos é muito importante. Eu tomo a palavra literalmente,
isto é, ao pé da letra. Por definição a literalidade só pode se referir àquilo que destaca,
ao pé da letra, da linguagem oral ou escrita, qualquer que seja de outro modo, o valor de
verdade do enunciado. É o que exclui proposições tais como “Eduardo era literalmente
louco” ou “isto me aconteceu literalmente”. Literalmente significa, nesses casos,
qualquer coisa como verdadeiramente.

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20. Segue-se daí que, se falamos da literalidade, ela só pode apoiar-se sobre uma
proposição já formulada, oralmente ou por escrito. Dito de outro modo, só se trata de
literalidade quando há repetição da proposição, em um contexto de surdez, de
interrogação ou de incerteza. Em um contexto tenebroso. Ou com uma intenção lúdica.
As crianças brincam de repetir.
Exemplo. Olivier diz a Emmanuel: o vestido de Pascalle é vermelho. Emmanuel, que
não entendeu, ou que não tem certeza de ter compreendido bem o que Olivier disse ou
que se surpreende porque ele viu que o vestido de Pascalle é verde, se vira para Pierre
que lhe repete o que lhe disse Olivier: o vestido de Pascalle é vermelho.
Estamos aqui diante de um tipo particular de representação. Não a representação de uma
observação primeira relativa à cor real do vestido de Pascalle mas a re(a)presentação do
enunciado da observação em questão. Pouco importa que o vestido de Pascalle (da
primeira proposição: o vestido de Pascalle é vermelho) seja realmente vermelho. O que
conta é que a segunda proposição: o vestido de Pascalle é vermelho seja, literalmente, a
mesma que a primeira. É este tipo de tautologia que produz a literalidade. E como = é
impossível, o vestido de Pascalle é vermelho diz outra coisa que o vestido de Pascalle é
vermelho. Está claro?

21. O que eu escrevo depende desta distância.

22. Quando eu escrevo aos meus amigos, eu começo minhas cartas assim: querido
Pierre, querido Olivier, querida Pascalle, querido Claude, querida Oscarine, querido
Alexandre, etc. O primeiro nome sobre o qual se abre uma carta dá a esta carta sua
entonação própria. Se eu conheço vários Pierres, minha carta não terá a mesma
entonação do que quando eu escrevo a Pierre X ou a Pierre Y. É, no entanto, o mesmo
primeiro nome. Mas eu faço a diferença. A pessoa à qual eu me endereço chamando
pelo primeiro nome colore minha escrita de uma entonação específica e familiar.
Pensemos em privado. Esta coloração particular tem o valor de adjetivo. Um adjetivo
responde à questão como? Um primeiro nome também. Quando escrevo: “Olá Olivier,
eu fotografei para você esta palmeira às cinco horas”, esta palmeira, como ela é? É
Olivier. É uma palmeira-Olivier. Mas como não importa quem poderia fazer algo assim
com a mesma palmeira e com o mesmo primeiro nome, meu Olivier é um como de
mim.

99
23. Todos os primeiros nomes já existem. A lista de primeiros nomes pré-existe. Meus
pais não inventaram o meu. Eles o copiaram de uma lista. É algo parecido com os
adjetivos. Eles já estão todos à minha disposição. Vermelho está no dicionário. Mas
quando escrevo: o vestido de Pascalle é vermelho, isso ainda não existe. E também não
é uma invenção minha. “A terra é azul como uma laranja” ou “O carneiro produz lã”,
isso são invenções, ou achados. Quando escrevo o vestido de Pascalle é vermelho, eu
faço uma conexão entre Pascalle e vermelho. É o meu vermelho-Pascalle. É algo
privado e não poderia ser de outro modo. Eu posso imaginar que meu primeiro nome se
torna, por sua vez, para aquele que recebe minha carta, um adjetivo. Quando eu leio
uma carta, eu começo pela assinatura. Quem me escreve? Se a assinatura é ilegível, e se
eu não consigo reconhecer a caligrafia de meu correspondente, eu não sei como ler a
carta. Quem? Ou como? Aqui retorna a mesma questão.

24. O que um leitor pode fazer com meu vermelho-Pascalle? Uma invenção literária,
um achado? Ora, esta não é minha intenção. O que um amigo pode fazer com isso? Eu
não sei. Ele pode fazer algo ao seu modo. Ou não. Toda carta de amigo se abre sobre
um primeiro nome e se fecha sobre um primeiro nome. Um livro que pode ser lido
como uma carta de amigo escapa à literatura.

25. Foi com esta intenção que eu copiei As pasta e 3 cartas de Marie Clement (Orange
Export Ltd., Flammarion, 1987).

26. O primeiro nome, a meus olhos, permite, com simplicidade, não uma passagem do
privado ao público, mas um acordo entre eles. Meu primeiro nome pode ser o mesmo
que o seu. Nesse aspecto, ele (nos) é comum. É sua face pública. Ao mesmo tempo, ele
me qualifica de um modo diferente do seu. É sua face privada.
Eu não escrevo com frequência a Emmanuel Ponsart, mas quando eu lhe escrevo, tenho
sempre o prazer de começar minha carta por Querido Emmanuel e de terminar
assinando Emmanuel. É proveitoso estudar uma frase como a seguinte: os franceses
falam aos franceses. Ou ainda: Plínio o Velho e Plínio o Jovem.
O nome próprio tem, em si, apenas uma face, a face pública. Se acontece de um nome
próprio tornar-se um adjetivo: “Schubert – é como se o nome fosse um adjetivo
qualificativo” (Wittgenstein) é um adjetivo qualificativo público. Podemos distinguir os
adjetivos qualificativos privados dos adjetivos qualificativos públicos.

100
27. Anedota III. Tânger, liceu Régnault, 1947 (?). Dia da volta às aulas. Bem na hora de
sair da escola entregam a cada um dos pequenos alunos que nós éramos uma folha
impressa que, é claro, não sabíamos ler. E nos pedem para trazê-la na manhã seguinte
assinada pelo pai. Estupor: não apenas a palavra assinada não tinha nenhum sentido
para mim, como também era impossível de ser repetida. Angústia no ônibus. Em casa,
com o ar de sonso, entrego a folha ao meu pai, incapaz de lhe explicar o que deve ser
feita com ela. Ali, surpresa e humilhação: o pai, sem manifestar qualquer espanto e sem
hesitar, segura o documento, pega sua caneta e faz um garrancho ao final da folha.

28. De onde se conclui: 1. Uma conivência tácita, a propósito da palavra assinatura,


entre o pai e a instituição escolar; 2. O nome do pai, mesmo garrancho, tem o valor de
passaporte. 3. Eu tenho um primeiro nome que é meu, mas o nome é meu pai que o
dispõe.
Consequência: o nome está associado a um contexto público de controle (medo,
ameaça, perigo). Em todo o caso, alguma coisa esquisita. Depois de um curto período
em que imitei o garrancho de meu pai nos cadernos escolares para evitar explicações
inúteis e difíceis acerca das notas indecentes que o preenchiam, eu nunca mais consegui
fazer uma verdadeira assinatura: tipo de garrancho personalizado. Ainda hoje eu assino
meu nome como eu escrevo a palavra galinha. Uma caixa do supermercado uma vez me
recusou um cheque sob o pretexto de que minha assinatura não se parecia a uma
assinatura.

29. Quando eu digo que aquilo que eu escrevo é literal, eu não quero dizer que estou
falando de coisas que realmente aconteceram (mesmo que seja o caso); eu quero
simplesmente dizer que meus enunciados devem ser tomados ao pé da letra, tal como
eles são reproduzidos, preto sobre branco. Todos os meus livros devem ser lidos como
cópias (V. O método Robinson). Eu sou o copiador de meus livros.

30. O método Robinson. Quando Crusoé aterrissa em sua ilha, após o naufrágio, ele não
é ainda Robinson. Ele será Robinson a partir do momento em que, não tendo encontrado
nem caneta nem lápis entre os destroços lançados na praia pelo temporal, ele descobrirá
um estilete e livros. Desses achados, nascerá o método que ele dá nome. Robinson fala
sozinho com as palavras que aprendeu quando ainda era Crusoé, palavras de que ele
dispõe em lembranças, em objetos de memória. Robinson, em sua ilha, faz a mesma
coisa que Crusoé antes do naufrágio fazendo ressoar o mesmo de forma diferente.
101
31. Importância desta ilha. Isolado do mundo, com os seus próprios meios, Robinson
vai reproduzir o mundo de Crusoé. É um copiador. E todo copiador, mesmo o copiador
mirim das salas de aula, aquele que cola do companheiro de mesa, é um insular. O
habitante de uma ilha. Exemplo: K o jovem, após ser isolado em um quarto, ao abrigo
dos olhos alheios, apropria-se de um pincel texugo (pincel para ensaboar antes de fazer
a barba). Através de uma lâmina de barbear (estilete bem cortante) ele barbeia o pincel.
Depois ele tenta reconstituí-lo recolando os pelos um por um.

32. O pincel1 é a figura emblemática do método Robinson. Ele designa aqui:


a) um método (v. O método Robinson)
b) um tipo particular de atividade (Robinson pincelou o dia inteiro)
c) o resultado desta atividade (hoje Robinson realizou um incrível pincel)
d) o conceito que daí resulta

33. O pincelador não é um bricoler. As duas atividades não obedecem à mesma


intenção. O bricoler realiza, por gosto, com mais ou menos prazer, as mesmas tarefas
que um profissional. Repintar as paredes da sala de jantar, por exemplo. Mesmo que ela
não ultrapasse o âmbito familiar, sua atividade, como a literatura, é social e útil, então
confessável.
A intenção do pincelador é inteiramente outra.
Visto do exterior, o pincelador é: a) derrisoriamente inútil; b) escandalosamente privado
e solitário; c) insultantemente especulativo e experimental.
Visto do interior (a ilha), o pincelador é: a) urgente; b) estudioso; c) operacional. Para
Robinson, é uma questão de sobreviver no presente: a interrogação súbita e a solução
imediata. “Algumas vezes encontramos a solução para uma questão assim como
quebramos uma noz.” (Ed McBain, The muggers.)

34. Pincel é uma metáfora. O baú de brinquedos está cheio de objetos privados, de
anedotas que, expostas à luz do dia, tornam-se metáfora, figura de estilo, lembrança
individual, autobiografia. É preciso rapidamente intervir e transformar essas metáforas
em conceitos, que colocamos então na caixa de ferramentas. Pincel tornou-se um
conceito.

1
Palavra usada em francês é Blaireaux que significa texugo, mas que em francês designa também, por
extensão, o pincel feito com pelo de texugo e o pincel para ensaboar o rosto quando se faz a barba.
102
35. A caixa de ferramentas conceituais é preenchida em função de minhas necessidades.
Se me falta uma ferramenta para operar uma conexão, eu tiro, no baú de brinquedos, um
objeto privado com o qual fabricarei o conceito que eu preciso. As mesas de Montalban,
por exemplo, ou o estreito de Gibraltar, o cão de Madame Sakaze, o duque de
Gloucester ou ainda a barragem sobre o rio K. Eu nunca inventei uma anedota. Elas
estão à minha disposição, quando eu preciso delas.

36. Aqui, por exemplo, eu preciso de uma ferramenta para fazer a conexão entre pincel
e enunciado. E quando eu digo conexão, Inspetor, eu não quero dizer transição. Eu
quero falar de uma solução imediata para uma interrogação súbita.

37. Eu preciso escavar, remexer, esmiuçar no baú de brinquedos.

38. Eu pego o guia de Roma. Olivier decide escrever minha biografia. Ele passa uma
noite inteira, na torre, cortando com estilete meu guia de Roma. Ele dispõe milhares de
fragmentos levados para Um pequeno monumento a E.H. Quatro colunas para os quatro
lados de um obelisco de escrita. Em seguida, eu copiarei literalmente este Pequeno
monumento contentando-me em redistribuir as linhas em versos. Isso resultará em Elegia
VI.

39. O que permitiu a “passagem” para o poema não foi a vontade de transformar a prosa
em verso; foi a natureza do material utilizado para esta prosa: do já escrito em um
contexto preciso (um guia para turistas). Eu compreendo o processo da seguinte
maneira:
Primeira operação: a) fonte: E.H. bebeu bastante na fonte da história romana; além
disso, ele vive atualmente em Roma. Um guia histórico de Roma deve poder servir de
ponto de partida.
b) tratamento: extrair, desta prova anônima, não-literária (o guia não comporta nenhuma
menção ao autor), fragmentos descontínuos cujas entonações poderão evocar E.H. (jogo
do retrato chinês) Dispor esses fragmentos em um continuum diferente, um outro
contexto, literário desta vez;
c) destinatário: E.H. (e não os turistas)
Segunda operação:
Eu me aproprio da prosa monumental para fabricar o poema. Do já escrito ao segundo
grau. Segunda lavagem de fragmentos de fresco. Não restou mais graxa individual.
103
Cada fragmento possui seu brilho próprio. Essas unidades duas vezes
descontextualizadas, duas vezes sem autor, eu as chamo enunciados.
Elegia VI, que eu assinei, eu não sou o autor. Eu sou apenas o copiador bastante
escrupuloso.

40. Eu chamo enunciado este tipo de objeto que:


a) já existe em um dado contexto dado (oral ou escrito) onde ele pode ser destacado
como fragmento suscetível a ser subtraído (o vestido de Pascalle é vermelho);
b) subtraído de seu contexto de origem (a conversa de idiotas entre Emmanuel, Olivier e
Pierre sobre a cor do vestido de Pascalle) ele deixa ali um buraco;
c) reproduzido literalmente em um outro contexto (minha vida privada) deixa ali um
buraco. E, como o buraco é contagioso,
d) faz um buraco de minha vida privada.
No final do percurso, um enunciado não pertence mais a nenhum contexto, nem a
ninguém. No entanto, para quem quiser ele é uma evidência.

41. Bastou copiar. Copiar é apagar.

42. Qual é a minha intenção? Eu diria uma intenção de pobreza.

In: minha sebe (2001), pp. 257-72.

104
II. A FORMA-POESIA VAI, PODE, DEVE DESAPARECER?

A primeira formulação desta pergunta – “A poesia pode, vai, deve desaparecer?” –


tinha a vantagem de já conter em si mesma a resposta. Uma vez formulada a pergunta,
conclui-se que ela pode existir. Quem, hoje em dia, questionaria se a televisão, por
exemplo, pode, vai, deve desaparecer? Perguntar-se isso a respeito da poesia é dizer que
sim. Este “sim” pode, no melhor dos casos, vir acompanhado de uma entonação
suplementar: infelizmente, enfim, com prazer, o quanto antes melhor etc.
A nova formulação da pergunta (“A forma-poesia pode, vai, deve desaparecer?”)
responde, na verdade, à afirmação da primeira. Perguntar se a forma-poesia – forma
diferente daquela da prosa – pode, deve, vai desaparecer é dizer implicitamente:
“certamente a poesia vai desaparecer, mas e a forma-poesia deve desaparecer por esta
razão? Eu gosto muito deste recuo. Eu gosto muito da sutileza (perversidade) da
pergunta. A Action Poétique, com o ar de quem não está dando os nomes aos bois, me
surpreende de modo deleitoso, pois:

1. Eu gosto muito da Action Poétique


2. Eu gosto muito do Henri Deluy
3. Eu não posso simplesmente representar para mim mesmo o que poderia ser uma
forma-poesia (Evidentemente eu compreendi bem que a pergunta não diz respeito a
“formas poéticas simples”).

A rigor, eu poderia imaginar uma forma-prosa como uma linha. Um romance, um


ensaio, um tratado etc. cabem, cada um, em uma única linha. Uma linha mais ou menos
longa dependendo do caso: Bartebly menos longa do que Moby Dick. Para fazer caber
uma linha de X quilômetros em um livro, nós a dobramos, como dobramos um metro
articulado para que ele caiba num bolso. A maneira de dobrar a linha-prosa (sua
justificação) obedece geralmente (na maioria dos casos) a critérios exteriores ao texto,
tais como: o formato do livro, sua visibilidade etc., e não a critérios do pensamento.
A “forma-poesia” seria então, ao contrário, uma não-forma. Não a prosa dobrada,
mas uma outra maneira de pensar. A não ser que consideremos “forma-poesia” como
um aspecto (Gestalt): quando abrimos um livro de poesia, vemos imediatamente que:

1. não é prosa
2. então é poesia.

Um pouco breve, não? No entanto, não podemos ir além disso. O que salva a
pergunta é a evocação do futuro. A “forma-poesia” vai desaparecer? Temos aí uma
indicação de contexto (França, 1994).
Uma pergunta: a “forma-poesia” não seria uma forma por falta de outra definição?
Resposta: não, isso seria muito simples! Outra pergunta: a forma-poesia seria a forma
de uma outra maneira de ver, pensar, mostrar? Nem sempre, mas de qualquer maneira,
seu projeto sim.

105
Quando W. observa que a filosofia deveria ser escrita como uma composição
poética, ele mostra implicitamente este projeto: encontrar a ferramenta apropriada para
operar relações (que não sejam prosa discursiva) entre objetos da linguagem. A “forma-
poesia” não pode então ser tomada como uma forma geral mas como a concretização de
intenções singulares.
Eu perguntei ao Alexandre Delay, pintor, se a forma-poesia – forma diferente
daquela da prosa – vai, pode, deve desaparecer? E sua resposta:
Eu diria que sim. Por princípio. Em seguida, me diria o seguinte: se queremos fazê-
la desaparecer e se ela não quiser desaparecer, ela reaparecerá sob uma outra forma,
se houver alguma necessidade. O que há de positivo na ideia da desaparição, é que
ela vai engatar o processo da ressurreição em outro lugar, sob outra forma. Isso
significa que ela pode nos ensinar alguma coisa que nós não somos talvez mais
capazes de ver nesta forma, diferente da prosa.
Destacar aqui a desaparição é uma maneira interessante de entender a pergunta, pois
deste modo um contexto é reintroduzido. Sentimos claramente, hoje, que alguma coisa
vai, pode, deve desaparecer, mas não sabemos bem o que é. E não saberemos nunca se
fizermos deste fato um objeto do pensamento (poesia, ou “forma-poesia”, pouco
importa). Trata-se aqui de permitir, de propor, de manter aberto o projeto de outras
maneiras de pensar ou de ver ou de dar a ver. Vista deste ângulo, a forma-poesia não
terá mais nada a ver com a poesia (e nem com a prosa, aliás). A “forma-poesia” será
apenas uma denominação por falta de outra qualquer. Mas como, de fato, nós não temos
outra à nossa disposição, podemos mantê-la, sabendo que nesta história negativa não
entra nem uma grama de poesia ou de forma poética, isto é, que se representa sobre o ar
(renovado) de uma desaparição.
E, no entanto, pode-se dizer, ainda resta o verso. Bem, não! Há todas as chances de
que o verso não exista mais também. O que continuamos chamando de verso
atualmente, também é provavelmente uma denominação por hábito. Dizemos verso
apenas para dizer: isso não é uma frase. É: outra coisa. O que chamamos verso hoje é:
outra coisa. Mallarmé (Pour un tombeau d’Anatole), Faulkner (a turbulência em O som
e a fúria), Collobert (Il donc), O. Cadiot (L’art poetic’), B. Hollander (o Livre de qui
sont était – a sair na coleção Um escritório sobre o atlântico – isso aqui é uma
publicidade) etc. não são nem prosa nem verso; são: outra coisa.
Então, eu disse a Henri Deluy: “Certo, vamos chamá-la de ‘forma-poesia’, esperando
que ela não desapareça rápido demais, porque nós ainda precisamos dela para escrever
nossas autobiografias de ninguém”.

In: Action Poétique (1994), pp. 110-12.

106
III. ODE NÃO-TRIUNFAL A VILA NOVA DE FOZ CÔA [excerto]
A Catherine L.

Eu fui a Portugal como convidado para representar a França em uma


Bienal de poesia em Vila Nova de Foz Côa.

É uma cidadezinha que fica no nordeste de Portugal, e que se tornou um pouco


conhecida
graças à recente descoberta de gravuras rupestres pré-históricas.

A viagem de ida teve algo de stalker: sobretudo nunca ir diretamente


de um lugar a outro.

Entre Bordeaux e Vila Nova de Foz Côa deve haver aproximadamente 500 km
num voo de pássaro.

A viagem de ida levou mais de doze horas, o que significa dizer que levou
o mesmo tempo que para ir a São Francisco ou a Tokyo.

Eu saí de Bordeaux no dia 27 de maio às 15h e chegamos ao destino


no dia seguinte, 28 de maio, em torno de 3h da manhã.

Eu tinha me encontrado, como previsto, com Remy Hourcade no Orly-Sud, de onde


fomos juntos para Portugal.

(Há uma hora de fuso horário entre a França e Portugal que vive
no horário do meridiano de Greenwich).

O itinerário: em avião: Bordeaux-Paris (1h) e Paris-Porto (2h); depois,


pela estrada, Porto-Vila Nova de Foz Côa (3h).

O motorista do 4X4, que havia ido nos buscar no aeroporto no


Porto colocou a mesma fita de fado durante quase toda a viagem.

Na autoestrada ele ia a 100km/ h, nas estradas asfaltadas ele ia


a 120, nas estradas secundárias esburacadas a 140

Apesar da lua cheia, era difícil ter uma ideia da paisagem


montanhosa que atravessávamos.

Em um trecho da estrada particularmente esburacado e tortuoso,


o motorista por pouco não esmagou um coelhinho.

À entrada da Vila Nova de Foz Côa, o motorista parou diante de um


bar onde ele deveria pegar a chave do lugar onde dormiríamos.

Ele voltou para o carro para dizer que a chave se encontrava na grama
diante da porta do lugar em questão.

107
O lugar em questão era uma escola de agricultura. A chave não estava
na grama diante da porta.

O motorista ligou de seu celular para os organizadores


da Bienal. Fazia frio.

Depois de meia-hora, os organizadores chegaram, bem tranquilos


mas sem a chave.

Rémy lhes disse em português: “Tudo aqui é agradável, mas


estamos com fome, sede e sono.”

Eles nos levaram a um café que ainda estava aberto onde nos serviram
uns croque-monsieur enormes com cerveja.

Depois disso, voltamos para a escola de agricultura. Nesse meio tempo os


organizadores se resignaram.

Eles nos disseram que para entrar era preciso acordar o poeta
moçambicano que dormia ali e que era ele que tinha a chave.

Batemos à porta mas o poeta moçambicano tinha o


sono muito profundo e não veio para nos abrir a porta.

Um dos organizadores foi à cidade procurar uma cópia da chave.


Isso levou 20 minutos.

Durante este tempo um carro parou em frente à escola


de agricultura diante de uma casa com um jardim.

Uma jovem incrível desceu do carro e entrou na


casa com sua chave.

Eu peguei para você, à luz da lua, uns talos de lavanda


que cresciam no meio da rua. Eu sei ser romântico.

O organizador que tinha ido buscar uma cópia da chave


voltou com ela.

A cópia da chave funcionava. Nós entramos. Eu fui levado para um


quarto sem chave no qual havia três camas.

Os organizadores me disseram para escolher a cama que eu queria. Eu escolhi


a que estava perto da janela.

Depois de ter nos desejado uma boa noite, ele marcou um encontro para
o dia seguinte no final da manhã no mesmo lugar.

Eu abri a janela e subi a cortina. O quarto dava para


um campo cheio de árvores, sob a lua.

108
Na manhã seguinte, eu acordei descansado e fui tomar um
banho. A torneira de água quente ficou na minha mão.

Eu consegui colocá-la de volta e levei um bom tempo para acertar a


temperatura ideal entre a água quente e a água fria.

Eu elaborei uma teoria, a da gota a mais ou a menos que


leva o suportável até o insuportável e vice-versa.

Ao me secar, eu estendi minha teoria ao açúcar no café. Ali também


um grão de açúcar a mais basta para tornar o café intragável.

Eu tornei a subir a cortina e olhei pela janela. Era um campo,


não cultivado, com oliveiras e maçiços de gerânios.

Os gerânios são a minha madeleine. Quando eu era pequeno, eles cresciam


nos campos, não em vasos. O sol brilhava.

Remy e eu saímos para tomar nosso café da manhã na cafeteria, sob um


salgueiro. Eu contei a Remy minha teoria do grão de açúcar.

Como Vila Nova de Foz Côa se abre agora ao turismo graças às gravuras
rupestres, um pouco por toda parte, há novas construções.

Há também muitos terrenos baldios, verdadeiros, abertos, invadidos


de mato, flores, árvores e latas enferrujadas.

Depois de termos trocado dinheiro no banco de Sacre-Coeur ou de Santo Espírito,


saímos para explorar o centro antigo.

Eu comprei um caderno preto quadriculado e nos instalamos


em uma mesa de café na rua.

O bobo da cidade apareceu. Ele tinha um ramo de basílico atrás


da orelha. Ele começou a falar conosco.

O dono do café veio pedir a ele para ir para em outro lugar. Neste
momento, dois policiais uniformizados passaram pela rua.

O dono do café disse ao bobo para ir com eles: “Vá falar com eles. Vocês
estão no mesmo nível.” O bobo seguiu os policiais.

De volta à escola de agricultura, dei uma passada pelo quarto


antes de ir encontrar o Remy no bar.

A arrumadeira havia abaixado a cortina. Eu a subi outra vez com tanto entusiasmo
que ela ficou presa no alto.

Rémy havia tido o problema inverso: ele não podia subir a cortina de seu
quarto, que havia ficado presa embaixo.

109
Descemos para tomar um whisky. Remy foi à cozinha
buscar “pequenas pedras geladas” (pedras de gelo).

Os organizadores da bienal e o ator que leria naquela noite meus poemas


em português vieram se juntar a nós.

O ator chamava-se Diogo Doria. Parece que ele atua em quase todos os
filmes de Oliveira. Eu nunca vi nenhum filme de Oliveira.

Ele fala fluentemente o francês. Ele é jovem, grande e belo. Se eu fosse uma
moça, ele me agradaria com certeza.

Durante o almoço, eu conheci o João Almino. Ele é


Brasileiro, professor na Universidade e cônsul do Brasil em Lisboa.

Ele fala muito bem francês. Nós descobrimos amigos em comum


nos Estados Unidos. Eu o coloquei na minha coleção de cônsules.

À tarde ele ia dar uma palestra em português sobre Robert


Creeley no salão da prefeitura.

Eu disse aos organizadores: “Peço desculpas mas esta tarde eu não


poderei vir à prefeitura.

Eu preciso concertar a cortina do meu quarto para não ser acordado


amanhã cedo, às 5h.”

Eles me responderam que não era necessário pois eles haviam decidido
nos hospedar num hotel na noite seguinte.

Eu tive então que ir à prefeitura escutar os discursos do prefeito


e de seu primeiro adjunto, e depois a palestra em português sobre Robert Creeley.

Como eu não compreendo o português, eu passei todo o tempo


observando as pessoas da plateia.

Eu reparei que havia uma mulher muito linda por quem eu resolvi me
apaixonar imediatamente.

Ela era como uma montagem de três mulheres que eu amei, e mais ela.
Eu tinha então 4 bons motivos para amá-la.

Após a palestra, eu felicitei o cônsul. Eu lhe disse que havia


sido muito bom por causa dos nomes que ele tinha citado.

Depois disso, houve os debates. Como a mulher do meu coração havia se eclipsado
eu propus a Remy que fizéssemos o mesmo.

Na escada, encontrei, ao pé de uma árvore em um vaso, pedaços rasgados


de papel onde a tinta havia sido diluída pela terra úmida

110
Eu pensei, a princípio, ao vê-los, que se tratasse de cacos de cerâmica
azulados. Eu os recolhi para você.

Nós fomos ao hotel deixar as coisas em nossos quartos.


Eu preparei minha leitura da noite e troquei de roupa.

A leitura estava prevista para 20h. Às 20h, nos sentamos na mesa. Às


21h as dez pessoas que estavam ali para nos ouvir haviam partido.

A leitura começou às 21h30. A plateia era composta pelos organizadores


e por outros poetas que deviam também ler na mesma noite.

Na plateia, havia a mulher da minha vida em companhia de um


outro poeta, Jorge Souza Braga, que deveria ler depois de mim.

Ela era muito atenciosa e carinhosa com ele. Rémy concluiu que
ela não era sua mulher. Descobri que seu nome era Graça.

Diogo Doria leu muito bem meus textos em português. Eu o felicitei e


para agradecer, lhe ofereci Teoria das mesas.

Depois foi a vez de Jorge Souza Braga e de Manuel Antonio Pina


lerem, em português.

Em seguida, nós fomos todos tomar alguma coisa no café. Às 2h da manhã


eu disse: “Boa noite. Vou me deitar. Até amanhã”.

Na manhã do dia seguinte, encontrei Rémy no café da manhã. O programa


do dia não nos agradava.

Nós faltamos a visita às gravuras rupestres. Nós queríamos também escapar


da conferência sobre a experiência poética e o sagrado.

Rémy disse aos organizadores que por causa do tema da conferência eu


poderia me tornar desagradável e que não valia a pena correr o risco.

Também dissemos que preferíamos voltar naquele mesmo dia ao Porto.


Estávamos preparados para o trajeto de 4 horas de ônibus sem poder fumar.

Manuel Antonio Pina nos convidou então para voltar ao Porto no carro de
fumantes com Jorge Souza Braga e Graça.

Nós aceitamos de bom grado. Eu agradeci a todos os organizadores


e lhes disse: “Eu gostaria de ser o mascote de vocês”.

Entramos no carro. Após cumprimentos gentis,


Rémy acabou ficando na frente, ao lado de Jorge, que dirigia.

Manuel estava atrás, à direita; eu estava atrás, à esquerda; Graça se


instalou entre nós.

111
O trajeto da volta me pareceu tão curto como o da ida havia parecido
interminável na antevéspera à noite.

A estrada dava tantas voltas quanto na antevéspera mas eu adorava as curvas


que obrigavam a Graça a se apoiar com frequência sobre mim.

Sobretudo na estrada do coelho, quando Jorge ultrapassou um caminhão de


peixes em alta velocidade.

A viagem foi muito agradável, apesar dos cigarros fedorentos que


fumava Manuel se divertindo com Graça, que estava muito risonha.

Deixei o Porto com uma grande tristeza, diante de uma estação


de táxis. Ela nos beijou dizendo até logo.

Foi simplesmente um beijo segundo as regras, bem gentil e gramatical.


Escaparemos um dia à gramática?

Remy e eu fomos almoçar em um restaurante cheio de


portugueses que comiam bolos com crianças já bem gordas.

Depois do almoço, por um dédalo de ruelas cercadas de jardins não especialmente


interiores, chegamos na casa da Vicky. [...]

In: minha sebe (2001), pp. 505-516.

112
IV. DOIS ANDARES COM TERRAÇO E VISTA PARA O ESTREITO
À Raquel

nunca a Andaluzia esteve tão verde quanto neste ano


nunca os corretores tiveram os dentes tão afiados
trinta e seis milhões de pesetas por uma casa em Tarifa
dois andares com terraço e vista para o estreito
mais caro por metro quadrado do que em pleno centro de Marbella
mas
sabe com o futuro centro internacional de windsurf
é um ótimo investimento disse enrique
daqui para frente só pode valorizar
em menos de cinco anos
você dobra o valor do investimento
em uma cidade velha sem garagem
você acha prático
sim
dá para construir uma garagem no jardim
dando para a rua de trás
saindo do depósito
que você chama de jardim pensei
quando fomos visitar
num sábado à tarde
por pura curiosidade
a mulher disse é uma casa enorme
ela via televisão com a filha
seu marido tinha saído ou morrido
não entendi direito
aqui depois dos quarenta
todas as mulheres parecem viúvas
eu estava curioso para ver o último andar
aquele com terraço e vista para o estreito
sobretudo a vista para o estreito
a mesma que víamos do quarto três da pousada
a mulher disse o inquilino atual saiu
eu não tenho a chave
vocês precisam vir à noite
quando ele tiver chegado
na sala ao lado a TV gritava
a mulher pediu à filha
você podia abaixar o volume
do lado de fora chovia
dentro estava escuro
é bem claro lá em cima disse Enrique você vai ver
morei aqui por muito tempo
então por que você se mudou por quê
porque não tinha garagem
para o Zodíaco não era prático
voltem à noite insistiu a mulher
à noite estará escuro não vamos ver nada pensei
na parede tinha um retrato
uma aquarela enquadrada com vidro
113
R. disse é um belo retrato
ele é muito fiel
a mulher sorriu
pensei ela não se parece mais nem um pouco com o retrato
como R. sabia que era ela
só uma mulher poderia ter dito isso pensei
vocês voltarão não é disse a mulher
ela sorria
as mãos sobre o ombro da filha
sim
sim nós voltaremos
de que vai adiantar me perguntei
além do quê
não tenho a menor intenção de comprar a casa
e com que dinheiro Meu Deus
descendo a escada do lado de fora
Enrique escorregou
os degraus de pedra estavam gastos
e com a chuva ficaram escorregadios
Enrique se machucou
ao amortecer a queda com a mão esquerda
ele disse malditas solas de borracha toda vez que chove
é a mesma coisa
devia tê-las jogado fora
ele segurava a mão esquerda na mão direita
os olhos esbugalhados
ele disse o inquilino de cima vai embora
na semana que vem
mas a velha de baixo vai ser mais difícil de desalojar
ela está lá desde sempre
é preciso comprar a casa com ela
pode acreditar que é um negócio da China
sobretudo
com o centro internacional de windsurf
já até falam nisso
nas revistas americanas sabe
Enrique
mas é tão caro quanto em pleno centro de Marbella
você não percebe
neste buraco perdido com este clima de matar
quando não é o vento leste
que te bate na cara
é o vento oeste que traz as tempestades
ou então é o vento norte
que faz sua cama para o vento leste
e isso nunca para
você está ouvindo
todos esses idiotas nos cafés
ficam falando sobre o vento o ano inteiro
eles não têm outro assunto para conversar
só sabem falar no vento
sim isso não impede que
114
em pouco tempo tudo comece a se agitar
e já começou
pare com isso de Marbella por favor
Marbella já acabou
ouviu acabou
os preços não subirão mais
agora em Marbella eles só poderão se estabilizar
ou cair
enquanto que aqui acabou de começar
acabou de começar está ouvindo
veja essas colinas daqui a alguns anos
tudo será construído
é agora
é preciso comprar agora ou nunca
já é quase tarde demais
era preciso tê-lo feito há dez anos
naquela época dava para comprar a preço de banana
ou mesmo há cinco anos
sua mão começava a inchar
a Andaluzia nunca esteve tão verde
é uma boa metáfora para começar um poema de amor
mas não tenho vontade de escrever um poema de amor
e não gosto de metáforas
oh, minha camela branca
eu disse Enrique você devia tomar mais cuidado
com esses seus ouvidos estourados
você tem caído muito ultimamente
você deveria prestar atenção
isso não tem nada a ver com os meus ouvidos
na água tenho todo o equilíbrio
você acha que eu
iria correr esse risco
são essas malditas solas de borracha sempre que chove
deveria jogá-las fora
e essa casa Enrique
já que é um negócio tão bom assim
por que você não a compra
eu não estou aqui para comprar uma casa
e além disso com que dinheiro
estou aqui em uma viagem de estudos
Meu Deus e para estudar o quê
para estudar e nada mais
caminho escuto o que se diz
observo e reflito
sua mão começou a ficar escura
ele disse maldita mão é sempre a esquerda
você é canhoto perguntei
não não
mas é a mão do coração
se um coágulo se forma e sai por aí já viu
na terra não tem importância
mas a vinte metros de profundidade
115
não tem perdão
Enrique contemplava a mão com o ar terrível
ela estava cada vez mais escura
o iate se chamava Bora-Bora
era um treco com motor ultrapotente
completamente eletrônico
capaz de atravessar o estreito
em vinte e cinco minutos
em vez de uma hora de barca
de jeito nenhum disse R.
não
não vou atravessar o estreito ali embaixo
tomarei a barca
não há barcas às segundas interveio o dono da pousada
ninguém tinha lhe perguntado nada
ele disse olhando para baixo
para a garrafa de água mineral
que ele não conseguia abrir
suas mãos eram pequenas gorduchas
nem domingo nem segunda
repetiu em francês
seus pequenos olhos traiçoeiros
sempre fixos sobre a tampa da garrafa
vocês jantarão conosco aqui essa noite
esse é do tipo que quando criança devia jogar lagartos
nos decotes das moças
R. disse além da pousada
ele é dono do supermercado do outro lado da rua
como é que você sabe
pois eu o vejo fazer sem parar
o vai-e-vem entre os dois
com um ar de proprietário
de qualquer maneira no supermercado em frente
também não tem graxa incolor
já busquei por lá
este ano
em toda Espanha não há graxa incolor
apenas graxa azul
o que vou fazer com graxa azul
se neste ano meus sapatos são verdes
lá em casa disse o dono meus pais falavam espanhol
aprendi o francês na escola
ele tem toda a pinta de tratante pensei
sábado à noite ainda chovia
o vento soprava em rajadas
abri a janela
escutei os pássaros piando
embaixo de chuva
na escuridão
maldito país aposto que entre eles há alguns papagaios
domingo de manhã ainda chovia
o vento ainda soprava
116
os pássaros ainda cantavam
embaixo de chuva
nas palmeiras
aposto que entre eles há papagaios
eu disse vou ver se Hemingway já levantou
R. disse pare de chamar meu irmão de Hemingway
ele tomava o café da manhã com o dono
quando me aproximei ele disse ao dono
cuidado com ele é um vermelho
sabe de onde vem seu boné
eu disse bom dia que tempo ótimo
é uma tempestade isso mesmo disse Hemingway
uma daquelas
não poderemos partir hoje
Pepe me espera no porto vou preveni-lo
Pepe o espera no café pensei
Pepe não estava no porto
o Bora-Bora se agitava rangendo sobre seus cabos
Hemingway disse Pepe deve estar no café
vou avisá-lo de que volto
diretamente a Marbella e você o que vai fazer
eu fico amanhã vou para Tânger com R.
você vai se a barca sair com este tempo
não se preocupe ela vai sair pensei
você não devia voltar para lá
você vai se arrepender quer ver
não se preocupe tampouco com isso pensei
ele disse quando voltei à Casablanca
e revi a villa
você não tem ideia do choque que foi
parecia que eles a tinham transformado em uma clínica
você não imagina a cor verde horrível
que usaram nas paredes da entrada
e na escadaria enorme
não pude prosseguir
preferi sair novamente e guardar a lembrança
de como era antes
você vai ver
R. e eu fomos jantar no Enrique
como vai sua mão
ela continua escura está vendo
mas ela parou de inchar está vendo
ele tinha aproveitado o repouso forçado
para raspar a hélice da lancha
e para repintá-la
ele tinha colocado o motor
sobre um jornal aberto no chão
ao lado do jornal
alguns respingos sobre o ladrilho
umas gotas de tinta preta
mas nenhuma sobre o jornal
após o jantar ele nos acompanhou até a pousada
117
o vento soprava forte
amanhã vocês não partirão querem ver
eu os aguardarei às 10h para tomarmos o café
eu disse a R. é sempre assim com os pescadores
eles não conhecem nada
mas nada mesmo do mar e dos barcos sabe
e você por acaso conhece
não eu não
mas os pescadores e marinheiros
nunca veem as coisas
da mesma maneira
segunda de manhã desci às oito horas
não chovia mais
o vento ainda soprava
o dono ainda meio adormecido
diante da TV ligada
na pequena sala da pousada
perguntei posso pedir um café
não
não tem café às segundas
é meu dia de folga
eu disse tudo bem
feche a minha conta
tomarei a barca em seguida
não
tem muito vento
ela não sairá
de todo modo não segunda-feira
às nove e meia a barca deixou Tarifa
não havia muitos passageiros
ingleses no inverno
o tipo com roupa agalonada que cuidava do bar
tomava os marinheiros como testemunha
sou marinheiro e não garçom
não servirei nada
a ninguém
perguntei posso pedir um café
si
si señor
a travessia durou uma hora e meia
o céu estava coberto e ventava
o mar não estava bom
mas também não estava tão mal assim
a Ilha de Mallorca avançava em direção ao Sul
não era o trajeto habitual
o sol subia
e descia a bombordo
no enquadramento das janelas
também não era lá
que ele deveria estar
o barco perdeu a velocidade inicial
isso dava para saber pelo barulho dos motores
118
às dez e meia
o sol desapareceu do enquadramento das janelas
as gaivotas o tinham substituído
elas nos acompanhavam
a Ilha de Mallorca começou a margear a costa da África
eu disse estamos descrevendo um arco de círculo
por que
em breve avistaremos o cabo de Malabata
você vai ver
a chegada pelo mar na baía de Tânger
é a mais bela do mundo
como você sabe que é a mais bela
você nem conhece todas as baías do mundo
não claro que não
foi um diplomata que me disse isso certa vez
é preciso confiar neles
esse também conhecia o mar da China
não estava pré-julgando
avistei o farol de Malabata quando estávamos
exatamente debaixo
distinguíamos a colina de Charf
seus ciprestes ao fundo da baía ao centro
mas o cabo Spartel ainda não
deu errado eu disse
a baía de Tânger estava submersa na chuva
não pude localizar a Villa Harris
quando a barca acostou
e desceu as cordas
os tipos da alfândega e da polícia subiram a bordo
para o controle dos passaportes
uma mulher estava entre eles
não era uma funcionária
mas uma mulher assim muito maquiada
você sabe o que ela faz aqui com eles
não
demorou mais de uma hora para podermos desembarcar
o táxi que nos levou ao hotel
passou em frente ao liceu Regnault
no lugar do relógio na fachada
havia um buraco redondo
através do qual víamos o céu

ele ca iu
teht

ele escor regou


slagt

depois do liceu Saint-Aulaire


rebatizado Ibn Batouta
o táxi virou na antiga rue des Vignes
lá estava o Hotel Atlas
119
um pouco mais alto
o cinema Mauritânia não tinha mudado
antes era o melhor cinema de Tânger
lá eu tinha assistido
Robinson Crusoé de Buñuel
Fora das grades e Johnny Guitar
O crime foi quase perfeito
O diário de um cura do campo
As marionetes de Yves Joly
Clérambard de Marcel Aymé
Les Frères Jacques
Antonella Lualdi em O vermelho e o negro
James Dean pela primeira vez em Vidas amargas
Pierre Brasseur em O diabo e o bom deus
Romeu e Julieta de Castellini
Maria Casares em Fedra ou era em Andrômaca
Brigitte Bardot em E Deus criou a mulher
do quarto do hotel
dava para ver os terraços dos prédios em Charf
e ao longe os bairros novos que
a gente ainda não conhecia
quando eu quis sair à varanda
a maçaneta da janela francesa ficou na minha mão
eu disse e se a gente desse um passeio
a Place de France não tinha mudado nada
ou muito pouco
as paradas de ônibus eram as mesmas
na calçada diante do consulado
que tinha servido de cenário como um hotel de luxo
no último James Bond
me lembrei de que na “Liberação”
o cônsul-geral tinha organizado um buffet
com docinhos
em honra dos Amigos da França
um bando de rifenhos se lançou no salão
um bando de selvagens descidos do Rife
eles empurraram todo mundo
e se lançaram sobre o buffet
em poucos minutos os docinhos tinham desaparecido
eles não deixaram nada para os Amigos da França
o cônsul-geral tentou interferir
e recebeu uma cadeirada na cabeça
agora eram os ônibus que estavam diferentes
eram cinzas fétidos barulhentos
e não mais amarelos fétidos barulhentos
como antes
no terraço do Gran Café de Paris
o cheiro de cera
não se misturava mais
ao cheiro de café
tanto faz
o boulevard Pasteur
120
com vista para a enseada
me pareceu curto estreito
eu disse é estranho em trinta anos
não mudou tanto
menos do que eu esperava
mas tudo diminuiu está raquítico
R. disse quando somos pequenos vemos as coisas
maiores do que na realidade são
não é bem isso
e eu não era assim tão pequeno
não essa cidade encolheu foi isso
aqueles que não saíram daqui não percebem
eles enrugaram com ela
Kent não era mais o prisunic inglês de outrora
com seu cheirinho de doce
e objetos de plástico
importados da Inglaterra
rue Goya
a confeitaria Porte estava fechada
não fechada para o descanso semanal
fechada como que para sempre
com aquele ar de abandono que não engana
aqui o conde de Paris vinha tomar chá
quando ele vivia perto de Larache
um dia ele tirou os sapatos sob a mesa
e suas meias estavam furadas
isso pode acontecer com qualquer um
na esquina da rue du Doutor Fumey
o cinema Goya não tinha mudado
no começo dos anos cinquenta
nas tardes de sábado
vi ali todos os filmes de Deux Nigauds
Bud Abbott e Lou Costello
vi Deus precisa de homens com Pierre Fresnay
ou será que era o senhor Vincent
ou os dois
Edwige Feuillère e Jean Marais em A águia de duas cabeças
Natasha deveria tê-la matado na primeira noite e me matado depois
William Holden fazendo aviador americano
durante a guerra da Coreia
ele sacrificava a vida pelo mundo livre
seu avião azul
sobrevoava o mar costeando o litoral
após algumas panes ele se espatifou
seu rádio não respondia mais
ao estado maior
foi assim que descobriram que ele tinha morrido
nós espectadores já sabíamos de tudo
porque já tínhamos visto acontecer
um jovem general da aviação
elegante
iria dar a notícia
121
à sua viúva loira
com um belo penteado corajosa
com orgulho dele e da América
ela chamava os pequenos órfãos
os dois meninos brincavam no meio das flores
sobre o gramado diante da casa
o general levantava os dois nos braços
um de cada lado
e lhes dizia sorrindo seu pai é um herói
a bela viúva com lágrimas nos olhos
a guerra fria também era isso
na esquina da rue Marco-Polo
R. disse na minha lembrança
o hotel Rembrandt era muito mais alto
está vendo
não sou só eu você também
passamos diante do Gran Teatro Cervantes
onde uma trupe lírica de Algeciras
apresentou um dia Rigoleto
desde então adoro Verdi
rue de la Plage
entre a avenue d’Espagne e o Gran Socco
passamos pelo muro do cemitério israelita
atravessamos o mercado de peixes
onde em outros tempos eu admirava os espadões
ele estava sujo e fétido mais fétido impossível
está tudo bem você não está muito cansado
rue des Siaghines
não havia mais mulheres ao redor do chafariz
o chafariz ainda existia
mas a água tinha sido cortada
na praça do Gran Socco
o mercado ao ar livre tinha desaparecido
desapareceram as rifenhas sentadas sob os guarda-chuvas
ou sob seus chapéus de palha
ornados de pompons de lã coloridos
era ali que elas vendiam
sobre esteiras ou mesmo no chão
cebolas
melancias
ovos brancos
frangos vivos
palmitos
os arrebiques e pedaços de cal
desapareceram os vendedores de flores e seus jarros
à sombra das árvores
cravos
gladíolos
rosas
narcisos
gerânios
íris
122
árums
eucaliptos
mimosa
rue de Liberté
a antiga rue du Statut
a clínica para idiotas não existia mais
a fotografia colorida de Hassan II
tinha substituído a estátua romana
no hall do hotel Minza
jantamos
num restaurante vazio
na esquina da rue de Vignes com a rue do México
o garçom era muito amável melancólico
a comida infecta
do outro lado da vidraça em frente à nossa mesa
os garotos descalços passavam a cabeça baixa
deixe a cortina fechada
não quero que eles nos vejam comer
lá fora chovia
subimos até a Emsallah pela rue Belgique
eu disse é triste
não há mais nenhum burro nesta cidade
nem uma única loja digna deste nome
avenida de Alexandria
mesmo os novos imóveis já tinham o aspecto arruinado
tinham tomado o lugar dos terrenos baldios
a casa da rue Dradeb era ainda a mesma
o barranco onde as cabras comiam
figos da barbaria
também tinham desaparecido
o chafariz
com o barulho dos jarros e os gritos de mulheres
no cemitério de Marshan
a grama crescia como antigamente sobre os túmulos
na rue do Village sobre o portal do n. 1
uma placa de cobre continha a inscrição
Senhor e Senhora R. Muller
eu não tentei entrar
chovia diante do antigo palácio de Mendoub
transformado em museu
recarreguei minha câmera fotográfica
você não está cansado demais
não tudo bem
em minha lembrança a rue Shakespeare era mais branca
e muito mais longa
um lado inteiro da parede tinha sido repintado
de rosa-morango que pena
está vendo aquela grade de esgoto
um dia caí nesse buraco
andava olhando para o ar ou para trás
não sei
a grade tinha sido retirada
123
eu não tinha visto
é engraçado que ela esteja lá ainda
poderia ter me matado sim
chegamos ao lugar onde a rue descia
para voltar a subir em seguida
quando chegava da escola
a partir deste lugar ali
era preciso começar a juntar pedras
por causa daqueles pequenos malfeitores do colégico corânico
ela estava ali naquele lugar vazio está vendo ali
eles estavam sentados sobre esteiras as pernas cruzadas
e recitavam em coro ao longo do dia
o fquh tinha uma longa vara
que usava para enfiar a surata
em seus pequenos crânios raspados e sarnentos
enquanto eles salmodiavam juntos
sob a ameaça da vara
não havia o que temer
mas durante o recreio
eles ficavam lá fora de emboscada e te jogavam pedras
era preciso responder bem rápido
ou mesmo tomar a iniciativa do ataque para poder passar
um dia precisamente lá no alto da ladeira
eu levava um aquário cheio d’água
tinha as duas mãos ocupadas
eles quase quebraram o aquário com as pedras
no aquário havia gambusias
que tinham acabado de me dar
e eu levava para casa
você sabia que eles comem as larvas dos mosquitos
e se deslocam numa formação como a dos bombardeios
naquela época ainda havia o paludismo
minha avó alsaciana pegara essa doença
claro
ela detestava Tânger e sentia falta de sua Alsácia natal
onde não havia o paludismo
ali havia bombardeios
dos grandes
mas para ela isso sem dúvida contava menos
que os mosquitos
você os conheceu
os mosquiteiros
quando havia um buraco mesmo pequeno
o mosquito entrava por ali
e você passava a noite se debatendo
trancado com ele parecia uma gaiola
como respirávamos mal ali embaixo
uma garagem substitui o colégio corânico
do alto da ladeira está vendo
é a villa Mc Lean
dos andares de cima quando o tempo estava limpo
você via todo o estreito de Gibraltar
124
até as falésias de Trafalgar
um milionário morava ali um de fato
ele possuía um Stradivarius autêntico
talvez mesmo dois
seu secretário particular era coronel
atuava como contralto um homem distinto
ele tinha também um trem elétrico
que ocupava uma sala inteira eu vi
mais tarde
ele “mandou” construir um palácio em Charf
para onde ele foi com o seu stradivarius
seu coronel seu trem elétrico
e seu filho indolente milionário de nascença
gentil e doce
esse filho tinha na esquina da rue de Fes
com a rue Cervantes
uma loja onde ele vendia aos quilômetros
canos de irrigação em plástico
era então uma novidade
e os LPs Ducretet Thomson
de que ele era concessionário
agora vou te mostrar a casa
aquela do teatro de sombras
ela está em todos os meus livros
sempre a preferi às outras
àquela da rue Dante
à da rue du Village
à da rue du Dradeb
à da senhora Sakaze
não tinha mais o portal da garagem
os juncos tinham brotado ali
um pouco além a grade estava condenada
a parede tinha sido demolida
havia em seu lugar agora juncos também
os dois batentes da grade
estavam distantes um do outro quase um metro
e para esconder a lacuna
umas tábuas tinham sido pregadas
e sobre uma delas estava fixada a pequena placa esmaltada
contendo o número 33 isso eu tinha esquecido
era lá
no 33 da rue Shakespeare
olhei através do que tinha sobrado da grade
por sobre as tábuas entre os juncos
a garagem tinha desaparecido
o caminho vazio que conduzia ao poço
tinha desaparecido
o poço também tinha desaparecido
à direita ao fundo
lá onde ela estava
não havia mais a casa
com suas colunas
125
suas vidraças
seu terraço com balaustrada de onde víamos o estreito
a casa tinha desaparecido
eu disse não resta mais nada não dá para acreditar
chovia
eu olhei ainda por baixo das tábuas entre os juncos
as árvores
os pinheiros em forma de guarda-sóis
as figueiras
a grande amoreira
tinham sido cortadas ou então tinham morrido
no entanto veja
ao nosso redor as outras coisas mal se moveram
é verdade está tudo destruído
mas tudo está um pouco como antes
bem deixa pra lá
mas o que eu não entendo
não é realmente o fato de a casa não existir mais
já naquela época
nas noites de inverno
quando chovia
uns pedaços do teto se soltavam
e caíam sobre as lajes
o barulho me acordava com frequência
não
o que me espanta
é que o próprio terreno esteja totalmente informe
irreconhecível
nivelado
um terreno baldio onde o mato cresce
como se tivesse sido sempre assim
não restou um único detalhe
nem um contorno
nenhum traço sobre o qual se apoiar
é como aquela grade que não está mais no seu lugar
qual o sentido disso
eu olho e torno a olhar
contudo era aqui
vamos venha
venha vou te mostrar o beco sem saída do cachorro
você sabe aquele eu morria de medo dele
com seus quatro olhos amarelos
o beco estava em ruínas
deserto abandonado
cor de ferrugem suja
ele era branco naquela época
nós fomos até o cemitério
nos dias de vento os carneiros do estreito
eram mais numerosos e mais brancos
do que os carneiros que passavam pelas sepulturas
os lírios murchavam no pé
as abelhas estavam nervosas
126
logo ali nos eucaliptos
ficava a casa da senhora Sakaze
ela passava seus dias de roupão
fumando cigarros
que ela própria enrolava em papel jornal
nós retomamos nossos passos
descendo com muita precaução
o caminho super inclinado
tornado escorregadio pelas chuvas da véspera
e pelos pequenos arbustos
e andamos muito tempo sem dizer nada
na altura do estádio eu disse
vou te mostrar uma última coisa
quando chegamos diante da falésia
que cai a pique no mar
eu disse essas são as sepulturas da elegia 2
as sepulturas fenícias
cavadas nas rochas
a céu aberto
elas estavam repletas de água da chuva
as nuvens se refletiam ali
ao fim da tarde
formando retângulos
brilhando reluzentes à superfície da rocha
elas também
não tinham mudado
só os cemitérios e os cinemas é que não mudam
por quê
voltamos pela casbah
a noite caía os muros tinham cores bonitas
as menininhas voltavam da escola
elas eram despreocupadas alegres
é preciso que elas sejam assim pensei
é sobre elas que repousa o futuro desta cidade ferrada62
era isso o que
você tinha vindo buscar
isso
que eu vi
embora não saiba exatamente
o que eu vi
não mesmo
ouça
tinha uma jovem
que morava na rua Quevedo
de frente para uma quadra de ginástica
nos a víamos na varanda
uma jovem da nossa idade
muito linda
eu acho que ela ajudava seus pais na loja
nós cruzávamos com ela pela rua todos os dias
na saída da aula
ou então a encontrávamos na praia
127
eu nunca esquecerei seu rosto seus olhos sua voz
há dois anos em paris
me encontrei com
alguns antigos colegas da escola
para jantar em um restaurante
alguém disse ela também virá
depois do jantar na hora de nos despedirmos
eu disse acho que ela não deve vir mais
ela estava aqui meu velho
você chegou a falar com ela na mesa
eu não a reconheci
sem dúvida ela mudou muito
não nada disso ela não mudou tanto assim
bom isso que eu vi aqui
deve ser parecido
no dia seguinte tomamos o barco
estava contente de voltar à Tarifa
o dono sorriu para mim
não pensava revê-lo tão cedo
eu encontrei seu boné
Hemingway disse não confia nele é um vermelho
comprou seu boné em Moscou
então como estava Tânger
nojento eles pintaram todos os cachorros de verde
Enrique se juntou a nós para jantar
você reparou o vento está terrível essa noite
como você sabe
eu o ouço você não
você é meio surdo e consegue ouvir
surdo ou não eu o ouço isso eu garanto
lá fora o vento estava extremamente violento
força 12 ou até mais disse Enrique de pé na calçada
bem que eu disse
e ele vai aumentar nas próximas horas
se eu fosse você tomaria conta de seu barco
nós deixamos Enrique em casa
depois descemos ao porto
o Bora-Bora agitava-se sozinho
em meio às rajadas
os outros barcos todos tinham sido levados para longe
o vento soprava a mais de 130 km por hora
é preciso fazer alguma coisa com urgência
merda e que diabos houve com Pepe
ele devia estar aqui vou procurá-lo
Hemingway partiu na noite
à procura de Pepe
Pepe estava em casa
ele dormia a sono solto
quando Hemingway o acordou ele se vestiu
ele disse tenho a impressão
de que me deixei surpreender
agora o vento está muito forte
128
não podemos fazer mais nada
vamos esperar que a corrente da âncora segure o tranco
esperar esperar eu não pago esse filho-da-puta
para dormir e esperar
por causa dele vinte e cinco milhões de pesetas
vão se espatifar de um minuto para outro contra o paredão
a água do porto estava em ebulição
a força do vento só aumentava
eu disse é um furacão
um verdadeiro filho-da-puta de furacão
Pepe disse
é preciso lançar uma corda sobre a proa do barco
lá do cais dos militares
é a única coisa que podemos fazer
para aliviar a corrente
com esse vento
quem vai subir a bordo para amarrar essa corda
Enrique podia alcançar o Bora-Bora
nadando por baixo d’água
só ele pode chegar ali
Hemingway foi atrás de Enrique em sua casa
Enrique disse esquenta a água
eu meto minha roupa e encontro vocês
chegando ao porto ele disse sim deve ser possível
o difícil vai ser conseguir subir a bordo
todos seguiram para o cais dos militares
R. e eu voltamos para o Range Rover
que o vento sacudia como uma palmeira
um lampião se balançava sobre nós
olhe
o que é que tem lá
ao pé da parede
você está vendo
eu disse é um rato enorme que volta para casa
espera que eu vou colocar meus óculos
à luz do lampião
eu vi a forma parada na calçada
ao pé da parede
do outro lado da rua
eu disse é uma raiz
que se deslocou na tempestade
não não
olhe ele acabou de se mexer está vivo
a coisa se movimentou
depois de um tempo ela disparou
e atravessou a rua
com vários pulos
ela quase voou em direção ao porto
a menos de um metro do carro
depois desapareceu na escuridão
sob a grade do cais
você viu você viu
129
eu disse é um país de loucos
mas você viu o que era
era um caranguejo não era
um caranguejo que vem da cidade e volta para a casa
era um centollo
um centollo enorme
eu disse quando Plotino deu seu último suspiro
uma pequena serpente verde entrou debaixo de sua cama
um centollo deste tamanho disse Hemingway
e você o deixou escapar
não tentou nem mesmo apanhá-lo

In: minha sebe (2001), pp. 104-135.

130
V. EU NÃO SEI SE FERNANDO PESSOA REALMENTE EXISTIU

Eu não sei se Fernando Pessoa realmente existiu


(admitindo que saibamos o que existir quer dizer)
mas eu acho que ele existe à medida
que cada um de nós acha que ele existe.
E que neste sentido ele é único.
Não no sentido em que cada um de nós é único
– ou pensa ser –
mas no sentido em que Fernando Pessoa é único
isto é, como um gerânio
no meio de outros gerânios,
isto é, como todo mundo.

O que o torna tão diferente de muitos dos outros poetas


é a sua indiferença a todas as coisas,
dentre elas, a poesia e a indiferença.
Sua indiferença não é uma pose, nem uma atitude.
Ela é a expressão de uma inteligência viva.
Para Fernando Pessoa, ser inteligente é duvidar de todas as coisas,
dentre elas, da inteligência e da dúvida,
é tentar se desfazer daquilo que aprendemos.
Fernando Pessoa maneja sua inteligência
como o contrabandista de Valery Larbaud usa
seu pequeno espelho de bolso
para assegurar que os funcionários da alfândega não estão na sua cola.
Eu acho que ele tinha um olhar de mosca.
E que seus olhos de mosca lhe permitiam ver tudo
ao mesmo tempo, uma coisa e seu contrário,
mais alguma coisa que não é exatamente seu contrário
e que é, no fim das contas, a mesma coisa.

Admitindo que Fernando Pessoa tenha algum dia existido


(e que tenhamos chegado a um acordo sobre o que existir quer dizer)
eu acho que ele era do tipo que podemos chamar solitário,
e que ser solitário como eu imagino que ele tenha sido
é estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares e em lugar nenhum
é ser ao mesmo tempo todo mundo e ninguém.
Ser Fernando Pessoa é ser tudo, para ele somente.
E alguma coisa que tem a ver com o sono.

T.S. Eliot precisava de Deus para amar


e para escrever o que ele escreveu.
A metafísica dava náuseas em Fernando Pessoa
porque a metafísica supõe uma dualidade
que lhe revolvia o estômago.
Esta náusea da alma (que ele mantinha
ao escrever o que ele escrevia)
lhe fez escrever o que ele escreveu
até não poder mais pensar, até este esgotamento
que tem a ver com o sono.

131
A voraz banalidade das coisas cotidianas
é seu ponto de partida e seu ponto de chegada.
Ele não pega uma coisa qualquer da realidade de todos os dias
para destacá-la e lhe dar um sentido
mais alto, nem outro sentido qualquer que esteja fora dela mesma.
Ele pega uma coisa banal que ele expõe por um momento
à luz enganosa da metafísica
para recolocá-la, inalterada – ou quase –
na banalidade voraz das coisas cotidianas.

Seigen Ishin afirmava que antes de estudar o Zen


sob a orientação de um bom mestre
as montanhas são montanhas e as águas são águas.
Que, chegando a uma certa visão interior da verdade,
as montanhas não são mais montanhas
e as águas não são mais águas.
Mas que uma vez atingido o estado de quietude,
de novo as montanhas são montanhas
e as águas são águas.
Eu não compreendo muito bem o que isso quer dizer,
mas eu acho que Fernando Pessoa teria ficado contente
de ouvir essa história.

Sem sombra de dúvida, é em torno dessa questão,


ou de alguma coisa próxima a isso, que giram sua lucidez
e sua retórica de gerânio.

In: Um detetive em Tânger (1987), pp. 90-93.

132
VI. OS BOSTONIANOS DE DOMINGO
a Claude Richard

– De manhã todas as cidades são belas. Enquanto


os bostonianos da semana deixaram seus canteiros de obras
e escritórios climatizados dos bancos,
do lado de fora, a noite inteira, a poeira torna a cair em silêncio
sobre a poeira dos bancos e dos canteiros. Ninguém
nas janelas das paliçadas nem nos centros de fotocópia.
No domingo, esquecidos dos reflexos do ladrilho e dos bronzes
sobre os vidros sujos, satisfeitos e prósperos, os bostonianos
desfilam no museu diante dos quadros pintados à francesa
que representam os bostonianos de ontem.
Com vestidos de domingo, as bostonianas de hoje
contemplam as imagens pintadas de seus corpos
nas imagens desnudas dos bostonianos de outrora
sonhando com a maternidade e com cachos louros.
Depois, os bostonianos de domingo compram reproduções
coloridas dos quadros: cacho rosa e louro
da memória americana pendendo em seus berços
– produção, reprodução, XEROX.
Não longe dali, no porto e nos lugares mesmos
onde se produziram os acontecimentos de 1773
– insatisfeitos com a taxa que lhes impuseram os ingleses,
os colonos, disfarçados de índios, lançaram, uma noite, ao mar
toda a carga: duzentas e quarenta e duas caixas de chá –,
o brigue Beaver II, réplica em tamanho natural do brigue Beaver I,
lembra a Boston Tea Party. Se você passar por lá
vindo de não sei onde, indo para não sei onde,
e se você visitar o navio, poderá entrar
no espírito da rebelião lançando ao mar, você também,
duas réplicas em tamanho natural, em poliestireno expandido,
das caixas de chá, que um barbante
permite levar à bordo, cumprido o gesto comemorativo.
Macaco velho empoleirado sobre o dorso branco de um unicórnio,
irmão Ezra viajou assim até a China
e voltou para morrer em Veneza, centro internacional da fotocópia,
acalentando, na água lamacenta de suas lembranças, os reflexos
irisados de seu coração e do primeiro gueto judeu.
E se, vindo de não sei onde, indo para não sei onde,
você se dirigir a Nantucket, durante uma manhã de inverno,
para visitar o museu das baleias, você ouvirá
tinir na neblina, sem o ver, o sino
da última boia do canale. Você se lembrará dos naufrágios
e das cartas que viajaram, sem endereço, sobre o oceano,
de baleeiro em baleeiro, em busca de um destinatário.

In: Um detetive em Tânger (1987), pp. 114-16.

133
VII. UM TESTE DE SOLIDÃO [excerto]
À Viviane

I.
Bela.
Olhos risonhos, uma vaga tristeza na expressão do
rosto
– Como você soletra este nome?
Tudo o que poderia ser dito se confundiria com o
rumor dos carros na rua, diante
da padaria.
Pierro della Francesca.
Contente-se, por hoje, em comprar uma meia
baguete.
Bom dia Viviane Vendedora
“Denuncie toda correspondência obscena ao gerente
dos correios.”
Desde o início do verão ou o naufrágio do Titanic.

II.
Outubro. A volta dos piscos-de-peito-ruivo. O que
está diante de meus olhos.
Viviane é Viviane. Só, evidente.
Dizer-lhe que eu a vi.
Como eu a vi, se tenho apenas este nome à minha
disposição.
Mostrar-lhe o meu olhar
eu a vi assim.
Viviane é Viviane.
Isso é, eu construo uma solidão.
É em você que eu penso.
Sorriso único.
Eu lhe falo de meu sorriso.
Sua boca.

134
III.
9 de novembro
Cortada uma acácia morta na floresta de cabras.
Podada no tronco um poste de dois metros, ao olhar
de duas cabras
Plantado o poste sob a árvore no lugar escolhido no
gramado diante da cabana.
A tempestade.
Sob a última folha sou eu
Um minúsculo arco-íris furtivo entre os ciprestes.
Extraído o totem primitivo
Protegido o cimento úmido com as folhas de
bananeira e os plátanos de amoreira
Para o antefixo.
Choveu, está claro, domingo durante todo o dia.

IV.
Eu sou esta folha.
Alta, metálica, última.
Choveu, está claro, durante toda a noite. Essas são
palavras de alguém que sabe o que a insônia quer dizer.
No estacionamento da escola de arquitetura, nenhum
automóvel.
O guarda da faculdade utiliza uma chave inglesa como
martelo para repregar uma soleira de
alumínio.
Ele diz: “Até segunda.”
Alexandre havia dito para a Samira vir.
Jacques havia telefonado para Alexandre para ele não
vir, mas já estávamos a caminho.
Na véspera de onze de novembro.

135
V.
Quando chegamos embaixo de chuva na rua Sainte-
Colombe, Juliette dormia. Tínhamos corrigido o projeto
de exposição para Berne sobre o entre bebendo um café
com croissant. Eu troquei a caneta verde de David por
uma caneta vermelha. Alexandre partiu no momento em
que Juliette se levantou.
Parou de chover.
Eu saí para fazer compras no mercado.
O sol começou a brilhar.
Viviane é Viviane.
Talvez seja bizarro.
Mas não realmente tão bizarro quanto a última folha
sou eu.

VI.
A viagem a Reykjavique, ou a carta branca.
Carta incerta, com o letreiro ameaçador do Épi
Gaulês. A coragem de falar e a coragem de
escrever. “A coragem de manter a palavra.
Tomar a palavra e depois mantê-la.”
Um escritor nasceu para lhe falar. Profeta
rebelde impressionado.
Um ar de Jonas escapando de um espaço que se
povoa de sons e de frases enigmáticas
(“vender pães.”)
O visível mascarando o visível, soprando a fala
como o vidro, sonhava com aventuras indizíveis.
E nem mesmo a pegada de um pé na grama do
canale.

136
VII.
Sua voz de Viviane é Viviane.
Reconhecendo sua incompreensão sorridente na
luz que vem morrer sobre seu rosto e sobre suas
mãos, a jovem mulher vira de costas à carta
branca de Reykjavique.
Tomei a decisão.
Este livro – que eu me proponho escrever para
você – será o mais simples possível. Tome-o pelo
que ele se propõe ser: um verdadeiro livro de
imagens diretamente tiradas das circunstâncias. E
se ele mistura aos sentimentos reservados daquele
que o escreve uns ecos de filosofia é porque, para
o autor destas páginas, a filosofia pode também
ensinar (mostrar) através de imagens.

VIII
Viviane, havia o canale e
o cepo queimado.
Entre os dois, há trinta passos, dezesseis
carpinus e oito estações.
Qual operação, matemática ou lógica, pode
contar de uma só vez em metros, em árvores
e em anos?
É preciso apenas tentar fazê-lo?
Alguém sensato somaria pães e emoções?
É como dizer: me lembro das ilhas.
Aqui no entanto existe uma intenção, ligada
a um projeto de filme – a sequência da
viagem – em que se tratará de passar do
canale ao cepo queimado.

137
IX
Eis dois invernos, a tempestade havia
desenraizado um cedro centenário.
O tronco foi cortado. Sobrou o cepo.
Decidiram queimá-lo seguindo o exemplo
romano, fazendo com que o consumissem a partir
de dentro.
Alguns dias depois das chamas o terem atacado
por baixo, uma cratera se abriu na qual a brasa,
que chocava sob a cinza exalando uma fumaça
acre agradável, penetrou lentamente durante três
semanas até que alcançou as raízes, cozinhando
de passagem a argila cinza que as envolvia e
transformando-a em tijolo duro e rosa.
Embaixo de chuva.

X.
Onze de novembro, término embaixo de chuva
do antefixo para os pássaros.
Neste frase, são os espaços entre as palavras que
me deram a ordem das palavras.
Sobre o terreno alguma coisa falta entre o cepo
queimado e o canale. Falta uma palavra.
O canale é um projeto de tanque quatro. E a
lembrança de uma anamorfose.
Na grama, o canale era um trapézio em giz.
Para a ótica fotográfica, se tratava de um
quadrado branco desenhado na paisagem.
Para os olhos, exatamente um retângulo claro se
ficássemos em pé sobre a pedra lisa com uma
flor d’água criando uma ilha no lago três.

138
XI.
De nenhum ponto do canale é possível ver o
cepo queimado. E nao é por causa da cerca viva.
Mas porque falta uma palavra.
O tanque dois se comunica com o tanque três
por um canal de telhas cimentadas.
O tanque três com o canale através do olhar, a
partir da ilha de pedra.
Mas como fazer comunicar o cepo queimado
com a lembrança do canale?
Como mostrar em série lógica as grandes obras
dos últimos verões?
Eu ainda não lhe falei da cabana, mas eu percebi
esse esquecimento.
Eu vou lhe falar da palavra cabana.

XII.
Cabana é uma palavra da infância. Construir uma cabana
na floresta, sobre as árvores, etc.
Cabana é também uma lembrança de Wittgenstein. Ele
construiu uma cabana na Noruega, onde se
retirou repetidas vezes para refletir e escrever
quando já não ensinava mais lógica em Cambridge.
No último verão, eu construí uma cabana em
Bouliac, no antigo ateliê de Alexandre.
Eu vou ali com frequência para refletir e escrever.
Quando me falta pão, eu saio para comprar em
Fargues, com Alexandre, que me acompanha.
Diante da janela da cabana, nós construímos uma
manjedoura em forma de antefixo para os pássaros no
inverno.

139
XIV
Esta crônica contém todas as palavras que balizam o
percurso da cabana ao cepo queimado, com exceção
de uma.
Aquela que falta. Quais propriedades têm em
comum o cepo e o canale?
As lembranças: aquela do tanque de giz feito na
grama e aquela do cedro centenario desenraizado
pela tempestade.
A itália: canale é uma palavra italiana designando
um tanque longo retangular e a combustão do cepo
é uma técnica trazida de Roma.
Duas propriedades em comum não são suficientes.
Ficou faltando pelo menos uma.
A palavra que falta.

XV
A regra diz que ver é um verbo de ação.
Eu mudo a regra e digo que ver é um verbo
de estado (ou de mudança de estado).
O que é evidente quando pensamos nisso.
Eu vejo uma folha. Eu pego uma folha.
As duas frases não são equivalentes.
Eu desenho uma folha é ainda outra coisa.
Giacometti vê um cão. Este cão que ele vê
naquele dia.
Ele diz: “Eu sou este cão”.
Ele faz a escultura deste cão. Auto-retrato.
Eu vejo Viviane.
Viviane é Viviane.
Eu escrevo os sonetos de Viviane.

140
XVII
Eu estendo a regra de estado a todos os verbos sem
exceção.
(Salvo ser.
Ser é a palavra que contém todas as palavras.
E que contém a palavra que falta.
É o Curinga.
O centro vazio da tautologia.)
Chega-se à questão do objeto.
O verbo e seu objeto são um.
Um a mensagem e o destinatário.
Falta a regra para a questão do sujeito.
Qual destino, Viviane, deve-se dar ao mensageiro?
Qual é o lugar do mensageiro entre o canale e
o cepo queimado?

XVIII
As folhas secam entre os livros.
A árvore brilha no ângulo da sebe.
LZ não lia romances policiais.
Seu filho é um violonista charmoso que vive em
Nova Iorque. Ele veio jantar ontem à noite em
Bordeaux, antes de tomar o avião de volta a Paris.
Em Lyon, Raquel mudou de escrita e de endereço.
Fred modificou seu poema Como após o divórcio eu
deixei de comunicar ou a andorinha.
Ele é médico em Oloron.
Juliette diz que um dia ela se casará com ele.
Tudo isso passou entre ontem e hoje.
Amanhã eu fui com Alexandre apresentar
Viagem a Reykjavique em Toulouse.

141
XIX
Quais verbos envolvem um nome?
A palavra que falta é um nome que nos revelará
seus verbos.
Cada um dos verbos, um estado possível ou real
deste nome.
Faça a lista de todos os verbos que envolvem a
palavra árvore.
Uma árvore é uma árvore. Você não saberá nada
além disso.
Mas pelos verbos que envolvem essa árvore,
você pode reconhecê-la.
A diferença entre duas árvores se mede pelos
verbos que envolvem cada uma delas.
Os adjetivos e os verbos de uma árvore são um.

XX
Viviane é Viviane. Só, evidente.
Quem fala?
A frase é sem autor. A frase é sem sujeito. A frase
é sem verbo.
Na frase, é não é um verbo cuja primeira Viviane
seria o sujeito e a segunda
o atributo.
Existe só uma Viviane. Só, evidente.
Quais verbos Viviane envolve?
Erguer os olhos, sorrir, dizer “Bom dia”, se virar,
se abaixar, pegar o pão, se voltar,
pesar, entregar o pão, dizer “Até logo”...
Eu passo meu pensamento do canale ao cepo
queimado. É um jardim em movimento.

In: Um teste de solidão (1998).

142
VIII. TEORIA DAS MESAS [excerto]

1.
Marrons, verdes e pretos

Não diga os estilhaços de vidro são as palavras


ou são como as palavras de um poema

Querida B., esqueça as palavras


não conte os anos

Não pense que você tem na mão


os pedaços do poema, o tempo

Não escreva a cor contém a história

Esses seixos não dizem Mar Egeu


sobre os envelopes

Esses cacos não são as sílabas


esses envelopes não contém as letras

Não sonhe que você sufoca a cada noite

2.
O nome de uma ilha é: invisível

Limpe a objetiva
lave os seixos no mar
uma ideia do poema

Olá Olivier, onde você quer chegar?


fotografei esta palmeira para você às 5 horas

Os seixos não entram em nenhum campo


trabalhe a partir da ausência de campo

Consulte os pedaços de vidro


os restos da torre

O vidro é indefinidamente reciclável

Exponha o negativo à luz


lave a prova

Os envelopes são as mesas

143
3.
Seu nome é: invisível

Como dizer e não dizer eu


como lhe dizer você

Você não conhece sua voz quando fala


sua língua não é sua.

Esclareça isso traduzindo

Querida V., pegue o que está em sua mão


escolha o que está sobre uma mesa

jogue os seixos em uma tigela


a cor aparece na água

Não escolha eu e você


não escolha azul e mar Egeu

4.
Xisto e Mármore – duas cores
o branco e o cinza – para as casas

Caniço para o chão, para as camas

As algas, os caniços, a terra


e os pelos de cabra para os terraços

A madeira selvagem para a abertura, o vidro

A cal para as escadas externas

Olá Alan, não fale em emoção


a não ser em termos de tremor

A ampliação da casa se faz


a partir da casa.

144
5.
Você diz o vento mudou de direção
aquele barco a vela busca outro ancoradouro

Você diz já reparou que nuas


as pessoas são mais gordas que vestidas?

Você diz Kasparov é uma cópia de Fisher


mas Fisher era mais corpulento que Kasparov na mesma idade

Voltarei para tomar banho quando tiver terminado este capítulo

Você passa suas noites no Barbarossa


observando Carlos tomar café

Você diz ele precisa de algo entre um dia e um mês


para aprontar uma bela miniatura

Você bebe sempre grandes quantidades de água e café

Você diz é completamente inexplicável


Boby Fisher não tinha nenhuma razão para abandonar o xadrez

6.
Eu vi quatro cães reunidos
sob a árvore do meio

Esses grãos não são nem de areia nem de saibro


esses grãos de pedra não precisam ser nomeados

Um gafanhoto se escondeu ali em cima

__________
você perdeu seu nome
você é invisível

Invisível virou seu nome

Depois que a sombra da terra cobriu a lua


às quatro horas da manhã este eclipse foi total

Éfiro é o antigo nome de Corinto


pense na maneira em como isso acaba

Pague a dívida de Carlos à Vassili

145
7.
Poema, você não é um quadrado de linhas

Não sobreponha nove cidades


não multiplique as palavras
não celebre os mortos

Há menos antepassados que descendentes


há pouco vidro hoje
ontem não bati nenhuma fotografia

Não afirme uma menina construiu


este jardim de areia à beira da água

Não imagine que você pisou em uma medusa

Não conte esta manhã eu vi


na soleira de sua casa um cego
encarando o sol por cima da praia

Não diga nós voltaremos.

8.
Essas rodas de palha não são
os raios de um passado
o monopólio amarelo do estado

Este templo nunca foi um campo


estes rolos não são os segmentos de uma coluna

Isso não tem fim, isto não começa

Sulcos saem em todos os sentidos


param na mesma margem

Esta margem não faz parte

Bom dia, Alexandre, essas fotografias


não são pessoais
onde você colocou o céu?

O céu é branco

As mesas mal podem conter


este céu branco

146
9.
Eu sou o tradutor de alcatrão
só os tripés são estáveis

Nunca fui à Itália


teria gostado de morar em Tânger nos anos cinquenta

Na praça dos Mosteiros azuis


vi vindo até mim o Encarregado das origens
o Professor hemiplégico do Nível de Bolha de ar

Onde está o centro e onde


está o centro do que vejo no espelho?

Enquanto Charles Berstein falava de Charles Reznikoff


este espelho explodiu à distancia

Contemplo o fundo da tijela

E você, Claude, não incluía uma frase à sua carta


nas costas do envelope

Não rasgue o monopólio amarelo do correio

10.
Você não é daqui
mas você mora aqui

Poema, você foi jardim sobre uma mesa

_________________
__________________________________________________
_________________________

Eu penso: queria que você viesse


eu penso: o que você lê nesse silêncio
eu penso: não é o problema de uma fronteira

_______________
_______________________________________________
_____________

Um dia
será uma lenda

Aqui, um dia, embaixo desta árvore, neste banco de pedra

147
11.
O que e quem
quem é aquele e quem é aquela?

Boa noite Jô, abaixe a arma


aqui está sua chave
como você me encontrou?
ontem o bairro ainda não existia

O céu está cheio de vidro


acende um fogo de cipreste com sarrafos

Nem música nem dança


falta um dominó à onda
clamam as gaivotas

Você diz eu queria ser capucino ou peônia

Quando falta uma cabra à onda


gritam as gaivotas
um rastro de pedras e de nuvens beiram as poças

12.
Você não escreve mais, você caminha para se distrair
você encontrou o que buscava?

Considere os fios internos


os θ e os ɳ no papel cinza
as bordam se amarelam e minha mesa foge

Se as linhas se tocam
um traço é tangente à anca

A mão contém as nuvens


a palma encerra o púbis

Os jornais estão cheios de detalhes


quando você aprenderá a mentir?

Você gritou eu não sabia! Eu não sabia!

Não conte seis anos, cinquenta pedras


oitenta flores

148
13.
Mande assar as sardinhas
As chispas apagam na luz

O mar Egeu está azul


quando o céu Egeu está azul
a água não contém sua cor

Equilibre-se no seguinte: nem isso


nem aquilo (não) dizem as pedras

Você vê desfilar o asfalto


a duzentos quilômetros por hora
o bólide imóvel no centro da tela

Até logo, Claude, você não morreu


nos falamos esta noite em um trem

Regue a grama para que chova


sua voz é um tubo branco

149
IX. UM MAL ESTAR GRAMATICAL (Posfácio a Teoria das mesas)

Nada diante do mar. Uma mesa está de frente para o


mundo Como um último ponto de apoio. Um último suporte.
Ou ainda, um mal estar gramatical.
Claude Royet-Journoud, les objets contiennent l’infini

Raros são os livros que me impressionaram. Não digo que influenciaram. As


influências são correntes, superficiais e úteis. Elas são este tipo de emoção de que eu
posso precisar em um momento ou outro e que eu acolho então com muito prazer
mesmo sabendo que elas não chegam a tocar no fundo o que eu busco e o que eu quero.
Elas constituem muitos indícios, mesmo que vagos e flutuantes, reveladores daquilo que
no fundo eu não vejo ainda. Wittgenstein me influenciou e me influencia sempre.
Lucrecio me impressionou. Ser impressionado por um livro é uma coisa totalmente
diferente, muito mais rara e bem mais chocante. É, de súbito, ser pego na contramão. É
ser pego de súbito ou de surpresa. Uma outra voz falou no lugar da minha. Uma outra?
Você reconhece o livro
que você ainda não conhece.
Raros são os livros que me impressionaram significa impressionaram como uma
placa fotográfica: eu vejo ali naquilo que eu não escrevi algo que eu reconheço como se
eu tivesse escrito.
O que é um livro que me impressionou? Da natureza das coisas. Ou então, mais
recentemente, Sun, de Michael Palmer. Sun não havia me impressionado quando o li em
inglês. Em inglês Sun poderia ter me influenciado. Sun me impressionou quando eu
traduzi Serie Baudelaire para o francês. Ao traduzir Serie Baudelaire, eu tive o
sentimento, como em um sonho, de escrever um livro que eu não escrevi. Eu comecei a
escrever Teoria das mesas como uma continuação de minha tradução de Serie
Baudelaire, na Grécia, sob o sol de Michael Palmer. Ou ainda, eu diria metaforicamente
que Sun foi o negativo a partir do qual eu comecei a desenvolver esta Teoria das mesas.
Ela diz você é o negativo
Atrás de você um horizonte vermelho
e o horizonte uma questão
você é o mestre de placas de água
Eu recopio.

150
Ao pé da Gruta de Hércules, no litoral atlântico, o arqueólogo Montalban trazia à luz os
vestígios de um comptoir romano – estabelecimento comercial do primeiro século, que os
vândalos em sua época haviam saqueado: as pinturas murais haviam sido completamente
marteladas e seus restos abandonados diretamente no chão, pouco a pouco recobertos pela areia.
Quanto às paredes que as comportavam, elas tinham abastecido às necessidades de pedra de
gerações de autóctones: bem recentemente o senhor Doolittle tinha encontrado material para
usar na muralha ao redor da cidade.
Ao longo de semanas, todo dia ele trazia seu lote de fragmentos coloridos de antigos afrescos,
os quais uma vez lavados e dispostos sobre grandes mesas se revelaram inaptos às mais
pacientes tentativas de reconstituição, mesmo que parciais, do menor pedaço do mural.
Por outro lado, esta irredutibilidade do fragmento a reintegrar o conjunto original sugeria, pelo
viés das lacunas, o desaparecimento do suporte e a perda definitiva do modelo, a hipótese de
uma nova redistribuição do mundo, nascido do acaso a partir desses cacos cujas cores
conservaram uma frescura impressionante graças aos quinze séculos de areia, no pressentimento
de um tremor rítmico em que o entre começaria a tragar na cidade morte a viva e até o mar mais
próximo, a estação já bem avançada com os riscos de grandes marés por causa do equinócio...
Liberados da origem e deixados à sua própria evidencia, foi preciso enviar-lhes de volta à areia,
esses fragmentos, pois toda mudança que faz sair um corpo dos limites de sua natureza /
conduz instantaneamente à morte daquele que existia antes (Lucrecio).
Foi no verão de cinquenta e três.

Ao escrever, e lá se vão quatorze anos, este capítulo de Álbum de imagens da Villa


Haris, institulado “Os espiões traços dormiam perto dos barcos”, não duvidava de que
tal evoção bem literal de uma lembrança entre outras era a descrição fiel de um
dispositivo que iria se impor para mim, ao longo dos anos, como método de trabalho, de
escrita e de tradução:
– Eu trabalho sobre uma mesa. Eu espalho nela uma coleção aleatória de objetos de
memória, que precisam ser formulados. A medida que vão se elaborando as
formulações, as relações lógicas (não-causais) podem aparecer. Tal é o dispositivo de
base que permite atualizar eventuais conexões lógicas. Alexandre Delay fala de pedras
que, por causa da gravitação, tornam a flutuar incessantemente na superfície dos
campos. Essas relações lógicas (da ordem da linguagem) formam entre elas redes
imprevisíveis, incríveis. É ali que de repente vemos alguma coisa, que um outro sentido
surge, mesmo a propósito de coisas antigas. Neste momento, um enunciado torna-se
possível. Eu diria mesmo que ele se impõe então com a força da evidência. Para mim e,
talvez, em seguida, para um leitor.

151
No verão de 89, eu comecei a juntar seixos e cacos de vidro nas praias de Paros e
Delos. Depois, nas ruas de Moscou e Leningrado, os fragmentos coloridos das fachadas
e pedaços de alcatrão. No verão de 90, os lapilli e a terra violeta debaixo dos vulcões da
Madere. Eu recolhi esses objetos em envelopes brancos sobre os quais eu escrevia
escrupulosamente o lugar exato, o dia e a hora da colheita.
Na volta para casa, esvaziava, separando, o conteúdo dos envelopes sobre as mesas
e mergulhava na contemplação (teoria) dos seixos. Durante meses eu os observei e
consignei por escrito minhas observações. Resumindo, eu havia me tornado um tradutor
dos seixos.
Até o final do verão de 90, minhas investigações se concentraram sobretudo no
papel dos nomes, das iniciais e dos nomes próprios no aparecimento e na organização
de um contexto.
Setembro foi cansativo. Durante os meses que o seguiram a releitura de
Wittgenstein me trouxe reconforto e apoio. Meu trabalho de reflexão sobre os
enunciados, com os meus estudantes de Bordeaux, me levou a orientar minhas
pesquisas mais para o lado dos pronomes do que dos prenomes. Eu fui passar alguns
meses em Nova Iorque, meu escritório sobre o atlântico. O estudo dos pronomes me
ocupou até maio de 1991, data à qual eu pus um ponto final em meu Teoria das mesas.
A Teoria das mesas é um (um único) poema, que comporta cinquenta e uma
sequências: eu acabei de completar cinquenta e um anos quando eu terminei de escrever
este livro.
Este poema autobiográfico é um poema gramatical. Ele poe jogo ao mesmo a
interrogação (as perguntas não pedem necessariamente uma resposta) e a negação (que
eu utilizo aqui como uma sobreafirmação.)
Tomado por este duplo objetivo – a fotografia está onipresente neste poema –, os
pequenos pedaços bem significativos de um cotidiano comum se vem conectados
digamos de uma maneira distinta daquela da gramática normativa.
Essas conexões tem por objetivo lançar luz de modo diferente sobre um certo
número de enigmas – diria Anne-Marie Albiach – ou de segredos – diria Henry James –
em relação à representação, identidade e a ficção.
Um vestido é vermelho.

Malakoff, 31 de dezembro de 1991.

In: Teoria das mesas (1992)

152
X. TERRAÇO NA KASBAH [excerto]

Tânger, 3 de novembro de 2006.


Querida Elisa,

na última sexta, eu mudei (fui mudado) para a kasbah, para uma casa branca maior por
fora que por dentro. A habitação compreende três peças minúsculas, divididas em três
andares com terraço e vista para os terraços. Um terço do volume interior da casa está
ocupado pelas escadas: 52 degraus. Sabendo que cada degrau mede 20 cm de altura,
calcule sua altura total. Apesar das inúmeras janelinhas com grades que dão para o
beco, é preciso acender as lâmpadas em pleno dia (exceto no terraço) para ler e
escrever. Quanto à vista do terraço, ela desperta bem pouco interesse: ao leste, lá longe,
a avenida Espanha com um novo “look a la Marbella” e um pedaço da praia (onde há
muita areia) e a colina do Charf, que entrevemos através de uma floresta de antenas de
televisão; ao sul e ao oeste, o bairro dos iraquianos, a Tânger dos anos 30 e 40 e o peso
da nova Tânger recortada contra o horizonte, que você o sabe o quanto eu desgosto. E
resta o céu. Quando o tempo está bom, o céu fica azul como na Art poetic’ de O.
Cadiot; quando não está bom – o que é o caso nesses dias – o céu fica cinza; e quando o
tempo está entre os dois, o céu fica atravessado de nuvens e de gaivotas, como em todos
os lugares. Ao “voltar à Esmeralda2”, com minha velha máquina de escrever, eu tinha
um projeto quase preciso: encontrar in loco aquilo que havia me escapado então (não
despreze a falsa simetria entre então e in loco). Depois de fechar este parêntese, eu subi
dois andares para ir limpar meu cinzeiro na cozinha e quando reassumi o posto na mesa
para continuar esta carta, fui pego de surpresa por um pôster preso na parede. Eu ainda
não havia reparado nele. Esse pôster, que é na verdade uma reprodução reduzida do
próprio pôster, foi pintado por M. Diaz-Merry e litografado em Madrid em 1928. Ele
representa a kasbah de onde lhe escrevo, vista de uma varanda em estilo mouro cercada
de eucaliptos e buganvílias. Ao fundo, atrás da kasbah, o estreito, cartaz azul. E ao
longe, as montanhas da costa da Espanha que parece terem sido confundidas com os
Alpes suíços abaixo do Lago Léman. Certamente há menos de um século a erosão fora
particularmente ativa na região. Este pôster, eu intuo, levanta uma questão. Mas por

2
Referência à epígrafe do livro Um detetive em Tânger em que o autor cita Raymond Chandler e um
detetive que volta a Esmeralda para fazer suas investigações (1987:9)
153
enquanto não quero me deixar levar por ela. Então, voltando à Tânger para esta
temporada bastante longa, eu me impus o objetivo de encontrar in loco aquilo que tinha
escapado então. Você vai compreender que não podia fazer isso à distância, rodeado de
vacas e ovelhas nos pastos verdes de Mérilheu (nos Altos Pirineus). Eu tinha até um
começo de pista secreta que – como tudo o que é realmente secreto (screto) – se revela
no grande dia. Eu falo da luz. A luz aqui. O tédio com a luz (aqui ou em qualquer lugar)
é que não a vemos. Não se pode descrevê-la, nem mesmo pensar nela. A luz não é um
conceito. Só se pode conhecê-la na percepção das coisas (dos corpos, disse Lucrecio)
que a revelam e que ela revela. De modo que podemos dizer que a luz está “nas” coisas.
Ou melhor, que as coisas (os corpos) são as condições de luz. Esta ideia não é nova.
Para mim ela está relacionada às experiências precisas mas fugitivas de então que eu
tive aqui. Trata-se de momentos de intensa alegria, comparáveis àquelas
experimentadas por Nathalie Sarraute em Infância, a propósito de treliças em flor ao
longo da pequena parede de tijolo rosa. Esses instantes “de convicção” bem reais, vou
chamá-los de perceptos. Não são lembranças no sentido habitual da palavra. O tempo
não tem poder sobre eles. Poderia dizer: aquilo se passou em tal dia de tal ano. Porém
ao dizer isso, não digo absolutamente nada. Aquilo se passou em tal momento como
poderia ter se passado em qualquer outro. Mas se passou. Ter lugar: a expressão é
surpreendente. O lugar faz parte integrante do acontecimento. Daí a utilidade de voltar
in loco. Em O que é a filosofia?, no capítulo “Geofilosofia”, Deleuze e Guattari usam
esta fórmula: “O hábito é criador”. Proposição aparentemente paradoxal, salvo se, por
hábito, compreendemos o fato de habitar. “Adquirimos hábitos ao contemplar, e ao
contrair aquilo que contemplamos. O hábito é criador” (transmitir à Juliette, para o seu
dossiê Gobeurs). Este tipo de hábito parece como uma convocação não à ordem, mas à
imanência. Algum sociólogo positivista do século XIX, o qual não me lembro agora,
dedicou um estudo ao sistema de castas na Índia. Para não ser influenciado e manter sua
objetividade, ele se proibiu de ir visitar o lugar mesmo. Foi um pouco assim que agiu a
maior parte daqueles – escritores ou não – que escreveram sobre Tânger. O resultado é
que Tânger é estranhamente ausente de seus escritos. E se Tânger está a tal ponto
ausente talvez seja porque simplesmente seus autores estavam eles próprios ausentes de
Tânger, mesmo que alguns – como Paul Bowles – tenham passado boa parte de sua vida
ali. Passar (sua vida) é a palavra. Quer se trate de uma ficção (romances, filmes) ou de
trabalhos mais ou menos científicos (sem falar em jornalistas), é sempre a história que é
privilegiada: a narração nos romancistas, a História (grande ou pequena) nos outros.

154
Quanto à cidade em si, representada por meio dos mesmos estereótipos saídos
diretamente de prospectos de agências de turismo, ela serve apenas de moldura, se
possível um pouco sulfurosa, para o desenrolar da ação (Eu queria aliás fazer justiça –
neste ponto – a Paul Morand, um dos raros escritores que fez da cidade, sem tê-la
nomeado em lugar nenhum nunca, a partir do viés de algumas descrições
surpreendentes, um personagem totalmente à parte em Hecate et ses chien. Mas os
comentadores preferem dar atenção, neste romance, aos gestos de vilania de Clotilde).
Um dia cometi a imprudência de escrever, em uma carta, acerca de Tânger: “Essa
cidade sou eu”. Eu pensava evidentemente em Giacometti e seu cão. Queria dizer
simplesmente que ao longo dos anos em que habitei em Tânger – e mesmo depois disso
– a forma da cidade e de meu pensamento tenderam a ser apenas uma. “Adquirimos o
hábito contemplando e contraindo aquilo que contemplamos”. E eis que os Novos
Intelectuais (franceses), bem pensantes e politicamente corretos, se apropriaram do
“essa cidade sou eu” para zombarem de meu egocentrismo e de minha “deriva
colonial”. Às vezes não sabemos se a estupidez triunfa sobre a má-intenção ou se é o
contrário. Tudo isso para dizer que a História não tem nada a ver com a luz. O
historiador não usa a palavra luz (a não ser que se trate de Austerlitz, ou
metaforicamente, do século das luzes). A luz é geográfica. Todos os momentos de luz
que evoquei tem em comum o fato de serem ácronos porém localizados. Eles desenham
um mapa não apenas visual mas sonoro, tátil, olfativo, pois a luz está sempre à
disposição para ser pega, em um agenciamento de formas, de cores, de ruídos, de vozes,
de cheiros,... que podemos perceber. Agora que estou imobilizado em minha kasbah,
preciso me habituar. Eu levo a coisa bem a sério. Eu faço do terraço meu “Office in a
Small City.” Concentro minha atenção na vida dos outros terraços onde a principal
atividade visível é estender as roupas. Eu tiro fotos. Eu crio laços: ontem a jovem da
casa do lado estendia a roupa limpa no terraço enquanto eu lia no meu dando-lhe,
involuntariamente, as costas. Ela me chamou e falou comigo em árabe. Eu não entendia
o que ela estava dizendo mas ela estava sorridente e loquaz. (Eu ia acrescentar que ela é
bonita, mas cuidado com a “deriva colonial”.) Era a primeira vez que alguém novo
(diferente) me dirigia a palavra havia mais de um mês. Eu estava contente. Ela foi
buscar para mim um copo de chá. Ela me deu o chá de uma mão à outra, de um terraço
ao outro. Bebemos cada um seu chá. Faço progressos no hábito. Anteontem comi um
(pequeno) biscoito amantegado cru. Não faz bem, eu sei, mas não pude resistir. Estava
ótimo. Ontem assei umas sardinhas à luz da lua. Esta noite, dormi ao relento. Ao

155
despertar, não era mais o mesmo. Meu devir-terraço assume sua forma. Questão a se
pensar. Beijos.

PS. Diga ao Alexandre que ele pode dormir tranquilamente. Os estorninhos chegaram a
Tânger. Eles são infernais.

In: Terraço na kasbah (2007b), pp. 1-4.

156
BIBLIOGRAFIA

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