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Orlanda Amarílis

O Conto como gênero

O conto em Orlanda Amarílis: processos, modelos e inovações:


Orlanda Amarílis encontrou no conto a medida certa para o que
queria dizer acerca da sociedade, da geografia, das crenças e da cultura de seu país,
confessando em entrevistas a impossibilidade de ter sido outra coisa senão contista.
De seu único romance, inacabado, só temos uma escassa menção – “não, nunca o
acabei” (MARTINHO, 2001, p. 186).
Consequentemente, sua escolha por aquele gênero literário passou pela intensidade
da relação que manteve com o processo da escritura,
que sobreveio da sua capacidade de sintetização da “batalha fraternal” entre “a vida e
a expressão escrita dessa vida”, que tem como resultado, inexoravelmente, o conto
(CORTÁZAR, 1999, p. 350).

Orlanda Amarílis optou por alguns temas, tanto excepcionais quanto cotidianos,
relacionados diretamente à memória das vivências em Cabo Verde e às preocupações
sociais no tocante à colonização e ao colonizado, às diferenças entre as classes e à
posição da mulher nessas esferas da sociedade. No entanto, a literatura produzida por
Orlanda está longe de ser uma literatura de tese, aquela em que se visa a um,
figura da retórica clássica que procura, por meio da persuasão por indução ou mesmo
da argumentação por analogia, transmitir uma moral. Assim, os contos amarilianos,
apesar de figurarem na esteira do neorrealismo, não se constituem como literatura
panfletária ou de tese, ao contrário disso, são, hoje, estudados como a produção mais
rica da literatura cabo-verdiana, senão da produção feminina da África de língua
portuguesa:
Não obstante sua importância para o sistema literário de seu país e, ainda, o fato de
ser uma das mais importantes escritoras dos cinco países africanos de língua
portuguesa, pouco se conhece da obra de Orlanda Amarílis, embora traduzida em
vários países (TUTIKIAN, 200, p. 239).

Apesar de estabelecer determinados temas essenciais que se relacionam com a


vida em Cabo Verde, Amarílis emprega quase sempre forças sobrenaturais,
aproximando sua produção da chamada literatura fantástica, mas também projeta sua
escrita na tentativa de que formem, quando unidos os contos em livro, uma unidade de
conjunto, à moda de Edgar Alan Poe:
Um livro de contos, para mim, terá de ter uma determinada unidade de conjunto. Por
exemplo, num livro de Edgar Poe, sabendo que em princípio são de terror, em cada
um deles sente-se uma tênue ligação entre os contos. Ou estarei enganada? Além do
tema“Bem, durante muito tempo, quase que não aceitava que chamassem literatura
feminina a uma determinada literatura, porque ninguém se refere à literatura
masculina. É a feminina que tem esse destaque, não sei por que razão. Eu pensava
que não havia motivo, mas, entretanto, tenho pensado muito nisso [...] e descobri uma
coisa engraçada: que há certas situações na literatura que os homens não são
capazes de as conhecer desse modo, e eu notei algumas situações típicas, como, por
exemplo, num dos contos em que ela [Catherine Mansfield] fala da impertinência das
criadas que o homem, em geral, não aborda porque a vivência dele é fora de casa;
mesmo em Cabo Verde e em qualquer lado é mais fora de casa do que dentro de
casa. E quando ele está dentro de casa, aqui e agora neste tempo, ele agora já ajuda
um bocadinho, faz parte um pouco mais do universo feminino [...] E é por isso que eu
digo neste momento, realmente há literatura feminina, no olhar feminino, pela vivência,
contacto pelo interior da casa, que é uma vivência que o homem não tem
normalmente” (SPÍNOLA, 2004, p. 253- 254).

A ESCRITA EPISTOLOGRÁFICA DE ORLANDA AMARÍLIS NO CONTO “JOSEFA DE


SANTA MARIA”, Fabiana Miraz de Freitas Grecco, Cerrados – Revista do Programa
de Pós-Graduação em Literatura – n. 41 – 2016 – Áfricas em movimento | 195

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O “Canal gelado” e a questão social em Cabo Verde

“Cabe ressaltar que, em entrevista a Laban (1992, vol 1, p. 263), Orlanda


Amarílis ressalta, ter escrito artigos sobre a situação da mulher através das épocas
no número 1 da revista Certeza (1944) e, no número 2, sobre o dia-a-dia da mulher
burguesa em Cabo Verde, este censurado pelo governo colonial.
O texto abrangia assuntos como “o papel secundário da mulher, ou [sobre] o seu
estatuto nessa época [...] esse artigo talvez fosse uma espécie de estímulo às
mulheres cabo-verdianas, para as espevitar” (Ibidem, p. 264).”
Em Michelle Perrot (PERROT, 1987 apud SOIHET, 1998, p.
100), na qual se sucediam "mulheres espancadas, enganadas, humilhadas,
violentadas, sub-remuneradas, abandonadas, loucas e enfermas”.
Recorde-se que, no segundo capítulo, enfatizamos que, em Cabo Verde, as
mulheres são as principais vítimas da pobreza, sobretudo as mulheres chefes de
família, desempregadas e com baixo nível de instrução. Para contornar a falta de
recursos, as estratégias mais recorrentes são a emigração (para o exterior) ou a
migração para zonas urbanas, a incursão no mercado informal, dentre outras. Nos
meios urbanos, o desenvolvimento da atividade informal é a saída para muitas
famílias, com ênfase no trabalho feminino.

A singularidade caboverdeana
A história de Cabo Verde nos remete, em sua origem, a uma variedade étnica e a uma
sociedade multirracial marcada por uma mistura lingüística de que se formou o crioulo,
e nos remete, no presente, à estagnação de uma sociedade regida por valores
arcaicos impostos pelas características geofísicas. Veja-se que, quando os
portugueses chegaram ao arquipélago, em 1456, as ilhas não eram habitadas e, por
estarem situadas entre a metrópole e as colônias do continente, os navios negreiros aí
deixavam contingentes de negros insubmissos ou doentes, do que resultou a
variedade étnica e o caldeamento lingüístico. É a “terra trazida”, de Manuel Ferreira.

O Clima
Por outro lado, a grande característica climática do arquipélago é a irregularidade da
chuva. Em período de seca, a população é dizimada e os sobreviventes emigram para
fugir da fome e da sede, numa grande semelhança com o circunstancialismo humano
do Nordeste brasileiro, onde a temporalidade se assenta na mesma base: seca,
ilhamento, força opressiva da tradição. Essa soma de fatores formadores de Cabo
Verde, resultando na mestiçagem, em que o mulato tem ênfase especial, provoca a
condição apontada pelos sociólogos como inferiorizante e que Gilberto Freyre,
equivocadamente, definiu como uma gente que querendo ser européia se exclui da
África. Ou seja, uma gente situada entre um regionalismo europeu ou africano. Para
Gabriel Mariano o mestiço teve, em Cabo Verde, o papel que “nas Áfricas” pertenceu
ao português e, no Brasil, ao reinol.
Com a mestiçagem, as simbioses, os sincretismos e as sínteses várias, anula-se,
praticamente, pelo exercício da sobrevivência, a subordinação colonial. É o que
Manuel Ferreira aponta como um novo tipo de relação a substituir
colonizador/colonizado, uma vez que a própria administração passa para as mãos de
uma burguesia cabo-verdiana. Em Cabo Verde, depois de uma fase em que os povos
em contacto teriam confusamente procurado um motivo de entendimento seguir-se-ia
uma outra de harmonização íntima de culturas, propícia ao aparecimento de uma nova
sociedade. Para esta sociedade crioula passaram as terras, o comércio e a agricultura;
ela apossou-se também do funcionalismo público. De modo que é exata a afirmação
que se refere ‘à transferência’ de poderes a que podemos atribuir igualmente um
sentido sociológico cultural, pelo que ela traduz ou sugere da vitalidade dos valores
regionais cabo-verdianos no seu contato permanente com a cultura portuguesa. Já
uma vez afirmei que desse corpo- a-corpo entre a cultura cabo-verdiana e a cultura
portuguesa resulta muitas vezes uma absorção de estilos portugueses, quando não se
dá a substituição do português por aquilo o que já é nitidamente e dinamicamente
crioulo.22Na verdade, a falta de recursos, a pobreza do solo, a pequenez das ilhas e a
irregularidade das chuvas, tudo fez com que os portugueses não tivessem interesse
de investimento. Aí, por exemplo, não se tentou introduzir, como em outros territórios,
a grande plantação que traria consigo o diretor, o capataz, a monocultura e a
descaracterização regional, ainda que Portugal estivesse sob o fascismo salazarista e
Cabo Verde sofresse o fascismo numa situação colonial. Assim, Gabriel Mariano
refere dois movimentos opostos, o ascendente, aristocratizante, de negros e mulatos
em contato com a cultura de língua portuguesa, e o descendente, democratizante, das
“elites da terra” que difundiram as coletividades e as instituições culturais desse
contato. Há, portanto, uma História de unidade na diversidade e de harmonização de
antagonismos.

-A questão dos “mestiços” e o isolamento sofrido pelos emigrantes de Cabo Verde

Comenta Alberto Carvalho que contra à ideia (ideologia), talvez mais cativante, da
completa submissão da sociedade crioula ao poder colonialista, parece-nos bastante
produtivo colocar o processo sociocultural da nação cabo-verdiana na dependência da
dinâmica da burguesia protagonizada pelos ‘filhos da terra’, detentores de recursos
econômicos que em outras colônias pertenceram ao reinol. A este conjunto de elite
negro-crioulo, mestiço e branco-crioulo se deverá ligar a ideia de ‘consciência da
nação’, ela própria em face do ‘outro’, em nome de uma realidade – ‘povo’ que apenas
na segunda metade do séc. XIX começa a ter contornos definidos e a assumir o
princípio ativo da homogeneidade. Se a terra trazida não é terra de origem, não é terra
herdada, tampouco conquistada, seu povo termina assumindo características bem
distintas daqueles das demais ex-colônias de língua portuguesa na África: é a terra do
temperamento da amorabilidade, de um outro tipo de escravidão que ultrapassa a
relação colonizador/colonizado para sucumbir à força escravizadora da própria terra. É
onde o sonho passa a força revitalizadora, dentro do princípio de Manuel Lopes, autor
do primeiro texto ficcional cabo-verdiano (1936), de que o homem está ligado a fatores
exteriores, os sonhos, às razões práticas. É onde se instaura o grande dilema do
habitante do arquipélago: o ter de partir querendo ficar, porque se estabelece, entre a
terra e o homem, uma perfeita simbiose, sem possibilidade decisão. Esse dilema faz
parte da estrutura mental do arquipélago.

Chegamos, portanto, à grande questão que ocupa o pós-colonialismo que é a questão


da etnia. Todas as antigas metrópoles coloniais do ocidente europeu, e aí se inclui
Portugal, se vêem procuradas pelos antigos colonizados. São os africanos, por
exemplo, sujeitos a um novo processo de etnização em Portugal. Quer dizer, se em
sua terra natal são um povo, aí, na antiga metrópole, formam uma etnia. Primeiro,
porque são de fato uma minoria, e a minoria não é só numérica (na prática, há
maiorias que funcionam como minorias, como a população de Angola, ou
Moçambique, ou do Timor , sob dominação colonial), a minoria corresponde a uma
representação cultural diversa da cultura majoritária. Mas, mais do que isso,
constituem também uma etnia pelo fato de estarem desterritorializados, serem
discriminados e desenvolverem laços de solidários, culturais, linguísticos, raciais e
religiosos, inclusive concentrando-se geograficamente. É o caso dos cabo-verdianos
no Bairro da Estrela, em Lisboa.

Orlanda Amarílis: Conto "Nina" e a questão de cor

-O “branqueamento” como forma de oferecer algum futuro aos descendentes de Cabo


Verde

Orlanda se insere entre as mulheres que contam a história das mulheres dentro da
História do seu país. Daí a força da construção de suas personagens femininas, essas
“ilhas desafortunadas” a que refere Pires Laranjeira. Retratos de mulheres, às vezes.
Outras, retratos de mulheres com paisagens ao fundo, lá ao longe, muito longe, no
espaço e no tempo, contando histórias de vidas ou vidas sem história. Melhor: vidas
vazias, vidas caindo no vazio (sem futuro, sem amor, sem trabalho, sem alegria).
Entretanto, sua grande personagem é o cabo-verdiano, o povo que aquelas mulheres
representam, no arquipélago e em Lisboa sobretudo, mergulhando em duas vivências
e em duas memórias .A imagem do arquipélago, visto de si, nos contos de Orlanda
Amarílis, é quando se desloca, na literatura, a visão do continente europeu para as
ilhas marcadas pelo drama da chuva.
-O racismo nos países Europeus como França, Holanda e Suíça, além de Portugal

É como aparece em “Thonon-les-Bains”:


(Dialeto Crioulo)
“Sabe comadre, a vida aqui já não podia continuar como era. Sete anos sem chuva é
muito. Eu não tenho nem uma migalha de reforma de Deus-Haja” (1983, p. 14).
Ou, ainda, em “Prima Bibinha”:
Papiar de nada papiar na vida de gente na novidade
de dji de Sal, naqueles avião na camim de Angola,
na camim de terras deste mundo. Nunca falavam da
falta de chuva. Pâ quê? Nove ano sem chuva pâ quê
falar mais em chuva? Comida? Deixa-me rir. Pão com
rebuçado, um caneca de qualquer chá, aperta o cinto,
carinha contente. Carinha contente ou então ir pâ
criada pâ casa de gente-branco.

E a evasão, em busca de algo melhor, da Pasárgada, como solução de vida é


retratada, ainda, no conto : Thonon-les-Bains
“Como comadre, medo de quê? Medo de nada. Gabriel explicou tudo muito bem
explicado. Piedade vai agora, depois, daqui a uns dois anos vai o Juquinha, depois
Maria Antonieta e depois vou eu mais o Chiquinho” (Idem, p. 13).

A imagem original, entretanto, tende a ser substituída por uma outra, em que
predomina a subjetividade e a afetividade, quando há o deslocamento para o espaço
geográfico exterior, onde a Pasárgada sofre o processo de apagamento, adquirindo
sua real dimensão: a do imaginário.
Ocorre que, na definição essencial do espaço exterior, instaura-se o problema da
hierarquia cultural, estabelecendo-se as diferenças entre o eu (cabo-verdianos) e o
outro. Se há o registro de que o parecer ao outro, através do processo de assimilação,
significa ascensão e prestígio, logo, no espaço estrangeiro, revela-se uma sociedade
que discrimina, exclui e marginaliza, e a utopia se desfaz. Não há a possibilidade de
ser um igual ao outro, até porque, faz-se a descoberta de ser emigrante, o que
significa, naquele contexto cultural, a descoberta de que: “ Emigrante é lixo
(...) emigrante não é mais nada.” (1983, p. 25).
“Por uma Pasárgada cabo-verdiana”, Jane Tutikian, Revista Letras de Hoje, Porto
Alegre, v. 43, n. 4, p. 42-52, out./dez. 20089, UFRGS (Porto Alegre/RS, Brasil)

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